O Buraco nas Bermudas (um conto de J.R.Daher)

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O Triângulo das Bermudas, um dos maiores mistérios do planeta Terra, é evocado neste conto em meio a eventos fictícios e menções a relatos reais de desastres e acontecimentos bizarros ocorridos na região. O autor convida o leitor a acompanhar a rotina e desventuras de um simples funcionário de uma plataforma petroleira e seus novos colegas pesquisadores, que tentam desvendar este fenômeno tão temeroso quanto fascinante da natureza. Em sua ficção mais “hard core”, J.R.Daher busca na Física elementos que enriqueçam a ciência envolvida na experiência da leitura.

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OBURACO

NAS BERMUDASum conto deJ.R.Daher

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© Copyright 2015: José Raphael Vieira Said Daher (todos os direitos reservados).

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e Parágrafos, e Lei nº 6.895, de 17/12/1980) sujeitando-se à busca e apreensão e indenizações diversas (Lei nº 9.610/98).

Revisão Ortográfica e Gramatical: Aline Daher

Capa e Projeto Gráfico Editorial: J. R. Daher

Ilustrações: Amanda Yoshiizumi

Editoração Eletrônica: J. R. Daher

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Recentemente dois satélites se chocaram. A maioria dos destroços queimou na reentrada e, da estação onde eu trabalhava, pudemos ver as diversas “estrelas cadentes”, mas a causa eu só viria a descobrir muito tempo depois. E quem poderia imaginar, pois quase ninguém mais olha para céu, nem que os pedaços dos satélites estivessem para cair sobre nós. Embora, hoje em dia, não haja muito a olhar… Diferente do longínquo passado, quando a escuridão noturna revelava a verdadeira forma da Via Láctea, a poluição e a luz artificial há muito nos dificulta ver as estrelas, sem contar que, ainda existem as nuvens; grandes, pequenas, brancas, laranjas, azuis ou cinzas: à noite, só servem para atrapalhar mais ainda a vista do firmamento, que a mim já não interessava, de tão esgotante que é meu trabalho. Quando aceitei esse emprego eu não tinha conhecimento profundo sobre a história local; para mim, “Bermudas” são aquelas calças curtas confortáveis e refrescantes: minhas peças de roupa favoritas. Eu as uso tanto,

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que a maioria carrega um furo na traseira, daqueles que se remenda por décadas, já que detesto comprar roupas... E, menos ainda remendar. Diferente de minha esposa que adora fazer consertos, mas curiosamente também adora comprar roupas novas, embora esse luxo só tenhamos podido manter por eu estar distante: seriam seis meses de trabalho e seis meses de férias. Na despedida o recém-nascido sorriu e tentou me dizer algo com os dedinhos tamborilando o ar após tê-lo beijado na testa. O grandinho, mesmo com o videogame novo que finalmente pude lhe comprar, resistiu ao choro quando o abracei, mas não conseguiu fingir a tristeza estampada na expressão (que tentei esquecer, mas, no silêncio da noite, a dor da saudade perdurava). Minha esposa me abraçou e beijou ardentemente, com nunca havia feito na frente das crianças, mas o sabor de seus lábios infelizmente sumiu quando aspirei o hálito oleoso e inebriante da plataforma. Construída em pleno Atlântico, algumas milhas a oeste de Somerset, Júpiter-1 é uma plataforma estadunidense semissubmersível de extração de petróleo. Senti-me bem recebido, mesmo embrenhado em uma selva de tubulações, válvulas, pistões, guindastes, portas, escadarias e escotilhas. Mas, estava tão cansado naquele primeiro dia que não tardei em me recolher. Fiquei enjoado, pois o horizonte ficava dançando à vista da janela, assim como tudo que pendia ou estava solto. Até acostumar-me foram muitas as vezes que evitei vomitar, o que acho que só piorou minha adaptação e humor - mas não acho correto o alimento sair pelo mesmo buraco que entrou. Meus enjôos melhoraram no dia em que vieram pesquisadores (de algum canal televisivo, afirmaram) para fazer uma matéria sobre a região. Já fazia um mês que eu estava lá e só então fui entender o incômodo que os outros tinham ao notar que eu não ficava apreensivo com as redondezas. Quando me disseram que um navio havia sumido logo após minha chegada, eu imaginei se tratar de um simples acidente; estava muito concentrado em

