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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL ZILÁ GOMES DE MORAES FLORES O BRINCAR, A CRIANÇA E A ESCOLA TRAMAS DE UM CAMINHO Ijuí (RS) 2006

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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO

DO RIO GRANDE DO SUL

ZILÁ GOMES DE MORAES FLORES

O BRINCAR, A CRIANÇA E A ESCOLA

TRAMAS DE UM CAMINHO

Ijuí (RS)

2006

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ZILÁ GOMES DE MORAES FLORES

O BRINCAR, A CRIANÇA E A ESCOLA

TRAMAS DE UM CAMINHO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Educação nas Ciências, Departamento de Pedagogia (DePe) da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação.

Orientadora: Doutora Noeli Valentina Weschenfelder

Co-orientadora: Doutora Cláudia Luiza Caimi

Ijuí (RS)

2006

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Para Cezar,

Augusto e

Maria Eduarda

pelo amor,

dedicação e

compreensão.

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AGRADECIMENTOS

Ao PRÓ-EDUC/IECLB, pela Bolsa-auxílio concedida.

Ao Colégio Evangélico Augusto Pestana, pela flexibilidade no tempo das atividades,

quando necessário para a escrita.

À Noeli Weschenfelder, minha Orientadora, pela paciência nas orientações e conversas.

À Cláudia Caimi, minha Co-orientadora, pelas contribuições benjaminianas.

À amiga Graciele Fabrício, que muitas vezes contribuiu com

suas leituras e questionamentos.

Às crianças, professoras e funcionárias da Escola Municipal Infantil “Colméia”,

sujeitos dessa pesquisa.

Aos meus pais, Leovaldo e Helena, que me ensinaram a sempre

buscar novos caminhos.

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RESUMO

A dissertação intitulada “O Brincar, a Criança e a Escola – tramas de um caminho”, aborda a questão do brincar da criança na escola. Os argumentos foram organizados e constituídos a partir de uma pesquisa com viés etnográfico em uma Escola de Educação Infantil da rede municipal de ensino na cidade de Ijuí/RS. Ao marcar o encontro com os sujeitos da pesquisa e comigo mesma, fui instigada pelo debate no Grupo CRISÁLIDA – Estudos sobre a Infância e Juventude, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, procurei novos fios que traçados tecem a rede desta escrita. Acompanhei crianças de três a cinco anos, nas turmas de Jardim 1 e Jardim 2, totalizando 41 sujeitos observados, para entender a cultura destes sujeitos, foi imprescindível minha inserção no grupo, acompanhando as ações cotidianas da escola. O viés etnográfico proporcionou o estar ali com os sujeitos infantis e não estar olhando sobre eles, para observar como os diferentes discursos constituem o brincar das crianças. Organizei esta escrita de modo que os fios da pesquisa se entrecruzassem com as fontes teóricas utilizadas: o olhar de Walter Benjamin no sujeito infantil (uno), a percepção de Florestan Fernandes do sujeito infantil inserido no grupo social e, a perspectiva dos Estudos Culturais Contemporâneos, possibilitaram mapear a condição do brincar na escola observada. O caráter acolhedor dos Estudos Culturais Contemporâneos permitiu a tessitura entre os olhares do filósofo Walter Benjamin, do sociólogo Florestan Fernandes e das imagens de Francesco Tonucci. Além das fotos que registram as crianças da Escola “Colméia” em seu brincar, trago ao texto os desenhos de Francesco Tonucci, pesquisador italiano que, com seus cartuns, denuncia discursos que constituíram e constituem formas de ver a infância e seu sujeito, a criança. Considerando que a instituição escolar possui um espaço e um lugar e que estes são determinantes nas ações do sujeito infantil, de modo especial marcando os tempos e espaços do brincar das crianças, no primeiro capítulo - ESCOLA É UM LUGAR PARA ESTAR JUNTO-, trouxe a Escola “Colméia” apresentando seus espaços e tempos. No segundo capítulo– NOSSOS BRINQUEDOS - descrevi quando e como acontece o brincar do sujeito infantil nesta escola, buscando em alguns momentos traçar um paralelo de como brincavam as professoras e como brincam os alunos hoje. No terceiro capítulo – OS DISCURSOS QUE CONSTITUEM O BRINCAR NA “COLMÈIA” E FORA DELA – enfatizei alguns discursos que circulam na escola e fora dela, constituindo diferentes crianças e infâncias. Para além das prateleiras escolares e do simples ato de jogar, a cultura midiática traz consigo uma Pedagogia Cultural que perpassa a escola, colocando em evidência o conflito existente entre a cultura escolar, a cultura familiar e a cultura da mídia; de um lado, professores que tratam as crianças como se estivessem alheias ao mundo adulto; de outro, a maioria dos pais preocupados com situações práticas em relação à educação dos filhos e, bem no meio de tudo isso, a criança ligada à programação da televisão, na qual se ensina até a contar. Constatou-se que a cultura da mídia perpassa a vida do sujeito infantil, levando-o a assumir diferentes formas de brincar, de vestir e de ver e estar no mundo, apesar de toda a força das grandes corporações a criança recria o seu brincar, pois para ela esta ação é sempre nova nunca igual. Palavras-chave: Espaço Cultural do brincar. Infância. Criança. Escola Infantil.

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ABSTRACT

The dissertation entitled “Playing, the Child and the School – schemes of a way”, approaches the topic of the child’s playing at school. The arguments were organized and constituted starting from the ethnographic point of view, in a public pre-school in the city of Ijuí/RS. When I set a meeting with the subjects of the research and with myself, I was instigated by the debate in the group called CRISÁLIDA (CHRYSALIS) – Studies about Childhood and Youth of the Regional University of the Northwest of the State of Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, I searched for new strings that weave the web of these writings. I observed children from the age of three to five years old, in the kindergarten 1and kindergarten 2 groups, totalizing 41 subjects, to understand the culture of these subjects, my insertion in the group and the study of their everyday actions were necessary. The ethnographic view made possible to be there with the infant subjects, and not to be looking over them, to observe how the different discourses constitute the act of child’s playing. I organized this text in a way that the strings of this research could cross themselves with the theories used: Walter Benjamin’s point of view on the infant subject (uno), the perception of Florestan Fernandes of the infant subject inserted in a social group and, the perspective of the Contemporary Cultural Studies, made possible to draw a map of the condition of the act of playing observed at school. The welcoming attitude of the Contemporary Cultural Studies allowed weaving the perspectives of the philosopher Walter Benjamin, of the sociologist Florestan Fernandes and the images of Francesco Tonucci. Besides the photos that record the children from “Colméia (Beehive)” school playing, I bring to the text the drawings of Francesco Tonucci, an Italian researcher who, with his cartoons, brings to topic discourses that constituted and still constitute ways to see infancy, its subject, the child. Considering that the school as institution has a space and a place and these ones are determined in the actions of the infant subject, in a special way marking the times and spaces of the child’s playing, in the first chapter – SCHOOL IS A PLACE TO BE TOGETHER -, I brought the “Colméia (Beehive)” school, presenting its spaces and times. In the second chapter– OUR TOYS – I described when and how the infant child’s playing happens in this school, trying in some moments to draw a parallel on how the teachers used to play and how the students play today. On the third chapter – THE DISCOURSES THAT CONSTITUTE PLAYING AT “COLMÈIA” AND OUT OF IT – I emphasized some discourses that circulate at school and out of it, constituting different children and different infancies. Beyond the school shelves and the simple act of playing a game, the culture of media brings itself a Cultural Pedagogy that elapses the school, putting on evidence the conflict that exists among the school culture, the family culture, and the media culture; in one side, the teachers, who treat the children as if they were strange to the adult world; in the other one, the majority of the parents that are worried with practical situations related to the education of their children and, right in the middle of all of it, the child turned on by the TV programs, in which even counting is taught. It shows that the media culture elapses the infant child’s life, leading him to assume different ways of playing, dressing, being in the world and seeing it, although all the force of the great corporations, children recreate playing , because to them, this action is always new, never the same. Key-Words: Cultural Space of Playing. Infancy. Child. Kindergarten School.

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SUMÁRIO

PARA INÍCIO DE CONVERSA... CONHECENDO OS CAMINHOS ...................................9 Buscar os Caminhos... .............................................................................................................11 As Escolhas... ..........................................................................................................................20 CAPÍTULO 1 – ESCOLA É UM LUGAR PARA ESTAR JUNTO .......................................27 1.1 O Espaço e o Tempo na/da Escola – Quem é a Colméia... ................................................28 1.2 A Ortopedia Arquitetônica... .............................................................................................32 1.3 As Rotinas ... ......................................................................................................................38 CAPÍTULO 2 – NOSSOS BRINQUEDOS... ..........................................................................54 2.1 Do que Brincamos ..............................................................................................................54 2.2 As Crianças – Os Olhares de Benjamin e Fernandes .........................................................57 2.3 Oh! Que Saudades que Tenho... da Aurora da Minha Vida... ...........................................60 2.4 Os Brinquedos ... ................................................................................................................69 CAPÍTULO 3 – OS DISCURSOS QUE CONSTITUEM O BRINCAR NA “COLMÉIA” E FORA DELA..................................................................................................78 3.1 “Vamos Passear na Floresta Enquanto seu Lobo não vem...”............................................84 3.2 E nas Prateleiras... Dominós, Memórias e Quebra-cabeças! ..............................................86 3.3 Entre Chocolates, Salgadinhos, Lanches e... um Brinquedo!.............................................90 3.4 “Educar é Ensinar a Brincar / Educar é Ensinar a Crescer / Estar Perto e Participar – é Divertido, eu sei, pode ser...” ...................................................................................................96 3.5 Formas e Modelos?.............................................................................................................98 CAMINHOS PERCORRIDOS... ABRINDO NOVAS POSSIBILIDADES ........................101 REFERÊNCIAS .....................................................................................................................106 ANEXOS................................................................................................................................111 ANEXO 1 – Entrevistas com as Professoras..........................................................................112 ANEXO 2 - Cantiga de roda: “Vamos Passear na Floresta”..................................................119 ANEXO 3 - Capa do CD “Xuxa só para Baixinhos 2” ..........................................................120 ANEXO 4 – Revista Cláudia da Editora Abril.......................................................................121 ANEXO 5 – Encarte Promocional de uma Rede de Supermercados .....................................123 ANEXO 6 – Caixa do McLanche Feliz..................................................................................125 ANEXO 7 - Termo de Consentimento ..................................................................................127

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 1- TONUCCI* - "Conhecer-se para estar bem juntos" - .........................................8 Ilustração 2 – TONUCCI - "A creche não é um cabideiro" e Ilustração 3 - "Uma creche para estar juntos" ......................................................................................................................26 Ilustração 4 – TONUCCI - "O horário"....................................................................................32 Ilustração 5 - Foto da pracinha da Escola Colméia ..................................................................37 Ilustração 6 – TONUCCI - "Os perigos de um turno integral pleno na escola".......................38 Ilustração 7 – TONUCCI - "As borboletinhas"........................................................................41 Ilustração 8 – TONUCCI - "O molde" .....................................................................................47 Ilustração 9 - foto do aluno I mostrando o relógio do Shrek...................................................48 Ilustração 10 -TONUCCI -Conjunto de cartuns "Quando os brinquedos brincam sozinhos" .53 Ilustração 11 - Foto das meninas G e St brincando de escravos de jó......................................56 Ilustração 12 - Foto de G (menina) falando com a Professora pelo telefone ...........................64 Ilustração 13 – TONUCCI - "Na escola o corpo não serve para nada"....................................67 Ilustração 14 – TONUCCI - "Os 'verdadeiros' brinquedos".....................................................69 Ilustração 15 - Foto das alunas G, S e AG brincando de venda ..............................................70 Ilustração 16 - Foto da menina AJ em seu simulacro na frente do espelho .............................72 Ilustração 17 - Conjunto de cartuns de Francesco Tonucci sem título.....................................77 Ilustração 18 – TONUCCI - Conjunto de cartuns "Um amigo fiel" ........................................86 Ilustração 19 - Foto do cartaz da promoção e Ilustração 20 - Foto da embalagem do bolinho.................................................................................................................................92 Ilustração 21 - Foto do menino escolhendo o bichinho/brinde que acompanhará o seu lanche........................................................................................................................................92 Ilustração 22 - Foto dos meninos G e I jogando Tazzo/Bafo do Bob Esponja.........................94 Ilustração 23 - Foto da embalagem do sucrilhos e Ilustração 24 - Foto do pião que acompanha o sucrilhos Kellogg's na promoção Tony twister e de dois tazzos do Bob Esponja .....................................................................................................................................95 Ilustração 25 - Figura representativo do item "Brincar" na Campanha "Educar é Tudo" do Jornal Zero Hora da Rede Brasil Sul de Telecomunicações ....................................................96 Ilustração 26 – TONUCCI - "A grande máquina escolar" .....................................................100 Ilustração 27 – TONUCCI - "A pele: limite entre eu e o mundo" e Ilustração 28 - "Se ignorarmos nossos limites, não podemos manter relações com os outros”............................101 * As ilustrações de Fancesco Tonucci, se encontram originalmente no livro “Com olhos de Criança” , Editora Artes Médicas, 1997.

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Ilustração 1- "Conhecer-se para estar bem juntos" - – In: TONUCCI, 1997, p.77

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PARA INÍCIO DE CONVERSA... CONHECENDO OS CAMINHOS

Canteiro de Obras Mediar com pedantismo sobre a produção de objetos – cartazes ilustrados, brinquedos ou livros – que devem servir às crianças é estúpido. Desde o Iluminismo isto constitui uma das mais rançosas especulações dos pedagogos. A sua obsessão pela psicologia impede-os de perceber que a terra está repleta dos mais incomparáveis objetos da atenção e da ação das crianças [...]. É que as crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo o local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se dê de maneira visível. Elas sentem-se irresistivelmente atraídas pelos destroços [...]. Nestes restos que sobram elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e só para elas. [...] Com isso, as crianças formam seu próprio mundo das coisas, mundo pequeno inserido em um maior. Dever-se-ia ter sempre em mente as normas desse pequeno mundo quando se deseja criar premeditadamente para crianças e não se prefere deixar que a própria atividade – com todos os seus requisitos e instrumentos – encontre por si mesma o caminho até elas. (BENJAMIN, 1984, p. 77-78).

Walter Benjamin escreve esse texto entre os anos de 1926 e 1928, evidenciando a

possibilidade imaginativa da criança como ponto primordial do brincar. Critica os pedagogos

e psicólogos que “com seu pedantismo” produzem objetos para as crianças, imprimindo-lhes à

força como, quando e para quê devem brincar.

Maria Isabel Bujes (2000, p. 206), no texto “Criança e brinquedo: feitos um para o

outro?” questiona o que a família e a escola fazem com o brincar – a ação – e com o brinque-

do – o objeto – da criança. Afirma que ao “[...] transformá-los em instrumentos pedagógicos,

elas utilizam para aprisionar, controlar, regular os sujeitos [...] ao eleger o brinquedo [...]

como foco de atenção, tomo-o em seu caráter de objeto cultural, comprometido ativamente na

construção dos processos identificatórios dos sujeitos infantis.”

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O ato de brincar1 é imediatamente associado à criança. Esse fato pode levar a sua

utilização como meio de controle dos corpos infantis pelas grandes corporações2 ou por

instituições como a escola, a família, a mídia, entre outras.

A cultura escolar surge para pedagogizar a infância e o brincar. A instituição escolar,

preocupada em dar conta do currículo, do rol das disciplinas, opera numa lógica

institucionalizada, pedagogizada e rotiniza a criança para que seja adequada à nova instituição

formadora. Ou seja, (re)organiza os tempos e espaços do corpo infantil como meio de

controle, pois segundo Varela (2002, p. 76):

Os controles socialmente induzidos através da regulação do espaço e do tempo contribuem, ao interiorizar-se, para ritualizar e formalizar as condutas, incorporam-se na própria estrutura da personalidade, ao mesmo tempo que orientam uma determinada visão de mundo, já que existe uma estreita interação entre os processos de subjetivação e de objetivação.

A criança passa a ser chamada de aluno e a escola deixa de considerá-la como um

sujeito que observa o mundo pela sua lógica, que constrói, que cria, que reflete sua história e

sua cultura no simples ato de brincar. Neste primeiro momento acredito necessário, para situar

o leitor, descrever um pouco de minha história, por isso a escolha da figura inicial na qual é

descrito um momento de apresentação. Vamos nos conhecer?

Buscar os Caminhos...

Cada um de nós retoma a infância quando se depara com cenas de crianças brincando.

Essa rememoração acontece com todos nós, a sensação é de que olhamos a nós mesmos,

1 Utilizo o termo brincar referindo-me ao ato de brincar, sem distinção, este ato pode se dar pelo jogo, pela brincadeira ou pelo brinquedo. 2 As grandes corporações – grandes empresas como Disney, Mattel, McDonald’s, entre outras, são aquelas que pelo poder exercido imprimem o “com quê” e o “como” se deve brincar, na perspectiva trabalhada por Shirley Steibeng e Joe Kincheloe no livro Cultura Infantil: a construção coorporativa da infância. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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sentimos o gosto doce/amargo deste tempo e nos envolvemos na alegria/tristeza destas

experiências vividas. Remexer no baú das lembranças é esse misto de bom/ruim, as cenas vão

saltando de nossa memória sem controle, algumas mais rápidas, outras lentas, e outras, ainda,

arranhando velhas feridas.

Foi nestes momentos de parada que surgiu a necessidade de trilhar novos caminhos, os

caminhos da pesquisa. No ano de 2004, no mês de julho – quando já estava organizada para

qualificar o projeto de pesquisa que estava “redondinho, bonitinho” – fui questionada por

minha filha de 4 anos para um “trabalho escolar” sobre a nossa família, de onde vieram os

avós, bisavós, as brincadeiras que nos foram ensinadas por eles, enfim, o que fazíamos

quando crianças. Conversei com ela relembrando que brincávamos de cinco-marias, carrinho

de rolimã, pular corda recitando parlendas ou rimas, à tardinha sentávamos de banho

“tomado” nas varandas da casa e com nossas “bonecas de milho”3 enroladas em panos,

arrumávamos a casinha. Ela achou muito engraçado e deu risada. Essa certamente foi a

primeira mexida.

A segunda aconteceu quando mostrava a escola na qual trabalho para uma família e a

mãe me disse: “Como esta escola tem o burburinho das crianças!”. “Como?” Perguntei e ela

afirmou: “Aqui os corredores têm vida, têm o burburinho das crianças.” O burburinho ao

qual se referiu provinha da movimentação das crianças nas salas de aula (risos, conversas...).

Fiquei com aquela voz na cabeça e por várias vezes lembrei – com dor – do ano de

1974. Naquele ano estudava numa escola particular e fui pega em flagrante brincando nos

corredores, certamente atitude imperdoável, gravíssima para um Colégio de Freiras: uma

aluna do Jardim de Infância correndo pelos corredores, “Onde já se viu!”, exclamava a

freira/professora.

3 As poucas bonecas que tínhamos eram como bibelôs, para ver e não para pegar, então arrancávamos as espigas de milho em formação, de preferência as com cabelos.

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Por brincar fora do horário fui punida com o convite, gentilmente feito pela Madre

Superiora, para que no recesso escolar de julho minha mãe transferisse minha matrícula4 para

outro lugar, no qual, segundo ela, me adaptaria melhor. Quebrei o silêncio imaculado ou

quem sabe aqueci, com a alegria que senti, o frio secular dos corredores de uma Notre Dame -

não a catedral francesa. Eu, a própria corcunda, a estrangeira, a correr e resvalar no espelho

em que as escolhidas do Senhor pisavam, impecavelmente esfregado e lustro pelas internas

bolsistas. Ao longo destes 29 anos, este momento, o calor da mão do meu tio Leonel que me

conduziu para a outra escola (pública) e a recepção da nova professora – bem diferente da

antiga –, marcaram, atravessaram e constituíram minhas escolhas de vida, minha formação

como professora e agora como pesquisadora.

Juntei meus cacos, recompus as lembranças escolares e reelaborei o projeto, e no mês

de agosto fui para a sua qualificação com a certeza da temática escolhida. Hoje reafirmo esta

opção de estudar o brincar e sua inscrição na instituição escolar. Instigada pelo debate no

Grupo CRISÁLIDA – Estudos sobre a Infância e Juventude, da Universidade Regional do

Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, procurei novos fios que traçados irão

tecer a rede desta escrita, bem como ajustar o foco das lentes para o corpus da pesquisa.

Acredito ser necessário observar como os diferentes discursos constituem o brincar

das crianças. É evidente que as crianças brincam, não me detenho nesta questão, procuro

centrar o foco e o olhar no brincar como produção cultural do sujeito infantil, buscando ver

como a criança brinca no espaço escolar e não se ela brinca ou não. Tentar definir esta

pesquisa, enquadrando-a em um único modelo, puramente clássica ou etnográfica seria um

grande erro.

4 “Minha matrícula” devido ao fato de sermos quatro irmãos que estudavam nesta Escola, segundo a diretora os outros 3 mais velhos – e já ajustados às normas do Colégio –, poderiam continuar e não deveriam ser punidos.

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Após delimitar o foco, tomei emprestadas algumas ferramentas5 da etnografia para

auxiliarem nas observações e registros da pesquisa realizada em uma escola pública de

Educação Infantil do município de Ijuí/RS, tentando assim marcar o encontro com os sujeitos

da pesquisa e o encontro comigo mesma. Talvez possa descrevê-la como um estudo que tem

como “[...] subsídios para a sua escrita materiais empíricos de variadas origens, isto é, uma

bricolage, um mosaico formado de elementos empíricos como textos, escritos, canções,

entrevistas, fotos, relatos [...].” (BARBOSA, 2000, p. 32).

Será respeitada a lógica da bricolage6 ou a do mosaico de Walter Benjamin, na qual

cada pedaço tem seu valor e significado no todo da obra, e a tessitura/colagem destes cacos

será feita pela perspectiva dos Estudos Culturais. Acredito que não será necessária a

identificação dos sujeitos envolvidos nesta pesquisa, bem como da escola, espaço no qual

acontecem as observações, pois, como já afirmei anteriormente, meu objetivo é olhar o

brincar – ação da criança. Para nomear os registros das crianças, utilizarei a letra inicial do

nome e entre parênteses, registrando se masculino ou feminino; para as professoras utilizarei

os números de 1 a 5, pois não discuti com as mesmas as observações realizadas, sendo que

destas algumas mostram situações problemáticas – que chamarei de Diário de Observações; e

para a escola escolhi um nome fictício. Acredito ser necessária a preservação dos nomes e das

denominações verdadeiras, pois, se mal interpretadas as minhas observações na escola – esse

olhar passageiro de alguém de fora que acompanha parcialmente por um tempo o

desenvolvimento do trabalho –, talvez possam vir a causar constrangimento ou desconforto,

assim como a não correção das falas, então elas estarão transcritas no texto da mesma forma

que foram pronunciadas pelos sujeitos.

5 A esse “empréstimo de ferramentas” denominarei de viés etnográfico. 6 O termo bricolage é designação para um conjunto de trabalhos manuais.

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Acompanhei crianças de três a cinco anos, nas turmas de Jardim 1 e Jardim 2. Dos 42

sujeitos observados, somente de um não recebi permissão para utilizar suas falas e imagens.

Procuro entender a cultura destes sujeitos e não descrever seus comportamentos e atitudes,

para isso foi imprescindível minha inserção no grupo e acompanhar as ações cotidianas na

escola.

O viés etnográfico proporcionou o estar ali com eles e não estar olhando de fora do

grupo sobre eles. No exercício da escrita, tão doloroso, percebi que a partir da experiência

deste lugar de pesquisadora na escola, poderia, em casa, tentar problematizar as questões que

eram de meu interesse e escrevê-las com o auxílio do corpus teórico. Esse exercício de estar

lá e escrever aqui foi descrito muito bem pelo antropólogo americano Clifford Geertz (1989,

p. 58), quando relata que

[...] Estar lá é uma experiência de cartão postal, que afinal requer algo mais do que um caderno de anotações, a disposição de tolerar um certo grau de solidão e de desconforto físico, e a espécie de paciência capaz de suportar uma busca interminável de invisíveis agulhas em infinitos palheiros. E o estar aqui douto entre os doutos, faz com que o antropólogo seja lido [...].

