O Caminho da Servidão - F.A. Hayek

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Provavelmente, 'O Caminho da Servidão' seja o trabalho mais conhecido do professor Hayek. Foi publicado pela primeira vez em 1944, traduzido em doze idiomas, tornando o seu autor mundialmente famoso. Esta obra mostra que o planejamento econômico ainda é não apenas assunto de interesse acadêmico mas também objeto de estudo e de interesse público e governamental. 'O Caminho da Servidão' continua, portanto, a nos oferecer bases para uma discussão crítica sobre a economia planejada. http://www.mises.org.br/Ebook.aspx?id=31

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O CAMINHO DA SERVIDÃO

F.A. HAYEK

6ª EDIÇÃO

Copyright © Instituto Liberal eInstituto Ludwig von Mises Brasil

Titulo original em inglês:The Road to Serfdom

Editado por:Instituto Ludwig von Mises Brasil

R. Iguatemi, 448, cj. 405 – Itaim BibiCEP: 01451-010, São Paulo – SP

Tel.: +55 11 3704-3782Email: [email protected]

www.mises.org.br

Impresso no Brasil/Printed in Brazil

ISBN: 978-85-62816-71-0

6ª Edição

Traduzido para a lingual portuguesa por:Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e

Liane de Morais Ribeiro, para o Instituto Liberal

Revisão para nova ortografia:Alessandro ManuelImagens da capa:

GrandeDuc/ShutterstockFedorov Oleksiy /Shutterstock

Capa:Neuen Design

Projeto gráfico:André Martins

Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecárioSandro Brito – CRB8 – 7577

Revisor: Pedro AnizioH417c Hayek, F.A.

O caminho da servidão / F. A. Hayek. – São Paulo : InstitutoLudwig von Mises Brasil, 2010.

Bibliografia1. Intervencionismo 2. Capitalismo 3. Socialismo 4. Livre

Mercado 5. Ciência Econômica I. Título.CDU – 330

SumárioCapaSumárioPrefácio da Edição Inglesa de 1944Prefácio da Edição Norte-Americana de 1975Prefácio da Edição Inglesa de 1976Introdução

RodapéO Caminho Abandonado

RodapéA Grande Utopia

RodapéIndividualismo e Coletivismo

RodapéA “Inevitabilidade” da Planificação

RodapéPlanificação e Democracia

RodapéA Planificação e o Estado de Direito

RodapéControle Econômico e Totalitarismo

Rodapé

Quem, a Quem?Rodapé

Segurança e LiberdadeRodapé

O Fim da VerdadeRodapé

As Raízes Socialistas do NazismoRodapé

As Perspectivas da Ordem InternacionalRodapé

Prefácio da Edição Inglesa de1944

Quando um estudioso das questões sociais escreveum livro político, seu primeiro dever é declará-lofrancamente. Este é um livro político. Não querodisfarçar tal fato atribuindo-lhe – como talvezpudesse ter feito – o nome mais elegante e ambiciosode ensaio de filosofia social. Mas, seja sob que rótulofor, permanece a questão central de que tudo o quedeverei dizer deriva de determinados valoresfundamentais. Espero ter cumprido no próprio livrouma segunda e não menos importante obrigação:deixar claro, acima de qualquer dúvida, quais sãoesses valores fundamentais de que depende toda aargumentação. Há no entanto algo que desejariaacrescentar. Embora este seja um livro político, tenhoa máxima certeza de que as convicções que nele seexpressam não são ditadas por meus interessespessoais. Não consigo descobrir nenhuma razão paraque o tipo de sociedade que me parece desejável

deva oferecer maiores vantagens a mim do que àgrande maioria do povo deste país. Na verdade, estousempre ouvindo de meus colegas socialistas que, naqualidade de economista, eu ocuparia uma posição demuito maior relevo no tipo de sociedade a que meoponho desde que, é claro, me resolvesse a aceitarsuas concepções. Sinto-me igualmente convencido deque minha oposição a tais concepções não se deve aserem elas diferentes daquelas em que fui educado, jáque são as mesmíssimas ideias que sustentei quandojovem, e que me levaram a fazer do estudo daeconomia a minha profissão. Àqueles que, como éuso hoje em dia, procuram motivos interesseiros emtoda declaração de opinião política, talvez me sejapermitido acrescentar que tenho todas as razõespossíveis para não escrever ou publicar este livro. Elecertamente ofenderá muitas pessoas com quemgostaria de manter relações amigáveis; forçou-me apôr de lado a atividade para a qual me sinto melhorqualificado e a que atribuo maior importância a longoprazo; e, acima de tudo, sem dúvida prejudicará aacolhida aos resultados do trabalho mais estritamenteacadêmico a que me impelem todas as minhasinclinações.

Se, apesar disso, passei a considerar a elaboração

deste livro como um dever a que não me possofurtar, tal atitude decorreu, sobretudo, de umacaracterística peculiar das atuais discussões acercados problemas da futura política econômica,problemas sobre os quais a população não está demodo algum suficientemente informada. Refiro-meao fato de que a maioria dos economistas esteve, nocorrer dos últimos anos, absorvida pela máquina daguerra e silenciada por seus cargos oficiais, de modoque a opinião pública no que se refere a essesproblemas é, numa medida alarmante, orientada poramadores e visionários, por gente que tem uminteresse próprio a defender ou uma panaceia avender. Em tais circunstâncias, alguém que aindadisponha de tempo ocioso para escrever teria poucodireito de guardar para si apreensões que astendências do momento por certo criam no espíritode muitos que não as podem expressar publicamente– embora, em outras circunstâncias, eu devesse terdeixado de bom grado a discussão de questões depolítica nacional àqueles que estão ao mesmo tempomais autorizados e melhor qualificados para a tarefa.

A tese central deste livro foi esboçada pela primeiravez num artigo intitulado A Liberdade e o SistemaEconômico1, publicado na Contemporary Review de

abril de 1938, e posteriormente reimpresso, numaversão ampliada, como um dos Panfletos de PolíticaGovernamental2 editados pelo professor H. D.Gideonse para a University of Chicago Press (1939).Devo agradecer aos editores de ambas as publicaçõesa permissão para reproduzir aqui alguns trechos dasmesmas. London School of Economics Cambridge,dezembro de 1943.

Prefácio da Edição Norte-Americana de 1975

Este livro seria talvez diferente sob alguns aspectosse, ao escrevê-lo, eu tivesse em vista sobretudo osleitores norte-americanos. No entanto, ele jáconquistou nos Estados Unidos uma posição pordemais definida, embora inesperada, para que setorne aconselhável revê-lo. Sua republicação sobnova forma tipográfica, contudo, mais de dez anosapós a primeira edição, talvez seja uma ocasiãoapropriada para explicar seu objetivo original e paraalguns comentários sobre o sucesso absolutamenteimprevisto e em muitos sentidos curioso que ele aquiobteve.

O livro foi escrito na Inglaterra durante a guerra edestinava-se quase exclusivamente ao público inglês.Na verdade, dirigia-se sobretudo a uma classe muitoespecial de leitores britânicos. Não foi de modoalgum por zombaria que eu o dediquei “aossocialistas de todos os partidos”. Teve sua origem nas

numerosas discussões que, durante os dez anosanteriores, eu tivera com amigos e colegas cujassimpatias inclinavam-se para a esquerda. Foi emprosseguimento a essas discussões que escrevi Ocaminho da servidão.

Quando Hitler subiu ao poder na Alemanha, eu jáensinava havia vários anos na Universidade deLondres, mantendo-me, porém, sempre em contatoestreito com os assuntos do continente, o que tivecondições de fazer até o início da guerra. O queassim pude observar sobre as origens e a evoluçãodos diversos movimentos totalitários fez-me sentirque a opinião pública inglesa, e meus amigos queabraçavam posições “avançadas” em matéria dequestões sociais em particular, concebia aquelesmovimentos de modo completamente errôneo. Jáantes da guerra isso me havia levado a expor, numbreve ensaio, o que se tornou o tema central destelivro. Após a eclosão do conflito, entretanto, sentique essa concepção distorcida, e tão generalizada,acerca dos sistemas políticos de nossos inimigos, elogo depois também de nosso novo aliado, a Rússia,constituía perigo sério, que deveria ser enfrentadocom esforço mais sistemático. E já era bastanteevidente que após a guerra a própria Inglaterra talvez

viesse a experimentar a mesma orientação políticaque, como eu estava convencido, contribuíra tantopara destruir a liberdade em outros países.

Assim, este livro tomou gradualmente o aspecto deuma advertência à intelligentsia socialista inglesa.Com os atrasos inevitáveis durante um período deguerra, ele foi por fim publicado em princípios daprimavera de 1944. Essa data também explica porque julguei que, para ser ouvido, deveria restringirum tanto meus comentários sobre o regime de nossosaliados russos, escolhendo para exemplo sobretudo oque se passava na Alemanha.

O livro apareceu num momento propício. Só possoalegrar-me com o sucesso que ele teve na Inglaterra,o qual, embora de natureza muito diferente, não foiquantitativamente menor do que o que teria maistarde nos Estados Unidos. Em linhas gerais, o livrofoi recebido com o mesmo espírito com que foiescrito, e a sua argumentação foi examinada a sériopor aqueles a quem em primeiro lugar se dirigia.Excetuados apenas certos líderes do PartidoTrabalhista (os quais, como que para ilustrar minhasobservações sobre as tendências nacionalistas dosocialismo, atacaram o livro alegando que era escrito

por um estrangeiro), foram impressionantes a atençãoe a receptividade com que em geral o examinarampessoas que devem ter julgado minhas conclusõescontrárias às suas mais firmes convicções3. O mesmose aplica aos outros países europeus onde o livro foipublicado. A aceitação especialmente cordial que tevepor parte da geração pós-nazista da Alemanha,quando exemplares de uma edição suíça chegarampor fim àquele país, constituiu um dos inesperadosprazeres que esta obra me trouxe.

Bem diferente foi a acolhida que teve nos EstadosUnidos, quando de sua publicação poucos mesesdepois de ter aparecido na Inglaterra. Ao escrevê-lo,quase não me perguntei se ele atrairia o públiconorte-americano. Fazia então vinte anos que euestivera nos Estados Unidos pela última vez, comoestudante, e perdera um tanto o contato com opensamento deste país. Não me era possível avaliarcom segurança até que ponto minha argumentaçãoteria aplicabilidade direta no cenário norte-americano,e não me surpreendi em absoluto quando o livro foirejeitado pelas três primeiras editoras consultadas4.Foi por certo sobremodo inesperado que, após suapublicação pelos atuais editores, tenha logo começadoa vender em proporções quase sem precedentes para

estudos dessa natureza, não destinados ao públicocomum5. E surpreendeu-me ainda mais a violência dareação que provocou em ambas as correntespolíticas: foi prodigamente elogiado em algunscírculos, e não menos apaixonadamente hostilizadoem outros.

Ao contrário do que se dera na Inglaterra, opúblico norte-americano ao qual o livro mais sedirigia rejeitou-o de imediato, como um ataquetendencioso e torpe contra seus melhores ideais; essepúblico parece nunca se ter detido para examinar suaargumentação. A linguagem e a emoção de algumasdas críticas mais violentas dirigidas contra o livroforam realmente extraordinárias6. Mas foi quase tãosurpreendente, para mim, a acolhida entusiásticarecebida de muitos que nunca julguei leriam umaobra desse tipo – e de muitos mais, que ainda hojeduvido terem-na de fato lido. E devo acrescentar quealgumas vezes a maneira como o livro foi tratadotrouxe-me muito viva à memória aquela observaçãode Lord Acton: “em todos os tempos, foram raros osamigos sinceros da liberdade, e os triunfos desta sedeveram a minorias que venceram associando-se acompanheiros cujos objetivos com frequênciadiferiam dos seus; essas alianças, sempre arriscadas,

têm sido às vezes desastrosas”.Parece muito pouco provável que a acolhida

extraordinariamente diversa que a obra teve num enoutro lado do Atlântico se deva apenas adessemelhança de temperamentos nacionais. Venho-me convencendo sempre mais de que a explicaçãoreside numa diferença de situações intelectuais, porocasião do aparecimento do livro. Na Inglaterra,como na Europa em geral, os problemas nele tratadostinham deixado de ser, havia muito, questõesabstratas. Os ideais por mim analisados já haviamcaído por terra, e mesmo seus partidários maisentusiastas haviam presenciado de modo concretoalgumas das dificuldades e alguns dos resultadosindesejados produzidos por sua aplicação prática. Euescrevia, pois, sobre fenômenos dos quais quasetodos os meus leitores europeus tinham umaexperiência mais ou menos próxima e apenasexpunha com método e coerência o que muitossentiam intuitivamente. Já ia a meio caminho umadesilusão quanto a esses ideais, e estudá-los comespírito crítico apenas tornava essa desilusão maisarticulada ou explícita.

Nos Estados Unidos, pelo contrário, esses ideais

ainda tinham frescor e virulência. Havia apenas dezou quinze anos – e não quarenta ou cinquenta, comona Inglaterra – que grande parte da intelligentsiacontraíra a infecção. E, a despeito da experiência doNew Deal, o entusiasmo por esse novo tipo desociedade racionalmente construída ainda não foramaculado pela experiência prática. O que em algumamedida se tornava vieux jeu para a maioria doseuropeus continuava sendo, para os radicais norte-americanos, a esperança radiosa de um mundomelhor, por eles abraçada e alimentada durante osanos ainda recentes da grande depressão econômica.

A opinião pública altera-se depressa nos EstadosUnidos. Pouco tempo antes do aparecimento de OCaminho da Servidão (quão pouco, relativamente,era esse tempo, mesmo hoje é difícil lembrar), oplanejamento econômico mais extremado havia sidodefendido a sério, e o modelo russo recomendadocomo exemplo por homens que em brevedesempenhariam papel importante na vida pública.Isso poderia ser demonstrado com facilidade, masseria injurioso apontar nomes agora. Basta mencionarque em 1934 o recém-criado National PlanningBoard dedicou enorme atenção aos exemplos deplanejamento fornecidos por estes quatro países:

Alemanha, Itália, Rússia e Japão. Dez anos maistarde, havíamos aprendido a nos referir aos mesmospaíses como “totalitários”, tínhamos feito uma longaguerra com três deles, e com o quarto estávamos aponto de iniciar a guerra fria. Mesmo assim, aargumentação deste livro, de que os acontecimentospolíticos naqueles países tinham algo a ver com aorientação de sua política econômica, ainda naquelaépoca foi rejeitada com indignação por aqueles que,nos Estados Unidos, defendiam o planejamento.Subitamente tornou-se moda negar que a inspiraçãodo planejamento viera da Rússia, e sustentar, como ofez um de meus críticos eminentes, que era “fatoóbvio que a Itália, a Rússia, o Japão e a Alemanhatinham chegado ao totalitarismo por caminhos muitodiferentes”.

Todo o clima intelectual nos Estados Unidos, porocasião do aparecimento de O Caminho da Servidão,era de molde a que o livro provocasseobrigatoriamente ou profundo choque, ou enormeregozijo, entre os membros dos grupos que secontrapunham de modo radical. Em consequência,apesar do sucesso aparente, a obra não teve aqui otipo de efeito que eu desejara, e que se produzira emoutros lugares. É verdade que suas principais

conclusões são hoje largamente aceitas. Tornou-sequase um lugar-comum afirmar que fascismo ecomunismo são meras variantes do mesmototalitarismo que o controle centralizado da atividadeeconômica tende a produzir – afirmação que a muitosse afigurava quase sacrílega há doze anos.Reconhece-se amplamente, agora, até mesmo que osocialismo democrático é algo muito precário einstável, corroído por contradições internas eproduzindo em toda a parte resultados dos maisdesagradáveis para muitos de seus defensores.

Para que se chegasse a esse clima de sobriedade,contribuíram por certo, mais do que este livro, aslições dadas pelos acontecimentos e debates maispopulares do problema7. E minha tese central não eratão original, ao ser publicada. Embora advertênciassemelhantes, feitas anteriormente, possam ter sidoem grande parte esquecidas, os perigos inerentes àorientação política que eu criticava haviam sidoapontados repetidas vezes. Quaisquer que sejam osméritos deste livro, não consistem em haver reiteradoessa tese, mas em ter examinado, com paciência eminúcia, as razões por que o planejamentoeconômico produz tais resultados indesejados, e oprocesso pelo qual eles se verificam.

Por esse motivo, espero que as circunstâncias nosEstados Unidos sejam agora mais favoráveis a umaconsideração séria da tese real deste livro do que oeram quando ele surgiu pela primeira vez. Creio queo que existe nele de importante deve ainda prestarseus serviços, embora reconheça que está quasemorto no mundo ocidental o socialismo radical contrao qual ele se dirigia primordialmente: aquelemovimento estruturado, que visava uma organizaçãopremeditada da vida econômica pelo estadotransformado em principal proprietário dos meios deprodução. O século do socialismo, nesse sentido,provavelmente chegou ao fim por volta de 1948.Muitas de suas ilusões foram abandonadas, mesmopor seus próprios líderes, e em outros países, assimcomo nos Estados Unidos, até a palavra socialismoperdeu muito de seu poder de atração. Sem dúvidahaverá quem tente salvar esse nome, em benefício demovimentos menos dogmáticos, menos doutrinários emenos sistemáticos. Mas uma argumentação aplicávelapenas contra as concepções bem definidas dereforma social que caracterizavam os movimentossocialistas do passado poderia hoje afigurar-se merainvestida contra moinhos de vento.

No entanto, ainda que o socialismo radical seja

talvez coisa do passado, algumas de suas concepçõespenetraram demasiado a fundo em toda a estruturado pensamento de hoje, a ponto de justificar atitudesde complacência. Se poucos, no Ocidente, queremreconstruir a sociedade a partir de seus alicerces combase em algum plano ideal, são entretanto numerososos que ainda acreditam em medidas que, embora nãovisem a uma reforma completa da economia, podemno entanto produzir involuntariamente esse mesmoresultado, por efeito de conjunto. E, mais ainda doque quando escrevi este livro, a defesa de umapolítica que a longo termo seja inconciliável com apreservação da sociedade livre já não é assunto a serdecidido por um partido. Essa mistura de ideaiscontraditórios e com frequência inconsistentes que,sob o rótulo de estado previdenciário, em grandeparte substituiu o socialismo como objetivo dosreformadores, precisa ser analisada comdiscernimento, se não quisermos que seus resultadossejam semelhantes aos do socialismo extremado. Nãonegamos que alguns de seus alvos, além depraticáveis, sejam louváveis. Mas há muitos meios debuscar o mesmo alvo, e nas presentes condições daopinião pública há um certo perigo de que nossaimpaciência por obter resultados rápidos nos conduza

a escolher instrumentos que, embora talvez maiseficientes para produzir determinados fins, sãoentretanto incompatíveis com a preservação de umasociedade livre. A tendência crescente para confiarem coerções e discriminações de procedênciaadministrativa, em casos em que a modificação denormas legais de ordem geral poderia, talvez maislentamente, atingir a mesma meta, bem como pararecorrer a controles estatais diretos ou para criarentidades monopolísticas onde o uso judicioso deincentivos financeiros poderia atrair esforçosespontâneos constituem ainda um legado poderoso daera socialista, o qual talvez ainda influencie a políticapor muito tempo.

Exatamente porque nos próximos anos asideologias políticas não parecem propensas a visarum objetivo definido com clareza, mas reformasesparsas, afigura-se agora da maior importância umacompreensão plena do processo mediante o qualcertas medidas podem destruir as bases de umaeconomia de mercado, e asfixiar gradualmente opoder criador de uma civilização livre. Sócompreendendo por que e como certo tipo decontrole econômico tende a paralisar as forçaspropulsoras de uma sociedade livre, e que espécie de

medidas são em particular perigosas nesse campo,poderemos esperar que as experiências sociais nãonos conduzam a situações que ninguém entre nósdeseja.

Este livro pretende ser uma contribuição para essatarefa. Espero que, na atmosfera mais calma de hoje,seja ele enfim recebido no espírito dentro do qual foiconcebido: não como uma exortação à resistênciacontra qualquer progresso ou experiência, mas comouma advertência para que insistamos em submeterpreviamente toda modificação a certos testes(descritos no capítulo central que trata do estado deDireito) antes de nos comprometermos a tomar umrumo do qual dificilmente conseguiremos nos afastarmais tarde.

O fato de que este livro foi escrito com vistasapenas ao público inglês não parece ter prejudicadoseriamente sua inteligibilidade pelo leitor americano.Há, porém uma questão de terminologia sobre a qualdevo aqui dar uma explicação, a fim de prevenir mal-entendidos. Uso a todo momento a palavra “liberal”em seu sentido originário, do século XIX, que é aindacomumente empregado na Inglaterra. Na linguagemcorrente nos Estados Unidos, seu significado é com

frequência quase o oposto, pois, para camuflar-se,movimentos esquerdistas deste país, auxiliados pelaconfusão mental de muitos que realmente acreditamna liberdade, fizeram com que “liberal” passasse aindicar a defesa de quase todo tipo de controlegovernamental.

Interrogo-me ainda, perplexo, sobre a razão pelaqual os que de fato creem em liberdade neste paísnão só permitiram que a esquerda se apropriassedesse termo quase insubstituível, mas chegaram acolaborar nessa manobra, passando a usá-lo emsentido pejorativo. Isso é lamentável sobretudoporque daí resultou a tendência de muitosverdadeiros liberais a se autodenominaremconservadores. É sem dúvida verdade que, na lutacontra os adeptos do estado todo-poderoso, overdadeiro liberal deve às vezes fazer causa comumcom os conservadores. Em certas circunstâncias,como na Inglaterra de hoje, ser-lhe-ia difícil encontraroutro meio de trabalhar efetivamente pelos seusideais. Mas o verdadeiro liberalismo distingue-se doconservantismo e é perigoso confundi-los. Emboraelemento necessário em toda sociedade estável, oconservantismo não constitui, contudo, um programasocial; em suas tendências paternalistas, nacionalistas,

de adoração ao poder, ele com frequência se revelamais próximo do socialismo que do verdadeiroliberalismo; e, com suas propensões tradicionalistas,anti-intelectuais e frequentemente místicas, ele nunca,a não ser em curtos períodos de desilusão, despertasimpatia nos jovens e em todos os demais que julgamdesejáveis algumas mudanças para que este mundose torne melhor. Por sua própria natureza, ummovimento conservador tende a defender osprivilégios já instituídos e a apoiar-se no podergovernamental para protegê-los. A essência daposição liberal, pelo contrário, está na negação detodo privilégio, se este é entendido em seu sentidopróprio e original, de direitos que o estado concede egarante a alguns, e que não são acessíveis em iguaiscondições a outros. Talvez seja necessária ainda umapalavra para esclarecer por que estou permitindo queeste livro reapareça sem absolutamente nenhumamodificação, depois de decorridos quase doze anos.Várias vezes tentei revê-lo, e há numerosas passagensem que eu gostaria de apresentar explicações maispormenorizadas, ou de ser mais cauto, ou defortalecer a argumentação com maior número deilustrações e provas.

Mas todas as tentativas de reescrevê-lo só

demonstraram que eu nunca poderia redigirnovamente um livro tão breve cobrindo um campotão amplo; e parece-me que, entre os méritos que elepossa ter, o maior é sua relativa brevidade. Fuiportanto forçado a concluir que, se lhe quiser fazerquaisquer acréscimos, devo elaborar estudos à parte.Comecei a executar essa tarefa escrevendo váriosensaios, alguns dos quais analisam maisminuciosamente certas posições filosóficas eeconômicas em que este livro mal toca8. Sobre asorigens das ideias aqui criticadas, em especial, e suasrelações com alguns dos movimentos intelectuaismais poderosos e marcantes de nossos tempos, tecicomentários em outro estudo9. E em breve esperocomplementar o sumaríssimo capítulo central destelivro com uma análise mais extensa das relações entreigualdade e justiça10.

Há, porém, um tópico sobre o qual o leitor comrazão esperaria um comentário meu neste prólogo,comentário esse que, mais do que qualquer outro,pediria um novo livro. Pouco mais de um ano após aprimeira edição de O caminho da servidão, assumiuo poder na Inglaterra um governo socialista, quedurou seis anos. Devo responder, pelo menos

brevemente, à pergunta sobre se essa experiênciaconfirmou ou desmentiu minhas apreensões. Em todocaso, ela deu novo alcance a minha argumentação, ecreio poder acrescentar que revelou a muitos, aosquais raciocínios abstratos nunca teriam convencido,serem reais as dificuldades por mim apontadas. Comefeito, não muito depois da ascensão do governotrabalhista, numerosas questões postas de lado pormeus críticos norte-americanos, como sendo produtode simples fantasia, tornaram-se temas centrais dedebates políticos na Inglaterra. Em pouco tempo, atémesmo documentos oficiais estavam analisando comatenção o perigo do totalitarismo criado pela políticade planejamento econômico. Nada ilustra melhor amaneira pela qual a lógica inerente à política socialistalevou, involuntariamente, aquele governo a um tipode coerção que lhe causava desagrado, do que apassagem seguinte do Economic Survey for 1947(que o primeiro-ministro apresentou ao parlamentoem fevereiro daquele ano) e os acontecimentos quevieram depois.

Há uma diferença essencial entre o planejamentototalitário e o democrático. O primeiro subordinatodos os desejos e todas as preferências individuais àsexigências do estado. Com esse objetivo, emprega

vários métodos de coerção sobre o indivíduo,privando-o da liberdade de escolha. Tais métodospodem ser necessários mesmo numa democracia, nasituação extremamente crítica de uma grande guerra.Por isso, o povo britânico conferiu ao governo,durante a guerra, poderes especiais para intervir nosetor trabalhista. Mas em tempos normais o povo deum país democrático não transferirá para o governosua liberdade de escolha. Um governo democráticodeve portanto conduzir o planejamento econômico demodo a preservar ao máximo a liberdade de escolhade cada cidadão.

O ponto interessante dessa profissão de boasintenções é que, seis meses mais tarde, o mesmogoverno viu-se, em plena paz, obrigado a fazer votarleis autorizando-o a intervir no campo trabalhista. Aimportância disso não diminui, como querem alguns,pelo fato de esses poderes nunca terem sidoempregados; pois, quando se sabe que as autoridadespodem usar a coação, poucos esperam o seuemprego efetivo. Mas é difícil compreender comopôde o governo insistir em tais ilusões, se o mesmodocumento proclama que lhe caberia então “declararqual o melhor uso dos recursos, tendo em vista ointeresse nacional” e “estipular qual o dever da nação

em matéria econômica: determinar o que é maisimportante e quais serão os objetivos políticos”.

Evidentemente, seis anos de governo socialista naInglaterra nada produziram que se assemelhasse a umestado totalitário. Mas os que alegam que issodesmentiu a tese de O Caminho da Servidão narealidade deixaram escapar uma das afirmaçõesfundamentais do livro: a mais importantetransformação que um controle governamental amploproduz é de ordem psicológica, é uma alteração nocaráter do povo. Isso constitui um processonecessariamente lento, que se estende não apenas poralguns anos, mas talvez por uma ou duas gerações. Oimportante é notar que os ideais políticos de um povoe sua atitude em face da autoridade tanto são efeitosquanto causas das instituições políticas sob as quaisele vive. O que significa, entre outras coisas, quemesmo uma vigorosa tradição de liberdade políticanão constitui garantia suficiente, quando o perigoconsiste precisamente em novas instituições e novasorientações políticas que ameaçam corroer e destruirpouco a pouco aquele espírito. Sem dúvida, asconsequências poderão ser evitadas se o mesmoespírito se reafirmar a tempo, e se o povo não apenaspuser abaixo o partido que o vinha conduzindo para

cada vez mais longe do caminho perigoso, mastambém reconhecer a natureza da ameaça e mudarresolutamente de orientação. Não há ainda muitasrazões para pensar que isso se deu na Inglaterra.

Mesmo assim, saltam aos olhos as mudanças porque passou o caráter do povo britânico, não apenasdurante o governo trabalhista, mas ao longo doperíodo muito maior em que gozou das bênçãos deum estado previdenciário paternalista. Essasmudanças não podem ser demonstradas comfacilidade, mas são sentidas com clareza por quemmora no país. A título de ilustração, citarei algumaspassagens significativas de uma pesquisa sociológicasobre o impacto causado nas atitudes mentais dosjovens pelo excesso de regulamentação. A pesquisarefere-se à situação anterior à subida do governotrabalhista ao poder, por volta da época em que estelivro foi publicado pela primeira vez, e examinasobretudo os efeitos das regulamentações do tempoda guerra, as quais o governo trabalhista tornoupermanentes.

É especialmente na cidade que a esfera de escolhaslivres tende a desaparecer. Na escola, no local detrabalho, no vaivém do dia a dia, mesmo no arranjo e

no suprimento do próprio lar, muitas das atividadesem geral facultadas aos homens são quer proibidas,quer impostas. Escritórios especiais, denominadosAgências para Orientação dos Cidadãos, são criadospara guiar o povo desnorteado através do matagal deregras e para indicar aos obstinados as raras clareirasem que um indivíduo ainda pode fazer escolhas... [orapaz da cidade] está condicionado a não levantar umdedo sem antes se reportar mentalmente a algumregulamento. O programa de um jovem comum dacidade para um dia comum de trabalho mostra queele passa grandes períodos das horas em que estáacordado movimentando-se de forma predeterminadapor diretrizes de cuja elaboração não participou, cujafinalidade precisa raramente entender, e cujo acertonão pode julgar... A inferência de que um jovem dacidade necessita de mais disciplina e de um controlemais estrito é excessivamente apressada. Seria maiscerto dizer que ele já sofre de uma dose exagerada decontroles... Olhando para seus pais e irmãos ou irmãsmais velhos, descobre que também eles estão presosa regulamentos. Ele os vê tão aclimatados a essasituação, que raramente planejam e realizam porconta própria qualquer excursão ou iniciativa social.Assim, não vislumbra um período futuro em que um

vigoroso espírito de responsabilidade lhe possa serútil ou ter utilidade para outros... [Os jovens] sãoobrigados a engolir tantos controles externos semsentido a seus olhos que procuram a fuga e acompensação numa ausência de disciplina tãocompleta quanto possível11.

Haverá excesso de pessimismo em recear que umageração criada sob tais condições não rompa osgrilhões aos quais se habituou?

Creio, pelo contrário, que essa descrição antesconfirma plenamente o que de Tocqueville previusobre um “novo tipo de servidão”, que apareceriaquando,

depois de ter subjugado sucessivamente cadamembro da sociedade, modelando-lhe o espíritosegundo sua vontade, o estado estende então seusbraços sobre toda a comunidade. Cobre o corposocial com uma rede de pequenas regrascomplicadas, minuciosas e uniformes, rede que asmentes mais originais e os caracteres mais fortes nãoconseguem penetrar para elevar-se acima damultidão. A vontade do homem não é destruída, masamolecida, dobrada e guiada; ele raramente éobrigado a agir, mas é com frequência proibido de

agir. Tal poder não destrói a existência, mas a tornaimpossível; não tiraniza, mas comprime, enerva,sufoca e entorpece um povo, até que cada nação sejareduzida a nada mais que um rebanho de tímidosanimais industriais, cujo pastor é o governo. Semprepensei que uma servidão metódica, pacata e suave,como a que acabo de descrever, pode ser combinada,com mais facilidade do que em geral se pensa, comalguma forma aparente de liberdade, e que poderiamesmo estabelecer-se sob as asas da soberaniapopular12.

O que de Tocqueville não considerou foi porquanto tempo tal governo permaneceria nas mãos dedéspotas benevolentes, quando seria tão mais fácilpara qualquer grupo de rufiões conservar-seindefinidamente no poder, desprezando todo o decorotradicional da vida política. Talvez eu deva tambémrecordar ao leitor que nunca acusei os partidossocialistas de visarem deliberadamente a um regimetotalitário, ou sequer suspeitei que os líderes dosvelhos movimentos socialistas jamais mostrassem taisinclinações. O que afirmei neste livro, e o que aexperiência inglesa me vem tornando cada vez maisevidente, é que as consequências imprevistas maisinevitáveis da planificação socialista criam um estado

de coisas em que, persistindo a mesma orientação, asforças totalitárias acabarão dominando. Salientoexplicitamente que o socialismo só pode ser posto emprática mediante a utilização de métodos que a maiorparte dos socialistas desaprova, e acrescento mesmoque nisso os velhos partidos socialistas eram inibidospor seus ideais democráticos, e não possuíam arudeza necessária para realizar a tarefa queescolheram. Temo que a impressão deixada pelogoverno trabalhista seja de que tais inibições são,afinal de contas, menores entre os socialistasbritânicos do que o foram entre seus companheirossocialistas da Alemanha 25 anos antes. Sem dúvidaos sociais-democratas alemães, na década de 1920,sob condições econômicas iguais ou mais difíceis,nunca chegaram tão perto do planejamento totalitáriocomo o governo trabalhista britânico.

Como não posso aqui examinar em detalhe osefeitos dessas orientações políticas, citarei de modoconciso a opinião de outros observadores, menossuspeitos do que eu. Algumas das condenações maisenérgicas, na realidade, vêm de homens que poucoantes haviam sido membros do Partido Trabalhista.Assim, Ivor Thomas, em obra aparentementedestinada a explicar por que deixou o partido, chega à

conclusão que, “sob o ponto de vista das liberdadeshumanas fundamentais, há pouca escolha entrecomunismo, socialismo e nacional-socialismo. Todoseles são exemplos do estado coletivista ou totalitário.Na sua essência, socialismo pleno não é apenas omesmo que comunismo, mas dificilmente sediferencia do fascismo13”.

O mais grave dessa evolução é o crescimento dacoerção administrativa arbitrária e a progressivadestruição do estado de Direito, fundamento daliberdade britânica, e isso pelas exatas razões aquianalisadas no capítulo VI. Evidentemente, esseprocesso se iniciara muito antes da ascensão doúltimo governo trabalhista, e havia sido acentuadopela guerra. Mas as experiências de planejamentoeconômico sob o governo trabalhista levaram essaevolução a tal ponto que se tornou hoje duvidoso sese pode dizer que o estado de Direito ainda prevalecena Inglaterra. O “novo despotismo” sobre o qual umministro da Suprema Corte de Justiça advertiu aInglaterra há 25 anos é, como The Economistobservou em data recente, não mais um simplesperigo, mas um fato concreto14. Trata-se de umdespotismo exercido por uma burocraciaconscienciosa e honesta, em prol daquilo que ela

sinceramente acredita ser o bem do país. Mas, apesardisso, o governo é arbitrário, e na prática não estásujeito a um efetivo controle parlamentar. A suamáquina poderia ser eficaz para outros fins, que nãoos de ordem beneficente para os quais é agora usada.Duvido que tenha havido muito exagero quando, hápouco tempo, um eminente jurista britânico, emcuidadosa análise dessas tendências, chegou àconclusão de que, “na Inglaterra de hoje, vivemos àbeira da ditadura. A transição seria fácil e rápida,podendo ser realizada em plena legalidade. Seconsiderarmos os poderes incomensuráveis de quegoza o atual governo, bem como a ausência dequalquer fiscalização eficaz como seria umaconstituição escrita ou uma segunda câmararealmente ativa, veremos que já foram dados tantospassos em direção à ditadura que os que ainda faltamsão relativamente pequenos”15.

Para uma análise mais minuciosa da políticaeconômica do governo trabalhista inglês e de suasconsequências, nada posso fazer de melhor do queremeter o leitor à obra Ordeal by Planning, doprofessor John Jewkes (Londres, Macmillan, 1948).É o estudo mais bem feito que conheço sobre umexemplo concreto dos fenômenos que analisei aqui

em termos genéricos. Ele complementa este livromelhor do que tudo quanto eu pudesse acrescentar, eé uma lição cuja importância vai muito além da Grã-Bretanha.

Parece agora improvável que, mesmo se outrogoverno trabalhista vier a subir ao poder naInglaterra, ele retome as experiências denacionalização e planejamento em larga escala. Masnesse país, como em todo o mundo, a derrota sofridapelo violento ataque do socialismo sistemático apenastem dado, aos que desejam ardentemente apreservação da liberdade, uma pausa para respirar,durante a qual devemos reexaminar nossas ambiçõese desfazer-nos de todos os elementos da herançasocialista que representam um perigo para asociedade livre. Sem semelhante revisão de nossosobjetivos sociais, é provável que continuemos a serarrastados na mesma direção para a qual umsocialismo completo apenas nos teria conduzido umpouco mais rapidamente.

F.A. Hayek

Prefácio da Edição Inglesa de1976

Este livro, escrito nas horas vagas entre os anos de1940 e 1943, enquanto minha mente ainda tinha porocupação fundamental problemas de teoriaeconômica pura, tornou-se para mim, como era de seesperar, o ponto de partida de mais de trinta anos detrabalho num novo campo. Esta primeira experiêncianuma nova direção foi motivada pelo desgosto queme causava a interpretação totalmente errônea dadapelos círculos “progressistas” ingleses ao caráter domovimento nazista, o que me levou de ummemorando ao então diretor da London School ofEconomics, Sir William Beveridge, a um artigopublicado na Contemporary Review em 1938. Apedido do professor H. G. Gideonse, da Universidadede Chicago, ampliei o artigo para que fosse publicadoem seus Public Policy Pamphlets. Por fim, tendo emvista as circunstâncias, ao constatar que todos osmeus colegas britânicos mais competentes estavam

preocupados com os problemas mais prementes dacondução da guerra, expandi-o relutantemente naforma deste pequeno tratado. A despeito do sucessode todo inesperado do livro – no caso da ediçãonorte-americana, não cogitava de início, ainda maisdo que no da britânica – senti-me por muito tempoum tanto insatisfeito com ele. Embora tivessedeclarado com franqueza no seu início que se tratavade uma obra política, fui levado, pela maioria demeus colegas cientistas sociais, a considerar queaplicara minha capacidade no campo errado, e sentia-me eu próprio temeroso de que, indo além daeconomia técnica, pudesse ter excedido minhacompetência. Não falarei aqui da fúria que o livrodespertou em certos meios, ou da curiosa diferençaentre sua acolhida na Grã-Bretanha e nos EstadosUnidos – que comentei ligeiramente, vinte anos atrás,no prefácio à primeira edição norte-americana embrochura. Apenas para indicar o caráter da reaçãogeneralizada, mencionarei que um filósofo muitoconhecido, cujo nome não vou citar, escreveu a outropara censurá-lo por haver elogiado esse escandalosolivro que, “é claro, (ele) não lerá”.

Mas embora tenha feito um grande esforço nosentido de retornar à economia propriamente dita,

não fui capaz de libertar-me da sensação de que osproblemas em que tão impremeditadamenteembarcara eram mais desafiadores e importantes queos da teoria econômica, e de que muito do quedissera em meu primeiro esboço carecia declarificação e aperfeiçoamento. Quando o escrevi,também não me tinha, de modo algum, libertado osuficiente de todos os preconceitos e superstições quedominavam a opinião geral, e menos ainda aprenderaa evitar todas as confusões prevalecentes de termos econceitos de que me tornei, a partir de então, muitocônscio. E a análise das consequências das políticassocialistas que o livro tenta fazer é sem dúvidaincompleta se não se faz acompanhar da necessáriaexplanação sobre o que uma ordem de mercadoadequadamente orientada exige e pode alcançar. Foisobretudo a esse último problema que dediquei otrabalho que realizei desde então nesse campo.

O primeiro resultado desses esforços de explicaçãoda natureza de uma ordem de liberdade foi um livrosubstancial, chamado The Constitution of Liberty(1960) (N.do E.: publicado em português, sob o títuloOs Fundamentos da Liberdade, pela Editora VisãoLtda. e a Editora Universidade de Brasília, em1983.), no qual tentei essencialmente expressar sob

nova forma e tornar mais coerentes as doutrinas doliberalismo clássico do século XIX. A consciência deque a nova formulação deixara irrespondidas algumasquestões relevantes levou-me em seguida a umesforço suplementar no sentido de apresentar minhaspróprias respostas num trabalho em três volumesintitulado Law, Legislation, and Liberty16, cujoprimeiro volume foi lançado em 1973, o segundo em1976, e o terceiro está em vias de ser concluído.

Nos últimos vinte anos em que permaneciempenhado nessas tarefas, acredito ter aprendidomuito sobre os problemas analisados no presentelivro que, segundo me parece, jamais reli duranteesse tempo. Tendo-o feito presentemente com vistasa este prefácio, não mais me sinto no dever de medesculpar; ao contrário: pela primeira vez, estoubastante orgulhoso dele – e não menos da intuiçãoque me levou a dedicá-lo “aos socialistas de todos ospartidos”. De fato, embora eu tenha aprendido nesseintervalo muita coisa que não sabia quando o escrevi,surpreendeu-me muitas vezes nessa releitura oquanto já havia percebido no início e que meutrabalho posterior confirmou. E embora, espero,minhas obras posteriores venham a ser maisgratificantes ao especialista, estou agora pronto a

recomendar, sem hesitação, este primeiro livro aoleitor comum, desejoso de uma introdução simples enão-técnica ao que acredito ser ainda uma dasquestões mais ameaçadoras que teremos de resolver.

O leitor provavelmente perguntará se isso significaque ainda estou disposto a defender todas asprincipais conclusões deste livro: e a resposta é, emlinhas gerais, afirmativa. A mais importante ressalvaque tenho a acrescentar deve-se à circunstância deque, nesse meio tempo, a terminologia se modificoue, por essa razão, o que digo no livro pode darmargem a falsas interpretações. Quando o escrevi,socialismo significava, inequivocamente, a estatizaçãodos meios de produção e o planejamento econômicocentral que ela tornava possível e necessário. Nessesentido, por exemplo, a Suécia está hoje muito maisdistante do socialismo em matéria da organização quea Grã-Bretanha e a Áustria, embora a Suécia seja tidaem geral como bem mais socializada. Isto se deve aofato de que socialismo passou a significar sobretudo aredistribuição extensiva da renda por meio datributação e das instituições do estado previdenciário(welfare state). Na última acepção do termo, osefeitos que analiso neste livro se produzem muitomais lenta, indireta e imperfeitamente. Acredito que o

resultado final tenda a ser quase o mesmo, ainda queos processos pelos quais é produzido não coincidamde todo com o que é descrito no livro.

Afirmou-se com frequência que eu sustentara quequalquer movimento na direção do socialismo levariaforçosamente ao totalitarismo. Conquanto o perigoexista, não é isso o que o livro diz. O que ele contémé a advertência de que, a menos que retifiquemos osprincípios de nossa política de governo, advirãoalgumas consequências bastante desagradáveis, que amaioria dos defensores dessa política não desejam.

Os pontos que hoje considero falhos neste livrosão, sobretudo, a pouca ênfase que dei à relevânciada experiência do comunismo na Rússia – falhatalvez perdoável quando lembramos que, quando oescrevi, a Rússia era nossa aliada na guerra – e o fatode não me ter libertado inteiramente de todas assuperstições intervencionistas então em voga, o queme levou a fazer várias concessões que hoje reputoinjustificadas. E sem dúvida não tinha ainda plenaconsciência de como as coisas iam mal em certosaspectos. Ainda pensava estar formulando umapergunta retórica quando indagava, por exemplo (p.91), se Hitler obtivera seus poderes ilimitados de

maneira estritamente constitucional – “quem sugeririaque o estado de Direito ainda prevalecia naAlemanha?” –, só para descobrir mais tarde que osprofessores Hans Kelsen e Harold J. Laski, e éprovável que muitos outros juristas e cientistaspolíticos socialistas, seguidores desses influentesautores, haviam justamente afirmado isso. Demaneira bastante generalizada, novos estudos dastendências do pensamento e das instituiçõescontemporâneas levaram-me, na realidade, a ficarmais alarmado e preocupado. E tanto a influência dasideias socialistas quanto a crença ingênua nas boasintenções dos detentores do poder totalitáriocresceram acentuadamente desde que escrevi estelivro.

Por muito tempo, ressenti-me de ser maisconhecido pelo que considerava um panfleto deocasião que por meu trabalho estritamente científico.Depois de reexaminar o que escrevi naquela época, àluz de cerca de trinta anos de estudos maisaprofundados sobre os problemas que então levantei,já não me sinto assim. Embora o livro possa contermuitas afirmações que, quando o escrevi, não tinhacondições de demonstrar de forma convincente,constituiu um esforço genuíno para encontrar a

verdade e deu lugar a descobertas que ajudarãomesmo àqueles que discordam de mim a evitargraves perigos.

F.A. Hayek

Introdução

“Poucas descobertas são mais irritantes do queas que revelam a origem das ideias”. – Lord

ActonOs acontecimentos contemporâneos diferem dos

históricos porque desconhecemos os resultados queirão produzir. Olhando para trás, podemos avaliar asignificação dos fatos passados e acompanhar asconsequências que tiveram. Mas enquanto a históriase desenrola, ainda não é história para nós. Ela nosconduz a um terreno desconhecido, e só de quandoem quando podemos vislumbrar o que está à nossafrente. Tudo seria bem diverso se nos fosse dadoreviver os mesmos fatos com o pleno conhecimentodo que tivéssemos visto antes. Quão diferentes ascoisas nos pareceriam, quão importantes e até mesmoalarmantes se nos afigurariam mudanças que agoramal notamos. Talvez seja uma felicidade para ohomem o fato de que ele jamais poderá tersemelhante experiência e de que ignore quaisquer leisa que a história deva obedecer.

Contudo, embora a história nunca se repita emcondições idênticas, e exatamente porque o seudesenrolar nunca é inevitável, podemos de certomodo aprender do passado a evitar a repetição de ummesmo processo. Não é preciso ser profeta para dar-se conta de perigos iminentes. Uma combinaçãoacidental de vivência e interesse muitas vezesrevelará a um homem certos aspectos dosacontecimentos que poucos terão visto.

As páginas que se seguem são o resultado de umaexperiência que se aproxima tanto quanto possíveldessa oportunidade de vivermos duas vezes o mesmoperíodo histórico – ou, pelo menos, de observarmosduas vezes uma evolução de ideias muito semelhante.Enquanto tal experiência tem pouca probabilidade deser obtida em um único país. pode-se vir a adquiri-la,sob certas circunstâncias, vivendo alternadamente epor longos períodos em países diferentes. Embora asinfluências sofridas pela tendência do pensamento, namaioria das nações civilizadas, sejam em grande partesemelhantes, essas influências não operam ao mesmotempo nem com a mesma rapidez. Dessa forma, indode um país para outro, é possível observar duasvezes fases análogas de um processo intelectual. Ossentidos, em tais circunstâncias, adquirem uma

agudeza especial. Quando ouvimos serem expressaspela segunda vez as opiniões de há vinte ou 25 anos,ou reclamadas as mesmas medidas, estas opiniões emedidas adquirem um novo sentido como sintomasde uma tendência definida. Elas sugerem, se não anecessidade, pelo menos a probabilidade de que orumo dos acontecimentos será semelhante. Faz-sehoje necessário declarar esta verdade amarga: é odestino da Alemanha que estamos em perigo deseguir. Reconheço que esse perigo não é imediato,pois as condições na Inglaterra ainda estão de talmodo distantes daquelas que em anos recentesocorreram na Alemanha, que se torna difícil acreditarestarmos marchando na mesma direção. Contudo,embora a estrada seja longa, é uma estrada na qual, àmedida que se avança, é mais difícil voltar atrás. Se,a longo prazo, somos os criadores do nosso destino,de imediato somos escravos das ideias que criamos.

Somente reconhecendo o perigo a tempopoderemos ter esperança de evitá-lo. Não é com aAlemanha de Hitler, a Alemanha da presente guerra,que a Inglaterra já apresenta semelhanças. Mas osque estudam as correntes de ideias dificilmentedeixarão de observar que há mais do que umasemelhança superficial entre o rumo do pensamento

na Alemanha durante e após a Primeira GuerraMundial e o atual rumo das ideias neste país. Nelepor certo existe agora o mesmo propósito de que aorganização introduzida no país para fins defensivosseja mantida para fins produtivos. Há o mesmodesprezo pelo liberalismo do século XIX, o mesmo eespúrio “realismo” e até cinismo, a mesma aceitaçãofatalista de “tendências inevitáveis”. E pelo menosnove em cada dez lições que os nossos reformadoresmais vociferantes tão ansiosamente desejam queaprendamos com esta guerra são as mesmas que osalemães aprenderam com a última guerra e que muitocontribuíram para produzir o regime nazista. Naspáginas deste livro teremos a oportunidade demostrar que há ainda numerosos outros pontos emque, com um intervalo de quinze a 25 anos,parecemos seguir o exemplo da Alemanha. Emboranão nos agrade lembrar o fato, não faz muitos anosque a política socialista daquele país costumava serconsiderada pelos progressistas como um exemplo aseguir, assim como, em anos mais recentes, a Suéciafoi o modelo para o qual se voltavam os olhosprogressistas. Todos aqueles cuja memória vai maislonge sabem quão profundamente, durante pelomenos uma geração, antes da última guerra, o

pensamento e a prática dos alemães influenciaram osideais e a política na Inglaterra.

Passei cerca de metade da minha vida de adulto naÁustria, onde nasci, sempre em estreito contato coma vida intelectual alemã, e a outra metade nosEstados Unidos e na Inglaterra. Nos últimos dozeanos, durante os quais este país tornou-se para mimum lar, fui-me convencendo sempre mais e mais deque no mínimo algumas das forças que destruíram aliberdade na Alemanha também estão em atividadeaqui na Inglaterra, e de que o caráter e a origemdesse perigo são, se possível, ainda menoscompreendidos aqui do que o foram na Alemanha. Asuprema tragédia, ainda não percebida, está em que,na Alemanha, foram em grande parte pessoas de boavontade, homens que eram admirados e tidos comoexemplos nos países democráticos, os queprepararam o caminho para as forças que agorarepresentam tudo o que detestam – se é que elesmesmos não as criaram. Contudo, a nossapossibilidade de evitar um destino semelhantedepende de encararmos o perigo e de estarmosdispostos a revisar mesmo as nossas mais carasesperanças e ambições no caso de estas se revelarema fonte desse perigo. Ainda são bem escassos os

sinais de que possuímos a coragem intelectual parareconhecer perante nós mesmos a possibilidade determos errado.

Poucos estão prontos a admitir que a ascensão donazismo e do fascismo não foi uma reação contra astendências socialistas do período precedente, mas oresultado necessário dessas mesmas tendências. Estaé uma verdade que a maioria das pessoas reluta emaceitar, mesmo quando as semelhanças entre muitosaspectos detestáveis dos regimes internos da Rússiacomunista e da Alemanha nacional-socialista sãoamplamente reconhecidas. Em consequência, muitosdos que se julgam infinitamente superiores àsaberrações do nazismo e detestam com sinceridadetodas as suas manifestações trabalham ao mesmotempo em prol de ideais cuja realização levariadiretamente à tirania que odeiam.

Todos os paralelos entre a marcha dosacontecimentos em diferentes países são, semdúvida, enganosos; mas os meus argumentos não sebaseiam apenas em tais paralelos. Tampouco afirmoque uma evolução nesse sentido seja inevitável. Se ofosse, não haveria razão para escrever estas páginas.Essa evolução pode ser evitada se as pessoas

perceberem a tempo onde as levarão os seusesforços. Mas até época recente havia poucaesperança de que fosse bem-sucedida qualquertentativa para lhes fazer ver esse perigo. Parece,todavia, que agora a ocasião é propícia a umadiscussão mais completa de todo o assunto. Não háapenas o fato de que a existência do problema éagora admitida de modo mais amplo: há tambémrazões especiais que, nesta conjuntura, tornamimperativo considerar de frente tais questões.

Talvez se diga não ser este o momento para sedebater um ponto sobre o qual as opiniões conflitamviolentamente. Mas o socialismo de que falamos nãoé um assunto partidário, e as questões aqui discutidaspouco têm a ver com as questões em disputa entrepartidos políticos. Para o nosso problema, poucoimporta o fato de alguns grupos desejarem menorgrau de socialismo do que outros, de que estesqueiram o socialismo em função do interesse de umgrupo e aqueles, no interesse de outro. O importanteé que, se considerarmos as pessoas cujas opiniõesinfluem nos acontecimentos neste país, todas elas sãoem certa medida socialistas. Se já não está em vogaacentuar que “agora todos somos socialistas”, issoocorre apenas porque o fato é demasiado óbvio.

Dificilmente haverá alguém que duvide de quedevemos continuar caminhando para o socialismo, emuitos há que estão tentando desviar esse movimentono simples interesse de um grupo ou de uma classeem particular. É porque quase todos o desejam queestamos marchando nessa direção. Não há nenhumfato objetivo que torne essa marcha inevitável. Maistarde, teremos alguma coisa a dizer sobre a pretensainevitabilidade da “planificação”. A questão principalestá em saber aonde esse movimento nos levará. Seas pessoas cujas convicções lhes emprestam agoraum impulso irresistível começarem a ver o queapenas uns poucos já compreenderam, não serápossível que recuem horrorizadas e abandonem opropósito em que durante meio século tanta gente deboa vontade se tem empenhado? Saber onde noslevarão essas ideias comuns à nossa geração éproblema não para um partido mas para cada um denós – e problema da mais importante significação.Poder-se-á imaginar maior tragédia do que, noesforço de modelar conscientemente o nosso futurode acordo com elevados ideais, estarmos de fato einvoluntariamente produzindo o oposto daquilo porque vimos lutando?

Há, porém, um motivo bem mais premente para

que procuremos compreender a sério, nestemomento, as forças que criaram o nacional-socialismo: o fato de que isto nos capacitará aentender nosso inimigo e o que está em jogo entrenós. Não se pode negar que ainda são poucoconhecidos os ideais positivos pelos quais estamoslutando. Sabemos que lutamos pela liberdade deconduzir nossa vida de acordo com nossas própriasideias. Isso é muito, mas não é o bastante.

Não é o suficiente para nos dar a firme convicçãode que necessitamos a fim de resistir a um inimigoque usa a propaganda como uma de suas armasprincipais, e não apenas do modo mais ruidoso, mastambém nas suas formas mais sutis. É ainda maisinsuficiente quando temos de enfrentar essapropaganda não só nos países sob o controle doinimigo mas em outras regiões, onde os seus efeitosnão desaparecerão com a derrota das potências doEixo.

Não é o bastante se precisarmos demonstrar aosoutros que aquilo por que lutamos é digno de seuapoio, e tampouco basta para nos guiar na construçãode uma nova Europa a salvo dos perigos diante dosquais o velho mundo sucumbiu. É lamentável que os

ingleses, ao tratar com os ditadores antes do conflito,não menos que em suas tentativas de propaganda ena discussão dos alvos de guerra, tenham mostradouma íntima insegurança e incerteza quanto aobjetivos que só podem ser explicados pela confusãoacerca dos próprios ideais e da natureza dasdiferenças que os separam do inimigo. Fomosenganados, tanto por nos termos recusado a acreditarque o inimigo era sincero ao esposar algumas crençasdas quais compartilhamos, como por termosacreditado na sinceridade de algumas de suas outrasalegações. Não se enganaram, tanto os partidos daesquerda como os da direita, ao acreditar que opartido nacional-socialista estava a serviço doscapitalistas e contra todas as formas de socialismo?Quantos aspectos do sistema de Hitler não nos foramapontados como exemplo pelos círculos maisinesperados, sem que se notasse que eles eram parteintegrante desse sistema e incompatíveis com asociedade livre que esperamos preservar? Éimpressionante o número de erros perigosos quecometemos antes e depois do início da guerra por nãoentendermos o nosso adversário. Chega-se a ter aimpressão de que não desejamos compreender asequência dos fatos que produziram o totalitarismo

porque tal compreensão poderia destruir algumas dasmais caras ilusões a que nos apegamos.

Nunca seremos bem-sucedidos ao tratar com osalemães se não compreendermos o caráter e aevolução das ideias que agora os governam. A teoria,mais uma vez apresentada, de que eles sãopervertidos por natureza é dificilmente defensável enão dignifica os que a sustentam. Essa teoria desonraa longa série de pensadores ingleses que durante osúltimos cem anos de bom grado se tem apropriado doque há de melhor – e não apenas do melhor – nopensamento alemão. Negligencia o fato de que JohnStuart Mill, quando escreveu há oitenta anos o seugrande ensaio Da Liberdade, inspirou-se, mais doque em quaisquer outros homens, em dois alemães –Goethe e Wilhelm von Humboldt17 – esquecendoainda que dois entre os mais influentes antepassadosintelectuais do nacional-socialismo – Thomas Carlylee Houston Stewart Chamberlain – foram um escocêse outro inglês. Nas suas formas mais cruas esse pontode vista é uma desgraça para aqueles que, mantendo-o, adotam as teorias raciais alemães em seus pioresaspectos.

O problema não está em saber por que os alemães,

como tais, são pervertidos, pois não écongenitamente provável que o sejam mais do quequalquer outro povo, mas em determinar ascircunstâncias que durante os últimos setenta anospossibilitaram o desenvolvimento progressivo e avitória final de um determinado conjunto de ideias, eem verificar por que motivo essa vitória acabouerguendo às primeiras posições os elementos maisviciosos entre eles. O simples ódio a tudo que foralemão e não a determinadas ideias é, ademais,bastante perigoso, pois os que a ele se entregammostram-se cegos diante de uma ameaça real. É detemer que semelhante atitude seja, muitas vezes, umasimples forma de evasão, causada pela relutância emreconhecer tendências que não estão circunscritas àAlemanha, e pela pouca disposição de reexaminar,alijando-as se necessário, convicções que fomostomar dos alemães e com as quais estamos tãoiludidos quanto os próprios alemães já o estiveram.Isto é ainda mais perigoso porque o argumento deque apenas a maldade peculiar aos alemães produziuo sistema nazista provavelmente se tornará umajustificativa para compelir-nos a aceitar as própriasinstituições que engendraram essa maldade.

A interpretação do que se passou na Alemanha e

na Itália, a ser apresentada neste livro, é muitodiversa da que foi dada pela maioria dosobservadores estrangeiros e pela maior parte dosexilados daqueles países. No entanto, se estainterpretação for correta, ela também explicará porque uma visão desses acontecimentos na suaperspectiva exata é quase impossível para as pessoasque – como a maioria dos exilados e doscorrespondentes estrangeiros de jornais americanos eingleses – adotam os pontos de vista socialistas orapredominantes218.

Muitos aceitam a opinião enganosa e superficial deque o nacional-socialismo é meramente uma reaçãofomentada por aqueles cujos interesses ou privilégiosestavam ameaçados pelo avanço do socialismo. Esseponto de vista foi naturalmente defendido por todosos que, embora em certa ocasião tivessem participadodo movimento ideológico que levou ao nacional-socialismo, detiveram-se a certa altura desse processoe, devido ao conflito com os nazistas que semelhanteatitude provocou, viram-se forçados a abandonar oseu país. Mas o fato de que essas pessoas eramnumericamente a única oposição ponderável aosnazistas não significa senão que, em sentido amplo,quase todos os alemães se haviam convertido em

socialistas e que o liberalismo, no velho sentido, foraalijado pelo socialismo. Conforme esperamosdemonstrar, o conflito existente na Alemanha entre a“direita” nacional-socialista e a “esquerda” é o tipo deconflito que sempre se verifica entre facçõessocialistas rivais. Se esta interpretação for correta,significará, todavia, que muitos daqueles refugiadossocialistas, ao aferrarem-se às suas ideias, estãoatualmente, embora com a melhor boa vontade domundo, cooperando para induzir seu país adotivo aseguir o caminho tomado pela Alemanha.