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não regurgitar e em sentir saudades de minha família, para reparar nos detalhes misteriosos do sumiço que os companheiros alimentavam a cada conversa no refeitório e durante a pausa para o café. Eu também estava um pouco preocupado com meu trabalho: levantar antes do Sol, conferir os barômetros, termômetros, ajustar as válvulas, conferir os ajustes, testes de fluxo, de injeção, preencher relatórios etc. Quando os pesquisadores chegaram, pediram que eu parasse, levou cinco minutos até que me convencessem de que não era necessário continuar, pois naquele dia haveria uma conferência para decidir a curta, mas relevante, estadia do grupo. Quando os encontrei não simpatizei com nenhum deles: pareciam muito ocupados e encasquetados, assim como eu sou; não costumo gostar de gente parecida comigo. Mas, em um deles, apenas uma coisa me chamou a atenção: sua bermuda tinha um buraco remendado. Isso me levou a puxar conversa até que todos os técnicos e responsáveis estivessem reunidos. "Belo remendo", eu disse, "Foi minha mãe que fez", ele respondeu. Era um rapaz jovem, com um ar sério, mas uma cara fácil de se tornar engraçada, pois era meio torta. Acho que era o nariz ou a boca; a incerteza foi suficiente para nos despertar um bom humor. Naquele momento, ele olhava para o céu. Estava nublado, muito nublado e não entendia por que ele continuava olhando. "Vocês vieram fazer uma reportagem sobre a extração de petróleo e gás?", perguntei eu, ingenuamente. "Não... Só vamos passar alguns dias aqui, enquanto pesquisamos o Triângulo das Bermundas". "O que era isso mesmo?", pensei eu, e fiz uma cara disso. "Não me diga que não sabe do que estou falando!", disse ele com um tom de descrédito. Mas antes que ele pudesse me explicar, todos já haviam se acomodado na sala de reuniões, que se resumia a quatro paredes encardidas com janelas inutilizadas pela fuligem e uma mesa redonda que um dia pode ter sido clara. Minha mãe ou minha esposa teriam um infarto naquele lugar. O grupo não foi muito específico sobre o

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projeto, apenas disseram que ficariam por uma, no máximo duas semanas nas instalações para visitas, até que pudessem obter alguns dados conclusivos, ou voltarem para serem demitidos. Acho que isso havia sido uma piada, mas ninguém riu. Só mais tarde pude voltar a conversar com Raul Prohias, o rapaz curiosamente engraçado. No dia seguinte, pediram que um de nós os acompanhasse na lancha e, como eu era novato, compeliram-me a ir. Aproveitaram que o dia estava claro; pois disseram que não se arriscariam de pronto a adentrar o Triângulo em um dia nublado ou chuvoso. Nessa primeira viagem, eles apenas levaram um tipo especial de magnetômetro, aparato que eu também sei operar, coisa que fez da minha presença nesta e nas viagens subsequentes uma coisa útil. Na verdade, minha formação universitária não é em exatas, eu me formei em letras mas, por uma paixão repentina pela engenharia química, decidi estudar por conta, até que a necessidade de um emprego melhor me fez aceitar um curso de nível técnico à distância para obter o diploma nesta área e poder prestar concurso. A aparelhagem dos pesquisadores era exclusiva, composta única e precisamente para ser utilizada ali, no famigerado triângulo. Entre eles, o magnetômetro do tipo bombardeamento ótico (de precisão 0,005 nanoteslas), chamado MAGX-3, que tinha o tamanho de um jarro de vidro sobre um pequeno aparelho de VHS, media pequenas variações de direção e intensidade do campo magnético da Terra e apontava seus dados a partir de um sinal luminoso, sonoro e um registro semelhante ao de um sismógrafo. Na nossa primeira hora de viagem ao sul, nada de estranho aconteceu até que, sem nenhuma estranheza climática, sob um sol clemente e sobre um mar igualmente tranquilo, sentimos o motor do barco resmungar e o MAGX apitar qual uma tropa de guardas londrinos atrás de um batedor de carteiras ao rabiscar como uma criança a tira de papel que se desenrolava freneticamente. Ao conferirmos os registros, o campo magnético da Terra