As narrativas dos alunos, alunas e professoras são relatos de suas experiências de vida,

das quais eu não havia participado. Logo que iniciei as observações na Escola Municipal

Infantil Colméia,7 ouvia colocações das professoras, cuja maioria eram reclamações sobre as

condições de trabalho e sobre a falta de valorização, lembrava-me então do texto

benjaminiano “Omeletes de Amoras” (BENJAMIN, 1986).

Esse texto conta a estória de um Rei que desafia seu cozinheiro a preparar uma

omelete de amoras que havia saboreado há 50 anos em plena guerra. O Rei conta que com a

batalha fervorosa que acontecia, fugiu dos inimigos, escondendo-se em uma floresta muito

densa até que avistou um chalé e, ao se aproximar, foi recebido por uma senhora que pouco

7 A escola será assim denominada para que possa ser preservada.

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tinha a oferecer além de um abrigo e uma omelete de amoras para amenizar o frio e a fome.

Após esse relato, o rei deu ao cozinheiro duas opções: se ele preparasse o tão sonhado prato

teria a mão da filha em casamento ou, então, a morte pelo carrasco, caso não satisfizesse sua

vontade. O cozinheiro respondeu:

Senhor, chamai imediatamente o carrasco. Pois mesmo conhecendo o segredo da omelete de amoras e todos os seus ingredientes, do simples agrião ao nobre tomilho; mesmo sabendo qual o verso se deve dizer ao mexer a panela, [...] mesmo assim, ó majestade, terei de morrer. Pois não obstante minha omelete não agradará ao Vosso paladar. Pois como poderia eu temperá-la com tudo aquilo que Vós saboreaste naquela ocasião: o perigo da batalha e a cautela do perseguido, o calor do fogo e o aconchego do repouso, o presente desconhecido e o negro futuro. [...] O rei, porém silenciou por um instante e, ao que consta, pouco depois desobrigou-o de seus serviços, regiamente carregado de presentes. (BENJAMIN, 1986, p. 186).

Ao registrar aqui os momentos que aconteceram desde a minha entrada na escola, a

inserção no grupo, as observações, entre outros, percebo que passei por alguns desses papéis.

Nas observações, como o rei que busca (re)viver o gosto da rememoração, minha expectativa

em voltar para a escola, esperando ver ali o que já havia visto como professora. Como o

cozinheiro que, por mais que saiba da sua experiência, não pode transformá-la em receitas

para os outros – peço desculpas para o grupo de professoras pelas respostas que não dei.

Como a senhora que gentilmente acolhe o rei, uma simples expectadora.

Na pesquisa – campo de batalhas –, com o receio do envolvimento por conhecer a

escola e as professoras, assumi o lugar de pesquisadora, mantive um certo estranhamento

durante as observações e conversas no/com o grupo. Processo esse um tanto doloroso mas

necessário para que pudesse refletir sobre as minhas percepções8 acerca da escola e dos

sujeitos, ou seja decodificando-os a partir das minhas habilidades perceptivas.

8 A percepção é aqui entendida como a organização, pela mente humana, das sensações registradas pelos cinco órgãos sensoriais – os cinco sentidos. Ver mais em HURTADO, Johann G. G. Melcherts. Dicionário de Psicomotricidade. Porto Alegre: Prodil, 1991.

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Quem de nós já colocou em prática uma receita e ao prová-la percebeu que ficou

diferente da já provada? Ou quem possuiu praticamente a mesma receita, pois só mudam um

ou dois ingredientes? As brincadeiras e os brinquedos – bem como outros – passam pelo

mesmo processo. Algumas/alguns atravessam gerações com mínimas mudanças, outras/outros

são marcas de determinado período ou década e, que de uma hora para outra, são reeditados

com uma nova roupagem.

A história da criança e a do brincar caminham juntas. Para percebê-las, não baseados

no que sabemos, faz-se necessário ouvir o que as crianças têm a nos dizer sobre infância,

brincar e ser criança, e entendê-las como sujeitos da cultura contemporânea. Jucirema

Quinteiro (2002, p. 21), em seu texto “Infância e Educação no Brasil – Um campo de estudos

em construção”, diz da importância não só de ouvir as narrativas, mas sim de considerá-las:

“[...] pouco se conhece sobre as culturas infantis porque pouco se ouve e pouco se pergunta às

crianças e, ainda assim, quando isto acontece, a ‘fala’ apresenta-se solta no texto, intacta, à

margem das interpretações e análises dos pesquisadores.”

Para a recolha das falas dos alunos, detive-me a escutar e registrá-las, só dialogava

quando solicitada pelas crianças, naquele momento precisava muito mais ouvir do que falar,

utilizarei a palavra Zum para diferenciá-las de outros registros no Diário de Observações. Para

as professoras fiz algumas perguntas referentes à sua infância e ao brincar,9 elaborei-as a

partir das conversas que tivemos em diferentes momentos na escola. Das profissionais

entrevistadas somente a Professora 5 não entregou por escrito as respostas, portanto o registro

da mesma não aparecerá nos anexos, sendo eles verbais estão registrados como Diário de

conversas. Esses momentos de conversa com as professoras e a direção aparecerão ao longo

da escrita com a denominação de Diário de Conversas. Registrei cenas de brincadeiras através

de fotos que apresentarei no desenvolvimento desta escrita. 9 As perguntas norteadoras realizadas nas entrevistas estão no Anexo 1.

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Como professora da rede pública municipal de Ijuí/RS há quinze anos, sendo que

destes, quatro anos na Equipe Pedagógica da Secretaria Municipal de Educação e Cultura,10

tive boa aceitação ao ser acolhida para pesquisar na Escola. Já conhecia a maioria das

profissionais que ali atuam, pois como professora de Educação Física, minha atuação com as

crianças da Educação Infantil foi uma constante e me possibilitou acompanhar as reuniões de

planejamento e discussão de proposta pedagógica neste nível. A escolha desta escola foi

intencional, é uma das mais carentes financeiramente e sua área construída não é adequada

para o funcionamento com crianças pequenas.

Fui me inscrevendo no espaço cultural do brincar das crianças. No início era vista

como uma visita, a julgar pelas perguntas: AP (menina) “Tia, você veio visitá?” ou como G

(menino) “Você é amiga da profe? Vai falar com ela?”11 Com o passar das primeira semanas

fui sendo incorporada ao grupo das crianças e da escola, como foi comentado pela Professora

1 e registrado no Diário de Conversas: “Elas se acostumam logo com pessoas estranhas.”

Sempre que podia, estava na “Colméia” como uma abelha operária, só que fazia o trabalho ao

contrário, não trazia o néctar para a colméia, eu vinha ali buscá-lo para o “pote da pesquisa”.

Precisava de um desafio, falar da infância “hiper-realizada”12 com a qual convivo no

outro local de trabalho seria fácil, mas falar da infância “des-realizada” sem estar ali, era uma

tarefa mais complexa, escrever sobre esta criança fictícia não me bastava, necessitava falar na

criança a partir da realidade em que vive.

Mariano Narodowski (1998, p. 172) afirma que a concepção moderna de criança já

está superada ou em decadência e apresenta como ponto de fuga dois pólos – “um é o pólo da

10 Acompanhava o trabalho das escolas que integram a rede municipal, em visitas e encontros nas instituições, ou em reuniões que aconteciam quinzenalmente na SMEC com os representantes das escolas. 11 Conservarei a fala das crianças sem correções, respeitando-as como sujeitos desta pesquisa. 12 Mariano Narodowski afirma que a infância pós-moderna possui dois pólos ou dois extremos: a Hiper-realização e a Des-realização. Ver mais em NARODOWSKI, Mariano. Adeus à Infância (e à escola que a educava). In: SILVA, Luiz Heron da. A escola cidadã no contexto da globalização. Porto Alegre: Vozes, 1998.

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infância hiper-realizada, da infância da realidade virtual. [...] outro ponto de fuga é constituído

pelo pólo que está conformado pela infância des-realizada [...]. É a infância não da realidade

virtual, mas da realidade real.” É no espaço entre um pólo e outro que estão a maioria das

crianças com as quais convivemos nas escolas da rede pública; dois pólos distintos que se

atraem, por serem opostos, o virtual por ser “harmônico e equilibrado” versus o real “violento

e marginal”.

Vivemos em uma sociedade preocupada com o agora, com o prazer imediato, então é

impossível não sermos atropelados pela enxurrada de produtos para a satisfação infantil,

dentre os quais o investimento maior é nos brinquedos, objetos do brincar da criança. Não

posso – e não devo –, negar a existência do mercado brinquedista, da indústria midiática13

com seus ícones,14 da instituição escolar, entre outros, e seus discursos constituindo o jeito de

brincar das crianças, as crianças do século XXI.

Shirley Steinberg e Joe Kincheloe (2001, p. 19) questionam o poder das grandes

corporações que usam a máscara do entretenimento infantil e produzem os discursos sobre a

criança:

[...] O entretenimento das crianças, como em outras esferas sociais, é um espaço público disputado, onde diferentes interesses sociais, econômicos e políticos competem pelo controle. [...] O poder, no sentido como usamos o termo, envolve todo um conjunto de operações que trabalha para manter o status quo e conservá-lo funcionando com o menor atrito (conflito social) possível. [...] por esta razão, é benéfico [para todos eles] protegerem-se de pestes como nós.

Assim, a indústria brinquedista, bem como a alimentícia e a de vestuário encontram no

consumo infantil outro filão para altos lucros. Como já afirmei, vivemos em uma sociedade na

qual o prazer imediato impera, então, dentre muitos exemplos temos os lanches rápidos

13 Giroux (2001, p. 89) fala da televisão como professora “[...] o papel que desempenham como novas ‘máquinas de ensino’, como produtores de cultura.” A indústria midiática produz estes desenhos animados ou seus ícones como ‘local’ de aprendizagens, e a instituição escolar os reconhece como tal. 14 Conforme o Mini-dicionário Aurélio (1993), é um símbolo gráfico que representa um objeto pelos seus traços mais característicos. Ícones são os personagens dos desenhos, filmes, astros e estrelas da TV, entre outras.

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acompanhados por brinquedos – que serão manuseados muito antes de ingerir o alimento –,

ou calçados – tênis, sandálias, sapatos – que são acompanhados por bonecas, chaveiros ou

bichos de pelúcia.

Os famosos jogos pedagógicos também estão neste rol, pois são adequados para

atender a demanda do mercado consumidor. Nas prateleiras de lojas de brinquedos e de

supermercados, encontramos jogos de memória nos quais o que interessa é a figura do ícone

que vem estampada nas peças; jogos de montar que precisam vir com a marca da Barbie ou a

foto desta para ter valor em sua verdadeira função e, é claro, vir na palheta de tons de rosa,

afinal “menina que é menina usa rosa!”. São esses discursos que estão entrando em escolas e

lares, através da televisão, das vitrines, das revistas, dos jornais... por todo o País, modelos a

serem seguidos para a conquista de uma felicidade volátil.

Organizei esta escrita para que os fios da pesquisa se entrecruzassem com as fontes

teóricas que utilizei, elas não estarão colocadas de forma estanque, pretendo é esticar os fios

para que se entrelacem na trama da escrita. O viés etnográfico permite-me esse exercício de

observar/estar neste lugar e conviver com diferentes pessoas, diluindo-me entre elas, para ter

experiências de vida que possibilitem entender, compreender e aprender sua cultura.

As Escolhas...

Estamos a todo o momento encontrando com crianças embebidas/encharcadas pela

cultura contemporânea, permeando-as com suas imagens e significados. Busco com minha

pesquisa tornar aparentes essas crianças, vê-las além dos quatro dedos.15 Ao observá-las

percebo as marcas que os discursos – da escola, da mídia, entre outros – deixam quando

15 Segundo o Dr. Manfredo Carlos Wachs, “é necessário enxergar além dos dedos quando vamos pesquisar, ao olhar fixo para 4 dedos a um palmo do rosto, enxergamos só os 4 dedos de nossa mão, mas ao olharmos tendo como foco o que tem atrás dos dedos, enxergamos 8 dedos e todo o resto que ali se apresenta.”

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atravessam o corpo e a alma desses sujeitos, ultrapassam as barreiras do que vemos e vão até

onde sentimos.

Preocupo-me em não simplificar o papel desta pesquisa com posicionamentos a favor

ou contra, mas sim fazer o exercício de olhar a complexidade da realidade pesquisada,

explicando-a a partir da perspectiva traçada. Não pretendo criar novas verdades sobre como

brincam as crianças, estaria sendo incoerente ao fazê-lo, mas sim realizar outras leituras do

seu brincar, quero entender um pouco a lógica e os efeitos desses atravessamentos das grandes

corporações no brincar que formam as crianças, dando-lhes a forma que desejam.

Como referência teórica, busco auxílio nos Estudos Culturais Contemporâneos, em

Walter Benjamin e em Florestan Fernandes, entre outros, para refletir em algumas das muitas

possibilidades deste tema, para mapear a condição do brincar na escola. O ponto comum que

identifico nesses autores é a centralidade na cultura, o que para esta pesquisa neste momento

interessa.

Os Estudos Culturais são “um lugar de encontro, um cruzamento entre diferentes

pessoas e disciplinas”, assim definido na Iª Conferência Crossroads in Cultural Studies, em

1996, ou ainda, “[...] não são uma via de mão única entre o centro e as periferias. Em vez

disso, são um cruzamento, um lugar de encontro entre diferentes grupos [...]” como relatam

Costa, Silveira e Sommer (2003, p. 52). Nesta perspectiva de “caminhos entrecruzados”, serão

considerados os pressupostos teóricos que permearão as análises, os procedimentos e as

considerações necessárias a essa pesquisa.

No primeiro Capítulo apresento a Escola Colméia descrevendo seus espaços e tempos,

compartilho nessa escrita com as idéias de Norbert Elias (1998), Maria Carmem Barbosa

(2000), Júlia Varela (2002), Helena Copetti Callai e Paulo Afonso Zarth (1999), entre outros.

Ao registrar as falas das crianças e das professoras faço escolhas interessadas. Trago os

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registros dos Diários de Observações e de conversas informais, nos quais descrevi situações

julgadas interessantes para apresentar ao leitor. Também valho-me da leitura de alguns

documentos da Escola, em especial a Proposta Político-Pedagógica e o Plano de Estudos,

elaborados pelas professoras.

A pesquisa de campo permite assinalar como nessa Escola o espaço e o tempo são

determinantes das possibilidades do brincar das crianças, assim como a falta de material e de

brinquedos. Tal constatação possibilitará problematizar como estes se tornam limitadores da

ação pedagógica na medida em que dificultam a ação dos sujeitos – decidem a rotina, a

distribuição das crianças conforme a arquitetura escolar. Escrever sobre o espaço e o tempo

envolve ir além do relógio e da estrutura física, exige compreender a Escola Colméia, sua

topografia, traçar seu mapa para saber como se perder e se encontrar nela. Mostrar como os

sujeitos se relacionam com o meio nos seus espaços e tempos.

No Capítulo 2 descrevo o brincar na Colméia, como e quando ele acontece no

ambiente escolar. Para essa escrita busco subsídios em Florestan Fernandes, especialmente em

seu estudo etnográfico sobre as ‘Trocinhas do Bom Retiro’16 da cidade de São Paulo, pois

contribuiu muito para marcar o lugar da criança como produto e produtora da cultura. O

pesquisador italiano Francesco Tonucci17 utiliza, além da forma da escrita, os desenhos para

denunciar os discursos que marcam formas de ver o sujeito infantil nas escolas e na

sociedade. Em Walter Benjamin busco o olhar que considera a criança, não somente o

amanhã – o vir-a-ser – mas o presente, o hoje/agora, participativa da cultura do seu tempo

como sujeito desta cultura.

16 Essa era a denominação para os grupos infantis, que se reuniam após a escola, na rua, as trocinhas eram formadas pelas crianças de uma mesma vizinhança/bairro, que poderiam ter mais de um grupo (FERNANDES, Florestan. Folclore e mudança social na cidade de São Paulo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004). 17 Pesquisador do Instituto das Ciências e Tecnologias da Cognição do Conselho Nacional das Pesquisas da Itália. Os cartuns de Francesco Tonucci são publicados originalmente no livro “Com Olhos de Criança”, da Editora Artes Médicas, 1997 (conforme bibliografia).

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Ao considerar os objetos da criança utilizados por Benjamin – livros, brinquedos,

jogos – na narrativa da sua infância e as observações das brincadeiras nos grupos infantis – as

trocinhas – realizadas por Fernandes, e com o auxílio de algumas ferramentas da pesquisa

etnográfica, busco perceber as concepções de criança e o lugar da infância através de seus

escritos, evidenciando suas produções como produção cultural ao olhar a criança e não

somente sobre a criança.

O viés etnográfico é uma possibilidade metodológica para a minha inserção no local e

no grupo a ser pesquisado. Essa diluição como pesquisadora permite o (re)conhecimento dos

sujeitos e suas ações dentro da escola para uma adequada descrição e interpretação das

culturas infantis.

Partindo da concepção dos Estudos Culturais definidos por Costa, Silveira e Sommer

(2003, p. 54) “[...] como um partilhamento de entendimentos, de conceitos-chave e ‘formas de

olhar’ [...]”, considero possível a ligação destes com a Teoria Crítica, especialmente na

possibilidade de um atravessamento de Walter Benjamin e Florestan Fernandes com os

Estudos Culturais.

Tal aproximação pode ser possível uma vez que Benjamin era um simpatizante da

Teoria Crítica – e não um adepto ferrenho dela – e marca a importância de um lugar para a

criança em alguns de seus escritos; e Fernandes, um dos primeiros a realizar pesquisa

etnográfica no Brasil, tem como objeto de pesquisa as brincadeiras infantis e percebe a

criança inserida em um grupo social marcado pela cultura infantil. Os Estudos Culturais, por

sua vez, possibilitam a “fronteira aberta”, pois não existem barreiras para a diversidade de

entrecruzamentos que surgem atualmente. Para pensar uma aproximação dos Estudos

Culturais com a Teoria Crítica, é produtiva a afirmação que pesquisadores contemporâneos

fazem:

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Se pensarmos o quanto a educação, a partir das contribuições da teoria crítica, vem se configurando como área de militância, de atuação política, vê-se quase como inevitável esta aproximação com os EC, já que estes também, em sua constituição e desenvolvimentos, têm uma face histórica de imbricações com a atividade política e crítica. (COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003, p. 54).

Douglas Kellner (2001, p. 45-46) enfatiza que, mesmo considerando as deficiências no

programa original da Teoria Crítica, os frankfurtianos foram os primeiros a enxergar a

importância e a influência da indústria cultural na reprodução das sociedades contemporâneas,

contribuindo para com os Estudos Culturais:

No entanto, é precisamente a focagem crítica da cultura da mídia, a partir das perspectivas de mercadorização, reificação, ideologia e dominação, que constitui um modelo útil para corrigir as abordagens mais populistas e acríticas à cultura da mídia, que tendem a subjugar os pontos de vista críticos. Embora parcial e unilateral, a abordagem da Escola de Frankfurt fornece instrumental para criticar as formas ideológicas e aviltadas da cultura da mídia e indica modos como ela reforça as ideologias que legitimam as formas de opressão. [...] a crítica à ideologia é um componente fundamental dos estudos culturais, e a Escola de Frankfurt contribuiu de maneira inestimável para inaugurar críticas sistemáticas e consistentes da ideologia na indústria cultural.

Acredito que o caráter acolhedor dos Estudos Culturais fará a tessitura entre o olhar de

Walter Benjamin na criança (sujeito individual), o olhar de Florestan Fernandes na criança

inserida em seu grupo social e o brincar das crianças da Escola Colméia que foi observado,

registrado e interpretado à luz de algumas ferramentas da etnografia.

No Capítulo 3 darei ênfase a alguns dos discursos que circulam – na escola e fora dela

–, e constituem diferentes infâncias, crianças e seu brincar. Além das contribuições a partir

das observações na Escola Colméia, optei por considerar os discursos das professoras, dos

alunos, da mídia, dos pais, da publicidade, somente aqueles que vão marcando e “formando”

as crianças. No caso da mídia, é emblemática a campanha publicitária veiculada pelo Jornal

Zero Hora “Educar é tudo”,18 da qual pretendo trazer uma breve análise.

18 Para saber mais a respeito, ver site <http://www.clicrbs.com.br/educaretudo.htm>.

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Na atualidade, a cultura da mídia perpassa a vida da criança, levando-a muitas vezes a

adotar formas de brincar, de se vestir, de se comportar. O divertimento infantil já é

considerado um espaço público, no qual diferentes interesses – sociais, políticos e econômicos

– operam e competem pelo seu controle. A indústria brinquedista encontra aí seu filão, pois

produz brinquedos com representações fiéis de personagens que povoam histórias, filmes e

programas infantis, como: Xuxa, Homem Aranha, Batman, Emília, Barbie, Suzi e muitos

outros. Assim são reeditados jogos já tradicionais para a criança – quebra-cabeça, memória,

dominó... – com figuras que remetem a esses personagens, que saem das prateleiras das lojas

de brinquedos, entrando no cotidiano das crianças, ultrapassam a esfera familiar e ingressam

na instituição escolar.

A Pedagogia Cultural19 engloba a educação em uma “[...] variedade de áreas sociais,

incluindo, mas não limitando à escolar” (STEINBERG; KINCHELOE, 2001, p. 14) e

considera as diferentes áreas pedagógicas nas quais ocorre a produção corporativa da cultura

infantil. As áreas pedagógicas, segundo esses autores, são os lugares onde “o poder é

organizado e difundido como bibliotecas, TV, cinemas, jornais, revistas, brinquedos,

propagandas, videogames, livros, esportes, etc.”

Para além das prateleiras escolares e do simples ato de jogar, a cultura midiática traz

consigo essa pedagogia cultural que perpassa a escola, colocando em evidência o conflito

existente entre a cultura escolar, a cultura familiar e a cultura da mídia; de um lado,

professores que tratam as crianças como se estivessem alheias ao mundo adulto; de outro, a

maioria dos pais preocupados com situações práticas em relação à educação dos filhos e, bem

no meio de tudo isso, a criança ligada à programação da televisão, na qual se ensina até a

contar.

19 Os Estudos Culturais trazem a concepção de uma pedagogia que ultrapassa os muros da escola.

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Retomo a epígrafe “Canteiro de Obras” para registrar que pretendo com essa escrita

iniciar a caminhada. Com o objetivo de trazer à tona o sujeito infantil e o seu brincar, procurei

esticar alguns fios dessa trama, pois esgotá-la neste momento seria o final da jornada. Com

isso minha escrita de forma alguma tem o intuito de ditar novas verdades, ela é restrita às

minhas condições de produção.

Estão explicitados nestas páginas os registros, observações e minha diluição como

aprendiz de pesquisadora. Sendo assim, apresento como possibilidade de reflexão a poesia de

Gianni Rodari (In: TONUCCI, 1997, p. 13), esperando que outras orelhas verdes apareçam

pelos caminhos da pesquisa:

O Homem de Orelhas Verdes Um dia num campo de ovelhas Vi um homem de verdes orelhas Ele era bem velho, bastante idade tinha Só sua orelha ficara verdinha Sentei-me então ao seu lado A fim de ver melhor, com cuidado Senhor, desculpe minha ousadia, mas na sua idade De uma orelha tão verde qual é a utilidade? Ele me disse, já sou velho, mas veja que coisa linda De um menininho tenho a orelha ainda É uma orelha-criança que me ajuda a compreender O que os grandes não querem mais entender Ouço a voz de pedras e passarinhos Nuvens passando, cascatas e riachinhos Das conversas de crianças, obscuras ao adulto Compreendo sem dificuldade o sentido oculto Foi o que o homem de verdes orelhas Me disse no campo de ovelhas. (Gianni Rodari)

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Ilustração 2 - "A creche não é um cabideiro" Ilustração 3 - "Uma creche para estar juntos"

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CAPÍTULO 1 – ESCOLA É UM LUGAR PARA ESTAR JUNTO

As imagens nos auxiliam a perceber outras formas de ver e realizar as leituras de

mundo, deste mundo que é da criança. Os desenhos de Tonucci (1997, p. 38-39) – “A Creche

não é um cabideiro” (Ilustração 2) e “Uma creche para estar juntos” (Ilustração 3) –, como

epígrafes deste capítulo, inspiram seu título bem como apresentam a Escola Municipal Infantil

Colméia, seus tempos e espaços regendo os corpos infantis. Como seria possível andar no

escuro sem o prévio reconhecimento do terreno?