Sei que muitos de meus amigos ingleses sesentiram algumas vezes chocados pelas ideiassemifascistas ocasionalmente expressas porrefugiados alemães de cujas genuínas convicçõessocialistas não se podia duvidar. Mas enquanto essesobservadores ingleses atribuíam tais ideias ao fato deque os outros eram alemães, a verdadeira explicaçãoé que eles eram socialistas cuja experiência os havialevado muitos estágios além dos já atingidos pelossocialistas na Inglaterra e nos Estados Unidos. É semdúvida verdade que os socialistas alemãesencontraram grande apoio, no seu país, em certosaspectos da tradição prussiana; e o parentesco entreprussianismo e socialismo, do qual ambos os lados se

glorificam na Alemanha, fortalece nosso principalargumento319. Mas seria um erro acreditar que foi oelemento especificamente alemão, e não o elementosocialista, que produziu o totalitarismo. Era, comefeito, a preponderância das ideias socialistas, e não oprussianismo, o que a Alemanha tinha em comumcom a Itália e a Rússia – e foi das massas e não dasclasses imbuídas da tradição prussiana, e auxiliadopelas massas, que surgiu o nacional-socialismo.

Rodapé

1 Título original em inglês: “Freedom and theEconomic System”2 Título original em inglês: “Public PolicyPamphlets”3 O exemplo mais significativo das críticas feitas aolivro na Inglaterra, de um ponto de vista esquerdista,talvez seja o estudo cortês e franco da sra. BarbaraWootton, Freedom under Planning (Londres, GeorgeAllen & Unwin, 1946). Ele é citado frequentementenos Estados Unidos como uma contestação válida deminha argumentação, embora eu não possa deixar de

pensar que mais de um leitor deve ter ficado com aimpressão de que, como disse um jornalistaamericano, “em substância, a obra parece confirmara tese de Hayek” (Barnard, Chester I. SouthernEconomic Journal, jan. 1946).4 Na ocasião eu não sabia que, como foiposteriormente admitido por um conselheiro de umadas editoras, esse fato parece ter sido devido não adúvidas quanto ao sucesso do livro, mas apreconceitos políticos. Chegou-se ao extremo dequalificar o livro como “impróprio para ser publicadopor uma editora de reputação” (ver, a esse propósito,a afirmação de William Miller citada por W. T. Couchem “The Sainted Book Burners”, The Freeman, abr.1955, p. 423; e também Miller, William, The BookIndustry: a Report oj lhe Public Library Inquiry o/the Social Science Research Council. Nova York,Columbia University Press, 1949. p. 12).5 Isso foi devido, em grande parle, à publicação deum resumo deste livro no Reader’s Digest. Desejoprestar aqui minha homenagem pública aos editoresda revista pela extrema perícia com que o elaboraramsem a minha assistência. É inevitável que a reduçãode um argumento complexo a uma fração de seutamanho original produza simplificações enormes,

mas, que o resumo tenha sido realizado semdistorções e melhor do que eu mesmo teriaconseguido fazer, é um fato digno de nota.6 A um leitor que deseje conhecer um exemplo decrítica violenta e injuriosa, provavelmente sem parnas discussões acadêmicas de nossos tempos,recomendo a obra Road to Reaction, do professorHerman Finer (Boston, Little Brown, 1945).7 Dessas, a mais eficaz foi sem dúvida 1984, deGeorge Orwell. Antes, seu autor tivera a amabilidadede fazer resenha deste meu livro.8 Individualism and Economic Order, Chicago,1948.9 The Counter Revolution of Science, Glencoe, III;1952.10 Um esboço antecipado do modo pelo qualpretendo tratar esse assunto encontra-se em quatroconferências minhas publicadas pelo Banco Nacionaldo Egito em The Political Ideal oj the Rule oj Law,Cairo, 1955.11 Barnes, L. J. Youth Service in an EnglishCountry. a Report Prepared for King George’sJubilee Trust. Londres, 1945.12 De Tocqueville, A. Democracy in America. Parte

II, livro IV, cap. VI. Seria necessário ler todo essecapítulo para dar-se conta da perspicácia com que deTocqueville conseguiu prognosticar os efeitospsicológicos do moderno estado previdenciário. Diga-se de passagem que foram suas frequentesreferências à “nova servidão” que me sugeriram otítulo deste livro.13 The Socialist Tragedy. Londres, Latimer House,1949. pp. 241 e 242.14 Em artigo publicado no número de 19 de junho de1954, onde é analisado o Report on the PublicInquiry Ordered by the Minister of Agriculture intothe Disposal of Land at Crichel Down (Cmd. 9176,Londres, H. M. Stationery Office, 1954). O artigomerece estudo cuidadoso por parte de todos os quese interessam pela psicologia de uma burocraciaplanificadora.15 Keeton, G. W. The Passing of Parliament.Londres, 1952.16 N. do E.: publicado em português sob o títuloDireito, legislação e liberdade, tradução patrocinadapelo Instituto Liberal. São Paulo: Ed. Visão, 1985,3v. Esse volume foi publicado em 197917 Como algumas pessoas poderão achar exagerada

esta afirmativa, talvez valha a pena atar o testemunhode Lord Morlev que, em suas Recollections se refereao “fato reconhecido” de que o argumento básico doensaio Da Liberdade “não era original, mas provindoda Alemanha”.18 A concepção que vigora quase universalmente nosEUA acerca das relações entre a Grã-Bretanha e aÍndia ilustra bem até que ponto as ideias sustentadasem todos os setores, mesmo os mais conservadores,de um país inteiro podem ser influenciadas pelatendência esquerdista predominante entre os seuscorrespondentes estrangeiros. O inglês que deseja teruma visão correta dos acontecimentos no continenteeuropeu deve considerar seriamente a possibilidadede seus pontos de vista terem sido distorcidos damesma maneira, e pelas mesmas razões. Isso nãodepõe contra a sinceridade dos correspondentesnorte-americanos e ingleses. Contudo, qualquerpessoa que conheça os círculos nativos com os quaisos correspondentes estrangeiros mantêm em geralestreito contato não terá dificuldade em entender aorigem daquela tendência.19 É inegável que de fato existe certo parentescoentre o socialismo e a organização do estadoprussiano, feita conscientemente de cima para baixo

como em nenhum outro pais, o que aliás já eraclaramente reconhecido pelos antigos socialistasfranceses. Muito antes de ter surgido o ideal de dirigirtodo o estado dentro dos mesmos princípios dedireção de uma fábrica, ideal que viria inspirar osocialismo do século XIX, o poeta prussiano Sovalisjá havia deplorado que “nenhum outro estado jamaisfoi administrado de modo tão semelhante a umafábrica como a Prússia desde a morte de FredericoGuilherme” (cf. Novalis Friedrich von Hardenberg.Glauben und Liebe, oder der König und dieKönigin, 1798).

Capítulo 1

O Caminho Abandonado

“A tese básica deste programa não é a de que osistema de livre iniciativa fracassou em nossaépoca, mas a de que tal sistema ainda não foi

posto em prática”. – F. D. RooseveltQuando o curso da civilização toma um rumo

inesperado quando, ao invés do progresso contínuoque nos habituamos a esperar, vemo-nos ameaçadospor males que associamos à barbárie do passado –naturalmente atribuímos a culpa a tudo, exceto a nósmesmos. Não temos todos nos esforçado aomáximo? Não têm muitos dos espíritos maisesclarecidos desenvolvido um trabalho incansávelpara tornar este mundo melhor? Não estiveramnossos esforços e esperanças voltados para maiorliberdade, justiça e prosperidade? Se o resultadodiverge tanto dos objetivos se ao invés de liberdade eprosperidade, servidão e miséria surgem-nos à frente– não é óbvio que forças sinistras frustraram nossasintenções e somos vítimas de algum poder maligno

que é preciso dominar antes de retomarmos ocaminho para um mundo melhor? Por mais quepossamos discordar quanto à causa desta situação – ocapitalista perverso ou o espírito malévolo desta oudaquela nação, a estupidez de nossos pais ou umsistema social que ainda não foi derrubado porcompleto, apesar de meio século de lutas – todosestamos certos de uma coisa, ou pelo menosestávamos, até recentemente: as ideias que ao longoda geração passada foram seguidas pela maioria doshomens de boa vontade e determinaram grandesmudanças em nossa vida social não podiam estarerradas. Estamos dispostos a aceitar quase todas asexplicações para a presente crise da nossa civilização,exceto que ela resulte de um erro de nossa parte, eque a busca de alguns dos nossos mais caros ideaistenha produzido efeitos tão diferentes dos esperados.

Enquanto concentramos todas as nossas energiasem vencer esta guerra, é-nos às vezes difícil lembrarque mesmo antes da guerra os valores pelos quaishoje lutamos estavam ameaçados em nosso própriopaís, e destruídos em outros. Embora neste momentoos ideais diferentes sejam representados por naçõesantagônicas que lutam para preservá-los, nãodevemos esquecer que o atual conflito surgiu de um

embate de ideias no seio do qual, não há muito, haviauma única civilização europeia; tampouco devemosesquecer que as tendências que culminaram com acriação dos sistemas totalitários não estavamlimitadas aos países que a elas sucumbiram.Conquanto a primeira tarefa seja agora vencer aguerra, a vitória nos proporcionará apenas outraoportunidade para enfrentar os problemas básicos eencontrar um meio de evitar o destino que atingiucivilizações congêneres.

Não deixa de ser difícil pensar na Alemanha, naItália ou na Rússia, não como mundos diferentes,mas como produtos de uma evolução de ideias daqual nós mesmos participamos. É mais fácil e maiscômodo, pelo menos no tocante aos nossos inimigos,pensar que eles são inteiramente diferentes de nós eque aqui não pode acontecer o que lá aconteceu.Contudo, a história desses países nos anos anterioresao surgimento do sistema totalitário apresentavapoucos aspectos estranhos à nossa. O conflitoexterno é o resultado de uma transformação dopensamento europeu que se acelerou mais entrealguns povos, levando-os a uma divergênciairreconciliável com os nossos ideais, transformaçãoque, no entanto, não deixou de nos atingir.

O fato de uma mudança das ideias e a força devontade humana terem tornado o mundo o que ele éagora, embora os próprios homens não previssemesses resultados, e de nenhuma mudança espontâneanos fatos nos ter obrigado a adaptar a isso nossopensamento é talvez algo que os ingleses tenhamparticular dificuldade de compreender, justamenteporque, para sua felicidade, eles tardaram aacompanhar a modificação do pensamento verificadaentre a maior parte dos povos europeus. Aindajulgamos que os ideais pelos quais nos pautamos, eque nortearam a geração passada, só se realizarão nofuturo, e não percebemos o quanto, nestes últimos 25anos, eles já transformaram não apenas o mundo mastambém este país. Ainda acreditamos que até épocarecente éramos governados pelo que se definia demodo vago como as ideias do século XIX, ou oprincípio do laissez-faire. Em relação a algunspaíses, e do ponto de vista dos que estão impacientespor acelerar tais mudanças, talvez essa convicção sejustifique em parte. Mas embora até 1931 a Inglaterratenha avançado muito lentamente no caminhotrilhado por outros países, estava tão adiantada nessaocasião que só aqueles cuja memória alcança os anosanteriores à Primeira Guerra Mundial sabem o que

era um mundo liberal.20

O aspecto crucial de que o nosso povo ainda tãopouco se apercebe, contudo, não é apenas amagnitude das transformações ocorridas durante ageração passada, mas o fato de que elas significamum completo desvio da evolução de nossas ideias eda ordem social. Durante pelo menos 25 anos antesde o espectro do totalitarismo se tornar uma ameaçareal, fomos nos afastando progressivamente dasideias básicas sobre as quais se erguera a civilizaçãoocidental. O fato de que este novo rumo tomado comtanta esperança e ambição nos fizesse deparar com ohorror do totalitarismo representou um profundochoque para esta geração, que se recusa ainda arelacionar uma coisa à outra. Contudo, estedesdobramento apenas confirma as advertências dosfundadores da filosofia liberal que ainda professamos.Fomos aos poucos abandonando aquela liberdade deação econômica sem a qual a liberdade política esocial jamais existiu no passado. Embora alguns dosmaiores pensadores políticos do século XIX, comode Tocqueville e Lord Acton, nos advertissem de quesocialismo significa escravidão, fomos continuamenteavançando em direção ao socialismo. E agora, tendovisto uma nova forma de escravidão manifestar-se

diante de nós, já esquecemos de tal modo essaadvertência que mal nos damos conta da possívelrelação entre as duas coisas21.

A tendência moderna ao socialismo não implicaapenas um rompimento definitivo com o passadorecente, mas com toda a evolução da civilizaçãoocidental, e isso se torna claro quando oconsideramos não só em relação ao século XIX, masnuma perspectiva histórica mais ampla. Estamosrapidamente abandonando não só as ideias deCobden e Bright, de Adam Smith e Hume, ou mesmode Locke e Milton, mas também uma dascaracterísticas mais importantes da civilizaçãoocidental que evoluiu a partir dos fundamentoslançados pelo cristianismo e pelos gregos e romanos.Renunciamos progressivamente não só ao liberalismodos séculos XVIII e XIX, mas ao individualismoessencial que herdamos de Erasmo e Montagne, deCícero e Tácito, de Péricles e Tucídides. O lídernazista que definiu a revolução nacional-socialistacomo uma contra-Renascença estava mais próximoda verdade do que provavelmente imaginava. Elarepresentou a etapa final da destruição da civilizaçãoconstruída pelo homem moderno a partir daRenascença e que era, acima de tudo, uma civilização

individualista. O individualismo tem hoje umaconotação negativa e passou a ser associado aoegoísmo. Mas o individualismo a que nos referimos,em oposição a socialismo e a todas as outras formasde coletivismo, não está necessariamente relacionadoa tal acepção. Só de maneira gradual, no decorrerdeste livro, é que poderemos esclarecer a distinçãoentre os dois princípios opostos. Por enquantopodemos dizer que o individualismo, que a partir deelementos fornecidos pelo cristianismo e pela filosofiada antiguidade clássica pôde desenvolver-se pelaprimeira vez em sua forma plena durante aRenascença e desde então evoluiu e penetrou nachamada civilização ocidental, tem comocaracterísticas essenciais o respeito pelo indivíduocomo ser humano, isto é, o reconhecimento dasupremacia de suas preferências e opiniões na esferaindividual, por mais limitada que esta possa ser, e aconvicção de que é desejável que os indivíduosdesenvolvam dotes e inclinações pessoais.“Liberdade” é agora uma palavra tão desgastada quedevemos hesitar em empregá-la para expressar osideais por ela representados durante aquele período.Talvez “tolerância” seja o único termo que aindaexpresse o pleno significado do princípio que

predominou durante esse período, e apenas emtempos recentes voltou a declinar, desaparecendo detodo com o advento do estado totalitário.

A transformação gradual de um sistema hierárquicoorganizado em moldes rígidos num sistema em queos homens podiam pelo menos tentar dirigir a própriavida, tendo a oportunidade de conhecer e escolherdiferentes formas de existência, está intimamenteligada ao desenvolvimento do comércio. Das cidadescomerciais do norte da Itália, a nova concepção devida irradiou-se, graças ao comércio, para o oeste e onorte da Europa e chegou, através da França e dosudoeste da Alemanha, aos Países Baixos e às IlhasBritânicas, consolidando-se onde quer que não fossesufocada pelo despotismo político. Nos Países Baixose na Grã-Bretanha, conheceu por longo tempo a suamais plena expansão, e pôde, pela primeira vez,evoluir livremente, tornando-se a base da vidapolítica e social nesses países. E foi deles que, emfins do século XVII e durante o século XVIII essaconcepção voltou a difundir-se, agora melhordesenvolvida, para oeste e leste, para o Novo Mundoe para a Europa Central, onde guerras devastadoras ea opressão política haviam em grande parte asfixiadoos primórdios de uma evolução semelhante ocorrida

em séculos anteriores22.Durante todo esse período moderno da história

europeia, a tendência geral do desenvolvimento socialera libertar o indivíduo das restrições que omantinham sujeito a padrões determinados pelocostume ou pela autoridade no que dizia respeito asuas atividades ordinárias. A constatação de que osesforços empreendidos pelos indivíduos de modoespontâneo e não dirigido pela autoridade eramcapazes de produzir uma complexa ordem deatividades econômicas só poderia ocorrer depois queesse processo de desenvolvimento tivesse avançadoaté certo ponto. A elaboração de uma tese coerentede defesa da liberdade econômica resultou do livredesenvolvimento das atividades econômicas quetinham sido um subproduto imprevisto e nãoplanejado da liberdade política.

O resultado mais importante da liberação dasenergias individuais foi talvez o maravilhosodesenvolvimento da ciência que acompanhou oavanço da liberdade individual da Itália à Inglaterra emais além. O fato de que a criatividade do homemnão fora menor em épocas anteriores é demonstradopor numerosos brinquedos automáticos muitíssimo

engenhosos e por outros instrumentos mecânicosconstruídos quando a técnica industrial aindapermanecia estacionária, bem como pelodesenvolvimento de alguns setores da economia que,como a indústria extrativa ou a relojoaria, nãoestavam sujeitos a controles restritivos. Mas aspoucas tentativas no sentido de uma aplicaçãoindustrial mais ampla dos inventos mecânicos, algunsdeles extraordinariamente avançados, foram depronto suprimidas, e o desejo de conhecimentossufocado, na medida em que a submissão às ideiasdominantes era considerada imperiosa: as opiniões dagrande maioria sobre o que era certo e convenienteforam fechando o caminho ao indivíduo inovador. Sódepois que a liberdade industrial permitiu a livreutilização dos novos conhecimentos, depois que setornou possível qualquer experimentação – desde quealguém se dispusesse a financiá-la, e, cumpreacrescentar, isto ocorria, na maioria das vezes, forado âmbito das autoridades oficialmente encarregadasdo cultivo do saber – só então é que a ciência deu osgrandes passos que nos últimos cento e cinquentaanos mudaram a face do mundo.

Como tantas vezes acontece, a natureza de nossacivilização foi percebida com maior clareza por seus

adversários do que pela maioria de seus defensores:“a eterna doença do Ocidente, a revolta do indivíduocontra a espécie”, conforme a chamou AugustoComte, aquele totalitário do século XIX, foi, narealidade, a força que construiu nossa civilização. Acontribuição do século XIX ao individualismo doperíodo precedente foi apenas trazer a todas asclasses a consciência da liberdade, desenvolversistemática e continuamente o que surgira de modoaleatório e fragmentário, e disseminá-lo da Inglaterrae Holanda para a maior parte do continente europeu.

As consequências desse processo de crescimentosuperaram as expectativas. Onde quer que fossemsuprimidos os obstáculos ao livre exercício doengenho humano, o homem logo se tornava capaz desatisfazer o seu crescente número de desejos. E se,por um lado, a elevação do padrão de vida em brevelevava à descoberta de grandes mazelas na sociedadeque os homens não mais estavam dispostos a tolerar,por outro lado, provavelmente, não houve classe quenão se tenha beneficiado de modo substancial com oprogresso geral. Não poderemos fazer justiça a essecrescimento estarrecedor se o medirmos pelospadrões contemporâneos, que dele decorrem e queagora tornam evidentes tantos defeitos antes não

percebidos. O que tal progresso significou para osseus protagonistas deve ser avaliado pelas esperançase os desejos que os homens tinham quando elecomeçou; e não cabe a menor dúvida de que seuêxito ultrapassou os sonhos mais ousados. Emprincípios do século XX, o trabalhador do mundoocidental havia alcançado um grau de confortomaterial, segurança e independência que pareceriaimpossível um século antes.

Provavelmente, o que no futuro será considerado oefeito mais significativo e abrangente desse êxito é anova consciência de poder sobre o próprio destino, aconvicção das infinitas possibilidades de melhorar aprópria sorte, adquiridas pelo homem em virtude dosucesso já alcançado. Com o sucesso nasceu aambição – e o homem tem todo o direito de serambicioso. O que tinha sido uma promessaanimadora já não parecia suficiente, e o ritmo doprogresso afigurava-se demasiado lento. Os princípiosque haviam possibilitado esse avanço no passadocomeçaram a ser considerados obstáculos à rapidezdo progresso, a serem eliminados imediatamente, enão mais as condições para a preservação e odesenvolvimento do que já fora conquistado.

Os princípios básicos do liberalismo não contêmnenhum elemento que o faça um credo estacionário,nenhuma regra fixa e imutável. O princípiofundamental segundo o qual devemos utilizar aomáximo as forças espontâneas da sociedade erecorrer o menos possível à coerção pode ter umainfinita variedade de aplicações. Há, em particular,enorme diferença entre criar deliberadamente umsistema no qual a concorrência produza os maioresbenefícios possíveis, e aceitar passivamente asinstituições tais como elas são. Talvez nada tenhasido mais prejudicial à causa liberal do que aobstinada insistência de alguns liberais em certasregras gerais primitivas, sobretudo o princípio dolaissez-faire. Contudo, de certa maneira, essainsistência era necessária e inevitável. Diante dosinumeráveis interesses a demonstrar que certasmedidas trariam benefícios óbvios e imediatos aalguns, ao passo que o mal por elas causado eramuito mais indireto e difícil de perceber, apenasregras fixas e imutáveis teriam sido eficazes. E comose firmara uma forte convicção de que eraimprescindível haver liberdade na área industrial, atentação de apresentá-la como uma regra semexceções foi grande demais para ser evitada.

No entanto, essa atitude assumida por muitosvulgarizadores da doutrina liberal tornava quaseinevitável que, uma vez abalados alguns de seuspontos, logo toda ela desmoronasse. Tal posiçãoenfraqueceu-se ainda mais devido ao progressonecessariamente lento de uma política que visava àgradativa melhoria do arcabouço institucional de umasociedade livre. Esse progresso dependia da nossamaior compreensão das forças sociais e dascondições mais favoráveis ao seu bomfuncionamento. Como a tarefa era auxiliar e, ondefosse preciso, suplementar a ação de tais forças, oprimeiro requisito era compreendê-las. A atitude doliberal para com a sociedade é semelhante à dojardineiro que cuida de uma planta e que, a fim decriar as condições mais favoráveis ao seucrescimento, deve conhecer tudo o que for possível arespeito da estrutura e das funções dessa planta.

Nenhum espírito sensato teria duvidado de que asregras primitivas nas quais foram expressos osprincípios da política econômica do século XIX eramapenas o começo, de que ainda tínhamos muito aaprender e de que havia ainda imensas possibilidadesde progresso no caminho que vínhamos seguindo.Mas esse progresso só seria alcançado à medida que

conquistássemos um crescente domínio intelectualdas forças que teríamos de empregar. Muitas eram astarefas evidentes, como o aperfeiçoamento dosistema monetário e a prevenção ou o controle domonopólio, e eram ainda mais numerosas as tarefasmenores, mas nem por isso menos importantes, emoutros campos em que o governo sem dúvida possuíaenormes poderes para o bem e para o mal; tudolevava a esperar que, com uma melhor compreensãodos problemas, algum dia teríamos condições deempregar com êxito esses poderes.

Mas se o avanço rumo ao que costumamoschamar ação “positiva” não podia deixar de ser lento,e se, para aperfeiçoar-se de imediato, o liberalismotinha de valer-se em grande parte do aumento gradualda riqueza trazida pela liberdade, precisaria por outrolado combater constantemente as propostas políticasantiliberais que ameaçavam esse avanço. Oliberalismo veio a ser considerado uma filosofia“negativa” porque não podia oferecer a cadaindivíduo mais do que uma participação no progressocomum – progresso cada vez mais consideradonatural e inevitável e não mais encarado comodecorrente da política de liberdade. Pode-se mesmodizer que o próprio sucesso do liberalismo tornou-se

a causa do seu declínio. Devido ao êxito jáalcançado, o homem se foi mostrando cada vezmenos disposto a tolerar os males ainda existentes,que a essa altura lhe pareciam insuportáveis edesnecessários.

A impaciência crescente em face do lentoprogresso da política liberal, a justa irritação comaqueles que empregavam a fraseologia liberal emdefesa de privilégios antissociais, e a ilimitadaambição aparentemente justificada pela melhoriamaterial já conquistada fizeram com que, aoaproximar-se o final do século, a crença nosprincípios básicos do liberalismo fosse aos poucosabandonada. Tudo o que fora conquistado passou aser considerado um bem estável, indestrutível edefinitivo. Os olhos do povo fixaram-se em novasreivindicações, cuja rápida satisfação parecia obstadapelo apego aos velhos princípios. Passou-se aacreditar cada vez mais que não se poderia esperarmaior progresso dentro das velhas diretrizes e daestrutura geral que permitira os avanços anteriores,mas apenas mediante uma completa reestruturaçãoda sociedade. Já não se tratava de ampliar oumelhorar o mecanismo existente, mas de descartá-lo

e substituí-lo por outro. E à medida que asesperanças da nova geração se voltavam para algointeiramente novo, a compreensão e o interesse pelofuncionamento da sociedade existente sofrerambrusco declínio. Com esse declínio, declinou tambéma nossa consciência de tudo o que dependia daexistência do sistema liberal.

Não cabe aqui discutir como essa mudança deperspectiva foi estimulada pela irrefletida aplicação,aos problemas sociais, da estrutura de pensamentoresultante da preocupação com problemastecnológicos (a estrutura de pensamento doengenheiro e do especialista em ciências físicas enaturais), e como, ao mesmo tempo, esse hábitomental tendia a desacreditar os resultados dos estudosanteriores sobre a sociedade que não se ajustavamaos seus preconceitos, e a impor ideaisorganizacionais a uma esfera em que estes não sãopróprios23. Tudo o que pretendemos demonstrar éque nossa atitude para com a sociedade mudoutotalmente, embora de maneira gradual e a passosquase imperceptíveis. Aquilo que em cada fase desseprocesso de transformação parecia apenas ligeiramudança, provocou, por efeito cumulativo, umadiferença fundamental entre a velha atitude liberal

para com a sociedade e a atual abordagem dosproblemas sociais. Disso resultou uma completainversão de rumo, um completo abandono datradição individualista que criou a civilizaçãoocidental. Segundo as ideias hoje dominantes, oproblema já não está mais em saber qual a melhormaneira de utilizarmos as forças espontâneasencontradas numa sociedade livre.

De fato, decidimos prescindir das forças queproduziram resultados imprevistos e substituir omecanismo anônimo e impessoal do mercado pelacondução coletiva e “consciente” de todas as forçassociais em direção a objetivos deliberadamenteescolhidos. A diferença não poderia ser melhorilustrada do que pela posição radical assumida numaobra muito elogiada, cujo programa, denominadopelo autor “planejamento para a liberdade”,comentaremos mais de uma vez.

Jamais tivemos de instituir e dirigir todo o sistemada natureza.Como hoje somos obrigados a fazer coma sociedade [escreve o doutor Karl Mannheim]. ...Ahumanidade tende cada vez mais a controlar toda asua vida social, embora nunca haja tentado criar umasegunda natureza24.

É significativo que essa mudança no rumo dasideias tenha coincidido com uma inversão datrajetória que elas vinham seguindo no espaço.Durante mais de duzentos anos, o pensamento inglêsirradiou-se para leste. O regime de liberdade ao qualse chegara na Inglaterra parecia destinado a difundir-se por todo o mundo. Por volta de 1870, as ideiasliberais haviam atingido provavelmente seu pontomáximo de expansão para leste. Daí por diante,porém, começaram a retroceder, e um ideáriodiferente, que não era novo, mas na realidade muitoantigo, passou a avançar de leste para oeste. AInglaterra perdeu a liderança intelectual na esferasocial e política e passou a importar ideias. Nossessenta anos seguintes, a Alemanha converteu-se nocentro de onde as ideias destinadas a governar omundo no século XX se propagaram para leste eoeste. Hegel ou Marx, List ou Schmoller, Sombart ouMannheim, o socialismo em sua forma mais radicalou apenas a “organização” ou a “planificação” denatureza menos radical – o pensamento alemão foipronta e amplamente importado, e as instituiçõesalemãs imitadas.

Embora a maioria das novas ideias, e em particularo socialismo, não se tivesse originado na Alemanha,

foi na Alemanha que se aperfeiçoou e alcançou,durante o último quarto do século XIX e o primeirodo século XX, o seu mais completo desenvolvimento.Esquecemos agora muitas vezes como foiconsiderável a liderança mantida pela Alemanhadurante esse período no que concerne à teoria e àprática do socialismo. Esquecemos também que, umageração antes de o socialismo se tornar uma sériaquestão na Inglaterra, a Alemanha tinha umnumeroso partido socialista no parlamento, e que, atédata recente, o desenvolvimento da doutrina socialistaocorria quase inteiramente na Alemanha e na Áustria,de sorte que mesmo hoje os russos partem do pontoem que os alemães se detiveram. A maioria dossocialistas ingleses ainda não se deu conta de quequase todos os problemas que começam agora adescobrir foram há muito tempo exaustivamentedebatidos pelos socialistas alemães.

A influência intelectual que os pensadores alemãesexerceram durante esse período em todo o mundobaseava-se não apenas no grande progresso materialda Alemanha, mas sobretudo no extraordinárioprestígio que os cientistas e pensadores alemãeshaviam conquistado nos cem anos precedentes,quando a Alemanha se tornara, mais uma vez,

membro integrante e mesmo preeminente dacivilização europeia. Mas em breve essa influênciaserviria para difundir, a partir da Alemanha, ideiasque visavam a abalar os alicerces dessa civilização.Os próprios alemães – ou pelo menos os divulgadoresde tais ideias – tinham inteira consciência do conflito:a herança comum da civilização europeia tornara-separa eles, muito antes do nazismo, a civilização“ocidental” – e a palavra “ocidental” não tinha mais aacepção comum de Ocidente, mas passara a significaro mundo a oeste do Reno. “Ocidental”, neste sentido,era sinônimo de liberalismo e democracia, capitalismoe individualismo, livre comércio e toda forma deinternacionalismo ou amor à paz.

Mas apesar do desprezo mal disfarçado que umnúmero sempre crescente de alemães votava aosideais “superficiais” do Ocidente, ou talvez por essarazão, os povos desse mesmo Ocidente continuaramimportando ideias alemães. E foram induzidos aacreditar que suas convicções anteriores nãopassavam de pretextos para justificar interessesegoísticos, que o livre comércio era uma doutrinainventada para defender interesses ingleses, e que osideais políticos que a Inglaterra legara ao mundoestavam irremediavelmente ultrapassados e

constituíam motivo de vergonha.

Rodapé

20 Já nesse ano o Relatório Macmillan falava em“mudança de atitude do governo deste país nosúltimos tempos, e sua crescente preocupação com agestão da vida do povo independentemente dopartido que esteja no poder”, e acrescentava que “oparlamento encontra-se cada vez mais empenhadoem criar uma legislação cujo objetivo consciente sejacontrolar as atividades cotidianas da comunidade eintervém hoje em questões outrora consideradas forade seu âmbito”. E fazia esta afirmação antes que aInglaterra, nesse mesmo ano, mudasse decisivamenteo curso de sua política governamental e, no curto einglório período que vai de 1931 a 1939,transformasse por completo o seu sistemaeconômico, tornando-o irreconhecível.21 Mesmo advertências muito mais recentes, que serevelaram terrivelmente justificadas, foram quase detodo esquecidas. Não faz trinta anos que HilaireBelloc, num livro que explica o que ocorreu na

Alemanha melhor do que a maioria das obras escritasapós os acontecimentos, diz: “A aplicação da doutrinasocialista à sociedade capitalista produz um terceirofenômeno diferente daqueles que o geraram, a saber:O Estado Servir. (The Servile State, 1913, 3.ª ed.,1927. p. XIV.)22 O mais fatídico desses acontecimentos, deconsequências até hoje visíveis, foi a subjugação eparcial destruição da burguesia alemã pelos príncipesterritoriais nos séculos XV e XV.23 O autor procurou esboçar as origens desseprocesso em duas séries de artigos sobre “Scientismand the Study of Society” e “The Counter-Revolutionof Science”, publicados em Econômica, 1941-1944.24 Man and Society in an Age of Reconstruction,1940, p. 175.

Capítulo 2

A Grande Utopia

“O que sempre fez do estado um verdadeiroinferno foram justamente as tentativas de torná-

lo um paraíso”. – F. HoelderlinSe o socialismo substituiu o liberalismo como a

doutrina da grande maioria dos progressistas, isso nãosignifica apenas que as pessoas tenham esquecido asadvertências dos grandes pensadores liberais sobre asconsequências do coletivismo. Tal fato ocorreuporque elas passaram a acreditar exatamente nocontrário daquilo que esses pensadores haviampredito. E o mais extraordinário é que o mesmosocialismo, que além de ser reconhecido a princípiocomo a mais grave ameaça à liberdade, surgiu comouma reação ostensiva contra o liberalismo daRevolução Francesa, obteve a aceitação geral sob abandeira da liberdade. Quase não nos ocorre hoje queo socialismo era, de início, francamente autoritário.Os autores franceses que lançaram as bases dosocialismo moderno não tinham dúvida de que suas

ideias só poderiam ser postas em prática por um fortegoverno ditatorial. Para eles o socialismo significavauma tentativa de “acabar com a Revolução” por meiode uma reorganização intencional da sociedade emmoldes hierárquicos e pela imposição de um “poderespiritual” coercitivo. No que se referia à liberdade,os fundadores do socialismo não escondiam suasintenções. Eles consideravam a liberdade depensamento a origem de todos os males da sociedadedo século XIX, e o primeiro dos planejadoresmodernos, Saint-Simon, chegou a predizer queaqueles que não obedecessem às comissões deplanejamento por ele propostas seriam “tratadoscomo gado”.

Foi apenas sob a influência das fortes correntesdemocráticas que antecederam a revolução de 1848que o socialismo começou a aliar-se às forças daliberdade. Mas o novo “socialismo democrático”precisou de muito tempo para vencer as suspeitasdespertadas pelos seus antecedentes. De Tocqueville,mais do que ninguém, percebeu que a democracia,como instituição essencialmente individualista,entrava em contradição frontal com o socialismo.

A democracia amplia a esfera da liberdade

individual [dizia ele em 1848], o socialismo arestringe. A democracia atribui a cada homem o valormáximo; o socialismo faz de cada homem um meroagente, um simples número. Democracia e socialismonada têm em comum exceto uma palavra: igualdade.Mas observe-se a diferença: enquanto a democraciaprocura a igualdade na liberdade, o socialismoprocura a igualdade na repressão e na servidão25.

Para afastar essas suspeitas e atrelar a si o maisforte de todos os incentivos políticos – o anseio deliberdade – o socialismo começou a utilizar commaior frequência a promessa de uma “novaliberdade”. O advento do socialismo seria um salto doreino da necessidade para o reino da liberdade. Eletraria a “liberdade econômica”, sem a qual aliberdade política já obtida “de nada serviria”.Somente o socialismo seria capaz de pôr termo à lutasecular pela liberdade, na qual a conquista daliberdade política era apenas um primeiro passo.

É importante perceber a sutil alteração de sentido aque se submeteu a palavra liberdade para tornarplausível este argumento. Para os grandes apóstolosda liberdade política, essa palavra significava que oindivíduo estaria livre da coerção e do poder

arbitrário de outros homens, livre das restrições quenão lhe deixavam outra alternativa senão obedecer àsordens do superior ao qual estava vinculado. Na novaliberdade prometida, porém, o indivíduo se libertariada necessidade, da força das circunstâncias quelimitam inevitavelmente o âmbito da efetivacapacidade de escolha de todos nós, embora o dealguns muito mais do que o de outros. Para que ohomem pudesse ser verdadeiramente livre, o“despotismo da necessidade material” deveria servencido, e atenuadas “as restrições decorrentes dosistema econômico”.

Liberdade neste sentido não passa, é claro, de umsinônimo de poder 26ou riqueza. Contudo, embora apromessa dessa nova liberdade frequentemente sesomasse a promessas irresponsáveis de umsignificativo aumento da riqueza material nasociedade socialista, não se esperava alcançar essaliberdade econômica mediante vitória tão grandesobre a escassez da natureza. A promessa, narealidade, significava que as grandes disparidadesexistentes na efetiva possibilidade de escolha de cadaindivíduo estavam destinadas a desaparecer. Areivindicação da nova liberdade não passava, assim,da velha reivindicação de uma distribuição equitativa

da riqueza. Mas o novo rótulo forneceu aossocialistas mais uma palavra em comum com osliberais, e eles a exploraram ao máximo. E,conquanto o termo fosse empregado em sentidodiferente pelas duas correntes, poucos o notaram, emenor número ainda se perguntou se as duas formasde liberdade prometidas poderiam realmenteharmonizar-se. Sem dúvida a promessa de maiorliberdade tornou-se uma das armas mais eficazes dapropaganda socialista, e por certo a convicção de queo socialismo traria a liberdade é autêntica e sincera.Mas essa convicção apenas intensificaria a tragédia seficasse demonstrado que aquilo que nos prometiamcomo o caminho da liberdade era na realidade ocaminho da servidão. Foi inquestionavelmente apromessa de maior liberdade que atraiu um númerocrescente de liberais para o socialismo e tornou-osincapazes de perceber o conflito existente entre osprincípios do socialismo e os do liberalismo,permitindo em muitas ocasiões que os socialistasusurpassem o próprio nome do antigo partido daliberdade. O socialismo foi aceito pela maior parte daintelligentsia como o herdeiro aparente da tradiçãoliberal: não surpreende, pois, que seja inconcebívelaos socialistas a ideia de tal sistema conduzir ao

oposto da liberdade.Nos últimos anos, todavia, os antigos temores

quanto as consequências imprevistas do socialismovoltaram a ser enfaticamente manifestados nasesferas mais inesperadas. Os mais diversosobservadores, a despeito da expectativa em contráriocom que abordam o assunto, têm-se impressionadocom a extraordinária semelhança, em muitosaspectos, das condições de vida nos regimes fascistae comunista.

Enquanto os “progressistas” na Inglaterra e emoutros países ainda se iludiam julgando quecomunismo e fascismo eram polos opostos, umnúmero cada vez maior de pessoas começava aindagar se essas novas tiranias não seriam o resultadodas mesmas tendências. Os próprios comunistasdevem ter ficado um tanto abalados comdepoimentos como o de Max Eastman, velho amigode Lênin, compelido a admitir que “ao invés demelhor, o stalinismo é pior que o fascismo, maiscruel, bárbaro, injusto, imoral, antidemocrático, esem a atenuante de qualquer esperança ouescrúpulo”, de sorte que “seria mais correto defini-locomo superfascista”. E quando esse autor reconhece

que “stalinismo é socialismo, no sentido de queconstitui uma decorrência política inevitável emboraimprevista da estatização e da coletivização,elementos em que ele (Stalin) fundamentara parte doseu plano de construção de uma sociedade semclasses”27, a conclusão claramente se reveste designificação ainda maior.

O caso de Max Eastman é talvez o mais notável:contudo, ele não é absolutamente o primeiro nem oúnico simpatizante da experiência russa a formularsemelhantes conclusões. Algum tempo antes, W. H.Chamberlin, que nos doze anos passados na Rússiacomo correspondente norte-americano vira todos osseus ideais destruídos, resumira as conclusões dosseus estudos naquele país, bem como na Alemanha eItália, declarando que “o socialismo sem dúvida nãoserá, ao menos no começo, o caminho da liberdade,mas o da ditadura e das contra ditaduras, da maisviolenta guerra civil. O socialismo alcançado emantido por meios democráticos parece pertencerdefinitivamente ao mundo das utopias”28. Do mesmomodo, o escritor inglês F. A. Voigt, após observar pormuitos anos os acontecimentos na Europa, comocorrespondente estrangeiro, concluiu que “omarxismo levou ao fascismo e ao nacional-socialismo

porque, em essência, marxismo é fascismo enacional-socialismo”29.

E o doutor Walter Lippmann chegou à convicçãode que

a geração à qual pertencemos está agoraaprendendo pela experiência o que acontece quandoos homens se afastam da liberdade para organizar deforma coercitiva suas atividades. Embora prometam asi mesmos uma vida mais abundante, na prática têmde renunciar a ela; à medida que a organizaçãocentralizada se amplia, a variedade de objetivosnecessariamente cede lugar à uniformidade. Esta é anêmesis da sociedade planificada e do princípioautoritário na condução das questões humanas30.

Podemos encontrar, nas publicações destes últimosanos, afirmações dessa ordem, formuladas porpessoas em condições de julgar, particularmenteaquelas de homens que, como cidadãos de paísesagora totalitários, viveram o período datransformação e foram compelidos a revisar muitasconvicções que antes acalentavam. Citaremos ainda oexemplo de um escritor alemão que exprime a mesmaideia, em termos talvez mais precisos do que os jámencionados.

O completo desmoronamento da crença napossibilidade de alcançar a liberdade e a igualdade pormeio do marxismo [escreve Peter Drucker] obrigou aRússia a trilhar o mesmo caminho que a Alemanha,rumo a uma sociedade totalitária e de valorespuramente negativos, não econômica, sem liberdadenem igualdade. Isso não quer dizer que comunismo efascismo sejam essencialmente a mesma coisa. Ofascismo é o estágio atingido depois que ocomunismo se revela uma ilusão, conformeaconteceu tanto na Rússia stalinista como naAlemanha pré-hitlerista31.

Não menos significativa é a história intelectual demuitos líderes nazistas e fascistas. Todos os que têmobservado a evolução desses movimentos na Itália32

ou na Alemanha surpreenderam-se com o número delíderes, começando por Mussolini (sem excluir Lavale Quisling), que a princípio foram socialistas eacabaram se tornando fascistas ou nazistas.

E o que ocorreu com os líderes – ocorreu muitomais com os liderados. A relativa facilidade com queum jovem comunista podia converter-se em nazistaou vice-versa era notória na Alemanha, sobretudopara os propagandistas dos dois partidos. Na década

de 1930, muitos professores universitáriosconheceram estudantes ingleses e norte-americanosque, regressando do continente europeu, não sabiamao certo se eram comunistas ou nazistas – sabiamapenas que detestavam a civilização liberal doOcidente.

É verdade que na Alemanha, antes de 1933, e naItália, antes de 1922, comunistas e nazistas oufascistas entravam mais frequentemente em conflitoentre si do que com os outros partidos. Disputavam oapoio de pessoas da mesma mentalidade e votavamuns aos outros o ódio que se tem aos hereges. Noentanto, seu modo de agir demonstrava quãosemelhantes são, de fato. Para ambos, o verdadeiroinimigo, o homem com o qual nada tinham emcomum e ao qual não poderiam esperar convencer,era o liberal da velha escola. Enquanto o nazista parao comunista, o comunista para o nazista, e paraambos o socialista, são recrutas em potencial, terrenopropício à sua pregação – embora se tenham deixadolevar por falsos profetas – eles sabem que éimpossível qualquer tipo de entendimento com os querealmente acreditam na liberdade individual.

Para que disto não duvidem aqueles que se

deixaram levar pela propaganda oficial de um e deoutro lado, citarei mais uma afirmação feita por umaautoridade acima de qualquer suspeita. Num artigocom o significativo título de “A redescoberta doliberalismo”, o professor Eduard Heimann, um doslíderes do socialismo religioso alemão, escreve: ohitlerismo proclama-se tanto democracia autênticaquanto socialismo autêntico, e a terrível verdade éque, de certa forma, suas pretensões são verídicas –apenas num grau infinitesimal, sem dúvida, mas dequalquer modo suficiente para servir de base a essasfantásticas distorções.

O hitlerismo chega mesmo a se definir o protetordo cristianismo, e o mais terrível é que esse grosseiroequívoco consegue ainda causar alguma impressão.Mas um fato se destaca com perfeita clareza em todaessa confusão: Hitler jamais pretendeu representar overdadeiro liberalismo. O liberalismo tem a honra deser a doutrina mais odiada por Hitler 33.

Deve-se acrescentar que este ódio teve poucasoportunidades de se manifestar na práticasimplesmente porque, ao tempo em que Hitler subiuao poder, o liberalismo, para todos os efeitos, estavamorto na Alemanha. O socialismo o havia liquidado.

Enquanto, para muitos que observaram de perto atransição do socialismo para o fascismo, a relaçãoentre os dois sistemas ficou cada vez mais evidente,na Inglaterra a maioria ainda acredita que socialismoe liberdade podem ser conciliados.

Não há dúvida de que a maior parte dos socialistasingleses ainda crê profundamente no ideal liberal deliberdade, e recuaria caso se convencesse de que arealização de seu programa implicaria a destruição daliberdade. O problema é tão pouco compreendido, osideais mais irreconciliáveis ainda convivem com talnaturalidade, que assistimos hoje a sérios debatessobre conceitos expressos em termos contraditórios,como o de “socialismo individualista”. Se é esta aatitude mental que nos está levando para um novomundo, nada será mais urgente do que examinarmoscom seriedade o verdadeiro significado da evoluçãodos acontecimentos em outros países. Embora asnossas conclusões apenas confirmem os temores jáexpressos por outros, os motivos por que essaevolução não pode ser considerada acidental só semanifestarão mediante um exame bastante minuciosodos principais aspectos dessa transformação da vidasocial. O socialismo democrático, a grande utopia dasúltimas gerações, não só é irrealizável, mas o próprio

esforço necessário para concretizá-lo gera algo tãointeiramente diverso que poucos dos que agora odesejam estariam dispostos a aceitar suasconsequências. No entanto, tais evidências não serãoaceitas enquanto essa relação de causa e efeito nãofor explicitada em todos os seus aspectos.

Rodapé

25 “Discours prononcé à l’Assemblée Constituantele 12 septembre 1848 sur la question du droit autravail.” Oeuvres complétes d’Alexis de Tocqueville,1866, v. IX, p. 54626 A frequente confusão de liberdade com poder, queencontraremos mais de uma vez neste estudo, éassunto demasiado extenso para ser examinado emdetalhe aqui. Tão antiga quanto o próprio socialismo,está tão intimamente ligada a ele que, há quasesetenta anos, um estudioso francês, discutindo suasorigens saintsimonianas, era levado a dizer que estateoria da liberdade “est à elle seule tout Lesocialisme” (Janet, P. Saint-Simon et le saint-simonisme, 1878, p. 26, nota). O defensor mais

explícito dessa confusão é, significativamente, o maisimportante filósofo do esquerdismo norte-americano,John Dewey, para quem “a liberdade é o poderefetivo de fazer coisas específicas”, de sorte que“reivindicação de liberdade é reivindicação de poder”(“Liberty and Social Control”, The Social Frontier,nov. 1935, p. 41).27 Eastman, M. Stalin’s Russia and the Crisis ofSocialism, 1940, p. 82.28 Chamberlin, W. H. A False Utopia, 1937, pp.202-3.29 Voigt, PA., Unto Caesar, 1939, p. 95.30 Atlantic Monthly, nov. 1936, p. 55231 Drucker, P. The End of Economic Man, 1939, p.230.32 Uma esclarecedora exposição da históriaintelectual de muitos líderes fascistas encontra-se emMichaels, Robert (ele próprio fascista e ex-marxista),Sozialismus und Faszismus, Munique, 1925, v. II,pp. 264-6 e 311-12.33 Social Research (Nova York), v.VIII, n.º 4, nov.1941. A esse respeito convém lembrar que, fossemquais fossem as suas razões, Hitler julgou oportunodeclarar em um dos seus discursos, em fevereiro de

1941, que “basicamente, nacional-socialismo emarxismo são a mesma coisa” (cf. The Bulletin ofInternational News, Royal Institute of InternationalAffairs, v. XVIII, n.º 5, p. 269).

Capítulo 3

Individualismo e Coletivismo

Os socialistas acreditam em duas coisasabsolutamente diversas e talvez até

contraditórias, liberdade e organização”. – ElieHalévy

Antes de prosseguir na análise de nosso temaprincipal, resta-nos um obstáculo a transpor:esclarecer um equívoco responsável em grande partepelo modo como estamos sendo levados a situaçõesnão desejadas por ninguém. Esse equívoco, narealidade, diz respeito ao próprio conceito desocialismo. Tal conceito pode significar simplesmenteos ideais de justiça social, maior igualdade esegurança que são os fins últimos do socialismo – e émuitas vezes usado nesse sentido.

Mas significa também o método específico peloqual a maior parte dos socialistas espera alcançaresses fins, e que para muitas pessoas inteligentes sãoos únicos métodos pelos quais esses fins podem ser

plena e rapidamente alcançados. Nesse sentido,socialismo equivale à abolição da iniciativa privada eda propriedade privada dos meios de produção, e àcriação de um sistema de “economia planificada” noqual o empresário que trabalha visando ao lucro ésubstituído por um órgão central de planejamento.

Muitos se definem socialistas, embora consideremapenas a primeira acepção do termo, isto é, osocialismo representado pela justiça social, eacreditam profundamente nos fins últimos dosocialismo sem contudo cogitar nem entender amaneira de alcançá-los – sabem apenas que devemser alcançados a qualquer custo. Mas para quasetodos os que não consideram o socialismo umasimples esperança e sim um objeto da política prática,os métodos característicos do socialismo modernosão tão essenciais quanto seus próprios fins. Poroutro lado, muitos que, como os socialistas, prezamos fins últimos dessa doutrina, recusam-se a apoiá-lapor estarem convencidos de que os métodospropostos pelos socialistas põem em perigo outrosvalores. O debate em torno do socialismo tornou-sedessa forma em grande parte um debate sobre meiose não sobre fins – embora a questão impliquetambém saber se os diferentes fins do socialismo

poderão ser alcançados simultaneamente.Isso já seria suficiente para criar confusão. E a

confusão aumentou porque em geral não se admiteque os que repudiam os meios apreciem os fins. Eainda não é tudo. A situação torna-se mais complexaporque o mesmo meio – a “planificação econômica”,principal instrumento da reforma socialista – pode serutilizado para vários outros fins. Se quisermosrealizar uma distribuição da renda conforme as ideiascorrentes de justiça social, torna-se imperativocentralizar a direção da atividade econômica.Consequentemente, a “planificação” é desejada portodos os que exigem que a “produção para oconsumo” substitua a produção orientada para olucro. Mas essa planificação não será menosindispensável se a distribuição da renda for efetuadade modo oposto ao que reputamos justo. Sepretendêssemos, por exemplo, que uma elite racial,os nórdicos, os membros de um partido ou umaaristocracia fossem beneficiados por uma maiorparcela de bens e amenidades, os métodos queseríamos obrigados a empregar seriam os mesmosque empregaríamos para assegurar uma distribuiçãoigualitária.

Talvez possa parecer injusto empregar o termo“socialismo” para designar os métodos e não as suasfinalidades, ou aplicar a um determinado método otermo que para muitos exprime um ideal último. Seriapreferível talvez chamar de coletivismo os métodosque podem ser usados para uma grande variedade defins, e considerar o socialismo uma espécie dessegênero. No entanto, ainda que para a maioria dossocialistas somente uma espécie de coletivismorepresente o verdadeiro socialismo, não devemosesquecer que o socialismo é uma espécie decoletivismo e que, portanto, tudo o que se aplica aocoletivismo se aplica também ao socialismo. Quasetodos os pontos de divergência entre socialistas eliberais referem-se aos métodos comuns a todas asformas de coletivismo e não aos fins específicos paraos quais os socialistas desejam empregá-los; e todasas consequências de que trataremos neste livrodecorrem dos métodos coletivistas,independentemente dos fins para os quais são usados.Também não devemos esquecer que o socialismo nãoé apenas a espécie mais importante de coletivismo oude “planificação”; é também a doutrina que persuadiuinúmeras pessoas de tendências liberais a sesubmeterem mais uma vez ao rígido controle da vida

econômica que haviam abolido, pois, segundo AdamSmith, tal controle faz com que os governos, “para semanterem, sejam obrigados a tornar-se opressores etirânicos”34.

Os problemas causados pela ambiguidade nalinguagem política comum não desaparecerão,mesmo que passemos a aplicar o termo “coletivismo”para indicar todos os tipos de “economia planificada”,seja qual for a finalidade do planejamento. Osignificado do termo tornar-se-á mais preciso sedeixarmos claro que por ele entendemos a espécie deplanejamento necessário à realização de qualquerideal distributivo. Mas como a ideia de planejamentoeconômico central seduz em grande parte pelaprópria indefinição de seu significado, é indispensávelestabelecer-lhe o sentido preciso antes de discutirmossuas consequências.

O conceito de “planejamento” deve suapopularidade em grande parte ao fato de todosdesejarmos, obviamente, tratar os problemasordinários da forma mais racional e de para tantoprecisarmos utilizar toda a capacidade de previsãopossível. Neste sentido, se não for um completofatalista, todo indivíduo será um planejador; todo ato

político será (ou deveria ser) um ato deplanejamento, de sorte que só haverá distinção entreo bom e o mau planejamento, entre um planejamentosábio e previdente e o míope e insensato. Umeconomista, que estuda a maneira como os homensde fato planejam suas atividades e como deveriamplanejá-las, seria a última pessoa a opor-se aoplanejamento em tal acepção genérica. Mas não énesse sentido que nossos entusiastas de umasociedade planejada empregam atualmente essetermo; tampouco é apenas nesse sentido que seránecessário planejar se desejarmos a distribuição darenda ou da riqueza conforme determinado padrão.Segundo os modernos planejadores, e os objetivosque eles perseguem, não basta traçar uma estruturapermanente, a mais racional possível, dentro da qualcada pessoa conduza suas várias atividades de acordocom seus planos individuais. Este plano liberal,segundo eles, não é um plano e, de fato, não tem porobjetivo satisfazer qualquer ideia relativa à parcela darenda que caberá a cada indivíduo. O que nossosplanejadores exigem é um controle centralizado detoda a atividade econômica de acordo com um planoúnico, que estabeleça a maneira pela qual os recursosda sociedade sejam “conscientemente dirigidos” a fim

de servir, de uma forma definida, a finalidadesdeterminadas.

O debate entre os planejadores modernos e os seusadversários, por conseguinte, não visa a estabelecerse devemos ou não escolher racionalmente entre asvárias formas possíveis de organização da sociedade;não diz respeito à necessidade de recorrermos àprevisão e ao raciocínio sistemático no planejamentode nossos assuntos ordinários. Gira em torno damaneira de proceder nesse sentido. Busca determinarse os detentores do poder coercitivo devem limitar-seem geral a criar condições em que os própriosindivíduos disponham de um grau de conhecimento einiciativa que lhes permita planejar com o maiorêxito; ou se a utilização racional dos nossos recursosexige uma direção e organização central de todas asnossas atividades segundo algum “projeto” elaboradopara este fim. Os socialistas de todos os partidosapropriaram-se do termo “planejamento” paradesignar este último tipo de organização, e a palavrapassou a ser empregada usualmente nesse sentido.Mas embora com isso se pretenda sugerir que oplanejamento central é a única maneira racional deconduzirmos os nossos negócios, nada fica provado,é claro. E esta permanece a questão sobre a qual

discordam planejadores e liberais. É importante nãoconfundir a oposição a essa espécie de planejamentocom uma dogmática atitude de laissez-faire. Adoutrina liberal é a favor do emprego mais efetivo dasforças da concorrência como um meio de coordenaros esforços humanos, e não de deixar as coisas comoestão. Baseia-se na convicção de que, onde exista aconcorrência efetiva, ela sempre se revelará a melhormaneira de orientar os esforços individuais. Essadoutrina não nega, mas até enfatiza que, para aconcorrência funcionar de forma benéfica, seránecessária a criação de uma estrutura legalcuidadosamente elaborada, e que nem as normaslegais existentes, nem as do passado, estão isentas degraves falhas. Tampouco deixa de reconhecer que,sendo impossível criar as condições necessárias paratornar efetiva a concorrência, seja preciso recorrer aoutros métodos capazes de orientar a atividadeeconômica. Todavia, o liberalismo econômico écontrário à substituição da concorrência por métodosmenos eficazes de coordenação dos esforçosindividuais. E considera a concorrência um métodosuperior, não somente por constituir, na maioria dascircunstâncias, o melhor método que se conhece,mas, sobretudo por ser o único método pelo qual

nossas atividades podem ajustar-se umas às outrassem a intervenção coercitiva ou arbitrária daautoridade. Com efeito, uma das principaisjustificativas da concorrência é que ela dispensa anecessidade de um “controle social consciente” eoferece aos indivíduos a oportunidade de decidir seas perspectivas de determinada ocupação sãosuficientes para compensar as desvantagens e riscosque a acompanham.

O bom uso da concorrência como princípio deorganização social exclui certos tipos de intervençãocoercitiva na vida econômica, mas admite outros queàs vezes podem auxiliar consideravelmente seufuncionamento, e mesmo exige determinadas formasde ação governamental. Contudo, há boas razõespara que os requisitos negativos, os casos em que nãose deve empregar a coerção, tenham sidoparticularmente enfatizados. Em primeiro lugar, énecessário que os agentes, no mercado, tenhamliberdade para vender e comprar a qualquer preçoque encontre um interessado na transação, e quetodos sejam livres para produzir, vender e comprarqualquer coisa que possa ser produzida ou vendida. Eé essencial que o acesso às diferentes ocupações sejafacultado a todos, e que a lei não tolere que

indivíduos ou grupos tentem restringir esse acessopelo uso aberto ou disfarçado da força.

Qualquer tentativa de controlar os preços ou asquantidades desta ou daquela mercadoria impede quea concorrência promova uma efetiva coordenaçãodos esforços individuais, porque as alterações depreço deixarão assim de registrar todas as alteraçõesimportantes das condições de mercado e não maisfornecerão ao indivíduo a informação confiável pelaqual possa orientar suas ações.

No entanto, esse princípio não se aplicanecessariamente às medidas que apenas restringem osmétodos de produção permitidos, desde que taisrestrições afetem de igual modo todos os produtoresvirtuais e não sejam utilizadas como meio indireto decontrole de preços e quantidades. Embora todos estescontroles dos métodos ou da produção imponhamcustos adicionais, pois tornam necessário o empregode recursos maiores para alcançar determinado nívelde produção, sua aplicação pode trazer bonsresultados em certas circunstâncias. Proibir o uso desubstâncias tóxicas ou exigir precauções especiaispara a sua utilização, limitar as horas de trabalho ourequerer certas disposições sanitárias, é inteiramente

compatível com a manutenção da concorrência. Aúnica questão é estabelecer se, neste ou naquele caso,as vantagens obtidas são maiores do que os custossociais decorrentes de tais medidas. A manutenção daconcorrência tampouco é incompatível com umamplo sistema de serviços sociais desde que aorganização de tais serviços não torne ineficaz aconcorrência em vastos setores da vida econômica.

É lamentável, embora não seja difícil de explicar,que no passado se tenha dado muito menos atençãoaos requisitos positivos para um eficientefuncionamento do sistema de concorrência do queaos pontos negativos. O funcionamento daconcorrência não apenas requer a organizaçãoadequada de certas instituições como a moeda, osmercados e os canais de informação – algumas dasquais nunca poderão ser convenientemente geridaspela iniciativa privada mas depende sobretudo daexistência de um sistema legal apropriado, estruturadode modo a manter a concorrência e a permitir que elaproduza os resultados mais benéficos possíveis. Nãobasta que a lei reconheça o princípio da propriedadeprivada e da liberdade de contrato; também éimportante uma definição precisa do direito depropriedade aplicado a questões diferentes.

Infelizmente, até o momento tem sido negligenciadoo estudo sistemático das instituições legais que farãoo sistema competitivo funcionar de maneira eficiente;e com base em sólidos argumentos podemosdemonstrar que graves falhas, particularmente comrelação às leis de sociedades anônimas e de patentes,não só levaram a concorrência a funcionar de modomuito menos eficaz como ainda causaram suadestruição em muitos setores.