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apresentou uma angulação de 19 contra os 11,3 graus usuais em relação ao eixo do planeta, e uma variação de 5 a 7 micro teslas (μT) sobre a média de 30,3μT. Pode parecer que não, mas é uma variação muito grande, para ambos os dados, indicando vibrações de radiofrequência altíssimas e extremamente inconstantes. Todos nós ficamos espantados, mas o ceticismo nos fez pensar que poderia ser uma falha do equipamento; mesmo Raul não se convenceu. Demos meia volta e tudo estava normal. Retornamos à posição do incidente, o barco resmungou de novo e o MAGX voltou a enlouquecer aumentando ainda mais as diferenças. Seguindo alguns quilômetros à frente, normalizou-se de novo. Mais adiante ele tornava a apitar e acender, porém, quando pensamos em insistir no avanço, as câmeras que filmavam, o magnetômetro e o próprio motor do barco desligaram. Nessa meia hora que ficamos isolados, sem rádio, sem chance de retornar, Raul me contou sobre acontecimentos ainda mais estranhos que se sucederam naquela região. Após a conversa, achei que estávamos condenados, mas se estão lendo isso, vocês sabem que não. Ele me contou que, além dos desaparecimentos, aconteciam desorientações de bússolas (logicamente), embarcações e até aviões que, se não naufragavam, sumiam por horas e depois apareciam do outro lado, a centenas de quilômetros de sua última posição, completamente vazios, digo, sem ninguém a bordo e, além disso, distorções do tempo e espaço. Confesso que esse papo me deixou assustado, tive a sensação de que nunca mais voltaria, ou de que já estivesse em outra dimensão, em outro tempo e que, naquele exato instante, uma equipe de resgate encontrava nosso barco vazio em outro lugar, enquanto estávamos presos naquele limbo pela eternidade. Olhei para o céu e tudo parecia tão calmo que não dava para acreditar que todas aquelas histórias eram possíveis. Acho que, por intermédio do vento, o barco foi empurrado de volta até uma posição privilegiada, pois tudo voltou a

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funcionar. O magnetrômetro havia se descalibrado e tratei de concertá-lo no trajeto de volta. Realmente parecia uma coisa de orquestra, não escrevi à toa. Ele não era muito diferente dos que eu conheci, mas tinha um número excessivo de instrumentos que não estavam sendo muito bem afinados. O engenheiro que construiu aquilo foi muito bem intencionado, mas lhe carecia praticidade. Comprometi-me a reajustá-lo e, com a permissão deles, fazer algumas alterações. Durante a madrugada teria me convencido de que o aparelho estivera louco sozinho, não fosse a estranha pane que todos os equipamentos haviam sofrido na lancha. Dormi tarde e sonhei com bermudas que flutuavam inalcançáveis no céu, com seus buracos na traseira para serem remendados. Sabia que isso iria deixar minha mulher brava, mas me preocupei mais com a mãe do rapaz. Sobressaltado com o grito do despertador que invadiu meus sonhos, corri para terminar o serviço matutino e retornar o equipamento ao grupo. Feito um pequeno teste e vistas as modificações, eles insistiram para que eu os acompanhasse novamente, e meus superiores não se importaram. A missão era a mesma do dia anterior e tudo aconteceu exatamente como antes. Por um momento, voltei a sentir-me preso no espaço-tempo, como se desde a primeira pane nada mais tivesse acontecido, a não ser em sonhos, e que estávamos em um ciclo infinito de repetição. Mas não, naquele dia não conversamos sobre as catástrofes ocorridas lá, mas sobre as hipóteses não menos inescrupulosas de teoricistas como John Hutchinson, conhecido como charlatão na comunidade científica e a quem foi atribuído o "Efeito Hutchinson", relativo à levitação eletromagnética, entre outras coisas. Sobre os mistérios do Triângulo, alguns dizem serem apenas frutos de anomalias magnéticas causadas por excessiva quantidade de material vulcânico magnetizado expelido pelas frestas entre as placas tectônicas. Ainda como consequência da atividade vulcânica, dizem que o excesso de gases como o metano