A instituição escolar possui um lugar e um espaço. A diferença entre um e outro está

em: o espaço é o que se imagina ou se projeta, o lugar é aquele que construímos a partir do

fluir da vida (FRAGO; ESCOLANO, 1998). Acredito que Bachelard (1998, p. 62), em seu

livro “A poética do espaço” contribua para que possamos entender um pouco sobre o espaço

e o lugar:

Acreditamos, às vezes, que nos conhecemos no tempo, quando na realidade só se conhece uma série de fixações em espaços da estabilidade do ser, de um ser que não quer acabar; que no próprio passado vai em busca do tempo perdido, que quer ‘suspender’ o vôo do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço conserva tempo comprimido. O espaço serve para isso [...]. A memória não registra a duração concreta [...]. É pelo espaço, é no espaço que encontramos esses belos fósseis de duração concretados por longos tempos [...] localizar uma recordação no tempo é só uma preocupação do biógrafo e corresponde unicamente a uma espécie de história externa, uma história para uso externo, para comunicar aos outros [...]. Para o conhecimento da intimidade é mais premente a localização de nossa intimidade nos espaços do que a determinação das datas.

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1.1 O Espaço e o Tempo na/da Escola – Quem é a Colméia...

A Escola Municipal Infantil Colméia é uma das nove escolas de Educação Infantil que

integram as 24 escolas da Rede Municipal de Educação de Ijuí/RS. São atendidas20 86

crianças com uma lista de espera de 43 crianças. As idades das crianças variam entre quatro

meses e cinco anos, sendo que das 86, somente três retornam para casa após o almoço e 83

ficam em turno integral na escola. As atividades iniciam no turno da manhã a partir das 7

horas e 15 minutos e terminam a partir das 16 horas, estendendo-se até às 18 horas e 30

minutos.

As professoras têm formação em nível de Ensino Médio – Magistério – apenas a

professora do Jardim 1 possui formação superior – Licenciatura Plena em Matemática – e está

realizando especialização em Estatística. Na sua fala demonstra que seu tempo é passageiro

na escola, considerando o auto-investimento que está realizando: “não pretendo trabalhar na

educação infantil, fiz concurso para o Estado e aguardo ser chamada para a área.”

(Professora 1).

Nas conversas com a direção da Escola pude perceber que o terreno e a área já

construída foram doados no ano de 1978 para a Secretaria Ijuiense de Amparo ao Menor

(SIAM) e esta, em 1992, os doou para a Prefeitura Municipal de Ijuí. A Secretaria Municipal

de Ação Comunitária teria de prover recursos financeiros para o funcionamento das creches.21

No ano de 1999 é transferida a responsabilidade pela educação de crianças de 0 a 6 anos para

a Secretaria Municipal de Educação e Cultura. A partir desse ano recebe nova denominação –

Escola Municipal Infantil Colméia – e com ela a construção de uma nova identidade

20 Atender é uma palavra muito utilizada nesta escola, “as crianças são atendidas”. 21 Eram denominadas de Creches as instituições que atendiam crianças menores de 6 anos de idade, que após o tempo de adequação da Lei 9.394/96 – LDB, passa a ser chamada de Escola de Educação Infantil.

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pedagógica. Eloísa A. Candal Rocha (2001, p. 30) mostra que existe uma diferença entre

Creche e Escola:

Enquanto a escola se coloca como o espaço privilegiado para o domínio dos conhecimentos básicos, as instituições de educação infantil se põem sobretudo com fins de complementaridade à educação da família. Portanto, enquanto a escola tem como sujeito o aluno, e como o objeto fundamental o ensino nas diferentes áreas, através da aula; a creche e a pré-escola têm como objeto as relações educativas travadas em um espaço de convívio coletivo que tem como sujeito a criança de 0 a 6 anos de idade (ou até o momento em que entram na escola).

Hoje, na Escola Colméia, as ações cotidianas são divididas entre o cuidado e a

educação. O assistencialismo está muito presente, centrado principalmente na carência

financeira dos alunos e alunas, tendo a escola que prover sua subsistência. A parte educativa,

como se referem as professoras, está centrada nas atividades de sala de aula e as brincadeiras

estão na parte de recreação e ocorrem quando sobra tempo.

A Escola está localizada na periferia da cidade, em um bairro de baixa renda, os pais

dos alunos trabalham em atividades diversificadas – pedreiros, pintores, domésticas,

comerciários – sendo que destes, 30% estão em situação de desemprego. No bairro existem

outras três escolas: duas de Educação Básica e uma de Ensino Fundamental completo, que

recebem a demanda das crianças acima de seis anos, sendo a maioria egressa da Colméia.

A diretora afirma que em anos anteriores, muitos alunos vinham através do Conselho

Tutelar, e a escola não tinha como negar a vaga, “eles traziam as crianças e assim foram

sendo ‘empilhados’ aqui na escola” (Diretora), levando a um número excessivo de

atendimentos. Nessa concepção do atendimento, deve-se olhar a criança para que ela não se

machuque, alimentá-la e trocá-la sempre que necessário. Nesse sentido, Tonucci (1997, p. 38)

apresenta seu cartum “A Creche não é um cabideiro” (Ilustração 2), que acredito ser muito

ilustrativo retomá-lo aqui.

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Diário de conversas – 15/08/2005: Conversando sobre a escola e alguns procedimentos cotidianos, a diretora relata que o bairro precisa desta Escola, pois a lista de espera tem 43 crianças aguardando vaga, destas 50% necessitam com urgência. Afirma que “Recebemos muitos alunos até o início deste ano, via o Conselho Tutelar, não tínhamos mais desculpas para dar para as famílias da lista de espera, pois outros passavam na frente por ordem da promotoria.”

Diante da fala da Diretora, é a imagem de “empilhamento” ou depósito que surge

para muitos de nós quando entramos na escola infantil pública. Alguns assumem sua

indignação e denunciam esse desrespeito ao sujeito infantil, outros calam e fingem que não

vêem. Está implícita, no comentário, a falta de vontade ou falta de condições do poder público

em investir recursos para suprir parcialmente a demanda de pedidos de ingresso nas escolas

infantis de Ijuí ou de outros municípios.

Ao trazer a fala da diretora, não estou, de forma alguma, questionando a posição dos

conselheiros tutelares frente às condições de vida dos meninos e meninas de nossa cidade, sei

da importância de seu trabalho. Os profissionais que atuam como conselheiros estão

enredados pelo sistema, assim como as profissionais da Escola Colméia e de outras

instituições escolares que, com as mãos amarradas, precisam resolver as demandas da

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carência de atendimento e dignidade desses sujeitos infantis. Percebo a dificuldade do poder

público em buscar verbas para sanar essas dificuldades, que não consegue oportunizar

condições nem para Escola nem para o Conselho Tutelar.

Essa professora que agora ocupa o lugar de direção da Escola, fala mais sobre essa

condição, que ela mesma define de empilhamento, a qual a instituição está submetida por

força da lei. O discurso jurídico – ou legal – define, classifica, ordena quem entrará na escola

pública. Segundo Michel Foucault (2003, p. 121),22 a escola é uma instituição de seqüestro,

vinculada a um sistema escolar que “[...] é também inteiramente baseado em uma espécie de

poder judiciário. A todo o momento se pune, se recompensa, se avalia, se classifica, se diz

quem é melhor, quem é pior.”

Diário de Conversas – 15/08/2005: Na continuidade de seu discurso, a Diretora relata que as direções das escolas de Educação Infantil do Município solicitaram uma reunião com o Conselho Tutelar, na qual foi explicada a situação precária para o atendimento em algumas destas escolas: Falamos com o Conselho Tutelar, que veio fazer uma visita nas escolas e conhecer a realidade, comprovaram que não era má vontade nossa em receber as crianças, a demanda por creches no município é muito maior que o número de escolas – vagas oferecidas. Pedimos auxílio para o Conselho Municipal de Educação e conseguimos uma reunião com o Conselho Tutelar, Conselho de Educação e Promotoria Pública, falamos que não queríamos, não podíamos mais empilhar alunos nas escolas.

Após essa reunião, foi organizado, pela Secretaria Municipal de Educação, um banco de vagas para as escolas infantis, “agora o procedimento do Conselho Tutelar é primeiro entrar em contato com o banco de vagas para depois solicitar via promotoria pública.”

O pouco espaço interno e as condições do prédio não permitem que os alunos

brinquem nas salas de aula. As condições do espaço mediam a utilização do tempo, esse

tempo é determinado e fracionado pela rotina. São poucos os materiais e brinquedos

disponíveis. Explicitarei melhor nas seções seguintes deste capítulo, devido à importância

destes na significação do sujeito infantil, conforme afirma Norbert Elias (1998, p. 119):

22 Ver mais em FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2003.

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A auto-regulação “temporal” com que deparamos em quase todas as sociedades avançadas não é um dado biológico, ligado à natureza humana, nem tampouco um dado metafísico, ligado a algum a priori imaginário, porém um dado social, um aspecto da evolução social da estrutura de personalidade, que, como tal, torna-se parte integrante da individualidade23 de cada um.

Termino esta seção (temporariamente) com a maestria de Tonucci (1997, p. 147) com

o cartun “O horário” que retrata as amarras do horário escolar fragmentado em porções de

tempo, transformando a possibilidade de conhecer em simples pílulas a serem engolidas,

Ilustração 4 - "O horário"

1.2 A Ortopedia Arquitetônica... 24

A arquitetura escolar desempenha um papel simbólico para o sujeito, tanto no aspecto

de vida social, quanto no de vida individual, pois “[...] com efeito, a arquitetura escolar é um

23 Grifei esta palavra para destacá-la. 24 A definição de “Ortopedia” da área médica (conforme Ferreira, 1993) “é de manutenção e/ou restauração anatômica e funcional do esqueleto humano”. Tomo emprestada essa definição e faço a adequação do termo à arquitetura, então a “Ortopedia arquitetônica” é a definição para a estrutura construída que foi restaurada ou adaptada para que tivesse a funcionalidade de escola e não mais de residência.

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elemento cultural e pedagógico do currículo escolar [...].” (TAVARES, 2003, p. 49). O espaço

físico total da Escola compreende duas realidades completamente opostas, que determinam ou

influenciam o dia-a-dia das crianças. Uma realidade é a do espaço construído – precário e sem

manutenção –; a outra é a do espaço externo – o pátio – excelente em termos de

disponibilidade para o brincar.

A precariedade da área construída, com mínima manutenção pela Prefeitura

Municipal, mostra um certo abandono, é este o preço pago pelas classes populares pelo direito

ao acesso à escola e ao conhecimento. No caso da Escola Colméia, não houve um projeto

escolar arquitetônico previamente planejado, houve uma ortopedia arquitetônica, ou seja,

foram realizadas pequenas obras para que se adequasse uma casa em uma escola.

Devido à grande demanda de atendimento a crianças pequenas, uma casa foi adaptada

para o funcionamento da antiga creche, sendo que algum tempo depois foram construídos, a

partir da estrutura inicial, alguns anexos, para dar conta do aumento do número de

atendimentos. Hoje, essas emendas estão “com rachaduras de mais de um dedo de separação,

vai acabar caindo tudo.” (Professora 3). Assim, com um “puxadinho aqui, um puxadinho

ali”, temos a estrutura atual: o piso superior, onde estão distribuídas as salas de aula e a sala

da direção e o piso inferior, onde estão o refeitório, a cozinha, o depósito de alimentos e os

banheiros. O acesso de um piso para o outro é feito internamente por uma escada ou então

externamente pelo pátio. Augustín Escolano (1998, p. 26-27), afirma que

A arquitetura escolar é também por si mesma um programa, uma espécie de discurso que instituiu na sua materialidade um sistema de valores, como os de ordem, disciplina e vigilância [...]. Paralelamente, a disciplina do tempo educativo inspirada nos vetustos ritmos do convento [...] reforçou, com a regularidade de seus ritmos, a ação microfísica das estruturas arquitetônicas, dando origem a todo o ordenamento da vida acadêmica que passou, de forma “invisível”, ainda que bem notória, a fazer parte do currículo.

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A arquitetura da instituição escolar possibilita o controle e a delimitação de espaços

individuais ou coletivos. Nesta Escola não é diferente. O terreno é todo cercado, evitando que

as crianças passem para o lado de fora e impedindo a entrada de estranhos. O uso da

cerca/muro/grade surge com a necessidade de delimitação do espaço escolar para assim

distingui-lo dos outros espaços – famílias, rua. Assim, as crianças estarão bem guardadas e

seus corpos não ultrapassarão os limites estabelecidos do terreno seguro que é o da escola,

não estarão em perigo, pois esta instituição os ‘protegerá’.

Da cerca para dentro, a Escola Colméia é subdividida por paredes de madeira em cinco

salas de aula. Elas são muito pequenas e o número de alunos a serem atendidos por metro

quadrado extrapola. Uma pequena peça serve de sala da direção e recepção dos familiares e

alunos. A estrutura arquitetônica manteve a característica da vigilância – todos precisam

passar pela sala da direção/recepção para saírem do prédio.

Assim como o espaço construído é subdividido em salas e ambientes, as crianças

também são subdivididas de acordo com a idade em cinco níveis, distribuídas em cinco salas:

Berçário 1, Berçário 2, Maternal, Jardim 1 e Jardim 2.

A disputa pelo espaço é evidente, por ser parco, é (re)inventado pelas profissionais que

buscam (re)adequá-lo conforme surgem as necessidades no cotidiano. As mesas e cadeiras

ficam amontoadas no canto da sala para que as crianças possam brincar e são organizadas

novamente sempre que necessário para o trabalho pedagógico. Do piso superior para o

refeitório (porão), as crianças e professoras descem pelo acesso interno que lembra muito um

alçapão, com degraus pequenos e baixo teto, sendo que os adultos precisam curvar-se para

não bater a cabeça.

O assoalho é de madeira na parte superior e, sendo este o teto do refeitório, quando há

muito movimento, solta poeira sobre as panelas, conseqüentemente sobre o alimento que está

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sendo preparado. Devido a isso, as crianças não podem pular, nem brincar com muita agitação

nas salas, pois “a sujeira cai nas panelas”. Perguntei às professoras: as condições do prédio

possibilitam que as crianças brinquem na sala?25 Suas respostas foram unânimes ao afirmar:

Professora 2 - Não. Até podem brincar, mas sem pular, sem correr e sem grandes movimentos, pois as salas são absurdamente menores que a clientela da escola. Eles, isto é, os alunos brincam na medida que se entendem e não haja briga por espaço. Professora 1 - Infelizmente a estrutura não dá condições para que sejam realizadas atividades com movimentos, pois além de pequena, atrapalha na hora das refeições. Mas é realizada brincadeiras calmas, mas não deixa-se de brincar com as crianças.

As professoras informaram que há vinte e sete anos a comunidade e o corpo docente

escolar esperam por uma reforma ou pela construção de um novo prédio. No início do mês de

abril do corrente ano foi iniciado um abaixo-assinado por uma comissão composta por

representantes da Escola, dos pais e da comunidade, solicitando a construção do prédio novo,

promessa há muito tempo feita e reafirmada pela gestão pública atual.

No dia 14 de julho de 2005, em audiência com o Senhor Prefeito Municipal, a

comissão entregou ao poder público este documento, a resposta obtida foi de que no ano de

2006 será iniciada a obra da escola nova.

Diário de conversas – 18/07/2005 – segundo o relato da diretora, a resposta foi de que a prefeitura não dispõe de recursos para a construção, apesar de esta Escola estar em situação precária, outra precisa ser construída no bairro X que ainda não tem escola. Ela diz que “Por enquanto será arrumado o que tem urgência, os pais ameaçaram de ir para o Jornal e denunciar a situação, no mesmo dia o engenheiro da prefeitura veio fazer uma vistoria das rachaduras na parede dos fundos, vamos ver quanto tempo vai demorar para virem arrumar.”

Para essa comunidade, a escola tem uma importância que extrapola o sentido da

estrutura material. Constatei isso ao conversar com alguns pais sobre a importância da mesma

para eles, seus filhos e suas filhas, e para o bairro. A palavra “importância” sempre vinha na

25 Conforme o Anexo 1 – Entrevistas com as professoras.

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fala destes sujeitos, “para mim é muito importante, saio daqui feliz e tranqüila porque meus

filhos estão bem, são bem tratados, vou trabalhar sem preocupação”, afirma a mãe de GT

(menino) do Jardim 1 e de M (menina) do Jardim 2. Relatam que as crianças gostam de

vir/estar na escola: “aqui ele brinca, me conta em casa o que fez, o que cantou e brincou, eu

vejo ele feliz aqui” – mãe de G (menino) da turma Jardim 1.

A Escola faz parte do bairro, sem ela a maioria das famílias não teria recursos para

manter os filhos e filhas em outros locais ou em casa, conforme a fala que segue: – “Eu não

vejo esse bairro sem a creche, os moradores ficariam sem lugar para os filhos, as outras

escolas do bairro não recebem a criança o dia todo, o que que a gente vai fazer com eles sem

a creche?” – pai das alunas M (Jardim 1) e N (Maternal).

Ao longo do tempo de existência da instituição escolar, esta importância foi sendo

constituída pelas ações e relações estabelecidas entre os sujeitos que viveram/vivem e

trabalharam/trabalham ali. Neste momento, prender-se à idéia de espaço apenas como um

lugar fixo ou um território é desconsiderar a história deste lugar. É preciso evidenciá-lo como

um espaço de relações onde fluem as informações e idéias, pois

o espaço é o palco onde acontecem os fatos, mas é também ao mesmo tempo resultado da vida dos homens, das lutas sociais, dos interesses econômicos e políticos. E assim ele se torna um dado a mais na definição de como as coisas podem acontecer, interferindo nas dinâmicas sociais, colocando limites, ou favorecendo situações. Na verdade, o espaço é ao mesmo tempo o sustentáculo material do que se sucede nos lugares e um dos elementos definidores ou facilitadores do que pode acontecer ali [...] tem que ser considerado como um espaço de fluxos e não mais de lugares absolutos. (CALLAI, 1999, p. 23 e 25).

A parte externa da escola, por sua vez, é maravilhosa. O pátio é todo gramado, com

parquinho,26 casinha, árvores frutíferas, mesas e bancos, quadra de areia, pedriscos e calçadas.

As benfeitorias realizadas tiveram participação da comunidade escolar, no sistema de mutirão

26 No parquinho entre os brinquedos disponíveis estão os balanços, gangorras e escorregadores.

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com o auxílio dos pais. Esse investimento na Escola é mais um dos indicativos de que as

classes populares querem manter e precisam dessa instituição nesse bairro em especial.

A utilização do espaço externo é organizada por um rodízio, estabelecido entre as

professoras das turmas. Cada nível tem um dia fixo para usufruir esse espaço – manhã e tarde,

então, se na 3ª feira é o dia do Jardim 2 e chove ou faz muito frio, as crianças só irão para o

pátio na próxima 3ª feira. As professoras das turmas maiores ainda têm como alternativa

passear pelo bairro e utilizar a pracinha de uma instituição assistencial localizada a seis

quarteirões. A foto abaixo mostra a pracinha da Escola Colméia que ficou vazia, e as crianças

do Jardim 2 tiveram que visitar a do bairro, pois na escala não era dia desse nível utilizá-la:

Ilustração 5 - Foto da pracinha da Escola Colméia

A valorização do espaço externo é evidenciada nas falas das professoras quando

afirmam que “[...] a estrutura externa é maravilhosa, onde podemos usufruir e as crianças se

divertem muito, ocupando tudo que está disponível” (Professora 3), ou então “Nosso espaço

externo é muito rico, temos pracinha, quadra de areia e um ótimo gramado com árvores

sombrias e frutíferas.” (Professora 4).

No cotidiano, essas falas não refletem como são ditas, nas ações. Apesar da valori-

zação do espaço externo, este é pouco utilizado. Talvez por terem um espaço interno pouco

favorável, não sabem como utilizar o externo ou mergulharem em uma rotina, não extrapolam

o estabelecido nela. É da rotina cotidiana da Escola Colméia que a seção a seguir abordará.

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1.3 As Rotinas ...

Ilustração 6 - "Os perigos de um turno integral pleno na escola"

As reflexões sobre o cotidiano e a rotina iniciam no século XVIII, como mostram os

registros nas pinturas, romances, escritos, entre outros datados nesta época. Segundo Barbosa

(2000), o cotidiano refere-se a um espaço-tempo fundamental na vida humana, pois além de

nele encontrar com nossas ações rotineiras, encontramos com o inesperado e a rotina é apenas

um dos elementos que integra o cotidiano.

Observando neste esquadrinhamento de tempo um anúncio da modernidade que aos

poucos vai se incorporando à instituição escolar, encontramos a regularidade e seqüencializa-

ção do tempo e do espaço em Comenius, ainda século XVII, e posteriormente em Rousseau.27

27 Optei por citar Comenius mesmo sabendo que ele não aprofunda as questões infantis, mas as considera como etapas inevitáveis do ser adulto, precisando esta ser educada; e Rousseau, por inaugurar com Emile um período histórico no qual a educação dos filhos deixa de ser domínio exclusivo da família. Não posso deixar de citar/lembrar outros como John Locke, Jean Batista La Salle ... por mais que não serão neste trabalho utilizados.

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Mariano Narodowski (1998, p. 70) refere-se à obra comeniana “Didática Magna” –

com seu ideal pansófico –, afirmando que esse

afã uniformizador gera regularidades para cada escola e estas regularidades por sua vez se engrenam meticulosamente entre si para conseguir que todos os processos escolares se dêem a um mesmo tempo. Assim, geram-se horários homogêneos para o estabelecimento das atividades escolares em cada escola; horários que contemplam todas as instâncias da cotidianidade institucional.

Comenius defendia o ‘princípio da simultaneidade’ onde se deveria ensinar tudo a

todos ao mesmo tempo, para tal utiliza-se dos mecanismos de gradualidade, ordenação dos

tempos e normatização do método de ensino (currículo unificado).

Narodowski (1998) comenta que Jean Jacques Rousseau, já no século XVIII, com sua

obra Émile ou De l’education, mostra sua oposição ao rígido pensamento moralista – a visão

da criança como um adulto em miniatura – descrevendo nesse romance a sua visão da criança,

descreve-a como alguém que possui natureza própria, para tal precisaria de formas naturais

para educá-la. A infância para Rousseau era um estágio necessário e anterior à vida adulta,

portanto o corpo infantil deveria ser controlado, protegido, estudado e analisado

minuciosamente. Uma hipótese indiscutível, cuja existência do corpo infantil não precisaria

ser demonstrada, mas suas características desenvolvidas até em suas partículas menos

evidentes. À criança rousseauniana será dada mais do que a instrução, assim, pela força do

exemplo, das palavras e das práticas, lhe serão revelados os valores e códigos de conduta. .

Segundo esse autor, Comenius e Rousseau diferem-se na lógica de seus discursos,

entretanto possuem em comum a conceitualização da infância. Assim como esses teóricos,

muitos outros de seu tempo e de outros tempos falaram e falam sobre a infância e seu sujeito

– a criança – muitos, inclusive, atravessados por estas e talvez primeiras concepções.

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Segundo Philipppe Áries (1981, prefácio X), antes da modernidade, adultos e crianças

não tinham diferenciação perante a sociedade. A infância é um produto da modernidade, é a

partir deste momento que passa a existir um corpo infantil, e este surgiu para ser amado e

educado, e para tal, precisava de um espaço – a escola. O autor evidencia o surgimento da

escola como um período de quarentena:

A partir de um certo período [...], e, em todo o caso, de uma forma definitiva e imperativa a partir do fim do século XVII, uma mudança considerável alterou o estado das coisas que acabo de analisar. Podemos compreendê-la a partir de duas abordagens distintas. A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação. Isso quer dizer que a criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através do contato com eles. A desrespeito das muitas reticências e retardamentos, a criança foi separada dos adultos e mantida a distância em uma espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio. Começou então um longo processo de enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estende até nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização.

Surge a instituição escolar e a formação de especialistas para atuarem nela, que irão,

com o passar do tempo, encontrando mecanismos para o controle dos corpos infantis, “[...]

são as duas faces de uma mesma moeda.” (VARELA, 1992, p. 79). Na atualidade, podemos

afirmar que é pelas escolas de educação infantil e creches que o corpo infantil inicia sua

trajetória de quarentena e enclausuramento. Nelas é que será determinado o lugar que

ocupará, com quem dividirá o espaço de convivência e o tempo que levará para sair dele,

definindo as atitudes apropriadas para cada ação, com restrições estabelecidas à criança para o

uso do seu próprio corpo.