Há, por fim, certos campos nos quais, sem dúvida,nenhuma disposição legal poderá criar a condiçãoprimeira da qual depende a eficácia do sistema deconcorrência e de propriedade privada, ou seja, que oproprietário se beneficie de todos os serviços úteisprestados pela sua propriedade e sofra asconsequências dos danos causados pelo seu uso.Quando, por exemplo, é impraticável condicionar ousufruto de certos serviços ao pagamento de umpreço, a concorrência não produzirá tais serviços; e osistema de preços também não funcionará de modoconveniente quando o dano causado a outrem porcertos usos da propriedade não puder ser cobrado aoproprietário. Em todos esses casos há umadivergência entre os itens que são incorporados aocálculo privado e os que influem no bem-estar social;

e sempre que essa divergência se tornar significativa,tais serviços talvez devam ser prestados recorrendo-se a outro método que não a concorrência. Porexemplo, a colocação de sinais de tráfego nas ruas e,na maioria das circunstâncias, a construção daspróprias vias públicas, não pode ser paga pelos seususuários individualmente. Tampouco certos efeitosnocivos do desmatamento, de determinados métodosagrícolas, ou da fumaça e do ruído das fábricas,dizem respeito apenas ao proprietário em questão ouàqueles que aceitam se expor a esses efeitos em trocade uma compensação estipulada. Em tais casos,devemos procurar outros meios de controle quepossam substituir o mecanismo de preços. Mas o fatode termos de recorrer a um controle direto pelaautoridade, quando é impossível criar as condiçõespara o funcionamento apropriado da concorrência,não prova que devamos suprimi-la nos setores emque possamos fazê-la funcionar adequadamente.

Criar as condições em que a concorrência seja tãoeficiente quanto possível, complementar-lhe a açãoquando ela não o possa ser, fornecer os serviços que;nas palavras de Adam Smith, “embora ofereçam asmaiores vantagens para a sociedade, são contudo detal natureza que o lucro jamais compensaria os gastos

de qualquer indivíduo ou pequeno grupo deindivíduos”, são as tarefas que oferecem na verdadeum campo vasto e indisputável para a atividadeestatal. Em nenhum sistema racionalmente defensávelseria possível o estado ficar sem qualquer função.Um sistema eficaz de concorrência necessita, comoqualquer outro, de uma estrutura legal elaborada cominteligência e sempre aperfeiçoada. Mesmo os pré-requisitos mais essenciais ao seu funcionamentoadequado, como a prevenção da fraude e doestelionato (inclusive a exploração da ignorância),constituem um vasto campo de atividade legislativa,que até hoje não foi dominado por completo.

Contudo, a criação de uma estrutura adequada aofuncionamento benéfico da concorrência estava longede ser completada quando, em toda a parte, osestados começaram a substituí-la por um princípiodiferente e inconciliável. Já não se tratava de fazerfuncionar a concorrência e de complementar-lhe aação, mas de suplantá-la inteiramente. E importanteesclarecer bem o seguinte: o atual movimentofavorável à planificação é um movimento contrário àconcorrência, uma nova bandeira sob a qual seuniram os velhos inimigos do mercado livre. Eembora interesses de toda sorte estejam tentando

agora restabelecer sob esta égide privilégios que a eraliberal suprimiu, foi a propaganda socialista em favorda planificação que restaurou, entre as pessoas detendências liberais, a respeitabilidade, da oposição àconcorrência, e que dissipou a saudável suspeita quetoda tentativa de suprimir a concorrência costumavadespertar35. Na realidade, o que une os socialistas daesquerda e da direita é essa hostilidade comum àconcorrência e o desejo de substituí-la por umaeconômica dirigida. Não obstante os termos“capitalismo” e “socialismo” ainda serem usados, emgeral, para designar respectivamente as formaspassada e futura da sociedade, eles ocultam anatureza da transição que vivemos ao invés deelucidá-la.

Mas embora todas as mudanças que estamosobservando se inclinem para uma direção centralabrangente da atividade econômica, a luta universalcontra a concorrência promete gerar antes de tudoalgo ainda pior sob vários aspectos: uma situação quenão pode satisfazer nem os planejadores nem osliberais, uma espécie de organização sindicalista ou“corporativista”, na qual a concorrência é mais oumenos suprimida, mas o planejamento fica nas mãosde monopólios independentes, controlados por cada

setor da economia. Este é inevitavelmente o primeiroresultado de uma situação na qual todos, unidos nahostilidade à concorrência, em pouco maisconcordam. Eliminando a concorrência de modogradual em cada setor da economia, essa políticadeixa o consumidor à mercê da ação monopólicaconjunta dos capitalistas e dos trabalhadores dossetores melhor organizados. No entanto, embora talsituação já exista há algum tempo em vastas esferasde atividade, e seja o objetivo de grande parte dosagitadores confusos (e de quase todos os agitadoresinteressados) favoráveis ao planejamento, não deverásubsistir nem poderá ser justificada de formaracional. Esse planejamento independente realizadopor monopólios econômicos produziria, na realidade,efeitos opostos aos visados pela própria ideia deplanejamento.

Uma vez alcançado esse estágio, a únicaalternativa para a volta ao sistema de concorrência éo controle dos monopólios pelo estado, controle que,para ser eficaz, deve tornar-se cada vez maiscompleto e minucioso. É deste estágio que nosestamos rapidamente aproximando. Pouco antes daguerra, um semanário apontava “vários sintomas deque os dirigentes da política inglesa começavam a

aceitar a ideia do desenvolvimento nacional por meiode monopólios tutelados”36. Era, provavelmente, umaavaliação exata da situação na época. Desde então,esse processo tem sido sobremodo acelerado pelaguerra, e suas graves falhas e perigos se tornarãocada vez mais evidentes com o decorrer do tempo.

A centralização absoluta da gestão da atividadeeconômica ainda atemoriza a maioria das pessoas,sobretudo peta ideia em si mesma, mas tambémdevido à tremenda dificuldade que isso implica. Se,todavia, estamos nos aproximando rapidamente de talsituação, é porque muitos ainda acreditam que sejapossível encontrar um meio-termo entre aconcorrência “atomística” e o dirigismo central. Comefeito, à primeira vista nada parece mais plausível, outem maior probabilidade de atrair as simpatias doshomens sensatos, do que escolher como meta não aextrema descentralização da livre concorrência nem acentralização completa representada por um planoúnico, mas uma judiciosa combinação dos doismétodos. Não obstante, o simples senso comum nãose revela um guia seguro neste campo. Embora aconcorrência consiga suportar certo grau de controlegovernamental, ela não pode ser harmonizada emqualquer escala com o planejamento central sem que

deixe de operar como guia eficaz da produção.Tampouco é o “planejamento” um remédio que,tomado em pequenas doses, possa produzir os efeitosesperados de sua plena aplicação. Quandoincompletos, tanto a concorrência como o dirigismocentral se tornam instrumentos fracos e ineficientes.Eles constituem princípios alternativos usados nasolução do mesmo problema e, se combinados,nenhum dos dois funcionará efetivamente e oresultado será pior do que se tivéssemos aderido aqualquer dos dois sistemas. Ou, em outras palavras,planificação e concorrência só podem ser combinadasquando se planeja visando à concorrência, mas nuncacontra ela.

Para que o leitor compreenda a tese defendidaneste trabalho, é de extrema importância ter emmente que a nossa crítica visa exclusivamente aoplanejamento contrário à concorrência – oplanejamento que pretende substituir a concorrência.Isso é tanto mais importante por não podermos,dentro dos limites desta obra, discutir o outro tipo deplanejamento, imprescindível para tornar aconcorrência tão eficaz e benéfica quanto possível.Mas como, no uso corrente, “planejamento” tornou-se quase sinônimo de planificação contra a

concorrência, será algumas vezes inevitável, porrazões de concisão, designá-lo apenas comoplanejamento, embora isso importe deixar aos nossosadversários um excelente termo que mereceriamelhor aplicação.

Rodapé

34 De um memorando escrito por Smith em 1755 ecitado por Dugald Slewart em Memoir of AdamSmith.35 É certo que, nos últimos tempos, alguns teóricossocialistas, aguilhoados pela crítica e tambémimpelidos pelo temor da extinção da liberdade numasociedade centralmente planificada, idearam umanova espécie de “socialismo competitivo” que,esperam, evitará as dificuldades e perigos de umplanejamento central, associando a abolição dapropriedade privada à plena preservação da liberdadeindividual. Embora certas publicações especializadastenham debatido esta nova espécie de socialismo, ébastante improvável que ela consiga atrair os políticospráticos. E se tal ocorrer, não será difícil mostrar

(como já fiz em outro trabalho – veja Econômica,1940) que esses planos repousam numa ilusão epecam por uma contradição intrínseca. É impossívelassumir o controle de todos os recursos produtivossem, ao mesmo tempo, determinar por quem e embeneficio de quem esses recursos devem ser usados.Embora neste chamado “socialismo competitivo” aplanificação por uma autoridade central se tornasseum tanto mais indireta, seus eleitos não seriam, emessência, diferentes, e a concorrência seria poucomais que uma farsa.36 The Spectator, 3 mar. 1939, p. 337.

Capítulo 4

A “Inevitabilidade” daPlanificação

“Fomos os primeiros a afirmar que, quantomais complexa se torna a civilização, mais sedeve restringir a liberdade do indivíduo”. –

Benito MussoliniÉ significativo que poucos defensores da

planificação se contentem em afirmar que oplanejamento central é desejável. A maioria delesafirma que não há mais escolha, e que circunstânciasincontroláveis nos obrigam a substituir a concorrênciapelo planejamento. Cultiva-se deliberadamente o mitode que estamos tomando esse novo caminho não pornossa vontade, mas porque a concorrência está sendoeliminada por transformações tecnológicas que nãopodemos deter nem devemos impedir. E raramente oargumento vai além disso. É uma dessas asserçõesque, transmitidas de autor para autor, por merarepetição acabam sendo admitidas como fatos

estabelecidos. Todavia, é desprovida de qualquerfundamento. A tendência ao monopólio e aoplanejamento não decorre de “fatos objetivos” eincontroláveis. É, ao contrário, produto de opiniõespromovidas e propagadas durante meio século, atéque chegaram a dominar toda a nossa política degoverno.

Dos vários argumentos empregados parademonstrar a inevitabilidade da planificação, o maisusado é aquele segundo o qual as transformaçõestecnológicas foram tornando impossível aconcorrência em campos cada vez mais numerosos,só nos restando escolher entre o controle daprodução por monopólios privados ou o controle pelogoverno. Esta ideia provém, sobretudo, da doutrinamarxista da “concentração da indústria”, embora,como tantas ideias marxistas, seja agora cultivada emmuitos círculos que a receberam de terceira ou quartamão e ignoram a sua origem. Não contestamos,naturalmente, o fato histórico do crescimentoprogressivo dos monopólios durante os últimoscinquenta anos e a restrição cada vez maior docampo em que reina a concorrência. Muitas vezes,porém, exagera-se bastante a amplitude dofenômeno37.

A questão realmente importante é determinar seesses fatos constituem consequência necessária doprogresso da tecnologia ou se não serão simplesresultado das políticas adotadas na maioria dospaíses. Veremos dentro em pouco que a história realda evolução desse fenômeno aponta para esta últimahipótese. Mas, antes de tudo, devemos considerar atéque ponto os modernos progressos tecnológicos sãodo gênero que torna inevitável o crescimento dosmonopólios.

A causa de natureza tecnológica a que se atribui osurgimento do monopólio seria a superioridade dasgrandes firmas em relação às pequenas, por causa damaior eficiência dos modernos métodos de produçãoem massa. Afirma-se que os métodos modernoscriaram, na maior parte dos setores da economia,condições que permitem à grande empresa aumentarsua produção a custos unitários decrescentes,fazendo com que, em todos os países, ela possaoferecer preços mais baixos e expulsar a pequenaempresa do mercado. Esse processo continuaria atéque em cada setor só restasse uma ou, no máximo,um número restrito de empresas gigantes. Talargumento ressalta apenas um dos efeitos que àsvezes acompanha o progresso tecnológico,

menosprezando outros que atuam no sentidocontrário, e não é confirmado por um examecuidadoso dos fatos. Não podemos aqui investigar aquestão em detalhe e teremos de contentar-nos comos melhores testemunhos disponíveis. O maisabrangente estudo realizado sobre o assunto nosúltimos tempos é o da comissão provisória deeconomia nacional norte-americana sobre aConcentração do Poder Econômico. O relatório finaldessa comissão (que certamente não pode seracusada de uma indevida parcialidade para com oliberalismo) conclui que o suposto desaparecimentoda concorrência em função da maior eficiência dosmétodos de produção em larga escala “não pode sercomprovado pelos elementos de que dispomos”38. Ea minuciosa monografia sobre a matéria, redigidapara a comissão, assim sintetiza a conclusão:

a maior eficiência das grandes empresas não foidemonstrada; em muitos setores, não foramencontradas as vantagens que eliminariam aconcorrência. Tampouco as economias de escala,quando existem, pressupõem invariavelmente omonopólio. ...As dimensões que favorecem aeficiência máxima podem ser alcançadas muito antesde a maior parte da produção estar sujeita a esse

gênero de controle. Não se pode aceitar a conclusãode que as vantagens da produção em grande escalalevam inevitavelmente à abolição da concorrência.Cumpre notar, contudo, que o monopólio é muitasvezes produto de outros fatores que não o menorcusto decorrente da produção em larga escala. Eleresulta de conluios, e é promovido pela políticagovernamental. Quando se invalidam tais acordos ese altera a política, a concorrência pode serrestabelecida39.

Um estudo da situação na Inglaterra produziriaresultados muito semelhantes. Se observarmos aregularidade e a frequência com que os aspirantes aomonopólio obtêm o auxílio do estado para tornarefetivo o seu controle, convencer-nos-emos de que omonopólio não é em absoluto inevitável.

Esta conclusão é grandemente corroborada pelaordem histórica em que o declínio da concorrência eo surto do monopólio se manifestaram nos diferentespaíses. Se decorressem dos avanços tecnológicos oufossem produto necessário da evolução do“capitalismo”, teriam de surgir em primeiro lugar nospaíses cujo sistema econômico é mais avançado. Narealidade, apareceram pela primeira vez no último

quarto do século XIX, em países relativamentejovens do ponto de vista da industrialização: osEstados Unidos e a Alemanha. Em especial nesteúltimo país, que veio a ser considerado modelo daevolução lógica do capitalismo, o surgimento decartéis e sindicatos tem sido deliberadamentepromovido desde 1878 pela política governamental.Não só o protecionismo mas também estímulosdiretos, e por fim a coação, foram empregados pelosgovernos para favorecer a criação de monopólios,visando ao controle de preços e vendas. Foi lá que,com a ajuda do estado, a primeira grande experiênciade “planejamento científico” e “organizaçãoconsciente da indústria” fez surgir monopóliosgigantes, apresentados como consequênciasinevitáveis cinquenta anos antes que a mesma políticafosse adotada na Inglaterra.

Os teóricos alemães do socialismo, sobretudoSombart, fizeram generalizações com base naexperiência de seu país, e foi em grande parte devidoà sua influência que se estabeleceu o conceito datransição inevitável do sistema de concorrência para o“capitalismo monopólico”. O fato de, nos EstadosUnidos, uma política altamente protecionista haverpossibilitado evolução algo semelhante parecia

confirmar essas generalizações. No entanto, osacontecimentos na Alemanha passaram a serconsiderados mais representativos de uma tendênciauniversal do que o que se verificou nos EstadosUnidos. Desse modo, tornou-se lugar-comum falar –como o faz um recente ensaio político de ampladivulgação – de uma “Alemanha em que todas asforças sociais e políticas da civilização modernaalcançaram a sua forma mais avançada”40.

Perceberemos quão pouco tudo isso era inevitávele como resultava muito mais da políticagovernamental se considerarmos a situação daInglaterra até 1931 e o que ocorreu depois desse anoem que a Grã-Bretanha também passou a adotar apolítica de protecionismo geral. Com exceção depoucos setores que já gozavam da proteção estatalantes disso, há doze anos apenas ainda reinava naeconomia britânica um clima de concorrência maislivre, talvez, do que em qualquer outra época de suahistória. E, embora durante a década de 1920 essaeconomia fosse grandemente prejudicada porpolíticas governamentais incompatíveis no tocanteaos salários e à moeda, pelo menos os anos anterioresa 1929 mostram vantagens em relação à década de1930 no que diz respeito ao problema do emprego e à

atividade econômica geral. Só depois da adoção dapolítica protecionista e da modificação geral dapolítica econômica britânica que a acompanhou foique o desenvolvimento dos monopólios assumiu umritmo espantoso, transformando a indústria inglesa aum ponto que até o momento o público ainda nãopercebeu. Afirmar que tal desdobramento tem algo aver com o progresso tecnológico desse período e queas necessidades de ordem tecnológica que atuaram naAlemanha nas décadas de 1880 e 1890 se fizeramsentir na Inglaterra na década de 1930 não é menosabsurdo que a afirmação, implícita na frase deMussolini que serve de epígrafe a este capítulo,segundo a qual a Itália foi obrigada a abolir aliberdade individual antes de qualquer outra naçãoeuropeia porque sua civilização se encontrava muito àfrente da dos outros países.

No que concerne à Inglaterra, a tese de que essamudança de opinião e de política governamentalapenas acompanha uma transformação inexoráveldos fatos poderia parecer verossímil justamenteporque este país seguiu com certo atraso a evoluçãointelectual dos demais. Desse modo, poder-se-iaargumentar que a organização monopólica daindústria tomou impulso embora a opinião pública

ainda fosse favorável à concorrência, mas que avontade do povo foi frustrada por fatos externos. Noentanto, a verdadeira relação entre a teoria e a práticaevidencia-se quando analisamos o protótipo dessaevolução na Alemanha. Não há dúvida de que,naquele país, a supressão da concorrência resultou deuma política adotada pelo governo para servir aoideal hoje denominado planejamento. No avançogradual rumo a uma sociedade completamenteplanificada, os alemães e todos aqueles que oraimitam seu exemplo não fazem mais que seguir ocurso traçado pelos pensadores do século XIX, emespecial os pensadores alemães. A história das ideiasdos últimos 60 ou 80 anos é, com efeito, umailustração perfeita da seguinte verdade: na evoluçãosocial nada é inevitável, a não ser o que se pensa queé.

A afirmação de que os modernos progressos datecnologia levam inevitavelmente à planificaçãotambém pode ser interpretada de outra maneira. Elapode dar a entender que a complexidade da nossamoderna civilização industrial faz surgir novosproblemas que não poderemos solucionar senão pormeio do planejamento central. De certo modo essaasserção é verdadeira – mas não no sentido amplo

que lhe é atribuído. É, por exemplo, lugar-comumque muitos dos problemas de uma cidade moderna,assim como numerosos outros causados pela íntimacontiguidade espacial, não são convenientementesolucionados pela concorrência. Mas não são essesproblemas, como os dos “serviços públicos” etc, osmais importantes aos olhos daqueles que invocam acomplexidade da civilização moderna comojustificativa para o planejamento central. O que elescostumam afirmar é que a dificuldade cada vez maiorde se obter uma visão coerente de todo o processoeconômico torna indispensável a coordenaçãoexercida por um órgão central, a fim de que a vidasocial não mergulhe no caos.

Esta justificativa fundamenta-se numa ideiacompletamente errônea do modo como funciona aconcorrência. Longe de se adequar apenas acondições mais ou menos simples, é a própriacomplexidade da divisão do trabalho no mundomoderno que faz da concorrência o único métodopelo qual essa coordenação pode se produzir demodo eficaz. Um planejamento ou um controleeficiente não apresentariam dificuldades se ascondições fossem tão simples que uma única pessoapudesse fiscalizar todos os fatos importantes. A

descentralização só se torna imperiosa quando osfatores a serem considerados são tão numerosos queé impossível obter uma visão de conjunto. Uma vezestabelecida a necessidade da descentralização, surgeo problema da coordenação – um tipo decoordenação que dê aos órgãos particulares aautonomia de ajustar suas atividades a fatos que sóeles podem conhecer, e que, no entanto, promova aomesmo tempo um ajustamento mútuo dos seusrespectivos planos. Como a descentralização tornou-se necessária porque ninguém pode equilibrar demaneira intencional todos os elementos queinfluenciam as decisões de tantos indivíduos, acoordenação não pode, é claro, ser efetuada por“controle consciente”, mas apenas por meio de umaestrutura que proporcione a cada agente asinformações de que precisa para um ajuste efetivo desuas decisões às dos demais. E, como nunca sepodem conhecer todos os pormenores dasmodificações que influem constantemente nascondições da oferta e da procura das diferentesmercadorias, e nenhum órgão tem a possibilidade dereuni-los e divulgá-los com suficiente rapidez, torna-se necessário algum sistema de registro que assinalede forma automática todos os efeitos relevantes das

ações individuais – sistema cujas indicações serão aomesmo tempo o resultado das decisões individuais e aorientação para estas.

É justamente essa a função que o sistema depreços desempenha no regime de concorrência, e quenenhum outro sistema sequer promete realizar. Elepermite aos empresários ajustar sua atividade à deseus concidadãos pela observação das oscilações deum certo número de preços, tal como o maquinistadirige o trem observando alguns mostradores. Éimportante assinalar que o sistema de preços sócumprirá sua função se a concorrência predominar,ou seja, se o produtor tiver que se adaptar àsalterações de preços e não puder controlá-las. Quantomais complexo o todo, mais dependemos da divisãode conhecimentos entre indivíduos cujos esforçosseparados são coordenados pelo mecanismoimpessoal, transmissor dessas importantesinformações, que denominamos sistema de preços.

Não é exagero dizer que, se tivéssemos precisadodepender de planejamento central consciente para odesenvolvimento do nosso sistema industrial, estenunca teria alcançado o grau de diferenciação,complexidade e flexibilidade a que chegou.

Comparado a esse método, que soluciona o problemaeconômico por meio da descentralização e dacoordenação automática, o dirigismo central, emaparência mais óbvio, é incrivelmente canhestro,primitivo e de alcance limitado. Se a divisão dotrabalho alcançou a amplitude que torna possível acivilização moderna, não foi por ter sido criada paraeste fim, mas porque a humanidade descobriu poracaso um método graças ao qual essa divisão pôdeser estendida muito além dos limites dentro dos quaisteria sido possível planejá-la. Longe, portanto, detornar mais necessário o dirigismo central, uma maiorcomplexidade exigirá mais do que nunca o empregode uma técnica que não dependa de controleconsciente.

Há outra teoria que relaciona o surgimento dosmonopólios ao progresso tecnológico, mas queemprega argumentos quase opostos aos queacabamos de considerar. Embora muitas vezes nãoseja formulada com clareza, essa teoria tambémexerceu considerável influência. Ela não afirma que atécnica moderna destrói a concorrência, mas aocontrário, que será impossível fazer uso de muitasdas novas possibilidades tecnológicas a menos que segaranta proteção contra a concorrência – isto é, a não

ser que monopólios sejam concedidos. Este tipo deraciocínio não é necessariamente fraudulento, comotalvez suspeite o leitor crítico. A contestação óbvia,ou seja, a de que, se uma nova técnica de satisfaçãodas nossas necessidades for realmente melhor queoutra, será capaz de resistir a toda sorte deconcorrência – não resolve todos os casos a que oargumento se refere. Sem dúvida, muitas vezes elenão passa de uma forma de alegação usada porgrupos de interesse. E, com mais frequência ainda,baseia-se talvez numa confusão entre a qualidadetécnica considerada da perspectiva limitada doespecialista e sua conveniência do ponto de vista dasociedade como um todo.

Resta, entretanto, uma série de casos em que oargumento tem certa relevância. Poderíamosconceber, por exemplo, que a indústria britânica deautomóveis pudesse oferecer um carro mais barato emelhor do que os dos Estados Unidos, se todos naInglaterra fossem obrigados a usar o mesmo tipo decarro: ou que a eletricidade para todos os fins setornasse mais barata do que o carvão ou o gás, sefosse possível, obrigar as pessoas a usar apenaseletricidade. Em exemplos como esses, não seriaimpossível que todos nos encontrássemos em

situação melhor e preferíssemos essa nova situação,se nos fosse dado escolher. Mas não haveriapossibilidade de escolha porque a alternativa seriausarmos todos o mesmo carro barato (ou somenteeletricidade), ou ser-nos dado escolher entre essascoisas, cada uma a um preço muito mais elevado.Não sei se isso é válido para qualquer dos exemplosapontados. Mas devemos reconhecer que é possível,por uma padronização compulsória ou pela restriçãoda variedade de artigos além de um determinadolimite, criar em certos campos uma abundância maisque suficiente para compensar a limitação imposta àescolha do consumidor. E até concebível que surjaalgum dia um novo invento cujo emprego pareçaindiscutivelmente benéfico, mas que só possa serusado se todos ou quase todos forem obrigados autilizá-lo ao mesmo tempo.

Quer esses exemplos possam ou não ter umaimportância considerável e duradoura, não justificam,por certo, a ideia de que o progresso técnico tornainevitável o dirigismo central. Tornariam apenasnecessário escolher entre o usufruto compulsório dedeterminada vantagem e a sua não obtenção – ou, namaioria dos casos, a sua obtenção posterior, nomomento em que novos progressos da técnica

tivessem superado as dificuldades existentes. Em taiscircunstâncias seríamos obrigados a sacrificar umapossível vantagem imediata em troca da liberdade –mas, por outro fado, evitaríamos que os progressosfuturos dependessem de conhecimentos que agoraapenas determinadas pessoas possuem. Sacrificandohoje tais vantagens hipotéticas imediatas, estaremospreservando um importante estímulo ao progressofuturo. Embora, a curto prazo, seja talvez bastanteelevado o preço que tenhamos de pagar pelavariedade e pela liberdade de escolha, numaperspectiva mais ampla o próprio progresso materialdependerá dessa variedade, porque nunca nos é dadoprever qual das numerosas maneiras de se oferecerdeterminado bem ou serviço possibilitará osurgimento de algo mais perfeito. Não se podeafirmar, é claro, que a preservação da liberdade como sacrifício de algum acréscimo ao nosso presenteconforto material será recompensada em todos oscasos. Mas a posição em favor da liberdade éjustamente a de que devemos reservar espaço para osprogressos espontâneos e imprevisíveis. Porconseguinte, ela não deixa de se aplicar quando, emface dos nossos conhecimentos atuais, aobrigatoriedade só parece trazer vantagens, e ainda

que em determinado caso não seja realmenteprejudicial.

Em muitos dos atuais debates sobre os efeitos doprogresso tecnológico, este nos é apresentado comoalgo externo a nós e que poderia obrigar-nos a utilizaros novos conhecimentos de uma forma específica. Seé verdade que as invenções nos conferiram um poderformidável, por outro lado é absurdo insinuar quedevemos empregar esse poder para destruir nossolegado mais precioso: a liberdade. Isso significa,contudo, que se quisermos preservá-la deveremoszelar por ela mais do que nunca e estar preparadospara fazer sacrifícios em seu favor. Ainda que osmodernos avanços tecnológicos não nos forcem aempreender um planejamento econômico abrangente,em função deles torna-se infinitamente mais perigosoo poder de uma autoridade planejadora.

Embora seja indubitável que o impulso para oplanejamento resulta de uma ação deliberada e quenenhuma necessidade externa nos obriga a isso, valea pena indagar, contudo, por que encontramos entreos maiores entusiastas da planificação um número tãogrande de técnicos e especialistas. A explicação dessefenômeno tem muita relação com um importante fato

que os críticos do planejamento deveriam ter semprepresente; sem dúvida alguma, quase todos os ideaistecnológicos dos nossos especialistas poderiam serrealizados num prazo relativamente curto, se realizá-los se tornasse o objetivo único da humanidade. Háuma quantidade infinita de boas coisas que todos nósadmitimos serem extremamente desejáveis e tambémpossíveis, mas são poucas as que poderemos teresperança de obter durante a nossa existência, ealgumas só conquistaremos de maneira muitoimperfeita. São as ambições frustradas do especialistaem seu próprio campo de trabalho que o levam arevoltar-se contra a ordem reinante. Todos nós temosdificuldade em aceitar que coisas consideradas peloconsenso geral tão desejáveis quanto possíveisdeixem de ser feitas. O fato de que essas coisas nãopodem ser realizadas todas ao mesmo tempo, e deque cada uma delas não pode ser obtida senão com osacrifício de outras, só se torna evidente quando selevam em conta fatores alheios a qualquerespecialidade, os quais só podem ser apreciadosmediante penoso esforço intelectual – esforço aindamais penoso porque nos obriga a considerar numaperspectiva mais ampla os objetos de quase todas asnossas aspirações e a compará-los com outros alheios

ao nosso interesse imediato e com os quais, por isso,não nos importamos.

Cada um dos numerosos objetivos que,considerados isoladamente, seria possível obter numasociedade planificada, gera entusiastas doplanejamento que esperam impingir aos dirigentes dasociedade sua ideia sobre o valor daquele objetivoparticular. E as esperanças de alguns deles seriamdecerto realizadas, visto que uma sociedadeplanificada daria sem dúvida maior estímulo a algunsobjetivos do que atualmente se faz. Seria ridículonegar que nas atuais sociedades planificadas ousemiplanificadas existem todas as boas coisas que ospovos desses países devem inteiramente aoplanejamento.

As magníficas autoestradas da Alemanha e da Itáliasão um exemplo dos mais citados – emborarepresentem um tipo de planejamento que também épossível numa sociedade liberal. É, porém,igualmente ridículo citar tais exemplos deaperfeiçoamento técnico em setores específicos comoprova da superioridade geral da planificação. Seriamais correto dizer que uma excelência técnica tãodivergente das condições gerais é prova de má

aplicação de recursos. Os que tiveram a oportunidadede observar que nas famosas autoestradas alemães otráfego é menos intenso do que em muitas estradassecundárias da Inglaterra não terão dúvidas de que,ao menos para fins de paz, sua construção erainjustificada. Se os planejadores, nesse caso,preferiram “canhões” a “manteiga”, isso é outraquestão41.

Mas, de acordo com nossos padrões, não há nissomotivo para entusiasmo. A ilusão do especialista deque numa sociedade planejada ele conseguiria maiorapoio para os objetivos de seu interesse é umfenômeno mais geral do que faz supor à primeiravista o termo “especialista”, No que concerne anossos interesses e predileções, todos somos em certamedida especialistas. Todos julgamos que nossaescala pessoal de valores não é apenas pessoal, e que,num livre debate entre pessoas razoáveis, lograríamosconvencer os outros de que o nosso ponto de vista éo mais justo. O admirador da paisagem campestreque pretende acima de tudo preservar seu aspectotradicional e apagar as marcas já deixadas pelaindústria em sua formosa superfície é não menos queo entusiasta da higiene que quer pôr abaixo todas ascasas velhas e insalubres, embora pitorescas; o

automobilista que gostaria de ver os campos cortadospor grandes estradas de rodagem; o fanático daeficiência que aspira ao máximo de especialização emecanização, assim como o idealista que, a bem dodesenvolvimento da personalidade, deseja apreservação do maior número possível de artesãosindependentes – todos eles sabem que seu objetivo sópode ser completamente alcançado mediante aplanificação, e por essa razão todos a desejam.

No entanto, a adoção do planejamento social quereclamam não deixará de trazer à tona o conflitooculto existente entre esses objetivos. O movimentoem favor de uma sociedade dirigida deve sua forçaatual sobretudo ao fato de que, embora oplanejamento, em grande parte, ainda não passe deuma aspiração, reúne todos os idealistas que têm umsó propósito fundamental, todos os homens emulheres que consagram sua vida a uma únicamissão. As esperanças que eles depositam noplanejamento não resultam, entretanto, de uma visãoampla da sociedade, mas, ao contrário, de um pontode vista muito limitado, e em geral são fruto daimportância exagerada atribuída a finalidades por elesconsideradas prioritárias. Com isto não pretendemossubestimar o grande valor pragmático dessas pessoas

numa sociedade livre como a nossa, valor que as fazobjeto de merecida admiração. Contudo, esse mesmovalor faria dos que mais ardentemente desejamplanejar a sociedade os indivíduos mais perigosos setal lhes fosse permitido.

Seriam, também, os mais intolerantes para com osplanos alheios. Entre o idealista dedicado e ofanático, muitas vezes há apenas um passo. Emborao ressentimento do especialista frustrado constitua omais poderoso estímulo à reivindicação deplanejamento central, é difícil imaginar um mundomais intolerável – e também mais irracional – do queaquele em que se permitisse aos mais eminentesespecialistas de cada campo proceder sem entraves àrealização dos seus ideais.

Tampouco pode a “coordenação” converter-senuma nova especialidade, como parecem julgaralguns planejadores. O economista é o último aatribuir-se os conhecimentos que o coordenador teriade possuir. Ele empenha-se em defender um métodoque promova tal coordenação sem a necessidade deum ditador onisciente. Mas isso implica, justamente,a preservação das restrições impessoais – e muitasvezes ininteligíveis – aos esforços do indivíduo,

restrições estas que muito irritam a todos osespecialistas.

Rodapé

37 Para uma análise mais completa destes problemas,veja-se o ensaio do professor Lionel Robbins sobre“The Inevitability of Monopoly”, em The EconomicBasis of Class Conflict, 1939. pp. 45-80.38 Final Report and Recommendations of theTemporary National Economic Committee. 77.ªLegislatura, 1.ª Sessão, Documento n.º 35 doSenado, 1941, p. 89.39 Wilcox. C. Competition and Monopoly inAmerican Industry. Monografia da ComissãoProvisória de Economia Nacional, n.º 21, 1940, p.314.40 Niebuhr, R. Moral Man and Immoral Society,1932.41 Entretanto, no momento em que corrijo estasprovas, chega a notícia de que os trabalhos deconservação das autoestradas alemãs foramsuspensos.

Capítulo 5

Planificação e Democracia

“O estadista que pretendesse ditar aosindivíduos o modo de empregar seu capital nãosomente assumiria uma sobrecarga de cuidados

desnecessários como se arrogaria uma autoridadeque não seria prudente confiar a conselho ousenado de qualquer espécie, e que jamais seria

tão perigosa como nas mãos de um homeminsensato e presunçoso a ponto de julgar-se apto

a exercê-la”. – Adam SmithA característica comum a todos os sistemas

coletivistas pode ser definida, numa expressão tidaem grande estima pelos socialistas de todas asescolas, como a organização intencional dasatividades da sociedade em função de um objetivosocial definido. Aliás, uma das principais queixasformuladas pelos críticos socialistas contra nossasociedade atual sempre foi a ausência, em talsociedade, dessa direção “consciente” visando a umafinalidade única, e o fato de seu funcionamento ser

deixado ao sabor dos caprichos e do arbítrio deindivíduos irresponsáveis.

Sob diversos aspectos, esta é uma formulaçãomuito clara da questão básica, que nos conduzdiretamente ao ponto em que a liberdade individualentra em conflito com o coletivismo. Os váriosgêneros de coletivismo – comunismo, fascismo etc. –diferem entre si quanto ao fim para o qual pretendemdirigir os esforços da sociedade.

Todos eles, porém, se distinguem do liberalismo edo individualismo por pretenderem organizar asociedade inteira e todos os seus recursos visando aessa finalidade única e por se negarem a reconheceresferas autônomas em que os objetivos individuaissão soberanos. Em suma, são totalitários naverdadeira acepção deste novo termo que adotamospara designar as manifestações inesperadas e noentanto inseparáveis do que em teoria chamamoscoletivismo.

O “objetivo social” ou o “propósito comum” parao qual se pretende organizar a sociedade costuma servagamente definido como o “bem comum”, o “bem-estar geral” ou o “interesse comum”. Não énecessário muito esforço para se perceber que esses

termos não estão suficientemente definidos paradeterminar uma linha específica de ação. O bem-estare a felicidade de milhões não podem ser aferidosnuma escala única de valores. O bem-estar de umpovo, assim como a felicidade de um homem,dependem de inúmeras coisas que lhe podem serproporcionadas numa infinita variedade decombinações. Não é possível exprimi-las de modoadequado como um objetivo único, mas apenas comouma hierarquia de objetivos, uma ampla escala emque cada necessidade de cada pessoa tem o seu lugar.A direção de todas as nossas atividades de acordocom um plano único pressupõe que para cada uma denossas necessidades se atribua uma posição numaordem de valores que deve ser bastante completapara tornar possível a escolha entre as diferentesalternativas que o planejador tem diante de si.Pressupõe, em suma, a existência de um código éticocompleto, em que todos os diferentes valoreshumanos estejam colocados em seu devido lugar.

O conceito de um código moral completo nos éestranho e é preciso um esforço de imaginação parapercebermos o que ele envolve. Não costumamospensar que códigos morais sejam mais completos oumenos completos. O fato de estarmos sempre

escolhendo entre valores diferentes, sem qualquercódigo social que prescreva de que modo devemosescolher, não nos causa surpresa nem nos leva apensar que o nosso código de moral seja incompleto.Em nossa sociedade não há ocasião nem motivo paraque as pessoas tenham ideias idênticas sobre o que épreciso fazer em cada situação.

Mas quando todos os meios a ser empregadospertencem à sociedade e devem ser usados em nomedesta, de acordo com um plano unitário, é precisoque todas as decisões referentes às medidas a seremadotadas fiquem submetidas a uma perspectiva“social”. Num mundo como esse, não tardaríamos adescobrir que nosso código moral está cheio delacunas.

Não pretendemos analisar aqui se é ou nãodesejável possuir um código moral completo como oque acabamos de descrever. Salientaremos apenasque até agora o progresso da civilização tem sidoacompanhado por uma constante limitação da esferaem que os atos individuais se acham sujeitos a regrasfixas. As normas que constituem o nosso códigomoral comum têm-se tornado cada vez menosnumerosas e de caráter mais geral. Desde o homem

primitivo, restringido por um complicado ritual queabrangia quase todas as suas atividades cotidianas,limitado por inúmeros tabus, e que mal podiaconceber uma conduta diferente da dos seuscompanheiros, a moral vem apresentando umatendência a tornar-se cada vez mais uma simpleslinha divisória a circunscrever a esfera em que oindivíduo pode agir livremente. A adoção de umcódigo comum de ética que seja abrangente a pontode determinar um plano econômico unitárioimportaria numa total inversão dessa tendência.

O essencial para nós é que tal código éticocompleto não existe. A tentativa de dirigir toda aatividade econômica de acordo com um plano únicosuscitaria inúmeras questões cuja solução somente asregras morais poderiam fornecer, mas para as quais amoral em vigor não tem resposta e, quando tem, elanão pode proporcionar um consenso geral sobre oque se deve fazer. As ideias humanas sobre essasquestões ou não estão definidas ou são conflitantesporque, na sociedade livre em que vivemos, nãotemos a oportunidade de refletir a seu respeito, emuito menos de formar opiniões comuns sobre oassunto.

Além de não possuirmos uma escala que incluatodos os valores, seria impossível a qualquer intelectoabarcar a infinita gama de necessidades diferentes dediferentes indivíduos que competem entredisponíveis, e atribuir um peso definido a cada umadelas. No que diz respeito ao nosso problema, nãotem grande importância se os objetivos de cadaindivíduo visam apenas as suas necessidades pessoaisou se incluem as de seus amigos mais próximos, oumesmo dos mais distantes – isto é, se ele é egoísta oualtruísta na acepção comum de ambas as palavras. Ofundamental é que cada pessoa só se pode ocupar deum campo limitado, só se dá conta da premência deum número limitado de necessidades. Quer os seusinteresses girem apenas em torno das própriasnecessidades físicas, quer se preocupe com o bem-estar de cada ser humano que conhece, os objetivosque lhe podem dizer respeito corresponderão semprea uma parte infinitesimal das necessidades de todosos homens.

Este é o fato fundamental em que se baseia toda afilosofia do individualismo. Ela não parte dopressuposto de que o homem seja egoísta ou deva sê-lo, como muitas vezes se afirma. Parte apenas dofato incontestável de que os limites dos nossos

poderes de imaginação nos impedem de incluir emnossa escala de valores mais que uma parcela dasnecessidades da sociedade inteira; e como, emsentido estrito, tal escala só pode existir na mente decada um, segue-se que só existem escalas parciais devalores, as quais são inevitavelmente distintas entre sie mesmo conflitantes. Daí concluem osindividualistas que se deve permitir ao indivíduo,dentro de certos limites, seguir seus próprios valorese preferências em vez dos de outrem; e que, nessecontexto, o sistema de objetivos do indivíduo deveser soberano, não estando sujeito aos ditames alheios.É esse reconhecimento do indivíduo como juizsupremo dos próprios objetivos, é a convicção de quesuas ideias deveriam governar-lhe tanto quantopossível a conduta que constitui a essência da visãoindividualista.

Esse ponto de vista não exclui, é claro, a existênciade fins sociais ou, antes, a possibilidade de umacoincidência de objetivos individuais que tornaoportuna a união de indivíduos na persecução destes.Limita, porém, essa ação comum aos casos em queas opiniões individuais coincidem. Os chamados “finssociais” são, pois, simplesmente, objetivos idênticosde muitos indivíduos – ou objetivos para cuja

realização os indivíduos estão dispostos a contribuirem troca da ajuda que recebem no tocante àsatisfação dos seus próprios desejos. A ação comumlimita-se, assim, aos campos em que as pessoasconcordam acerca de objetivos comuns. Com muitafrequência, tais objetivos comuns não constituirão osobjetivos supremos do indivíduo, mas apenas meiosque diferentes pessoas podem utilizar para alcançardiferentes propósitos. Com efeito, é mais provávelque as pessoas concordem quanto a uma açãocomum se o fim visado por todos não constitui paraeles um objetivo supremo, e sim um meio capaz deservir a uma grande variedade de propósitos.

Quando os indivíduos se aliam num esforçoconjunto para realizar objetivos que possuem emcomum, são conferidos às organizações por elesformadas para este fim, como por exemplo o estado,um sistema próprio de objetivos e seus própriosmeios de ação. Entretanto, qualquer organizaçãoassim constituída continua sendo uma “pessoa” entreas demais – no caso do estado, uma “pessoa” muitomais poderosa que qualquer outra, é claro, mas quemesmo assim tem a sua esfera separada e limitada,dentro da qual seus objetivos serão supremos. Oslimites dessa esfera são determinados pelo grau de

consenso dos indivíduos acerca de objetivosespecíficos; e a probabilidade de que eles concordemsobre determinada linha de ação diminui à proporçãoque se amplia o âmbito da mesma. Os cidadãos serãopraticamente unânimes em admitir o exercício decertas funções do estado: acerca de outras, poderáexistir o acordo de uma maioria considerável: e assimpor diante, até alcançarmos esferas em que, emboracada indivíduo possa desejar que o estado procedadesta ou daquela maneira, as opiniões sobre o que ogoverno deve fazer serão quase tão numerosasquanto as diferentes pessoas.

Só podemos contar com um acordo voluntáriopara orientar a ação do estado na medida em que estese limite às esferas onde tal acordo existe. Mas não ésó quando o estado assume o controle direto emcampos onde esse acordo não existe que ele acabapor suprimir a liberdade individual. Infelizmente nãoé possível estender de modo contínuo a esfera daação comum sem reduzir ao mesmo tempo aliberdade do indivíduo em sua própria esfera. Quandoo setor público, em que o estado controla todos osmeios, excede certa parte do todo, os efeitos de suasações dominam o sistema inteiro. Embora o estado sócontrole diretamente o uso de uma grande parte dos

recursos disponíveis, os efeitos de suas decisõessobre a parte restante do sistema econômico setornam tão acentuados que, de forma indireta, elepassa a controlar quase tudo. Quando as autoridadescentrais e locais controlam diretamente o uso de maisde metade da renda nacional (como sucedia, porexemplo, na Alemanha já em 1928, onde asestimativas oficiais computavam essa proporção em53 por cento), acabam controlando indiretamentequase toda a vida econômica da nação. Poucos serão,assim, os objetivos individuais cuja realização nãodependa da ação estatal; quase todos eles serãoabrangidos pela “escala social de valores” – queorienta a ação do estado.

Não é difícil perceber o que acontece quando ademocracia dá início a uma linha de planejamentocuja execução exige um consenso muito maior do quena realidade existe. É possível que o povo tenhaconcordado com a adoção de um sistema deeconomia planificada por ter-se deixado persuadir deque tal sistema contribuirá para criar uma grandeprosperidade. Nos debates que conduziram à decisão,o objetivo do planejamento foi talvez designado poralgum termo como “bem-estar comum”, termo queapenas oculta a ausência de um verdadeiro acordo

sobre tal objetivo. Na verdade, só haverá acordoquanto ao mecanismo a ser empregado. Mas ocorreque esse mecanismo só pode ser usado para arealização de um fim comum; e a questão da metaprecisa para a qual se deve canalizar toda a atividadesurgirá tão logo o poder executivo tenha detransformar a exigência de um plano único num planoespecífico. Verificar-se-á, então, que há consensosobre a conveniência de planejamento, mas não sobreos fins que o plano deve atender. Essa situaçãoassemelha-se em parte ao que ocorre quando váriaspessoas decidem viajar em grupo sem fixar o destinoda viagem: poderá acontecer que tenham deempreender uma jornada que deixe a maioriainsatisfeita. Esse planejamento cria uma situação naqual é necessário para nós concordar com umnúmero muito maior de questões do que estamoshabituados: além disso, num sistema planejado nãopodemos limitar a ação coletiva às tarefas em tornodas quais é possível haver acordo, pois é precisohaver consenso sobre todas as questões para que sepossa seguir uma linha de ação, seja ela qual for –esses são os aspectos que mais tendem a determinaro caráter de um sistema planejado.

Pode ocorrer que a vontade unânime do povo exija

que o parlamento apresente um plano econômicoabrangente, mas que nem o povo nem seusrepresentantes cheguem a um acordo a respeito dequalquer plano específico. A incapacidade dasassembleias democráticas de pôr em prática o queparece um evidente mandato do povo ocasionaráinevitável descontentamento com as instituiçõesdemocráticas. Os parlamentos serão consideradoslocais de debates inúteis, incapazes ou incompetentespara realizar as tarefas a eles atribuídas. Cresce aconvicção de que, para se realizar um planejamentoeficaz, a gestão econômica1 deve ser afastada da áreapolítica e confiada a especialistas – funcionáriospermanentes ou organismos autônomos eindependentes.

Esse problema é bem conhecido pelos socialistas.Há quase meio século, os Webb lamentavam a“crescente incapacidade da Câmara dos Comuns paracumprir suas funções”42. Mais recentemente, oprofessor Laski foi além:

É sabido que o atual mecanismo parlamentar ébastante inadequado a aprovação rápida de umvolumoso corpo de leis complexas. O governo, naverdade, basicamente admitiu isto ao implementar

suas medidas econômicas e tarifárias, não por meiode debate pormenorizado na câmara dos comuns,mas por um sistema generalizado de delegação dafunção legislativa. Um governo trabalhista, presumoeu, ampliaria esse precedente, limitando a câmara doscomuns às duas funções que ela de fato é capaz dedesempenhar: a exposição das queixas e o debate dosprincípios gerais subjacentes às suas medidas. Suasleis assumiriam a feição de fórmulas geraisconferindo amplos poderes aos órgãosgovernamentais competentes; e esses poderes seriamexercidos por decretos reais que, se assim sedesejasse, poderiam ser derrubados na câmara pormeio de um voto de desconfiança. A necessidade e ovalor da delegação da função legislativa foram hápouco reafirmados com vigor pela ComissãoDonoughmore, e sua aplicação mais ampla éinevitável para que o processo de socialização nãoseja frustrado por métodos de obstrução sancionadospelas normas parlamentares em vigor.

A fim de tornar bem claro que um governosocialista não deve deixar-se tolher em demasia pelosprocessos democráticos, no fim do mesmo artigo oprofessor Laski perguntava se “num período detransição para o socialismo, um governo trabalhista

pode arriscar-se a ver seus programas subvertidoscomo resultado das próximas eleições gerais”. Éformulada a pergunta, deixou-a significativamentesem resposta43.

É importante perceber com clareza as causas dareconhecida ineficácia dos parlamentos quando setrata de administrar em detalhe os assuntoseconômicos de um país. Essa ineficácia, no entanto,não deve ser atribuída aos representantes do povo,nem às instituições parlamentares em si, e sim àscontradições implícitas na tarefa que lhes é confiada.Não lhes é solicitado que tomem providências acercados casos em que pode haver acordo, mas quecheguem a um acordo a respeito de tudo – isto é, dagestão total dos recursos do país.

Entretanto, o sistema de decisão por maioria não éapropriado a essa tarefa. É possível recorrer àsmaiorias quando se escolhe entre alternativaslimitadas: mas acreditar que possa haver opiniãomajoritária sobre todas as coisas não é uma atituderacional. Quando o número de linhas de ação éincalculável, é infundado esperar a informação demaioria em torno de qualquer uma delas. Emboracada membro da assembleia legislativa possa preferir

um determinado plano para a gestão das atividadeseconômicas à ausência de qualquer plano, podeacontecer que nenhum desses projetos pareçaaceitável à maioria quando contraposto à inexistênciade planejamento.

Tampouco se pode chegar a um plano coerentedividindo-o em partes e submetendo à votação cadauma delas. Seria absurdo uma assembleiademocrática votar e emendar um plano econômicoabrangente cláusula por cláusula, como se faz comum projeto de lei ordinário. Todo plano econômico,para merecer esse nome, deve basear-se numaconcepção unitária. Ainda que, passo por passo, umparlamento chegasse a concordar sobre um esquemaqualquer, este acabaria infalivelmente por nãosatisfazer a ninguém. Um todo complexo em que aspartes devem ser ajustadas umas às outras com amaior precisão não pode ser obtido medianteacomodação de ideias conflitantes. Traçar dessamaneira um plano econômico é ainda menos possíveldo que, por exemplo, planejar com êxito umacampanha militar por processos democráticos. Comoacontece na estratégia, seria inevitável delegar atarefa aos especialistas.

Todavia, a diferença reside em que, enquanto aogeneral responsável por uma campanha é confiadoum objetivo único a que, enquanto durar essacampanha, todos os meios sob seu controle deverãoser exclusivamente consagrados, ao planejadoreconômico não se pode dar uma meta única, nem épossível impor-lhe igual limitação dos meios a utilizar.O general não se vê obrigado a decidir entrediferentes objetivos possíveis. Para ele só existe umaúnica meta suprema. Mas os objetivos de um planoeconômico, ou de uma parte deste, não podem serdefinidos independentemente do plano em si. Aessência do problema econômico está em que aelaboração de um plano envolve a escolha entrefinalidades conflitantes ou que competem entre si –diferentes necessidades de pessoas diversas. Mas sóaqueles que conhecem todos os fatos saberão quaissão os objetivos que realmente conflitam, e quais osque terão de ser sacrificados em benefício de outros– em suma, entre que alternativas é preciso escolher.E apenas eles, os especialistas, estão em condições dedecidir qual dos diferentes objetivos terá de serprioritário. É inevitável, assim, que eles imponham asua escala de preferência à comunidade para a qualplanejam.

Nem sempre tal fato é percebido com clareza, eem geral procura-se justificar a delegação de poderespelo caráter técnico da tarefa. Mas isso não significaque se deleguem poderes apenas nos casos queenvolvem detalhes técnicos, ou mesmo que adificuldade decorra da incapacidade de osparlamentos compreenderem tais detalhes44.

As alterações da estrutura do Direito Civil não sãomenos técnicas nem em todas as suas implicações;contudo, ninguém sugeriu até hoje que a legislaçãonessa área seja delegada a um conjunto deespecialistas. O fato é que nessas esferas a legislaçãonão vai além de normas gerais em torno das quais sepode chegar a um verdadeiro acordo da maioria, aopasso que na gestão das atividades econômicas osinteresses a serem conciliados são tão divergentes quehá pouquíssima probabilidade de se obter umverdadeiro acordo em qualquer assembleiademocrática.

Deve-se entender, no entanto, que não é adelegação de poderes em si que é tão condenável.Combatê-la equivale a combater um sintoma e não acausa, e como ela talvez seja resultado de outrascausas, isso enfraquece toda a argumentação. Desde

que se delegue apenas o poder de estabelecer normasgerais, é bastante justificável que tais normas sejamformuladas pela autoridade local e não pelaautoridade central. O aspecto condenável no caso éque se recorre com frequência à delegação porque oassunto não pode ser regulado por meio de normasgerais, mas apenas pelo poder discricionário nadecisão de casos particulares. Delegação significa aíconferir a uma autoridade o poder de tomar,legalmente, decisões que, para todos os efeitos, sãoarbitrárias (o que na linguagem corrente seria “julgaro caso segundo seus próprios méritos”).

A delegação de determinadas tarefas técnicas aorganismos autônomos, embora fato frequente, nãoé, contudo, senão o primeiro passo no processo peloqual uma democracia, ao adotar o planejamento,progressivamente abre mão de seus poderes. Orecurso à delegação não pode, na verdade, afastar ascausas que tornam todos os defensores doplanejamento abrangente tão intolerantes com aimpotência da democracia. A delegação dedeterminados poderes a organismos autônomos criaum novo obstáculo à realização de um plano único ecoordenado. Ainda que, mediante esse recurso, umademocracia conseguisse planejar cada setor da

atividade econômica, teria de enfrentar também oproblema da integração desses planos distintos numtodo coerente.

A soma de muitos planos distintos não constitui umplano global – e, como os adeptos do planejamentodeveriam ser os primeiros a reconhecer, isso pode serpior do que a ausência de qualquer plano. Mas aassembleia legislativa democrática hesitará muito emabrir mão das decisões sobre questões realmenteessenciais, tornando assim impossível a qualqueroutro organismo ou indivíduo a elaboração do planoglobal. No entanto, a concordância quanto ànecessidade do planejamento, juntamente com aincapacidade das assembleias democráticas deapresentarem um plano, suscitará pressões cada vezmaiores no sentido de que se conceda ao governo oua algum indivíduo poderes para agir sob sua própriaresponsabilidade. Aumenta cada vez mais aconvicção de que, se quisermos resultados, devemoslibertar as autoridades responsáveis dos grilhõesrepresentados pelas normas democráticas.

O clamor por um ditador econômico é um estágiocaracterístico da tendência ao planejamento, jáfamiliar neste país. Há vários anos um dos mais

agudos observadores estrangeiros da Inglaterra, ElieHalévy, observou que “se fizéssemos uma montagemfotográfica reunindo Lord Eustace Percy, Sir OswaldMosley e Sir Stafford Cripps, creio quedescobriríamos neles um traço comum – estariamtodos dizendo: “vivemos no caos econômico e nãoconseguiremos superá-lo senão por meio de algumaforma de liderança ditatorial”45. Muito temaumentado, de então para cá, o número de homenspúblicos influentes cuja inclusão não alterariasensivelmente as características dessa “montagemfotográfica”.

Na Alemanha, mesmo antes de Hitler subir aopoder, o avanço nesse sentido já havia sido bemmaior. É importante recordar que, muito antes de1933, a Alemanha alcançara um estágio em que nãolhe restava senão ser governada de forma ditatorial.Ninguém duvidava então de que a democracia entraraem colapso, ao menos por certo tempo, e de quedemocratas sinceros como Brüning eram tãoincapazes de governar democraticamente como oeram Schleicher ou von Papen. Hitler não precisoudestruir a democracia; limitou-se a tirar proveito dasua decadência e no momento crítico conseguiu oapoio de muitos que, embora o detestassem,

consideravam-no o único homem bastante forte parapôr as coisas em marcha.

Os defensores do planejamento tentam em geralfazer-nos aceitar essa evolução dos acontecimentosalegando que, enquanto a democracia mantiver ocontrole supremo, os seus princípios essenciais nãoserão afetados. Assim, Karl Mannheim escreve:

O único [sic] aspecto em que uma sociedadeplanejada difere da sociedade do século XIX consisteno fato de, naquela, um número cada vez maior deesferas da vida social – e por fim todas elas – ficasujeito ao controle do estado. Mas se alguns dessescontroles podem ser restringidos pela soberaniaparlamentar, também é possível fazer com quemuitos o sejam... Num estado democrático, asoberania pode ser infinitamente fortalecida porpoderes plenos sem que com isso se renuncie aocontrole democrático46.

Esta ideia não leva em conta uma distinção de vitalimportância. O parlamento pode, é claro, controlar aexecução de tarefas às quais possa imprimir umaorientação definida, sobre cujo objetivo tenhaconcordado antecipadamente e em que se limite adelegar a execução dos detalhes. Mas a situação é de

todo diversa quando os poderes são delegados porquenão existe verdadeiro acordo sobre as finalidades;quando o órgão encarregado do planejamento tem deescolher entre finalidades de cujos pontos conflitanteso parlamento nem sequer está informado; e quando aúnica solução é apresentar-lhe um plano que tem deser aceito ou rejeitado como um todo. É possível quehaja, e provavelmente haverá, críticas; mas, comonão haverá maioria que possa aprovar um planoalternativo, e como as partes criticadas podem quasesempre ser apresentadas como partes essenciais doconjunto, essas críticas serão bastante ineficazes. Odebate parlamentar pode ser preservado comoválvula de segurança útil e mais ainda como meioapropriado para a divulgação das respostas oficiais àsqueixas formuladas. Pode mesmo impedir algunsabusos flagrantes e insistir com êxito para quedeterminadas falhas sejam sanadas. No entanto, oparlamento não pode gerir. Na melhor das hipóteses,será reduzido a escolher as pessoas que devem serinvestidas de poderes quase absolutos. Todo osistema tenderá àquela ditadura plebiscitária em que ochefe do governo tem sua posição periodicamenteconfirmada pelo voto popular, mas em que ele detémtodos os poderes para garantir que a eleição produza

o resultado desejado.A democracia exige que as possibilidades de

controle consciente se restrinjam aos campos em queexiste verdadeiro acordo, e que, em certos campos,se confie no acaso: este é o seu preço. Mas numasociedade cujo funcionamento está subordinado aoplanejamento central não se pode fazer com que essecontrole dependa da possibilidade de um acordo demaioria; muitas vezes será necessário impor ao povoa vontade de uma pequena minoria, porque estaconstitui o grupo mais numeroso capaz de chegar aum acordo sobre a questão em debate. O governodemocrático funcionou de modo satisfatório noscasos em que, por força de uma convicçãoamplamente difundida, as funções governamentais serestringiam aos campos em que se podia alcançar umacordo de maioria pelo livre debate – e só funcionouenquanto isso foi possível. O grande mérito dadoutrina liberal é ter reduzido a gama de questões quedependem de consenso a proporções adequadas auma sociedade de homens livres.

Muitos dizem, no atual momento, que ademocracia não tolerará o “capitalismo”. Se naacepção dessas pessoas “capitalismo” significa um

sistema de concorrência baseado no direito de disporlivremente da propriedade privada, é muito maisimportante compreender que só no âmbito de talsistema a democracia se torna possível. No momentoem que for dominada por uma doutrina coletivista, ademocracia destruirá a si mesma, inevitavelmente.

Não temos, contudo, a intenção de converter ademocracia em fetiche. Talvez seja verdade quenossa geração fale e pense demais em democracia emuito pouco nos valores a que ela serve. Não sepode dizer da democracia o que Lord Acton, comrazão, disse da liberdade: que ela não é “um meiopara a consecução de um objetivo político superior.Ela própria é o supremo objetivo político. Ela não sefaz necessária em virtude de uma administraçãopública; visa, antes, a assegurar a busca dos maisaltos objetivos da sociedade civil e da vida privada”.A democracia é, em essência, um meio, uminstrumento utilitário para salvaguardar a paz internae a liberdade individual. E, como tal, não é, de modoalgum, perfeita ou infalível.