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diminuem a densidade da água, fazendo barcos afundarem, e também do ar, provocando bolsões de baixa pressão e prejudicando a força de sustentação dos aviões. Outros dizem que são anomalias climáticas, causadas pela composição diferenciada de sais e outros elementos na água que causam uma diferença de temperatura que, por sua vez, formam furações, tufões e trombas d´água. Outros ainda, como Hutchinson, dizem que um canal subterrâneo conteria um (vejam só) buraco negro! Este criaria um túnel que se estenderia até o Triângulo do Dragão, na costa leste do Japão. Seria um buraco de minhoca, um canal de distorção no espaço-tempo que ligaria um ponto a outro. Seu alicerce nessa teoria era de que todos os efeitos observados no Triângulo das Bermudas tinham extrema semelhança com os efeitos gerados nas proximidades de um buraco negro: distorções no espaço-tempo, anomalias magnéticas, pulsos radioativos de alta energia, destroçamento da matéria, entre outros. Entretanto, com um riso torto e divertido, Raul logo rejeitara essa hipótese, dizendo que seria impossível haver um buraco negro dentro do planeta sem que ele atraísse para si toda sua matéria; visto que seu poder de atração só aumenta com o tempo, à medida que engole mais e mais matéria. É a força da gravidade: inevitável, persistente e, por vezes, impiedosa. Espanta-me que utilizemos o termo gravidez para o estado das gestantes. Naquele instante, pensei em meus filhos, depois em minha esposa. O que fariam eles? Imaginariam que seu querido pai estava pela segunda vez isolado e sem comunicação na periferia do Triângulo das Bermudas? Não, eles não imaginavam, eles sabiam, embora eu só fosse descobrir mais tarde. Quando perguntei a Raul o que ele achava das teorias, ele riu novamente e disse que o que acontecia ali poderia ser um misto de todas elas, mas sobre o buraco negro ele adicionou: "Apesar de parecer absurdo... Não existe prova de que não é um". O barco voltou a funcionar e o magnetômetro havia se descalibrado novamente. Na minha

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segunda iniciativa de consertá-lo, eles adicionaram: "será que você consegue criar um invólucro para que possamos mergulhá-lo e medir as variações magnéticas no fundo do mar?". Assenti com entusiasmo, meus dias de trabalho começavam a ficar interessantes. Mais uma vez quase varei a madrugada, juntando peças não mais utilizadas e sucatas da estação para montar um tipo de escafandro. Unindo um recipiente redondo feito de vidro grosso, de canos e de tubulações maleáveis, terminei o invólucro, vedando-o com anéis de borracha de alta densidade e constante elástica. Fechei-o para experimentar, mas depois foi muito difícil abri-lo novamente para terminar. Mal podia esperar para o primeiro teste. Pela manhã despertei noutro sobressalto, mas sem lembrar de sonho algum. Terminei meus afazeres comuns sem muito esmero e fui logo ao encontro do grupo, deixando mais alguns relatórios sobre a pilha. Eu os adverti de que, com cálculos estimados cheguei, à conclusão de que o invólucro não aguentaria uma descida de mais de vinte metros (uma pressão de no máximo 300kpascal, ou 3 vezes a pressão atmosférica), mas que certamente isso seria suficiente para comparar com os dados ao nível do mar. Antes de partir, fizemos testes de comunicação com o equipamento por algumas horas mergulhando-o uma profundidade de dez metros: não houve vazamento e os dados foram transmitidos corretamente. Por precaução, adicionei um barômetro que enviaria um sinal de alerta caso o invólucro fosse violado e a pressão se modificasse de repente, para que pudéssemos salvar o equipamento. Na viagem até a periferia do triângulo questionei-me (apesar do carinho que desenvolvera pelo grupo) sobre a procedência de suas verbas e seus objetivos. Eles pareciam demasiado despreparados para uma equipe de um grande canal televisivo como afirmavam ser. Mas não dei atenção a esse pensamento, mesmo porque dentro de alguns dias teriam se ido e tudo voltaria a ser como antes… Esperava eu. Dessa vez, quando