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Ilustração 7 - "As borboletinhas"

Na Escola Colméia, nas conversas sobre o brincar, perguntei para a professora 2:

“Seus alunos brincam? Quando e como brincam?” Sua resposta centrou-se em explicar os

tempos da rotina, dizendo:

Diário de conversas – 13/05/2005: Sim, eles brincam. Gostam do tempo para a rodinha, e de brincar antes do café. Isso é bom, eles se envolvem na brincadeira, quando a gente vê já chegou a nossa vez. Eles brincam de construir torres de blocos, com os brinquedos e, principalmente, de faz-de-conta, que é fundamental. Imitam mamãe dando mamá no peito e trocando a roupinha; e até fazendo a rotina do piolho. A rotina da higienização das cabeças é realizada todas as segundas-feiras. Antes de entrar na sala de aula a criança precisa passar na fila do pente fino, se não tiver piolhos, poderá entrar, caso contrário retornará para casa e voltará em três dias, passando novamente pela revista. Na fala da professora fica evidente o quanto a rotina atravessa os corpos dos alunos.

Desde a invenção da instituição escolar, os tempos são controlados pela disciplina. É a

ação disciplinar que regula o tempo,

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[...] ela [a disciplina] estabelece a sujeição do corpo ao mesmo tempo, com o objetivo de produzir o máximo de rapidez e o máximo de eficácia. E neste nível inicial se faz não pelo controle minucioso de cada operação, como vai ocorrer mais tarde na escola, mas pelo controle dos ritmos que estabelece ‘um tempo para a coisa e cada coisa ao seu tempo’. (BUJES, 1998, p. 10).

As rotinas nada mais são do que uma das muitas possibilidades de regrar o tempo,

fragmentando-o em parcelas menores, controlando-o detalhadamente a cada operação nos

espaços, promovendo uma adaptação biológica do corpo. Horário para a higiene, horário para

as refeições, horário para dormir... sem levar em conta a vontade das crianças. No século

XVIII, as rotinas surgem com maior amplitude, tendo como objetivo organizar as ações

cotidianas das crianças, tanto na família quanto nas instituições escolares.

A rotina na Escola observada chama a atenção na medida em que condiciona as ações

das professoras, crianças, funcionárias e pais, com seus horários definidos. Com a seqüencia-

lização dos horários na escola, as crianças começam a diferenciar os momentos do dia –

manhã, tarde e noite, constituindo hábitos e organizando seus tempos internos e externos.

A entrada das crianças na escola é permitida somente entre o período das 7 horas e 15

minutos até às 8 horas e 30 minutos, com exceção das que vão para consultas médicas, que

podem chegar durante a manhã, até o limite das 11 horas. O café da manhã inicia às 8 horas e

30 minutos e todos os alunos devem fazê-lo até as 9 horas e 30 minutos. Após a escovação

dos dentes, as crianças retornam para a sala de aula.

O almoço é servido a partir das 11 horas e 20 minutos. Em seguida ao almoço, o

tempo para o repouso – o famoso soninho. O tempo de repouso das turmas do Jardim 1 e

Jardim 2 é até às 14 horas e 30 minutos e depois de se “organizarem, pois penteamos os

cabelos e trocamos de roupa os que necessitam, às 15 horas eles vão para o lanche.”

(Professora 3). Como se percebe, o domínio do tempo e do espaço é predominantemente dos

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adultos, não há relógio nas salas. As escalas do tempo da pracinha, do tempo de ver televisão

e de fazer higiene28 estão colocadas no mural coletivo das professoras.

O que habitualmente acontece na rodinha29 após cantarem as tradicionais músicas, é a

comunicação da seqüência das atividades a serem desenvolvidas ao longo do turno. Como um

dos tempos fixos da rotina dessa Escola, a rodinha determina o início do turno de trabalho da

professora.

O círculo circunscrito pelos corpos dos alunos que, sentados no chão, ficam abaixo da

professora sentada em uma cadeira – afinal é ela que coordena o trabalho e detém o poder

sobre a rodinha – demonstra a relação de poder ali instituída pelo adulto. As crianças escutam

da professora como vai ser o seu dia na escola.

Para Foucault (2003), o espaço escolar é também um espaço que disciplina, na medida

em que regula as ações dos sujeitos na instituição, é subdividido em “parcelas” de trabalho

desde a sua divisão até sua organização de rotina. Envolvidos em dar conta dessas parcelas,

professoras e alunos não têm tempo de questionar ou refletir sobre o que fazem desde o

momento da chegada até o momento da saída da escola. A escola corre esse risco quando

centra todo o seu trabalho numa estrutura regularizada, que burocratiza o trabalho do

professor e não possibilita que este olhe para além do seu umbigo e do horário fixo ao qual se

submete.

O tempo, outra categoria de análise que com as atividades e o espaço compõe as

rotinas para cada ação, é determinado no planejamento das professoras, observando a

rotinização, inclusive do tempo para brincar. A fragmentação do tempo em mínimos segundos

é para que possa ser cronometrado e amplamente utilizado. A intencionalidade desta

28 Como já comentei, toda a 2ª feira é dia de higienizar, de passar o “pente fino” para o controle da pediculose. 29 Rodinha é o tempo determinado no qual as crianças sentam em círculo e relatam situações vividas, e ouvem da professora quais as atividades do dia.

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fragmentação é que preocupa, pois é a de reger os corpos das crianças, sequencializando cada

uma das partes do tempo. Elias (1998, p. 13-15) comenta que

A expressão “tempo” remete a esse relacionamento de posições e segmentos pertencentes a duas ou mais seqüências de acontecimentos em evolução contínua. [...] O indivíduo, ao crescer, aprende a interpretar os sinais temporais usados em sua sociedade e a orientar sua conduta em função deles. A imagem mnêmica e a representação do tempo num dado indivíduo dependem, pois, do nível de desenvolvimento das instituições sociais que representam o tempo e difundem seu conhecimento, assim como das experiências que o indivíduo tem delas desde a mais tenra idade.

O tempo regula a seqüência dos acontecimentos na linha de produção da fábrica de

aprender. A maquinaria escolar, com seus dispositivos escolares educacionais – mecanismos

ou meios para se chegar ao fim proposto –, condiciona as práticas escolares e, com as

estratégias utilizadas no processo ensino-aprendizagem da criança, sequencializa as atividades

e os conteúdos. Varela, Alvarez-Uria (1992) e Bujes (2002) consideram a escola como uma

maquinaria de “governo da infância”. A escola comparada com uma máquina poderá ser

observada nos escritos de Foucault, especialmente em “Vigiar e punir” onde descreve a “arte

das distribuições no espaço” para controlar corpos e mentes.

Para demonstrar isso, escolhi dois dos relatos do Diário de Observações. São

momentos distintos e em turmas diferentes:

Diário de observações – 14/04/2005 – Jardim 2: O dia estava chuvoso e as crianças brincavam na sala. A professora 3 chamou a atenção das crianças para recolherem os brinquedos na caixa, enquanto isso ela iria arrumar as mesas – três que ocupam a sala toda –, para fazerem um trabalhinho lembrando várias vezes – “Não corram, não pulem para não cair sujeira na cozinha”. Assim que as mesas estavam arrumadas e as cadeiras colocadas, as crianças receberam um pouco de lantejoulas azuis, cola e uma folha com a letra H desenhada, a ordem era - “Colem com calma as lantejoulas em cima da linha e vocês estarão fazendo a letra H”. A professora olha para mim e explica que a cada dia faz uma letra até terem o alfabeto completo, e dirigiu-se até a parede na qual tinham sido fixadas as letras já trabalhadas e acrescenta o ‘H’. Durante a atividade, algumas crianças comentavam que iriam ficar com as mãos brilhando, outras eram ajudadas pela professora que justifica – “Elas demoram muito, logo o Jardim 1 vem assistir TV e eu não arrumei a sala”.

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O mundo das letras é apresentado às crianças descontextualizado e fragmentado, a

letra H nada mais é que duas retas verticais paralelas ligadas horizontalmente por outra. O

tempo destinado à atividade não pode ser extrapolado – se for, é porque as crianças estão

muito agitadas e não rendem –, a professora controla o tempo das crianças pelo tempo

destinado a essa ação no planejamento. Apesar de haver troca de material utilizado, a ação é

repetida como um hábito, todos os dias (como escovar os dentes), com um toque mágico de

brincadeira. As crianças “demoraram muito” porque estavam brincando com o brilho da

lantejoula azul, como diz I (menino) – Olha, minha mão ficou brilhando! Ou de M (menina) -

I, eu acho que é pó de estrela. Benjamin (1984, p. 75) comenta que

A essência do brincar não é um “fazer como se”, mas um “fazer sempre de novo”, a transformação da experiência mais comovente em hábito. Pois é o jogo, e nada mais, que dá a luz a todo o hábito. Comer, dormir, vestir-se, lavar-se devem ser inculcados no pequeno irrequieto por meio da brincadeira, que são acompanhadas pelo ritmo dos versinhos. Formas petrificadas e irreconhecíveis de nossa primeira felicidade, de nosso primeiro terror, eis os hábitos.30

A essência do brincar para o referido autor está na repetição assim como está a essên-

cia do hábito. O que os diferencia é a ludicidade que só o primeiro possui, esse é o elemento

mágico que desencadeará o “brincar sempre de novo, mas nunca igual”; diferente dos hábitos

que são o “fazer sempre o mesmo”. Acredito ser importante ressaltar essa concepção de

“essência do brincar” que Benjamin nos mostra, tema que retomarei com maior atenção no

Capítulo 2 deste estudo. O segundo relato é sobre a utilização do pátio. Por vários dias, apesar

das condições climáticas favoráveis ou com sol, a pracinha ficou vazia e as salas cheias.

Diário de Observações – 09/06/2005 – Jardim 1: Perguntei para a Professora 4 se sairia para as crianças brincarem, a resposta não me agradou muito: “Hoje eu não vou sair, tenho que dar conta do planejamento”. Então fiquei acompanhando o desenvolvimento do planejamento. O mesmo consistia em passar tinta verde nas mãos das crianças e com o carimbo humano montar a copa da árvore em cima de um tronco previamente desenhado na folha.

30 As palavras em negrito foram grifadas por mim para chamar a atenção do leitor.

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Ao findar a atividade, a professora convida os alunos para que se organizem para sair, confesso que fiquei muito feliz e pensei: “É agora que eles vão brincar!” Engano meu, ao sair, a professora explica a nova atividade: “Vamos ensacar um dos galhos de uma árvore do pátio e ver o que a falta de sol vai fazer com ele, na semana que vem, vamos retirar o saco e veremos como ele vai ficar” (Professora 4).

Denomino de carimbo humano o papel desempenhado pelas crianças, neste momento

elas não tinham nem o direito de imaginar como fariam a copa da árvore com suas mãos;

quem decidiu foi a professora que com suas grandes mãos guiava as pequenas mãos até

onde o seu senso estético determinava, e ali imprimia a prova do crime, a palminha verde. E

assim foi uma a uma. As crianças foram peças nesta montagem – o molde – e a criatividade

infantil se perdeu entre o tronco e a copa da árvore. Quem tem a experiência e o domínio do

tempo é o adulto. Benjamin (1984, p. 23), em seu texto “Experiência”, escrito em 1913, já

comenta que:

Em nossa luta por responsabilidade enfrentamos um mascarado. A máscara do adulto chama-se “experiência”. Ela é inexpressiva, impenetrável, sempre igual. [...] de antemão ele já desvaloriza os anos que vivemos, [converte-os] em enlevação infantil que precede a longa sobriedade da vida séria. Assim são os bem intencionados, os esclarecidos. Mas conhecemos outros pedagogos cuja amargura não nos proporciona nem sequer os curtos anos de “juventude”; sisudos e cruéis querem nos empurrar desde já para a escravidão da vida. Ambos contudo, subestimam, destroem nossos anos. [...] depois vem a grande “experiência”, anos de compromisso, pobreza de idéias e monotonia. Assim é a vida dizem os adultos, isso eles experimentaram

Tonucci (1997), assim como Benjamin, reage contra a padronização infantil e o

desrespeito/desvalorização pela/da produção da criança com seu cartun “O Molde” (1975)

que auxiliará como figuração das palavras benjaminianas,

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Ilustração 8 - "O molde"

Ainda no dia 09/06/2005, em meu Diário de Observações, registrei as crianças

brincando livremente desde o momento da chegada na escola até o café da manhã. Neste curto

espaço de tempo, o brincar serviu para distrair as crianças. Essa é a concepção utilitarista do

brincar, ou seja, o brincar é visto como momento no tempo escolar que não se faz educação,

mas sim o repouso ou a preparação para daí vir o trabalho sério. Tal concepção é defendida

por Erasmo.31

Então, a rotina regra os tempos na escola – tempo de pracinha, tempo de atividade,

tempo de brincar, tempo de ver televisão, tempos... e como os tempos, os corpos e a alma

31 “Esta maneira doce de transmitir as informações às crianças fará com que se assemelham a um jogo e não a um trabalho, pois nessa idade, é necessário enganá-las com chamarizes sedutores, já que ainda não podem compreender todo o fruto, todo o prestígio, todo o prazer que os estudos devem lhes proporcionar no futuro.” (apud BROUGÈRE, 2003, p. 55).

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infantil. Varela e Alvarez-Uria (1992, p. 91), em seu texto “A maquinaria escolar” comentam

que:

O isolamento apresenta também as formas diferenciadas no caso da escola primária, já que para as crianças populares, esta instituição não tem praticamente nenhuma conexão com seu contexto familiar e social. [percebem] de forma imediata, é a oposição e ruptura que a escola supõe com relação a seu espaço cotidiano de vida, a sua forma habitual de estar, falar, mover-se e atuar. Nela se verão submetidos a toda uma ginástica contínua que lhes é estranha: saudar com deferência ao professor, sentar-se corretamente, permanecer em silêncio e imóveis, falar baixo e depois de havê-lo solicitado, levantar-se e sair ordenadamente [...] O espaço escolar, rigidamente ordenado e regulamentado, tratará de inculcar-lhes que o tempo é ouro e o trabalho disciplina.

O tempo contribui para a formação social e para a construção da temporalidade, ele

também educa. Alguns dos seus símbolos estão incorporados no cotidiano escolar, como o

relógio, o calendário, a matriz curricular, entre outros. As crianças são envolvidas pelos

tempos da Escola Colméia e do Bairro. Em muitas brincadeiras, surgem falas que marcam a

necessidade de dominar o tempo, como I que mostra um relógio:

Ilustração 9 - foto do aluno I mostrando o relógio do Shrek

Zum: I (menino) - Olha tia, é o relógio do Burro.32 Zilá - Que burro é esse? I – É o do filme Sherek, minha mãe locou ele pra gente assistir lá em casa. Zilá – Por que você o trouxe para a escola? I – É que a lotação para o centro passa dez pra hora e eu não posso perder.

Elias (1998, p. 13-14) afirma que, ao crescer, a criança assimila o tempo. O relógio e o

calendário nada mais são que marcadores de símbolos de tempo, e este se tornou a

32 Burro é um dos personagens do filme Shrek, da Disney. O relógio é brinde da promoção de um cereal.

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representação simbólica de uma ampla rede de relações que agrupa várias seqüências de

cunho pessoal, social ou puramente físico.

Ora, o indivíduo não tem a capacidade de forjar, por si só, o conceito de tempo. Este, tal como a instituição social que lhe é inseparável, vai sendo assimilado pela criança à medida que ela cresce numa sociedade em que ambas as coisas são tidas como evidentes. Numa sociedade assim, o conceito de tempo não é objeto de uma aprendizagem [...], ao crescer, com efeito, toda a criança vai-se familiarizando com o “tempo” como símbolo de uma instituição social cujo caráter coercivo ela experimenta desde cedo.

Ao chegar à escola, a criança já está enquadrada nos tempos escolares explícitos no

Projeto Político-Pedagógico (PPP) e nos Planos de Estudo (PE). A divisão das crianças em

níveis tem como suporte teórico as fases descritas e estabelecidas por Piaget, “os períodos de

desenvolvimento infantil: Sensório motor – 0 a 2 anos; Pré-operacional – 2 a 6 anos;

Operações concretas – 4 a 11 anos e Operações formais33 – a partir de 11 anos” (PPP).

Esses períodos são marcadores de tempo para o desenvolvimento da criança e demonstram a

sequencialização de níveis pelos quais deverá passar para atingir o objetivo da Escola Infantil

Colméia, que é o de

Garantir a primeira etapa da Educação Básica, tendo como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físicos, psicológicos, intelectuais e sociais, contemplando a ação da família e da comunidade. Assim, criando condições para que as crianças conheçam, descubram, ressignifiquem sentimentos, valores, idéias e costumes, consti-tuindo-se como um ser social capaz de transformações. Desta forma oferece às crianças uma riqueza de diversidades de experiências, brincadeiras e ativi-dades voltadas ao seu desenvolvimento integral, como sujeito atuante da pró-pria história (Objetivo Educação Infantil – PPP da Escola Colméia, 2005).

A importância do brincar para esta Escola é por muitas vezes (re)afirmada no PPP e

no PE, nos itens 4.1.4 e 4.1.5 da PPP que tratam da brincadeira, dos jogos, da imaginação e da

fantasia do sujeito infantil. Nos itens citados, há o registro de que essa concepção é

referendada em teóricos como Vygotsky, Manuel Pinto, Leontiev, Sônia Kramer, como se

fosse necessário o respaldo teórico para evidenciar e (re)forçar este valor/importância do

33 Apesar de receberem crianças de até seis anos de idade, este nível foi citado neste documento.

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brincar, do jogo simbólico e da imaginação para a criança. Colocações como as crianças

percebem o brincar ratificam essa posição.

As crianças que brincam têm facilidade para criar, falar, inventar, e por isso acontece de forma natural, pois elas convivem com o real imaginário. (PE da Escola Colméia, 2005).

Ou:

A educação infantil exige do educador um olhar especial, pois as crianças demonstram sua aprendizagem, suas vivências e experiências no brinquedo, no jogo do faz de conta. Nas brincadeiras, surge uma série de interações lúdicas, e essas nos mostram a cultura que a criança já absorveu, tanto na família, quanto na escola, hoje, muito mais na escola. (PPP da Escola Colméia, 2005).

Nesses documentos estão registrados os desejos do grupo de profissionais que ali

trabalha. Aparece na discussão do PPP e do PE, no discurso da Direção e nas falas de algumas

professoras a necessidade de tempo e espaço para o brincar. Na prática, isso não é possível,

segundo os sujeitos da escola, pois as possibilidades das ações que desencadeariam a práxis

deste PPP são limitadas pela estrutura física da mesma – área construída.

Essa queixa/discurso está muito presente, chegando a nublar, até mesmo a vedar os

olhos das professoras; a reclamação tornou-se um hábito. As crianças vão para a pracinha da

instituição beneficente próxima à Escola, embora o pátio esteja vazio. Por que não ocupar o

pátio da escola? Será que a importância do brincar registrada no PPP fica só no documento?

Ou é o rodízio da pracinha fixado pelo grupo de professoras? Quais seriam os reais motivos

desse olhar embaçado? As amarras da rotina impedem que os sujeitos reflitam sobre a

mesmice que lhes engole e, conseqüentemente, que busquem soluções para sair dela.

Elias (1998, p. 81) adverte que as mudanças ocorrem, seja em ritmo mais apressado,

seja em ritmo lento, mas “Não devemos deixar-nos enganar pela idéia de que seria possível

ficar em repouso ‘no espaço’ enquanto o ‘tempo’ escoasse, pois, nesse caso, nós mesmos

seríamos a entidade que avança na idade” e afirma também que a mudança “pode operar em

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nós num ritmo lento, mas nem por isso é menos contínua no tempo e no espaço.” As

afirmações de Elias ilustram como ocorrem as mudanças na Escola Colméia, acredito que

precisam acontecer, mesmo que lentamente.

No dia-a-dia, entre as rotinas, é que se revelam neste espaço/tempo os conflitos e os

confrontos entre os interesses do sistema oficial e os interesses dos sujeitos – alunos e alunas,

professoras, pais, direção, funcionárias –, os agentes ativos no processo escolar. Em seu

cotidiano, esses agentes “[...] por meio de uma complexa trama de relações que inclui alianças

e conflitos, transgressões e acordos, fazem da escola um processo permanente de construção

social.” (ARAÚJO, 2003, p. 216).

As relações do grupo são difíceis. Pelas falas das professoras e funcionárias fica claro

que existem divergências de cunho pedagógico e político, em especial neste ano que

acontecerá eleição da nova composição de equipe diretiva. As articulações para a disputa pelo

poder levam ao esquecimento da escola e das crianças. Há falta de diálogo entre o grupo, não

ocorre negociação nem trocas de horários, como disse a Professora 3, funcionária pública há

quinze anos:

[...] é um jogo de interesses, só se privilegia quem é do teu lado, o pior é que não interessa quem entre na direção, vai ter sempre gente jogando contra, assim a escola não vai tomar um rumo. Eu já falei para as gurias que nós temos que conversar para pensar em melhorar a Escola e não ficar brigando umas com as outras.

Augustin Escolano (1992) afirma que “A ordem do tempo escolar é uma construção

cultural e pedagógica cuja produção aparece sempre associada – também no passado – a

determinados valores e cuja concretização obedece a conceitualizações diferenciadas [...].”

(In: BARBOSA, 2000, p. 70). A subdivisão de tempos escolares não é uma “decisão técnica

de caráter neutro”, nela estão presentes os valores – culturais e sociais – que definem e

instituem o discurso pedagógico. As escolas de educação infantil e as pré-escolas iniciam esta

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aprendizagem ordenada do tempo quando imprimem os ritmos através das repetições,

(re)organizam o que o senso comum denominou de relógio biológico das crianças.

Então, ao afirmar que o espaço-tempo é um dos impeditivos para o brincar nesta

Escola, percebo a demanda de um momento específico para que os profissionais que ali

trabalham, reflitam sobre essa rigidez já cristalizada pelos marcadores de tempo e espaço a

que estão submetidos. Ou seja, que eles reivindiquem um “tempo de despertar” para essa

Instituição e para si mesmos. O tempo de despertar que Benjamin (1984) defende é o tempo

em que ficamos entre o sonho idealizado e muito descrito nas falas das professoras – que é

circular, sempre igual e repetitivo – e o tempo do estar acordado – tempo evolutivo, marcado

e progressivo – que vem determinado pelo social. O ato de brincar faz com que a criança

rompa com esta ordem cronológica das ações escolares, pois sua temporalidade não é

cronológica.

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Ilustração 10 - Conjunto de cartuns "Quando os brinquedos brincam sozinhos"

“Quero com isso dizer que não basta observar a criança, de fora, como também não basta prestar-se

aos seus brinquedos; é preciso penetrar, além do círculo mágico que dela nos separa, em suas preocupações, suas paixões, é preciso viver o brinquedo. Isso não é dado a toda gente.”

(BASTIDE, In: FERNANDES, 2004, p. 195).

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CAPÍTULO 2 – NOSSOS BRINQUEDOS...

Os brinquedos são reveladores de cultura e obedecem à lógica de um determinado

período. Como objetos de consumo infantil incorporam os conhecimentos que a sociedade

tem sobre a criança, trazem em seus traços as imagens que este social é capaz de regrar. São

objetos portadores de elementos visíveis e legíveis do real e/ou imaginário das crianças.

Acredito ser importante trazer neste capítulo as contribuições de Florestan Fernandes, Walter

Benjamin, e dos Estudos Culturais, sendo possível esta aproximação na medida em que seus

discursos se entrecruzam, a partir do mesmo objetivo, a criança como sujeito cultural. Não

será realizada uma análise isolada, ou sob a ótica de cada opção teórica, mas sim uma trama

desses fios para observar esse sujeito da ação do brincar.