Tampouco devemos esquecer que muitas vezeshouve mais liberdade cultural e espiritual sob osregimes autocráticos do que em certas democracias –

e é concebível que, sob o governo de uma maioriamuito homogênea e ortodoxa, o regime democráticopossa ser tão opressor quanto a pior das ditaduras.Não queremos dizer, contudo, que a ditadura levainevitavelmente à abolição da liberdade, e sim que aplanificação conduz à ditadura porque esta é oinstrumento mais eficaz de coerção e de imposição deideais, sendo, pois, essencial para que o planejamentoem larga escala se torne possível. O conflito entreplanificação e democracia decorre, simplesmente, dofato de que esta constitui um obstáculo à supressãoda liberdade exigida pelo dirigismo econômico. Masainda que a democracia deixe de ser uma garantia daliberdade individual, mesmo assim ela pode subsistirde algum modo num regime totalitário. Guardandoembora a forma democrática, uma verdadeira“ditadura do proletariado” que dirigisse de maneiracentralizada o sistema econômico provavelmentedestruiria a liberdade pessoal de modo tão definitivoquanto qualquer autocracia.

Hoje em dia, costuma-se concentrar a atenção nademocracia, julgando-a o principal valor que estásendo ameaçado. Isso, porém, não deixa de serperigoso. De fato, essa ênfase desmedida no valor dademocracia é responsável pela crença ilusória e

infundada de que, enquanto a vontade da maioria fora fonte suprema do poder, este não poderá serarbitrário. A falsa segurança que tal crença infundeem muita gente contribui sobremodo para a geral faltade consciência dos perigos que nos ameaçam.

É injustificado supor que, enquanto o poder forconferido pelo processo democrático, ele não poderáser arbitrário. Essa afirmação pressupõe uma falsarelação de causa e efeito: não é a fonte do poder, masa limitação do poder, que impede que este sejaarbitrário. O controle democrático pode impedir queo poder se torne arbitrário, mas a sua mera existêncianão assegura isso. Se uma democracia decideempreender um programa que impliquenecessariamente o uso de um poder não pautado pornormas fixas, este se tornará um poder arbitrário.

Rodapé

42 Webb, Sidney & Bealrice, Industrial Democracy,1897. p. 800, nota de rodapé.43 Laski, H. J. “Labour and the Constitution”, TheNew Statesman and Nation, n.º 81 (nova série), 10

set. 1932, p. 277. Em sua obra Democracy in Crisis,1933, especialmente p. 87, em que o professor Laskidesenvolveu mais tarde essas ideias, encontra-seexpressa de forma ainda mais clara a sua resoluçãode não se permitir que a democracia parlamentarconstitua obstáculo à construção do socialismo: nãosó um governo socialista “assumiria vastos poderes elegislaria mediante decretos e determinações..suspendendo as fórmulas clássicas e normais deoposição”, mas a “continuação do regimeparlamentar dependeria da garantia dada pelo PartidoConservador (ao governo trabalhista) de que a obrade transformação (socialista) não seria desfeita emcaso de derrota nas urnas”. Como o professorLaskiinvoca a autoridade da Comissão Donoughmore, valea pena recordar que ele fez parte dessa comissão eprovavelmente é um dos autores do relatório.44 É esclarecedor fazer aqui uma breve referência aodocumento oficial que, há certo tempo, vem trazendoa discussão desses problemas. Treze anos atrás, istoé, antes de a Inglaterra decidir abandonar emdefinitivo o liberalismo econômico, o processo dedelegação dos poderes legislativos já tinha chegado aum ponto tal que se julgou necessário nomear umacomissão para investigar “as salvaguardas desejáveis

ou necessárias à garantia do estado de Direito”. Noseu relatório (Report of the Lord Cnancellor’sCommittee in Ministers Powers. Cmd. 4060, 1932),a Comissão Donoughmore mostrava que já naqueladata o parlamento recorrera à “delegaçãoindiscriminada e em larga escala”, mas considerava-aum fato inevitável e bastante inócuo (isso, antes determos realmente vislumbrado o abismo totalitário). Épossível que a delegação em si não constitua umperigo para a liberdade. O aspecto interessante é omotivo pelo qual a delegação se tornara necessáriaem tão larga escala. A primeira entre as causasenumeradas no relatório é o fato de que “hoje em diao parlamento aprova tantas leis” e “grande parte dosdetalhes são de natureza tão técnica que se tornamimpróprios à discussão parlamentar”. Mas se issofosse tudo, não haveria razão para que os detalhesnão fossem discutidos antes da aprovação de uma leipelo parlamento, e não depois. O que em muitoscasos constitui provavelmente uma razão muito maisimportante é que “se o parlamento não se dispusessea delegar o poder de legislar, seria incapaz de aprovara espécie e a quantidade de leis que a opinião públicarequer”. Isso transparece inocentemente na simplesfrase: “muitas dessas leis atingem de forma tão

profunda a vida das pessoas que a flexibilidade setorna essencial”. Que significa tal prática senão aconcessão de poderes arbitrários – poderes nãolimitados por qualquer princípio fixo, e que naopinião do parlamento não podem ser restringidos pornormas definidas e claras?45 “Socialism and the Problems of DemocraticParliamentarism”, International Affairs, v. XIII, p.501.46 Mannheim, K. Man and Societyin an Age ofReconstruction, 1940, p. 340.

Capítulo 6

A Planificação e o Estado deDireito

“Estudos recentes sobre que o princípio básicoa Sociologia do Direito confirmam, mais umavez, que o princípio básico do Direito formal –pelo qual cada caso deve ser julgado de acordocom preceitos gerais racionais que admitam tãopoucas exceçõesquanto possível e se baseiem emassunções lógicas – só se aplica a fase liberal do

capitalismo, em que imperava o regime daconcorrência”. – Karl Mannheim

A característica que mais claramente distingue umpaís livre de um país submetido a um governoarbitrário é a observância, no primeiro, dos grandesprincípios conhecidos como o estado de Direito.Deixando de lado os termos técnicos, isso significaque todas as ações do governo são regidas pornormas previamente estabelecidas e divulgadas – asquais tornam possível prever com razoável grau de

certeza de que modo a autoridade usará seus poderescoercitivos em dadas circunstâncias, permitindo acada um planejar suas atividades individuais combase nesse conhecimento47. Embora esse ideal nuncavenha a ser de todo realizado, uma vez que oslegisladores e os homens incumbidos de aplicar a leisão criaturas falíveis, fica, porém, bem clara aquestão essencial, ou seja, a necessidade de reduzirtanto quanto possível o arbítrio concedido aos órgãosexecutivos que exercem o poder de coerção. Se todalei restringe até certo ponto a liberdade individual,alterando os meios que cada um pode empregar nabusca dos seus objetivos, sob o estado de Direitoimpede-se que o governo anule os esforçosindividuais mediante ação ad hoc.

Segundo as regras do jogo conhecidas, o indivíduoé livre para perseguir suas metas e desejos pessoais,tendo a certeza de que os poderes do governo nãoserão empregados no propósito deliberado de fazermalograr os seus esforços. A distinção queestabelecemos entre a criação de uma estruturapermanente de leis – no âmbito da qual a atividadeprodutiva é orientada por decisões individuais – e agestão das atividades econômicas por uma autoridadecentral caracteriza-se assim, claramente, como um

caso particular da distinção mais geral entre o estadode Direito e o governo arbitrário. Sob o primeiro, ogoverno limita-se a fixar normas determinando ascondições em que podem ser usados os recursosdisponíveis, deixando aos indivíduos a decisãorelativa aos fins para os quais eles serão aplicados.

Sob o segundo, o governo dirige o emprego dosmeios de produção para finalidades específicas. Asnormas do primeiro tipo podem ser estabelecidas deantemão, como normas formais que não visam àsnecessidades e desejos de pessoas determinadas.Destinam-se apenas a servir de meio a ser empregadopelos indivíduos na consecução de seus váriosobjetivos. Além disso, aplicam-se ou deveriamaplicar-se a períodos bastante longos, de modo que setorne impossível saber se auxiliarão a certas pessoasmais do que a outras. Poderiam ser definidas comouma espécie de instrumento de produção que permiteàs pessoas prever o comportamento daqueles comque têm de colaborar, e não como meios que visam aatender necessidades específicas.

O planejamento econômico do tipo coletivistaimplica, necessariamente, o oposto do que acabamosde dizer. A autoridade planejadora não pode limitar-se

a criar oportunidades a serem utilizadas por pessoasdesconhecidas como lhes aprouver. Não podesujeitar-se de antemão a regras gerais e formais queimpeçam a arbitrariedade. Ela deve prover asnecessidades reais das pessoas na medida em queforem surgindo, e depois determinar quais delas sãoprioritárias. É obrigada a tomar constantes decisõesque não podem basear-se apenas em princípiosformais e, ao tomá-las, deve estabelecer distinções demérito entre as necessidades das diferentes pessoas.Quando o governo tem de resolver quantos porcos énecessário criar, quantos ônibus terão de ser postosem circulação, quais as minas de carvão a explorar oua que preço serão vendidos os sapatos, essas decisõesnão podem ser deduzidas de princípios formais nemestabelecidas de antemão para longos períodos.Dependem inevitavelmente das circunstânciasocasionais, e ao tomar tais decisões será semprenecessário pesar os interesses de várias pessoas egrupos. No final, a opinião de alguém determinaráquais os interesses preponderantes; e essa opiniãopassará a integrar a legislação do país, impondo aopovo uma nova categoria social.

A distinção que acabamos de fazer entre Direitoformal, ou justiça, e normas substantivas, é muito

importante e ao mesmo tempo uma das mais difíceisde estabelecer com exatidão na prática. No entanto, oprincípio em que se baseia é bastante simples. Adistinção existente entre essas duas espécies denormas é a mesma que haveria entre estabelecer umregulamento de trânsito e prescrever às pessoasaonde devem ir; ou entre mandar instalar placas detrânsito e ordenar às pessoas que tomem esta ouaquela estrada. As normas formais indicamantecipadamente que linhas de ação o estado deveráadotar em certas situações, definidas em termosgerais, sem referência a tempo e lugar nem aindivíduos em particular. Referem-se a situaçõestípicas em que qualquer um pode se encontrar e emque a existência de tais regras será útil para umagrande variedade de objetivos individuais. Oconhecimento de que em tais situações o estado agiráde um modo definido ou exigirá que as pessoasprocedam de determinada maneira é oferecido aosindivíduos para permitir-lhes traçar seus própriosplanos. As normas formais são, pois, simplesmenteinstrumentais no sentido de que poderão ser úteis apessoas ainda desconhecidas, para as finalidades queessas pessoas resolvam dar-lhes e em circunstânciasque não podem ser previstas em detalhe. Com efeito,

o critério mais importante das normas formais nosentido que aqui lhes atribuímos é não conhecermosseu efeito concreto, não sabermos a que objetivosespecíficos atenderão, a que pessoas específicasservirão – e também o fato de lhes ser dada apenas aforma mais apropriada, de um modo geral, abeneficiar todas as pessoas a quem elas dizemrespeito. Não implicam uma escolha entredeterminados objetivos ou pessoas, pois nãopodemos saber de antemão por quem e de que modoserão usadas.

Nos nossos tempos, dominados pela obsessão decontrolar conscientemente todas as coisas, podeparecer paradoxal que consideremos uma virtude ofato de, em dado sistema, conhecermos menosacerca do efeito particular das medidas tomadas peloestado do que seria o caso na maioria dos outrossistemas, e que um método de controle social sejaconsiderado superior justamente por desconhecermosseus resultados precisos. Entretanto, essaconsideração é o fundamento lógico do grandeprincípio liberal do estado de Direito. E o aparenteparadoxo logo se desfaz quando levamos o raciocínioum pouco adiante.

Esse raciocínio tem dois aspectos: o primeiro éeconômico e cabe-nos aqui apenas apresentá-lo empoucas palavras. O estado deve limitar-se aestabelecer normas aplicáveis a situações geraisdeixando os indivíduos livres em tudo que dependedas circunstâncias de tempo e lugar, porque só osindivíduos poderão conhecer plenamente ascircunstâncias relativas a cada caso e a elas adaptarsuas ações. Para que o indivíduo possa empregarcom eficácia seus conhecimentos na elaboração deplanos, deve estar em condições de prever as açõesdo estado que podem afetar esses planos. Mas, paraque tais ações sejam previsíveis, devem serdeterminadas por normas estabelecidasindependentemente de circunstâncias concretas quenão podem ser previstas nem levadas em conta deantemão – e os efeitos específicos dessas ações serãoimprevisíveis. Por outro lado, se o estado dirigisse asações individuais visando a atingir objetivosespecíficos, teria de agir com base em todas ascircunstâncias do momento, e portanto suas açõesseriam imprevisíveis. Daí o conhecido fato de que,quanto mais o estado ‘’planeja”, mais difícil se tornapara o indivíduo traçar seus próprios planos.

O segundo aspecto do raciocínio, de ordem moral

ou política, interessa ainda mais diretamente ao pontoem questão. Para que o estado possa antever comexatidão os efeitos das suas decisões, não poderádeixar liberdade de escolha aos indivíduos por elasafetados. Sempre que ele estiver em condições deprever o efeito exato de linhas de ação alternativassobre dadas pessoas, será também ele que escolheráos diferentes objetivos a alcançar. Se quisermos criarnovas oportunidades que estejam ao alcance detodos, oportunidades estas que as pessoas possamutilizar da forma que entenderem, os resultadosexatos não poderão ser previstos. As normas gerais,as verdadeiras leis, em contraposição àsdeterminações específicas, devem portanto serconfiguradas de modo a atuar em circunstâncias quenão podem ser previstas em detalhe, não sendo assimpossível conhecer de antemão o seu efeito sobrepessoas ou objetivos determinados. Só neste sentidoo legislador será imparcial. Ser imparcial significa nãoconhecer a resposta a certas questões – às questõesque costumamos decidir tirando a sorte. Num mundoem que tudo fosse previsto com exatidão, o estadodificilmente poderia agir e ao mesmo tempo serimparcial.

Mas sempre que são conhecidos os efeitos precisos

da política governamental sobre determinadosindivíduos, sempre que o governo visa diretamente adeterminados resultados, ele não pode deixar deconhecê-los e portanto não pode ser imparcial. Deve,assim, favorecer uma das partes, impor suaspreferências ao indivíduo e, em vez de auxiliá-lo naconsecução das suas próprias finalidades, escolheressas finalidades em seu lugar. Quando os resultadosparticulares são previstos na ocasião em que se fazuma lei, esta perde o caráter de simples instrumento aser empregado pelo povo e converte-se numinstrumento usado pelo legislador para controlar opovo. O estado deixa de ser peça de um mecanismoutilitário destinado a auxiliar as pessoas adesenvolverem sua personalidade individual paratornar-se uma instituição “moral” – “moral” não emcontraposição a imoral, mas no sentido de umainstituição que impõe aos que a ela se achamsubordinados suas ideias sobre todas as questõesmorais, quer essas ideias sejam morais, queraltamente imorais. Nesse sentido, o estado nazista ouqualquer outro estado coletivista é “moral”, ao passoque o estado liberal não o é.

Talvez se alegue que tudo isso não suscitaproblemas sérios, porque nas questões cuja decisão

coubesse ao planejador econômico não lhe serianecessário deixar-se guiar pelos seus preconceitospessoais, nem deveria fazê-lo: poderia basear-se naideia geral sobre o que é justo e razoável. Esteargumento costuma ser defendido por aqueles quetêm experiência de planejamento em determinadosetor da economia e que acreditam não haverdificuldades insuperáveis para se chegar a umadecisão que todas as pessoas diretamente interessadaspossam aceitar como justa. O motivo por que talexperiência nada prova está, é claro, na seleção dos“interesses” envolvidos quando o planejamento élimitado a determinado setor econômico. As pessoasinteressadas de perto numa questão não sãonecessariamente os melhores juízes dos interesses dasociedade como um todo. Consideremos apenas ocaso mais característico: quando, num setorindustrial, capitalistas e trabalhadores concordamnuma política de restrição, explorando, assim, osconsumidores, não há em geral dificuldade na divisãodos lucros de forma proporcional aos ganhosanteriores ou de acordo com algum princípiosemelhante. O prejuízo, porém, partilhado pormilhares ou milhões de consumidores, costuma sersimplesmente menosprezado, ou não é levado na

devida consideração. Se quisermos pôr à prova autilidade do princípio de “equidade” ao decidir asquestões decorrentes do planejamento econômico,devemos aplicá-lo a algum caso em que ganhos eprejuízos sejam identificados com igual clareza. Emtais casos, logo se percebe que nenhum princípiogeral, como o da equidade, pode ser satisfatório.Quando temos de escolher entre salários maiselevados para enfermeiras ou médicos e umaampliação dos serviços prestados aos doentes, entremais leite para as crianças e melhor remuneraçãopara os trabalhadores agrícolas, ou entre empregopara os desempregados e melhores salários para osque já têm trabalho, a solução exige nada menos queum sistema completo de valores em que cadanecessidade de cada pessoa ou grupo tenha umaposição definida.

Na verdade, à medida que o planejamento se tornacada vez mais amplo, faz-se necessário abrandar namesma proporção as disposições legais, mediantereferência ao que é “justo” ou “razoável”: istosignifica que é preciso cada vez mais deixar a decisãodo caso concreto ao poder discricionário do juiz ouda autoridade competente. Poder-se-ia escrever umahistória do declínio do estado de Direito, do

desaparecimento do Rechtsstaat, com base naintrodução progressiva dessas fórmulas vagas nalegislação e na jurisdição, e na crescentearbitrariedade, mutabilidade e imprecisão do Direito eda judicatura (de onde o desrespeito que lhesadvém), os quais em tais circunstâncias não podemdeixar de converter-se num instrumento político. Apropósito, é importante salientar mais uma vez que odeclínio do estado de Direito vinha se processando demodo acentuado na Alemanha algum tempo antes dasubida de Hitler ao poder, e que uma políticagovernamental bastante próxima do planejamentototalitário já realizara boa parte da tarefa completadaem seguida pelos nazistas.

Não há dúvida de que a planificação envolvenecessariamente uma discriminação intencional entreas necessidades particulares de diferentes pessoas, epermite que um indivíduo realize aquilo que outrodeve ser impedido de realizar. O órgão planejador éobrigado a estabelecer, mediante norma legal, o nívelde renda dos indivíduos, o que cada um poderápossuir e de que forma deverá agir. Isto significa narealidade um retrocesso à supremacia do status, umainversão de sentido no “processo de desenvolvimentodas sociedades progressistas” que, na famosa

expressão de Sir Henry Maine, “tem sido até agorauma evolução da sociedade baseada no status para asociedade baseada no contrato”. Na verdade, oestado de Direito, mais do que o regime de contrato,é que deve ser considerado a verdadeira antítese doregime de status. O estado de Direito, no sentido deregime de Direito formal – de não-concessão pelaautoridade de privilégios legais a determinadosindivíduos – salvaguarda a igualdade perante a lei,que é a antítese do governo arbitrário.

Uma consequência necessária disso – contraditóriaapenas na aparência – é que essa igualdade formalperante a lei conflita e é de fato incompatível comqualquer atividade do governo que vise a umaigualdade material ou substantiva intencional entre osdiferentes indivíduos, e que qualquer políticaconsagrada a um ideal substantivo de justiçadistributiva leva à destruição do estado de Direito.Para proporcionar resultados iguais para pessoasdiferentes, é necessário tratá-las de maneira diferente.Dar a diferentes pessoas as mesmas oportunidadesobjetivas não equivale a proporcionar-lhes a mesmaoportunidade subjetiva. É inegável que o estado deDireito produz desigualdade econômica – tudo que sepode afirmar em seu favor é que essa desigualdade

não é criada intencionalmente com o objetivo deatingir este ou aquele indivíduo de modo particular. Émuito significativo e característico o fato desocialistas (e nazistas) terem sempre protestadocontra a justiça “?meramente” formal, opondo-se aum Direito que não tencionasse determinar os níveisde renda dos diferentes indivíduos48, e de teremsempre exigido a “socialização do Direito”, atacado aindependência dos juízes e ao mesmo tempo prestadoapoio a todos os movimentos, tal como aFreirechtsschule, que solaparam o estado de Direito.

Pode-se mesmo afirmar que, para o estado deDireito ser uma realidade, a existência de normasaplicadas sem exceções é mais relevante do que o seuconteúdo. Muitas vezes, o conteúdo da norma tem naverdade pouca importância, contanto que ela sejauniversalmente aplicada. Voltemos a um exemploanterior: não faz diferença se todos os automóveiscirculam pelo lado direito ou pelo lado esquerdo dasruas, contanto que todos o façam do mesmo lado. Oimportante é que a norma nos permita prever comexatidão o comportamento dos outros indivíduos, eisto exige que ela se aplique a todos os casos –mesmo que numa circunstancia particular, ela sejaconsiderada injusta.

O conflito entre a justiça formal e a igualdadeformal perante a lei, por um lado, e as tentativas derealizar vários ideais de justiça e igualdadesubstantivas, por outro, também explica a confusãomuito comum sobre o conceito de “privilégio” e oconsequente abuso desse conceito. Mencionaremosapenas o exemplo mais significativo de tal abuso: aaplicação do termo “privilégio” à propriedade comotal.

Ela seria efetivamente um privilégio se, porexemplo, como sucedeu por vezes no curso dahistória, a propriedade da terra fosse reservada aosmembros da nobreza. É privilégio também se, comosucede nos nossos tempos, o direito de produzir ouvender determinados bens é reservado pelaautoridade a certos indivíduos. Mas chamar deprivilégio a propriedade privada como tal, que todospodem adquirir segundo as mesmas normas, sóporque alguns conseguem adquiri-la e outros não – édestituir a palavra privilégio do seu significado.

A imprevisibilidade dos efeitos concretos, que é acaracterística distintiva das leis formais de um sistemaliberal, reveste-se também de importância porquecontribui para desfazer outro equívoco acerca da

natureza desse sistema: a ideia de que sua atitudecaracterística é a inação do estado. A dicotomia entrea intervenção ou a não intervenção do estado éinteiramente falsa, e o termo laissez-faire é umadefinição bastante ambígua e ilusória dos princípiosem que se baseia uma política liberal. Está claro quetodo o estado tem de agir, e toda ação do estadoimplica intervir nisto ou naquilo. Mas não é isso quevem ao caso. O importante é saber se o indivíduopode prever a ação do estado e utilizar esseconhecimento como um dado na elaboração de seusplanos particulares – o que significa que o estado nãopode controlar a forma como seu mecanismo éempregado e que o indivíduo sabe exatamente atéque ponto será protegido contra a interferência alheia– ou se o estado está em condições de frustrar osesforços individuais.

O estado que controla pesos e medidas (ou impedede qualquer outro modo o estelionato e a fraude) éindubitavelmente ativo, ao passo que o estado quepermite o uso da violência – por piquetes degrevistas, por exemplo – é inativo. Entretanto, é noprimeiro caso que o estado observa os princípiosliberais, enquanto no segundo não o faz. Do mesmomodo, no que concerne à maioria das normas gerais e

permanentes estabelecidas pelo estado no campo daprodução, tal como códigos de construção oulegislação fabril, elas podem ser sensatas ouinsensatas num caso particular, mas não conflitamcom os princípios liberais, desde que se destinem aser permanentes e não sejam usadas para favorecerou prejudicar determinados indivíduos. É verdadeque nesses casos certos cidadãos estarão sujeitos nãosó aos efeitos a longo prazo que não podem serprevistos, como também a efeitos imediatos quepodem ser conhecidos com precisão. Entretanto, noque concerne a essa espécie de leis, os efeitosimediatos não constituem em geral (ou, pelo menos,não deveriam constituir) a consideração prioritária. Àmedida que esses efeitos imediatos e previsíveis setornam mais importantes em comparação aos efeitosa longo prazo, aproximamo-nos da linha divisória emque as distinções, ainda que claras em principio, setornam irrelevantes na prática.

O estado de Direito só teve uma evoluçãoconsciente durante a era liberal e é uma das suasmaiores realizações, não só como uma salvaguardamas como a concretização jurídica da liberdade.Como disse Immanuel Kant (e Voltaire antes dele,quase nos mesmos termos), “o homem é livre

quando não tem de obedecer a ninguém, exceto àsleis”. Como um ideal vago, no entanto, o estado deDireito existe pelo menos desde o tempo dosromanos, e durante os últimos séculos nunca foi tãoseriamente ameaçado como o é hoje. A ideia de quenão há limites aos poderes do legislador é, em parte,fruto da soberania popular e do governo democrático.Ela tem sido fortalecida pela crença de que, enquantotodas as ações do estado forem autorizadas pelalegislação, o estado de Direito será preservado. Masisso equivale a interpretar de forma totalmente falsa osignificado do estado de Direito. Não tem este relaçãoalguma com a questão da legalidade, no sentidojurídico, de todas as ações do governo. Elas podemser legais, sem no entanto se conformarem ao estadode Direito.

O fato de alguém possuir plena autoridade legalpara agir não nos permite distinguir se a lei lhe dápoderes arbitrários ou se prescreve de maneirainequívoca qual deve ser seu comportamento. É bempossível que Hitler tenha adquirido poderes ilimitadosde forma rigorosamente constitucional e que todas assuas ações sejam, portanto, legais, no sentidojurídico. Mas quem concluiria, por essa razão, que oestado de Direito ainda prevalece na Alemanha?

Afirmar que numa sociedade planificada o estadode Direito não pode subsistir não equivale, pois, adizer que os atos do governo não serão legais ou queem tal sociedade não haverá leis. Significa apenas queo emprego dos poderes coercitivos do governo já nãoserá limitado e determinado por normas pré-estabelecidas. A lei pode tornar legal aquilo que paratodos os efeitos permanece uma ação arbitrária e,para possibilitar a gestão central das atividadeseconômicas, é-lhe necessário fazer isso. Se a leideclara que uma autoridade ou comissão podem agirda maneira que lhes convém, todas as ações destasserão legais – mas não estarão por certo sujeitas aoestado de Direito. Conferindo-se ao governo poderesilimitados, pode-se legalizar a mais arbitrária dasnormas; e desse modo a democracia pode estabelecero mais completo despotismo49.

Entretanto, para que a lei permita às autoridadesdirigir a vida econômica, deve conceder-lhes o poderde tomar e impor decisões em circunstâncias que nãopodem ser previstas, com base em princípios que nãopodem ser enunciados genericamente. Porconseguinte, à medida que o planejamento adquiremaior amplitude, torna-se cada vez mais comum adelegação dos poderes legislativos a diversas

comissões e autoridades. Quando, antes da PrimeiraGuerra, numa causa para a qual o falecido LordHewart recentemente chamou atenção, o juiz Darlingdeclarou que “o parlamento decretara ainda no anopassado que a Comissão de Agricultura, ao agir comofez, não devia ser mais impugnável do que o próprioparlamento” – isso ainda era bastante raro. Desdeentão, tornou-se ocorrência quase diária. Conferem-se constantemente amplos poderes a novasautoridades que, não estando sujeitas a regras fixas,controlam de modo quase ilimitado esta ou aquelaatividade do cidadão.

O estado de Direito implica, pois, uma limitação docampo legislativo: restringe-o às normas geraisconhecidas como Direito formal e exclui todalegislação que vise diretamente a determinadosindivíduos, ou a investir alguém do uso do podercoercitivo do estado tendo em vista tal discriminação.Ele não significa que tudo é regulado pela lei mas, aocontrário, que o poder coercitivo do estado só podeser usado em casos por esta definidos de antemão, ede tal maneira que se possa prever o modo como seráusado. Qualquer lei aprovada pelo parlamento pode,assim, infringir o estado de Direito. Quem negar issoterá de sustentar que a existência ou não do estado de

Direito hoje em dia na Alemanha, na Itália ou naRússia depende de os ditadores terem ou nãoconquistado o seu poder absoluto por meiosconstitucionais50.

Pouco importa se, como acontece em algunspaíses, as principais aplicações do estado de Direitosão estabelecidas numa declaração de direitos ounuma carta constitucional, ou se o princípio é apenasuma tradição consolidada. Mas é fácil perceber que,seja qual for a sua forma, tais limitações dos poderesde legislar envolvem o reconhecimento do inalienáveldireito do indivíduo, dos invioláveis direitos dohomem.

É patético, porém característico da confusão a queforam levados muitos intelectuais pelos ideaiscontraditórios em que depositam fé, o fato de que umdos principais defensores do planejamento central emlarga escala, H. G. Wells, escrevesse ao mesmotempo uma ardente defesa dos direitos do homem.Os direitos individuais que Wells espera preservarconstituiriam inevitavelmente um obstáculo aoplanejamento por ele desejado. Até certo ponto, eleparece ter consciência desse dilema, motivo por queos artigos da sua proposta “Declaração dos Direitos

do Homem” se encontram tão eivados de ressalvas,que perdem toda a significação. A certa altura, elaproclama, por exemplo, que todo o homem “terá odireito de comprar e vender, sem quaisquer restriçõesdiscriminatórias, tudo aquilo que pode ser legalmentecomprado e vendido”, o que é admirável, e emseguida anula o sentido da proposta acrescentandoque ela se aplica apenas à compra e venda “nasquantidades e com as restrições que sejamcompatíveis com o bem-estar comum”. Mas como, éclaro, sempre se presume que todas as restriçõesimpostas à compra e venda de qualquer bem sejamnecessárias ao “bem-estar comum”, esta cláusula narealidade não impede de maneira efetiva nenhumabuso, nem resguarda qualquer direito individual. Ou,para tomarmos outra cláusula fundamental, diz adeclaração que todo homem “pode dedicar-se aqualquer ocupação permitida pela lei”, e que “temdireito a um emprego remunerado e de sua livreescolha, sempre que lhe seja acessível uma variedadede empregos”. Ela não explicita, todavia, quemdeverá decidir se determinado emprego é “acessível”a determinada pessoa; e ao estabelecer ainda que “elepode sugerir o emprego que deseja, sendo suareivindicação considerada, aceita ou recusada pelo

poder público”, mostra que Wells se refere a umaautoridade que detém o poder de decidir se umindivíduo “tem direito” a ocupar uma determinadaposição – o que evidentemente significa o oposto dalivre escolha de uma ocupação.

Como se poderá assegurar num mundo planificadoa “liberdade de viajar e de migrar”, quando não só osmeios de comunicação e a moeda circulante, mastambém a própria localização das indústrias sãocontrolados pelo estado? E como salvaguardar aliberdade de imprensa, quando a oferta de papel etodos os canais de distribuição são controlados pelaautoridade planejadora? Wells, a exemplo de todos osoutros adeptos da planificação, não oferece qualquerresposta a essas perguntas.

Nesse particular, são muito mais coerentes osnumerosos reformadores que, desde o início domovimento socialista, atacaram a ideia “metafísica”dos direitos individuais, insistindo em que nummundo racionalmente organizado o indivíduo não terádireitos, mas apenas deveres. Esta se tornou, naverdade, a atitude mais comum dos chamadosprogressistas; e nunca alguém se expõe tanto ao riscode ser tachado de reacionário como quando protesta

contra uma medida alegando que ela constituiviolação dos direitos individuais. Até uma revistaliberal como The Economist nos apontava poucosanos atrás logo o exemplo dos franceses, dizendo queeram o único povo que tinha aprendido que

o governo democrático, não menos que a ditadura,deve sempre [sic] ter poderes plenos in posse, semsacrificar o seu caráter democrático e representativo.Não existe esfera de direitos individuais que,tratando-se de assunto administrativo, o governo nãopossa tocar em nenhuma circunstância. Não se podenem se deve limitar o poder de um governolivremente eleito pelo povo e sujeito a plena e abertacrítica da oposição.

Isso é talvez inevitável em tempo de guerra,quando, é claro, torna-se necessário restringir todacrítica livre e franca. Mas o “sempre” da passagemcitada não sugere que The Economist considera essasrestrições apenas uma lamentável necessidade emtempo de guerra. Como instituição permanente, aideia é, sem dúvida, incompatível com a preservaçãodo estado de Direito e conduz diretamente ao estadototalitário. Apesar disso, é a opinião obrigatória detodos aqueles que desejam a gestão da vida

econômica pelo governo. A experiência dos váriospaíses da Europa Central demonstrou amplamenteaté que ponto a admissão, ainda que apenas formal,dos direitos individuais ou da igualdade de direito dasminorias perde todo o valor num estado queempreende o controle integral da vida econômica.Ficou comprovado naqueles países que é possívellevar a efeito inexorável discriminação contra asminorias nacionais mediante o uso de conhecidosinstrumentos da política econômica, sem jamaisinfringir a letra das leis protetoras dos direitos dasminorias. Essa opressão por meio da políticaeconômica foi muito facilitada pelo fato de certasindústrias ou atividades se acharem em grande partenas mãos de uma minoria nacional, de forma quemuitas medidas que na aparência visavam aprejudicar uma indústria ou classe pretendiam, narealidade, atingir essa minoria. Mas as possibilidadesquase ilimitadas de uma política de discriminação eopressão, oferecidas por princípios supostamenteinócuos como o “controle do desenvolvimento daindústria pelo estado”, ficaram mais do quedemonstradas a todos os que desejam ver, na prática,as consequências políticas da planificação.

Rodapé

47 Segundo a exposição clássica de A. V. Dicey emThe law of the Constitution (8.ª ed., p. 198), oestado de Direito “significa, acima de tudo, absolutasupremacia ou predominância do Direito comum emcontraposição a influência do podei arbitrário, e excluia arbitrariedade, o privilégio ou mesmo umaautoridade discricionária ampla por parte dogoverno”. Como resultado, em grande parte, da obrade Dicey, o termo adquiriu na Inglaterra uma acepçãotécnica mais restrita que não nos interessa nopresente trabalho. O sentido mais abrangente e maisantigo do conceito de estado de Direito ousupremacia do Direito, que na Inglatera se converteunuma tradição aceita sem controvérsia e muito poucoexplicitada, foi melhor desenvolvido nos embalesfilosóficos a respeito da natureza do Rechtsstaattravados na Alemanha no início do século XIX,exatamente por suscitar problemas que naquele paíseram novos.48 Não é, portanto, de todo falsa a oposiçãoestabelecida pelo teórico do Direito do nacional-socialismo, Carl Schmitt, entre o Rechtsstaat liberal

(isto é, o estado de Direito) e o ideal nacional-socialista do gerechte staat (“o estado justo”).Observe-se, apenas, que a espécie de justiça que seopõe à justiça formal envolve necessariamentediscriminação entre indivíduos.49 Não se trata, pois, segundo a concepção errôneado século XIX, de um conflito entre a liberdade e oDireito. Como John Locke já havia esclarecido, nãopode haver liberdade onde não há leis. O conflitoverifica-se entre diferentes espécies de lei – tãodiferentes que quase não merecem o mesmo nome.Uma é a lei que fundamenta o estado de Direito,princípios gerais estabelecidos de antemão, “regras dojogo” que permitem ao indivíduo prever como seráempregado o aparelho coercitivo do estado, ou o queele e seus concidadãos poderão fazer, ou serãoobrigados a fazer, em circunstâncias dispostas em lei.A outra espécie de lei dá à autoridade poder efetivopara agir da maneira que lhe parecer conveniente. Éevidente, pois, a impossibilidade de manter o estadode Direito numa democracia que pretendesse decidirtodo conflito de interesses, não de acordo comnormas previamente estabelecidas, mas “segundo osseus méritos”.50 Outro exemplo de infração do estado de Direito

pela legislação é o caso do bill of attainder, decretode proscrição ou perda dos direitos civis, tãoconhecido na história da Inglaterra. A forma assumidapelo estado de Direito no Direito criminal é em geralexpressa pela máxima latina nulla poena-sine lege –não haverá castigo sem uma lei que o prescrevaexpressamente. A essência dessa máxima é que a leideve ter existido como norma geral antes de seapresentar o caso ao qual tem de ser aplicada. Emfamoso processo realizado no reinado de HenriqueVIII, o parlamento resolveu que “o referido RichardRose”, cozinheiro do bispo de Rochester, “devemorrer no caldeirão sem assistência religiosa”.Entretanto, ninguém sustentaria que esse ato setivesse realizado em conformidade com o estado deDireito. Mas embora o estado de Direito se tenhatornado parte essencial do processo criminal emtodos os países liberais, não pode ser mantido nosregimes totalitários. Nestes, como disse compropriedade E. B. Ashton, a máxima liberal foisubstituída pelo princípio nullum crimen sine poena– nenhum “crime” deve ficar sem castigo, quer a leidisponha explicitamente sobre o caso ou não. “Osdireitos do estado não terminam com a punição dosinfratores. A comunidade pode fazer tudo o que lhe

pareça necessário à proteção de seus interesses – e aobservância da lei, tal como se acha formulada, éapenas um dos requisitos mais elementares” (Ashton,E. B. The Fascist, His State and Minei, 1937, p.119). Naturalmente, as autoridades decidem o queconstitui infração dos “interesses da comunidade”.

Capítulo 7

Controle Econômico eTotalitarismo

“O controle da produção da riqueza é ocontrole da própria existência humana”. – Hilaire

BellocA maioria dos planejadores que analisaram em

profundidade os aspectos práticos de sua tarefa estácerta de que uma economia dirigida deve seguir linhasmais ou menos ditatoriais. Para ser submetido a umcontrole consciente, o complexo sistema de atividadesinterrelacionadas que constitui uma economia terá deser dirigido por uma única equipe de especialistas,devendo a responsabilidade e o poder últimos ficar acargo de um chefe supremo, cujos atos não poderãoser tolhidos pelos processos democráticos. Essas sãoconsequências demasiado óbvias das ideias em que sebaseia o planejamento central, razão por que nãopoderiam deixar de conquistar o consenso da maioriados adeptos da planificação. Para abrandar tal

realidade, nossos planejadores afirmam que essagestão autoritária se aplicará “apenas” às questõeseconômicas. Assegura-nos, por exemplo, um dosmais eminentes planejadores norte-americanos, StuartChase, que, numa sociedade planificada, “poderá sermantida a democracia política, desde que nãointerfira nos assuntos econômicos”. Tais afirmaçõescostumam ser acompanhadas da ideia de que,renunciando à liberdade naquilo que constitui, oudeveria constituir, os aspectos menos importantes danossa existência, conquistaremos uma liberdademaior no que tange à obtenção de valores maiselevados. Baseados nisso, muitos dos que abominama ideia de uma ditadura política costumam exigir umditador no campo econômico.

Os argumentos empregados evocam nossosmelhores sentimentos e muitas vezes seduzem osespíritos mais idealistas. Se a planificação de fato noslibertasse dos cuidados menos importantes,permitindo-nos uma existência despreocupada quepoderíamos dedicar a questões mais elevadas, quemdesejaria depreciar semelhante ideal? Se as atividadeseconômicas realmente envolvessem apenas osaspectos menores ou mesmo mais ignóbeis da vida,seria, é claro, nosso dever lançar mão de todos os

meios para nos desobrigarmos da preocupaçãoexcessiva com os objetivos materiais e libertar nossamente, dedicando-a às coisas mais nobres da vida,enquanto aqueles objetivos seriam confiados a algummecanismo utilitário.

Infelizmente, a ideia de que o poder exercido sobrea vida econômica só afeta questões de importânciasecundária – ideia que leva as pessoas a menosprezara ameaça à liberdade de ação no campo econômico –é de todo infundada. Ela decorre em grande parte danoção errônea de que existem objetivos puramenteeconômicos, distintos dos outros objetivos daexistência. No entanto, afora o caso patológico doavarento, não existe tal distinção. Os objetivosúltimos da atividade dos seres racionais nunca sãoeconômicos. Rigorosamente falando, não existe“interesse econômico”, mas apenas fatoreseconômicos que condicionam nossos esforços pelaobtenção de outros fins. Aquilo que na linguagemcomum se costuma definir por equívoco como“interesse econômico” significa apenas o desejo deoportunidades, o desejo do poder de alcançarobjetivos não especificados51.

Se lutamos pelo dinheiro, é porque ele nos permite

escolher da forma mais ampla como melhor desfrutaros resultados de nossos esforços. Visto que, nasociedade moderna, as restrições ainda impostas pornossa relativa pobreza se refletem na limitação danossa renda pecuniária, muitos passaram a odiar odinheiro como símbolo dessas restrições. Mas issosignifica confundir com a sua causa o meio pelo qualuma força se faz sentir. Seria muito mais certo dizerque o dinheiro é um dos maiores instrumentos deliberdade já inventados pelo homem. É o dinheiroque, na sociedade atual, oferece ao homem pobreuma gama de escolhas extraordinariamente vasta,bem maior do que aquela que há poucas gerações seoferecia aos ricos. Compreenderemos melhor aimportância desse serviço prestado pelo dinheiro seconsiderarmos o que de fato aconteceria se, comopropõem muitos socialistas, o “incentivo pecuniário”fosse em grande parte substituído por “incentivosnão-econômicos”. Se, em vez de serem oferecidasem dinheiro, todas as recompensas o fossem sob aforma de distinções públicas ou privilégios, posiçõesde poder, melhores condições de moradia oualimentação, oportunidade de viajar ou educar-se,isso significaria apenas que o beneficiário já não terialiberdade de escolha e que o dispensador das

recompensas determinaria não somente o seu valormas também a forma específica em que elas seriamdesfrutadas.

Quando compreendemos que o interesseeconômico não se distingue dos outros e que umganho ou uma perda de caráter econômico nãopassam de um ganho ou de uma perda nas situaçõesem que cabe a nós decidir quais das nossasnecessidades ou desejos serão afetados, torna-setambém mais fácil perceber a pequena e importanteverdade contida na ideia de que os assuntoseconômicos só envolvem as questões menosimportantes da existência, e entender o desprezo emque são tidas muitas vezes as considerações“meramente” econômicas. Em certo sentido, essaideia se justifica numa economia livre, de mercado –mas apenas em tal economia.

Enquanto pudermos dispor, sem restrições, dosnossos rendimentos e de todos os nossos bens. umaperda econômica só nos privará daquilo queconsideramos o menos importante dos desejos queteríamos condições de satisfazer. Uma perda“meramente” econômica é, pois, uma perda cujoefeito podemos fazer recair sobre nossas

necessidades menos importantes. Mas quandodizemos que o valor de uma coisa perdida é muitomaior do que seu valor econômico, ou que ela nãopode sequer ser avaliada em lermos econômicos, issosignifica que temos de suportar a perda no ponto emque ela incide. O mesmo, em termos gerais, se aplicaaos ganhos econômicos. Em outras palavras, asmudanças de ordem econômica geralmente só afetama periferia, a “margem” das nossas: necessidades. Háinúmeras coisas mais importantes do que aquilo queos ganhos ou perdas de ordem econômica podemafetar, e que julgamos bastante superiores aosconfortos e mesmo a muitas necessidades da vidasujeitos aos sucessos e revezes econômicos.Comparados a elas, o “vil metal”, a questão davantagem ou desvantagem econômica, parecem depouco valor. Isso leva muita gente a acreditar quetudo aquilo que, como a planificação, só afeta osnossos interesses de ordem econômica, nãoconstituirá séria interferência nos valores mais básicosda existência.

Trata-se, porém, de uma conclusão errônea. Osvalores econômicos são-nos menos importantes doque muitas outras coisas justamente porque emmatéria de economia temos liberdade para decidir o

que é mais (ou menos) importante para nós. Ou, bempoderíamos dizê-lo, porque na sociedade atual cabe anós resolver os problemas econômicos da nossaexistência. Ter as nossas atividades econômicascontroladas significa ser controlados sempre, a menosque declaremos em cada caso o nosso propósitoespecífico. Mas como cada declaração de propósitodependeria de aprovação de autoridade, todos osnossos atos seriam realmente controlados.

A questão suscitada pela planificação econômicanão consiste, portanto, apenas em determinar seteremos condições de satisfazer o que consideramosnossas necessidades mais (ou menos) importantessegundo nossas preferências. Consiste em determinarse cabe a nós decidir o que nos é de maior ou menorimportância ou se essa decisão será tomada peloplanejador. A planificação econômica não atingiriaapenas as necessidades “marginais” que temos emmente quando nos referimos com desdém aosaspectos puramente econômicos. Ela significaria, comefeito, que nós, como indivíduos, já não poderíamosdecidir o que consideramos marginal.

A autoridade que dirigisse toda a atividadeeconômica controlaria não só o aspecto da nossa

existência que envolve as questões inferiores;controlaria também a alocação dos meios escassos eos fins a que seriam destinados. Quem controla todaa atividade econômica também controla os meios quedeverão servir a todos os nossos fins; decide, assim,quais deles serão satisfeitos e quais não o serão. Éeste o ponto crucial da questão. O controleeconômico não é apenas o controle de um setor davida humana, distinto dos demais. É o controle dosmeios que contribuirão para a realização de todos osnossos fins. Pois quem detém o controle exclusivodos meios também determinará a que fins nosdedicaremos, a que valores atribuiremos maior oumenor importância – em suma, determinará aquiloem que os homens deverão crer e por cuja obtençãodeverão esforçar-se. Planejamento central significaque o problema econômico será resolvido pelacomunidade e não pelo indivíduo; isso, porém,implica que caberá à comunidade, ou melhor, aosseus representantes, decidir sobre a importânciarelativa das diferentes necessidades.

A chamada liberdade econômica prometida pelosadeptos da planificação quer dizer precisamente queseremos libertados da necessidade de resolver nossospróprios problemas econômicos, e que as duras

decisões que isso muitas vezes envolve serãotomadas por outrem. Como, hoje em dia,dependemos em quase tudo dos meiosproporcionados pelos nossos semelhantes, oplanejamento econômico importaria o controle daquase totalidade da nossa vida. Não existiriapraticamente nenhum aspecto desta – desde asnecessidades primárias até as relações de família e deamizade, da natureza do nosso trabalho até o uso quefazemos de lazer – sobre o qual o planejador nãoexercesse seu “controle consciente”52.

O poder do planejador sobre nossa vida privadaseria total, mesmo se ele resolvesse não exercê-lomediante o controle direto do consumo. Embora sejaprovável que uma sociedade planificada venha atécerto ponto a empregar o racionamento e outrosmecanismos semelhantes, o poder do planejadorsobre a nossa vida privada não depende disso e nãoseria menos efetivo se o consumidor tivesse aliberdade nominal de gastar o seu rendimento comolhe aprouvesse. Esse poder sobre todo o consumo,que a autoridade deteria numa sociedade planificada,se origina do controle da produção.

Nossa liberdade de escolha, no regime de

concorrência, repousa na possibilidade de podermosprocurar outra pessoa para satisfazer os nossosdesejos, caso alguém se recuse a fazê-lo. Quando nosdeparamos com um monopolista, porém, ficamos àsua mercê. E a autoridade que dirigisse todo osistema econômico seria o mais poderosomonopolista que se possa conceber. Emboraprovavelmente não tenhamos de recear que talautoridade explorasse esse poder como o faria ummonopolista que não fosse o estado; embora se possapresumir que o seu objetivo não seria a extorsão dolucro financeiro máximo, ela teria poder absoluto paradecidir o que caberia a cada um, e em que termos.Não só decidiria quais as mercadorias e serviços aserem oferecidos, e em que quantidades; mas estariaem condições de dirigir sua distribuição entrediferentes regiões e grupos e poderia, se assim odesejasse, discriminar entre as pessoas como bementendesse. Quando analisamos o motivo por que oplanejamento costuma ser defendido, podemosduvidar de que esse poder seria usado para arealização dos objetivos aprovados pela autoridade, epara impedir a consecução dos que ela condena?

É quase ilimitado o poder conferido pelo controleda produção e dos preços. No regime de

concorrência, os preços que temos de pagar por umartigo, a taxa a que podemos obter uma coisa emtroca de outra, dependem da quantidade de outrosartigos da mesma espécie que ficam à disposição dosdemais membros da sociedade depois de termosadquirido o nosso. Esse preço não é determinado pelavontade consciente de quem quer que seja. E se umacerta forma de alcançarmos nossos fins se mostrademasiado dispendiosa, temos liberdade de buscaroutras. Os obstáculos que se erguem no nossocaminho não se devem ao fato de alguém condenaros nossos objetivos, mas ao de que os mesmos meiostambém estão sendo demandados por outras pessoas.Numa economia dirigida, em que a autoridade seinteressa diretamente pelos objetivos visados, ela semdúvida usaria seus poderes para auxiliar a consecuçãode certos fins e impedir a realização de outros.Nossos resultados não seriam determinados pelaopinião que tivéssemos acerca do que devemos ounão preferir, mas pelas ideias de outra pessoa. E,como a autoridade teria o poder de anular todas astentativas de escapar ao seu controle, ela dirigiria onosso consumo de modo tão efetivo como se nosditasse diretamente a maneira de gastar nossosrendimentos.

Entretanto, não seria apenas no que se refere ànossa condição de consumidores, nem mesmoespecialmente nessa qualidade, que a vontade dogoverno daria forma e “orientação’’ a nossa vidacotidiana. Fá-lo-ia sobretudo na nossa condição deprodutores. Esses dois aspectos da existência nãopodem ser separados um do outro; e como quasetodos nós passamos grande parte da vida no trabalho,e é ele que costuma determinar também o lugar emque moramos e as pessoas com quem convivemos,certa liberdade na escolha da profissão talvez tenhamais importância para a nossa felicidade do que aliberdade de gastar os próprios rendimentos duranteas horas de lazer.

Não há dúvida de que, mesmo no melhor dosmundos, essa liberdade será muito limitada. Poucaspessoas chegam a ter a possibilidade de escolherentre um grande número de ocupações. Mas oimportante é termos uma margem de escolha e nãoestarmos amarrados por completo a uma determinadaocupação que outros escolheram para nós, ou pelaqual optamos no passado. Se uma posição se tornarde todo intolerável ou se aspirarmos a outra, éimportante que haja sempre uma saída para aspessoas capacitadas, algum sacrifício mediante o qual

possam alcançar sua meta. Nada é mais intoleráveldo que saber que nenhum esforço de nossa partepode mudar as circunstâncias; e, mesmo que nuncatenhamos a força de vontade suficiente para fazer osacrifício necessário, saber que poderíamos escaparse nos esforçássemos bastante torna suportáveismuitas situações, por piores que sejam.

Não estamos pretendendo afirmar que a situaçãoseja a melhor possível no mundo atual, ou que assimtenha sido nas épocas mais liberais do passado,tampouco que não haja muito a fazer para melhoraras oportunidades de escolha individual. Neste campo,como em outros, o estado muito pode fazer paraauxiliar a difusão de conhecimentos e informações epermitir maior mobilidade. Mas a questão é que otipo de ação estatal que de fato contribuiria paraaumentar as oportunidades é quase o oposto do“planejamento” hoje em dia defendido e praticado. Amaioria dos adeptos do planejamento, é claro,promete que no novo mundo planificado a livreescolha da ocupação será escrupulosamentepreservada e até ampliada. Prometem, porém, bemmais do que lhes é possível realizar. Pois, paraplanejar, terão de controlar o ingresso nas diferentesprofissões e ocupações, ou o valor da remuneração,

ou ambas as coisas.Em quase todos os exemplos de planejamento

conhecidos, o estabelecimento de tais controles erestrições foi uma das primeiras medidas adotadas.Se tal controle fosse universal e exercido por uma sóautoridade planejadora, não é necessário grandeimaginação para perceber o que aconteceria com aprometida “livre escolha de ocupação”. A “liberdadede escolha” seria puramente fictícia, uma simplespromessa de que não haveria discriminação num casocuja própria natureza exigiria o seu uso, e comrelação ao qual tudo que se poderia esperar seria umaseleção de acordo com critérios consideradosobjetivos pela autoridade.

Não seria muito diferente se a autoridadeplanejadora se limitasse a fixar as condições deemprego e tentasse controlar o número deempregados pela alteração dessas condições. Aoestabelecer os termos de remuneração, ela impediriao acesso de determinadas pessoas a muitas profissõesde modo tão eficaz como se as excluísseexpressamente. Uma moça pouco atraente que temgrande desejo de tornar-se vendedora, um rapazfranzino que almeja um emprego no qual sua

fraqueza física constitui um empecilho, assim como,de modo geral, os que parecem menos hábeis oumenos qualificados, não são necessariamenteexcluídos numa sociedade competitiva. Se de fatodesejam tais posições, muitas vezes haveráoportunidade de se iniciarem nela mediante umsacrifício financeiro, e poderão mais tarde se destacarpor qualidades a princípio menos evidentes. Masquando a autoridade fixa a remuneração de toda umacategoria e a seleção dos candidatos é feita por meiode um teste objetivo, a força com que desejamconseguir a posição terá pouca probabilidade de serlevada em conta. A pessoa cujas qualificações nãocorrespondem ao padrão, ou que tenha umtemperamento fora do comum, já não conseguirátrabalho mediante entendimento especial com umempregador cujas inclinações se ajustem às suasnecessidades específicas. Aqueles que, à rotinacotidiana, preferem trabalhar fora de horário oumesmo levar uma existência sem obrigações, comuma renda reduzida e talvez incerta, já não terãoescolha.

A situação será, sem exceções, aquela que, atécerto ponto, ocorre inevitavelmente numa grandeorganização – ou antes pior, pois não haverá

escapatória. Já não teremos liberdade de ser racionaisou eficientes apenas quando isso nos pareceproveitoso. Teremos todos de nos adaptar aospadrões que a autoridade planejadora é obrigada afixar a fim de simplificar sua tarefa. Para tornarexequível essa imensa tarefa, ela terá de reduzir adiversidade das inclinações e capacidades humanas aumas poucas categorias de unidades facilmentepermutáveis, desprezando as pequenas diferençaspessoais. Embora o objetivo declarado daplanificação seja o de dar condições ao homem paraque deixe de ser um simples meio, na realidade –uma vez que seria impossível levar em conta aspreferências e aversões pessoais – o indivíduo setornaria mais do que nunca um simples meio, usadopela autoridade a serviço de abstrações como o“bem-estar social” ou o “bem da comunidade”.

É de importância inegável o fato de que, numasociedade competitiva, a maior parte das coisas pôdeser obtida mediante um preço – embora muitas vezesesse preço seja terrivelmente elevado. A alternativaque se oferece não é, contudo, a completa liberdadede escolha, mas ordens e proibições que têm de serobedecidas e, em última análise, o favor dospoderosos. As censuras feitas ao regime de

concorrência pelo fato de que, nele, tudo pode serobtido mediante um preço indicam a falta decompreensão de todos esses assuntos. Há pessoasque protestam contra a inclusão dos valores maiselevados da vida na “lógica do dinheiro”. Se com issoquerem dizer que não deveríamos ter de sacrificarnossas necessidades menores à preservação dosvalores superiores, e que a escolha deveria ser feitapor outrem, esse protesto parece bastante estranho enão demonstra grande respeito pela dignidade doindivíduo. A vida e a saúde, a virtude e a beleza, ahonra e a paz de espírito, muitas vezes só podem serpreservadas à custa de consideráveis sacrifíciosmateriais, e alguém tem de fazer a escolha. Esse éum fato inegável, assim como também o é que nemtodos estamos dispostos, por vezes, a fazer ossacrifícios materiais necessários para proteger essesvalores mais altos contra qualquer violação.

Tomemos um exemplo: poderíamos reduzir a zeroo número de vítimas de acidentes de automóveis, éclaro – se nos dispuséssemos a pagar o preço,abolindo os automóveis. O mesmo se aplica amilhares de outras situações em que arriscamosconstantemente a vida, a saúde e todos os valoresespirituais mais nobres, tanto nossos como dos

nossos semelhantes, a fim de promover aquilo que aomesmo tempo chamamos, com desprezo, de confortomaterial. Nem podia ser de outro modo, visto quetodos os nossos fins disputam o emprego dosmesmos meios; assim, se tentássemos evitar queesses valores absolutos jamais fossem ameaçados,seríamos incapazes de perseguir quaisquer outrosobjetivos. Não surpreende que os homens desejemlivrar-se da cruel escolha que as circunstâncias muitasvezes lhes impõem.

Mas poucos desejam fazê-lo deixando a outrosresolver por eles. O que querem é simplesmente quea escolha não seja necessária. Por isso acreditam commuita facilidade que ela de fato não o é, e que nãopassa de uma imposição do sistema econômicoexistente. Na realidade, o que os irrita é a existênciade um problema econômico. Essa crença, semfundamento, de que já não há realmente umproblema econômico, tem sido estimulada porafirmações irresponsáveis acerca da “abundância empotencial” – o que, se fosse uma realidade, implicariacom efeito que a escolha não é inevitável, uma vezque inexiste problema econômico. Mas, embora essechamariz tenha servido à propaganda socialista sobvárias denominações desde o aparecimento do

socialismo, sua falsidade é tão palpável como quandofoi utilizado pela primeira vez, há mais de cem anos.Durante todo esse tempo, nem uma só das muitaspessoas que o usaram apresentou um plano viávelpara aumentar a produção de modo a se poder aboliro que chamamos pobreza – nem mesmo na EuropaOcidental, para não falar no resto do mundo. O leitorpode ficar certo de que todo aquele que fala sobreabundância em potencial ou é desonesto, ou não sabeo que diz53. E, no entanto, essa falsa esperança éuma das principais forças que nos impelem nocaminho da planificação.

Conquanto o movimento popular continue tirandoproveito dessa ideia errônea, quase todos osestudiosos do problema vêm abandonando aospoucos a tese de que numa economia planejada aprodução seria bastante maior do que no sistema deconcorrência. E mesmo grande número deeconomistas favoráveis ao socialismo que estudarama fundo os problemas do planejamento centralizadocontentam-se agora em esperar que uma sociedadeplanejada iguale a eficiência de um sistemacompetitivo. Já não defendem a planificação por suaprodutividade superior, mas porque nos permitirárealizar uma distribuição da riqueza mais justa e

equitativa. Este é, com efeito, o único argumento emseu favor digno de debate. Não há dúvida alguma deque, se quisermos assegurar uma distribuição dariqueza segundo um padrão predeterminado, sequisermos estabelecer conscientemente o que caberáa cada um, teremos de planifícar todo o sistemaeconômico. Resta saber se o preço que teríamos depagar pela realização desse ideal de justiça não seriaum descontentamento e uma opressão maiores doque os jamais causados pelo livre jogo das forçaseconômicas, alvo de tão severas críticas.

Estaríamos incorrendo em grave erro seprocurássemos abrandar essas apreensões julgandoque a adoção do planejamento central significariaapenas um retorno, após breve período de liberdadeeconômica, aos controles e restrições que têmgovernado a atividade econômica ao longo de quasetoda a história, e que por isso as violações daliberdade pessoal não seriam maiores do que eramantes da era do laissez-faire. Perigosa ilusão. Mesmonos períodos da história europeia em que mais setentou sujeitar a vida econômica ao controlegovernamental, esse controle importava em poucomais que a criação de um corpo de normas geral esemipermanente, no qual o indivíduo mantinha uma

ampla esfera de liberdade. O mecanismo de controleentão disponível não se prestaria senão para imporalgumas diretrizes muito gerais. E mesmo o controlemais completo só abrangia as atividades pelas quaisuma pessoa tomava parte na divisão social dotrabalho. Na esfera muito mais ampla em que eleainda vivia dos seus próprios produtos, cada um eralivre para agir como bem entendesse.

A situação agora é inteiramente diversa. Nodecorrer da era liberal, a progressiva divisão dotrabalho criou uma situação em que quase todas asnossas atividades passaram a fazer parte de umprocesso social. É impossível inverter o rumo dessaevolução, pois só em virtude dela é que podemosmanter a população, hoje tão numerosa, dentro depadrões mais ou menos semelhantes aos atuais. Mas,como resultado, a substituição da concorrência peloplanejamento central exigiria um controle muito maiorsobre a nossa vida do que até hoje foi tentado. Essaingerência não poderia limitar-se àquilo queconsideramos nossas atividades econômicas, porquehoje dependemos em quase tudo das atividadeseconômicas dos nossos semelhantes54.