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retornamos quase ao “ponto de pane”, como o chamávamos a partir de então, mergulhamos o magnetômetro e o descemos, cinco, dez, quinze metros e, decepcionantemente, o sinal e os alertas de anomalias apenas se enfraqueceram, ligeiramente, mas se enfraqueceram. Descemos mais e a regressão se confirmou. Minha decepção foi para eles uma vitória. Tomado por um impulso imaturo não percebi a importância daquele dado: ele apontava que a anomalia não se originava no fundo do mar; e isso era uma exclusão magnífica. Antes que a pane nos pegasse, um evento diferente aconteceu, algumas correntes de metal que estavam no convés deram espasmos breves; a princípio pensamos ser algum impacto no fundo do barco (um grande tubarão ou golfinhos), porém os espasmos se intensificaram e nós não sentíamos nenhum tremor. Passaram a se contorcer com ondulações elevadas e periódicas, era espantoso, mas o melhor ainda estava por vir. Antes que o acontecido cessasse, elas ficaram eretas, dançando às voltas, qual naja hipnotizada. De tão fascinados, demoramos a perceber que coisa semelhante aconteceu com vários objetos metálicos: colheres, facas, ferramentas... Subitamente tombaram inertes. Senti-me como uma criança que perde um brinquedo. Havíamos presenciado o efeito Hutchinson! Ainda meio abobados, demos meia volta, Raul estava ansioso para estudar os novos dados enquanto uma tempestadade se aproximava, feia e revolvente, vinda do oeste. À tarde, prossegui com minhas funções, mas à noite não consegui falar com minha família; a tempestade havia cortado as comunicações. Num relance de pensamento, imaginei que isso tinha a ver com o triângulo, mas não... Estávamos um bocado distantes do seu centro, mesmo de sua periferia. Mais tarde, naquele mesmo dia, recebemos uma mensagem em morse da guarda costeira para que recolhêssemos os equipamentos da Júpiter e não abandonássemos nossas cabines, pois a tempestade continental seria muito forte. Acionamos o alarme

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e todos os instrumentos (capazes de) foram retraídos para não se dobrarem ao poder do vento. Naquela noite, nada aconteceu. A tempestade não se fortaleceu. Apenas um erro meteorológico, eu imaginei. No dia seguinte, tomou-nos muito tempo para retornar tudo às suas posições originais e recalibrar os pressurizadores, guindastes etc. Obviamente, naquele dia não pude acompanhar o grupo. Apesar da falta da tempestade, o sol se mantinha escondido, mas Raul estava decidido a medir mais uma vez o campo magnético nas profundezas, apesar do clima não muito convidativo, pois seu tempo estava se esgotando, quase uma semana se passara e, diferente do que pensavam, não teriam recursos para ficar o dobro. Demoraram mais do que de costume para retornar aquele dia. Eu presumi uma pane novamente e não me equivoquei. E mais uma vez os dados confirmaram a diminuição da anomalia com a profundidade... Quando o consultei, Raul apenas respondeu: "Talvez estejamos olhando para o sentido errado", e eu não entendi o que ele quis dizer. Pela noite, no mesmo horário do dia anterior, uma mensagem morse exatamente igual à da noite passada foi recebida. Infelizmente, não conseguimos responder, mas repetimos o procedimento ordenado. A noite passou e a tempestade não nos visitou, como eu esperava, mas no dia seguinte fez sol, muito sol. Ardia a pele enquanto eu me dobrava para ajustar as válvulas todas de novo, mas não me atrasei para a viagem com o grupo, pois eles não foram. Reuniram-se para decidir uma nova estratégia e depois vieram me contar: precisavam de um helicóptero... Um helicóptero! Como poderíamos conseguir um helicóptero para eles? O que significava aquilo? Por que eles não tinham um? Por que não pediam um à rede de tevê? Poucas verbas? Não: "somos autônomos... Falsificamos os documentos para poder fazer a pesquisa. Fomos patrocinados com uma quantia não muito grande, por um doador incógnito, pois era nosso o sonho, e o dele, desvendar os mistérios das Bermudas”, Raul me