2.1 Do que Brincamos

A brincadeira para a criança é, ao mesmo tempo, imaginação, relato de histórias,

momentos de socialização e prazer. Não podemos achar ou supor que o brincar da criança se

resume na reprodução do jogo e da brincadeira, precisamos sim é do benefício da dúvida para

olharmos além da simples recreação proporcionada pela ação do sujeito infantil. O sujeito que

experimenta o jogo não está simplesmente reproduzindo o jogo, está sim “no” jogo, talvez se

encontra aí o caráter de seriedade do jogo infantil, centrado no papel de significante que este

desempenha. Gadamer (1999, p. 175) afirma que,

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Não é a relação que, a partir do jogo, de dentro para fora, aponta para a seriedade que há no jogo que permite que o jogo seja inteiramente um jogo. Quem não leva a sério o jogo é um desmancha-prazeres. O modo de ser do jogo não permite que quem joga se comporte em relação ao jogo como em relação a um objeto.

Desencadeada pelo ato lúdico da criança, a brincadeira surge em diferentes situações

na rotina da Escola Colméia, algumas planejadas pelas professoras e outras não. Descreverei

algumas das situações de brincar observadas neste espaço-tempo em que estive ali. Não serão

enumeradas todas as brincadeiras ou situações de jogo registradas nas observações, apenas as

que são de relevância para este momento de escrita desta pesquisa.

As brincadeiras das meninas estão centradas em organizar casinhas, fazer comidinhas,

cuidar das bonecas e desempenhar papéis sociais como de mamãe, de filha, de tia, de

professora, entre outros. Algumas são atraídas pelas brincadeiras que o grupo dos meninos

está fazendo e assumem os papéis das heroínas dos desenhos infantis exibidos nos programas

de televisão. Por muitas vezes são repreendidas pela professora que diz: “Isso é coisa de guri,

vão brincar de boneca ou de casinha!”

Os meninos adoram brincar de carrinhos, montar estradas, reproduzem alguns

personagens da televisão que envolvam lutas e armas e jogam tazzos. Qualquer peça de jogo,

em um instante, vira uma arma ou faca, e assim que a professora percebe retira esse objeto e

solicita que parem de brincar assim, pois tal brincadeira segundo ela “não é legal”. Assim

aconteceu quando em outubro a Escola recebeu uma doação de brinquedos e na caixa as

crianças encontraram uma arma “preta e perigosa”, segundo a professora, que a escondeu

rapidamente em local inatingível para as crianças. O aluno GT comenta com seu amigo I: “A

profe acha que é de verdade, mas é de mintirinha, nem sai fogo ou bala de tiro”. Os meninos,

em especial, sempre são lembrados de que não podem correr nem pular, devido à situação do

assoalho.

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Conversando com a professora de uma das turmas sobre as brincadeiras preferidas das

crianças, ela relata que

Diário de conversas – 28/04/2005 – “as crianças não gostam de brincar de roda, ou escravos de Jó como a gente brincava quando era pequena. Os meninos preferem armas e socos e as meninas ficam imitando a Xuxa ou as novelas”. Fiquei mais alguns minutos observando as crianças brincando antes do café da manhã, visualizei duas meninas sentadas no chão, brincando de “escravos de Jó”, aproximei-me e perguntei: – Como é o nome desta brincadeira? G (menina) e St (menina) responderam rapidamente em uníssono: – É escravos de Jó! A música é assim, “escravos de Jó jogavam caxangá, tira, bota deixa seu Pereira ficá...”, ensina G. A foto abaixo registra um destes momentos.

Ilustração 11 - Foto das meninas G e St brincando de escravos de jó

As crianças brincam sentadas de “Escravos de Jó” e de roda, não podem brincar em pé

devido à situação da estrutura física da Escola já descrita. A professora afirma que os alunos

não gostam dessas brincadeiras, mas por vários momentos, ao longo das minhas observações,

pude registrá-las. O que percebo é que de fato ocorreu uma adaptação da forma tradicional de

brincar ou jogar os “Escravos de Jó” ou das rodas cantadas – “Ciranda-cirandinha” e “Atirei o

pau no gato” –, a vivência da professora quando criança foi nesta organização tradicional, e

hoje não admite novas formas de brincá-las. As crianças comprovam que apesar de serem

impedidas pela estrutura do prédio, conseguem readequá-las e brincam a seu modo.

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2.2 As Crianças – Os Olhares de Benjamin e Fernandes

Walter Benjamin (1984) entende o todo manifestado no singular, reconcilia o

particular e o universal, busca encontrar traços da totalidade em um único indivíduo,

fragmento ou insignificância. Para tal, é necessário ver além do evidente e buscar a relação

enigmática entre as partes. Nos textos34 sobre as crianças e seus brinquedos essa busca

aparece e são estas obras que utilizo para a escrita do presente trabalho.

A criança benjaminiana é aquela que (re)constrói o mundo baseada no seu olhar, ao

contrário dos idosos que afirmam ser os protetores da tradição, da cultura e da experiência.

Ela mostra, de muitas maneiras, o que muitos já esqueceram, está talvez aí a importância de

ouvir suas narrativas. O olhar infantil é aquele que muitas vezes mostra o que já foi

esquecido pelo adulto. Benjamin (1984) apresenta dois modos de apreender o olhar infantil:

um, através dos objetos que dizem da infância (livros, brinquedos, etc); outro, pela

rememoração que resgata a infância.

Esse autor revela em seus escritos um intenso e profundo conhecimento sobre a

criança. Dilui-se como autor quando a percebe como um indivíduo, que vê o mundo à sua

maneira – nos textos “Rua de Sentido Único” e “Infância em Berlim por volta de 1900”. Ao

rememorar a sua própria história, retoma a história de uma época em especial, é como se fosse

uma criança escrevendo para outras crianças. Ao registrar comentário sobre a história cultural

dos brinquedos, Benjamin constata a maneira como esses objetos documentam o

comportamento adulto em relação ao mundo da criança.

No mundo infantil, para este autor, a verdade não está dada de forma estanque, ela

pode ser (re)inventada, se refaz nas relações. A criança, nas brincadeiras e nos relatos, traz

34 Conforme obras registradas na bibliografia.

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situações vividas em outras instâncias – família, bairro, grupo de amigos. São essas

experiências de vida o suporte para entender e compreender as relações que ela estabelece. A

infância para Benjamin (1984, p. 79) leva à fantasia e à imaginação, ela é a história presente,

passada e futura da humanidade,

Criança que anda de carrossel - [...] começa a música e aos trancos a criança, girando, distancia-se da sua mãe. A princípio ela tem medo de abandonar sua mãe. Mas depois ela se dá conta de como ela própria é fiel. Ela reina como fiel soberano sobre um mundo que lhe pertence. Na tangente, árvores e indí-genas formam colunas. A mãe aponta um novo oriente. Em seguida surge da floresta virgem uma copa que a criança já vira há milênios tal como acabara de vê-la agora, no carrossel. [...] Há muito o eterno retorno das coisas tor-nou-se sabedoria infantil, e a vida um êxtase primordial do domínio, com a retumbante orquestração ao centro como um tesouro no trono. A música toca mais devagar, o espaço começa a vacilar e as árvores a se recordar. O carrossel vira um terreno inseguro. E surge a mãe, estaca solidamente crava-da no chão sobre a qual a criança que aterriza lança amarras de seus olhares.

Assim, Benjamin apresenta o olhar da criança quando diz que há muito tempo o eterno

retorno das coisas é próprio da sabedoria infantil, é essa a possibilidade de se ter o sempre

novo. É este tempo a-cronológico marcado por Benjamin que Florestan Fernandes (2004) traz

em evidência em seu estudo “Folclore e Mudança Social na cidade de São Paulo”,

considerado como importante contribuição para a sociologia e para o folclore brasileiros, mas

principalmente como precursor dos estudos da cultura dos grupos infantis. Relata a forma de

organização dos grupos infantis denominados de trocinhas, como surgem, suas formas de

seleção para os jogos, brincadeiras, parlendas, adivinhas, cantigas de roda, os pegas e outros

divertimentos.

Na intimidade35 com as brincadeiras infantis, estabelecida no processo de observação

da infância de um outro tempo, Fernandes (2004, p. 13) identifica aspectos que estão

35 Fernandes (2004) definiu como intimidade sua inserção no grupo infantil. Para realizar seu trabalho, teve que se inserir no contexto das crianças, passando tardes inteiras ou acompanhando os encontros no final da escola, observando e participando das atividades das trocinhas, percebendo seus ritos de passagem, expulsão e iniciação, a organização do grupo de brinquedos como grupo social, os elementos que constituem grande parte o patrimônio lúdico das crianças e a influência do folclore português e espanhol no folclore brasileiro, relatando as observações e a coletas de dados.

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presentes na sua própria história que ainda permanecem. Acompanhando a rotina desses

grupos, observou a experiência socializadora do folclore infantil “[...] através dela a criança

não só aprende algo, como adquire uma experiência societária de complexa significação para

o desenvolvimento da sua personalidade.” Para o autor, o folclore não é uma mera fonte de

recreação para as crianças, ele opera como elo de ligação entre o passado e o presente. De

acordo com ele, os sujeitos infantis constroem conhecimentos de significação social

participando dos grupos, evidenciando categorias do pensamento – símbolos – por meio dos

quais a criança percebe, explica e interage com o mundo exterior.

Considera Fernandes (2004, p. 214) que o folclore e a cultura possuem uma diferença

muito tênue, já que são poucos os elementos que os diferem, como o futebol e a natação,

freqüentes nas atividades da trocinha, e que não são folclóricos, mas sim culturais. Ele reforça

a sua preferência pelo termo cultura infantil quando afirma que: “[...] a expressão cultura

infantil é mais adequada na medida em que nos preocupa no momento [...] ela é mais

inclusiva que folclore infantil.” Observa a existência de uma cultura infantil que é constituída

por elementos exclusivos das crianças, caracterizados pela natureza lúdica, cujo suporte social

está no grupo infantil, assim a criança adquire, pela interação, os diversos elementos do

folclore infantil. O autor apresenta uma coletânea dos tipos de brincadeiras que até hoje

permanecem com a mesma função e que estão relacionados com aspectos da vida adulta,

como casamento, função paterna e materna, lugar de homem/mulher.

A obra de Fernandes revela o tradicionalismo popular e se tornou um documento

etnográfico de referência sobre a cultura. Aborda o folclore infantil como uma possibilidade

de através dele conhecer as relações entre o mundo adulto e o mundo infantil. Quando o autor

relata que, mesmo tendo que trabalhar desde os seis anos de idade nunca deixou de pensar em

ser criança, evidencia seu compromisso com as questões do sujeito infantil, seu grupo social e

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as experiências de vida. No seu texto “Em busca de uma sociologia crítica e militante”

(1997, p. 143-144), elabora uma espécie de biografia:

Se tinha pouco tempo para aproveitar a infância nem por isso deixava de sofrer o impacto humano das “trocinhas” e de ter réstias de luz que vinham pela amizade que se formava através do companheirismo nos grupos de folguedos, de amigos de vizinhança, dos colegas que se dedicavam ao mesmo mister, como meninos de rua, engraxates, entregadores de carne, biscateiros, aprendizes de alfaiate e por aí a fora. O caráter humano chegou-me por essas frestas, pelas quais descobri que o “grande homem” não é o que impõe aos outros de cima para baixo, ou através da história; é o homem que estende a mão aos semelhantes e engole a própria amargura para compartilhar a sua condição humana com os outros, dando-se a si próprio, como fariam os meus tupinambás. Os que não têm nada repartem com os outros as suas pessoas – o ponto de partida e de chegada da filosofia “folk” dentro da qual organizei a minha primeira forma de sabedoria sobre o homem, a vida e o mundo.

Fernandes (2004, p. 215) questiona a origem dos elementos da cultura infantil e

acredita que na grande maioria são “[...] elementos da cultura adulta, incorporados à infantil

por um processo de aceitação e nela mantidos com o correr do tempo [...] são restos de

romances velhos, hoje transformados em jogos cênicos.”

Walter Benjamin (1984, p. 14) afirma que a criança reage a essa imposição com a

resposta que “[...] se dá através do brincar, através do uso do brinquedo, que pode enveredar

para uma correção ou mudança de função.” Cada um à sua maneira, os autores descrevem a

criança como sujeito cultural. Este sujeito que produz o brincar, por mais que o brinquedo seja

imposto pelos adultos, consegue transformá-lo.

2.3 Oh! Que Saudades que Tenho ... da Aurora da Minha Vida...36

A narrativa das professoras exemplifica o que muitos teóricos afirmam, de que os

discursos constituem formas de ser criança e de ser professor. Seja pela tradição, pela cultura,

36 Fragmentos da poesia “Meus oito anos”, de Casemiro de Abreu. Essa poesia já foi utilizada por outros autores, como Sônia Kramer, por exemplo.

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pela mídia, pela escola... enfim, temos tantas formas quantos os discursos. Crianças indígenas,

crianças de rua, crianças-problema, crianças... apenas crianças. Benjamin (1992a, p. 44)

acredita que “A reminiscência está na origem da cadeia da tradição que transmite os

acontecimentos de geração em geração [...] ela recria a rede que todas as histórias, em última

instância, constroem entre si.”

Mariano Narodowski (1998, p. 27), ao ressaltar que os discursos da Pedagogia

constituem essas novas formas de ser, afirma que “Os manuais de história da educação (os

tradicionais conservadores e os modernos críticos) nos ensinam que cada época de

desenvolvimento da humanidade possui seu modo particular de integrar os novos saberes às

estruturas sociais existentes”. Então, a partir da invenção da infância, surge uma série de

formas, métodos e prescrições de pedagogizá-la na escola. Perceber que tanto a criança/aluno

quanto o professor são formados por estes discursos, nos faz repensar e compreender a grande

maquinaria a que estamos submetidos há séculos.

Em nossos dias, as pessoas estão mergulhadas em suas próprias vidas, como em um

círculo contínuo, se fecham em si mesmas. Larrosa (2001, p. 284) comenta que “[é como se]

o homem moderno estivesse cansado de si mesmo, prisioneiro de sua própria história, farto de

sua própria cultura.” Em função disso, diminuem as trocas de experiências e sua narrativa

empobrece.

Benjamin (1992a) esclarece essa diminuição de troca de experiência pelo ritmo

acelerado que envolve o homem da atualidade, a velocidade de informações a que estamos

submetidos por muitas vezes, nos impele para a frente sem tempo para a reflexão para a troca

de experiências vividas através da narrativa. A relação estabelecida entre o entrevistado e o

entrevistador contribui para a compreensão das narrativas das professoras como um espaço de

produção de saberes. Essa relação é mediada pela linguagem, assim, ouvir suas histórias de

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vida diminui a distância entre as histórias de um e o registro do outro. Quem registra,

desempenha um papel parecido ao do historiador, que segundo a concepção benjaminiana é

aquele que considera todo fato como fato histórico e então

[...] deixa de engrenar a seqüência dos acontecimentos como as contas de um rosário. Ele abarca a configuração na qual a sua época entrou em contacto com uma época anterior perfeitamente determinada. Funda assim um conceito do presente como “agora” no qual penetraram estilhaços messiânicos. (BENJAMIN, 1992a, p. 169).

O exercício da narrativa permite a troca de experiência. Ao relatar fatos do cotidiano

de nossas vidas, nos aproximamos do outro. Quem ouve uma história está na companhia de

quem conta, assim muitas vezes compreendemos como nos constituímos crianças em nossa

infância. Pela narrativa das professoras, tive a oportunidade de saber um pouco sobre como

brincavam quando eram pequenas. Nas conversas e entrevistas individuais,37 uma das

perguntas era referente ao seu brincar – se bom ou ruim – e como elas se sentiam ao

brincarem. As professoras fazem as seguintes colocações:

Professora 1: Era muito bom brincar, nos sentíamos muito bem, a impressão que dava que tudo era de verdade, que realmente as bonecas estavam vivendo as nossas histórias imaginárias. A imaginação voava, e cada dia tinha uma brincadeira diferente. Professora 4: Eu adorava brincar, era muito bom, tanto que quando lembro ainda sinto vontade de brincar, pois me sentia realizada, satisfeita, feliz em realizá-las. As brincadeiras que brincávamos eram sem malícia, sadias e nos atraia mais do que qualquer coisa que nos oferecessem.

Ao ler as respostas, a sensação que tive era de ouvir, mesmo não estando escrita, a ex-

pressão “no meu tempo”. Tal expressão é geralmente usada pelos que recordam. Ecléia Bosi

(1994, p. 421) diz que ela – a expressão – é curiosa “Qual é o meu tempo, se ainda estou vivo

e não tomei emprestada a minha época a ninguém, pois ela me pertence tanto quanto a outros

[...], o tempo que o homem considera como seu é aquele em que concebe e executa [...].”

37 Ver detalhes no Anexo 1 – Entrevistas com as Professoras.

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Benjamin (1992a, p. 175-176) diria que se faz necessário escovar a história a

contrapelo, para enxergar além do que pode ser visto na superfície, neste caso, ouvido. Nesta

rememoração, as professoras têm o encontro com o outro – e consigo mesmas – sendo este

encontro marcado pela linguagem. É através da linguagem que o sujeito recria a cultura da

qual é fruto, reconta e (re)significa sua história. Para diferenciar a narrativa do adulto da

narrativa da criança, diz o autor que “O adulto, com o coração liberto do medo, goza uma

felicidade redobrada quando narra uma experiência. A criança recria toda a situação, começa

tudo de novo.”

Na continuidade da entrevista, depois de lembrarem com alegria do seu brincar,

perguntei “Teus alunos gostam de brincar? Como eles brincam?” Algumas professoras

silenciaram por instantes, como se fosse difícil lembrar, mas responderam:

Professora 3: Meus alunos gostam de brincar. Mas sinto que são muito presos e que não conhecem as brincadeiras de antigamente. Professora 1: os alunos gostam muito de brincar, acredito que para as crianças a vida está plenamente envolvida com o brincar. Mas também acredito que o brincar de hoje tem menos imaginação, pois eles imitam muito as novelas. E não vejo uma organização. Eles até brincam de mamãe e filhinho, mas noto que de casinha é muito difícil, não vejo organizarem uma casinha, como, por exemplo, separar cômodos.

A criança, ao brincar, rompe com as formas cristalizadas do seu cotidiano. Com sua

imaginação, organiza a ordem estabelecida pela cultura e impulsionada pelo combustível do

desejo e da paixão está sempre pronta para reorganizar uma outra possibilidade de apreensão

do real, do mundo da vida. A realidade em que vivem as crianças da Escola é totalmente

diferente da realidade em que viveram/vivem as professoras.

As crianças do Bairro moram em casas de um ou dois cômodos, em porões e

garagens, alugadas na maioria. Já relatei que esta é uma comunidade carente, com poucos

recursos, muitas famílias dependem da Escola Colméia para que seus filhos tenham as

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refeições diárias necessárias. Descontextualizada, a professora afirma que para brincar de

casinha é necessário separar os cômodos da residência. Como é que vamos querer que as

crianças separem em cômodos a casa imaginária? A sua realidade não é essa, G (menina) nos

mostra um pouco da sua realidade:38

Diário de observações 19/05/2005 - G (menina) estava na sala brincando com S (menina), a professora não estava na sala. Em seguida, a diretora entra na sala e informa para as crianças que “a profe não vem hoje, está doente, e a professora 5 vem para ficar com vocês”. G pega o telefone e liga para a professora: Zum: G: Alô, profe você tá bem? Silêncio (como se estivesse ouvindo a professora responder no telefone de brinquedo). G: Eu tô ligando para te contar que eu vou me mudar do porãozinho, tchau, melhora logo. – E desliga o telefone. Na rodinha, G informa a todos os colegas que vai mudar de moradia, vai morar com a avó. A professora 5 diz para mim “até que enfim vai parar de se atacar da bronquite, isso é da umidade daquele porão”.

Ilustração 12 - Foto de G (menina) falando com a Professora pelo telefone

Negar a compreensão deste sujeito é desqualificá-lo, considerá-lo como alguém

incompleto, é também não perceber as diferenças sociais existentes entre os sujeitos, achando

que nos apresentamos todos iguais. Negar a voz deste sujeito é fazer imperar o silêncio, é

cancelar o encontro marcado entre as gerações, prevalecendo a voz da geração passada sobre

a da geração presente. O novo não é vazio, do movimento aleatório não surgem gestos sem

38 A Aluna G morava até então em um porão alugado pela mãe. Naquele dia soube da sua mudança para a casa da avó, pois sua mãe não consegue mais pagar o aluguel do porão.

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vínculos com a nossa trajetória. Este novo tem história, surge da tradição que é libertada pelo

presente, ou seja, da relação dialética que o presente acordado estabelece com os sonhos do

passado (BENJAMIN, 1992a).

A criança não é um corpo isolado em uma ilha ou permanente quarentena, ela é um ser

social, inserida na cultura, através da brincadeira atua no mundo que a rodeia, interpretando-o

e produzindo sentidos. Considerando a diversidade do mundo atual, desde cedo a criança

sofre as imposições dos valores dominantes e, para resistir a isso, ela precisa preservar a sua

singularização, é necessário que construa um mundo particular no interior de um universo

maior. Solange Jobim e Souza (2003, p. 159-160) argumenta que:

Ao negarmos uma compreensão da criança que a desqualifica como alguém incompleto, quer dizer, alguém que se constitui num vir-a-ser distante no futuro, privilegiamos situá-la no espaço em que o tempo se entrecruza entre presente, passado e futuro... a criança não se constitui no amanhã: ela é o hoje, no seu presente, um ser que participa da construção da história e da cultura de seu tempo. [...] ela é capaz de resgatar uma compreensão polifônica do mundo, devolvendo, através do jogo que estabelece na relação com os outros e com as coisas, os múltiplos sentidos que a realidade física e social pode adquirir. [...] Pertencendo ao domínio intermediário entre a conquista da ordem social do mundo dos adultos e o desfiguramento desse mesmo mundo, proporcionado pelo modo irreverente com que ela se expressa no jogo de linguagem, na fantasia e no diálogo com o outro, a criança resiste ao seu enquadramento compulsório num mundo de adultos enrijecidos, [...].

As crianças da escola (re)editam suas vontades pelo brincar – e muitas vezes não são

compreendidas ou levadas a sério pelos adultos. Assim como um contemplador de obras de

arte as analisa nos mínimos detalhes, observando suas cores, texturas, luminosidade,

pinceladas, técnicas..., a brincadeira possibilita ao professor/contemplador a percepção desta

criança contextualizada na história, com razão própria diferente da do adulto. Portanto, quanto

mais disponível estiver o olhar, maior será a quantidade de elementos percebidos e a

multiplicidade de leituras deste brincar.

Zum: Estavam 3 alunos montando um cubo com peças de emborrachado.

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Ge (menina): Olha, tá ficando que nem a caixa do Gugu! M (menina): Aquele da TV, que tem um montão de brinquedooooo. E (menino): Dá pra brincar junto? Resposta afirmativa com a cabeça Ge: - E, vai pegar umas coisa para a gente por na caixa por aqui ó – mostra a parte vazada da peça de emborrachado. M: Tem que tentar descobrir o que é sem olha pelo buraco. Logo são atraídos por uma movimentação de cadeiras na sala. E: O que vocês tão fazendo? AP (menina) reponde: é uma piscina que nem a da novela – e vai encaminhando onde os colegas devem colocar as cadeiras. M e G se aproximam trazendo a caixa do Gugu para ser, agora, uma caixa de isopor para os lanches que serão consumidos ao redor da piscina enquanto tomam banho de sol.

Os simulacros permitem que a criança seja muitas coisas ao mesmo tempo, e podem

passar despercebidos pelos olhos dos adultos. Esses jogos são uma introdução ao imaginário

cultural, no qual o Eu pode ser o Outro, constituindo um modelo semelhante aos adultos, a

criança recria a partir das experiências lúdicas. Assim acontece com os brinquedos. Gilles

Brougère (1997, p. 9) afirma que

A criança dispõe de um acervo de significados. Ela deve interpretá-los: a criança deve conferir significados ao brinquedo, durante sua brincadeira. [...] o brinquedo não condiciona a ação da criança [...] oferece um suporte determinado, mas que ganhará novos significados através da brincadeira.