A paixão pela “satisfação coletiva das nossas

necessidades”, com que os socialistas souberam tãobem preparar o caminho para o totalitarismo, esegundo a qual nossos prazeres e necessidadesdeveriam ser satisfeitos à hora marcada e na formaprescrita, pretende ser em parte um meio deeducação política. Mas também decorre dasexigências da planificação, cuja essência é privar-nosda liberdade de escolha para nos dar aquilo que maisse ajuste ao plano, no momento determinado peloplano.

Afirma-se muitas vezes que a liberdade políticanada significa sem a liberdade econômica. Isto emparte é verdade, porém num sentido quase oposto aousado pelos defensores da planificação. A liberdadeeconômica que constitui o requisito prévio dequalquer outra liberdade não pode ser aquela que noslibera dos cuidados econômicos, segundo nosprometem os socialistas, e que só se pode obtereximindo o indivíduo ao mesmo tempo danecessidade e do poder de escolha: deve ser aliberdade de ação econômica que, junto com o direitode escolher, também acarreta inevitavelmente osriscos e a responsabilidade inerentes a esse direito.

Rodapé

51 Cf. Robbins, L. The Economic Causes of ’ War,1939, apêndice.52 Não se pode exemplificar melhor a abrangência docontrole econômico sobre todos os outros aspectosda vida do que na área do câmbio. A primeira vista,nada parece afetar menos a vida privada do que ocontrole estatal das transações em moeda estrangeira,e a maior parte das pessoas olha com totalindiferença a introdução dessa política. No entanto, aexperiência de quase todos os países europeusensinou-nos a considerar essa medida um passodecisivo no caminho do totalitarismo e da supressãoda liberdade individual. Ela constitui, na verdade, oabandono completo do indivíduo à tirania do estado,a eliminação definitiva de todos os meios de fuga –não somente para os ricos, mas para todos. Quando oindivíduo já não tem liberdade de viajar nem decomprar livros e revistas estrangeiros, e quando todosos meios de contato com o exterior se limitam aosaprovados pela opinião oficial ou aos que estaconsidera necessários, o controle efetivo da opiniãotorna-se muito maior do que o exercido por qualquer

governo absolutista dos séculos XVII e XVIII.53 Para justificar essa enfática afirmação, podemoscitar as seguintes conclusões a que chegou ColinClark, um dos mais conhecidos especialistas emestatística econômica, homem de ideiasincontestavelmente progressistas e de espíritorigorosamente cientifico, em sua obra Conditions ofEconomic Progress (1940. pp. 3-4): “Tudo o que jáfoi dito repetidas vezes sobre a pobreza no seio daabundância e sobre o fato de já terem sido resolvidosos problemas da produção, faltando-nos apenascompreender a questão da distribuição, revela-se umdos mais falsos clichês da nossa época. Asubutilização da capacidade produtora é uma questãoque só tem importância considerável nos EstadosUnidos, embora, em certos períodos, também setenha tornado relevante na Inglaterra, Alemanha eFrança; na maior parte do mundo, porém, éinteiramente subordinada ao fato maior de que,embora fazendo uso integral dos seus recursos deprodução, estes produzem muito pouco. A era daabundância ainda tardará muito a chegar. Se fossemeliminadas as formas evitáveis de desemprego aolongo de todo o ciclo econômico, teríamos umaindiscutível melhoria no padrão de vida da população

dos EUA; mas, do ponto de vista mundial, issocontribuiria apenas em pequena escala à solução doproblema muito mais importante da elevação dosrendimentos reais do grosso da humanidade a umnível mais próximo ao dos padrões civilizados”.54 Não é por mera coincidência que nos paísestotalitários, seja na Rússia, Alemanha ou Itália, aorganização do lazer se tornou um problema deplanejamento. Os alemães chegaram a inventar paraesse problema a horrível e contraditória denominaçãode Freizeitgestaltung (literalmente: organização dashoras livres), como se essas horas continuassem a ser“livres” quando se é obrigado a passá-las à maneiraprescrita pela autoridade.

Capítulo 8

Quem, a Quem?

“A melhor oportunidade que o mundo já tevefoi desperdiçada porque a obsessão pela

igualdade frustrou as esperanças de liberdade”. –Lord Acton

É significativo que uma das objeções maisfrequentes à concorrência é que ela é “cega”.Convém lembrar, entretanto, que, para os antigos, acegueira era atributo da deusa da justiça. Se bem quea concorrência e a justiça pouco mais tenham emcomum, ambas são dignas de elogio justamente pornão admitirem discriminação entre as pessoas. Aimpossibilidade de prever quem será bem-sucedido equem fracassará, o fato de recompensas e perdas nãoserem distribuídas segundo um determinado conceitode mérito ou demérito, dependendo antes dacapacidade e da sorte de cada um – isso é tãoimportante quanto não sermos capazes de prever, nafeitura das leis, quem em particular sairá ganhando ouperdendo com a sua aplicação. E a circunstância de,

no regime de concorrência, o destino das diferentespessoas ser determinado não só pela habilidade e acapacidade de prever, mas também pelo acaso e asorte não torna isso menos verdadeiro.

O que se nos apresenta não é a escolha entre umsistema em que cada um receberá o que merece deacordo com um padrão absoluto e universal dejustiça, e um sistema em que a parcela de cada umseja determinada em parte pelo acaso ou pela boa oumá sorte: é a escolha entre um sistema em que avontade de poucos decida a quem caberá isto ouaquilo e outro em que essa parcela dependa, pelomenos em parte, da habilidade e iniciativa dosindivíduos e, também em parte, de circunstânciasimprevisíveis. Essa distinção mantém a suaimportância mesmo se, num sistema de livreiniciativa, as oportunidades não são iguais, visto quetal sistema se baseia necessariamente na propriedadeprivada e (talvez não tão necessariamente) no direitoà herança, com as diferenças de oportunidade quelhes são inerentes. Com efeito, justifica-se a reduçãodessa desigualdade de oportunidades tanto quanto opermitem as diferenças congênitas, e na medida emque seja possível fazê-lo sem destruir o caráterimpessoal do processo pelo qual cada um tem de

assumir os próprios riscos, e em que nenhumconceito individual sobre o que é justo e desejávelprevaleça sobre os demais.

Sem dúvida, no regime de concorrência, asoportunidades ao alcance dos pobres são muito maislimitadas que as acessíveis aos ricos. Mas mesmoassim em tal regime o pobre tem uma liberdade maiordo que um indivíduo que goze de muito maisconforto material numa sociedade de outro gênero.No regime de concorrência, as probabilidades de umhomem pobre conquistar grande fortuna são muitomenores que as daquele que herdou sua riqueza.Nele, porém, tal coisa é possível, visto ser o sistemade concorrência o único em que o enriquecimentodepende exclusivamente do indivíduo e não do favordos poderosos, e em que ninguém pode impedir quealguém tente alcançar esse resultado. Já esquecemoso que significa a falta de liberdade; essa é a razãopela qual muitas vezes não percebemos o fatoevidente de que, em todos os sentidos, umtrabalhador não-especializado e mal pago tem, naInglaterra, mais liberdade de escolher o rumo da suavida do que muitos pequenos empresários naAlemanha, ou do que engenheiro ou gerente deempresa muito mais bem pago na Rússia. Quer se

trate de mudar de emprego ou de residência, deexternar certas opiniões ou de passar deste oudaquele modo as horas de lazer – embora seja porvezes elevado o preço que se tem de pagar pelodireito de seguir as próprias inclinações, e a muitosesse preço se afigure exagerado – não existeempecilho absoluto ou perigo para a integridade físicae para a liberdade que prendam à força essetrabalhador à tarefa e ao ambiente designados por umsuperior.

É verdade que o ideal de justiça da maioria dossocialistas seria satisfeito com a simples abolição darenda privada resultante da propriedade,permanecendo inalteradas as diferenças entre osrendimentos individuais do trabalho55. O que elesesquecem é que, ao transferir para o estado toda apropriedade dos meios de produção, dão-lheautomaticamente condições de determinar todos osoutros rendimentos. Conferir tal poder ao estado eexigir que este o use para “planejar” implica que oestado deverá usá-lo com plena consciência de todosesses efeitos.

É errôneo supor que isso não passa de umatransferência de poder ao estado. Trata-se da criação

de um novo poder que, numa sociedade competitiva,ninguém possui. Enquanto a propriedade estiverdividida entre muitos donos, nenhum deles, agindoindependentemente, tem o poder exclusivo dedeterminar a renda e a posição de um indivíduo.Ninguém fica vinculado a um proprietário, a não serpelo fato de este oferecer condições melhores quequalquer outro.

Nossa geração esqueceu que o sistema depropriedade privada é a mais importante garantia daliberdade, não só para os proprietários mas tambémpara os que não o são. Ninguém dispõe de poderabsoluto sobre nós, e, como indivíduos, podemosescolher o sentido de nossa vida – isso porque ocontrole dos meios de produção se acha divididoentre muitas pessoas que agem de modoindependente. Se todos os meios de produçãopertencessem a uma única entidade, fosse ela a“sociedade” como um todo ou um ditador, quemexercesse esse controle teria poder absoluto sobrenós.

Quem duvidaria que um membro de uma pequenaminoria racial ou religiosa seja mais livre sem nadapossuir – no caso de outros membros de sua

comunidade terem propriedades e, portanto, estaremem condições de empregá-lo – do que o seria se apropriedade privada fosse abolida e ele se tornassepossuidor nominal de uma parte da propriedadecomum? Ou que o poder exercido sobre mim por ummultimilionário, que pode ser meu vizinho e talvezmeu patrão, é muito menor que o do maisinsignificante funcionário que exerce o podercoercitivo do estado e decide em que condiçõespoderei viver ou trabalhar? E quem negará que ummundo em que os ricos são poderosos ainda épreferível àquele em que só os poderosos podemadquirir riquezas?

É patético, e ao mesmo tempo estimulante,constatar que um velho e famoso comunista comoMax Eastman redescobre esta verdade:

Parece-me agora evidente – [escreve ele emrecente artigo] –, embora deva confessar que tardeiem chegar a essa conclusão, que a instituição dapropriedade privada é um dos principais fatores queconferiram ao homem justamente aquela porçãolimitada de liberdade e igualdade que Marx esperavatornar infinita, ao abolir tal instituição. O estranho éque Marx foi o primeiro a perceber esse fato. Foi ele

que nos informou, remontando ao passado, que aevolução do capitalismo privado com o mercado livrefoi a condição prévia da evolução de todas as nossasliberdades democráticas. Nunca lhe ocorreu,considerando o futuro, deduzir que, se assimacontecia, essas outras liberdades poderiamdesaparecer com a abolição do mercado livre56.

Afirma-se às vezes, em resposta a esses temores,que não há razão para supormos que o planejadordetermina a renda do indivíduo. Decidir aparticipação de cada indivíduo na renda nacionalenvolve dificuldades políticas e sociais tão evidentesque até o mais inveterado planejador hesitará antesde encarregar qualquer autoridade dessa tarefa.Provavelmente, quem compreende o que isso implicapreferiria limitar o planejamento à produção eempregá-lo apenas para garantir uma “organizaçãoracional da produção”. deixando a distribuição darenda tanto quanto possível a forças impessoais.Embora não se possa dirigir a produção sem influir decerto modo na distribuição, e ainda que nenhumplanejador deseje deixar a distribuição inteiramente àsforças do mercado, é provável que todos elespreferissem limitar-se a fazer a distribuição obedecera certas normas gerais de equidade e justiça, evitando

as desigualdades extremas e estabelecendo umarelação justa entre as remunerações das principaisclasses ou às gradações e diferenciações entreindivíduos e pequenos grupos.

Já vimos que a íntima interdependência de todosos fenômenos econômicos torna difícil deter oplanejamento exatamente no ponto desejado e que,ao impedir que o livre funcionamento do mercado seestenda além de certo limite, o planejador seráforçado a ampliar os seus controles até estesabrangerem todos os aspectos da sociedade. Estasconsiderações econômicas, que explicam por querazão é impossível fazer cessar o controle no pontodesejado, encontram poderoso apoio em certastendências sociais ou políticas cuja força se faz sentircada vez mais com a extensão do planejamento.

À medida que se torna evidente à maioria daspessoas que a situação do indivíduo não édeterminada por forças impessoais, como resultadoda concorrência, mas pela decisão de umaautoridade, mudará necessariamente a atitude de cadaum para com a sua posição na ordem social. Haverásempre desigualdades que parecerão injustas aos queas sofrem decepções e infortúnios imerecidos. Mas

quando essas coisas acontecem numa sociedadeconscientemente dirigida, a maneira como as pessoasreagem é muito diferente daquela como o fazemquando tais desigualdades e infortúnios não resultamde escolha consciente. A desigualdade gerada porforças impessoais é, sem dúvida, melhor suportada, eafeta bem menos a dignidade do indivíduo, do quequando é intencional. No regime de concorrência,não representa desconsideração ou ofensa àdignidade de uma pessoa ser avisado pela direção dafirma de que seus serviços já não são necessários oude que não se lhe pode oferecer emprego melhor. Écerto que, em épocas de desemprego em massa eprolongado, muitos poderão sentir-se assim. Há,porém, outros métodos de impedir essa desgraça,melhores do que o planejamento central; e odesemprego ou a perda de rendimentos que nuncadeixarão de atingir a alguns em qualquer sociedadesão, por certo, menos degradantes quando causadospor infortúnio do que quando deliberadamenteimpostos pela autoridade. Por mais amarga que talexperiência seja, seria muito pior numa sociedadeplanificada. Nesta, caberia à autoridade decidir, nãose precisa de uma pessoa para certo emprego, mas seela pode ter qualquer utilidade e em que medida. Sua

posição na vida seria determinada por outrem.Embora muitos suportem os sofrimentos a que

qualquer um pode estar sujeito, não lhes é fácilaceitar aqueles causados pela decisão da autoridade.Talvez seja desagradável não representar mais queuma peça num mecanismo impessoal; mas éinfinitamente pior quando já não podemos escapar,quando estamos acorrentados a nossa posição e aossuperiores que nos foram designados. Odescontentamento de todos com a própria sortecrescerá inevitavelmente com a consciência de queela resulta das decisões de alguém.

Quando o governo empreende o planejamentotendo a justiça como objetivo, não pode furtar-se àresponsabilidade pelo destino ou pela posição de cadacidadão. Numa sociedade planificada todossaberemos que estamos em melhor ou pior situaçãoque outrem, não em virtude de circunstâncias queninguém controla e que é impossível prever comcerteza, mas porque alguma autoridade assim o quer.E todos os esforços que envidaremos para melhorarnossa situação não visarão a prever da melhormaneira essas circunstâncias sobre as quais nãotemos nenhum controle e a prepararmo-nos para elas;

visarão antes a influenciar em nosso favor aautoridade que detém todo o poder. O pesadelo dospensadores políticos ingleses do século XIX, o estadoem que “não haveria caminho para as honras e ariqueza senão por intermédio do governo”57,alcançaria um grau de realidade nunca imaginado poreles – embora já bastante comum em alguns paísesque, de então para cá, adotaram o regime totalitário.

Assim que o estado assume a tarefa de planejartoda a vida econômica, o problema da posição dosdiferentes indivíduos e grupos torna-seinevitavelmente a questão política predominante.Como só o poder coercitivo do estado decidirá aquem cabe isto ou aquilo, o único poder efetivo edesejável será a participação no exercício dessemesmo poder. Não haverá questão econômica ousocial que não seja também uma questão política, nosentido de que a sua solução dependeráexclusivamente de quem manejar o poder coercitivo,daqueles cujas ideias estiverem predominando.

Creio ter sido o próprio Lênin que introduziu naRússia a famosa expressão “Quem, a Quem?”, com aqual nos primeiros anos do regime soviético o povosintetizava o problema universal de uma sociedade

socialista58. Quem planeja a vida de quem? Quemdirige e domina a quem? Quem determina a posiçãodo indivíduo durante sua existência e quem tem o quelhe cabe determinado por outrem? Estas se tornam asquestões essenciais, que só podem ser decididas pelopoder supremo. Mais recentemente, um pesquisadorpolítico norte-americano ampliou a expressão deLênin, afirmando que o problema de todo governo é“quem recebe o que, quando e como?” De certomodo, isso é verdade. Não se pode contestar quetodo governo exerce influência na posição relativa dasdiferentes pessoas e que, em todos os sistemas, quasenão há aspecto da nossa existência que não sejaatingido pela ação governamental. Na medida em queo governo age, sempre influirá na questão de “quemrecebe o que, quando e como”.

Há, todavia, duas distinções fundamentais a fazer.Em primeiro lugar, é possível tomar medidasconcretas sem saber de que modo elas atingirão cadaindivíduo e, portanto, sem visar a tais efeitosespecíficos. Já discutimos esse ponto. Em segundolugar, é a amplitude das atividades governamentaisque determina se tudo o que um indivíduo recebe emqualquer ocasião depende do governo, ou se ainfluência deste se limita a condicionar se certas

pessoas receberão certas coisas, de certo modo, emcertas ocasiões. Nisto consiste toda a diferença entreum sistema livre e um sistema totalitário. O contrasteentre a sociedade liberal e a sociedade totalmenteplanificada fica patente nos ataques movidos pornazistas e socialistas à “separação artificial daeconomia e da política” e na sua exigência de que apolítica domine a economia.

Essas expressões parecem significar que hoje sepermite às forças econômicas atuar em benefício defins alheios à política adotada pelo governo, etambém que o poder econômico pode ser usado demaneira independente do controle governamental,para objetivos que o governo talvez não aprove. Aalternativa, porém, não é apenas a existência de umpoder único, mas de um poder, o grupo dirigente, quecontrole todos os objetivos humanos e, em especial,detenha autoridade total sobre a posição de cadaindivíduo.

Um governo que assume a direção da atividadeeconômica sem dúvida tem de usar seu poder pararealizar um determinado ideal de justiça distributiva.Mas como poderá usar esse poder, e como o usará defato? Por que princípios se orientará ou deveria

orientar-se? Existe uma solução definida para asinúmeras questões de mérito relativo que surgirão eque terão de ser resolvidas deliberadamente? Há umaescala de valores que possa ser aceita pelas pessoasde bom senso, que justifique uma nova ordemhierárquica da sociedade e atenda às reivindicaçõesde justiça?

Só existe um princípio geral, uma regra simplesque de fato ofereceria uma resposta inequívoca atodas essas perguntas: igualdade, completa e absolutaigualdade de todos os indivíduos em todos osassuntos que estão sujeitos ao controle humano. Seisso fosse considerado desejável pela maioria(independentemente de ser ou não praticável, ou seja,de oferecer incentivos adequados), contribuiria paradar maior clareza à ideia vaga de justiça distributiva epara dar orientação definida ao planejador. Nada,porém, está mais longe da verdade do que a ideia deque os homens em geral consideram desejávelsemelhante igualdade mecânica. Nenhum movimentosocialista que tenha pretendido a igualdade completaconseguiu até hoje apoio substancial. O que osocialismo prometia não era uma distribuiçãoabsolutamente igual, mas uma distribuição mais justae mais equitativa. A única meta a que de fato se visa

não é a igualdade em sentido absoluto, mas uma“igualdade maior”.

Embora esses dois ideais pareçam muitosemelhantes, são diferentes ao extremo no queconcerne ao nosso problema. Ao passo que aigualdade absoluta determinaria com exatidão a tarefado planejador, o desejo de uma igualdade maior éapenas negativo, mera expressão de desagrado emface da situação atual; e enquanto não estivermosdispostos a aprovar cada medida que vise à igualdadecompleta, tal desejo não solucionará quase nenhumadas questões que cumpre ao planejador decidir.

Isso não é um simples jogo de palavras. Estamostratando de uma questão crucial que a semelhançados termos tende a ocultar. Embora o consenso emtorno da igualdade completa solucionasse todos osproblemas de mérito que o planejador tem deresolver, a opção por uma igualdade maior nãosoluciona quase nenhum. Seu teor não vai muitoalém de expressões vagas como “o bem comum” ou“o bem-estar social”. Não nos livra da necessidade dedecidir em cada caso entre os méritos dedeterminados indivíduos ou grupos, e não nos auxilianessa decisão. Limita-se, com efeito, a dizer que

devemos tirar dos ricos o mais que pudermos. Masno que diz respeito à distribuição dos despojos, oproblema continua o mesmo, como se nunca sehouvesse concebido optar por uma “igualdademaior”.

A maioria das pessoas acha difícil admitir ainexistência de padrões morais que nos permitamresolver essas questões - se não perfeitamente, pelomenos de maneira mais satisfatória do que o faz osistema de concorrência. Não temos todos nós, poracaso, noção do que seja um ‘’preço justo” ou um“salário razoável”? Não podemos confiar no fortesenso de justiça do povo. E, mesmo que hoje nãoconcordemos de todo sobre o que é justo ou razoávelnum caso determinado, as ideias populares não seconsolidariam em padrões mais definidos se oshomens tivessem oportunidade de ver realizados osseus ideais?

Infelizmente, tais esperanças têm poucofundamento. Os padrões que possuímos originam-sedo sistema de concorrência em que vivemos, eportanto desapareceriam tão logo este fossesuprimido. O que entendemos por preço justo e porsalário razoável são os preços ou salários usuais, o

retorno que a experiência passada nos levou aesperar, ou o preço e salário que existiriam se nãohouvesse a exploração monopólica. A única exceçãoimportante era a reivindicação do “produto integraldo trabalho” que costumava ser feita pelostrabalhadores, e da qual se originou grande parte dadoutrina socialista. Mas poucos socialistas acreditamhoje que numa sociedade socialista o produto de cadaindústria seria inteiramente partilhado por quem nelatrabalhasse; pois isso significaria que os trabalhadoresdas indústrias de capital intensivo teriam uma rendamuito maior que os trabalhadores das indústrias queempregam pouco capital, o que a maioria dossocialistas acharia bastante injusto. E hoje em diaquase todos reconhecem que essa reivindicação sebaseava numa interpretação errônea dos fatos. Masuma vez rejeitada a reivindicação individual dotrabalhador ao produto integral do “seu” trabalho eestabelecido que o retorno sobre o capital sejadividido entre todos os trabalhadores, o problema decomo dividi-lo suscita a mesma questão básica.

É concebível que o “preço justo” de certamercadoria ou a remuneração “razoável” por umdado serviço pudessem ser determinados de maneiraobjetiva se as quantidades necessárias fossem fixadas

de modo independente. Se estas fossem especificadassem levar em conta o custo, o planejador poderiatentar encontrar o preço ou o salário necessários paraproduzir tais quantidades. Mas o planejador tambémdeve decidir em que quantidade cada mercadoria seráproduzida e, ao fazê-lo, determina qual será o preçojusto ou o salário razoável a pagar. Se ele resolverque a economia precisa de um número menor dearquitetos ou de relojoeiros, e que se pode atender aessa necessidade utilizando o trabalho daqueles queestão dispostos a aceitar uma remuneração inferior, osalário “razoável” será mais baixo. Ao fixar aimportância relativa dos diferentes objetivos, oplanejador também fixa a importância relativa dasdiferentes pessoas e grupos. Visto que não deve trataras pessoas como simples meios, terá de levar emconta esses efeitos e avaliar a importância dasdiferentes finalidades em relação aos resultados dasua decisão – o que significa, no entanto; que terá deexercer um controle direto sobre as condições dosdiferentes indivíduos.

Isso se aplica não só à posição relativa dosindivíduos, mas também a dos diferentes gruposocupacionais. Em geral temos uma grande tendênciaa considerar mais ou menos uniformes os

rendimentos de cada profissão. Mas as diferençasentre os rendimentos, não só do médico ou arquiteto,escritor ou ator cinematográfico, jóquei ou boxeador,de maior ou menor fama, mas também do jardineiroou encanador, alfaiate ou dono de mercadoria bem oumalsucedido, são tão grandes como as que existementre a classe dos proprietários e dos nãoproprietários. E embora houvesse, sem dúvida,alguma tentativa de padronizar essas diferenças pelacriação de categorias, a necessidade de discriminarentre indivíduos continuaria a existir, quer taldiscriminação se fizesse mediante a fixação dosrendimentos individuais, quer pela sua inclusão emcategorias determinadas.

É desnecessário estendermo-nos sobre aprobabilidade de membros de uma sociedade livresubmeterem-se a tal controle – ou de permaneceremlivres, caso o façam. A este respeito, hoje não émenos válido o que John Stuart Mill escreveu háquase um século:

Poder-se-ia admitir uma regra fixa, como a daigualdade, ou a sorte ou uma necessidade externa;mas seria intolerável que um punhado de sereshumanos pesasse todos na balança, dando mais a este

e menos àquele a seu bel-prazer ou segundo opróprio critério de julgamento, a não ser que setratasse de indivíduos considerados super-homens eapoiados em poderes sobrenaturais59.

Enquanto o socialismo é apenas a aspiração de umgrupo limitado e bastante homogêneo, essasdificuldades não conduzem forçosamente a conflitosabertos. Estes só afloram quando se tenta pôr emprática uma política socialista com o apoio dosnumerosos grupos diferentes que compõem a maioriado povo. Então, não tarda a converter-se em questãosuprema a escolha do ideal a ser imposto a todos, e aserviço do qual será colocada a totalidade dosrecursos do país. O planejamento bem-sucedido exigea criação de uma opinião comum sobre os valoresessenciais; é por isso que a restrição da nossaliberdade no que diz respeito às coisas materiaisatinge de modo tão direto nossa liberdade espiritual.

Os socialistas – pais civilizados da progênie bárbarade nossos dias – sempre esperaram resolver esseproblema pela educação. Mas que significa educaçãoneste caso? Por certo já aprendemos que o saber nãopode criar novos valores éticos e que o acúmulo deconhecimentos não leva os homens a terem a mesma

opinião sobre as questões morais suscitadas pelocontrole consciente de todas as relações sociais. Nãose justifica um plano concreto por uma convicçãoracional, mas pela aceitação de uma fé. De fato, ossocialistas foram em toda parte os primeiros areconhecer que a tarefa por eles assumida exigia aaceitação generalizada de uma Weltanschauung (N.do T.: literalmente, “visão de mundo”), comum deum conjunto definido de valores. Foi nessa tentativade produzir um movimento de massas baseado numaúnica concepção do mundo que os socialistas criarama maioria dos instrumentos de doutrinação usadoscom tanta eficácia pelos nazistas e fascistas.

Com efeito, tanto na Alemanha como na Itália,nazistas e fascistas pouco tiveram a inventar. Oscostumes desses novos movimentos políticos queimpregnaram todos os aspectos da vida já tinhamsido introduzidos em ambos os países pelossocialistas. Foram estes os primeiros a pôr em práticaa ideia de um partido político que abrange todas asatividades do indivíduo, do berço ao túmulo, quepretende orientar todas as suas concepções e sedeleita em converter todos os problemas em questõesde Weltanschauung partidária. Falando do movimentosocialista no seu país, declara com orgulho um autor

austríaco que sua feição característica era ter criado“organizações especiais para cada campo de atividadede operários e assalariados em geral”60. Embora ossocialistas austríacos tenham ido talvez mais longe doque outros neste particular, a situação não era muitodiferente nos demais países. Não foram os fascistas,mas os socialistas, que começaram a arregimentar ascrianças desde a mais tenra idade em organizaçõespolíticas para garantir que elas se tornassem bonsproletários. Não foram os fascistas, mas ossocialistas, os primeiros que pensaram em organizaresportes e jogos, futebol e passeios a pé, em clubesdo partido onde os membros não pudessem sercontagiados por outras ideias. Foram os socialistas osprimeiros a insistir em que o membro do partido sedistinguisse dos demais pela maneira de saudar epelas formas de tratamento. Foram eles que, com asua organização de “células” e de dispositivosdestinados à fiscalização permanente da vida privada,criaram o protótipo do partido totalitário. Conceitoscomo Balilla e Hiüerjugend, Dopolavoro e Kraftdurch Freude, uniformes políticos e a estruturaçãomilitar dos partidos, pouco mais são do que imitaçõesde instituições socialistas mais antigas.61

Enquanto, num país, o movimento socialista

estiver intimamente ligado aos interesses de um grupoparticular, em geral constituído pelo operariado dascategorias mais especializadas, será bastante simplescriar uma opinião comum quanto ao status desejáveldos diferentes membros da sociedade. A primeirapreocupação do movimento será elevar o status deum grupo acima do dos outros grupos. O problema,todavia, muda de caráter à medida que, na marchaprogressiva para o socialismo, evidencia-se para oindivíduo que sua renda, e de um modo geral suaposição, são determinadas pelo mecanismo coercitivodo estado e que ele só pode manter ou melhorar essaposição como membro de um grupo organizadocapaz de influenciar ou controlar a máquina estatal.

No conflito entre os vários grupos de pressão, queemerge nesse estágio, não prevalecemnecessariamente os interesses dos grupos mais pobrese mais numerosos. Nem constitui necessariamenteuma vantagem para os partidos socialistas maisantigos, que representavam os interesses de um grupoespecífico, terem sido os primeiros a aparecer eterem moldado toda a sua ideologia de modo a atrairo operariado especializado. O seu próprio êxito, e asua insistência na aceitação da doutrina como umtodo, estão fadados a criar um poderoso movimento

contrário – não um movimento dos capitalistas, masdas classes numerosas e igualmente não proprietárias,cujo status relativo é ameaçado pelo avanço da eliteoperária.

A teoria e a tática socialistas, mesmo quando nãodominadas pelo dogma marxista, têm-se baseadosempre na ideia de uma divisão da sociedade em duasclasses com interesses comuns, porém conflitantes:os capitalistas e os operários. Os socialistasconfiavam no rápido desaparecimento da antigaclasse média e esqueceram por completo a ascensãode uma nova classe média, o incontável exército deescrituramos e datilógrafos, funcionáriosadministrativos e professores, varejistas e pequenosburocratas e as camadas inferiores das profissões.Durante algum tempo, essas classes produzirammuitos dos líderes do movimento trabalhista. Àmedida, porém, que se tornava mais evidente adeterioração do status dessas classes em relação aosoperários, os ideais por que estes se norteavamperderam em grande parte o atrativo que tinham paraaqueles. Embora fossem todos socialistas no sentidode não estarem satisfeitos com o sistema capitalista edesejarem uma distribuição intencional da riqueza deacordo com sua ideia de justiça, tal ideia revelou-se

bem diversa daquela que se achava incorporada àprática dos partidos socialistas mais antigos.

O meio empregado com êxito pelos antigospartidos socialistas para garantir o apoio de umacategoria profissional – a elevação do statuseconômico relativo dessa categoria não pode serusado para conquistar a adesão de todos. Surgirãoforçosamente movimentos socialistas rivais, buscandoo apoio daqueles cujo status relativo foi reduzido. Háuma forte dose de verdade na afirmação corrente deque o fascismo e o nacional-socialismo são umaespécie de socialismo da classe média, como muitosafirmam. Ocorre, porém, que, na Itália e naAlemanha, a população que apoiava esses novosmovimentos já não constituía, do ponto de vistaeconômico, uma classe média. Esse apoiorepresentava, em grande parte; a revolta de uma novaclasse desfavorecida contra a aristocracia trabalhistacriada pelo movimento operário. Não há dúvida deque nenhum fator econômico contribuiu mais para osucesso desses movimentos do que a inveja doprofissional frustrado – do engenheiro ou advogadosaídos da universidade e do “proletariado decolarinho branco” em geral – ao maquinista, aotipógrafo e a outros membros dos sindicatos mais

fortes cuja renda muitas vezes era superior àdaqueles.

Tampouco se pode duvidar de que, em termos derenda monetária, o adepto comum do movimentonazista era, no início desse movimento, mais pobreque o trabalhador sindicalizado ou que um membrodo antigo partido socialista – circunstância exacerbadapelo fato de muitos deles terem visto dias melhores eviverem ainda no ambiente que refletia esse passado.A expressão “luta de classes às avessas”, usada naItália nos anos da ascensão do fascismo, destacavaum aspecto muito importante do movimento. Oconflito entre o fascismo ou o nacional-socialismo eos partidos socialistas mais antigos deve, com efeito,ser considerado, em grande parte, um conflito quefatalmente surge entre facções socialistas rivais. Elesnão diferiam quanto à ideia de que cabia ao estadofixar a posição adequada a cada indivíduo nasociedade. Divergiam profundamente, no entanto,como sempre ocorrerá, acerca de qual seria a posiçãoadequada das diversas classes e grupos.

Os velhos líderes socialistas, que tinham sempreconsiderado seus partidos a vanguarda do futuromovimento geral rumo ao socialismo, não podiam

compreender por que razão, cada vez que seampliava o emprego dos métodos socialistas,voltavase contra eles o ressentimento de classespobres e numerosas. Mas enquanto os velhospartidos socialistas, ou os sindicatos organizados emdeterminados setores da economia, em geral nãohaviam encontrado muita dificuldade em chegar a umacordo para uma negociação conjunta com osempregadores, classes bastante numerosas de outrossetores ficavam marginalizadas. Na opinião destas –que não deixava de ter fundamento –, os setores maisprósperos do movimento trabalhista pertenciam àclasse exploradora e não à explorada62.

O descontentamento da classe média baixa, na qualo fascismo e o nacional-socialismo recrutaram tãogrande número de adeptos, intensificou-se pelo fatode sua educação e preparo os terem levado emmuitos casos a ambicionar posições de mando,considerando-se com direito de pertencer à classedirigente. A geração mais jovem, à qual osensinamentos socialistas haviam incutido o desprezopelo lucro, voltava as costas às posiçõesindependentes que envolviam riscos e acorria emnúmero cada vez maior ao trabalho assalariado queprometia segurança. Exigia, no entanto, uma posição

que lhes proporcionasse a renda e o poder que, a seuver, sua educação justificava. Embora acreditassenuma sociedade organizada, esperava obter nela umlugar muito diferente daquele que parecia oferecer asociedade regida pelo trabalho. Estava disposta aadotar os métodos do antigo socialismo, maspretendia empregá-los a serviço de uma classediferente. O movimento logrou conquistar a adesãode todos aqueles que, embora concordando com ocontrole estatal de toda a atividade econômica,discordavam das finalidades para as quais aaristocracia operária utilizava sua força política.

O novo movimento socialista nasceu com váriasvantagens táticas. O socialismo trabalhistadesenvolvera-se num ambiente democrático e liberal,adaptando a este seus métodos e incorporandomuitos ideais do liberalismo. Seus protagonistas aindaacreditavam que a implantação do socialismoresolveria, por si só, todos os problemas. Por suavez, o fascismo e o nacional-socialismo nasceram daexperiência de uma sociedade cada vez maisplanificada, que ia despertando para o fato de que osocialismo democrático e internacional visava a ideaisincompatíveis. Sua tática desenvolveu-se num mundojá dominado pela política socialista e pelos problemas

que esta suscita. Não tinham ilusões quanto àpossibilidade de uma solução democrática paraproblemas que exigem um consenso muito maior doshomens do que seria razoável esperar.

Não se iludiam pensando que a razão poderiadecidir todas as questões sobre a importância relativados desejos de diferentes pessoas ou grupos,questões geradas pelo planejamento. Tampoucoacreditavam que a fórmula da igualdade oferecesseuma solução. Sabiam que o grupo mais forte, aqueleque arregimentasse um número suficiente de adeptosem favor de uma nova ordem hierárquica dasociedade e oferecesse abertamente privilégios àsclasses a quem se dirigia, poderia conquistar o apoiode todos aqueles que se sentiam decepcionadosporque, depois de lhes ter sido prometida a igualdade,haviam descoberto que só tinham contribuído parafavorecer os interesses de uma classe específica.Acima de tudo, foram bem-sucedidos porqueofereciam uma teoria, ou uma concepção do mundo,que parecia justificar os privilégios por elesprometidos aos seus adeptos.

Rodapé

55 É provável que exageremos habitualmente aimportância dos rendimentos da propriedade comocausa da desigualdade de renda, e, portanto,exageremos também o grau em que as principaisdesigualdades seriam reduzidas pela supressão dessesrendimentos. O pouco que sabemos sobre adistribuição da renda na Rússia Soviética não faz crerque as desigualdades sejam ali muito menosacentuadas do que nas sociedades capitalistas. MaxEastman [The End of Socialism in Russia, 1937, pp.30-4) dá algumas informações fornecidas por fontesoficiais russas, mostrando que as diferenças entre ossalários mais elevados e os mais baixos naquele paíssão da mesma ordem de grandeza (mais ou menos 50para 1) que nos Estados Unidos; e Leon Trotsky, emartigo citado por James Burnham (The ManagerialRevolution, 1941, p. 43), calculava recentemente(em 1939) que “os 11% ou 12% que constituem acamada superior da população soviética percebemhoje, aproximadamente, 50 por cento da rendanacional. Essa diferença é mais acentuada do que nosEstados Unidos, onde a camada superior – 10 porcento da população – percebe cerca de 35 por centoda renda nacional”.56 Eastman, M., em The Reader’s Digest, jul. 1941,

p. 3957 Palavras do jovem Disraeli.58 Muggeridge, M., Winter in Moscow, 1934; Feiler,Arthur. The Experiment of Bolshevism, 1930.59 Mill, V.S. Principles of Political Economy, LivroI, cap. II, § 4.60 Wieser. G. Ein Staat stirbt – Österreich 1934-1938. Paris, 1938. p. 41.61 Os clubes do livro políticos da Inglaterra oferecemum paralelo importante.62 Há doze anos, um dos mais eminentes intelectuaissocialistas da Europa, Hendrick de Man (que depoisdisso, como resultado de uma evolução coerente, fezas pazes com os nazistas), observava que “pelaprimeira vez, desde os inícios do socialismo, ossentimentos anticapitalistas se voltam contra omovimento socialista” (Sozialismus und National-Faszismus, Potsdam, 1931, p. 6).

Capítulo 9

Segurança e Liberdade

“A sociedade inteira se terá convertido numa sófábrica e num só escritório, com igualdade de

trabalho e igualdade de remuneração”. – Lênin(1917)

“Num país em que o único empregador é oestado, oposição significa morte lenta por

inanição. O velho princípio “quem não trabalhanão come” foi substituído por outro: “quem não

obedece não come”. – Leon Trotsky (1937)A segurança econômica, assim como a espúria

“liberdade econômica”, e com mais justiça, é muitasvezes apresentada como condição indispensável daautêntica liberdade. Em certo sentido isso é aomesmo tempo verdadeiro e importante. É raroencontrar independência de espírito ou força decaráter entre aqueles que não confiam na suacapacidade de abrir caminho pelo próprio esforço.Todavia, a ideia de segurança econômica não é

menos vaga e ambígua do que a maioria dos outrosconceitos nesse campo; e por isso, a aprovação geralà reivindicação de segurança pode tornar-se umperigo para a liberdade. Com efeito, quando asegurança é entendida num sentido absoluto, oempenho geral em conquistá-la, ao invés depossibilitar maior liberdade, torna-se a mais graveameaça a esta.

Convém contrapor, de início, as duas espécies desegurança: a segurança limitada, que pode serconquistada para todos e por conseguinte nãoconstitui privilégio mas objeto de legítimasaspirações; e a segurança absoluta, que numasociedade livre não pode ser conquistada para todos eque não deveria ser concedida como um privilégio – anão ser em certos casos especiais, como o dos juízes,em que a independência completa é de supremaimportância. Essas duas espécies de segurança são:em primeiro lugar, a salvaguarda contra gravesprivações físicas, a certeza de que um mínimo, emtermos de meios de sustento, será garantido a todos;e, em segundo lugar, a garantia de um certo padrãode vida, ou da situação relativa de uma pessoa ou umgrupo de pessoas em relação a outras – ou, empoucas palavras, a segurança de uma renda mínima e

a segurança da renda específica que se julga que cadaum merece.

Veremos em breve que essa distinção coincide emgrande parte com a distinção entre a segurança quepode ser concedida a todos, fora do âmbito dosistema de mercado e como suplemento ao que eleproporciona, e a segurança que só pode serconcedida a alguns e unicamente pelo controle ou aabolição do livre mercado. Não há razão para que,numa sociedade que atingiu um nível geral de riquezacomo o da nossa, a primeira forma de segurança nãoseja garantida a todos sem que isso ponha em risco aliberdade geral. Determinar que padrão se deveriaassegurar a todos é problema de difícil solução; emparticular, é difícil decidir se aqueles que dependemda comunidade deveriam gozar indefinidamente asmesmas liberdades que os demais63. O tratamentoirrefletido dessas questões poderia criar problemaspolíticos graves e mesmo perigosos. Mas não hádúvida de que, no tocante a alimentação, roupas ehabitação, é possível garantir a todos um mínimosuficiente para conservar a saúde e a capacidade detrabalho. Na realidade, uma parte considerável dapopulação inglesa há muito conquistou essa espéciede segurança.

Tampouco se justifica que o estado deixe deauxiliar os indivíduos provendo a eventualidadescomuns contra as quais, dada a sua naturezaimprevisível, poucos se podem precaver de formaadequada. Nos casos em que a provisão deassistência normalmente não enfraquece nem odesejo de evitar tais calamidades nem o esforço deanular suas consequências (nas doenças e acidentes,por exemplo) – quando se trata, em suma, de riscosque podem ter cobertura de seguro –, é bastantejustificável que o estado auxilie na organização de umesquema abrangente de previdência social. Os quedesejam conservar o sistema de concorrência e osque pretendem substituí-lo por algo diferente poderãodiscordar quanto aos detalhes de tal esquema; poroutro lado, sob o nome de previdência social, épossível introduzir medidas que contribuirão paratornar a concorrência bastante ineficaz. Em princípio,porém, não há incompatibilidade entre o estadooferecer maior segurança auxiliando na organizaçãodo sistema de previdência social e a preservação daliberdade individual. À mesma categoria pertencetambém o aumento de segurança proporcionado peloestado na forma de assistência às vítimas decatástrofes naturais, como terremotos, inundações

etc. Sempre que a ação pública é capaz de mitigardesastres dos quais o indivíduo não se pode defendere contra cujas consequências não pode precaver-se,tal ação deve, indubitavelmente, ser empreendida.

Há por fim um problema de suma importância:combater as flutuações gerais da atividade econômicae os surtos de desemprego em grande escala quecostumam acompanhá-las. Esta é, por certo, uma dasquestões mais graves e prementes da nossa época.Mas, embora a sua solução requeira um cuidadosoplanejamento, no bom sentido da palavra, não exige –ou, pelo menos, não precisa exigir – o tipo deplanejamento que, segundo seus defensores, devesubstituir o sistema de mercado. Muitos economistas,com efeito, esperam encontrar o recurso definitivo nocampo da política monetária, o que não implicariaincompatibilidade sequer com o liberalismo do séculoXIX. Outros, é claro, acreditam que um êxito real sóserá obtido mediante a execução rigorosa de umvasto programa de obras públicas. Isso poderiaprovocar restrições muito mais graves na esfera daconcorrência e, ao fazer experiências desse gênero,teremos de usar de extrema cautela para evitar quetoda a atividade econômica venha a depender cadavez mais da alocação e do volume dos gastos

governamentais. Mas não é esse o único meio, nem,na minha opinião, o mais promissor, de enfrentar amais grave ameaça à segurança econômica. Dequalquer modo, os esforços necessários a garantir aproteção contra tais flutuações não conduzem àqueleplanejamento que constitui tão grande ameaça ànossa liberdade.

O planejamento que exerce efeito tão insidiososobre a liberdade é aquele que visa a uma segurançade outra espécie. É o planejamento que se destina aproteger indivíduos ou grupos contra a redução desuas rendas (redução que, embora imerecida, ocorrediariamente numa sociedade competitiva), contraperdas que impõem duras privações, sem justificaçãomoral, e que, contudo, são inseparáveis do sistema deconcorrência. A reivindicação desse tipo de segurançaé, pois, um outro aspecto da exigência de uma justaremuneração, proporcional aos méritos subjetivos enão aos resultados objetivos do esforço individual.Essa espécie de segurança ou justiça não parececonciliável com a livre escolha da ocupação.

Em qualquer sistema no qual a distribuição dosindivíduos entre as várias ocupações e os diferentessetores da economia resulte da escolha individual, é

necessário que a remuneração em tais setorescorresponda à utilidade dos indivíduos para os outrosmembros da sociedade, ainda que essa utilidade nãoseja proporcional ao mérito subjetivo. Embora osresultados obtidos correspondam com frequência aesforços e intenções, isso não se aplica a qualquerforma de sociedade em todas as circunstâncias. Talnão sucederá, em particular, nos muitos casos em quea utilidade de algum ofício ou habilidade especial émodificada por acontecimentos imprevisíveis. Todosnós conhecemos a trágica situação do homemaltamente treinado cuja especialidade, adquirida comesforço, perde de súbito todo o valor por causa dealguma invenção muito benéfica para o restante dasociedade. O último século está repleto de exemplosdessa espécie, alguns deles atingindo ao mesmotempo centenas de milhares de pessoas.

O fato de um homem vir a sofrer grande reduçãodos rendimentos e amarga frustração de todas as suasesperanças sem por isso ter sido responsável, eapesar de sua dedicação e de uma excepcionalhabilidade, indubitavelmente ofende o nosso senso dejustiça. As reivindicações das pessoas assimprejudicadas de que o estado intervenha em seu favora fim de salvaguardar-lhes as legítimas expectativas

conquistarão por certo a simpatia e o apoio popular.A aprovação geral de tais reivindicações fez com que,na maioria dos países, os governos decidissem agir,não só no sentido de amparar as possíveis vítimas detais dificuldades e privações, mas também no deassegurar-lhes o recebimento de seus rendimentosanteriores e protegê-las contra as vicissitudes domercado.64

Contudo, para que a escolha das ocupações sejalivre, a garantia de uma determinada renda não podeser concedida a todos. E se for concedida a algunsprivilegiados, haverá prejuízo para outros, cujasegurança será, ipso facto, diminuída. É fácildemonstrar que a garantia de uma renda invariável sópoderá ser concedida a todos pela abolição total daliberdade de escolha da profissão. E contudo, emboraessa garantia geral de expectativas legítimas sejamuitas vezes considerada o ideal a ser visado, não éperseguida com afinco. O que ocorre constantementeé a concessão parcial dessa espécie de segurança aeste ou àquele grupo, do que decorre um aumentoconstante da insegurança daqueles sobre os quaisrecai o ônus. Não admira que, em consequência,aumente também de modo contínuo o valor atribuídoao privilégio da segurança, tornando-se mais e mais

premente a sua exigência, até que por fim nenhumpreço, nem o da própria liberdade, pareça excessivo.

Se se protegessem de imerecidas perdas aquelescuja utilidade é reduzida por circunstâncias que elesmesmos não poderiam controlar ou prever, e se, poroutro lado, se impedisse de auferir vantagensimerecidas àqueles cuja utilidade aumentou emfunção de circunstâncias também incontroláveis eimprevisíveis, a remuneração deixaria em breve deter qualquer relação com a verdadeira utilidade.Passaria a depender da opinião de uma autoridadesobre o que cada pessoa deveria ter feito ou previsto,e sobre a validade de suas intenções. Tais decisõesnão deixariam de ser, em grande medida, arbitrárias.Como consequência necessária, a aplicação doprincípio faria com que pessoas que realizam omesmo trabalho recebessem remuneraçõesdiferentes. As diferenças de remuneração deixariam,assim, de oferecer um estímulo adequado para que osindivíduos empreendessem as mudanças socialmentedesejáveis, não sendo sequer possível aosinteressados decidir se determinada mudançacompensaria o esforço despendido para levá-la aefeito.

Se, porém, as alterações na distribuição dosindivíduos entre as várias ocupações – necessidadeconstante em qualquer sociedade – já não se podemproduzir mediante “recompensas” e “penalidades”expressas em dinheiro (as quais não têm nenhumarelação necessária com o mérito subjetivo), deverãoser efetuadas por meio de ordens diretas. Quando arenda de uma pessoa é garantida, não se lhe podepermitir que permaneça no emprego unicamenteporque este lhe agrada, nem que escolha qualqueroutro pelo qual tenha preferência. Como o ganho oua perda não dependem do fato de o indivíduo optarpor permanecer ou não no mesmo emprego, aescolha terá de ser feita por aqueles que controlam adistribuição da renda disponível.

A questão dos estímulos adequados, que surgenesse contexto, é em geral analisada como se setratasse basicamente de as pessoas estarem ou nãodispostas a se esforçarem ao máximo. Mas, emboraisso tenha a sua importância, não constitui todo oproblema, nem mesmo o seu aspecto mais relevante.Não se trata apenas de fazer com que o esforço sejacompensador para que cada um dê o melhor de si. Omais importante é que, se quisermos deixar a escolhaao indivíduo, se se espera que ele esteja em

condições de julgar o que tem de ser feito, é precisoproporcionar-lhe um padrão simples de julgamentoque lhe permita medir a importância social dasdiferentes ocupações. Mesmo com a maior boavontade, seria impossível a qualquer pessoa fazeruma escolha inteligente entre várias alternativas, se asvantagens que estas oferecem não tivessem relaçãocom sua utilidade social. Para saber se, em resultadode certa mudança, um indivíduo deveria abandonaruma profissão e um ambiente ao qual se afeiçoou etrocá-los por outros, é necessário que a alteração dosvalores relativos dessas ocupações para a sociedadeseja expressa nas remunerações que oferecem.

O problema reveste-se de importância ainda maiorporque, no mundo que conhecemos, torna-seimprovável que um indivíduo dê o melhor de si pormuito tempo, a menos que seu interesse estejadiretamente envolvido. A maioria das pessoasnecessita, em geral, de alguma pressão externa parase esforçar ao máximo. Assim, o problema dosincentivos é bastante real, tanto na esfera do trabalhocomum como na das atividades gerenciais. Aaplicação da engenharia social a toda uma nação – e éisto o que significa planejamento – “gera problemasde disciplina difíceis de resolver”, como o percebeu

com clareza um técnico americano com grandeexperiência em planejamento governamental.

Para realizar um trabalho de organização [explicaele], é necessário que este se desenvolvaparalelamente a uma área bastante vasta de atividadeseconômicas não planejadas. Deve haver uma reservana qual se possam buscar trabalhadores, e quandoum trabalhador é despedido deve desaparecerdaquele posto e da folha de pagamentos. Na ausênciadessa reserva livre de mão-de-obra, não se poderámanter a disciplina sem castigos corporais, como notrabalho escravo65.

No campo do trabalho gerencial, o problema dassanções contra a negligência surge sob formadiferente mas não menos grave. Como se observoucom propriedade, enquanto na economia baseada naconcorrência o último recurso é o juiz, numaeconomia dirigida a sanção última é o verdugo66. Opoder que será preciso conferir ao gerente de umafábrica será sempre considerável. Mas, como no casodo trabalhador, a posição e a renda do administradornum sistema planificado também não poderãodepender somente do êxito ou do fracasso das tarefassob sua responsabilidade. Visto que não lhe cabem

nem o risco nem os lucros, o fator decisivo não seráo seu julgamento pessoal, mas a conformidade desuas ações a uma regra estabelecida. Um engano queele “deveria” ter evitado não é assunto apenas seu: éum crime contra a comunidade e como tal deve serencarado. Enquanto se mantiver no caminho segurodo dever objetivamente determinado, sua rendaestará mais garantida que a do empresário capitalista,mas o perigo que o ameça em caso de fracasso é piorque o da bancarrota. Poderá gozar de garantiaeconômica enquanto satisfizer seus superiores, masessa garantia lhe custará a insegurança com relação àliberdade e à vida.

O conflito com o qual temos que lidar é, semdúvida, um conflito fundamental entre dois tiposirreconciliáveis de organização social que, de acordocom as formas mais características sob as quais seapresentam, foram denominados frequentemente desociedade comercial e sociedade militar. Talvez ostermos não sejam adequados, por ressaltaremaspectos não-essenciais, tornando difícil perceber queestamos diante de um dilema real, sem uma terceiraalternativa. Ou tanto a escolha como o risco recaemsobre o indivíduo, ou ele é eximido de ambos. Narealidade, o exército, entre as instituições conhecidas,

é o que mais se aproxima do segundo tipo deorganização, onde tanto o trabalho como otrabalhador são designados pela autoridade e onde, seos meios disponíveis escassearem, todos serãosubmetidos ao mesmo regime de ração reduzida.Esse é o único sistema que pode conceder aoindivíduo plena segurança econômica; mediante suaextensão a toda a sociedade, essa segurança poderáser proporcionada a todos. Tal segurança é, contudo,inseparável das restrições à liberdade e da ordemhierárquica da vida militar – é a segurança dosquartéis.

É possível, naturalmente, com base nesseprincípio, organizar alguns setores de uma sociedadelivre quanto aos demais aspectos, e não há por queessa forma de vida, com as restrições que sem dúvidatraz à liberdade individual, não seja facultada aos quea preferem. Com efeito, em certa medida o trabalhomilitarizado voluntário poderia constituir para oestado a melhor maneira de proporcionar a certeza deum emprego e de uma renda mínima para todos. Seas propostas desse gênero se revelaram tão poucoaceitáveis até agora é porque, para renunciarem àliberdade integral em troca de segurança, as pessoasdispostas a abrir mão dessa liberdade exigiram

sempre que esta fosse também subtraída àqueles nãoinclinados a abandoná-la. É difícil justificar talexigência.

Todavia, o tipo militar de organização queconhecemos só nos dá uma ideia muito inadequadado que viria a ser se fosse aplicado a toda asociedade. Enquanto apenas uma parte da sociedadeé organizada em moldes militares, a falta de liberdadedos membros da organização militar é mitigada pelofato de ainda existir uma esfera livre para onde sepoderão transferir caso as restrições se tornemdemasiado penosas. Para termos uma ideia do queseria a sociedade se fosse organizada como umaúnica e imensa fábrica de acordo com o ideal que temseduzido tantos socialistas, basta-nos pensar na antigaEsparta ou considerar a moderna Alemanha que,após caminhar nesse sentido durante duas ou trêsgerações, acha-se agora tão próxima dessa meta.

Numa sociedade afeita à liberdade, não é provávelque muitos se disponham a comprar a segurança a talpreço. Mas a política governamental hoje adotada emtoda parte, de conceder o privilégio da segurança oraa este grupo, ora àquele, vai rapidamente criandocondições em que o anseio de segurança tende a

sobrepujar o amor à liberdade. Isso porque, cada vezque se confere segurança completa a um grupo,aumenta a insegurança dos demais. Se garantirmos aalguns uma fatia fixa de um bolo de tamanhovariável, a parte deixada aos outros sofrerá maioroscilação, proporcionalmente ao tamanho do todo. Eo aspecto essencial da segurança oferecida pelosistema de concorrência – a grande variedade deoportunidades – torna-se cada vez mais restrito.

No sistema de mercado, a segurança só pode serconcedida a determinados grupos mediante o gênerode planejamento conhecido como “restricionismo”(no qual, entretanto, está incluído quase todo oplanejamento posto em prática nos nossos dias). O“controle”, isto é, a limitação da produção de modoque os preços assegurem um ganho “adequado”, é oúnico meio pelo qual se pode garantir um certorendimento aos produtores numa economia demercado. Isso, porém, envolve necessariamente umaredução de oportunidades para os demais. Para que oprodutor, seja ele dono de empresa ou operário,receba proteção contra a concorrência de preços maisbaixos, outros, em pior situação, serão impedidos departicipar da prosperidade relativamente maior dasindústrias controladas. Qualquer restrição à liberdade

de ingresso numa profissão reduz a segurança detodos os que se acham fora dela. E, à medida queaumenta o número daqueles cujo rendimento éassegurado dessa forma, restringe-se o campo dasoportunidades alternativas abertas aos que sofremuma perda de rendimento – enquanto, para os quesão atingidos por qualquer mudança, diminui domesmo modo a possibilidade de evitar uma reduçãofatal da sua renda. E se, como vem acontecendo comfrequência, em cada categoria em que ocorre umamelhora de condições permite-se que seus membrosexcluam os demais para garantir a si mesmos o ganhointegral sob a forma de salários ou lucros maiselevados, os que exercem profissões cuja demandadiminuiu não têm para onde se voltar, e a cadamudança produz-se grande número dedesempregados. Não há dúvida de que foi em grandeparte por causa da busca de segurança por essesmeios nas últimas décadas que aumentou a tal pontoo desemprego e, por conseguinte, a insegurança paravastos setores da população.

Na Inglaterra, tais restrições – em especial as queinfluem sobre as camadas médias da sociedade – sóassumiram grandes proporções em épocarelativamente recente, e mal podemos ainda

compreender-lhes todas as consequências. Numasociedade em que a mobilidade ficou tão reduzidacomo resultado dessas restrições, é de absoluta faltade perspectiva a situação daqueles que se encontramfora do âmbito das ocupações protegidas, e umabismo os separa dos privilegiados possuidores deempregos a quem a proteção contra a concorrênciatornou desnecessário fazer concessões para dar lugaraos que estão de fora. Tal situação, na verdade, sópode ser avaliada por aqueles que a viveram. Não setrata de os privilegiados cederem o seu lugar, masapenas de partilharem a desventura comum mediantecerta redução da própria renda, ou, muitas vezes,simplesmente mediante algum sacrifício das suasperspectivas de melhora. A proteção do estado ao seu“padrão de vida”, ao “preço razoável” ou à “rendaprofissional”, que julgam um direito, impede que issoaconteça.

Em consequência, em vez de preços, salários erendimentos individuais oscilarem, são agora oemprego e a produção que ficam sujeitos a violentasflutuações. Nunca houve pior e mais cruel exploraçãode uma classe por outra do que a exercida sobre osmembros mais fracos ou menos afortunados de umacategoria produtora pelos que já desfrutam de

posições estáveis, e isso foi possibilitado pela“regulamentação” da concorrência. Poucas coisastêm tido efeito tão pernicioso quanto o ideal da“estabilização” de certos preços (ou salários), pois,embora ela garanta a renda de alguns, torna cada vezmais precária a posição dos demais.

Assim, quanto mais nos esforçamos paraproporcionar completa segurança interferindo nosistema de mercado, tanto maior se torna ainsegurança; e, o que é pior, maior o contraste entre asegurança que recebem os privilegiados e a crescenteinsegurança dos menos favorecidos. E quanto mais asegurança se converte num privilégio, e quanto maioro perigo para os que dela são excluídos, mais será elavalorizada, À medida que o número dos privilegiadosaumenta, e com ele o hiato entre a sua segurança e ainsegurança dos demais, vai surgindo uma escalacompletamente nova de valores sociais. Já não é aindependência, mas a segurança, que conferedistinção e status; o que faz de um homem um “bompartido” é antes o direito a uma pensão garantida doque a confiança em sua capacidade – ao passo que ainsegurança se converte numa terrível condição depária, à qual estão condenados para sempre aqueles aquem na juventude foi negado ingresso no porto

seguro de uma posição assalariada.Esse empenho geral em conquistar a segurança por

meio de medidas restritivas, tolerado ou apoiado peloestado, produziu com o correr do tempo umatransformação progressiva da sociedade –transformação na qual, como em tantas outras coisas,a Alemanha se pôs à frente dos outros países, que lheseguiram o exemplo. Essa evolução foi acelerada poroutro efeito das doutrinas socialistas: o deliberadomenosprezo de todas as atividades que envolvemrisco econômico e a condenação moral dos lucrosque compensam os riscos assumidos, mas que sópoucos podem obter. Não podemos censurar osnossos jovens quando preferem o emprego seguro eassalariado ao risco do livre empreendimento, poisdesde a mais tenra idade ouviram falar daquele comode uma ocupação superior, mais altruísta e maisdesinteressada. A geração de hoje cresceu nummundo em que, na escola e na imprensa, o espíritoda livre iniciativa é apresentado como indigno e olucro como imoral, onde se considera uma exploraçãodar emprego a cem pessoas, ao passo que chefiar omesmo número de funcionários públicos é umaocupação honrosa. As pessoas mais velhas poderãoconsiderar exagerada essa imagem da situação atual,

mas a experiência diária do professor de universidadenão deixa dúvidas de que, como resultado dapropaganda anticapitalista, a alteração dos valores jáestá muito adiantada em relação às mudanças que atéagora se têm verificado nas instituições deste país.Resta ver se, transformando as nossas instituiçõespara atender às novas reivindicações, nãodestruiremos inadvertidamente valores que aindareputamos superiores.