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confessou. Recebi aquilo sem muito me surpreender, pois já havia pensado nessa possibilidade. Mas eu não tinha poderes (nem o diretor da base, na verdade) para lhes arranjar um helicóptero, mesmo tendo me confiado seu segredo, mesmo que eu já julgasse sua missão muito importante. O dia avançou sem esperanças, eu com as atividades normais e o grupo preparando suas malas para retornar. Porém, para sua sorte, ao cair da tarde, a marinha estadunidense nos enviou um helicóptero (um velho Westland Lynx) tripulado (mas desarmado) que foi dispensado das buscas infrutíferas daquele navio desaparecido. Vieram verificar nossa situação, já que há duas noites não respondíamos às mensagens. Felizmente confirmaram ter se passado duas noites, pois eu já me convencia de que um "loop" temporal havia acontecido. Provido de presença de espírito, eu convenci os oficiais que levassem a mim e Raul para tirar medidas a bordo do helicóptero, utilizando o MAGX. Não tendo objeções de meus superiores, foi fácil convencê-los de que aquelas medidas eram importantes para garantir a estrutura e funcionamento da estação. Foi duro aguardar a permissão da marinha, mas esta foi expedida, após algumas horas. A noite já caía, então aguardamos até a manhã seguinte. Durante a noite tentei conversar com Raul, mas ele estava muito silencioso e pensativo. Dizia ele que mil ideias lhe passavam pela cabeça. Finalmente dormi uma noite inteira, pela manhã executei minhas funções normais e após tudo devidamente montado no helicóptero, partimos para as mesmas coordenadas pesquisadas nos últimos dias, nas quais Raul foi bem específico até onde seria seguro o piloto poderia prosseguir; uma pane aérea não seria calma como a de um barco. Sobrevoamos a superfície, apenas a alguns metros, mas quando o medidor acusou a anomalia os valores do campo magnético terrestre foram diferentes, bem mais intensos, com sua inclinação alcançando 25 graus, buscando o zênite (a vertical) e sua intensidade

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beirando 49μT! O helicóptero resmungou, mas ainda assimm Raul pediu que o piloto os elevasse e, à medida que subíamos, metro à metro, o magnetômetro apitava cada vez com mais força e brilhava mais, sua pena mexia como louca registrando intensidades exponencialmente maiores. Até que subitamente pifou, juntamente com todos os outros equipamentos e... O motor do helicóptero! Nossos corações aceleraram à medida que ouvíamos o bater das hélices se retardar. Estávamos, no mínimo, a duzentos metros do nível do mar, a queda seria fatal. Quando a hélice finalmente parou, fechei meus olhos, enquanto ouvia os outros gritando e praguejando ou orando desesperadamente, mas não se seguiu nenhuma vertigem, nem frio na barriga, nenhum tremor. A aeronave estava flutuando, na verdade, subindo vagarosamente, quase que imperceptivelmente na direção de algo ainda indefinido. O ar se rarefazia com uma rapidez maior que a normal, causando certa dor nos ouvidos. "O que acontece?", perguntou um dos fuzileiros. Foi quando Raul estendeu-se para fora da nave e olhou para cima. "Vejam só isso! Venham ver!", ele gritava com um entusiasmo, rindo sem parar, com aquela cara torta esbanjando alegria, felicidade extrema: ele havia descoberto o mistério. Como disse antes, quase ninguém mais olha para o céu. Me estiquei para fora, e quando consegui divisar entre as hélices paradas e as nuvens, lá no alto, quase invisível, o que tanto admirou Raul, eu não consegui compreender: parecia uma imagem desfocada entre as nuvens, um ponto de convergência, envolto de um turbilhão refratário, como se eu olhasse o céu através da base de uma taça de vinho. O centro era escuro, mas seu perímetro brilhava; uma visão difícil de esquecer. Escurecia rapidamente enquanto nos aproximávamos, maravilhados, e percebi, por mais um lampejo de pensamento que caminhávamos para a morte, mesmo que não estivéssemos caindo, pois estávamos sendo tragados no caminho sem volta... De um buraco negro. Sim, querido