Na brincadeira simbólica – com ou sem o objeto brinquedo –, o ato lúdico não se

resume a uma mera assimilação de atitudes ou comportamentos. É um retrato que ilustra

como o papel da criança é distinto daquele que ela desempenha na sua experimentação

cotidiana. Ao construir o mundo da ficção, a criança vivencia o mundo real no qual está

inserida, momento que pode trazer alegria ou dor. Este sujeito, em suas experiências de vida,

movimenta-se, brinca, pula, ri, vem para a escola acreditando que há um mundo novo a

conhecer, muitos desafios a enfrentar, mas percebe que não tem lugar para seu corpo nesta

instituição ... bem vou deixar Tonucci (1997) “falar” por mim:

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Ilustração 13 - "Na escola o corpo não serve para nada"

Fernandes (2004, p. 219) considera autoritário o discurso no qual é imposto à criança o

modo de pensar do adulto, “[...] tendem em última palavra, a desenvolver no indivíduo o ‘ser

social’, impondo aos imaturos modos de ver, de sentir e de agir.” Esses modos impostos,

desconsideram o lugar de sujeito da criança, o adulto nesta perspectiva age sobre ela,

moldando-a, dando-lhe a forma que pretende para alcançar seus objetivos – formar um

cidadão socialmente adequado. Roger Bastide faz as seguintes considerações em relação às

observações das ‘trocinhas’ do Bom Retiro, quando destaca o pensamento de Fernandes sobre

o autoritarismo adulto:

Quem somos nós, para as crianças que brincam ao nosso redor, se não sombras? Elas nos cercam, chocam contra nós; respondem às nossas perguntas, num tom de condescendência, quando fingimos interessar-nos por suas atividades; mas sentem-se perfeitamente, que para elas, somos

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como os móveis da casa, parte do cosmo exterior, não pertencemos a seu mundo, que tem seus prazeres e seus sofrimentos [...]. (FERNANDES, 2004, p. 195).

O mundo perceptível da criança é perpassado por vestígios da geração anterior (mundo

adulto), isso não quer dizer que é o mesmo mundo, o que ocorre no brincar, muitas vezes, é

um confronto entre gerações – entre o mundo adulto e o mundo infantil. A ordem do mundo

real (fixada pelo adulto) e a ordem mágica (ludicidade) estão relacionadas com este confronto

no brincar do sujeito infantil. O conjunto dos desenhos de Tonucci (1997) intitulados

“Quando os brinquedos brincam sozinhos” (Ilustração 10) – apresentados como epígrafes

deste capítulo –, ilustram com clareza a citação de Benjamin (1984, p. 80) que evidencia a

heteronomia desses mundos.

Criança escondida: [...] Atrás do cortinado, a criança transforma-se, ela mesma, em algo branco e que sopra como o vento, converte-se em fantasma. A mesa de jantar, debaixo da qual ela pôs-se de cócoras, deixa-a transformar-se em ídolo de madeira em um templo onde as pernas talhadas são as quatro colunas. E por detrás de uma porta ela própria é porta, carrega-a consigo como uma pesada máscara e enfeitiçará, como um sacerdote mágico, todas as pessoas que entrarem desprevenidas.

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2.4 Os Brinquedos ...

Ilustração 14 - "Os 'verdadeiros' brinquedos"

Na “Colméia”, as crianças brincam de casinha, de mamãe e filhinha, de boneca, de

carrinho, de homem aranha, de batmam, com jogos de montar e com tazzos.39 Muitas vezes

ouvi reclamações das professoras em relação ao pouco material para trabalho e brinquedos

para as crianças.

A caixa de brinquedos, facilmente identificada pelas crianças – caixa de papelão

forrada por figuras associadas ao universo infantil provenientes de revistas – “estava

sucateada”, segundo uma das professoras. Perguntei como haviam conseguido os brinquedos

e se o poder público repassa verbas para repô-los. A resposta primeira foi uma gargalhada

sonora por parte da professora, que entre risadas, responde que “a prefeitura não repassa

verba decente nem para comida, que dirá para brinquedo.” Aqueles da caixa foram

39 Os tazzos são peças achatadas de metal ou plástico, geralmente encontradas em salgadinhos, como brinde.

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conseguidos por doação de uma entidade filantrópica, frutos de uma campanha, “eles eram

bem novinhos quando vieram há cinco anos atrás!”, relata a Professora 3. Observei que para

as crianças, eles eram preciosos, tal era a euforia ao verem a famosa caixa.

Diário de Observações – 04/04/2005 – As turmas de Jardim 1 e Jardim 2 encontravam-se nas salas de aula quando cheguei, dei bom dia a todos, perguntei se estava tudo bem e fiquei por ali. Visualizei um grupo de meninas envolvidas em organizar algumas peças de um jogo de montar, separam-nas por cor e forma, fui chegando mais perto para ouvi-las e consegui entender o que faziam. Organizavam uma venda, os produtos eram: refrigerantes, doces e saladas. Zum. G (menina): – Hoje só tem doce, coca e salada! Fala para a colega AJ (menina) que pergunta quais os produtos a serem comercializados. AJ: É quanto? Apontando para os doces (cubos azuis). G: É só uns ‘reals’ AP (menina), rapidamente responde os valores das mercadorias: - A coca é 2,00 real, o doce é 0,50 centavos e a salada é 0,70 centavos. Enquanto isso, S (menina) sai pela sala convidando quem quer comprar no mercado delas, fazendo propaganda dos produtos ali vendidos. As meninas, ao organizarem sua brincadeira, estabelecem para cada produto um tipo de peça e uma cor, revitalizam as poucas peças de um jogo que segundo elas mesmas não funciona – percebi que as crianças menores haviam mordido os encaixes.

Ilustração 15 - Foto das alunas G, S e AG brincando de venda

Naquele momento não importava se estas funcionariam como peças de encaixar, mas

sim que cumprissem com sua nova função, o brincar de venda. Segundo Benjamin (1984, p.

74), a capacidade da criança em organizar a brincadeira é dada a partir da faculdade mimética,

os brinquedos – que podem ser qualquer objeto, não somente os elaborados para a brincadeira

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infantil – são transformados enigmaticamente em objetos do brincar, deixando temporaria-

mente sua função de instrumento de lado e assumindo uma nova configuração:

[...] antes de penetrarmos pelo arrebatamento do amor, a existência e o ritmo, freqüentemente hostil e não mais vulnerável de um ser estranho, é possível que tenhamos vivenciado essa experiência desde muito cedo, através dos ritmos primordiais que se manifestam nesses jogos com objetos inanimados nas formas mais simples.

As crianças registram suas experiências de vida neste brincar de venda, aos cinco anos

já vão sozinhas, ou com irmãos mais velhos, à venda ou mercadinho para adquirirem produtos

para a família, poucos levam dinheiro para pagar as compras, a maioria marca na caderneta,

mas mesmo assim devem chegar em casa e relatar quanto gastaram.

Diário de Conversas – 05/04/2005 – Considerei oportuno conversar com algumas pessoas do Bairro, sobre as crianças da Escola, suas ações fora deste ambiente, muitas já fazem trabalho de gente grande, assumem responsabilidades. Dentre as conversas considerei importante trazer neste momento o relato do senhor A, vendedor de um mercadinho próximo à Escola, segundo ele “elas não levam lista do que comprar, ‘sabem de cabeça’ (memória), pois são poucos os pais que sabem escrever, e quando trazem lista está escrita com letra de criança”.

Na perspectiva da criança, o brincar não está delimitado como uma simples

representação ou fantasia, mas sim ela está tecendo sua estruturação de mundo, a partir da

rede de relações entrelaçadas ao longo da vida. Então, ao brincar, realinha o real, ou seja, a

função simbólica do brincar permeia as ações desse sujeito, ele experencia o real no brincar.

Este sujeito infantil, também sujeito lúdico, tem sua constituição e significação nas

práticas culturais, é pertinente afirmar que ele é resultado da construção histórica e cultural da

sociedade em que (con)vive. Talvez, devido a isso, por muitas vezes, retira do objeto

brinquedo a marca registrada da fábrica ou o desmonta, para assim poder registrar a sua

própria marca. Para Benjamin (1992b, p. 46), a criança desmonta o brinquedo para se

apoderar dele, assim, verá além do aparente, estabelecerá uma relação íntima, afetiva e de

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aproximação com o mesmo, pelo processo de (re)significação das partes. As crianças têm o

interesse pelos retalhos, cacos e pedaços, pois

Reconhecem nos restos o rosto que o mundo das coisas lhes mostra, precisamente a elas, a elas somente. Neles, as crianças não imitam tanto o mundo dos adultos, através daquilo que com eles constroem nas suas brincadeiras, criam uma nova relação súbita entre os materiais mais diversos. Assim, as crianças criam, elas próprias, o seu mundo das coisas, um mundo pequeno dentro do grande mundo. Deveríamos ter em consideração as normas deste pequeno mundo das coisas, quando deliberadamente quisermos criar algo para as crianças, em vez de preferirmos que a nossa acctividade, contudo quanto nela é requisito em instrumento, encontre, por si mesma, o caminho que a elas conduz.

Tomar cacos, retalhos, pedaços... com essas palavras lembro-me de AJ (menina). Lá

estava eu, encostada em uma das paredes da sala, observando um menino que brincava com

um urso, ao lado de um espelho, AJ aproxima-se com seu microfone – uma peça colorida de

plástico – e ao visualizar sua imagem refletida no espelho fala:

Zum. - Eu sou uma menina bonita, sou uma menina que canta, que fala e tem uma vitrola. Em seguida canta: “Eu te amo, tu me amas ...”- música cantada sempre no início da aula no momento da rodinha.

Ilustração 16 - Foto da menina AJ em seu simulacro na frente do espelho

No simulacro de AJ, a minha presença e o lugar no espaço que utilizava não existiam,

só existiam o espelho, a peça de plástico e ela. Consegui me afastar um pouco e tirei a foto

acima. O espelho é colado na parede, é uma junção de cacos que algum dia foram uma peça

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inteira, isso não interessa para a menina, naquele momento, ele refletia o que ela queria ver e

ouvir. Logo após S (menina) aproxima-se da colega e combinam a nova brincadeira, definem

quem será a Sandy e quem será a Vanessa Camargo.40

Como já afirmei, Fernandes (2004) ao observar o mundo infantil, percebe a existência

de uma cultura infantil, que é constituída por elementos exclusivos das crianças caracterizados

pela natureza lúdica, cujo suporte social está no grupo infantil em que a criança adquire, pela

interação, os diversos elementos do folclore infantil.

O sujeito infantil constitui suas narrativas e brincadeiras interagindo com as tradições

da cultura. Além de incorporar a cultura dominante ele estará “[...] através da assimilação de

valores, conhecimentos e hábitos que a caracterizam, como também a sua renovação por meio

de processos de reconstrução e de reinvenção de novas formas de compreender e de agir sobre

a realidade.” (BORBA, 2005, p. 131).

Então, a criança (re)elabora situações vividas através do brincar, muitas delas

relacionadas com aspectos da vida adulta. Sendo essencialmente lúdica, a criança utiliza-se do

brincar como um aprendizado sociocultural, produz seus próprios brinquedos, registrando

neles suas histórias e a história de sua família, eles possuem as marcas do real e do imaginário

vividos por ela, a brincadeira pode ser considerada uma forma de interpretação dos

significados contidos nesses objetos. O mundo infantil é marcado pela história, é constituído

pelas relações que estabelece, isso também ocorre com seus jogos. As práticas culturais

relacionadas com o lúdico são tidas como

[...] espaços no interior dos quais os indivíduos compreendem a si e ao mundo [...] os brinquedos, enquanto elementos da vida social que se configuram determinados sentidos para as crianças, oferecem oportunidades para que elas percebam a si e aos outros como sujeitos que fazem parte do mundo social, e acabam por se constituir em estratégias através das quais os

40 Sandy e Vanessa Camargo são cantoras de ampla veiculação na mídia.

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diferentes grupos sociais usam a representação para fixar a sua identidade e a dos outros. (BUJES, 2000, p. 226-227).

Observo algumas relações que estas crianças estabelecem ao brincar. O brinquedo

mostra-se como um objeto complexo que necessita ser desvendado e simplificado. Esse

desvelamento possibilita a compreensão do funcionamento da cultura, ou seja, a criança, com

o brinquedo nas mãos, manipula uma imagem que será por ela decodificada. Quando este

brincar é desencadeado por situações vividas, as simulações desses fatos acontecem nos jogos

imaginários, reproduzindo os discursos da sociedade em que vive.

Florestan Fernandes (2004, p. 207), em 1961, já observava que as trocinhas formadas

por meninas “agrupam-se por habilidades femininas, brincando de ‘mamãe’, de fazer

‘comidinhas’, fazem ‘roupinhas’ para bonecas [...].” Hoje, ano de 2005, quarenta e quatro

anos após, essas tais “habilidades femininas” ainda aparecem, mas, em nossos dias, o sexo

feminino tem assumido as mesmas funções tradicionalmente ligadas ao sexo masculino, então

temos as secretárias, as professoras, as médicas, as veterinárias, as jogadoras de futebol ...

Zum. M (menina): V. vem aqui com a mamãe! V (menina): O que é mãe? M: Fica com o teu irmão que eu preciso ir trabalhar, o teu pai vai levá vocês para a creche, depois eu vou buscar, tá bom?

As alunas M e V brincam um bom tempo de mamãe e filhinha. Esta mãe representada

do jogo simbólico trabalha fora de casa e a menina tem suas responsabilidades, trabalha

cuidando do irmão, a continuidade da cena por elas montadas se resume na M (mãe) atender

ao telefone e marcar horários para consultas.

Observando M (5 anos), fica evidente a importância do trabalho da mãe, a

responsabilidade por ser mais velha no trabalho de casa e no cuidado com o irmão mais novo

(3 anos) – este depende dela, pois ele é a criança – a confiança na fala da mãe e a certeza que

após o trabalho viria buscá-los.

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A análise cultural do mundo infantil permite conhecer e compreender o brincar,

possibilitando ao pesquisador entender as relações estabelecidas neste momento distinto do

grupo infantil, pois “[...] o interessante, para nós, é que se trata, exatamente, do aspecto da

socialização, elaborando no seio dos próprios grupos infantis, ou seja: a educação da criança,

entre as crianças e pelas crianças.” (FERNANDES, 2004, p. 219).

Benjamin (1984, p. 72) acredita que o brinquedo é que coloca frente a frente a criança

e o adulto, esse confronto é muito mais da parte do adulto do que da criança, afirma isso a

partir da seguinte premissa “[...] pois de quem a criança recebe primeiramente seus

brinquedos se não deles?” Resta assim para a criança usar de sua imaginação e transformar

todo e qualquer objeto em brinquedo – primeiro projeto arquitetado pela criança para se tornar

outro –, sendo possível compreender por que razão o jogo é correlativo às transformações

profundas da personalidade.

A criança, ao brincar, não pensa nas intenções do adulto com aquele brinquedo,

brincadeira ou jogo, ela está no brincar e é o brincar. Nesta ação estará envolvida pela cultura,

pois ao considerar o brinquedo como artefato cultural da criança percebe-se como é a

sociedade, bem como o que esta sociedade pensa da criança, ou seja, a imagem que a

sociedade tem deste sujeito infantil.

A faculdade mimética, segundo Benjamin (1992b, p. 59), é muito importante para a

criança, pois, quando ela brinca “[...] não só a fazer de comerciante ou de professor, mas

também é um moinho de vento ou um comboio”, reorganiza o brincar no imaginário, sem

perder a utilidade real do objeto. Assim, as cadeiras que ora são os vagões do trem, logo a

seguir voltam a ser cadeiras.

Existe uma “[...] lei fundamental que, antes de todas as regras ou leis particulares rege

a totalidade do mundo do brinquedo: A Lei da Repetição” (BENJAMIN, 1984, p. 74). Para a

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criança, esta repetição é a intimidade com o jogo, cada vez que joga ou ouve uma história é

como se fosse a primeira vez, precisa ouvir e brincar centenas de vezes, experimentar todas

essas repetições, saboreando cada momento como se fosse único, renovando a experiência

daquele instante. Como o adulto que relata situações vividas e após sente um profundo alívio

e uma alegria redobrada, a criança

[...] volta a criar para si o fato vivido, começa mais uma vez do início. Aqui talvez se encontre a mais profunda raiz para a ambigüidade dos jogos alemães: repetir a mesma coisa seria o elemento verdadeiramente comum. A essência do brincar não é um ‘fazer como se’, mas um ‘fazer sempre novo’, transformação da experiência mais comovente em hábito [...] Todo o hábito entra na vida como brincadeira, e mesmo em suas formas mais enrijecidas sobrevive um restinho de jogo até o final. (BENJAMIN, 1984, p. 75).

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Ilustração 17 - Conjunto de cartuns de Francesco Tonucci sem título

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CAPÍTULO 3 – OS DISCURSOS QUE CONSTITUEM O BRINCAR NA “COLMÉIA”

E FORA DELA

[...] quando chegam à escola, já foram objeto de um conjunto de discursos, que produziram “posições de sujeito” [...]. A proliferação discursiva sobre os infantis, por exemplo, acaba por produzir múltiplas narrativas sobre a infância. Todas elas, ao falarem de modos de ser sujeito, interpelam, convocam e subjetivam. Os ditos sobre as crianças inventam infâncias ao mesmo tempo em que subjetivam os infantis instalam e legitimam formas de lidar com eles. (COSTA, 2004, p. 2-3).

O advento da modernidade possibilitou que muitas ciências se habilitassem a falar da

infância e de seu sujeito, a criança, em especial as chamadas “ciências psi” (psicologia,

pedagogia, psicopedagogia, psiquiatria,...). Tais ciências produziram e produzem verdades –

no sentido de verdades instituídas, e não de julgo de valores –, que, conforme Nikolas Rose

(1999), são aquelas que após serem veiculadas determinam novas formas de pensar e o que

deve ser feito, tanto por aqueles que possuem o licenciamento para falar as verdades quanto

por aqueles que estão sujeitos a elas.

Na instituição escolar, os sujeitos são subjetivados por muitos discursos – alguns com

mais e outros com menos intensidade. A noção de discurso à que me refiro, tal como Jennifer

M. Gore (2002, p. 9), não é a da lingüística que se preocupa principalmente com a estrutura da

linguagem, mas sim “[que o termo discurso] é utilizado tal como o é por Foucault e pelo pós-

estruturalismo: o foco está mais no conteúdo e no contexto da linguagem.” Assim como são

produzidos, esses discursos também são descartados, como se num clic o arquivo fosse

deletado ou jogado em uma lixeira virtual.

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Somos atravessados por verdades instituídas a todo o momento. As novas verdades

substituem as velhas como um relâmpago e, neste movimento, vão sendo constituídos os

discursos transitórios sobre a criança e a infância. São essas verdades que preocupam, como

afirma Nikolas Rose (1999, p. 34):

Minha preocupação é diferente. Não é com a verdade em algum sentido filosófico, mas com as formas pelas quais sistemas de verdades são estabelecidos, as formas pelas quais enunciados verdadeiros são produzidos e avaliados, com o “aparato” de verdade – os conceitos, regras, autoridades, procedimentos, métodos e técnicas através dos quais as verdades são efetivadas. [...] é com os novos regimes de verdade instalados pelo conhecimento da subjetividade, as novas formas de dizer coisas plausíveis sobre outros seres humanos e sobre nós mesmos [...].

As falas cruzam a instituição escolar, ocupam espaços e tempos em seu cotidiano e, é

claro, produzem em grande quantidade, diferentes narrativas que subjetivam as crianças.

Pode-se dizer que existem tantos tipos de crianças quanto os discursos que circulam sobre

elas, constituindo assim identidades infantis transitórias.

Somos subjetivados de diferentes formas pelos mesmos discursos, então não podemos

definir que todas as crianças de hoje vivem e brincam do mesmo jeito que os sujeitos

observados nesta pesquisa. Considerando que quando descrevemos ou explicamos “[alguém

ou algo] em uma narrativa ou discurso, temos a linguagem produzindo uma ‘realidade’,

instituindo algo como existente de tal forma.” (COSTA, 2000b, p. 77).

Alguns questionamentos instigam, por que não dizer conduzem, minhas observações.

Elas ultrapassam os muros da Escola Colméia, chegando até a minha casa, até meus filhos e a

meu local de trabalho, ou talvez, o caminho inverso. No início da pesquisa, estava claro que

iria ver – ouvir, falar, escrever – o brincar das crianças que freqüentavam essa Instituição.

Mas com o tempo, percebi que meus registros nos Diários de Observação e de Conversas

mostravam o que talvez no princípio eu não via. Pela força que possuem, os discursos

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ultrapassam a vontade das pessoas. Os discursos estão no mundo globalizado, não escolhem

quem, onde e como, independente da situação econômica penetram, atravessam e marcam os

corpos e a alma dos sujeitos.

Acredito que os significados instituídos à infância, na modernidade, não possuem

fôlego para sozinhos explicarem a infância contemporânea. Bujes (2002, p. 19) questiona, ao

mesmo tempo em que alerta, esta concepção moderna de criança como ser “[...]

transcendental, unitário, racional, estável –, precisa ser posta em questão [e deve dar lugar a

visão de criança como] sujeito de seu tempo, pressionada pelas condições do meio, marcada

por diferenças de gênero, classe, etnia, raça, idade, corpo etc.”

Os professores e as professoras sabem como trabalhar com estas crianças? Estas

crianças “da realidade virtual e da realidade real”, como as denomina Narodowski (1998). As

crianças chegam às escolas, colocando em cheque a idéia de aluno que até então predominava

no interior dessas instituições.

Narodowski (1998) fala do fim da infância, desta infância que era até então produto da

modernidade, pois, segundo o autor, na modernidade a instituição escolar era sustentada pelo

discurso pedagógico centrado no acordo entre família e escola. Sendo que a primeira passava

a tutela do corpo infantil para o professor (representante legítimo da escola) que, por sua vez,

deveria prepará-lo para o futuro, para a vida adulta. A segunda recebia o então corpo infantil

com a condição de que quem prevaleceria no processo escolar daquele aluno seria a cultura

escolar, não era considerada outra a não ser, única e exclusivamente, a escolar. Essa era a

aliança firmada entre as duas instituições em prol do aluno, do futuro Homem.

Na realidade, o que Narodowski afirma é que esta aliança foi tomando ao longo do

tempo outra “conformação” e, nos dias de hoje, nota-se que o acordo entre família e escola

encontra-se fragilizado, precisando tanto uma quanto a outra se (re)organizarem. Então a

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aliança foi rompida? Não, a aliança ainda existe, mas os termos que a regem são outros, ou

seja, esse “sentimento” de infância que ainda hoje experimentamos foi sendo desenvolvido e

assumindo diferentes formas com o passar dos tempos. Hoje, as crianças ingressam na escola

já subjetivadas por diferentes discursos, com a conseqüente produção de diferentes sujeitos

infantis.

Talvez tanto para a família quanto para a escola seria pertinente a (re)adequação à

cultura de tempo real, na qual seus filhos e alunos estão inseridos. Considerar essa cultura

como produtora de identidades, pois

[...] a produção de identidades está atravessada por relações de poder, ocorrendo em vários lugares, instituições, práticas, discursos a que o sujeito está submetido [...] ao buscar outros modos de olhar para as questões consideradas familiares poderíamos ampliar a possibilidade da diversidade no trato com a infância e as identidades dentro da escola (WESCHENFELDER, 2002, p. 19-20).

Segundo Steinberg e Kincheloe (2001), a cultura da mídia traz consigo a chamada

Pedagogia Cultural, esta perpassa a vida dos sujeitos tornando aparente o conflito que existe

entre a cultura escolar, a cultura familiar e a cultura da mídia. Esse conflito é representado

nos professores que consideram as crianças como se estivessem fora do mundo adulto, ou pela

atitude dos pais que, preocupados com situações práticas em relação à educação dos filhos,

delegam à escola toda a responsabilidade. No meio deste turbilhão está a criança que, plugada

na programação da televisão, aprende a contar, cantar, brincar e muitas ... muitas outras

coisas.

Walter Benjamin (1987, p. 198) utilizou o exemplo da “cultura de vidro”, inspirado no

romancista alemão Paul Scheerbart,41 para falar da pobreza de experiência da humanidade.

Segundo ele, os homens não querem uma nova experiência, mas livrar-se de toda a sua

41 Paul Scheerbart é citado no texto Experiência e Pobreza de Walter Benjamin, In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. v. 1.