A mudança estrutural da sociedade, implícita navitória do ideal de segurança sobre o deindependência, é ilustrada com clareza por umacomparação do que, dez ou vinte anos atrás, ainda sepodia definir como o tipo inglês e alemão desociedade. Por maior que possa ter sido a influênciado exército na Alemanha, é grave erro atribuirsobretudo a essa influência o que os ingleseschamavam o caráter “militar” da sociedadegermânica. A diferença era muito mais profunda doque seria possível explicar com base nesseargumento; os atributos peculiares à sociedade alemãmanifestavam-se tanto em ambientes nos quais ainfluência propriamente militar era insignificante,quanto naqueles em que era bastante acentuada. Oque conferia à sociedade germânica seu caráter

peculiar não era tanto o fato de que ali havia de modoquase permanente uma parcela maior da populaçãoorganizada para a guerra do que nos demais países;era o fato de o mesmo tipo de organização ser usadopara muitos outros propósitos. Na Alemanha, mais doque em qualquer outra nação, grande parte da vidacivil era deliberadamente organizada de cima parabaixo e considerável número de cidadãos não sejulgavam independentes, mas funcionários dogoverno.

Havia muito o país se tornara – e disso seorgulhavam os alemães – um Beamtenstaat, ondenão só na administração civil propriamente dita, mastambém em quase todas as esferas, o rendimento e aposição social eram determinados e garantidos poralguma autoridade.

Não seria fácil extirpar pela força o espírito daliberdade em qualquer país. No entanto, seria difícilum povo poder fazer face ao processo pelo qual esseespírito foi aos poucos sufocado na Alemanha. Numasociedade em que o indivíduo conquista posição ehonras quase exclusivamente em função de ser umservidor assalariado do governo; em que ocumprimento do dever prescrito é considerado mais

louvável do que a escolha do próprio campo deatividade; em que todas as ocupações que nãoconferem um lugar na hierarquia oficial ou o direito aum rendimento fixo são julgadas inferiores e até certoponto aviltantes – seria demais esperar que a maioriaprefira por muito tempo a liberdade à segurança. Equando só se pode optar entre a segurança numaposição de dependência e a extrema precariedadenuma situação em que tanto o fracasso com o êxitosão desprezados, poucos resistirão à tentação dasegurança ao preço da liberdade. Tendo-se chegado aesse ponto, a liberdade torna-se quase um objeto deescárnio, pois só pode ser alcançada com o sacrifíciode grande parte das boas coisas da vida. Nessascondições, não surpreende que um número cada vezmaior de pessoas se convença de que sem segurançaeconômica a liberdade “não vale a pena” e sedisponha a sacrificar esta em troca daquela. Éinquietante, porém, constatar que o professor HaroldLaski emprega, nesse país, exatamente o mesmoargumento que contribuiu, talvez mais do quequalquer outro, para levar o povo alemão a sacrificara sua liberdade.67

Não há dúvida de que a segurança adequadacontra as privações, bem como a redução das causas

evitáveis do fracasso e do descontentamento que eleacarreta, deverão constituir objetivos importantes dapolítica de governo. Mas, para que essas tentativassejam bem-sucedidas e não destruam a liberdadeindividual, a segurança deve ser proporcionadaparalelamente ao mercado, deixando que aconcorrência funcione sem obstáculos. Certa medidade segurança é indispensável à preservação daliberdade, porque a maioria dos homens só aceita debom grado o risco inevitavelmente implícito naliberdade se este não for excessivo. Mas, emboranunca devamos perder de vista essa verdade, nada émais funesto do que o hábito, hoje comum entre oslíderes intelectuais, de exaltar a segurança emdetrimento da liberdade. Urge reaprendermos aencarar o fato de que a liberdade tem o seu preço ede que, como indivíduos, devemos estar prontos afazer grandes sacrifícios materiais a fim de conservá-la. Para tanto, faz-se mister readquirir a convicçãoem que se tem baseado o regime de liberdade nospaíses anglo-saxônios, e que Benjamin Franklinexpressou numa frase aplicável a todos nós comoindivíduos não menos que como nações: “aquelesque se dispõem a renunciar à liberdade essencial emtroca de uma pequena segurança temporária não

merecem liberdade nem segurança”.

Rodapé

63 Graves problemas de relações internacionais, cujaimportância não deve ser descartada, podem surgir sea mera cidadania num país confere o direito a umpadrão de vida mais alto que em outros.64 O professor W. H. Hutt, num livro que mereceestudo cuidadoso (Plan for Reconstruction, 1943),apresenta sugestões muito interessantes sobre asmaneiras por que se poderiam mitigar taisdificuldades numa sociedade liberal.65 Coyle, D. C. The Twilight of National Planning.Harpers’ Magazine, out. 1935, p. 558.66 Roepke, W. Die Gesellchaftskrisis derGegenwart, Zurique, 1942, p. 172.67 Laski, H. J. Liberty in the Modern State. Pclican,1937, p. 51: “Aqueles que conhecem a vida cotidianados pobres, sempre obcecada pelo pressentimento deum desastre iminente, seu anseio desesperado de umabeleza que sempre lhes foge, compreenderão que,sem segurança econômica, não vale a pena ter

liberdade”.

CAPITULO 10

POR QUE OS PIORES CHEGAM AO PODER

“Todo poder corrompe, e o poder absolutocorrompe de maneira absoluta”. – Lord ActonAnalisaremos agora uma ideia que, se de um lado

serve de consolo para muitos que consideraminevitável o advento do totalitarismo, de outroenfraquece sobremodo a resistência dos que a ele seoporiam com todas as forças se lhe compreendessema natureza. Trata-se da ideia de que os aspectos maisrepelentes dos regimes totalitários se devem àcasualidade histórica de esses regimes terem sidoestabelecidos por canalhas e bandidos. Se, naAlemanha, a criação de um regime totalitário levou aopoder os Streichers e Killingers, os Leys e Heines, osHimmlers e Heydrichs – argumenta-se –, isso semdúvida poderá provar a perversidade do caráteralemão, mas não que a ascensão de tais homens sejaconsequência inevitável de um regime totalitário. Porque não seria possível que o mesmo sistema, senecessário à consecução de objetivos importantes,fosse dirigido por indivíduos honestos para o bem dacomunidade?

Não devemos iludir-nos supondo que todas as

pessoas de bem são forçosamente democratas oudesejam fazer parte do governo. Muitos prefeririamconfiá-lo a alguém que reputam mais competente.Embora isso possa ser importante, não há erro oudesonra em aprovar uma ditadura dos bons. Ototalitarismo, ouve-se dizer, é um sistema poderosotanto para o bem como para o mal, e o fim para oqual é usado depende inteiramente dos ditadores.Aqueles que julgam não ser o sistema que cumprerecear, e sim o perigo de que ele venha a ser dirigidopor maus indivíduos, poderiam até ser tentados aprevenir esse perigo fazendo com que ele fosseestabelecido antes por homens de bem.

Não há dúvida de que um sistema “fascista” inglêsou americano diferiria muito dos modelos italiano oualemão; por certo, se a transição fosse efetuada semviolência, poderíamos ter esperanças de que surgisseentre nós um líder melhor. E, se eu tivesse de viversob um regime fascista, preferiria indubitavelmenteum que fosse dirigido por ingleses ou americanos aqualquer outro. Entretanto, isso não quer dizer que,julgado pelos padrões atuais, um sistema fascistainglês viesse no fim a revelar-se muito diferente oumuito menos intolerável do que seus protótipos. Hárazões de sobra para se crer que os aspectos que

consideramos mais detestáveis nos sistemastotalitários existentes não são subprodutos acidentaismas fenômenos que, cedo ou tarde, o totalitarismoproduzirá inevitavelmente. Assim como o estadistademocrata que se propõe a planejar a vida econômicanão tardará a defrontar-se com o dilema de assumirpoderes ditatoriais ou abandonar seu plano, tambémo ditador totalitário logo teria de escolher entre ofracasso e o desprezo à moral comum. É por essarazão que os homens inescrupulosos têm maisprobabilidades de êxito numa sociedade que tende aototalitarismo. Quem não percebe essa verdade aindanão mediu toda a vastidão do abismo que separa ototalitarismo dos regimes liberais, a profundadiferença entre a atmosfera moral do coletivismo e acivilização ocidental, essencialmente individualista.

O “embasamento moral do coletivismo” foi, éclaro, muito debatido no passado; mas o que nosinteressa em nosso estudo não é sua base moral e simseus resultados morais. Nos debates habituais sobreos aspectos éticos do coletivismo pergunta-se se esteé exigido pelas convicções morais existentes, ou sedevem existir certas convicções morais para que ocoletivismo produza os resultados esperados. Aquestão que estudaremos, entretanto, é: que atitudes

morais serão geradas por uma organização coletivistada sociedade, e por que ideias morais tal sociedadetenderá a ser dirigida? A interação da moral e dasinstituições poderá fazer com que a ética resultantedo coletivismo seja totalmente diversa dos ideaismorais que levam a exigir a implantação dessemesmo coletivismo. Embora nos inclinemos a pensarque, como o desejo de um sistema coletivista nascede elevados motivos morais, em tal sistema sedesenvolverão as mais altas virtudes, não existe, narealidade, nenhuma razão para que qualquer sistemaestimule necessariamente aquelas atitudes queconcorrem para o fim a que ele se destina. As ideiasmorais dominantes dependerão em parte dasqualidades que conduzem os indivíduos ao sucessonum sistema coletivista ou totalitário e, em parte, dasexigências do mecanismo totalitário.

Devemos agora voltar por um momento ao estágioque precede a supressão das instituições democráticase a criação de um regime totalitário. Nesse estágio, aexigência geral de uma ação governamental rápida edecidida torna-se o elemento dominante da situação,enquanto a insatisfação com o curso lento etrabalhoso dos processos democráticos faz com que oobjetivo seja a ação em si. É então que o homem ou

o partido que parecem bastante fortes ou resolutospara “fazerem as coisas funcionar’’ exercem maiorsedução. “Forte”, neste sentido, não indica apenasuma maioria numérica, pois o povo está insatisfeitojustamente com a ineficácia das maioriasparlamentares. O que as pessoas procuram é umhomem que goze de sólido apoio, de modo a inspirarconfiança quanto à sua capacidade de realizar o quepretende. E aqui entra em cena o novo tipo departido, organizado em moldes militares.

Nos países da Europa Central, os partidossocialistas já haviam familiarizado as massas comorganizações políticas de caráter semimilitar, quetinham por objetivo absorver tanto quanto possível avida privada dos seus membros. Para conferir umpoder esmagador a um grupo, bastava estender umpouco mais o mesmo princípio, buscando a força nãono imenso número de votos garantido em eleiçõesocasionais, mas no apoio absoluto e irrestrito de umgrupo menor, porém perfeitamente organizado. Paraconseguir impor um regime totalitário a toda umanação, o líder deve em primeiro lugar reunir à suavolta um grupo disposto a submeter-sevoluntariamente à disciplina totalitária que elepretende aplicar aos outros pela força.

Embora os partidos socialistas tivessem poderpolítico suficiente para obter o que desejassem, desdeque resolvessem empregar a força, relutaram emfazê-lo. Sem o saber, tinham assumido uma tarefaque só poderia ser executada por homensimplacáveis, prontos a desprezar as barreiras damoral reinante. Muitos reformadores sociaisaprenderam, no passado, que o socialismo só podeser posto em prática por métodos que seriamcondenados pela maioria dos socialistas.

Os velhos partidos socialistas sentiam-se inibidospor seus ideais democráticos; não possuíam ainsensibilidade necessária à execução da tarefa poreles escolhida. É importante notar que, tanto naAlemanha como na Itália, o êxito do fascismo foiprecedido pela recusa dos partidos socialistas aassumir as responsabilidades do governo. Repugnou-lhes empregar os métodos que eles próprios haviamapontado. Ainda esperavam pelo milagre de umacordo da maioria em torno de um plano especialpara a organização de toda a sociedade. Outros jáhaviam aprendido que, numa sociedade planificada,não se trata mais de saber sobre o que concorda amaioria do povo, mas qual é o maior grupo cujosmembros encontraram um grau de acordo suficiente

para tornar possível a direção unificada de todos osassuntos públicos; ou, caso não exista nenhum grupobastante numeroso para impor suas ideias, de queforma e por quem ele pode ser criado.

Há três razões principais para que um gruponumeroso, forte e de ideias bastante homogêneas nãotenda a ser constituído pelos melhores e sim pelospiores elementos de qualquer sociedade. De acordocom os padrões hoje aceitos, os princípios quepresidiriam à seleção de tal grupo seriam quaseinteiramente negativos.

Em primeiro lugar, é provavelmente certo que, demodo geral, quanto mais elevada a educação e ainteligência dos indivíduos, tanto mais se diferenciamos seus gostos e opiniões e menor é a possibilidade deconcordarem sobre determinada hierarquia devalores. Disso resulta que, se quisermos encontrarum alto grau de uniformidade e semelhança depontos de vista, teremos de descer às camadas emque os padrões morais e intelectuais são inferiores eprevalecem os instintos mais primitivos e “comuns”.Isso não significa que a maioria do povo tenhapadrões morais baixos; significa apenas que o grupomais amplo cujo valores são semelhantes é

constituído por indivíduos que possuem padrõesinferiores. É, por assim dizer, o mínimo denominadorcomum que une o maior número de homens. Quandose deseja um grupo numeroso e bastante forte paraimpor aos demais suas ideias sobre os valores davida, jamais serão aqueles que possuem gostosaltamente diferenciados e desenvolvidos quesustentarão pela força do número os seus própriosideais, mas os que formam a “massa” no sentidopejorativo do termo, os menos originais e menosindependentes.

Se, contudo, um ditador em potencial tivesse decontar apenas com aqueles cujos instintos simples eprimitivos são muito semelhantes, o número destesnão daria peso suficiente às suas pretensões. Seriapreciso aumentar-lhes o número, convertendo outrosao mesmo credo simples.

A esta altura entra em jogo o segundo princípionegativo da seleção: tal indivíduo conseguirá o apoiodos dóceis e dos simplórios, que não têm fortesconvicções próprias mas estão prontos a aceitar umsistema de valores previamente elaborado, contandoque este lhes seja apregoado com bastante estrépito einsistência.

Serão, assim, aqueles cujas ideias vagas eimperfeitas se deixam influenciar com facilidade,cujas paixões e emoções não é difícil despertar, queengrossarão as fileiras do partido totalitário.

O terceiro e talvez mais importante elementonegativo da seleção está relacionado com o esforçodo demagogo hábil por criar um grupo coeso ehomogêneo de prosélitos. Quase por uma lei danatureza humana, parece ser mais fácil aos homensconcordarem sobre um programa negativo – o ódio aum inimigo ou a inveja aos que estão em melhorsituação – do que sobre qualquer plano positivo. Aantítese “nós” e “eles”, a luta comum contra os quese acham fora do grupo, parece um ingredienteessencial a qualquer ideologia capaz de unirsolidamente um grupo visando à ação comum. Poressa razão, é sempre utilizada por aqueles queprocuram não só o apoio a um programa político mastambém a fidelidade irrestrita de grandes massas. Doseu ponto de vista, isso tem a vantagem de lhesconferir mais liberdade de ação do que qualquerprograma positivo. O inimigo, seja ele interno, comoo “judeu” ou o “kulak”, seja externo, parececonstituir uma peça indispensável no arsenal do lídertotalitário.

Se na Alemanha o judeu se tornou o inimigo,cedendo em seguida o lugar às “plutocracias”, isso foidecorrência do sentimento anticapitalista em que sebaseava todo o movimento, o mesmo acontecendoem relação à escolha do kulak na Rússia. NaAlemanha e na Áustria, o judeu chegara a serencarado como o representante do capitalismoporque a antipatia tradicional votada por vastasclasses da população às atividades comerciais tornaratais atividades mais acessíveis a um grupopraticamente excluído das ocupações maisrespeitadas. É a velha história: a raça alienígena,admitida apenas nas profissões menos nobilitantes,torna-se objeto de ódio ainda mais acirradoprecisamente por exercê-las. O fato de, na Alemanha,o antissemitismo e o anticapitalismo terem a mesmaorigem é de grande importância para a compreensãodo que tem acontecido naquele país, embora osobservadores estrangeiros poucas vezes se deemconta disso.

Considerar a tendência universal da políticacoletivista ao nacionalismo como decorrênciaexclusiva da necessidade de um apoio sólido serianegligenciar outro fator não menos significativo. Comefeito, é questionável que se possa conceber com

realismo um programa coletivista que não atenda aosinteresses de um grupo limitado, ou que o coletivismopossa existir sob outra forma que não a de umparticularismo qualquer, nacionalista, racista ouclassista. A ideia de uma comunhão de propósitos einteresses com os próprios semelhantes parecepressupor maior similaridade de ideias e pontos devista do que aquela que existe entre os homens naqualidade de simples seres humanos. Se nãopodemos conhecer pessoalmente todos os outroscomponentes do nosso grupo, eles terão de ser pelomenos do mesmo tipo dos que nos cercam, terão depensar e falar do mesmo modo e sobre os mesmosassuntos, para que nos possamos identificar com eles.

O coletivismo em proporções mundiais pareceinconcebível, a não ser para atender aos interesses deuma pequena elite dirigente. Ele por certo suscitariaproblemas, não só de natureza técnica mas sobretudomoral, que nenhum dos nossos socialistas estariadisposto a enfrentar. Se o proletário inglês tem direitoa uma parcela igual da renda atualmenteproporcionada pelos recursos financeiros do país,assim como ao controle do emprego desses recursos,porque eles resultam da exploração, pelo mesmoprincípio todos os hindus teriam direito não só à

renda mas também ao uso de uma parcelaproporcional do capital britânico.

Que socialistas, porém, pensam de fato em repartirde maneira equitativa, entre toda a população daterra, os atuais recursos de capital? Para todos eles ocapital pertence não à humanidade, mas à nação –embora, mesmo no âmbito da nação, poucos ousemsustentar que as regiões mais ricas devem serprivadas de “seus” bens de capital para auxiliar asregiões mais pobres. Os socialistas não estãodispostos a conceder ao estrangeiro aquilo queproclamam como um dever para com os seusconcidadãos. De um ponto de vista coletivistacoerente, os direitos dos países pobres a uma novadivisão do mundo são de todo justificados – embora,se fossem aplicados com lógica, aqueles que osreivindicam com maior insistência acabassem quasetão prejudicados quanto as nações mais ricas. Têm,por conseguinte, o cuidado de não fundamentar suasexigências em princípios igualitários, mas numapretensa capacidade superior de organizar outrospovos.

Uma das contradições inerentes à filosofiacoletivista é que, embora baseada na moral humanista

aperfeiçoada pelo individualismo, só se mostrapraticável no interior de um grupo relativamentepequeno. Enquanto permanece teórico, o socialismoé internacionalista; mas ao ser posto em prática, naAlemanha ou na Rússia, torna-se violentamentenacionalista. Esta é uma das razões por que o“socialismo liberal”, tal como o imagina a maioria daspessoas no mundo ocidental, é apenas teórico, aopasso que a prática do socialismo é em toda partetotalitária.68 No coletivismo não há lugar para oamplo humanitarismo do liberal, mas apenas para oestreito particularismo do totalitário.

Se a “comunidade” ou o estado têm prioridadesobre os indivíduos, se possuem objetivos própriossuperiores aos destes e deles independentes, só osindivíduos que trabalham para tais objetivos podemser considerados membros da comunidade. Comoconsequência necessária dessa perspectiva, umapessoa só é respeitada na qualidade de membro dogrupo, isto é, apenas se coopera para os objetivoscomuns reconhecidos, e toda a sua dignidade derivadessa cooperação, e não da sua condição de serhumano. Os próprios conceitos de humanidade e, porconseguinte, de qualquer forma de internacionalismosão produtos exclusivos da atitude individualista e não

podem existir num sistema filosófico coletivista.69

Além do fato fundamental de que a comunidadecoletivista só pode chegar até onde exista ou possaser estabelecida uma unidade de propósitosindividuais, vários elementos contribuem parafortalecer a tendência do coletivismo a tornar-separticularista e exclusivista. Destes, um dos maisimportantes é que o desejo de identificação doindivíduo com um grupo resulta com frequência deum sentimento de inferioridade, e por isso tal desejosó será satisfeito se a qualidade de membro do grupolhe conferir alguma superioridade sobre os que a estenão pertencem. Às vezes, ao que tudo indica, opróprio fato de esses instintos violentos que oindivíduo é obrigado a refrear no seio do grupopoderem ser liberados numa ação coletiva contra osestranhos constitui mais um incentivo para fusão desua personalidade com a do grupo. Uma profundaverdade está expressa no título do livro de ReinholdNiebuhr, Moral Man and Immoral Society (OHomem Moral e a Sociedade Imoral) – embora sejadifícil aceitar conclusões a que chega a sua tese. Naverdade, como diz ele em outra obra, “o homemmoderno tende a se considerar uma pessoa de moralelevada por ter delegado seus vícios a grupos cada

vez mais numerosos”.70 Agir no interesse de umgrupo parece libertar os homens de muitas restriçõesmorais que regem seu comportamento comoindivíduos dentro do grupo.

A atitude de muitos planejadores de nítida oposiçãoao internacionalismo explica-se também pelo fato deque, no mundo atual, todos os contatos exteriores deum grupo constituem obstáculos ao planejamentoefetivo da esfera em que este pode ser empreendido.Não é, pois, mera coincidência se conformedescobriu com pesar o organizador de um dos maisabrangentes estudos coletivos sobre o planejamento,“os ‘planejadores’ são, em sua maioria, nacionalistasmilitantes”.71

As propensões nacionalistas e imperialistas dosplanejadores socialistas – muito mais comuns do queem geral se admite – nem sempre são tão flagrantescomo no caso dos Webb e de alguns outros fabianosprimitivos, nos quais o entusiasmo pela planificaçãose somava, de modo característico, à veneração paracom as grandes e poderosas unidades políticas e aodesprezo pelos pequenos estados. Referindo-se aosWebb na ocasião em que os conheceu, há quarentaanos, afirmava o historiador Elie Halévy que seu

socialismo era profundamente antiliberal. Nãoodiavam os conservadores, eram até muito tolerantescom eles; entretanto, mostravam-se implacáveis paracom o liberalismo gladstoniano. Era no tempo daguerra dos bôeres e tanto os liberais quanto aquelesque começavam a constituir o Partido Trabalhistahaviam-se alinhado aos bôeres contra o imperialismobritânico, em nome da liberdade e da humanidade.Mas os dois Webb e seu amigo Bernard Shaw não osapoiaram.

Eram ostentosamente imperialistas. Aindependência das pequenas nações poderia teralguma importância para um individualista liberalmas, para coletivistas como eles, nada significava.Ainda ouço Sidney Webb a explicar-me que o futuropertence às grandes nações administrativas, onde osfuncionários governam e a polícia mantém a ordem.

Em outra parte, Halévy cita a afirmação deBernard Shaw, mais ou menos da mesma época, deque “o mundo pertence necessariamente aos estadosgrandes e poderosos, e os pequenos devem serincorporados, a eles ou esmagados e aniquilados”.72

Citei por extenso essas passagens, que nãodeveriam surpreender num relato sobre os

precursores alemães do nacional-socialismo, porqueapresentam um exemplo muito característico daglorificação do poder que facilmente conduz dosocialismo ao nacionalismo e que tanto influencia asconcepções éticas de todos os coletivistas. No que serefere aos direitos das pequenas nações, Marx eEngels pouco diferiam da maioria dos outroscoletivistas coerentes, e as opiniões que ambosexpressaram ocasionalmente a respeito dos tchecosou dos poloneses assemelham-se às dos nacional-socialistas contemporâneos.73

Enquanto para os grandes filósofos sociaisindividualistas do século XIX, como Lord Acton ouJacob Burckhardt, e mesmo para socialistascontemporâneos como Bertrand Russell,queherdaram a tradição liberal, o poder sempre seafigurou o supremo mal, para o coletivista puro ele éum fim em si mesmo. O próprio desejo de organizara vida social segundo um plano unitário nascebasicamente da ambição de poder, mas não apenasdisso, conforme destacou Russell com propriedade74.Esse desejo resulta sobretudo do fato de que, pararealizar seu objetivo, os coletivistas precisam criar umpoder de uma magnitude jamais vista até hoje –poder exercido por alguns homens sobre os demais –

e de que seu êxito dependerá do grau de poderalcançado.

Isto permanece válido ainda que muitos socialistasliberais orientem suas ações pela desastrosa ilusão deque, privando os indivíduos do poder que possuemnum sistema individualista e transferindo-o àsociedade, lograrão acabar com o próprio poder. Oque todos aqueles que usam esse argumentoesquecem é que, concentrando-se o poder de modo aempregá-lo a serviço de um plano único, ele não seráapenas transferido mas aumentado a um grau infinito;e que, enfeixando-se nas mãos de um só grupo umaautoridade antes exercida por muitos de formaindependente, cria-se um poder infinitamente maior –tão amplo que quase chega a tornar-se um outrogênero de poder.

É de todo errôneo afirmar, como por vezes se faz,que o grande poder exercido por uma comissão deplanejamento central “não seria maior do que o poderexercido conjuntamente pelas diretorias das empresasprivadas”75. Numa sociedade baseada naconcorrência, ninguém exerce uma fração sequer dopoder que uma comissão planejadora socialistaconcentraria nas mãos; e se ninguém o pode

empregar de modo intencional, não passa de abusode linguagem afirmar que este se encontra nas mãosde todos os capitalistas reunidos76. Falar do “poderconjuntamente exercido pelas diretorias das empresasprivadas” é apenas manipular palavras, se essasdiretorias não se unem para uma ação comum – oque significaria, é evidente, o fim da concorrência e acriação de uma economia planificada. Fracionar oudescentralizar o poder corresponde, forçosamente, areduzir a soma absoluta de poder, e o sistema deconcorrência é o único capaz de reduzir ao mínimo,pela descentralização, o poder exercido pelo homemsobre o homem.

Já vimos como a separação dos objetivos políticose dos objetivos econômicos representa uma garantiaessencial da liberdade individual e como, emconsequência, tal separação é atacada por todos oscoletivistas. Devemos acrescentar agora que a“substituição do poder econômico pelo político”, tãodemandada hoje em dia, significa necessariamente asubstituição de um poder sempre limitado por umoutro ao qual ninguém pode escapar. Embora possaconstituir um instrumento de coerção, o chamadopoder econômico nunca se torna, nas mãos departiculares, um poder exclusivo ou completo, jamais

se converte em poder sobre todos os aspectos da vidade outrem. No entanto, centralizado comoinstrumento do poder político, cria um grau dedependência que mal se distingue da escravidão.

Das duas características principais de todo sistemacoletivista – a necessidade de um sistema deobjetivos aceito por todos os membros do grupo e odesejo imperioso de conferir ao grupo o máximo depoder para realizar tais objetivos – brota um sistemamoral definido, que em certos pontos coincide e emoutros se contrapõe violentamente ao nosso. Deledifere, entretanto, num detalhe que tornaquestionável podermos aplicar-lhe o termo “morar’’:tal sistema não deixa à consciência individual aliberdade de aplicar suas regras próprias, nem mesmoconhece quaisquer regras gerais cuja prática sejaexigida ou permitida ao indivíduo em todas ascircunstâncias. Isso torna a moral coletivista tãodiferente daquilo que conhecemos como moral que édifícil encontrar nela qualquer princípio – o que, noentanto, ela possui.

A diferença de princípio é praticamente a mesmaque já consideramos em relação ao estado de Direito.Como o Direito formal, as regras da ética

individualista são gerais e absolutas, por maisimprecisas que possam parecer sob certos aspectos.Prescrevem ou proíbem um tipo geral de ação, semlevar em conta se num caso específico o objetivoúltimo é bom ou mau. Trapacear ou roubar, torturarou trair segredos é considerado mau, apresentem ounão consequências prejudiciais em determinado caso.E sua maldade intrínseca não se altera, mesmo queem dadas circunstâncias ninguém venha a sofrer porisso, e mesmo que tais ações tenham sido praticadasem nome de um propósito elevado. Embora porvezes sejamos forçados a escolher entre dois males,estes não deixam por isso de ser males.

Na ética individualista, o princípio de que o fimjustifica os meios é considerado a negação de toda amoral. Na ética coletivista, torna-se a regra suprema;não há literalmente nada que o coletivista coerentenão deva estar pronto a fazer, desde que contribuapara o “bem da comunidade”, porque o “bem dacomunidade” é para ele o único critério que justifica aação. A “razão de estado”, em que a ética coletivistaencontrou a sua formulação mais explícita, nãoconhece outros limites que não os da conveniência –a adequação do ato particular ao objetivo que se temem vista. E o que a “razão de estado” afirma no

tocante às relações entre diferentes países aplica-setambém às relações entre diferentes indivíduos noestado coletivista. Não pode haver limites para aquiloque o cidadão desse estado deve estar pronto a fazer,nenhum ato que a consciência o impeça de praticar,desde que seja necessário à consecução de umobjetivo que a comunidade impôs a si mesma ou queos superiores lhe ordenem.

Dessa ausência de normas absolutas e formais naética coletivista não se infere, naturalmente, que acomunidade não estimule certos hábitos úteis doindivíduo, e que não condene outros. Ao contrário,ela se interessará muito mais pelos hábitos individuaisde vida do que uma comunidade individualista. Sermembro útil de uma sociedade coletivista requerqualidades muito precisas, as quais devem serfortalecidas por uma prática constante. A razão porque designamos essas qualidades como “hábitosúteis”, uma vez que não é possível denominá-lasvirtudes morais, é que nunca se permitiria aoindivíduo colocar essas regras acima de quaisquerordens positivas ou deixar que se tornassem umobstáculo à realização dos objetivos concretos dacomunidade. Elas apenas servem para preencher aslacunas deixadas pelas ordens diretas ou pela

indicação de finalidades concretas. Jamais,entretanto, poderão justificar um conflito com adecisão da autoridade.

As diferenças entre as virtudes que continuarão aser valorizadas num sistema coletivista e aquelas quevirão a desaparecer são bem elucidadas por umacomparação entre as virtudes atribuídas aos alemães,ou melhor, ao “prussiano típico”, mesmo por seuspiores inimigos, e aquelas que lhes são negadas pelaopinião geral, mas que o povo inglês, com algumarazão, se orgulhava de possuir em alto grau. Poucosdeixarão de admitir que os alemães, em geral, sãolaboriosos e disciplinados, detalhistas e enérgicos aponto de se mostrarem insensíveis, conscienciosos ecoerentes em qualquer tarefa à qual se dedicam; quepossuem um acentuado senso de ordem, dever eestrita obediência à autoridade, e que muitas vezesdão provas de grande capacidade para o sacrifíciopessoal e de admirável coragem diante do perigofísico. Essas virtudes fazem do alemão uminstrumento eficiente na execução de uma tarefaprescrita, e todas elas foram cuidadosamenteensinadas no velho estado prussiano e no novo reich,também sob o domínio prussiano.

O que se supõe faltar ao “alemão típico” são asvirtudes individualistas da tolerância e do respeitopelos demais indivíduos e suas opiniões; opensamento independente e aquela integridade decaráter que fazem o indivíduo defender suasconvicções perante um superior – qualidades que ospróprios alemães, em geral cônscios de nãopossuírem, chamam Zivilcourage; a consideraçãopelos fracos e doentes; e o saudável desprezo eantipatia pelo poder, que somente uma longa tradiçãode liberdade pessoal pode criar. Parece faltar-lhesainda quase todas essas pequenas porém importantesqualidades que facilitam as relações entre os homensnuma sociedade livre: a bondade e o senso de humor,a modéstia pessoal, o respeito pela privacidade e a fénas boas intenções de seus semelhantes.

Após tais considerações, não causará surpresa aninguém que essas virtudes individualistas sejam aomesmo tempo virtudes eminentemente sociais,qualidades que suavizam os contatos sociais e quetornam menos necessário, e ao mesmo tempo maisdifícil, o controle que vem de cima. São virtudes queflorescem onde quer que tenha prevalecido asociedade de tipo individualista ou comercial e que,inversamente, inexistem quando predomina a de tipo

coletivista ou militar – diferença que se pode (ou sepodia) observar nas várias regiões da Alemanha,como agora se observa entre as ideias que reinamnaquele país e as ideias características do Ocidente.Até bem pouco, pelo menos, nas regiões daAlemanha que mais longamente estiveram expostasàs forças civilizadoras do comércio – as antigascidades comerciais do sul e do oeste e as cidadeshanseáticas – os conceitos éticos em geral tinhammuito mais afinidade com os dos povos ocidentais doque com aqueles que hoje prevalecem em toda aAlemanha.

Seria, no entanto, injusto considerar as massas quesustentam um regime totalitário destituídas dequalquer fervor moral só porque prestam apoioirrestrito a um sistema que a nós se afigura a negaçãodos melhores valores morais. Para a sua grandemaioria, é justamente o contrário que se verifica: aintensidade das emoções morais em que repousa ummovimento como o nacional-socialista ou ocomunista talvez só possa ser comparada à dosgrandes movimentos religiosos da história. Uma vezadmitido que o indivíduo é simples instrumento paraservir aos fins da entidade superior que se chamasociedade ou nação, manifesta-se necessariamente a

maior parte dessas características dos regimestotalitários que nos enchem de horror. Da perspectivacoletivista, a intolerância e a brutal supressão dadissidência, o completo desrespeito pela vida e pelafelicidade do indivíduo são consequências essenciaise inevitáveis dessa premissa básica. O coletivistapode aceitar esse fato, e ao mesmo tempo afirmarque seu sistema é superior àqueles em que se permiteque interesses individuais “egoístas” criem embaraçosà plena realização das metas visadas pelacomunidade. Quando os filósofos alemães repetidasvezes caracterizam como imoral em si mesma abusca da felicidade pessoal e apenas digno de louvoro cumprimento do dever imposto, estão usando decompleta sinceridade, por mais incompreensível queisso pareça às pessoas educadas numa tradiçãodiferente.

Onde existe uma finalidade comum e soberana,não há lugar para uma moral ou para normas gerais.Até certo ponto, nós próprios experimentamos issodurante a guerra. A guerra e o perigo mais grave, noentanto, levaram os países democráticos a umasituação que só de longe se assemelhava aototalitarismo, poucas vezes prejudicando os demaisvalores em função de um objetivo único. Mas

quando toda a sociedade é dominada por alguns finsespecíficos, é inevitável que, vez por outra, acrueldade se torne um dever; que ações que nosrevoltam, tais como o fuzilamento de reféns ou oextermínio de velhos e doentes, sejam tratadas comomeras questões de conveniência; que arrancarcentenas de milhares de indivíduos de suas casas etransportá-los compulsoriamente para outro lugar seconverta numa linha de ação política aprovada porquase todos, menos pelas vítimas; ou que ideiascomo a “conscrição das mulheres para fins deprocriação’’ possam ser consideradas a sério. Ocoletivista tem sempre diante dos olhos uma metasuperior para a qual concorrem essas ações e que, noseu modo de ver, as justifica, porque a busca doobjetivo social comum não pode ser limitada pelosdireitos ou valores de qualquer indivíduo.

Mas enquanto para a massa dos cidadãos doestado totalitário é muitas vezes a dedicaçãodesinteressada a um ideal – embora esse ideal nospareça detestável – que os leva a aprovar e até apraticar tais atos, o mesmo não se pode alegar emfavor dos dirigentes da política estatal. Para ser umauxiliar útil na administração de um estado totalitárionão basta que um indivíduo esteja pronto a aceitar

justificações capciosas de atos abomináveis. Deveestar preparado para violar efetivamente qualquerregra moral de que tenha conhecimento, se issoparecer necessário à realização do fim que lhe foiimposto. Como o chefe supremo é o único quedetermina os fins, seus instrumentos não devem terconvicções morais próprias. Cumpre-lhes, acima detudo, votar uma fidelidade irrestrita à pessoa do líder;em seguida, o mais importante é que sejamdesprovidos de princípios e literalmente capazes detudo. Não devem possuir ideais próprios que desejemrealizar, nenhuma ideia sobre o que é justo ou injustoque possa criar obstáculos às intenções do líder.Desse modo, as posições de mando oferecem àquelesque possuem convicções morais semelhantes às quetêm guiado os povos europeus poucos atrativos quecompensem a repugnância causada por muitas dastarefas a executar, e escassas oportunidades desatisfazer os desejos mais idealistas, de recompensaros inegáveis riscos, o sacrifício da maioria dosprazeres da vida privada e da independência pessoalque esses postos de grande responsabilidade sempreimpõem. A única satisfação é a da ambição do poderem si mesmo, o prazer de ser obedecido e de fazerparte de uma máquina perfeita, imensamente

poderosa, diante da qual tudo deve ceder.Por outro lado, embora pouco haja para induzir

homens bons, segundo nossos padrões, a aspirar acargos de importância na máquina totalitária, e muitopara afastá-los dessas posições, haverá oportunidadesespeciais para os insensíveis e os inescrupulosos.Será preciso desempenhar tarefas de inegávelcrueldade, mas que não podem deixar de serexecutadas, a serviço de alguma finalidade superior,com a mesma perícia e a mesma eficiência quequaisquer outras. Havendo, assim, necessidade deações intrinsecamente nocivas e que todas as pessoasainda influenciadas pela moral tradicional relutarãoem fazer, a disposição para praticar tais açõesconverte-se no caminho da ascensão social e dopoder. Numa sociedade totalitária, são numerosas asposições em que é necessário praticar a crueldade e aintimidação, a duplicidade e a espionagem. Nem aGestapo, nem a administração de um campo deconcentração, nem o ministério da Propaganda, nema S.A. ou a S.S. (ou seus equivalentes italianos ourussos) são lugares favoráveis à prática desentimentos humanitários. E, no entanto, é exercendoesses cargos que se chega às posições supremas noestado totalitário. É corretíssima a conclusão do

ilustre economista americano que, após enumerar osdeveres das autoridades num estado coletivista,afirmou:

eles seriam obrigados a fazer essas coisas,quisessem ou não; e é tão reduzida a probabilidade deo poder ser exercido por homens que detestem a suaposse e exercício quanto a de alguém extremamentebom e sensível vir a ser feitor de escravos.77

Não nos é possível, todavia, esgotar aqui oassunto. O problema da seleção dos líderes estáintimamente ligado ao amplo problema de selecioná-los segundo as opiniões que essas pessoas exibem, oumelhor, de acordo com a presteza com que seadaptam a um corpo de doutrinas em constantetransformação. E isto nos conduz a um dos maiscaracterísticos aspectos morais do totalitarismo: suarelação com as virtudes que se incluem nadenominação geral de veracidade e seus efeitos sobreestas. Trata-se de assunto tão amplo que requer umcapítulo especial.

681 Cf. a instrutiva análise de F. Berkenau, emSocialism, National or International?’, 1942.69 É inteiramente dentro do espírito do coletivismoque Nietzsche faz Zaratustra dizer: “Até agora mil

metas existiram, porque mil pessoas existiram. Masfalta ainda o grilhão para os mil pescoços, pois aindafalta a meta única. A humanidade não tem uma meta.Mas dizei-me, ó irmãos, eu vos peço: se falta umameta à humanidade, não é a própria humanidade queestá faltando?”.70 Citado de um artigo do doutor Niebuhr por E. H.Carr, em The Twenty Years’ Crisis, 1941. p. 203.71 Mackenzie, F., org. Planned Society, Yesterday,Today, Tomorrow: A Symposium. 1937. p. XX.72 Halévy, E. L’ère des Tyrannies, Paris, 1938, p.217, e History of the English People, Epílogo, v. I,pp. 105-6.73 Cf. Marx, Karl, Revolution and Counter-revolution, e a carta de Engels a Marx datada de 23de maio de 1851.74 Russell, Bertrand, The Scientific Outlook, 1931,p. 211.75 Lippincott, B. E., na sua introdução à obra de O.Lange e F. M. Taylor, On the Economic Theory ofSocialism, Minneapolis, 1938, p. 35.76 Não nos devemos deixar enganar pelo fato de quea palavra “poder”, além da acepção relativa aos sereshumanos, é também empregada num sentido

impessoal (ou melhor, antropomórfico) para designarqualquer causa determinante. É óbvio que semprehaverá algo determinando tudo o que acontece, enesse sentido a quantidade de poder existente serásempre a mesma. Isso, porém, não se aplica ao poderexercido conscientemente por seres humanos.77 Knight, F. H. em The Journal of PoliticalEconomy, dez. 1938, p. 869.

Capítulo 11

O Fim da Verdade

“É significativo que em todos os países aestatização do pensamento tenha sempre

caminhado pari passu com a estatização daindústria”. – E. H. Carr

O modo mais eficaz de fazer com que todossirvam ao sistema único de objetivos visado peloplano social é fazer com que todos acreditem nessesobjetivos. Para que um sistema totalitário funcionecom eficiência, não basta que todos sejam obrigadosa trabalhar para os mesmos fins: é essencial que opovo passe a considerá-los seus fins pessoais.Embora seja necessário escolher as ideias e impô-lasao povo, elas devem converter-se nas ideias do povo,num credo aceito por todos que leve os indivíduos,tanto quanto possível, a agir espontaneamente domodo desejado pelo planejador. Se o sentimento deopressão nos países totalitários é, em geral, bemmenos agudo do que muitos imaginam nos paísesliberais, é porque os governos totalitários conseguem

em grande parte fazer o povo pensar como elesquerem.

Isso, evidentemente, é realizado pelas váriasformas de propaganda. Sua técnica já se tornou tãoconhecida que não é necessário estender-nos muito arespeito. O único ponto a salientar é que nem apropaganda em si nem as técnicas empregadas sãopeculiares ao totalitarismo. O que altera de forma tãoabrangente sua natureza e efeitos num estadototalitário é o fato de que a propaganda visa a umúnico alvo: todos os instrumentos de propaganda sãocoordenados de modo a conduzir os indivíduos namesma direção e a produzir a característicaGleichschaltung (N. do R. Literalmente,“padronização”) de todas as mentes. Comoresultado, o efeito da propaganda nos paísestotalitários difere, não só na magnitude mas tambémna espécie, do efeito alcançado pela propaganda deagências independentes e competitivas que visam afinalidades diversas. Quando todas as fontes deinformação corrente se acham sob um controleefetivo único, já não se tem apenas uma situação emque se tenta persuadir o povo disto ou daquilo. Ohábil disseminador de propaganda terá então o poderde manipular as mentes da forma que lhe aprouver, e

mesmo as pessoas mais sagazes e independentes nãopoderão evitar de todo essa influência, sepermanecerem por muito tempo isoladas das demaisfontes de informação.

Embora, num estado totalitário, a posição ocupadapela propaganda confira a este instrumento um poderincomparável sobre as mentes, os efeitos moraispeculiares que ela produz não decorrem da técnicamas do objetivo e da amplitude da propagandatotalitária. Se esta se limitasse a doutrinar o povo nosistema completo de valores para o qual é dirigido oesforço social, representaria apenas umamanifestação específica das características da moralcoletivista que já analisamos. Caso seu objetivo fosseunicamente ensinar ao povo um código moraldefinido e abrangente, o problema se restringiria adeterminar se esse código é bom ou mau. Já vimosquão pouco nos atrai o código moral de umasociedade totalitária, e que a tentativa de estabelecera igualdade por meio de uma economia dirigida sópode produzir uma desigualdade oficialmente imposta– a determinação autoritária do status de cadaindivíduo na nova ordem hierárquica. Vimos tambémque a maioria dos elementos humanitários da nossamoral – o respeito pela vida humana, pelos fracos e

pelo indivíduo em geral – tenderão a desaparecer. Pormais repulsivo que isso pareça à maioria das pessoas,e embora implique uma mudança de padrões morais,não é, necessariamente, de todo antimoral. Certosaspectos de tal sistema podem mesmo atrair os maisrígidos moralistas de índole conservadora por lhesparecerem preferíveis aos padrões mais brandos dasociedade liberal.

As consequências morais da propaganda totalitáriaque passaremos a considerar são, no entanto, de umanatureza ainda mais profunda. Elas destroem todas asregras morais, porque minam um dos fundamentosde toda a ética: o senso da verdade e o respeito a ela.Pela própria natureza da sua função, a propagandatotalitária não se pode limitar a valores, a questões deopinião e de convicção moral em que o indivíduosempre se conforma mais ou menos às ideias queimperam em sua comunidade; ela tem de estender-sea questões de fato, em que a inteligência humana estáenvolvida de modo diferente. Isso acontece, emprimeiro lugar, porque, para levar as pessoas a aceitaros valores oficiais, a autoridade tem de justificá-los,ou de mostrar que eles se relacionam com os valoresjá aceitos pelo povo, os quais habitualmenteencerram asserções sobre elos causais entre meios e

fins; em segundo lugar, porque a distinção entre fins emeios, entre a meta visada e as medidas adotadaspara alcançá-la, na realidade nunca é tão clara eprecisa como o faz supor uma discussão superficialde tais problemas. Assim sendo, é necessário fazercom que as pessoas concordem não apenas com asfinalidades últimas mas também com as ideias sobreos fatos e as possibilidades em que se baseiam asmedidas específicas.

Já vimos que o consenso em torno desse códigomoral completo, desse sistema exaustivo de valoresque se acha implícito num plano econômico, nãoexiste numa sociedade livre: seria preciso criá-lo. Masnão devemos supor que, ao abordar a sua tarefa, oplanejador teria consciência dessa necessidade ouque, mesmo dela consciente, lhe fosse possível criarde antemão um código tão vasto. Ele só descobrirá osconflitos entre as diferentes necessidades à medidaque for avançando, e terá de tomar suas decisões àproporção que a isso o obrigarem as circunstâncias.Não existe um código de valores in abstracto aorientar suas decisões antes que estas tenham de sertomadas. Esse código terá de ser criado com base nasdecisões concretas. Já vimos também como essaimpossibilidade de separar das decisões concretas a

questão geral dos valores impede que um órgãodemocrático, não estando em condições de decidir osdetalhes técnicos de um plano, consiga determinar osvalores que o orientam.

E, embora caiba à autoridade planejadora decidirconstantemente sobre questões de mérito em que nãoexistem regras morais definidas, ela se verá obrigadaa justificar tais decisões perante o povo – ou, pelomenos, a levar de algum modo o povo a acreditarserem essas as decisões justas. Mesmo que osresponsáveis por uma decisão se tenham guiado porsimples preconceito, terão de apresentá-la ao públicocomo sendo baseada em algum princípio orientador,para que a comunidade não se limite a submeter-sede modo passivo mas apoie ativamente a medida. Anecessidade de encontrar um pretexto para justificaras preferências e antipatias que, à falta de outra coisa,muitas vezes orientam as decisões do planejador, e anecessidade de ampla aprovação possível – tudo issoo obrigará a inventar teorias, isto é, explicações queestabeleçam relação entre os fatos, os quais entãopassam a integrar a doutrina dominante.

Esse processo de criação de “mitos” para justificaros atos do líder totalitário nem sempre é consciente.

Pode acontecer que o líder sinta apenas umdesagrado instintivo para com a situação queencontrou e o desejo de criar uma nova ordemhierárquica, mais apropriada à sua concepção demérito. Talvez ele saiba apenas que tem aversão aosjudeus, os quais pareciam tão bem-sucedidos numaordem social onde não havia lugar satisfatório paraele, e que tem simpatia e admiração pelo homem altoe louro, pela figura “aristocrática” dos romances desua juventude. Desse modo, estará pronto a adotarteorias que parecem fornecer uma justificaçãoracional aos preconceitos que compartilha commuitos de seus companheiros. E assim uma teoriapseudocientífica é incorporada à ideologia oficial que,em maior ou menor grau, dirige as ações de todos.Ou então, o generalizado descontentamento com acivilização industrial e o anseio romântico da vidacampestre. aliados à ideia (provavelmente errônea)do valor peculiar dos camponeses como soldados,fornecem a base de outro mito: Blut und Boden(“Sangue e solo”), o qual não só expressa valoressupremos mas uma multiplicidade de crenças arespeito de relações de causa e efeito, crenças que,convertidas nos ideais que orientam a atividade detoda a comunidade, não devem mais ser contestadas.

A necessidade de semelhantes doutrinas oficiais,como instrumento para dirigir e congregar os esforçosdo povo, foi claramente prevista pelos diferentesteóricos do sistema totalitário. As “nobres mentiras”de Platão e os “mitos” de Sorel atendem ao mesmoobjetivo da doutrina racial dos nazistas ou da teoriado estado corporativo de Mussolini. Todos elesbaseiam-se necessariamente em pontos de vistapessoais sobre fatos, elaborados e transformadosdepois em teorias científicas, de modo a justificaruma opinião preconcebida.

O meio mais eficaz de fazer com que as pessoasaceitem os valores aos quais terão de servir épersuadi-las de que tais valores são na realidade osmesmos que elas, ou pelo menos as mais esclarecidasentre elas, sempre defenderam, mas que antes nãoeram devidamente compreendidos ou apreciados.Leva-se o povo a abandonar os velhos deuses pelosnovos, sob pretexto de que estes são de fato comopor instinto supunham que fossem, embora até omomento só o percebessem de maneira vaga. E atécnica mais eficiente para a consecução desse fim écontinuar a usar as velhas palavras, alterando-lhes,porém, o sentido. Poucos aspectos dos regimestotalitários despertam tanta confusão no observador

superficial e são, ao mesmo tempo, tãocaracterísticos do clima intelectual desses sistemas,como a completa perversão da linguagem, a mudançade sentido das palavras que expressam os ideais dosnovos regimes.

Nesse contexto, a palavra mais deturpada é,evidentemente, “liberdade”, um termo tão usado nosestados totalitários como em qualquer outro lugar.Pode-se mesmo dizer que, sempre que a liberdadeque conhecemos foi aniquilada, isso se fez em nomede uma nova liberdade prometida ao povo. Talconstatação deve ajudar-nos a nos precaver contra aspromessas de Novas liberdades em troca dasantigas.

78Mesmo entre nós existem “planejadores daliberdade” que prometem uma “liberdade coletiva”cuja natureza é possível inferir do fato de os seusdefensores acharem necessário assegurar-nos de que,“naturalmente, o advento da liberdade planejada nãosignifica que todas [sic] as formas mais antigas deliberdade devam ser abolidas”. Pelo menos, o doutorKarl Mannheim, de cuja obra79 extraímos estascitações, nos previne de que “uma concepção deliberdade moldada segundo a época precedente é um

obstáculo à verdadeira compreensão do problema”. Osentido que ele empresta à palavra “liberdade” é,porém, tão enganoso como o que lhe dão os políticostotalitários. Como a liberdade a que estes se referem,a “liberdade coletiva” que o doutor Mannheim nosoferece não é a dos membros da comunidade; é aliberdade ilimitada do planejador de manipular asociedade da forma que lhe apraz.80 Significa, defato, a confusão entre liberdade e poder, levada aoextremo. Nesse caso particular, a deturpação dosentido da palavra foi, naturalmente, favorecida poruma longa série de filósofos alemães e, o que não émenos importante, por muitos teóricos do socialismo.Entretanto, “liberdade” não é em absoluto a únicapalavra cujo sentido se inverteu a fim de torná-lainstrumento da propaganda totalitária. Já vimos que omesmo sucede com “justiça” e “lei”, “direito” e“igualdade”. A lista poderia ser ampliada até incluirquase todos os termos morais e políticos em uso.

Para os que não vivenciaram esse processo, édifícil imaginar a extensão de tal mudança do sentidodas palavras, a confusão que ela causa e as barreirasque cria a qualquer debate racional. Se, por exemplo,de dois irmãos, um abraça a nova fé, depois de algumtempo ele parecerá falar uma língua diferente, que

torna impossível qualquer comunicação entre ambos.E a confusão agrava-se ainda mais porque essaalteração do sentido das palavras que definem ideaispolíticos não é um fato isolado mas um processocontínuo, uma técnica empregada consciente ouinconscientemente com o fim de dirigir o povo.Pouco a pouco, à medida que o processo sedesenrola, toda a linguagem é por assim dizeresvaziada, e as palavras são despojadas de qualquersignificado preciso, podendo designar tanto uma coisacomo o seu oposto e sendo usadas apenas por causadas conotações emocionais que ainda lhes estãovinculadas.

Não é difícil impedir a maioria de pensar de formaindependente. Mas é preciso silenciar também aminoria que se mantém inclinada à crítica. Já vimospor que motivo a coação não se pode limitar àimposição do código moral em que se baseia o planodiretor de toda atividade social. Uma vez que muitaspartes desse código nunca serão enunciadasexplicitamente e muitos pontos da escala de valoresconstarão do plano apenas de forma implícita, oplano em si em todos os detalhes, e mesmo todos osatos do governo, devem tornar-se sacrossantos eacima de crítica. Para que o povo apoie sem

hesitações o esforço comum, deve ser persuadido deque não só o fim visado mas também os meiosescolhidos são os mais justos. A ideologia oficial, cujaaceitação deve ser forçosamente obtida, incluirá,pois, todas as opiniões sobre fatos em que se baseia oplano. A crítica e mesmo as expressões de dúvidatêm de ser suprimidas porque tendem a enfraquecer oapoio geral. Como dizem os Webb acerca da situaçãode todo empreendimento na Rússia: “Enquanto aobra está sendo executada, qualquer expressãopública de dúvida ou mesmo de receio quanto aoêxito do plano é um ato de deslealdade e até detraição por seus possíveis efeitos sobre a vontade eos esforços dos demais membros do quadro defuncionários”.81 Quando a dúvida ou o receio nãodizem respeito ao êxito de determinada realização,mas ao plano social em seu todo, com mais razãoainda deverão ser tratados como sabotagem.

Assim, os fatos e as teorias tornam-se objeto deuma doutrina oficial, na mesma medida em que asopiniões sobre valores. Todo o arsenal educativo – asescolas e a imprensa, o rádio e o cinema – seráempregado exclusivamente para disseminar as ideias,verdadeiras ou falsas, que fortaleçam a crença najusteza das decisões tomadas pela autoridade; e toda

informação que possa causar dúvidas ou hesitaçõesserá suprimida. O provável efeito sobre a lealdade dopovo ao sistema torna-se o único critério pararesolver se determinada informação deve serpublicada ou não. A situação num estado totalitário é,permanentemente, e em todos os campos, a mesmade qualquer outro país, com relação a determinadosassuntos, em tempo de guerra.

Tudo que possa despertar dúvidas sobre acompetência do governo, ou criar descontentamento,será ocultado ao público. Os fatos que possam servirde base para comparações desfavoráveis com ascondições de vida em outros países, o conhecimentode possíveis alternativas para a política já adotada,informações que possam sugerir que o governo nãoesteja cumprindo as suas promessas ou aproveitandoas oportunidades para melhorar as condições gerais –tudo isso será omitido. Não há, pois, campo algumem que não se pratique o controle sistemático dasinformações e em que a uniformidade de pontos devista não seja imposta.

Isso se aplica inclusive às esferas aparentementealheias a qualquer interesse político, e em particular atodas as ciências, mesmo as mais abstratas. É fácil

perceber que, nas disciplinas que tratam diretamentedos assuntos humanos e, portanto, afetam de maneiraimediata as ideias políticas, tais como a história, odireito e a economia, a busca imparcial da verdadenão pode ser permitida num sistema totalitário, e ajustificação das ideias oficiais constitui o objetivoúnico, fato aliás amplamente confirmado pelaexperiência. Com efeito, tais disciplinas têm-setornado em todos os países totalitários as maisfecundas fábricas dos mitos oficiais que osgovernantes empregam para dirigir o pensamento e avontade dos seus súditos. Não é de surpreender que,nessas esferas, a própria simulação da busca daverdade seja abandonada e que as autoridadesdecidam quais as doutrinas a serem ensinadas epublicadas.

O controle totalitário da opinião também seestende, entretanto, a assuntos que a princípio nãoparecem ter importância política. Às vezes é difícilexplicar por que certas doutrinas são oficialmenteproscritas e outras encorajadas, e é curioso que essasaversões ê preferências se assemelhem nos diferentessistemas totalitários. Em particular, todos elesparecem nutrir em comum uma intensa antipatiapelas formas mais abstratas de pensamento – atitude

também manifestada por muitos de nossos cientistasadeptos do coletivismo. Não existe muita diferençaentre a teoria da relatividade ser descrita como “umataque semítico aos fundamentos da física cristã enórdica” ou combatida porque “se opõe aomaterialismo dialético e ao dogma marxista”.Tampouco há diferença entre atacar certos teoremasda estatística matemática porque “fazem parte da lutade classes na fronteira ideológica e são um produtodo papel histórico da matemática como serva daburguesia”, e condenar o assunto porque “nãoapresenta garantias de servir aos interesses do povo”.Ao que tudo indica, a própria matemática pura nãoestá isenta de ataques, e o fato de se possuirdeterminados pontos de vista sobre a natureza dacontinuidade pode ser atribuído a “preconceitosburgueses”. Segundo os Webb, a Revista de CiênciasNaturais Marxistas-Leninistas tem os seguintesslogans: “Nós defendemos a matemática do partido.Nós defendemos a pureza da teoria marxista-leninistana cirurgia”. A situação parece muito semelhante naAlemanha. A Revista da Sociedade Nacional-Socialista de Matemáticos está repleta de expressõescomo “matemática do partido” e um dos maisconhecidos físicos alemães, Lennard, detentor do

prêmio Nobel, deu à obra a que dedicou toda a suaexistência o título de Física Alemã em QuatroVolumes.

É bastante característico do espírito dototalitarismo condenar toda atividade humanaexercida por prazer, sem propósitos ulteriores. Aciência pela ciência, a arte pela arte, são igualmenteabomináveis aos nazistas, aos nossos intelectuaissocialistas e aos comunistas. Toda atividade deve serjustificada por um objetivo social consciente. Nãodeve haver atividade espontânea, não-dirigida, porquepoderia levar a resultados imprevistos, nãocontemplados pelo plano – poderia propiciar osurgimento de algo novo que a filosofia do planejadornem sequer antecipou. Esse princípio estende-seinclusive a jogos e diversões. Deixo a cargo do leitoradivinhar se teria sido na Alemanha ou na Rússia queos jogadores de xadrez foram oficialmente exortadoscom as seguintes palavras: “Devemos acabar de umavez por todas com a neutralidade do xadrez.Devemos condenar inapelavelmente a fórmula “oxadrez pelo xadrez”, assim como condenamos afórmula “a arte pela arte”.

Por incríveis que possam parecer tais aberrações,

não devemos considerá-las simples subprodutosacidentais que nada têm a ver com o caráter essencialde um sistema dirigido ou totalitário. Seria um erro.Elas são o resultado direto do desejo de fazer comque tudo seja dirigido por “uma concepção unitáriado conjunto”, da necessidade de defender a todocusto as ideias em nome das quais se exigem daspessoas sacrifícios constantes, da ideia geral de queos conhecimentos e as crenças do povo sãoinstrumentos a serem usados para uma finalidadeúnica. Quando a ciência tem de servir, não à verdademas aos interesses de uma classe, de umacomunidade ou de um estado, o fim único daargumentação e do debate é justificar e difundir aindamais as ideias por meio dos quais é dirigida toda avida da comunidade. Como explicou o ministro daJustiça nazista, a pergunta que toda nova teoriacientífica deve fazer a si mesma é: “estarei servindoao nacional-socialismo para maior benefício detodos?”.