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leitor... O mistério havia sido solucionado: um buraco negro em órbita geoestacionária a no mínimo 500 quilômetros do nível do mar sobre a região do triângulo, não sob a região, como imaginavam. Não me admira que um efeito de maré (ou ressonância gravitacional e eletromagnética) tivesse causado os mesmos fenômenos do outro lado do planeta, próximo ao Japão. Mas como? Como ninguém havia percebido isso antes? Com o espaço aéreo tão bem protegido, tão bem mapeado. Certamente as agências aero-espaciais estavam cientes disso... Mas por que manter em segredo? Todas essas perguntas passaram por minha cabeça quando saltei, poucos instantes antes da aeronave subir vertiginosamente (caindo par cima), se alongar e se despedaçar no ar como se fosse feita de farinha. Tragada completamente por ele, nenhum pedaço sobrou e eu caí por muitos e muitos quilômetros e mergulhei sem quebrar um osso sequer. Não sei como fui resgatado, apenas acordei em um hospital ao sul, muito longe, na República Dominicana. Eu havia atravessado todo o Triângulo sem ao menos saber como. Disseram-me que patrulhas foram enviadas para verificar o sumiço do helicóptero. Mais tarde fui obrigado a desmentir toda essa história que eu havia ingenuamente revelado em meu depoimento às autoridades. Ao retornar para casa, depois de quase dois meses, deixando definitivamente as atividades na plataforma e muitas perguntas não respondidas aos remanescentes do grupo, fui recebido por minha família com um calor inigualável, um calor fruto de uma preocupação. Meu filho dizia ter-me visto na TV, por três vezes, nas três vezes em que ocorreram as panes. Ele descreveu com detalhes, tudo que aconteceu, não podia ser mentira, nem imaginação de criança. Depois de ver o que vi, não poderia duvidar dele. Isso foi há seis anos. Desde então venho pesquisando eventos históricos desse tipo, na região ou não, e com quais anomalias físicas estão relacionados. Finalmente cheguei à minha própria conclusão: o fantasmagórico buraco negro teria sido capturado

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pelo campo gravitacional da Terra em meados de 1840, quando começam os primeiros registros, mas nada impede que ele estivesse lá desde muito antes. Com uma órbita elíptica excêntrica (beirando 0,1), ele se afasta e se aproxima do planeta cerca de vinte quilômetros sobre o mesmo ponto, o que justificaria a inconstância dos estranhos eventos e tragédias. Tendo como meu primeiro dado, o contato visual, imaginei que ele se localizasse pouco acima da termosfera, a última camada da atmosfera, pois mais adentro já teria sugado todo o ar do planeta. Estando a 500km de altitude, sua massa deveria estar em torno de 1013kg (cerca de 1 trilhão de vezes menor que a da Terra) para que o centro de massa do sistema “Planeta-Buraco” estivesse praticamente sobre o centro da Terra, ou então já teríamos notado efeitos bizarros na rotação da Terra. Seu Raio de Shwarzchild, ou melhor, seu horizonte de eventos (ou o ponto sem volta), não teria mais que alguns fermi (10-13m)! Portanto, ele próprio deveria ser bem menor, do tamanho do núcleo de um átomo, já que para que um corpo sucumba à própria gravidade este deve se comprimir aquém desse raio. Pelos dados eletromagnéticos que pude observar, creio que seu campo seja, além de intenso, completamente instável, devido à uma grande precessão, gerando pulsos irregulares de radiação, juntamente com emissões de Raios-X, ao engolir matéria como partículas de ar, meteoros e eventualmente aeronaves e embarcações. Ao nível do mar, nunca sentiríamos sua influência gravitacional, já que sua gravidade não ultrapassaria 10-8m/s2, seria uma correção muito pequena, menor que a variância que a própria gravidade da Terra tem dos pólos à linha do equador (de fato, desprezível comparada ao efeito de maré da Lua – que está muito mais distante que ele – sobre o mar e o solo da Terra, através de uma gravidade de 0,035m/s2). Porém, nas suas proximidades, chegaria a 100m/s2 (10G), o dobro do que qualquer ser humano normal pode suportar. Essa atração gravitacional pode até não ser perigosa para nós, ao

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nível do mar, porém dentro de alguns anos toda nossa atmosfera poderá ser engolida. Entretanto, seu verdadeiro poder, cujos dados infelizmente não possuo para analisar, certamente está em seu magnetismo, que foi capaz de erguer aquele helicóptero militar com tanta facilidade até que a força de sua gravidade terminasse o serviço. Ansioso, ainda aguardo o contato dos remanescentes do grupo, esperando que não tenham sido perseguidos e despojados de seus magníficos dados experimentais, para que possamos determinar todas as variáveis desse mistério, para que eles possam fazer valer a morte de Raul, dos fuzileiros e das centenas de pessoas que sofreram desastres inomináveis, porém ainda descreditáveis, causados pelo Buraco Negro do Triângulo das Bermudas.

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