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experiência, o que conta no agora é a rapidez de informações que chegam aos nossos olhos e

ouvidos. Olhos cansados para ver e ouvidos cansados para ouvir, o corpo do homem está

cansado. Inimigo do mistério, o vidro é duro, frio e a ele nada se fixa. Este Homem está

submerso pela correria do dia-a-dia, pensar em um “homem de vidro” com sua cultura de

vidro é possível, já que este é transparente, frio e sem aura, está cansado e

Ao cansaço segue o sono, e não raramente o sonho compensa a tristeza e o desânimo do dia, revelando a existência simples e grandiosa para a qual faltam forças quando se está acordado. A existência de Mickey Mouse é um desses sonhos do homem atual. É uma existência cheia de milagres, que não apenas superam os prodígios técnicos, mas zombam deles. [...] Natureza e técnica, primitivismo e conforto aqui se tornaram uma coisa só, e aos olhos das pessoas fatigadas com as infinitas complicações do dia-a-dia, e cujo objetivo de vida não emerge senão como um ponto de fuga remoto numa infindável perspectiva de meios, aparece uma existência redentora que, em cada episódio, é auto-suficiente, da maneira mais simples e ao mesmo tempo mais confortável, e onde um automóvel não pesa mais do que um chapéu de palha e a fruta da árvore se arredonda tão rapidamente como um balão inflável. [...] ficamos pobres. Fomos entregando, peça por peça, o patrimônio cultural da humanidade, muitas vezes tivemos que empenhá-lo por um centésimo de seu valor, para receber em troca a moeda miúda do “atual”.

Benjamin já anunciava em “Experiência e Pobreza”, escrito em 1933, o que no final

do século XX viria acontecer: a cultura infantil já não é mais criada e divulgada pelas crianças

para as crianças, ela é inventada pelas grandes corporações e propagada pela mídia e pelo

consumo. A cultura da mídia perpassa a vida da criança, levando-a muitas vezes, a adotar

formas de brincar, de vestir, de comportamento... Como já disse anteriormente, a indústria

brinquedista encontra aí seu filão, produz brinquedos com representações fiéis dos ícones que

povoam as estórias e os programas infantis do mundo do entretenimento infantil, como: Xuxa,

Homem Aranha, Batman, Emília, Barbie, Suzi, e muitos outros.

Assim, a constante reedição dos jogos, das brincadeiras e dos brinquedos tradicionais

na cultura lúdica infantil, como quebra-cabeça, memória, dominó, cantigas de roda, bonecas e

bonecos..., com figuras que remetem a esses ícones, saem das prateleiras das lojas de

brinquedos, saem de revistas ou da televisão, com o “passaporte liberado” para se inserirem

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no cotidiano das crianças, ultrapassam a esfera familiar e entram na instituição escolar, por

muitos caminhos.

O mercado brinquedista busca atender a todas as demandas vindas do social. Surge

uma infinidade de padrões desde as bonecas bebês, para as meninas serem mamães, até as

bonecas do tipo top models, que marcam o padrão de beleza e estilo de roupas aceitáveis, ou

para que a criança tenha uma amiga (em tamanho natural) para “passear com você” ou “juntas

eu e você.”42 Walter Benjamin (1984, p. 73), já afirmava que

[...] para a criança que brinca sua boneca é ora grande, ora pequena, [...] o humor subalterno, como expressão daquela insegurança da qual o burguês não consegue livrar-se ao relacionar-se com crianças, aparece no brinquedo com os grandes formatos. As ridículas distorções para as dimensões maiores, mais largas, afirmam-se, sobretudo como conseqüência de uma jovialidade nascida da consciência de culpa.[...] Quem quiser ver a caricatura do capital, sob a forma de mercadoria, precisa pensar em uma loja de brinquedos.

Esse autor questiona o consumismo do mercado brinquedista da sua época e por que

não dizer que essa questão é pertinente nos dias de hoje. Deixamos de analisar o médium,43

observamos e analisamos só o externo das partes do objeto brinquedo, considerando que a

produção de brinquedos é para as crianças e não como criação das próprias crianças. Investi-

gar só o tipo do jogo e sua preferência pela criança não basta, para Benjamin (1984, p. 74), o

importante é ver além do evidente, ou seja, a enigmática relação entre “[...] bastão e arco, pião

e fieira, bola e taco, investigar enfim o magnetismo que se estabelece entre as duas partes.”

Os brinquedos têm se tornado um importante item de consumo do mundo infantil,

aliás, tudo que se refere à criança. Através dos brinquedos, acontecem divulgações de outros

objetos que estão de uma forma ou de outra indiretamente vinculados a ele, como: materiais

escolares, roupas, calçados, alimentos, acessórios, móveis, entre outros, gerenciados por uma

42 Conforme propaganda de uma boneca amplamente veiculada na televisão. 43 Para Benjamin (1984), médium é o lugar em que está o, é o imediato e não simplesmente o meio, o que une as partes.

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grande corporação, que é a indústria midiática. A publicidade tem um importante papel a ser

desempenhado neste gerenciamento corporativo. O discurso publicitário é regido pelo

discurso da mídia, propaga o consumo infantil na medida em que veicula os brinquedos pelas

propagandas nos meios de comunicação em massa.

Neste momento, farei apenas a apresentação de discursos, pois não tenho como negar a

sua existência. Por hora, citarei alguns dos muitos discursos que circulam constituindo os

sujeitos infantis e o seu brincar.

3.1 “Vamos Passear na Floresta Enquanto seu Lobo não vem...”

E então, vamos passear na floresta enquanto seu lobo não vem? Quem não conhece

essa cantiga? Esta foi um das muitas cantigas de roda44 pesquisadas, observadas e registradas

por Florestan Fernandes entre os anos de 1949 e 1959 nas ‘trocinhas’ da cidade de São Paulo.

Consiste em uma roda simples com uma das crianças no meio para ser o lobo – este será o

pegador –, que após responder as perguntas prévias, perseguirá as demais crianças. No ano de

2000, Xuxa45 lança seu vídeo e CD “Xuxa só para Baixinhos 2”, ali encontramos a (re)edição

desta cantiga, muito animada, com figurino colorido e cenário deslumbrante, e, é claro, a

Xuxa,

Diário de Conversas – 14/04/2005 – A professora do Jardim 2 organiza a sala para receber as crianças da turma do Jardim 1. As turmas assistiriam juntas a uma fita VHS. Pergunto para a Professora o que seria assistido, logo ela responde, já com a fita à mão “É o filme da Xuxa, é fita nova”. Solicito a preciosidade para que pudesse ver, o título da fita é “Xuxa só para baixinhos 2”. Os alunos chegam e sentam em almofadas no chão. Começa a fita, em determinado momento apresenta a música ‘vamos passear na floresta enquanto seu lobo não vem’, fui pega de surpresa, pois há poucos dias havia lido a letra dessa música no

44 “As cantigas de roda são em regra, folguedos folclóricos [...] a forma mais comum é da roda simples, em que as crianças se movimentam e cantam, simultaneamente: uma (às vezes mais) vai para o centro da roda, havendo alternâncias, com freqüência de coro e solo.” (FERNANDES, 2004, p. 40, NT 11). 45 Xuxa – apresentadora de programa infantil na Rede Globo de Televisão, lançou este “kit” pela Som Livre S.A. Anexo 3.

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livro de Fernandes, com certeza, não era a primeira vez que a ouvia, mas o assombro – ou como dizem as crianças, ainda não havia caído a ficha –, e ela caiu neste momento. Perguntei para a professora mais próxima se ela já tinha ouvido falar nessa música. “Desde que a Xuxa lançou o CD, acho que esta música é dela”. Cheguei em casa e fui correndo à locadora retirar a fita para ver se constavam as referências das músicas. Para minha surpresa, ao ler a contracapa da VHS nada constava, então olhei o CD ali estava registrado o nome em Espanhol da música “Juguemos em el bosque” com a indicação da adaptação de Vanessa Alves para a versão brasileira.

Fernandes (2004, p. 32-33), no referido estudo, já citava a (re)edição de histórias e

brincadeiras. Acreditava que o novo, o velho e o arcaico se entrelaçam, coexistindo

organicamente, e nesta nova trama revelam

[...] duas coisas igualmente relevantes. Primeiro, que os elementos mais abstratos do folclore podem persistir através dos tempos, mesmo além dos quadros sociais mínimos para a sua atualização integrada. Segundo, que esses elementos não são infensos a uma renovação constante; ao contrário, eles se transformam ou se enriquecem, mediante aquisições ou objetivações novas, [...] sofre um pouco com os influxos do progresso. [...] certos veículos da civilização tendem a imiscuir-se no destino dos elementos folclóricos [discos para as crianças].

A maioria das professoras da Escola Colméia e de outras escolas, com quem

conversei, diz que conheceu a música pelo programa da Xuxa, poucas afirmam ter brincado

de roda embalados por ela, na sua infância ou com seus alunos e filhos. A nova roupagem

apresenta-se em uma organização diferente – as crianças não brincam de roda, somente

cantam e dançam a música. Eleanor Hilty (2001, p. 125-126), ao questionar se é real o papel

educativo que programas de televisão assumem, comenta que:

Os programas infantis se tornaram um convidado de presença constante nos nossos lares – um convidado cujas intenções podem não ser totalmente honradas. [...] Antes de pretender que os programas infantis de televisão sejam benéficos e de fazer uma avaliação crítica, eu argumentaria de qualquer modo que eles merecem a mesma consideração crítica que a literatura infantil, livros didáticos, brinquedos, etc. [...]. Xuxa, com sua roupa sedutora e músicas sugestivas, parece inspirar as crianças a níveis de excitação quase que maníacos. Embora o programa lide com assuntos não relacionados mas que são educacionais, confunde-me a idéia de que alguém em algum lugar na “Terra dos Produtores de TV” pense que o papel da Xuxa é um bom modelo para as crianças pequenas ou mesmo que este programa seja educativo em qualquer concepção séria que se tenha da palavra.

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Convidados, que muitas vezes não são bem-vindos, mas entram nas nossas casas e

escolas, ensinando as nossas crianças o que é certo ou errado, valores que antes eram da

competência da Instituição familiar e da Instituição escolar. Apesar disso, sabemos que nossas

crianças estão bem guardadas dentro de nossas casas sem correr risco algum. Será? Tonucci

(1997) ilustra em “Um amigo fiel” o discurso de segurança oferecida pela mídia e aceito pelas

famílias:

Ilustração 18 - Conjunto de cartuns "Um amigo fiel"

3.2 E nas Prateleiras.... Dominós, Memórias e Quebra-cabeças!

Os jogos já tradicionais como dominós, quebra-cabeças, memória ... recebem uma

nova “cara” ou uma nova estampa. Para serem atrativos ao público infantil, e portanto

adquiridos por e para ele, devem vir com os novos personagens do universo infantil, na sua

maioria veiculados pela televisão.

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Não pretendo fazer uma defesa incontestável ou um saudosismo piegas aos velhos

personagens. Cito-os para lembrar o quanto é veloz o descarte que a mídia é capaz de fazer,46

com uma rapidez assustadora para deletá-los do mundo televisivo, colocando outros, tempora-

riamente, no lugar.

Não vemos mais estes jogos e outros brinquedos com a estampa do Zorro,47 do Topo

Gigio,48 do Garibaldo,49 ou do Jaspion,50 entre tantos outros já descartados. Esses personagens

só voltarão a povoar as telinhas ou prateleiras se forem (re)editados, assim como foi o filme

“A Fantástica Fábrica de Chocolate”, da década de 70, quando lotou os cinemas das cidades

do mundo todo e, hoje, no ano 2005, volta – como se fosse a primeira vez – a lotar salas de

cinema espalhadas por este mesmo mundo, com um gosto de “já te vi” entre “lupa-lupas”,51

chocolates e gomas de mascar.

Diário de conversas – 21/06/2005: Procurei conversar com vendedores e vendedoras de duas lojas que comercializam brinquedos, nesta cidade. Após me apresentar, fiz alguns questionamentos sobre a venda de jogos e brinquedos. Uma das questões foi “Quando um adulto vem adquirir um desses produtos sozinho, qual ele leva? E quando tem uma criança junto qual é o escolhido?” Apesar de serem duas lojas e vendedores diferentes, as respostas pareciam compiladas uns dos outros: “Quando o pai ou a mãe vem sozinhos, eles levam o mais barato, mas se a criança estiver junto, aí eles mandam! Escolhem as meninas os da Barbie, Suzi ou princesas, e os meninos os de ação como Hot Wills, Batman, Homem Aranha ou do Sherek”, ou “Se o adulto está sozinho, ele escolhe o mais barato se não tiver uma encomenda da criança, senão ele leva o mais acessível, já tive casos deles voltarem para trocar, mas eles tentam levar o mais barato.” Ou seja, para as crianças deve ter a figura do ícone, referendando o filme ou brinquedo.

Nas lojas solicitei que mostrassem os tipos de jogos de memória, quebra-cabeças e

uma boneca do tipo Bebê. Ouvi vários relatos de casos, muitas vezes “engraçados”, segundo

46 Para outros personagens, ver retrospectiva realizada pela Revista Cláudia, da Editora Abril, out/2001, anexo 4. 47 Zorro, personagem que usava máscara e capa, com seu cavalo negro, roubava dos ricos para dar aos pobres, como um Robin Hood latino, lutava contra a tirania para acabar com o sofrimento do povo. 48 Topo Gigio, um rato orelhudo, personagem de animação feita com bonecos de borracha. 49 Garibaldo é o nome do personagem principal do programa infantil Vila Sésamo, domínio na década de 70. 50 Jaspion, herói guerreiro do seriado japonês, que levava o mesmo nome, lutava contra monstros e personagens maléficos. 51 Lupa lupas são denominados no enredo do filme, os trabalhadores da fábrica, na maioria anões.

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os vendedores e vendedoras, como o de uma mãe que comprou uma boneca para ela e uma

para a filha, ou de crianças chorando porque a boneca escolhida não tinha o desenho da Xuxa

na caixa que seria jogada no lixo assim que chegasse em casa.

Entre as diferentes estampas encontrei diferentes valores para o mesmo jogo, da

mesma marca e com o mesmo material usado na fabricação, assim como na boneca, conforme

apresento nas tabelas52 abaixo:

Jogo de Memória Barbie – Grow R$ 20,50 Figuras – Grow R$ 16,28 Turma da Mônica – Grow R$ 19,25 Hello KIT – Grow R$ 20,50

Quebra-Cabeça Barbie – 50 pç – Grow R$ 19,25 Hello KIT – 100pç – Grow R$ 14,90 Paisagem – 500pç – Grow R$ 24,00 Hot Wills – 100pç – Mattell R$ 10,50

Bonecas Baby Júnior – Cotiplás R$ 23,10 Baixinhos só da Xuxa – Cotiplás R$ 58,80

Ao realizar a tomada de preços, tive a intenção de mostrar a diferença de valores. Não

como uma licitação de preços na qual o importante são os valores monetários, o custo em

reais, mas o valor legitimado pelo ícone ao brinquedo. Como o exemplo das bonecas: o

material, o rosto e o corpo são os mesmos, a mais barata não possui a roupa com a estampa da

Xuxa como possui a mais cara. A marca valoriza a boneca como se fosse um produto cotado

na Bolsa de Valores, tanto em R$ como em legitimidade, que pode ser atribuída pela mídia.

52Valores comparativos de brinquedos, coletados nos dias 21, 22, 23 de junho de 2005.

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As crianças sabem o que querem. Chegam ao extremo da tirania para conquistar o

objeto de desejo, ou momentaneamente desejado. Estamos inseridos na e perpassados pela

cultura do zapping. Assim denominada por Mariano Narodowski (1998), essa cultura é a da

satisfação imediata que, da mesma forma que um filme que pode ser adiantado ou atrasado de

acordo com a vontade do espectador, com a rapidez de um clic troca-se de vontade e de

interesses.

Muitas famílias adquirem os produtos para a satisfação infantil no chamado “mercado

paralelo” (camelódromo ou shopping popular). São produtos similares aos fabricados pelas

grandes indústrias. É por meio deste mercado que as crianças das classes populares

conquistam esses objetos de desejo.

O brinquedo – objeto da ação da criança – é cultural na medida em que está

relacionado com as práticas sociais de cultura na qual estão inseridas as crianças que o

manipulam. A cultura atribui sentidos a estes objetos. Através da linguagem, constrói

significados para que estes sejam associados a lugares, a determinados grupos sociais – nesse

caso, em especial, os grupos infantis:

[...] porque adquiriu um certo perfil social ou identidades. Ele também pode ser apresentado de diferentes maneiras, em diferentes linguagens, em veículos de divulgação diversos [...]. As representações de brinquedo, pré-existentes, num determinado universo cultural terão, portanto, sobre crianças e adultos um forte papel modulador nos significados que estes mesmos sujeitos passam a atribuir a tais objetos. (BUJES, 2000, p. 210-211).

Na sociedade, o brinquedo assume o significado que atribuímos a ele. Através do

discurso – nossa grande e poderosa fôrma –, determinamos o caráter que deverá ter em

diferentes situações e contextos: caráter de bagunça, se estiver espalhado pelo chão da casa ou

escola; o de pedagógico, quando os adultos camuflam com a seriedade, com objetivos

pedagógicos a serem alcançados, desconsiderando a ação da criança; o de perigoso, se ao

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brincarem, as crianças trazem à tona situações de risco, como a violência e a sexualidade; o de

regrado, quando se é permitido brincar com a supervisão ou permissão do adulto, por isso

bonecas e carrinhos em prateleiras altas para serem admiradas(os) e não tocadas(os); o de

objeto clínico, se utilizado para análises comportamentais e diagnósticos psicológicos; o de

monetário, quando vira moeda corrente para controle e compra de corpos, em atitudes e

posturas como a tão conhecida frase: “faça isso que te dou aquilo”. Há muitos outros que

poderia enumerar, mas o que realmente a criança quer é brincar.

3.3 Entre Chocolates, Salgadinhos, Lanches e... um Brinquedo!

A indústria alimentícia também dá as cartas no jogo do consumismo, organiza

estratégias para entrar no mercado promissor de vendas, que é a infância. Lembro-me bem

que, quando criança, para conseguir um brinquedo teria que esperar as tradicionais festas

comemorativas como Natal, aniversário e Páscoa, ou fabricá-los. Por volta dos meus oito

anos, comecei a esperar ansiosamente pela visita do meu avô Manuel, pois ele trazia nos

bolsos algumas moedas e, antes de entregá-las, dizia “coloque na poupança”. Realmente, nós

corríamos depositá-las no mercadinho mais próximo, adquirindo sorvete seco, maria-mole e

gomas de mascar que eram acompanhados por anéis preciosos, balões e bolas de gude.

A conquista desses prêmios pode ser alcançada por todos. Desde os mais baratos,

como as figurinhas das gomas de mascar, balas ou pirulitos com tatuagens, até produtos que

custam o valor aproximado de uma cesta básica. Os ovos de páscoa com brinquedos servem

para ilustrar essa lógica do mercado, dos menores aos maiores, todos vêm acompanhados por

relíquias a serem colecionadas.

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As indústrias aproveitam-se dos interesses da criança pelas coleções. Walter Benjamin

(1992b, p. 71-72) apresenta esta criança, grande colecionadora de objetos dos mais simples

aos mais sofisticados, no texto “Criança Desordenada”

Cada pedra que ela encontra, cada flor colhida e cada borboleta apanhada é já para ela um início de uma colecção, e tudo quanto possui forma para ela uma única colecção. Nela, esta paixão mostra o seu verdadeiro rosto, o agudo olhar índio que, nos antiquários, investigadores, bibliómanos, continua a arder, se bem que apenas turvo e maníaco. Mas entra na vida, transforma-se em caçador. Caça os espíritos cujo rastro pressente nas coisas; entre espíritos e coisas, passam-se anos durante os quais o seu campo de visão permanece livre de pessoas. Nela, as coisas passam-se como nos sonhos: não conhece nada que seja constante; as coisas sucedem-lhe, assim julga, vão ao seu encontro, esbarram com ela [...].

A aliança entre a indústria alimentícia, brinquedista e a midiática é recente, tem no

máximo 50 anos. Iniciou timidamente, com produtos simples, porém hoje encontra-se

estampada em rótulos e cartazes convidativos. Os produtos não precisam vir acompanhados

de objetos, desde que as imagens de personagens infantis estejam ali, em figurinhas ou

adesivos.

Proliferam-se pela mídia escrita ou falada promoções do tipo: adquira um pacote de

pipoca Yoki na promoção “São João Premiado” e poderá encontrar um vale premiado para

trocar por um Hot Wills53 ou uma Fofolete.54 Pergunto: o que a boneca e o carrinho têm a ver

com as festas juninas? A pipoca tudo bem, mas os brinquedos? E o bolinho com a imagem do

personagem Shrek, do filme da Disney Shrek 2, os componentes são diferentes do bolinho

sem o Shrek? E tantos outros produtos que são comercializados a partir de um único

personagem.55

53 Carrinho colecionável da Indústria Mattel. 54 Boneca de bolso produzida pelas Indústrias Estrela. 55 Ver no anexo 5 algumas ofertas de produtos com o personagem Batman.

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Ilustração 19 - Foto do cartaz da promoção Ilustração 20 - Foto da embalagem do bolinho "São João premiado" das pipocas Yoki Bauduco com o personagem Shrek

No recesso escolar de 2005, passeando pelas ruas de uma cidade chamada Shopping –

templo de consumo –, com minha mãe (65 anos) e minha filha (5 anos), deparamo-nos com o

ponto de encontro de todas as ruas:56 a praça de alimentação. Minha mãe rapidamente disse:

“Vamos comprar um McLanche feliz para a Dudu? Daí ela pode escolher um bichinho”. E é

claro que a Maria Eduarda adorou a idéia e prontamente escolheu um para ela no quadro de

opções. O lanche, em segundo plano, foi ingerido em casa, após ter sido cuidadosamente

retirado da caixa. A embalagem é muito colorida, chama mais atenção que o seu conteúdo

(anexo 6), com textos apelativos “Amo muito tudo isso”, estampados sobrepostos a imagens

de crianças alegres, fotos do ícone Ronald McDonald que, aliás, não envelhece nunca.

Enquanto recebiam os lanches, registrei a felicidade de um menino ao escolher o “seu” mais

novo amigo.

Ilustração 21 - Foto do menino escolhendo o bichinho/brinde que acompanhará o seu lanche

56 Assim como uma cidade de pequeno porte, os Shoppings Centers se configuram, a praça central é onde todas as ruas se encontram, ali estão os poderes da cidade como prefeitura, igrejas, bancos e comércio.

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Não questiono a vovó fazendo a alegria da neta com o lanche e o bichinho, chamo a

atenção para o poder das grandes corporações, as mensagens que nos são passadas, as

verdades colocadas pelo ‘tecno-poder’ como afirma Kincheloe (2001, p. 397):

Uma cultura infantil dissimulada sempre existiu nos playgrounds e nas escolas. A cultura infantil do passado, no entanto, foi produzida por crianças e propagada pelo contato criança - criança. Hoje, a cultura infantil pós-moderna é criada por adultos e disseminada através da televisão com o propósito de induzir as crianças a consumir. Uma vez que elas subvertem cuidadosamente a obsessão de pais de classe média com as realizações e o progresso, considerados um empreendimento sério e com um “tempo de qualidade” orientado para o autodesenvolvimento (uma subversão que na minha opinião provavelmente contribui para o bem público), os publicitários conectam a cultura infantil com seus produtos. Os comerciais do Mcdonald’s refletem esses temas, embora menos espalhafatosamente do que muitos anunciantes.

Essa indução gera a vontade e a necessidade de ter. Na Escola Colméia registrei um

fato que certamente ilustraria a fala de Joe Kincheloe acima citada. Os objetos envolvidos

foram dois tazzos do Bob Esponja57 e seus amigos. Estes objetos são obtidos nos pacotes dos

salgadinhos da Elma Chips, poucas crianças dessa Escola têm acesso a eles, “custam caro”

segundo G (menino):

Diário de observações – 28/04/2005: I e G (meninos) estavam brincando juntos quando I rapidamente levanta e vai até sua mochila pegar algo. Ao retornar, mostra seu precioso tesouro e diz: I: Olha G, é o tazzo do Bob Esponja, eu tenho um do Patrik e outro do Bob, vamo jogá? G: Não dá, eu não tenho tazzo pra jogá, eles custam caro ... só se a gente fizer Solicitam para a professora papel e lápis para desenhar, voltam para o mesmo lugar e ativamente desenham círculos com desenhos dentro nomeando-os com os personagens do desenho animado – Bob Esponja, Patrik, Lula Molesco, Sr. Sirigueijo, Sandy e outros. E iniciam o jogo com G explicando como funcionaria: G: Meu pai me ensinô, é assim óh, você pega a mão e faz assim – bate com a palma da mão no monte de figuras desenhadas.