A própria palavra “verdade” perde o seu antigosignificado. Já não designa algo que deve serdescoberto, sendo a consciência individual o únicojuiz a decidir se, em cada caso, a prova (ou aautoridade daqueles que a proclamam) justifica a

convicção. Torna-se algo a ser estabelecido pelaautoridade, algo em que é preciso crer a bem daunidade do esforço organizado, e que talvez se façanecessário alterar de acordo com as exigências dessemesmo esforço.

O clima intelectual gerado por essa situação, oespírito de completo ceticismo com respeito àverdade, a perda da própria noção do significado dapalavra “verdade”, o desaparecimento do espírito depesquisa independente e da crença no poder daconvicção racional, a maneira pela qual as diferençasde opinião em cada ramo de conhecimento seconvertem em questões políticas a serem resolvidaspela autoridade, tudo isso só pode ser avaliado porquem o experimentou pessoalmente. Uma descriçãosucinta não consegue transmitir o que seria vivernessa atmosfera. O fato mais alarmante, talvez, é queo desprezo pela liberdade intelectual não surge apenasdepois que o sistema totalitário já se estabeleceu maspode ser observado em toda parte, entre intelectuaisque abraçaram uma doutrina coletivista e que sãoaclamados como líderes do pensamento, mesmo empaíses que ainda se encontram sob um regime liberal.

Desculpam-se as piores opressões, desde que

praticadas em nome do socialismo, e a criação de umsistema totalitário é abertamente defendida porhomens que se dizem porta-vozes dos cientistas dospaíses liberais; a própria intolerância é francamenteenaltecida. Não vimos há pouco um cientista inglêsdefender a própria Inquisição, por achar que “ébenéfica à ciência quando protege uma classe emascensão”?82 É um ponto de vista que coincide comas convicções que levaram os nazistas a perseguir oshomens de ciência, a queimar os livros científicos e asuprimir sistematicamente a classe intelectual dospaíses por eles dominados.

O desejo de impor ao povo uma ideologiaconsiderada salutar para ele não é um fato novo oupeculiar à nossa época. Nova é a argumentação coma qual muitos de nossos intelectuais procuramjustificar tais tentativas. Alega-se que na nossasociedade não existe a verdadeira liberdade depensamento, porque as opiniões e os gostos dasmassas são moldados pela propaganda, pelapublicidade, pelo exemplo das classes superiores epor outros fatores ambientais que obrigam opensamento a se conformar a padrões estabelecidos.Daí se conclui que, se os ideais e gostos da grandemaioria são sempre plasmados por circunstâncias

passíveis de controle, devemos usar intencionalmenteesse poder para levar o povo a pensar da forma quenos parece conveniente.

É verdade que a grande maioria das pessoas rarasvezes é capaz de pensar com independência,aceitando em geral as ideias correntes e contentando-se com a ideologia em que nasceu ou para a qual foilevada. Em qualquer sociedade, a liberdade depensamento só terá, talvez, significação imediata parauma pequena minoria. Mas isso não quer dizer quealguém possua qualificações ou deva ter o poder paraescolher quem deverá gozar dessa liberdade. Porcerto não justifica que um grupo qualquer se arrogueo direito de determinar o que se deve pensar ou crer.

Constitui absoluta confusão de ideias sugerir que,como em qualquer sistema, a maioria do povo éliderada por alguém. Não faz diferença que todossejam obrigados a seguir a mesma liderança.Menosprezar a liberdade intelectual porque ela nuncasignificará para todos a mesma possibilidade depensamento independente implica não atentar para osmotivos que conferem a essa liberdade o seu valor. Oessencial, para que ela exerça a sua função deimpulsionadora do progresso intelectual, não é que

todos sejam capazes de pensar ou escrever, mas quetoda causa ou ideia possa ser contestada. Enquanto odireito de dissensão não for suprimido, haverásempre quem ponha em dúvida as ideias quenorteiam seus contemporâneos e submeta novasideias à prova da discussão e da propaganda.

Essa interação entre indivíduos dotados deconhecimentos e opiniões diferentes é o que constituia vida do pensamento. O desenvolvimento da razão éum processo social baseado na existência de taisdiferenças. É da própria essência desse processo nãopodermos prever seus resultados, não conhecermosas ideias que contribuirão para esse desenvolvimentoe as que deixarão de fazê-lo. Em suma, não podemosdirigir tal desenvolvimento sem com isso possa limitá-lo. “Planejar” ou “organizar” a evolução da mente,ou mesmo o progresso em geral, é uma contradição.Supor que a mente humana deva controlar“conscientemente” o seu próprio desenvolvimentoconfunde a razão individual (a única que pode“controlar conscientemente” alguma coisa) com oprocesso interpessoal a que se deve tal evolução. Aotentar controlar esse processo, estaremos apenasimpondo-lhe fronteiras e, mais cedo ou mais tarde,provocaremos a estagnação do pensamento e o

declínio da razão.O aspecto trágico do pensamento coletivista é que,

ao tentar tornar a razão a instância suprema, acabadestruindo-a por interpretar de forma errônea oprocesso do qual depende o desenvolvimento dessamesma razão. Pode-se dizer, com efeito, que oparadoxo das doutrinas coletivistas, e de suaexigência de controle e planejamento “consciente”,reside no fato de que elas levam inevitavelmente ànecessidade de que a mente de um indivíduo venha aexercer o domínio supremo – enquanto a atitudeindividualista em face dos fenômenos sociais é aúnica que nos permite reconhecer as forçassupraindividuais que regem a evolução da razão. Oindividualismo é, assim, uma atitude de humildadediante desse processo social e de tolerância para comas opiniões alheias, sendo a negação perfeita daarrogância intelectual implícita na ideia de que oprocesso social deva ser submetido a um amplodirigismo.

Rodapé

78 Título de uma obra recente do historiador norte-americano C. L. Becker.79 Man and Society in an Age of Reconstruction, p.377.80 Peter Drucker (The End of Economic Man, p. 74)observa com razão que “quanto menos liberdade há,mais ouvimos falar em ‘nova liberdade’. Todavia,essa nova liberdade é uma simples palavra com quese encobre a negação completa de tudo quanto aEuropa já entendeu por liberdade. A nova liberdadeque se prega na Europa resume-se, entretanto, nodireito da maioria contra o indivíduo”.81 Webb, Sidney & Beatrice, Soviet Communism, p.1.038.82 Crowthcr, J. G., The Social Relations of Science,1941, p. 333.

Capítulo 12

As Raízes Socialistas doNazismo

“Todas as forças antiliberais estão se unindocontra tudo que é liberal”. – A. Moeller van den

BruckÉ um engano comum considerar o nacional-

socialismo uma simples revolta contra a razão, ummovimento irracional sem antecedentes intelectuais.Se assim fosse, constituiria um perigo bem menor.Nada mais longe da verdade, porém, ou mais ilusório.As doutrinas do nacional-socialismo representam oponto culminante de uma longa evolução de ideias,da qual participaram pensadores cuja influência se fezsentir muito além das fronteiras da Alemanha. Sejaqual for nossa opinião sobre as premissas em que sebasearam, não podemos negar que os criadores danova doutrina eram escritores de peso, que deixarama marca de suas ideias em todo o pensamentoeuropeu. O sistema se desenvolveu com coerência

implacável. Uma vez aceitas as suas premissas, nãose pode fugir à sua lógica. Trata-se simplesmente docoletivismo libertado de todos os vestígios de umatradição individualista que pudessem impedir-lhe arealização.

Embora os pensadores alemães tenham liderado oprocesso, de modo algum se pode dizer que foram osúnicos a trazer-lhe contribuições. Thomas Carlyle eHouston Stewart Chamberlain, Augusto Comte eGeorges Sorel distinguiram-se tanto quanto osalemães no desenvolvimento da doutrina nacional-socialista. Dessa constante evolução dentro daAlemanha, fez há pouco uma excelente exposição R.D. Butler em seu estudo The Roots of NationalSocialism (As Raízes do Nacional-Socialismo). Mas,embora seja um tanto alarmante verificar, pela leiturada obra de Butler, a permanência dessa doutrinanaquele país durante cento e cinquenta anos,manifestando-se reiteradamente e sob formainvariável, é fácil exagerar a importância que taisideias tinham na Alemanha antes de 1914.Constituíam apenas uma corrente de pensamentoentre muitas, numa sociedade que, na época,apresentava, talvez, maior variedade de opiniões quequalquer outra. E eram, em geral, ideias aceitas

apenas por uma pequena minoria e tão desprezadaspela maioria na Alemanha como nos demais países.

Por que, então, essas ideias, sustentadas por umaminoria reacionária, vieram a conquistar o apoio dagrande maioria do povo e de praticamente todos osjovens alemães? Não foram apenas a derrota, osofrimento e a onda de nacionalismo que asconduziram ao sucesso. Tampouco, como muitosquerem acreditar, foi o seu êxito ocasionado por umareação do capitalismo contra o avanço do socialismo.Ao contrário, o apoio a essas ideias veio precisamentedo lado socialista. Não foi, por certo, a burguesia,mas antes a ausência de uma burguesia forte, quefavoreceu sua escalada ao poder.

As doutrinas pelas quais, na geração anterior, aslideranças alemãs tinham-se pautado não se opunhamaos elementos socialistas do marxismo e sim aoselementos liberais que este continha – seuinternacionalismo e sua democracia. Ao se evidenciarcada vez mais que esses elementos eram justamenteos que constituíam um obstáculo à realização dosocialismo, os socialistas da esquerda aproximaram-secada vez mais dos da direita. Foi a união das forçasanticapitalistas da esquerda e da direita, a fusão do

socialismo radical e do socialismo conservador, quedestruiu na Alemanha tudo quanto ali havia de liberal.

Foi estreita, desde o início, a relação entre osocialismo e o nacionalismo naquele país. Ésignificativo que os mais ilustres precursores donacional-socialismo – Fichte, Rodbertus e Lassalle –sejam reconhecidos, ao mesmo tempo, comofundadores do socialismo. Enquanto o socialismoteórico, em sua forma marxista, dirigia o movimentotrabalhista alemão, o elemento autoritário enacionalista recuou durante algum tempo para osegundo plano. Isso não durou muito, contudo.83 De1914 em diante, das fileiras do socialismo marxistaforam surgindo doutrinadores que arrebanharam parao nacional-socialismo, não os conservadores e osreacionários, mas os trabalhadores e a juventudeidealista. Foi só a partir daí que a corrente nacional-socialista se projetou, transformando-se em poucotempo na doutrina hitlerista. A histeria de guerra de1914 que, por causa da derrota alemã, nunca seextinguiu por completo, é o ponto inicial dosdesdobramentos mais recentes que produziram onacional-socialismo, e foi em grande parte àcolaboração dos socialistas da velha escola que sedeveu a sua ascensão durante esse período.

O primeiro, e sob certos aspectos o maiscaracterístico representante desse processo demudança, é talvez o professor Werner Sombart, cujaobra famosa Händler und Helden (Comerciantes eheróis) foi publicada em 1915. Sombart a princípioera marxista e ainda em 1909 podia afirmar comorgulho que dedicara a maior parte da sua existênciaa lutar pelas ideias de Karl Marx. Empenhara-se aomáximo em difundir na Alemanha ideias socialistas eformas variadas de aversão ao capitalismo. E, se ali opensamento se impregnou de elementos marxistascomo em nenhum outro país antes da revoluçãorussa, isso se deveu em grande parte a Sombart. Emcerta época, ele foi considerado o maiorrepresentante da perseguida intelectualidadesocialista, ficando impossibilitado de ocupar umacátedra universitária por causa das suas opiniõesradicais. E mesmo depois da Primeira GuerraMundial, a influência exercida dentro e fora daAlemanha por sua obra de historiador, quecontinuava a apresentar uma abordagem marxistaapesar de ele ter abandonado o marxismo na política,foi das mais amplas e fez-se notar de modo especialnos escritos de muitos planejadores ingleses eamericanos.

Em seu livro sobre a guerra, esse velho socialistasaudou a “guerra alemã”, que considerava oinevitável conflito entre a civilização comercial daInglaterra e a cultura heroica da Alemanha. Não temlimites o seu desprezo pelas ideias “mercantis” dopovo inglês, que havia perdido todo o instintoguerreiro. Nada é mais desprezível aos seus olhos doque a busca generalizada da felicidade individual; e oque ele define como a máxima suprema da moralinglesa, “sê justo para que vivas bem e possasprolongar os teus dias sobre a terra”, é na sua opinião“a mais infame das máximas jamais formuladas porum espírito mercantil”. Ressalta a “concepçãogermânica do estado”, formulada por Fichte, Lassalee Rodbertus, segundo a qual o estado não é fundadoou formado por indivíduos; tampouco constitui umagregado de indivíduos ou tem por finalidade servir aqualquer interesse individual. É umVolksgemeinschaft (N. do R.: literalmente,“comunidade do povo”) em que os indivíduos nãotêm direitos mas apenas deveres.

Para Sombart, as reivindicações individuais sãosempre decorrência do espírito mercantil. “As ideiasde 1789” – Liberdade, Igualdade, Fraternidade – sãoconcepções características de sociedade baseadas no

comércio, sem outra finalidade que a de garantircertas vantagens ao indivíduo.

Segundo ele, todos os verdadeiros ideais alemãesde uma vida heroica estavam, antes de 1914,ameaçados de desaparecer por causa do avançocontínuo do pensamento mercantil inglês, do confortoinglês, do esporte inglês. Não só o povo inglês setornara inteiramente corrupto, e cada membro dossindicatos acabara “mergulhado no conforto”, comotambém havia começado a contagiar os outros povos.Só a guerra viera lembrar aos alemães que eles eramna realidade um povo de guerreiros, um povo no seiodo qual todas as atividades, e em particular aseconômicas, estavam subordinadas a objetivosmilitares. Sombart sabia que os outros povosdesprezavam os alemães porque para estes a guerraera sagrada – mas regozijava-se com isso.

Considerar a guerra algo desumano e insensato éum produto da mentalidade mercantil. Há uma vidasuperior à vida individual – a vida do povo e doestado – e a finalidade do indivíduo é sacrificar-sepor essa vida superior. A guerra é, para Sombart, aconsumação da perspectiva heroica da vida e a guerracontra a Inglaterra representa a luta contra o ideal

oposto, o ideal mercantil da liberdade individual e doconforto inglês que, para ele. encontra sua expressãomais desprezível nos aparelhos de barbearencontrados nas trincheiras inglesas.

Se as críticas violentas de Sombart pareceram, naépoca, excessivas mesmo a muitos alemães, outroprofessor alemão veio a formular ideias mais oumenos idênticas, sob uma forma mais moderada eerudita, e por isso mesmo mais eficaz. O professorJohann Plenge era tão grande autoridade em Marxquanto Sombart. Seu livro Marx und Hegel assinala oinício do moderno renascimento hegeliano entre ospensadores marxistas e não há dúvidas quanto aocaráter genuinamente socialista das convicções quelhe serviram de ponto de partida. Entre suasnumerosas publicações durante a guerra, a maisimportante é um livrinho muito discutido na época, eque tem o significativo título 1789 e 1914: os AnosSimbólicos na História do Espírito Político, Éconsagrado ao conflito entre as “Ideias de 1789”, oideal da liberdade, e as “Ideias de 1914”, o ideal daorganização.

A organização é para ele a essência do socialismo,como o é para todos os socialistas cuja doutrina

deriva de uma aplicação ingênua dos ideais científicosaos problemas da sociedade. Constituiu, como eleacentua com razão, a raiz do movimento socialistaquando este nasceu na França, no início do séculoXIX. Marx e o marxismo traíram essa ideia básica dosocialismo com sua adesão fanática e utópica à ideiaabstrata de liberdade. Somente agora a ideia deorganização estava voltando a assumir o seu legítimopapel nos demais países, como o atesta a obra de H.G. Wells (cujo Future in America exerceu profundainfluência sobre Plenge, que considera Wells uma dasmaiores figuras do socialismo moderno), mas emespecial na Alemanha, onde ela é melhorcompreendida e está mais plenamente realizada. Aguerra entre a Inglaterra e a Alemanha é, portanto, narealidade, um conflito entre dois princípios opostos. A“guerra econômica mundial” é a terceira grande faseda luta espiritual na história moderna. Tem a mesmaimportância que a reforma e a revolução burguesaliberal. É a luta pela vitória das novas forças nascidasdo progresso da vida econômica do século XIX: osocialismo e a organização.

Porque, na esfera das ideias, a Alemanha era omais convicto expoente de todos os sonhossocialistas, e na esfera da realidade, o poderoso

arquiteto do sistema econômico mais altamenteorganizado. Em nós vive o século XX. Seja qual foro fim da guerra, somos um povo exemplar. Nossasideias determinarão os objetivos da vida humana. AHistória assiste atualmente a um colossal espetáculo:conosco, um novo e grande ideal de vida avançarumo à vitória, enquanto ao mesmo tempo, naInglaterra, um dos princípios históricos mundiaisentra em colapso final.

A economia de guerra criada na Alemanha de 1914é o primeiro passo na construção de uma

sociedade socialista e seu espírito é a primeiramanifestação ativa, e não apenas reivindicatória, deum espírito socialista. As necessidades da guerrafirmaram a concepção socialista na vida econômicaalemã, e assim a defesa da nossa nação criou para ahumanidade a ideia de 1914, a ideia da organizaçãoalemã, a comunidade do povo (Volksgemeinschaft)nacional-socialista.Sem que nos apercebêssemosdisso, toda a nossa vida política, no estado e naeconomia, alçou-se a um plano superior. O estado e avida econômica constituem uma nova unidade. Osenso de responsabilidade econômica que caracterizao trabalho do servidor público impregna toda a

atividade privada. A nova constituição corporativa davida econômica alemã, que o professor Plenge admitenão estar ainda madura nem completa, é a mais altaforma de vida do estado que já se conheceu na terra.

No início, o professor Plenge ainda esperavaconciliar os ideais de liberdade e de organização,embora em grande parte mediante a submissãocompleta, porém voluntária, do indivíduo ao todo.Mas esses vestígios de ideias liberais logodesaparecem das suas obras. Por volta de 1918,consumara-se na sua mente a união entre osocialismo e a inexorável política de poder. Poucoantes do fim da guerra, dirigia ele esta exortação aosseus compatriotas no periódico socialista Die Glocke:

já é tempo de reconhecermos que o socialismodeve ser uma política de poder, porque resume-se emorganização. O socialismo deve conquistar o poder,nunca destruí-lo às cegas. E a questão maisimportante e crítica para o socialismo em tempo deguerra entre nações não pode deixar de ser esta: qualdesses povos é preeminentemente chamado ao poderpor ser o líder exemplar na organização dos povos?

E prenunciava todas as ideias que acabariam porjustificar a nova ordem de Hitler:

do ponto de vista do socialismo, que consiste emorganização, acaso o direito absoluto deautodeterminação dos povos não equivale ao direitode anarquia econômica individualista? Estaremosdispostos a conceder inteira autodeterminação aoindivíduo na vida econômica? O socialismo coerentesó pode conceder ao povo o direito de incorporaçãode acordo com a distribuição real de forçashistoricamente determinadas.

Os ideais expressos por Plenge com tanta clarezagozavam de especial aceitação em certos círculos decientistas e engenheiros alemães, onde talvez setenham originado. Como o exigem agora com tantaveemência os seus colegas ingleses e norte-americanos, clamavam pela organização centralplanejada de todos os aspectos da vida. Entre aquelescientistas, destacava-se o famoso químico WilhelmOstwald, que conquistou certa celebridade por seuspronunciamentos sobre a questão. Ostwald teriadeclarado publicamente:

a Alemanha quer organizar a Europa, que até hojecarece de organização. Vou explicar-lhes agora ogrande segredo da Alemanha: nós, ou talvez a raçaalemã, descobrimos a importância da organização.

Enquanto os outros povos ainda vivem sob o regimedo individualismo, nós já atingimos o regime daorganização.

Ideias muito semelhantes a estas eram correntesnos escritórios do ditador alemão das matérias-primas, Walter Rathenau, que teria ficado horrorizadose percebesse as consequências de suas concepçõeseconômicas totalitárias, mas que, no entanto, merecelugar de destaque numa história mais completa daevolução do pensamento nazista.

Com suas obras, Rathenau provavelmente moldou,mais que qualquer outro, as ideias econômicas dageração que cresceu na Alemanha durante a PrimeiraGuerra Mundial e nos anos subsequentes. Alguns dosseus colaboradores mais íntimos formariam maistarde a espinha dorsal da administração do planoquinquenal do Goering. Muito semelhantes eramtambém os ensinamentos de um outro ex-marxista,Friedrich Naumann, cuja obra Mitteleuropa foi talvezo livro da época da guerra que maior circulaçãoalcançou na Alemanha84. Caberia, porém, a um ativopolítico socialista, pertencente à ala esquerda dopartido social-democrata no Reichstag, desenvolveressas ideias da maneira mais completa e dar-lhes

ampla divulgação. Paul Lensch, em livros anteriores,já descrevera a guerra como “a fuga da burguesiainglesa ante o avanço do socialismo”, ressaltandoquão diferentes eram o ideal socialista de liberdade ea concepção inglesa. Mas somente em seu terceirolivro sobre a guerra, Três Anos de RevoluçãoMundial (de todos o de maior sucesso), suas ideiascaracterísticas, sob a influência de Plenge,alcançariam pleno desenvolvimento.85 Lensch baseia-se num relato histórico interessante, e sob muitosaspectos exato, de como o sistema protecionistaadotado por Bismarck tornara possível na Alemanhauma evolução no sentido da concentração industrial eda cartelização que, segundo a sua ótica marxista,representava um estágio superior do desenvolvimentoindustrial.

Como consequência da decisão de Bismarck em1879, a Alemanha assumiu um papel revolucionário,isto é, o papel de um estado que ocupava em relaçãoao resto do mundo a posição de representante de umsistema econômico superior e mais avançado. Tendocompreendido isso, deveríamos perceber que napresente revolução mundial a Alemanha representa olado revolucionário e sua grande antagonista, aInglaterra, o lado contrarrevolucionário. Isso prova

quão pouco importa a constituição de um país, sejaela liberal e republicana ou monárquica e autocrática,para que esse país seja considerado liberal ou não, doponto de vista do desenvolvimento histórico. Ou, emtermos mais claros, nossa concepção de liberalismo,democracia etc, deriva da filosofia do individualismoinglês, segundo a qual um estado com um governofraco é um estado liberal, e toda restrição a liberdadedo indivíduo é encarada como um produto daautocracia e do militarismo.

Na Alemanha, “designada pela história” pararepresentar essa forma superior de vida econômica,

a luta pelo socialismo foi sobremodo simplificada,pois nesse país todos os requisitos do socialismo já seachavam estabelecidos. Portanto, eranecessariamente de vital interesse para qualquerpartido socialista que a Alemanha triunfasse sobre osseus inimigos, para poder assim cumprir sua missãohistórica de revolucionar o mundo. É por isso que aguerra da Entente contra a Alemanha se assemelhavaa uma tentativa da pequena burguesia da época pré-capitalista de impedir sua própria decadência. Aorganização do capital [continua Lensch] iniciadainconscientemente antes da guerra, e prosseguindo de

modo consciente no decorrer desta, continuará adesenvolver-se de forma sistemática depois da guerra– isso, não pelo desejo de desenvolver a técnica deorganização, e tampouco porque o socialismo tenhasido reconhecido como um princípio superior dedesenvolvimento econômico.As classes queconstituem hoje, na prática, as pioneiras dosocialismo, são, na teoria, as suas inimigas confessas,ou, em todo caso, o eram até há bem pouco. Osocialismo está próximo, e, de certo modo, já chegou,visto que não podemos mais viver sem ele.

Os únicos que ainda se opõem a essas tendênciassão os liberais.

Essa classe de indivíduos, que inconscientementeraciocina segundo padrões ingleses, abrange toda aburguesia alemã de formação acadêmica. Seusconceitos políticos de “liberdade” e “direitos civis”,de constitucionalismo e parlamentarismo, derivam daconcepção individualista do mundo, de que oliberalismo inglês é uma encarnação clássica, e quefoi adotada pelos representantes da burguesia alemãno período que vai de 1850 a 1880. Mas essespadrões são antiquados e decadentes, exatamentecomo o antiquado liberalismo inglês, destruído por

esta guerra. O que cumpre fazer agora é eliminaressas ideias políticas que herdamos e contribuir parao desenvolvimento de uma nova concepção doestado e da sociedade. Também nessa esfera, osocialismo deve fazer uma oposição consciente eresoluta ao individualismo. A esse respeito, ésurpreendente que, na chamada Alemanha“reacionária”, as classes trabalhadoras tenhamconseguido conquistar uma posição muito mais sólidae poderosa na vida do estado do que na Inglaterra ouna França.

Lensch prossegue com uma consideração bastantecorreta e digna de ponderação:

Os social-democratas, com o auxílio desse sufrágio[universal], ocuparam todos os postos que podiamobter no Reichstag, no parlamento, nos conselhosmunicipais, na Justiça do Trabalho, nos institutos deprevidência social, e assim por diante. Desse modo,penetraram fundo no organismo do estado. Mas opreço disso foi que o estado, por sua vez, passou aexercer grande influência sobre as classestrabalhadoras. Sem dúvida, como resultado do árduoesforço desenvolvido pelos socialistas durantecinquenta anos, o estado já não é o mesmo de 1867,

quando foi implantado o sufrágio universal; mas, porsua vez, a social-democracia já não é a mesmadaquela época. O estado passou por um processo desocialização e a social-democracia sofreu umprocesso de estatização.

Plenge e Lensch forneceram as ideias quenortearam os doutrinadores imediatos do nacional-socialismo, em especial Oswald Spengler e A.Moeller van den Bruck, para mencionarmos apenasos dois nomes mais conhecidos.86 Até que ponto oprimeiro pode ser considerado um socialista? Asopiniões podem divergir, mas torna-se agora evidenteque no seu opúsculo sobre Prussianismo eSocialismo, publicado em 1920, ele apenasexpressou ideias amplamente defendidas pelossocialistas alemães. Alguns argumentos por eleutilizados bastarão para comprová-lo. “O velhoespírito prussiano e a convicção socialista, que hojese odeiam com um ódio de irmãos, equivalem àmesma coisa.” Os representantes da civilizaçãoocidental na Alemanha, os liberais alemães, são “oexército inglês invisível que, após a batalha de Iena,Napoleão deixou atrás de si em solo alemão”. ParaSpengler, homens como Hardenberg, Humboldt etodos os demais reformadores liberais eram

“ingleses”. Mas esse espírito “inglês” será eliminadopela revolução alemã iniciada em 1914.

As três últimas nações do Ocidente aspiraram atrês formas de existência, representadas pelasfamosas divisas: liberdade, igualdade, comunidade.Elas aparecem nas formas políticas doparlamentarismo liberal, da democracia social e dosocialismo autoritário.87 ...Segundo o instinto alemão,ou, mais corretamente, prussiano, o poder pertenceao todo. ...A cada um é atribuída uma posição: ou secomanda, ou se obedece. Este é, desde o séculoXVIII, o socialismo autoritário, essencialmenteantiliberal e antidemocrático, pelos padrões doliberalismo inglês e da democracia francesa. ...Há naAlemanha muitos contrastes detestados e mal vistos,mas só o liberalismo é desprezível no territórioalemão.

A estrutura da nação inglesa baseia-se na distinçãoentre ricos e pobres; a da nação prussiana, nadistinção entre comando e obediência. O significadoda distinção de classes é, pois, fundamentalmentediverso nos dois países.

Após apontar a diferença essencial entre o sistemacompetitivo inglês e o sistema prussiano de

“administração econômica”, e tendo mostrado (numarepetição propositada dos conceitos de Lensch) quedepois de Bismarck a organização deliberada daatividade econômica assumira progressivamenteformas cada vez mais socialistas, Spengler prossegue:

Na Prússia existia um verdadeiro estado, na maisambiciosa acepção da palavra. Rigorosamentefalando, lá não podia haver indivíduos. Todos os queviviam dentro do sistema, que funcionava com umaprecisão de mecanismo de relógio, eram, de certomodo, uma peça desse sistema. A direção dosnegócios públicos não podia, portanto, achar-se nasmãos de particulares, como pressupõe oparlamentarismo. Era um Amt (N. do T.:literalmente, “seção, departamento”), e o políticoresponsável por ela era um servidor público, umservidor do todo.

A “ideia prussiana” exige que cada um se torne umfuncionário do estado e que todos os salários eremunerações sejam fixados por este. Em especial, aadministração de toda propriedade se converte numafunção assalariada. O estado do futuro será umBeamtenstaat. Mas

a questão decisiva, não só para a Alemanha, como

para o mundo inteiro e que a Alemanha deve resolverpara o mundo, é a seguinte: deverá a economia nofuturo dirigir o estado, ou o estado dirigir aeconomia? Em face dessa questão, prussianismo esocialismo se identificam. Prussianismo e socialismocombatem a Inglaterra entre nós.

Não tardaria muito, e o expoente máximo donacional-socialismo, Moeller van den Bruck,proclamaria a Primeira Guerra Mundial – uma guerraentre o liberalismo e o socialismo: “Nós perdemos aguerra contra o Ocidente. O socialismo perdeu-a parao liberalismo”.88 Como para Spengler, o liberalismo é,pois, o arqui-inimigo. Moeller van den Bruckvangloria-se de que

não há hoje liberais na Alemanha: há jovensrevolucionários e jovens conservadores. Mas quemdesejaria ser liberal? ...O liberalismo é uma filosofiade vida à qual a juventude alemã volta hoje as costascom nojo, cólera e um desprezo especial, pois não hánada mais exótico, mais repugnante e mais contrárioà sua filosofia. A juventude alemã dos nossos diasreconhece no liberalismo o arqui-inimigo.

O terceiro reich de Moeller van den Bruckpropunha-se dar aos alemães um socialismo adaptado

à sua índole e não maculado pelas ideias liberais doOcidente. E assim o fez. Esses escritores nãoconstituíam em absoluto um fenômeno isolado. Já em1922, um observador imparcial falava de um“fenômeno peculiar e, à primeira vista,surpreendente” que então se verificava na Alemanha.

De acordo com essa opinião, a luta contra a ordemcapitalista é uma continuação da guerra contra aEntente, com as armas do espírito e da organizaçãoeconômica; é o caminho que conduz ao socialismo naprática, a volta do povo alemão às suas melhores emais nobres tradições.89

A luta contra todas as formas desse liberalismo quederrotara a Alemanha foi a ideia comum que uniunuma frente única socialistas e conservadores. Aprincípio, foi sobretudo no Movimento da JuventudeAlemã, quase inteiramente socialista em suainspiração e perspectiva, que essas ideias foram maisprontamente aceitas e que se completou a fusão dosocialismo com o nacionalismo. No fim da década de1920, e até a ascensão de Hitler ao poder, formou-seem torno da revista Die Tat, dirigida por FerdinandFried, um grupo de jovens que se tornou o expoentedessa tradição na esfera intelectual. A obra Ende des

Kapiíalismus (O Fim do Capitalismo), de Fried, étalvez o produto mais característico desse grupo deEdennazis (N. do T.: literalmente, “elite nazista”),como eram conhecidos na Alemanha, e tem umaspecto sobremodo inquietante devido a suasemelhança com grande parte da literatura que vemosna Inglaterra de hoje, onde se pode observar amesma aproximação entre socialistas de esquerda ede direita, e quase o mesmo desprezo por tudoquanto é liberal na acepção clássica. “Socialismoconservador” (e, em outros círculos, “socialismoreligioso”) foi o slogan sob o qual muitos escritoresprepararam o clima que iria propiciar o sucesso donacional-socialismo. E o “socialismo conservador” éhoje a orientação dominante entre nós. A guerracontra as potências do Ocidente – “com as armas doespírito e da organização econômica” – já não estariaquase vencida, antes de a verdadeira guerra começar?

Rodapé

83 E só se verificou em parte. Em 1892, um doslíderes do partido social-democrata, August Bebel,declarava a Bismarck: “o chanceler imperial pode

ficar certo de que a social-democracia alemã é umaespécie de escola preparatória para o militarismo”.84 Um bom sumário das ideias de Naumann, tãocaracterísticas da fusão alemã de socialismo eimperialismo quanto as demais que citamos no texto,se encontra em R. D. Butler, The Roots of NationalSocialism, 1941, pp. 203-9.85 Lensch, P. Three Years of World Revolution,prefácio de J. E. M., Londres, 1918. A traduçãoinglesa dessa obra foi publicada, ainda durante aúltima guerra, por algum espirito previdente.86 O mesmo se aplica a muitos outros líderesintelectuais da geração que produziu o nazismo, taiscomo Othmar Spann, Hans Freyer, Carl Schmitt eErnst Jünger. Com respeito a estes, consulte-se ointeressante estudo de Aurel Kolnai, The War Againstthe West (A Guerra contra o Ocidente, 1938), o qual,todavia, limita-se ao período de pós-guerra, quandoesses ideais já tinham sido adotados pelosnacionalistas, apresentando o defeito de nãomencionar os socialistas que os haviam criado.87 Essa fórmula spengleriana encontra eco numaafirmação muito citada de Carl Schmitt, o maiorespecialista do nazismo em direito constitucional, deacordo com o qual a evolução do governo

desenvolve-se em “três fases dialéticas: do estadoabsoluto dos séculos XVII e XVIII, passando peloestado neutro do século XIX liberal, ao estadototalitário, em que estado e sociedade se identificam”(Schmitt, Carl, Der Hüter der Verfassung.[Tübingen, 1931]. p. 79).88 Bruck, A. Moeller van den. Sozialismus undAussenpolitik, 1933, pp. 87, 90 e 100. Os artigosreproduzidos nesse livro, em particular o que trata de“Lenin e Keynes”, discutindo de modo maisexaustivo a questão de que tratamos, forampublicados pela primeira vez entre 1919 e 1923.89 Pribram, K. “Deutscher Nationalismus undDeutscher Sozialismus”, em Archiv fürSozialwissenschaft und Sozialpolitik, v. 49, 1922,pp. 298-9. O autor menciona, como outros exemplos,o filósofo Max Scheler, o qual pregava “a missãosocialista da Alemanha no mundo”, e o marxista K.Korsch, que escreve dentro do espírito da novaVolksgemeinschaft; ambos, segundo ele, seguem amesma linha de argumentação.

CAPÍTULO 13

OS TOTALITÁRIOS EM NOSSO MEIO

“Quando a autoridade se apresenta disfarçadaem organização, aumenta de tal modo o seu

fascínio que pode levar nações livres a converter-se em estados totalitários”. – The Times

É provável que a própria enormidade dasviolências cometidas pelos governos totalitários, emvez de aumentar o receio de que tal sistema possasurgir um dia na Inglaterra, tenha fortalecido acerteza de que “isso não pode acontecer aqui”.Quando consideramos a Alemanha nazista, afigura-setão imenso o abismo que dela nos separa, que nadado que lá sucede parece ter relação com o curso dosacontecimentos em nosso país. E o fato de essadiferença se ter acentuado cada vez mais pareceafastar qualquer suspeita de que podemos estarcaminhando no mesmo sentido. Não esqueçamos,porém, que quinze anos atrás a possibilidade de talcoisa vir a acontecer na Alemanha não pareceriamenos fantástica, não só para noventa por cento dopróprio povo alemão mas também para a maioria dosobservadores estrangeiros hostis (por mais sagazesque agora pretendam ter sido).

Todavia, como sugerimos anteriormente, não écom a Alemanha de hoje mas com a Alemanha de hávinte ou trinta anos que as nossas condições atuaisdenotam uma semelhança crescente. Muitosaspectos, então considerados “tipicamente alemães”,hoje são familiares na Inglaterra, e muitos sintomasfazem prever outros avanços na mesma direção. Jámencionamos o mais significativo deles: a crescenteanalogia entre os pontos de vista da direita e daesquerda no campo da economia, e sua comumoposição ao liberalismo que constituía a base dequase toda a política inglesa. Apoiados na autoridadede Harold Nicolson, podemos afirmar que, durante oúltimo governo conservador, entre os líderes dopartido no parlamento, “os mais bem dotados ...eramtodos simpatizantes do socialismo”;90 e não se podenegar que, como no tempo dos fabianos, muitossocialistas mostram mais simpatia pelosconservadores do que pelos liberais.

E há muitos outros aspectos intimamenterelacionados a este. A crescente veneração ao estado,a admiração pelo poder e pela grandeza em simesma, o entusiasmo pela “organização” em todos oscampos (que agora chamamos “planejamento”), e a“incapacidade de deixar qualquer coisa entregue às

leis do seu crescimento orgânico”, que mesmo H.vonTreitschke deplorava na Alemanha há sessenta anos,são quase tão acentuados na Inglaterra de hoje comoo eram na época naquele país.

Nos últimos vinte anos, a Inglaterra tem percorridoa trilha aberta pela Alemanha, e isso torna-seextraordinariamente claro em alguns dos estudos maisprofundos sobre as diferenças entre as ideias inglesase alemães relativas a questões políticas e morais queforam publicados na Inglaterra durante a PrimeiraGuerra.

Talvez possamos afirmar que então o públicobritânico tinha, em geral, uma percepção maisaguçada dessas diferenças do que se tem agora; mas,enquanto o público inglês naquela época se orgulhavadas próprias tradições, hoje mostra-se um poucoenvergonhado de quase todas as ideias políticas queeram consideradas tipicamente suas – quando não asrepudia de maneira categórica. Não é exagero dizerque os autores de obras sobre problemas políticos ousociais que pareciam então mais tipicamente inglesessão os mais esquecidos hoje em dia em seu própriopaís.

Pensadores como Lord Morley ou Henry

Sidgwick, Lord Acton ou A. V. Dicey, entãouniversalmente admirados como exemplos marcantesda sabedoria política da Inglaterra liberal, para ageração atual não passam, em grande parte, devitorianos antiquados. Talvez nada revele com maiornitidez essa transformação do que a constantesimpatia com que a literatura inglesa contemporânease refere a Bismarck, ao passo que o nome deGladstone é raramente mencionado pela atual geraçãosem um sorriso de escárnio para com sua moralidadevitoriana e sua ingênua utopia.

Gostaria de transmitir de modo adequado, empoucos parágrafos, a alarmante impressão colhida daleitura de algumas obras inglesas sobre as concepçõesque dominavam a Alemanha da última guerra, nasquais quase tudo que se diz poderia ser aplicado àsideias mais presentes na literatura inglesa atual.Limitar-me-ei a citar uma breve passagem de LordKeynes, descrevendo em 1915 o “pesadelo” queconstituía para ele o exposto numa obra alemãdaquele período. Conta Lord Keynes que, segundo oautor alemão,

mesmo em tempo de paz a atividade industrialdeve continuar mobilizada para a guerra. É isso o que

ele entende quando fala em “militarização da nossaatividade industrial” [título do livro em apreço]. Oindividualismo deve terminar em definitivo. É precisocriar um sistema de controles cujo objetivo não seja amaior felicidade do indivíduo (o professor Jaffé nãose envergonha de dizê-lo ipsis verbis), mas ofortalecimento da unidade estatal organizada a fim deatingir o grau máximo de eficiência(Leistungsfâhigkeit), cuja influência traria vantagensindividuais apenas de forma indireta. – Esta horrendadoutrina é envolta numa espécie de idealismo. Anação se converterá numa “unidade fechada”,tornando-se, na verdade, aquilo que ela deveria sersegundo Platão: “Der Mensch im Grossen” ( N. doT. Literalmente, “o homem, o povo em suatotalidade”).Em particular, a futura paz trará consigoo fortalecimento da ideia de ação estatal na indústria.Os investimentos estrangeiros, a emigração, a políticaindustrial que até há bem pouco considerava omundo inteiro um mercado, são por demaisperigosos. A velha ordem econômica, hojeagonizante, baseia-se no lucro; na nova Alemanha doséculo XX, o poder, sem levar em conta o lucro,deverá pôr fim a esse sistema capitalista, que nosveio da Inglaterra há cem anos”.91

Ainda que nenhum escritor inglês tenha ousado atéagora, que eu saiba, menosprezar abertamente afelicidade individual, haverá nesta citação algumapassagem que não encontre equivalente em boa parteda literatura inglesa contemporânea?

E, sem dúvida, não são apenas as ideias que naAlemanha e em outros países prepararam o caminhodo totalitarismo, mas muitos princípios do própriototalitarismo, que exercem um crescente fascínio emtantas partes do mundo. Embora, na Inglaterra,ninguém, ou muito poucos estivessem dispostos aaceitar o totalitarismo in totum, raros são os aspectosdesse sistema que ainda não tenhamos sidoaconselhados a imitar por este ou aquele autor. Édifícil, com efeito, encontrar uma página do livro deHitler onde não figure algo que nos tenha sidorecomendado neste país para a consecução dosnossos próprios fins. Isso se aplica em particular amuitos que são inimigos mortais de Hitler por causade um aspecto particular do seu sistema, Nuncadeveríamos esquecer que o antissemitismo de Hitlerexpulsou do seu país ou converteu em inimigosmuitos homens que, sob todos os aspectos, sãototalitários convictos do tipo alemão.92

Nenhuma descrição em termos gerais poderá daruma ideia correta da semelhança existente entregrande parte da atual literatura política inglesa e obrasque destruíram na Alemanha a crença na civilizaçãoocidental, criando a mentalidade que favoreceu oêxito do nazismo. Semelhança muito mais em termosda atitude com que são abordados os problemas, doque dos argumentos específicos usados – a mesmadisposição a romper todos os laços culturais com opassado e arriscar tudo no êxito de determinadaexperiência. Como sucedeu também na Alemanha, amaioria das obras que estão preparando o caminhopara a adoção de processos totalitários neste país sãoproduto de idealistas sinceros e muitas vezes dehomens de considerável força intelectual. Conquantoseja injusto destacar certos indivíduos como exemploquando opiniões semelhantes são defendidas porcentenas de outros, não vejo modo diverso dedemonstrar até que ponto esse processo já avançouneste país.

Escolherei deliberadamente autores cujasinceridade e imparcialidade estão acima de qualquersuspeita. Mas embora espere mostrar dessa formacom que rapidez se estão espalhando aqui as ideiasque engendram o totalitarismo, é pouco provável que

consiga exprimir a semelhança, não menosimportante, que existe na atmosfera emocional. Serianecessária uma extensa pesquisa de todas asmudanças sutis de pensamento e linguagem paraexplicitar o que facilmente reconhecemos comosintomas de um curso de acontecimentos bastanteconhecido. Tratando com as pessoas que falam sobreas necessidade de contrapor “grandes” ideias a“pequenas” ideias e de substituir o velho pensamento“estático” ou “parcial” por um pensamento novo,“dinâmico” e “global”, começamos a compreenderque aquilo que a princípio se afigura um absurdopuro e simples é um sinal da mesma atitudeintelectual cujas manifestações são as únicas que nosinteressam no presente trabalho.

Os primeiros exemplos que escolhi são duas obrasde um estudioso de grande talento que vêm atraindomuita atenção nos últimos anos. Na literatura inglesacontemporânea, são talvez poucos os casos em que ainfluência das ideias especificamente alemãs de queestamos tratando é tão marcante quanto nos livros doprofessor E. H. Carr, intitulados Twenty Years’ Crisise Conditions of Peace.

No primeiro desses dois livros, o professor Carr

confessava-se francamente um adepto “’da escolahistórica’ de realistas [que] teve seu berço naAlemanha e [cuja] evolução foi determinada pelosgrandes nomes de Hegel e Marx”. Um realista,explica ele, é um homem “cuja moral varia emfunção da política” e que “logicamente não podeaceitar nenhum padrão de valor que não os dosfatos”. Esse “realismo” é contraposto, em estilo bemalemão, ao pensamento “utópico” do século XVIII,“em essência individualista por fazer da consciênciahumana o supremo tribunal de apelação”. Mas avelha moral com seus “princípios gerais abstratos”deve desaparecer porque “o empirista trata o casoconcreto de acordo com os seus méritosparticulares”.

Em outras palavras, a única coisa que importa é aconveniência do momento, e assevera-se até que “aregra pacta sunt servanda não é um princípio demoral”. O professor Carr não parece preocupar-secom o fato de que sem princípios abstratos gerais omérito se torna simples questão de opinião arbitrária eos tratados internacionais, quando não obrigammoralmente, não têm sentido algum.

Na verdade, a crer no professor Carr (embora ele

não o afirme de modo explícito) dir-se-ia que aInglaterra lutou do lado errado na Primeira GuerraMundial. Relendo hoje a exposição dos objetivosingleses de guerra de Vinte e cinco anos atrás ecomparando-a às opiniões atuais do professor Carr,compreende-se de pronto que o que então seacreditava serem as ideias alemãs são agora as desseautor. Ele argumentaria, provavelmente, que asopiniões diferentes então sustentadas neste país eramsimples produtos da hipocrisia britânica. Para ele,existe pouca diferença entre os ideais defendidos naInglaterra e os que vigoram na Alemanha daatualidade, conforme se pode comprovar na suaafirmação de que

quando um nacional-socialista preeminenteassevera que “tudo quanto beneficia o povo alemão éjusto e tudo quanto o prejudica é injusto”, estáapenas propondo a mesma identificação do interessenacional com a justiça universal já estabelecida nospaíses de língua inglesa por Wilson [o presidentenorte-americano], pelo professor Toynbee, por LordCecil e muitos outros.

Como os livros do professor Carr são dedicados aproblemas internacionais, é sobretudo nesse campo

que se evidencia a sua tendência característica. Mas,pelo que se pode perceber sobre a natureza dasociedade futura por ele visada, tudo indica tambémque ela seguiria o modelo totalitário. Às vezes,chegamos a nos perguntar se essa semelhança seráacidental ou intencional. O professor Carr afirma, porexemplo, que “já não tem muito sentido, para nós, adistinção comum ao pensamento do século XIX entre‘sociedade’ e ‘estado’”. Perceberá ele que essa éprecisamente a doutrina do professor Carl Schmitt, omaior teórico nazista do totalitarismo, constituindomesmo a essência da definição que esse autor deu aotermo totalitarismo, por ele próprio introduzido? E aoacrescentar que “a produção em massa da opiniãopública é o corolário da produção em massa demercadorias” e que, por conseguinte, “o preconceitoque a palavra propaganda desperta ainda em muitosespíritos guarda estreito paralelismo com opreconceito contra o controle da indústria e docomércio”, saberá ele que essa ideia é na realidadeum pretexto para o controle da opinião, como épraticado pelos nazistas?

No livro mais recente, Conditions of Peace, oprofessor Carr responde com uma afirmativa enfáticaà pergunta que encerrou nosso último capítulo:

Os vencedores perderam a paz, que foi ganha pelaRússia Soviética e pela Alemanha, porquecontinuaram a pregar, e em parte a praticar, os ideaisdos direitos das nações e do capitalismo tipo laissez-faire – ideais outrora válidos mas hojedesagregadores. As últimas, porém, deixando-se levarconsciente ou inconscientemente pela maré do séculoXX, esforçavam-se para construir o mundo emunidades maiores, sob um planejamento e umcontrole centralizados.

O professor Carr adota por completo o grito debatalha alemão da revolução socialista do leste contrao oeste liberal, liderada pela Alemanha:

...a revolução que começou na última guerra e quetem sido a força propulsora dos movimentos políticosmais importantes destes últimos vinte anos ...umarevolução contra as ideias que predominaram noséculo XIX: a democracia liberal, a autodeterminaçãodos povos e o princípio do laissez-faire naeconomia”.

Como ele mesmo diz com razão, “era quaseinevitável que esse desafio às ideologias do séculoXIX, que a Alemanha nunca defendera de fato, nelaencontrasse um de seus mais fortes protagonistas”.

Com a mesma fé fatalista de todos os pseudo-historiadores desde Hegel e Marx, esse processo éapresentado como inevitável: “sabemos em quedireção caminha o mundo e temos de caminhar comele ou perecer”.

A convicção de que essa tendência é inevitávelbaseia-se, de modo característico, em conhecidoserros do pensamento econômico – a supostanecessidade de um surto geral de monopólios emconsequência dos progressos tecnológicos, a alegada“abundância em potencial” e todos os demais sloganspopulares que aparecem em obras dessa espécie. Oprofessor Carr não é um economista, e seusargumentos econômicos em geral não resistem a umexame profundo. Mas nem isso, nem a convicção,defendida por ele ao mesmo tempo, de que aimportância do fator econômico na vida social estádiminuindo rapidamente, o impedem de basear emargumentos econômicos todas as suas profecias sobreum processo inevitável, ou de apresentar como suaprincipal reivindicação para o futuro “areinterpretação, em termos predominantementeeconômicos, dos ideais democráticos de ‘igualdade’ e‘liberdade’”.

• O desprezo do professor Carr por todas as ideiasdos economistas liberais (que ele insiste em chamarideias do século XIX, embora saiba que a Alemanha“nunca as defendera realmente” e já no século XIXpraticava a maior parte dos princípios que ele hojesustenta) é tão profundo quanto o de qualquer autoralemão citado no capítulo anterior. Apropria-semesmo da tese alemã, lançada por Friedrich List deque o livre comércio era uma política ditada pelosinteresses dos empresários ingleses no século XIX eadequada apenas a esses interesses. Agora, contudo,“a criação artificial de um certo grau de autarquia éuma condição necessária à existência socialorganizada”. “A volta a um intercâmbio mundial maisdisperso e mais generalizado ... mediante a ‘remoçãodas barreiras ao comércio’ ou a readoção dosprincípios do laissez faire do século XIX” é“inconcebível”. O futuro pertence àGrossraumwirtschaft (N. do T.: literalmente,“economia dos grandes espaços”) do tipo alemão:“O resultado que desejamos só pode ser conseguidopor uma reorganização deliberada da vida europeia,tal como aquela empreendida por Hitler”.

Depois de tudo isso, não nos surpreendemos deencontrar uma seção intitulada “As funções morais da

guerra”, em que o professor Carr, condescendente,lastima “as pessoas bem-intencionadas(especialmente nos países de língua inglesa) que,embebidas na tradição do século XIX, persistem emconsiderar a guerra insensata e sem propósito”, erejubila-se com o “sentimento de que a vida temsignificado e propósito” criado pela guerra, “o maispoderoso instrumento de solidariedade social”. Tudoisso nos é muito familiar – mas não esperávamosencontrar tais ideias em obras de autores ingleses.

É possível que ainda não tenhamos dedicadoatenção suficiente a um dos aspectos da evoluçãointelectual na Alemanha durante os últimos cem anos,o qual está agora surgindo neste país de forma quaseidêntica: o movimento dos cientistas em prol de umaorganização “científica” da sociedade. O ideal de umasociedade totalmente organizada de cima para baixofoi muito estimulado na Alemanha pela influênciasem par que os especialistas daquele país nos camposda tecnologia e das ciências puderam exercer sobre aformação das opiniões políticas e sociais. Poucos serecordam de que na história moderna da Alemanhaos professores engajados na política desempenharamum papel comparável ao dos juristas políticos naFrança93. A influência desses cientistas voltados para

a política nem sempre atuou, nos últimos anos, nosentido da liberdade; a “intolerância fundada noracionalismo”, que tantas vezes se faz notar nocientista, a impaciência ante o comportamento dohomem comum, tão característica dos especialistas, eo desprezo por tudo que não tenha sido organizadode modo consciente por espíritos superiores segundoum plano científico, foram atitudes comuns na vidapública da Alemanha durante gerações, antes de setornarem significativas na Inglaterra. E talvez nenhumoutro país ilustre melhor que a Alemanha entre 1840e 1940 as consequências que a passagem integral dosistema educativo das “humanidades” para o das“realidades” tem sobre um povo94.

A maneira pela qual, com poucas exceções, seusestudiosos e cientistas acabaram por se colocarprontamente a serviço dos novos governantes é umdos espetáculos mais deprimentes e vergonhosos emtoda a história da ascensão do nacional-socialismo.95

Apesar de cientistas e engenheiros, em alto e bomsom, terem-se proclamado líderes da marcha para ummundo novo e melhor, sua classe foi uma dasprimeiras a prontamente submeter-se à nova tirania.96

O papel que os intelectuais desempenharam natransformação totalitária da sociedade já fora previstopor Julien Benda, cuja obra Trahison des Clercsassume nova importância quinze anos após suapublicação. Há nesse livro uma passagem, emparticular, que merece ser examinada com atenção elembrada ao considerarmos certas incursões doscientistas britânicos na política. Trata-se da passagemem que Benda fala da

superstição que considera a ciência competente emtodos os campos, inclusive o da moral; superstição,repito, adquirida do século XIX. Resta descobrir seaqueles que ostentam essa doutrina acreditam nela oudesejam apenas conferir o prestígio de uma aparênciacientífica às suas paixões, embora saibamperfeitamente que não passam de paixões. É de notarque o dogma segundo o qual a história obedece a leiscientíficas é pregado sobretudo pelos partidários daautoridade arbitrária. Isso é muito natural, poiselimina as duas realidades mais odiadas por eles, istoé, a liberdade humana e a ação histórica do indivíduo.

Já tivemos ocasião de mencionar um produtoinglês desse gênero, uma obra em que, sobre umfundo marxista, todas as idiossincrasias típicas do

intelectual totalitário, o ódio a quase tudo quantodistingue a civilização ocidental desde a Renascença,associa-se à aprovação dos métodos da Inquisição.Não desejamos considerar aqui um caso tão extremoe escolheremos uma obra mais representativa e quealcançou considerável publicidade. O pequeno livrodo doutor C. H. Waddington com o significativo títuloThe Scientific Attitude é um bom exemplo daliteratura ativamente patrocinada pelo influentesemanário inglês Nature, que combina asreivindicações de maior poder político para oscientistas com a ardente defesa de um“planejamento” em grande escala. Embora não sejatão franco em seu desprezo pela liberdade quantoCrowther, o doutor Waddington não é muito maisencorajador do que ele. Difere da maior parte dosescritores do mesmo gênero pelo fato de percebercom clareza e até enfatizar que as tendências por eledescritas e defendidas conduzem inevitavelmente aum sistema totalitário. E, ainda assim, tudo indica queisso lhe parece preferível ao que domina “a feroz etresloucada civilização atual”.

A afirmação do doutor Waddington, de que ocientista possui qualificações para dirigir umasociedade totalitária, baseia-se sobretudo em sua tese

de que “a ciência é capaz de julgar a conduta humanado ponto de vista ético”, tese que, ao ser por eledesenvolvida, recebeu de Nature considerávelpublicidade. Trata-se como se vê, de uma ideia queos cientistas alemães comprometidos com a políticahá muito conheciam e que Julien Benda, com acerto,escolheu para alvo de sua crítica. Paracompreendermos o que isso significa, não precisamosir além do livro de Waddington. A liberdade, explicaele, “é um conceito que o cientista tem muitadificuldade em discutir, até certo ponto porque elenão está convencido de que, em última análise, talcoisa exista”. Não obstante, acrescenta que “a ciênciareconhece” algumas espécies de liberdade, mas “aliberdade de ser excêntrico e diferente dos seusconcidadãos não tem valor científico”. Ao queparece, as “humanidades sedutoras”, das quaisWaddington fala com tanto desdém,desencaminharam-nos perigosamente ao ensinar-nosa tolerância.

Esse livro sobre a “atitude científica” nada tem decientífico quando aborda questões sociais eeconômicas – o que, aliás, estamos acostumados aencontrar em obras desse gênero. Deparamos aquimais uma vez com todos os conhecidos clichês e as

generalizações infundadas sobre a “abundância empotencial” e a tendência inevitável ao monopólio,embora as “maiores autoridades” citadas pararespaldar essas afirmações não passem de panfletospolíticos de duvidoso valor científico, enquantoestudos sérios dos mesmos problemas sãomanifestamente negligenciados.

Como em quase todas as obras desse gênero, asconvicções de Waddington são em grande partedeterminadas pela sua crença nas “tendênciashistóricas inevitáveis” que a ciência teriasupostamente descoberto. Ele as extrai da “profundafilosofia científica” do marxismo, cujas ideias básicassão “quase, senão de todo, idênticas às que servemde fundamento ao enfoque científico da natureza”. A“competência para julgar” do doutor Waddington lhediz que essas “tendências históricas inevitáveis”constituem um progresso sobre tudo o que se pensaraantes. Assim, embora para Waddington seja “inegávelque a Inglaterra é agora um país onde a vida é maisdifícil” do que em 1913, ele confia na implantação deum sistema econômico que ‘será centralizado etotalitário no sentido de que todos os aspectos dodesenvolvimento econômico de vastas regiões serãosubmetidas a um planejamento consciente e

integrado”. E quanto ao seu otimismo fácil, que dácomo certa a preservação da liberdade depensamento nesse sistema totalitário, sua “atitudecientífica” tem por único fundamento a convicção deque “deve haver elementos de prova muito válidosacerca de questões que não é preciso ser especialistapara compreender” – como, por exemplo, apossibilidade de “combinar o totalitarismo com aliberdade de pensamento”.

Um exame mais completo das variadas tendênciastotalitárias na Inglaterra deveria dedicar considerávelatenção às várias tentativas de criar uma espécie desocialismo da classe média, as quais revelam, porcerto sem que os autores o percebam, umasemelhança inquietante com tendências equivalentesna Alemanha pré-hitlerista.97

Se tratássemos aqui de movimentos políticospropriamente ditos, teríamos de levar emconsideração organizações novas como a ForwardMarch ou o movimento Common Wealth de SirRichard Acland, o autor de Unser Kampf 98, ou asatividades do “Comitê 1941” de J. B. Priestley, quejá esteve associado à primeira. Mas, embora não sejaprudente desprezar a significação sintomática de tais

fenômenos, ainda não podemos considerá-los forçaspolíticas importantes. Afora as influências intelectuaisque já ilustramos com dois exemplos, o impulsodesse movimento rumo ao totalitarismo provémsobretudo dos dois grandes grupos de interesses: asorganizações de classe empresariais e operárias. Amais grave de todas as ameaças talvez esteja no fatode que as políticas desses dois poderosíssimos gruposapontam para a mesma direção.

Isso se dá mediante o apoio comum e, muitasvezes conjugado, que ambos prestam à organizaçãomonopólica da indústria; e é essa tendência queconstitui o grande perigo imediato. Não há razãoalguma para crer que esse movimento seja inevitável,mas é quase certo que, se continuarmos no caminhoque vimos trilhando, seremos conduzidos aototalitarismo.

Esse movimento vem sendo, na verdade,deliberadamente planejado, sobretudo pelosorganizadores capitalistas de monopólios, queconstituem assim uma das principais fontes do perigo.Sua responsabilidade não é menor pelo fato de nãovisarem a um sistema totalitário mas antes a umaespécie de sociedade corporativa em que os setores

industriais organizados assumiriam o caráter de“domínios” semi-independentes e autárquicos. Noentanto, mostram tão pouca visão quanto seuscolegas alemães ao supor que lhes será permitido nãosó criar mas também dirigir tal sistema. As decisõesque os dirigentes de um setor da economiaorganizado dessa forma com frequência teriam detomar seriam tais que nenhuma sociedade as deixariapor muito tempo ao arbítrio de particulares.

Um estado que permite concentrações tão imensasde poder não pode consentir que este repouseinteiramente no controle privado. Também não émenos ilusório supor que em tais condições osempresários possam gozar por muito tempo dasituação especial de que desfrutam numa sociedadebaseada na concorrência justificável pelo fato de que,embora a probabilidade de sucesso leve muitos a searriscar, apenas alguns são bem-sucedidos. Nãosurpreende que os empresários desejem gozar, nãoapenas da elevada renda que o regime deconcorrência possibilita aos vencedores, mas tambémda segurança do funcionário público. Enquanto umvasto setor da indústria privada coexistir com aindústria dirigida pelo governo, um empresário detalento poderá conquistar salários elevados, mesmo

em posições bastante seguras. Embora, porém, sejapossível aos diretores de grandes empresas veremsuas esperanças realizadas durante uma fase detransição, não tardarão a verificar, como seus colegasalemães, que já não são senhores, tendo, antes decontentar-se em todos os aspectos com os poderes eemolumentos que o governo lhes conceder.