57 Bob Esponja personagem de desenho animado com o mesmo nome, veiculado pela rede Globo no programa da Xuxa.

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Ilustração 22 - Foto dos meninos G e I jogando Tazzo/Bafo do Bob Esponja

O que G e I fazem é uma adequação aos tazzos que eles não têm, a partir das

figuras jogam o famoso “Bafo”,58 já que a lógica do jogo é a mesma, virar os tazzos ou as

figuras.

As indústrias, ao venderem seus produtos, vendem a idéia de como e com o que se

brinca nos dias de hoje. Já no final da década de 40, Florestan Fernandes (2004) relata como

realizou sua pesquisa. Ele diz que muitas vezes perguntou “Com quem você aprendeu isso?”

As respostas eram praticamente as mesmas “Do meu amigo X, do meu pai ou mãe, ou na

rua”. Se perguntarmos às crianças de hoje, elas responderiam: “Pela televisão da Xuxa, do

Mc, do fandangos, do Cereal tal, da goma de mascar, etc” e, certamente, nos levariam para o

Shopping, aos supermercados, ao mercadinho ou bolicho e ao camelódromo59- como alguns

dos muitos lugares –, nos quais seriam observados os produtos a serem adquiridos, como a

boneca que imita a Barbie ou como o pião que vem com este cereal.

58 O jogo do Bafo consiste em virar o maior número de figurinhas com a palma da mão em concha, algumas crianças assopram na palma da mão para que ela fique úmida, por isso o nome de bafo. As figurinhas são, na maioria, provenientes de goma de mascar ou álbuns. 59 Camelódromo: denominação regional para um conjunto de pequenos comerciantes de produtos importados, na maioria provenientes do Paraguai. Nestas bancas podemos encontrar cópias fiéis de muitos produtos, entre os quais, brinquedos, a um preço acessível.

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Ilustração 23 - Foto da embalagem do sucrilhos Ilustração 24 - Foto do pião que acompanha o sucrilhos Kellogg's na promoção Tony twister e de dois tazzos do Bob Esponja

A existência desses brinquedos acompanhando os alimentos deixa de estar respaldada

no ato brincar, mas no como e com o que se deve brincar. Então, se hoje é veiculada pela

publicidade que se brinca com o pião como Tony,60 brinca-se; ou que para ser legal tem que

brincar com o “Xodó61 porque ele não faz xixi pela casa e nem baba como um cachorro”, as

crianças vão às compras para não ficarem fora da nova onda.

Essas questões estão amparadas na sociedade, no discurso da mídia e nas verdades

transitórias instituídas por ela. Produzem a cultura do consumo, na qual esse brincar não é

inocente, é definido pelo social e pelo cultural. Atitudes como pedir à professora que durante

a aula dê um tempo para alimentar seu Xodó, senão ele morrerá, ou então, catar latinhas nas

lixeiras da praça central, retirando os anéis – no passeio realizado em fevereiro de 2005 – para

posteriormente trocá-los por um pingente de celular62 que seria usado como chaveiro, nos

mostram o poder destas indústrias do entretenimento, como esclarece Costa (2004, p. 4):

[...] inúmeros artefatos da cultura contemporânea, especialmente da cultura popular midiática, moldada, como sabemos, por forças políticas, econô-micas, sociais e culturais, têm não só invadido a escola como disputado com ela o espaço pedagógico. A indústria do entretenimento não se restringe a fazer circular mercadorias, ela protagoniza uma pedagogia cultural regida

60 Tony é o personagem tigre que identifica o cereal de milho das indústrias Kellogg’s. 61 Xodó, bichinho virtual que acompanha as sandálias da Xuxa. 62 Promoção realizada pela Pepsi Cola, no produto Pepsi Twist. A cada 10 anéis trocava-se por um pingente com o personagem limão.

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por poderosas dinâmicas comerciais, assentadas sobre estética e prazer, que se impõe sobre as vidas privadas e públicas de crianças, jovens e adultos.

3.4 “Educar é Ensinar a Brincar / Educar é Ensinar a Crescer / Estar Perto e Participar

– é Divertido, eu sei, pode ser ...”63

Ilustração 25 - Figura representativo do item "Brincar" na Campanha "Educar é Tudo" do Jornal Zero

Hora da Rede Brasil Sul de Telecomunicações

A Campanha “Educar é Tudo”, de responsabilidade da RBS TV, nos Estados de Santa

Catarina e Rio Grande do Sul, está pelas rádios, jornais e televisão a partir do mês de abril do

ano de 2005, momento em que realizo minha pesquisa. Detive-me em observar os

suplementos que o Jornal Zero Hora veicula e selecionar os que se referem ao brincar e como

são vários temas a serem abordados, os suplementos são editados duas ou três vezes por

semana. Fui instigada a trazer este comentário do “jornal como consumo dos profissionais”,

pois as conexões com a temática da minha pesquisa são inúmeras.

Esta campanha iniciou no dia 28/04/2005 e se estenderá até o final do mês de outubro

desse mesmo ano, com “forte desejo” de que “Brincar, ouvir, permitir, errar, dar exemplo e

63 Esse fragmento é da música tema da Campanha “Educar é Tudo”, da Rede Brasil Sul de Telecomunicações – RBS – filiada da Rede Globo.

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limites se tornarão sinônimo de educação” (ZH 28/04/2005, p. 4). Nesse mesmo dia, a

reportagem na qual era enfatizado o tema brincar tinha como título “Para ser feliz, a criança

tem que brincar” e na sessão “saiba mais” perguntas e respostas sobre o brincar,

acompanhadas na mesma página por quatro sugestões de brincadeiras. Até aí, tudo bem!

No fragmento do texto do dia 28/04/2005, da página 4, do referido jornal, o que chama

a atenção é a palavra “TORNARÃO”, como se o marco inicial para o brincar fosse ali,

naquele momento. Evidencia que a partir deste dia eles – brincar, ouvir, permitir, errar, dar

exemplo e limites –, foram descobertos por todas as pessoas e são sinônimo de educação!

A sensação é de que se descobre novamente a América! Desconsideram-se todas

pesquisas realizadas até este fatídico dia do século XXI. Como um discurso endereçado vem

ensinar a educadores e educadoras, babás, famílias e interessados que brincar é importante

para a criança? Brincando de “vai e vem, ali babá e os 40 ladrões, nariz pegador e barata

assustada”, entre outras brincadeiras,64 as crianças alcançarão os objetivos propostos para a

aprendizagem? É a poderosa mídia escrita como mestre de professores e professoras,

ensinando a novas e a velhas gerações brincadeiras para obterem a tão desejada felicidade.

O editorial desta mesma edição do jornal ZH denuncia o número exorbitante de

crianças que trabalham ao invés de brincarem. É marcada nesse discurso a função do brincar e

do estudo como uma preparação para a vida adulta, trazendo novamente uma concepção que

desconsidera a criança como sujeito, uma simples cera virgem que deverá ser cunhada, a

massa a ser preparada, como diz Benjamin (1989, p. 196): “Entre os grandes criadores

sempre houve aqueles implacáveis, cuja primeira medida era fazer tabula rasa. Na verdade

eles queriam uma prancheta, pois foram construtores.”

64 Brincadeiras editadas na sessão “Divirta-se”, já referida no texto.

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3.5 Formas e Modelos?

O lugar da criança na escola é marcado, e por que não dizer fabricado, pelos discursos

desta e de outras instituições – ciências, meios de comunicação em massa, mídia etc. Como

Maria Isabel Bujes (2002,p. 21), tomo a infância como um sujeito fabricado, um objeto

moldado pelos discursos, mídia, consumismo, condições da cultura que, mediados pela

linguagem, vão determinando as identidades infantis e as formas de ser do sujeito infantil pois

“Nessa concepção [virada lingüística], a linguagem não faz a mediação entre o que vemos e o

que pensamos: ela constitui o próprio pensamento.”

Poderia citar aqui Steinberg e Kincheloe (2001) e Costa (2005) que também afirmam

que é nessas relações discursivas que somos chamados a desempenhar papéis em enredos que

mal conhecemos e como seres amorfos assumimos diferentes formas em uma velocidade

impressionante, o que Costa (2005) chama de “ritmo frenético”. Condicionam e subjetivam

nosso discurso, assim como nos mostra a aluna S:

Diário de observações – 02/06/2005: As crianças brincavam antes do café da manhã. Estavam em um canto da sala as meninas S e M, pelo que percebi estavam organizando sua brincadeira, e o colega J (menino) começou a interferir, chegando a irritar as colegas, até que a colega S (menina) o pega pelo braço e solicita à M (menina): Zum. S: O Dr. Beuli está aí? M: Sim! S: Preciso de uma consulta para o J, ele está impossível hoje, quero a receita, ele tem que tomá remédio. M: O que ele tem? S: Ele tá incomodando. – Olha severamente para o colega J.

Para S, a medicação para acalmar J é necessária, pois segundo a Professora 2, “é um

dos meninos mais agitados da sala”, eis o discurso da Hiperatividade. A criança muito

agitada precisa ser medicada para ser controlada. Esta pode ser também aquela que questiona

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e espera respostas, a bisbilhoteira ou a que mexe em tudo, a que vai de encontro ao adulto,

confrontando-o.

As crianças de hoje não agem como as crianças do século XVIII ou XIX, não esperam

a permissão do adulto para falar, pensar ou agir. “A informação adulta é incontrolável; agora,

a criança vê o mundo como ele é (ou pelo menos como é descrito pelos produtores de

informação corporativos).” (STEINBERG; KINCHELOE, 2001, p. 34).

Assim como eu, vocês podem estar se perguntando: de onde S ouviu o discurso do

remédio? E por quem foi informada que ele serve para controlar o colega? Da professora ou

da televisão? Coincidência ou não, alguns dias antes deste registro, tenho a conversa das

professoras sobre um determinado programa de rádio em uma das emissoras locais:

Diário de conversas – 31/05/2005: O dia estava chuvoso, poucas crianças haviam chegado na escola, e foram reunidas em uma sala de aula para que todas brincassem com a “caixa de brinquedos”. As professoras falavam sobre uma entrevista que ouviram no programa divulgado por uma das emissoras de rádio da cidade, era sobre a “índole das crianças”:

Professora 5: Vocês viram, que o homem falou? A criança nasce com a índole formada. Se nascer ruim, até podemos moldar o caráter, mas a índole não, é para cuidar a criança agressiva, a que bate. As demais colegas concordam, e a Professora 2 acrescenta: Até os sete anos que a gente pode modificá-los.

As falas das professoras demonstram a preocupação em modelar os alunos para a

sociedade. Francesco Tonucci, no ano de 1970, desenha seu cartum “A grande máquina

escolar” (Ilustração 26), que retrata esta antiga/nova preocupação de adequação dos alunos

para que apenas os ‘homogeneamente capacitados’ tenham sucesso, o resto não adaptado ou

fora do padrão ideal vai para o cano de descarte:

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Ilustração 26 - "A grande máquina escolar"

O discurso coloca as crianças em julgamento e o veredicto é que “Até os sete anos que

a gente pode modificá-los”, caso não tomem a forma adequada para conviver nesta sociedade,

estarão fora do padrão, colocando em risco a vida dos cidadãos já adequados. Então, é preciso

vigiar o comportamento, punir, se necessário, a má conduta para moldar o caráter, pois a

índole não é possível, e é claro medicar para auxiliar no controle de seus corpos. As crianças

são um “[...] produto de um complexo processo de definição: as crianças são constantemente

produzidas pelos discursos que se enunciam sobre elas.” (BUJES, 2002, p. 24).

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CAMINHOS PERCORRIDOS... ABRINDO NOVAS POSSIBILIDADES

Ilustração 27 - "A pele: limite entre eu e o mundo" Ilustração 28 - "Se ignorarmos nossos limites, não podemos manter relações com os outros"

É chegado o momento de encerrar esta escrita. Acredito, assim como outros

pesquisadores, que dar por encerrada não significa fechá-la para sempre, mas percebê-la em

constante movimento. Idéias ficam pendentes para fomentar reflexões e impulsionar outras

buscas e, talvez, novas pesquisas.

Para entendê-la neste movimento dual de acabado/inacabado, retomo essa escrita para

mim e para o leitor:

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É importante lembrar das escolhas que fiz para essa escrita. Como referência teórica,

busquei auxílio nos Estudos Culturais Contemporâneos, em Walter Benjamin e Florestan

Fernandes, entre outros, cujo ponto comum é a centralidade na cultura, importante para esta

pesquisa. O viés etnográfico permitiu o estar lá, diluir-me como pesquisadora, para registrar e

analisar posteriormente no escrever aqui.

No primeiro capítulo trouxe a Escola Colméia para o conhecimento de todos,

apresentando seus espaços, seus tempos, suas rotinas, sua estrutura física precária, seus

documentos, entre outros. Como já afirmei, tracei o seu mapa para poder me encontrar e me

perder nela, mantendo a distância necessária para enxergá-la com os olhos da pesquisadora.

No segundo capítulo procurei descrever o brincar do sujeito infantil nessa Escola,

como e quando ele acontece. Ao relatar as brincadeiras que observei pude constatar que essas

situações acontecem em tempos determinados ao longo da rotina escolar – que amarra –, mas

não consegue impedi-la por completo, pois as crianças são impulsionadas pela ludicidade.

Procuro traçar um paralelo entre como brincavam as professoras e como brincam seus alunos,

considerando como referencial as conversas e entrevistas realizadas. Sempre auxiliada

teoricamente por Walter Benjamin, por Florestan Fernandes e pelas contribuições de alguns

dos autores dos Estudos Culturais Contemporâneos nas minhas reflexões e análises.

No terceiro capítulo apresento alguns dos discursos que circulam na Escola Colméia e

fora dela. Discursos esses que marcam a forma certa de brincar para a criança, e tentam impor

as novas “verdades” sobre o brincar. Considerei alguns discursos a partir dos que circulavam

pela Escola Colméia (da mídia, da publicidade, dos pais, das crianças e das professoras).

Evidencio assim o conflito entre a cultura da escola, a cultura da familia e a cultura da mídia.

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Ao iniciar a elaboração desta primeira escrita trouxe o texto “Canteiro de Obras”, de

Benjamin e é a este autor que recorro novamente para ilustrar que existem outros possíveis

caminhos:

TORSO: Só quem soubesse contemplar o próprio passado como fruto de cocção e da necessidade seria capaz de, em cada momento presente, valorizar ao máximo para si. Porque aquilo que se viveu é, na melhor das hipóteses, comparáveis a uma bela escultura à qual, no transporte, quebraram todos os membros, e nada mais oferece que o bloco precioso a partir do qual terá de se esculpir a forma do futuro. (BENJAMIN, 1992b, p.74).

Como no “Torso” benjaminiano que, sem pernas e braços, volta à origem esperando

novos entalhes para esculpi-lo no futuro próximo, a criança refaz o brincar, que para ela nunca

estará dado, pronto ou acabado. Essa foi minha grande preocupação ao longo desta escrita,

trazer à tona a capacidade de a criança refazer seu brincar como algo sempre novo. Motivo

pelo qual escolhi os escritos de Walter Benjamin e de Florestan Fernandes, importantes para

este trabalho pois, ao falarem das crianças, não o fazem de forma romântica, entendem-nas

como alguém que está na história, inseridas numa classe social, parte da cultura e produzindo

cultura. É esse movimento constante de recriação do ato de brincar que chamarei de pulo do

gato.65

O Pulo do Gato

O pulo do gato do brincar em Florestan Fernandes e Walter Benjamin é que no

primeiro o brincar para a criança é um aprender a estar com/em grupo e no segundo é o

exercício individual da criança romper com o real crítico. Talvez, para explicitar melhor,

deveria inverter a ordem dos autores.

A criança benjaminiana brinca sempre como se fosse a primeira vez, ou seja, sua

capacidade de recriar as brincadeiras, jogos e brinquedos propicia-lhe um gosto de “quero 65 Agradeço de forma especial pelo empréstimo dessa expressão à professora Dra. Cláudia Luiza Caimi, pelo presente recebido.

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mais” no ato de brincar. É essa relação ambígua de ordem e desordem que serve de motor

para a (re)criação do sujeito infantil. A criança de Fernandes quer estar junto com seus pares,

buscar construir com o grupo ou em grupo novas formas de brincar, por isso o riquíssimo

relato do autor sobre as inúmeras variáveis de uma mesma brincadeira. A atualização de um

jogo ou brincadeira exige do grupo infantil a (re)organização coletiva do ato de brincar.

Fernandes (2004) afirma que para tal é necessário que aconteça um processo espontâneo de

aprendizagem através das interações sociais.

Com essas ações, as crianças nos mostram que ainda estão resistindo, apesar de

receberem modelos prontos ou discursos marcando formas de brincar, muitas delas brincam

refazendo com sua capacidade mimética o objeto brinquedo. É com este processo de recriação

que este sujeito vai descobrindo outras possibilidades de divertimento além da forma pré

estabelecida.

Os Estudos Culturais contribuem na medida em que oportunizam a reflexão da

condição do brincar das crianças de hoje, nos permitem nas análises visualizar com cautela a

existência de um vilão que constantemente tenta nos seduzir com sua fala mansa e doce ou

com ofertas que enchem nossos olhos e bocas. Até quando resistiremos? Essa pergunta fica

para lembrar que com a Primeira Grande Guerra o Homem empobreceu sua narrativa,

podemos estar a ponto de perder também nossa capacidade mimética, nossa ludicidade. Isso

assusta, e nos leva a pensar que estamos entrando em outra época de escuridão total, não é

para tanto, podemos sim nos preocupar com a formação de professores e professoras para que

estes busquem ver em suas crianças um sujeito que participa da cultura produzindo-a e sendo

produzido por ela.

Talvez se minha opção fosse em utilizar isoladamente uma das lentes, seja a de

Benjamin, a de Fernandes ou a dos Estudos Culturais, não teria conseguido ver a criança

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como um sujeito único, de relações sociais e crítico. Teria sim, feito o que muitos já fizeram,

ao realizarem um corte preciso e seguro com o mesmo bisturi mostrando anatomicamente o

que é a criança. Meu objetivo é ir além deste aparente, é vê-la como sujeito do brincar na

instituição escolar e no social.

Finalizando, reafirmo o objetivo central desta escrita: o de questionar o brincar na

escola, como ele acontece, a interferência midiática, alguns impeditivos como o espaço tempo

para brincar na organização curricular e os discursos que surgem no ato de brincar. Trazer à

tona esses questionamentos para uma possível reflexão não determina que estão esgotados e

que todas as respostas foram encontradas nas páginas desta escrita. Busco sim, marcar a

importância do ato de brincar para os sujeitos infantis para além das intenções pedagógicas,

midiáticas ou de consumo.

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ANEXOS

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ANEXO 1

ENTREVISTAS COM AS PROFESSORAS

Perguntas norteadoras

1) Lembre como você brincava em sua infância

2) Fale um pouco sobre como era brincar (bom, ruim, etc.), o que você sentia quando

brincava?

3) Teus alunos gostam de brincar? Como eles brincam hoje?

4) O que você acha sobre o tempo que as crianças tem para brincar?

5) As condições do prédio possibilitam que as crianças brinquem na sala?

6) E as condições do espaço externo (pátio, pracinha, etc)?

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Professora 1:

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Professora 2:

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Professora 3:

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Professora 4:

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ANEXO 2

Cantiga de roda*: “VAMOS PASSEAR NA FLORESTA”

Crianças organizadas em uma roda simples com uma no meio (para ser o lobo –

pegador). Enquanto rodam, cantam o coro, e param para ouvir as respostas do lobo: Coro – Vamos passear na floresta Enquanto seu lobo não vem. - Seu lobo está pronto? Solo – Está se levantando. Coro – Vamos passear na floresta Enquanto seu lobo não vem. - Seu lobo está pronto? Solo – Está tomando banho. Coro – Vamos passear na floresta Enquanto seu lobo não vem. - Seu lobo está pronto? Solo – Está escovando os dentes. Coro – Vamos passear na floresta Enquanto seu lobo não vem. - Seu lobo está pronto? Solo – Está tomando café. Coro – Vamos passear na floresta Enquanto seu lobo não vem. - Seu lobo está pronto? Solo – Está lendo o jornal. Coro – Vamos passear na floresta Enquanto seu lobo não vem. - Seu lobo está pronto? Solo – Está pronto! Coro – Vamos passear na floresta Enquanto seu lobo não vem. - Seu lobo está pronto? Então os que estão formando a roda saem correndo para o seu lobo pegar. Quem for

alcançado pelo lobo fica sendo o novo lobo dentro da roda (* conforme o registro de Florestan Fernandes, 2004).

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ANEXO 3

Capa do CD “XUXA SÓ PARA BAIXINHOS 2”

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ANEXO 4

REVISTA CLÁUDIA DA EDITORA ABRIL

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ANEXO 5

ENCARTE PROMOCIONAL DE UMA REDE DE SUPERMERCADOS

(Exemplo de itens de um mesmo ícone)

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ANEXO 6

CAIXA DO McLANCHE FELIZ

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ANEXO 7 TERMOS DE CONSENTIMENTO

1- Cópia do termo de consentimento assinado pela Diretora da “Escola Infantil Colméia”

TERMO DE CONSENTIMENTO

Eu ________________________________________________________________, declaro que estou ciente de que as observações e registros realizados na Escola Municipal Infantil “Colméia”*, pela pesquisadora Zilá Gomes de Moraes Flores, farão parte do levantamento de dados da pesquisa “A CRIANÇA, A INFÂNCIA E O BRINCAR – TRAMAS DE UM CAMINHO” (Título Provisório) da mestranda Zilá Gomes de Moraes Flores, para a obtenção do Título de Mestre no Programa de Pós-graduação – Mestrado em Educação nas Ciências da UNIJUÍ, sob a orientação da Professora Dra. Noeli Valentina Weschenfelder.

Estou ciente que a minha identidade será preservada bem como o nome da Escola onde trabalho, na qual foi realizada esta pesquisa. ______________________ Assinatura da Direção * No original assinado pela Diretora consta a verdadeira denominação da Escola, sendo o termo “Colméia” seu nome fictício. 2- Cópia do termo de consentimento enviado para os responsáveis dos alunos

TERMO DE CONSENTIMENTO

(espaço reservado para o nome completo do/da aluno/aluna)

Eu declaro que estou ciente de que os relatos e imagens do meu/minha filho(a) façam parte da observação e levantamento de dados da pesquisa “A CRIANÇA, A INFÂNCIA E O BRINCAR – TRAMAS DE UM CAMINHO” (Título Provisório) da mestranda Zilá Gomes de Moraes Flores, para a obtenção do Título de Mestre no Programa de Pós-graduação – Mestrado em Educação nas Ciências da UNIJUÍ, sob a orientação da Professora Dra. Noeli Valentina Weschenfelder.

Estou ciente que a identidade do (a) meu/minha filho(a) será preservada bem como o nome da Escola onde estuda. ______________________ Assinatura do responsável

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3- Cópia do termo de consentimento entregue para as professoras, com as perguntas norteadoras para serem respondidas

TERMO DE CONSENTIMENTO

Eu ________________________________________________________________, declaro que estou ciente de que as respostas deste questionário farão parte do levantamento de dados da pesquisa “A CRIANÇA, A INFÂNCIA E O BRINCAR – TRAMAS DE UM CAMINHO” (Título Provisório) da mestranda Zilá Gomes de Moraes Flores, para a obtenção do Título de Mestre no Programa de Pós-graduação – Mestrado em Educação nas Ciências da UNIJUÍ, sob a orientação da Professora Dra. Noeli Valentina Weschenfelder.

Estou ciente que a minha identidade será preservada bem como o nome da Escola onde trabalho. ______________________ Assinatura da entrevistada Vamos recordar um pouco sua infância?

1) Tente lembrar como você brincava em sua infância? 2) Fale um pouco sobre como era brincar (bom, ruim ), o que você sentia quando

brincava? 3) Teus alunos gostam de brincar? Como eles brincam hoje? 4) Você acha importante que na rotina de sua aula os alunos tenham um tempo para

brincar? 5) As condições do prédio possibilitam que as crianças brinquem na sala? 6) E as condições do espaço externo (pátio, pracinha, etc) ?

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