A não ser que a tese deste livro tenha sidoentendida de forma equivocada, ninguém me acusaráde estar sendo pouco severo para com os capitalistasse eu salientar que seria um erro culpá-losexclusivamente, ou mesmo principalmente, pela atualtendência ao monopólio. Sua propensão não constituialgo novo. nem teria probabilidade de converter-sepor si mesma num poder formidável. O elementodecisivo nisso tudo é que os capitalistas conseguiramo apoio de um número cada vez maior de outrosgrupos e, com o auxílio destes, o apoio do estado.

Até certo ponto os monopolistas conquistaram esseapoio, quer permitindo que outros gruposparticipassem de seus lucros, quer – e talvez commaior frequência – persuadindo-os de que aformação dos monopólios era de interesse público.Mas a mudança operada na opinião pública, que pela

sua influência na legislação e na jurisprudência99 foi omais importante fator que possibilitou essedesdobramento, é acima de tudo um resultado dapropaganda da esquerda contra a concorrência.Quase sempre, as próprias medidas que visam aatingir os monopolistas contribuem, na realidade, parareforçar o poder dos monopólios. Toda medida quereduz o lucro dos monopólios, seja no interesse dedeterminados grupos ou do estado como um todo,tende a estabelecer novos interesses que ajudarão afortalecer o monopólio. Um sistema em que grandesgrupos privilegiados tiram proveito dos lucros domonopólio pode ser politicamente muito maisperigoso do que aquele em que os lucros seconcentram nas mãos de poucos. E, em tal sistema, omonopólio é, sem dúvida, muito mais poderoso. Éevidente que, por exemplo, os salários mais elevadosque o monopolista está em condições de pagar sãotambém um resultado da exploração, tanto quanto oseu próprio lucro – uma vez que empobrecem não sóa todos os consumidores mas ainda mais a todos osoutros trabalhadores assalariados. Isso não impede,contudo, que tanto aqueles que se beneficiam disso,como o público em geral, aceitem hoje o fato de osmonopólios poderem pagar salários mais elevados

como um argumento válido em seu favor.100

Há sérias razões para duvidar que, mesmonaqueles casos em que o monopólio é inevitável, omelhor meio de controlá-lo seja entregá-lo ao estado.Se uma única indústria estivesse em questão, issotalvez fosse verdade. Quando, porém, se trata demuitas indústrias monopólicas, é preferível deixá-lasnas mãos de indivíduos diferentes a reuni-las sob ocontrole único do estado. Ainda que as estradas deferro, os transportes terrestres e aéreos ou oabastecimento de gás e eletricidade fossemnecessariamente monopólios, a posição doconsumidor seria sem dúvida mais forte enquanto taissetores continuassem constituindo monopóliosseparados, do que se fossem “coordenados” por umcontrole central.

O monopólio privado raramente é total e aindamais raramente tem longa duração ou está emcondições de desprezar a concorrência em potencial.Mas um monopólio de estado é sempre ummonopólio protegido pelo estado – protegido contra aconcorrência em potencial e contra a crítica efetiva.Isso significa que, na maioria dos casos, se concede aum monopólio temporário o poder de assegurar para

sempre a sua posição – poder que, com certeza, nãodeixará de ser usado. Quando o poder que deveriarefrear e controlar o monopólio passa a proteger edefender os que dele legalmente desfrutam; quando,para o governo, pôr fim a um abuso é admitir suaprópria responsabilidade no caso, e quando a críticados atos do monopólio implica uma crítica aogoverno, é improvável que o monopólio venha aservir à comunidade.

Um estado envolvido de todas as formas naadministração de monopólios, ainda que detivesse umpoder esmagador sobre o indivíduo, seria ao mesmotempo um estado fraco no que concerne à liberdadede formular sua política. O mecanismo do monopóliose identificaria com o mecanismo do estado e este,por sua vez, se aliaria cada vez mais aos interessesdos dirigentes, em prejuízo dos interesses do povoem geral.

Nos casos em que o monopólio é de fatoinevitável, é provável que a estratégia, até há poucopreferida pelos norte-americanos, de um fortecontrole estatal sobre os monopólios privadosofereça, quando aplicada de maneira coerente,resultados mais satisfatórios do que a administração

pelo estado. Assim parece suceder, pelo menos,quando o estado impõe um rigoroso controle depreços que não deixa margem a lucros extraordináriosde que outros, além dos monopolistas, possamparticipar.

Mesmo que em consequência disso (como temacontecido por vezes com os serviços públicos nosEstados Unidos) os serviços prestados pelasindústrias monopólicas se tornassem menossatisfatórios, seria um preço muito pequeno a pagarem troca de um controle eficaz dos poderes domonopólio. Eu, pessoalmente, preferiria ter deconformar-me com alguma ineficiência a ver os meushábitos de vida controlados pelo monopólioorganizado. Essa estratégia, que não tardaria a tornara posição do monopolista a menos vantajosa entretodas as atividades empresariais, também seriaextremamente útil para restringir o monopólio àsáreas em que é inevitável e para estimular a criaçãode substitutos que possam ser oferecidos de formacompetitiva. É só fazer com que a posição domonopolista volte a ser mais uma vez a do bodeexpiatório da política econômica, e ficaremossurpresos ante a rapidez com que a maioria dosempresários mais hábeis recuperará o gosto pela

estimulante atmosfera da concorrência.O problema do monopólio não seria tão complexo

se tivéssemos de lutar apenas contra o capitalistamonopolizador. Mas, como já foi dito, o monopóliotornou-se perigoso não pelo empenho de algunscapitalistas que buscavam o seu interesse, mas peloapoio dos grupos aos quais eles permitiramcompartilhar dos seus lucros, e o de tantos a quempersuadiram de que, apoiando o monopólio, estariamcontribuindo para a criação de uma sociedade maisjusta e melhor organizada. O momento decisivo dahistória moderna ocorreu quando o movimentotrabalhista, que só pode atingir as suas finalidadesprimordiais mediante a luta contra qualquer privilégio,passou a ser influenciado pelas doutrinas hostis àconcorrência e ele próprio se envolveu na luta peloprivilégio. O recente crescimento do monopólioresulta em grande parte de uma colaboraçãointencional entre o capital organizado e o trabalhoorganizado, em que os grupos privilegiados detrabalhadores compartilham dos lucros do monopólioem detrimento da comunidade e, em especial, dascamadas mais pobres: os empregados nas indústriasmenos organizadas e os desempregados.

Um dos espetáculos mais lamentáveis da nossaépoca é ver um grande movimento democráticoamparar uma política que infalivelmente acabará pordestruir a democracia, e que nesse meio tempo sópoderá trazer benefícios a uma minoria das massasque a apoiam. E contudo, é esse apoio da esquerdaàs tendências monopolizadoras que as torna tãoirresistíveis, e tão sombrias as perspectivas do futuro.Há, na realidade, poucas esperanças para o futuroenquanto o Partido Trabalhista continuar a contribuirpara a destruição da única ordem política na qual temsido assegurado pelo menos um certo grau deindependência e liberdade a cada trabalhador. Oslíderes trabalhistas que atualmente proclamam terem“rompido de uma vez por todas com o louco sistemade concorrência” 101estão proclamando a sentença demorte da liberdade individual. Não há outraalternativa: ou a ordem estabelecida pela disciplinaimpessoal do mercado, ou a ordem comandada peloarbítrio de alguns indivíduos; e aqueles que seempenham em destruir a primeira estão ajudando,consciente ou inconscientemente, a criar a segunda.Mesmo que nessa nova ordem alguns trabalhadorespassem a se alimentar melhor e (o que é indubitável)todos passem a se vestir de maneira mais uniforme, é

lícito duvidar que a maioria dos trabalhadores inglesesfique agradecida aos seus líderes intelectuais por aterem presenteado com uma doutrina socialista queameace a sua liberdade pessoal.

Para os que conhecem a história dos grandespaíses do continente nos últimos 25 anos, será umaexperiência sobremodo deprimente estudar o atualprograma do Partido Trabalhista britânico, agoraempenhado na criação de uma “sociedadeplanificada”. A “qualquer tentativa de restaurar aInglaterra tradicional” opõe-se um plano que, não sónas linhas gerais mas também nos detalhes e até nafraseologia, é indistinguível dos sonhos socialistas quedominavam os debates na Alemanha Vinte e cincoanos atrás. Não só exigências como a da resoluçãoadotada em acatamento à proposta do professorLaski, que requereu a manutenção, em tempo de paz,das “medidas de controle governamental necessáriasà mobilização dos recursos nacionais durante aguerra”, mas todos os slogans característicos, como a“economia equilibrada” que o professor Laski agorareclama para a Grã-Bretanha, ou o “consumocomunitário” em cujo nome se deverá imprimir umcontrole central à produção – tudo isso foi calcado,integralmente, na ideologia alemã.

Vinte e cinco anos atrás, talvez houvesse algumajustificativa para se defender a ingênua ideia de que“uma sociedade planejada pode ser muito mais livredo que o sistema de concorrência regido pelo preceitodo laissez faire, que tal sociedade vem substituir”.102

Mas constatar que essa ideia ainda é defendida após25 anos de uma experiência que nos levou areexaminar as nossas velhas convicções, e justamentequando estamos combatendo os resultados dessasmesmas doutrinas – é mais trágico do que as palavraspodem exprimir. A transformação decisiva ocorridana nossa época e fonte de perigo mortal para tudoaquilo que um liberal preza é a aliança do poderosopartido que, no parlamento e na opinião pública,substituiu basicamente os partidos progressistas dopassado, a um movimento que, à luz dos últimosacontecimentos, não pode deixar de ser consideradoreacionário. O fato de, no passado, o progresso tersofrido ameaça por parte das forças tradicionalistasda direita é um fenômeno de todas as épocas ante oqual não há motivo para nos alarmarmos.

Mas se o lugar da oposição, tanto no parlamentocomo na opinião pública, viesse a ser monopolizadode forma duradoura por um segundo partidoreacionário – então não restaria mesmo esperança

alguma.90 The Spectator, 12 abr. 1940, p. 523.91 Economic Journal, 1915, p. 450.92 Em especial quando consideramos quantos ex-socialistas se tornaram nazistas, é importante ter emmente que o verdadeiro significado dessa proporçãosó poderá ser avaliado se a compararmos, não aonúmero total de ex-socialistas, mas ao númerodaqueles cuja conversão não seria em caso algumimpedida por sua ascendência racial. Com efeito, umdos aspectos surpreendentes da emigração política daAlemanha é o número relativamente pequeno dosrefugiados de esquerda que não são “judeus” nosentido alemão do termo. Quantas vezes nãoouvimos a apologia do sistema alemão precedida dealguma declaração como aquela que introduzia, numaconferência recente, a enumeração dos “aspectos datécnica totalitária de mobilização econômica dignosde ponderação”: “herr Hitler não é o meu ideal,longe disso. Há poderosas razões pessoais para queherr Hitler não seja o meu ideal, mas ...”93 Creio ter sido o autor de Leviathan o primeiro apropor que o ensino dos clássicos fosse suprimidoporque insuflava um perigoso espírito de liberdade.

94 Cf. Schnabel, F., Deutsche Geschichie imneunzehnten Jahrhundert, v. II, 1933, p. 204.95 O servilismo dos cientistas para com os poderesconstituídos manifestou-se bem cedo na Alemanha,paralelamente ao grande desenvolvimento da ciênciapatrocinada pelo estado, que é hoje objeto de tantoselogios em nosso país. Um dos mais famososcientistas alemães, o fisiólogo Emil du Bois-Reymond, proclamou, sem constrangimento, numaoração pronunciada em 1870, na qualidade de reitorda Universidade de Berlim e de presidente daAcademia Prussiana de Ciências, que “nós, aUniversidade de Berlim, situada em frente ao PalácioReal, somos, por ato de fundação, a guardaintelectual da Casa de Hohenzollern” (A Spetch onlhe German War, Londres, 1870, p. 31). – É curiosoque du Bois-Reymond tenha julgado oportunopublicar uma edição inglesa do seu discurso.96 Basta-nos citar um testemunho estrangeiro: R. A.Brady, no estudo intitulado The Spirit and Structureof German Fascism, conclui a sua minuciosaexposição dos acontecimentos verificados no mundoacadêmico alemão afirmando que “o cientista per seé, talvez, de todos aqueles que recebem umaformação especial na sociedade moderna, o que mais

facilmente se deixa usar e ‘coordenar’”. Para dizer averdade, os nazistas puseram na rua bom número deprofessores de universidade e despediram muitoscientistas dos laboratórios de pesquisa. Mas tratava-se sobretudo de professores da área de ciênciassociais na qual o programa nazista era examinadocom maior atenção e submetido a uma crítica maispersistente, e não da de ciências naturais, em que sesupõe que o pensamento seja muito mais rigoroso.Os demitidos nesse último campo eramprincipalmente judeus, ou constituíam exceções àsgeneralizações que acabamos de fazer, por suaaceitação irrefletida de pontos de vista contrários aonazismo. Em consequência, os nazistas puderam“coordenar” com relativa facilidade estudiosos ecientistas, emprestando assim à sua elaboradapropaganda o apoio aparente da opinião científica dopaís.97 Outro elemento que, após a guerra atual, poderávir a fortalecer as tendências nesse sentido, é adificuldade que alguns dos homens que durante oconflito tomaram gosto pelo poder de controlecoercitivo terão em adaptar-se aos papeis maishumildes que lhes caberá desempenhar. Se, depois daPrimeira Guerra Mundial, os homens dessa espécie

não eram tão numerosos como provavelmente serãono futuro, já então exerciam apreciável influênciasobre a vida econômica deste país. Foi na companhiade alguns deles que, há dez ou doze anos,experimentei pela primeira vez na Inglaterra asensação, ainda rara naquele tempo, de ser de súbitotransportado para o que eu aprendera a encarar comouma atmosfera intelectual integralmente “alemã”.98 N. do T. Unser Kampf (Nossa Luta), emcontraposição à obra Mein Kampf (Minha Luta), deHitler99 A este respeito, cito o instrutivo artigo de autoriade W. Arthur Lewis sobre “Monopoly and the Law”(“O Monopólio e o Direito”) em The Modern LawReview, v. VI, n.º 3, abr. 1943.100 Ainda mais surpreendente, talvez, é a notávelindulgência que muitos socialistas mostram para comos debenturistas aos quais a organização monopólicada indústria garante rendimentos seguros. Um dosmais extraordinários sintomas da subversão devalores ocorrida na geração passada é uma cegahostilidade para com o lucro que levou a considerar orendimento fixo e conquistado sem esforço algosocial ou moralmente mais desejável do que o lucro,e a aceitar o próprio monopólio para garantir, por

exemplo, tais rendimentos aos debenturistas das redesferroviárias.101 Professor H. J. Laski, em discurso pronunciadona 41.ª Conferência Anual do Partido Trabalhista,realizada em Londres em 26 de maio de 1942(Report, p. 111). Vale a pena notar que, segundo oprofessor Laski, “esse louco sistema de concorrênciasignifica a pobreza para todos os povos e a guerracomo consequência dessa pobreza”. Temos aí umacuriosa interpretação da história dos últimos cento ecinquenta anos.102 The Old World and the New Society: an interimRepon of the National Executive of the BritishLabour Party on the Problems of Reconstruction(Relatório Provisório da Executiva Nacional doPartido Trabalhista Britânico sobre os Problemas daReconstrução), pp. 12 e 16.

CAPÍTULO 14

CONDIÇÕES MATERIAIS E OBJETIVOSIDEAIS

“Será justo ou razoável que o número maiorde vozes contrárias ao fim supremo do governoescravize um número menor, que deseja serlivre? Se a força tiver de decidir, mais justo serásem dúvida, o número menor obrigar o maior apreservar sua liberdade (o que não seria fazer-lhe injustiça) do que o maior, para satisfazer suabaixeza, compelir o número menor acompartilhar com ele a escravidão. Aqueles quenão procuram senão sua justa liberdade têmdireito a conquistá-la, sempre que tiverem talpoder, por mais numerosas que sejam as vozesem contrário”. – John Milton

Agrada muito à nossa geração pensar que dámenos importância a considerações de ordemeconômica do que seus pais e avós. O “fim dohomem econômico” promete tornar-se um dos mitosdominantes da nossa época. Antes de aceitar essaideia ou de considerar tal mudança digna de louvor,convém investigar um pouco mais seu grau deveracidade. Quando examinamos as principais razões

com que se procura justificar a reconstrução social,quase todas mostram ser de natureza econômica: jávimos que a “reinterpretação em termos econômicos”dos ideais políticos do passado, da liberdade,igualdade e segurança, é uma das principaisreivindicações daqueles que ao mesmo tempoproclamam o fim do homem econômico. Tampoucose pode duvidar que, nas suas convicções easpirações, os homens sejam hoje, mais do quenunca, influenciados por doutrinas econômicas; pelacrença, cuidadosamente cultivada, no irracionalismodo nosso sistema econômico; por falácias como a da“abundância em potencial”; por pseudoteorias acercade uma inevitável tendência ao monopólio; e pelaimpressão criada por ocorrências em torno das quaisse faz grande publicidade, tais como a destruição dasfontes de matérias-primas ou a supressão deinventos, ocorrências atribuídas ao sistemacompetitivo, embora sejam precisamente o que nãopode acontecer em tal sistema, e só se tornoupossível devido ao monopólio – na maior parte dasvezes, o monopólio viabilizado pela ação dogoverno.103

Num sentido diferente, todavia, é indubitável que anossa geração se mostra menos inclinada que as

anteriores a atender a considerações econômicas.Vêmo-la, decididamente, muito pouco disposta asacrificar qualquer das suas exigências aos chamadosargumentos econômicos. Impaciente e intolerantecom qualquer restrição as suas ambições imediatas,não quer curvar-se ante as necessidades econômicas.

O que distingue esta geração não é o desprezo dobem-estar material, nem mesmo um menor desejo deconquistá-lo, mas, ao contrário, a recusa areconhecer quaisquer obstáculos, qualquer conflitocom outras finalidades que possam impedir arealização dos seus desejos. “Economofobia” seriauma denominação mais apropriada a essa atitude doque o termo duplamente enganador “fim do homemeconômico”, o qual sugere a mudança de um estadode coisas que nunca existiu, e a adoção de um rumoque não estamos seguindo. O homem passou aencarar com ódio e revolta as forças impessoais a quese submetia no passado, conquanto frustrassemmuitas vezes os seus esforços individuais.

Essa revolta exemplifica um fenômeno muito maisgeral, uma nova relutância em submeter-se aqualquer regra ou necessidade cujo fundamentológico não seja compreendido. Tal fenômeno se faz

sentir em diversos setores da vida, em particular noda moral, e muitas vezes trata-se de uma atitudelouvável. Mas existem campos em que esse anseio deinteligibilidade não pode ser de todo satisfeito, e ondeao mesmo tempo a recusa a submeter-se a tudo quenão podemos compreender leva ao colapso dacivilização. É natural que, ao tornar-se maiscomplexo o mundo em que vivemos, cresça a nossaresistência às forças que, embora não ascompreendamos, com frequência interferem emnossos planos e esperanças. Todavia, é justamentenessas condições que se torna cada vez menospossível a plena compreensão dessas forças.

Uma civilização complexa como a nossa baseia-senecessariamente no ajustamento do indivíduo amudanças cuja causa e natureza ele não podecompreender. Por que aufere maior ou menor renda?Por que tem de mudar de ocupação? Por que certascoisas de que precisa são mais difíceis de conseguirque outras? A resposta a estas questões dependerásempre de um número tão grande de circunstânciasque nenhum cérebro será capaz de apreendê-las; ou,o que é ainda pior, os prejudicados as atribuirão auma causa óbvia, imediata ou evitável, enquanto asinter-relações mais complexas que determinam a

mudança continuarão a ser um mistério para eles.Mesmo numa sociedade totalmente planejada, se o

diretor quisesse explicar a um empregado por que otransferiu para função diferente ou alterou-lhe osalário, não poderia fazê-lo de maneira adequada semexplicar e justificar todo o plano. Isso significa que talesclarecimento só poderia ser dado a um pequenonúmero de pessoas.

Foi a submissão às forças impessoais do mercadoque possibilitou o progresso de uma civilização que,sem isso, não se teria desenvolvido. É, portantosubmetendo-nos que ajudamos dia a dia a construiralgo cuja magnitude supera a nossa compreensão.Não importa que os homens no passado se tenhamsubmetido em virtude de crenças que alguns hojeconsideram supersticiosas: o espírito de humildadereligiosa ou um exagerado respeito pelos toscosensinamentos dos primeiros economistas. O pontocrucial dessa questão é que é muito mais difícilcompreender racionalmente a necessidade desubmeter-se a forças cuja atuação não podemosentender em detalhe, do que fazê-lo animados dahumilde veneração inspirada pela religião, ou mesmopelo respeito às doutrinas econômicas. Se

quiséssemos apenas preservar a nossa atual ecomplexa civilização sem que ninguém fosse obrigadoa fazer coisas cuja necessidade não compreende,seria preciso que todos possuíssem inteligênciainfinitamente maior do que hoje possuem.

A recusa a ceder a forças que não podemoscompreender nem reconhecer como decisõesconscientes de um ser inteligente é fruto de umracionalismo incompleto e portanto errôneo.Incompleto, porque não percebe que a combinaçãode uma enorme variedade de esforços individuaisnuma sociedade complexa deve levar em conta fatosque nenhum indivíduo pode apreender de todo.Também não percebe que, para essa sociedadecomplexa não ser destruída, a única alternativa àsubmissão às forças impessoais e aparentementeirracionais do mercado é a submissão ao podertambém incontrolável e portanto arbitrário de outroshomens. Na ânsia de escapar às irritantes restriçõesque hoje experimenta, o homem não se dá conta deque as novas restrições autoritárias que lhe deverãoser deliberadamente impostas no lugar daquelas serãoainda mais penosas.

Aqueles que argumentam que adquirimos um

assombroso domínio sobre as forças da natureza,mas estamos lamentavelmente atrasados na utilizaçãoeficiente das possibilidades de colaboração social, têmperfeita razão quanto a esse ponto.

Enganam-se, porém, quando levam mais longe acomparação, afirmando que devemos aprender adominar as forças da sociedade da mesma forma queaprendemos a dominar as forças da natureza. Esse éo caminho não só do totalitarismo mas também dadestruição da nossa civilização e um meio certo deobstar o progresso futuro. Aqueles que reivindicamtal domínio das forças sociais mostram não teremainda compreendido até que ponto a simplespreservação do que até agora conquistamos dependeda coordenação dos esforços individuais por forçasimpessoais.

Voltaremos agora por alguns momentos ao pontocrucial: a liberdade individual é inconciliável com asupremacia de um objetivo único ao qual a sociedadeinteira tenha de ser subordinada de uma formacompleta e permanente. A única exceção à regra deque uma sociedade livre não deve ser submetida auma finalidade exclusiva é constituída pela guerra epor outras calamidades temporárias, ocasiões em que

a subordinação de quase tudo à necessidade imediatae premente é o preço que temos de pagar pelapreservação, a longo prazo, da nossa liberdade. Issoexplica também por que são tão errôneas muitasideias hoje em moda, segundo as quais devemosaplicar aos fins da paz os processos que aprendemosa empregar para fins de guerra. É sensato sacrificartemporariamente a liberdade de modo a garanti-lapara o futuro; não se pode dizer, porém, o mesmo deum sistema proposto como solução permanente.

A regra de não permitir, na paz, a primaziaabsoluta de um objetivo sobre todos os demais deveser aplicada mesmo ao objetivo que hoje todosconcordam ser prioritário: a supressão dodesemprego. Não há dúvida alguma de que esse deveser o alvo dos nossos mais ingentes esforços; aindaassim, não se segue daí que tal finalidade devaabsorver-nos com exclusão de tudo mais e que,segundo a leviana expressão corrente, deva serrealizada “a qualquer preço”. É nesse campo, comefeito, que o fascínio de expressões vagas maspopulares como “pleno emprego” pode conduzir àadoção de medidas extremamente insensatas, em quea frase categórica e irresponsável do idealista radical,“isso deve ser feito a todo custo”, pode produzir os

maiores danos.É importantíssimo termos ampla visão da tarefa

que seremos obrigados a enfrentar nesse campodepois da guerra, e que percebamos com clarezaaquilo que podemos ter esperança de realizar. Umdos aspectos dominantes da situação imediata deapós-guerra será o de que as necessidades específicasgeradas pelo atual conflito canalizaram centenas demilhares de homens e mulheres para serviçosespecializados, os quais, durante o conflito, lhespermitiram ganhar salários relativamente elevados.

Em muitos casos, não haverá possibilidade deempregar o mesmo número de pessoas nessasocupações. Será necessário transferir com urgênciagrande parte dessas pessoas para outros serviços, emuitas descobrirão que as ocupações disponíveisserão menos bem pagas do que as que exerciamdurante a guerra. O próprio retreinamento, que porcerto deve ser oferecido em larga escala, nãosolucionará de todo o problema. Haverá ainda muitagente que, se for paga de acordo com o novo valorde seus serviços para a sociedade, terá, em qualquersistema, de conformar-se com uma queda da suaposição econômica em relação aos demais.

Se, pois, os sindicatos resistirem com êxito a umaredução dos salários de tais categorias, restarãoapenas duas alternativas: ou usar a coação (isto é,escolher certos indivíduos e transferi-loscompulsoriamente a outras funções menos bemremuneradas), ou então deixar que aqueles que já nãopodem ser empregados com os salários relativamentealtos percebidos durante a guerra permaneçamdesempregados até se disporem a aceitar trabalhomenos bem pago. É um problema que surgiria tantonuma sociedade socialista como em qualquer outra;e, com toda probabilidade, a grande maioria dostrabalhadores não se mostraria ali mais inclinada agarantir os mesmos níveis salariais àqueles queocuparam empregos bem remunerados em funçãodas necessidades especiais da guerra. Numa situaçãocomo essa, uma sociedade socialista não deixaria deusar a coação. O importante para nós é que, se nãoquisermos a nenhum preço permitir o desemprego,ou usar a coação, seremos arrastados a toda sorte demedidas precipitadas, nenhuma das quais poderátrazer alívio duradouro, todas constituindo sériosobstáculos ao uso mais produtivo dos nossosrecursos. Deve-se observar, sobretudo, que a políticamonetária não pode corrigir essa dificuldade, a não

ser por meio de uma inflação geral de proporçõesconsideráveis, suficiente para elevar todos os outrossalários e preços em relação aos que não podem serdiminuídos. Mesmo isso, porém, só produziria oefeito desejado porque implicaria uma reduçãodisfarçada de salários reais, que não se poderiarealizar às claras. Entretanto, a elevação de todos osoutros salários e rendimentos num grau suficientepara ajustar a posição de determinada categoriaenvolveria uma expansão inflacionária em tão grandeescala que as perturbações, dificuldades e injustiçasseriam muito piores do que as que se pretendessesanar.

Esse problema, que surgirá de formaparticularmente aguda após a guerra, jamais serásolucionado enquanto o sistema econômico tiver deadaptar-se a contínuas mudanças. A expansãomonetária poderá viabilizar um nível máximo possívelde emprego a curto prazo, nas posições em que aspessoas se encontram. Mas esse máximo só pode sermantido pela expansão inflacionária progressiva, oque tem por efeito retardar a redistribuição da mão-de-obra entre os setores da economia, indispensáveldada a mudança das circunstâncias – redistribuiçãoque, enquanto os trabalhadores tiverem a liberdade

de escolher sua ocupação, só se realizará com certademora, causando, nesse ínterim, um certo nível dedesemprego. Visar sempre ao máximo de empregopossível por meios monetários é uma política quesempre trará efeitos contraproducentes. Ela tende abaixar o nível de produtividade do trabalho,aumentando assim constantemente a parcela dapopulação trabalhadora que só pode ser mantida emseus empregos, com os atuais salários, por meiossuperficiais.

Não há dúvida de que, depois da guerra, o bomsenso na direção dos nossos assuntos econômicosserá ainda mais importante do que antes, e de que odestino da nossa civilização dependerá sobretudo damaneira como resolvermos os problemas econômicosque teremos de enfrentar. A princípio, haverá umestado de pobreza – de grande pobreza. Igualar eultrapassar os padrões anteriores será mais difícil paraa Grã-Bretanha do que para muitos outros países. Seagirmos com prudência, é quase certo que, pelotrabalho árduo, dedicando uma parte consideráveldos nossos esforços à reparação e renovação damaquinaria e da organização industrial,conseguiremos dentro de alguns anos voltar ao nívelque havíamos alcançado e mesmo superá-lo.

Mas isso pressupõe que nos contentemos emconsumir apenas o indispensável, para que a tarefa dereconstrução não seja prejudicada; que esperançasexageradas não criem reivindicações irresistíveis deum quinhão maior; e que consideremos maisimportante empregar nossos recursos da melhormaneira possível e para as finalidades que maiscontribuem para o bem-estar, do que permitir quesejam consumidos sem nenhum critério104.Igualmente importante é, talvez, não prejudicarclasses numerosas a ponto de transformá-las eminimigos ferrenhos da ordem política reinante comtentativas imediatistas de sanar a pobreza pelaredistribuição e não pelo aumento da nossa renda.Nunca se deveria esquecer que o fator decisivo doadvento do totalitarismo no continente, fator queainda inexiste neste país, foi o surgimento de umaclasse média despojada de seus bens.

Nossas esperanças de evitar o destino que nosameaça devem, com efeito, repousar em grande partena perspectiva da retomada de um progressoeconômico acelerado que nos faça ascendercontinuamente por mais baixo que tenhamos decomeçar. E a principal condição de tal progresso éque estejamos sempre prontos a adaptar-nos com

rapidez a um mundo bastante modificado, sempermitir que nenhuma consideração pelo padrãohabitual deste ou daquele grupo impeça tal adaptação.

Devemos aprender mais uma vez a orientar osnossos recursos de modo a que nos tornemos todosmais ricos. Os ajustamentos necessários paraigualarmos e ultrapassarmos os padrões anterioresserão maiores do que todos os outros que foi precisorealizar até hoje; e só conseguiremos vencer umperíodo difícil como homens livres e capazes deescolher seu modo de vida se cada um de nós estiverpronto a obedecer às injunções desse ajustamento.Que um mínimo uniforme seja garantido a todos;mas admitamos ao mesmo tempo que com essagarantia de um mínimo-base devem extinguir-se todasas reivindicações a uma segurança privilegiada porparte de certas classes e desaparecer todos ospretextos para se permitir que determinados grupos,no intuito de manterem um padrão especial eexclusivamente seu, impeça os novos concorrentes departicipar na sua relativa prosperidade.

Pode parecer muito nobre dizer: “deixemos de ladoa economia, vamos construir um mundo decente”.Na realidade, porém, essa é uma atitude de todo

irresponsável. Com a situação mundial queconhecemos, e existindo a convicção generalizada deque as condições materiais devem ser melhoradas emcertos pontos, a única possibilidade de construirmosum mundo decente está em podermos continuar amelhorar o nível geral de riqueza. Pois a modernademocracia entrará em colapso se houver anecessidade de uma redução substancial dos padrõesde vida em tempo de paz, ou mesmo uma estagnaçãoprolongada das condições econômicas.

Muitos admitem que as atuais tendências políticasconstituem séria ameaça para as nossas perspectivaseconômicas e que seus efeitos econômicos põem emperigo valores muito mais elevados – e, mesmoassim, continuam acreditando que estamos fazendosacrifícios materiais para atingir objetivos ideais. Éextremamente duvidoso, porém, que cinquenta anosde avanço rumo ao coletivismo tenham elevado osnossos padrões morais; ao contrário, talvez amudança se tenha verificado no sentido oposto.

Embora nos orgulhemos de possuir umaconsciência social mais desenvolvida e sensível,nossa conduta individual provavelmente não justificaesse orgulho. No que se refere a criticar e a indignar-

se ante as injustiças da ordem social existente, a atualgeração talvez supere quase todas as que aprecederam. Mas o efeito do movimento coletivistasobre nossos padrões positivos, no campo da moral,na conduta individual e na seriedade com quedefendemos princípios éticos contra as conveniênciase exigências do mecanismo social – isso é assuntobem diverso.

As questões nesse campo tornaram-se tão confusasque é necessário voltar aos pontos fundamentais.Nossa geração corre perigo de esquecer não só que amoral é por essência um fenômeno da condutapessoal, mas também que ela só pode existir naesfera em que o indivíduo tem liberdade de decisão eé solicitado a sacrificar voluntariamente as vantagenspessoais à observância de uma regra moral. Fora daesfera da responsabilidade pessoal não há bondadenem maldade, nem possibilidade de mérito moral,nem oportunidades de pôr à prova as própriasconvicções pelo sacrifício dos desejos individuais aoque se considera justo. Só quando somosresponsáveis pelos nossos interesses e livres parasacrificá-los é que a nossa decisão tem valor moral.Nem temos o direito de ser altruístas à custa deterceiros, nem há mérito algum em o sermos quando

não existe outra alternativa. Os membros de umasociedade que são compelidos a fazer sempre o que éjusto não têm direito ao louvor.

Como disse Milton: “se toda ação boa ou má deum homem adulto dependesse de permissão,prescrição ou coerção, o que seria a virtude senãouma palavra, que louvor caberia à boa ação, quehonra haveria em ser sensato, justo ou continente?”.

A liberdade de ordenar nossa conduta numa esferaem que as circunstâncias materiais nos obrigam aescolher, e a responsabilidade pela organização danossa existência de acordo com a nossa consciência,são a única atmosfera em que o senso moral se podedesenvolver e os valores morais serem a cada diarecriados no livre arbítrio

do indivíduo. A responsabilidade, não perante umsuperior mas perante a própria consciência, acompreensão de um dever não imposto pelacompulsão, a necessidade de resolver qual das coisasa que damos valor devemos sacrificar a outras e deaceitar as consequências da nossa decisão – eis aessência de toda regra moral que mereça tal nome.

O fato de que na esfera da conduta individual osefeitos do coletivismo têm sido quase inteiramente

destrutivos é ao mesmo tempo inevitável e inegável.Um movimento cuja maior promessa é isentar oindivíduo da responsabilidade105 não pode deixar deser antimoral nos seus efeitos, por mais elevados quesejam os ideais que o geraram. Pode haver dúvida deque o sentimento da obrigação pessoal de eliminarinjustiças, sempre que o permitem nossas forçasindividuais, foi enfraquecido ao invés de sefortalecer? E de que tanto a disposição para assumirresponsabilidades, como a consciência de que é nossodever individual saber escolher, foram bastantedebilitadas? Há uma total diferença entre exigir que aautoridade estabeleça uma situação satisfatória, oumesmo entre estar pronto a submeter-se contanto quetodos façam o mesmo, e dispor-se a fazer o quepessoalmente julgamos justo, com sacrifício dosnossos próprios desejos e enfrentando talvez umaopinião pública hostil. Há claros indícios de que nostornamos, na realidade, mais tolerantes para comdeterminados abusos e muito mais indiferentesperante as desigualdades em casos individuais, depoisque voltamos nossa atenção para um sistemainteiramente novo, em que o estado resolverá todasas questões. É bem possível mesmo, como se temsugerido, que a paixão pela ação coletiva seja um

meio pelo qual, coletivamente e sem remorso,passamos a satisfazer o egoísmo que, comoindivíduos, tínhamos aprendido, em parte, a reprimir.

É verdade que as virtudes menos estimadas epraticadas hoje em dia – a independência, a confiançaem si mesmo e a disposição para assumir riscos, paradefender as convicções pessoais contra a maioria epara cooperar voluntariamente com os nossossemelhantes – são as principais virtudes em querepousa uma sociedade individualista. O coletivismonão tem como substituí-las, e na medida em que asdestruiu deixou um vácuo que não é preenchidosenão pela exigência de submissão e pela coerção doindivíduo para que faça o que a coletividade declarajusto. A eleição periódica de representantes, a quetende a reduzir-se cada vez mais a escolha moral doindivíduo, não é uma ocasião em que os seus valoressejam postos à prova ou em que ele possa reafirmá-los e demonstrá-los constantemente, atestando asinceridade de suas convicções pelo sacrifício dosvalores que considera inferiores aos que reputa maiselevados.

Como as regras de conduta dos indivíduos são omanancial de onde provêm os padrões morais que a

ação política possa ter, seria na verdadesurpreendente que o relaxamento dos padrões daconduta individual fosse acompanhado de umaelevação dos padrões de ação social. Que houvegrandes mudanças, é evidente. Toda geração, comose sabe, privilegia alguns valores mais e outros menosdo que as gerações anteriores. Mas quais são osobjetivos que ocupam o segundo plano agora, quaisos valores que, segundo nos advertem, terão dedesaparecer se entrarem em conflito com outros?Que valores são menos destacados no panorama dofuturo a nós oferecido pelos autores e oradorespopulares, em relação aos ideais e aos sonhos dosnossos pais?

Evidentemente, não é o conforto material, nem aelevação do nosso padrão de vida ou a garantia decerta posição na sociedade, que ocupam o degrauinferior. Existe algum escritor ou orador popular queouse sugerir às massas que talvez tenham desacrificar suas aspirações materiais em prol de umobjetivo ideal? O que tem ocorrido não é, de fato,exatamente o oposto? As coisas que com frequênciacada vez maior somos induzidos a considerar “ilusõesdo século XIX” não são todas elas valores morais – aliberdade e a independência, a verdade e a

honestidade intelectual, a paz e a democracia, e orespeito pelo indivíduo como ser humano e não comosimples membro de um grupo organizado?

Quais os princípios hoje sacrossantos que nenhumreformador ousa atacar, porque são consideradosfronteiras imutáveis a serem respeitadas em todoplano para o futuro? Não mais, por certo, a liberdadedo indivíduo ou a liberdade de movimento, eraramente a liberdade de expressão – mas osprivilégios deste ou daquele grupo, seu “direito” deimpedir que outros provejam às necessidades de seussemelhantes. A discriminação contra membros e nãomembros de grupos fechados, para não falar naspessoas de nacionalidades diferentes, é aceita cadavez mais como natural. As injustiças infligidas aindivíduos pelos governos no interesse de um ououtro grupo são olhadas com uma indiferença quebeira a insensibilidade. As mais grosseiras violaçõesdos direitos elementares do indivíduo, tais como aremoção compulsória de populações inteiras, sãoaceitas com frequência cada vez maior até porsupostos liberais.

Tudo isso indica por certo que o nosso senso moralse embotou, ao invés de tornar-se mais refinado.

Quando nos dizem – o que acontece cada vez maisamiúde – que não é possível fazer omeletes semquebrar ovos, notamos que os ovos quebrados nesseprocesso são sempre aqueles que, uma ou duasgerações atrás, eram considerados as bases essenciaisda vida civilizada. E quantas atrocidades cometidaspor poderes com cujos princípios nossos pretensos“liberais” simpatizam não foram por estesdesculpadas de bom grado?

Nessa mudança de valores morais causada peloavanço do coletivismo há um aspecto que nopresente momento oferece motivo especial à reflexão:as virtudes cada vez menos apreciadas, e emconsequência cada vez mais raras, são justamenteaquelas de que com razão se orgulhava o povobritânico. As virtudes nas quais em geral se admitiaque esse povo superava os demais, com exceção dealgumas nações pequenas, como os suíços e osholandeses, eram a independência e a fé em simesmo, a iniciativa individual e a responsabilidadepela solução de problemas em nível local, ajustificada confiança na atividade voluntária, a não-interferência nos assuntos dos vizinhos e a tolerânciapara com os excêntricos e os originais, o respeito pelocostume e pela tradição e uma saudável desconfiança

do poder e da autoridade.A fortaleza de espírito, o caráter e as realizações

do povo britânico são, em grande parte, fruto docultivo do comportamento espontâneo. Entretanto,quase todas as tradições e instituições em que o gêniomoral britânico encontrou sua expressão maiscaracterística, e que por sua vez moldaram o caráternacional e todo o clima moral da Inglaterra, sãoaquelas que o avanço do coletivismo e as tendênciasà centralização que lhe são inerentes estãoprogressivamente destruindo.

Uma formação adquirida no exterior ajuda porvezes a perceber com mais clareza a quecircunstâncias se devem as excelências peculiares daatmosfera moral de uma nação. E se a alguém que,apesar das disposições legais, permanecerá sempreum estrangeiro, for permitido manifestar-se sobre oassunto, direi que um dos espetáculos maisdesalentadores do nosso tempo é ver até que pontoalgumas das coisas mais preciosas que a Inglaterradeu ao mundo são agora desdenhadas na própriaInglaterra.

Mal sabem os ingleses o quanto diferem da maioriados outros povos pelo fato de que todos, não importa

o partido a que pertençam, defendem em maior oumenor escala as ideias que, na sua forma maisacentuada, são conhecidas como liberalismo. Emcomparação com a maioria dos outros povos, aindahá vinte anos quase todos os ingleses eram liberais,por muito que discordassem do liberalismo partidário.Hoje, o inglês conservador ou socialista, não menosque o liberal, ao viajar pelo estrangeiro poderáverificar que as ideias e as obras de Carlyle ouDisraeli, dos Webb ou de H. G. Wells sãosobremaneira populares em círculos com os quais elepouco tem em comum – entre nazistas e outrostotalitários; por outro lado, se deparar com uma ilhaintelectual onde sobrevive a tradição de Macaulay eGladstone, de James Stuart Mill ou de John Morley,encontrará espíritos que “falam a sua linguagem” –por muito que ele se afaste dos ideais que esseshomens defenderam.

Em parte alguma é mais patente a perda da fé nosvalores específicos da civilização inglesa, e em partealguma esse fato teve efeito mais paralisante sobre abusca do nosso grande objetivo imediato, do que natola ineficiência de quase toda a propaganda britânica.O primeiro requisito para o êxito da propagandadirigida a estrangeiros é a altiva admissão dos valores

característicos e dos traços distintivos pelos quais opaís que a promove é conhecido pelos outros povos.A causa principal da ineficácia da propaganda inglesaé que os seus dirigentes parecem ter perdido a fé nosvalores peculiares à civilização inglesa ou ignorar porcompleto os pontos em que ela difere das demais. Defato, a intelligentsia esquerdista se prostrou portanto tempo diante dos deuses estrangeiros queparece haver-se tornado incapaz de perceber o quehá de bom nas instituições e tradições tipicamenteinglesas. Esses socialistas não admitem, é claro, queos valores morais de que a maior parte deles seorgulha são na sua maioria produto das instituiçõesque se propõem a destruir. Infelizmente, essa atitudenão está restrita aos socialistas confessos. Embora sedeva esperar que isso não se aplique aos inglesescultos, menos participantes porém mais numerosos, ajulgar pelas ideias que encontram expressão napropaganda e nos debates políticos correntes, osingleses que não só “falam a linguagem queShakespeare falava” mas também “defendem a fé e amoral que Milton defendia” parecem ter quasedesaparecido.106

Acreditar, no entanto, que a propaganda nascidadessa atitude possa ter o efeito desejado sobre os

nossos inimigos, e em particular sobre os alemães, éum erro fatal. Talvez os alemães não conheçam aInglaterra muito bem, mas a conhecem o suficientepara saber quais são os valores tradicionaiscaracterísticos da vida britânica, e quais os elementosque durante as duas ou três últimas geraçõescontribuíram para separar cada vez mais o espíritodesses dois países. Se quisermos convencê-los, nãosó da nossa sinceridade, mas também de que temos aoferecer uma alternativa real para o caminho por elesescolhido, não será fazendo concessões ao seu modode pensar que o conseguiremos. Não os enganaremoscom uma versão expurgada tomada de empréstimo àsideias de seus pais – seja o socialismo de estado, aRealpolitik, o planejamento “científico” ou ocorporativismo. Não os persuadiremos seguindo-osaté metade do caminho que conduz ao totalitarismo.Se os próprios ingleses abandonarem o ideal supremoda liberdade e da felicidade individual, se admitiremimplicitamente que a sua civilização não merece serpreservada e que não conhecem outra alternativasenão seguir o caminho trilhado pelos alemães, é quenão têm mesmo nada a oferecer.

Para os alemães, tudo isso não passa de simplesconfissões tardias de que os ingleses sempre

estiveram errados e de que são eles, os alemães, queestão mostrando o caminho de um mundo novo emelhor, por mais alarmante que seja o período detransição. Os alemães não ignoram que o que elesainda consideram tradições inglesas são concepçõesde vida fundamentalmente opostas aos seus novosideais e irreconciliáveis com estes. Poderiamconvencer-se de ter escolhido o caminho errado –mas nada os persuadirá jamais de que os inglesessejam melhores guias no caminho traçado pelaAlemanha.

Além disso, esse tipo de propaganda será o últimoa seduzir aqueles alemães com cujo auxílio devemoscontar, em última análise, para reconstruir a Europa,por serem os seus valores mais próximos aos nossos.Pois a experiência os fez mais prudentes: aprenderamque nem as boas intenções nem a eficiência daorganização podem preservar a decência num sistemaem que a liberdade e a responsabilidade pessoal sãodestruídas. O que querem acima de tudo os alemãese os italianos que aprenderam a sua lição é defesacontra o estado totalitário – não planos grandiosos deorganização em escala colossal, mas a possibilidadede reconstruírem, em paz e liberdade, o seu pequenomundo individual. Se podemos contar com o apoio

de alguns dos cidadãos dos países inimigos, não éporque eles acreditam que ser mandado por inglesesseja preferível a sê-lo por prussianos, e sim porquecreem que num mundo em que os ideais britânicossaírem vitoriosos serão menos manipulados pelasautoridades, podendo cuidar em paz de suas vidas.

Se quisermos ser bem-sucedidos na guerra deideologias e conquistar os indivíduos honestos dospaíses inimigos, devemos em primeiro lugar recuperara fé nos valores tradicionais que este paísrepresentava no passado e possuir a coragem moralde defender com tenacidade os ideais atacados pelosnossos inimigos. Não conquistaremos adesões comdesculpas envergonhadas e com asserções de que nósestamos regenerando rapidamente, nem comexplicações de que estamos procurando conciliar osvalores tradicionais ingleses e as novas ideiastotalitárias. O que importa não são os últimosmelhoramentos que possamos ter introduzido nasnossas instituições sociais, pois isso representa muitopouco em comparação com as diferenças básicasentre dois sistemas de vida opostos. Importa a nossafé inabalável nas tradições que fizeram deste paísuma nação de homens livres e retos, tolerantes eindependentes.

103 A destruição ocasional de trigo, café etc, usadacom frequência como argumento contra aconcorrência, constitui um bom exemplo dadesonestidade intelectual desse tipo de alegação, poisum raciocínio simples mostrará que, num mercadocompetitivo, o possuidor de tais estoques jamaislucraria em destruí-los. A alegada supressão depatentes úteis é um caso mais complicado e não podeser debatido de maneira conveniente numa pequenanota. Mas as condições em que seria proveitoso reteruma patente que deveria ser usada no interesse socialsão tão excepcionais que é extremamente duvidosoque isso tenha ocorrido em qualquer caso importante.104 Cabe, talvez, acentuar que, por mais quedesejemos um rápido regresso à economia livre, issonão pode significar a eliminação instantânea de todasas restrições do período de guerra. Nadadesacreditaria mais o sistema de livre iniciativa doque o agudo, embora provavelmente efêmero,período de instabilidade e desarticulação que taltentativa produziria. O que se impõe decidir é a quetipo de sistema devemos visar no decorrer doprocesso de transição, e não se as medidas adotadasdurante a guerra devem ser transformadas em umsistema mais permanente, mediante uma política

cuidadosamente elaborada de afrouxamento gradualde controles, a qual talvez tenha de estender-se porvários anos.105 Isso é expresso com clareza cada vez maior àmedida que o socialismo se aproxima dototalitarismo, e na Inglaterra se encontra formuladode maneira explicita no programa da mais recente emais totalitária forma de socialismo inglês – omovimento Common Wealth de Sir Richard Acland.A principal característica da nova ordem por eleprometida é que a comunidade “dirá ao indivíduo“Você não precisa preocupar-se com ganhar a vida”.Em consequência, como é natural, “cabe àcomunidade em conjunto decidir se a força detrabalho de um homem será ou não aplicada aosnossos recursos e como, quando e de que maneira eletrabalhará”. A comunidade terá de “manter campos,em condições toleráveis, para os que não queremtrabalhar”. Não é de admirar que o autor tenhadescoberto que Hitler “deparou com uma pequenaparte, ou talvez seja melhor dizer com um aspectoparticular, daquilo que finalmente virá a ser exigido dahumanidade”. (Acland, Sir Richard, The ForwardMarch, 1941, pp. 127, 126, 135 e 32)106 Embora o assunto deste capítulo já tenha

suscitado algumas referências a Milton, é difícilresistir à tentação de acrescentar aqui mais umapassagem, muito conhecida aliás, embora, ao queparece, hoje em dia ninguém, a não ser umestrangeiro, a ouse citar: “que a Inglaterra nãoesqueça que foi a primeira a ensinar as outras naçõesa viver”. É talvez significativo que a nossa geraçãotenha conhecido um sem-número de detratores deMilton, tanto ingleses quanto americanos – e que oprimeiro deles, Ezra Pound, tenha transmitidopropaganda, nesta guerra, pela rádio italiana.

Capítulo 15

As Perspectivas da OrdemInternacional

“De todas as restrições à democracia, afederação tem sido a mais eficaz e a que maisfavorece a harmonia. ...O sistema federativo

limita e restringe o poder soberano, dividindo-o econcedendo ao governo apenas certos direitosdefinidos. É o único meio de refrear, não só a

maioria, mas o poder do povo inteiro”. – LordActon

Em nenhum outro campo o mundo pagou tão caropor abandonar o liberalismo do século XIX comonaquele em que esse abandono se iniciou: o dasrelações internacionais. Contudo, só aprendemos emparte a lição que a experiência deveria ter-nosensinado. Mais que em qualquer outro lugar, talvez,as ideias correntes na Inglaterra sobre o que édesejável e praticável ainda são tais que podemproduzir o oposto daquilo que prometem.

A lição do passado recente, cuja importância vemaos poucos sendo reconhecida, mostra que muitasformas de planejamento econômico, aplicadas demodo independente em escala nacional, tenderão aser prejudiciais em seu conjunto, mesmo de umponto de vista puramente econômico, produzindo,além disso, sérios atritos internacionais. Em nossosdias não é necessário acentuar que haverá poucasesperanças de ordem internacional ou de uma pazduradoura enquanto cada país puder aplicarquaisquer medidas que julgue úteis ao seu interesseimediato, por mais nocivas que sejam para os outros.Muitas formas de planejamento econômico só sãopraticáveis, com efeito, quando a autoridadeplanejadora está em condições de afastar todas asinfluências externas. O resultado inevitável de talplanejamento é, em consequência, o acúmulo derestrições ao movimento de pessoas e mercadorias.

Menos evidentes, mas de modo algum menosreais, são as ameaças à paz, geradas pelasolidariedade econômica, artificialmente promovida,de todos os habitantes de um país, e pelos novosblocos de interesses conflitantes, criados peloplanejamento em escala nacional. Não é necessárionem desejável que as fronteiras nacionais assinalem

pronunciadas diferenças de padrões de vida, nem queo fato de pertencer a um grupo nacional confira odireito a uma fatia de um bolo completamente diversodaquele partilhado por membros de outros grupos. Seos recursos de cada nação forem considerados suapropriedade exclusiva, se as relações econômicasinternacionais deixarem o plano individual para setornarem cada vez mais relações entre nações inteirasorganizadas como unidades comerciais, essasrelações se converterão inevitavelmente em causa deatritos e inveja entre os povos. Uma das ilusões maisfatais é a de que, se a concorrência para a conquistados mercados ou das matérias-primas fossesubstituída por negociações entre estados ou gruposorganizados, os atritos internacionais seriamreduzidos. Isso seria apenas transformar num embatede forças aquilo que só em sentido metafóricopodemos denominar “luta” entre concorrentes, etransferir para estados poderosos e armados, nãosujeitos a qualquer lei superior, as rivalidades que osindivíduos eram obrigados a decidir sem recurso àforça. As transações econômicas entre unidadesnacionais que são ao mesmo tempo juízes supremosda própria conduta, que não se curvam ante nenhumalei superior e cujos representantes não podem ser

restringidos por qualquer consideração exceto ointeresse imediato de seus respectivos países,acabarão por converter-se em choque entrenações.107

Se a vitória não nos servisse para algo melhor doque favorecer as atuais tendências nesse sentido, jábem perceptíveis antes de 1939, acabaríamos pordescobrir que derrotamos o nacional-socialismoapenas para criar um mundo dividido entre muitossocialismos nacionais, que, embora diferindo emdetalhes, seriam todos igualmente totalitários enacionalistas, e viveriam em conflito periódico unscom os outros. Os alemães, como já pensamalguns108, pareceriam ter sido os perturbadores da paztão-somente porque foram os primeiros a tomar ocaminho depois seguido por todos os demais.

Aqueles que compreendem ao menos em parteessas ameaças costumam chegar à conclusão de queo planejamento econômico se deve realizar em nível“internacional”, isto é, deve ser feito por algumaautoridade supranacional. Mas, conquanto issopudesse afastar alguns dos perigos óbvios criadospelo planejamento em escala nacional, parece que osdefensores de planos tão ambiciosos têm pouca

noção das dificuldades e perigos ainda maioressuscitados por suas propostas. Os problemasdecorrentes da ordenação deliberada dos assuntoseconômicos em escala nacional assumeminevitavelmente proporções maiores quando a mesmacoisa é levada a efeito em escala internacional. Oconflito entre planificação e liberdade não pode deixarde agravar-se à medida que diminui a semelhança devalores e de padrões entre os que são submetidos aum plano unitário. Não é muito difícil planejar a vidaeconômica de uma família, e a dificuldade é poucomaior quando se trata de uma comunidade pequena.Mas à proporção que a escala aumenta, diminui oconsenso a respeito da ordem de importância dosobjetivos. Numa pequena comunidade, os padrões devalores e as opiniões sobre a importância relativa dastarefas principais serão comuns no que diz respeito aum grande número de questões. Este número, porém,diminuirá cada vez mais à medida que se amplia oâmbito de planificação; e, diminuindo o consenso,crescerá a necessidade de adotar a força e a coerção.

É fácil persuadir qualquer povo a fazer umsacrifício para auxiliar aquilo que ele considera a“sua” indústria siderúrgica ou a “sua” agricultura, oupara que no seu país ninguém fique abaixo de um

certo nível econômico. Enquanto se tratar de ajudarindivíduos cujos hábitos de vida e maneiras de pensarnos são familiares; de corrigir a distribuição da rendaou as condições de trabalho de pessoas cuja situaçãonos é fácil imaginar e cujas ideias sobre o que seria asua posição social adequada assemelham-sefundamentalmente às nossas, a maior parte das vezesnos disporemos a fazer alguns sacrifícios. Mas bastaconsiderar os problemas criados pelo planejamentoeconômico, mesmo de uma região como a EuropaOcidental, para ver que inexistem as bases moraisnecessárias a semelhante empreendimento. Quemacredita na existência de ideais comuns de justiçadistributiva que levem o pescador norueguês a abrirmão de suas perspectivas de melhoria econômica afim de auxiliar seu colega português, ou o trabalhadorholandês a pagar mais pela sua bicicleta para ajudar omecânico de Coventry, ou o camponês da França apagar mais impostos em apoio à industrialização daItália?

Se a maioria não quer compreender a dificuldade,é sobretudo porque, consciente ouinconscientemente, presume que ela própria é queresolverá essas questões para os outros membros dasociedade, e porque está convencida de sua

capacidade de fazê-lo com justiça e equidade. Opovo inglês, por exemplo, talvez ainda mais do queos outros, só começa a compreender o que significamtais planos quando lhe é lembrado que ele poderiaconstituir uma minoria na comissão planejadora e queas linhas gerais do futuro desenvolvimentoeconômico da Grã-Bretanha poderiam ser traçadaspor uma autoridade não-britânica. Quantos naInglaterra estariam dispostos a submeter-se àsdecisões de uma autoridade internacional, mesmodemocraticamente constituída, que tivesse o poder dedecretar a precedência do desenvolvimento daindústria metalúrgica espanhola sobre a mesmaindústria no País de Gales Meridional, a concentraçãoda indústria de instrumentos ópticos na Alemanhacom exclusão da Inglaterra, ou que a Inglaterra sóimportasse gasolina completamente refinada e quetodas as indústrias relacionadas com o refino fossemreservadas aos países produtores?

A ideia de que se possa dirigir ou planejar pormétodos democráticos a vida econômica de umavasta região habitada por muitos povos diferentesrevela completa falta de conhecimento dos problemasque tal planejamento suscitaria. Muito mais do que onacional, o planejamento realizado em escala

internacional não pode ser senão a lei da força: aimposição, por parte de um reduzido grupo, do tipode trabalho e do padrão de vida que os planejadoresjulgam convir aos demais. É indiscutível que aGrossraumwirtschaft que os alemães pretendem pôrem execução só pode ser realizada com êxito poruma raça dominante, um Herrenvolk, que obrigueimplacavelmente os outros povos a aceitarem suasideias e seus objetivos. É erro considerar abrutalidade e o desrespeito que os alemães têmmostrado para com os desejos e ideais dos povosmais fracos um simples indício de uma perversãopeculiar aos germânicos; é a própria natureza datarefa por eles assumida que torna esse procedimentoinevitável. Empreender a direção da vida econômicade pessoas apegadas a ideais e valores amplamentedivergentes é assumir responsabilidades que implicamo uso da força – é atribuir-se uma posição na qual,mesmo com as melhores intenções, não se podedeixar de agir de uma forma que, para algunsdaqueles a ela submetidos, parecerá altamenteimoral109.

Isso se aplica mesmo que suponhamos o poderdominante tão idealista e desprendido quanto sepossa conceber. Mas quão pouca probabilidade há de

que ele seja desprendido, e como são grandes astentações. Creio que os padrões de decência e justiça,em especial no que toca às relações internacionais,são tão elevados na Inglaterra quanto nos outrospaíses – se não superiores. E contudo, ainda hojeouvimos dizer que é preciso aproveitar a vitória paracriar condições em que a indústria britânica possafazer uso integral do equipamento construído durantea guerra, que a reconstrução da Europa deve serorientada de maneira a ajustar-se às necessidadesespecíficas da economia inglesa e a garantir a todosos habitantes do país o trabalho para o qual cada umse julga mais apto. O aspecto mais alarmante dessassugestões não é o fato de serem feitas, mas de seremfeitas com toda a ingenuidade, e consideradas coisanatural por pessoas de bem que não percebem emabsoluto as enormidades morais implícitas no uso daforça para tais fins.110

O mais poderoso agente que contribui para criaressa crença na possibilidade de uma direçãocentralizada e única, por meios democráticos, da vidaeconômica de muitos povos diferentes, é a fatalilusão de que, se as decisões fossem deixadas ao“povo”, a comunhão de interesses das classestrabalhadoras logo superaria as diferenças que

separam as classes dominantes. É de todo justificávelesperar que, com o planejamento mundial, o embatede interesses econômicos que observamos agora emtorno da política econômica de qualquer naçãoassumiria a forma, ainda mais agressiva, de umembate de interesses entre nações, que só poderia serdecidido pela força. Sobre as questões que umaautoridade planejadora internacional teria de resolver,os interesses e opiniões das classes trabalhadoras dosdiferentes povos divergiriam tanto quanto os dasdiferentes classes de qualquer país, e as basescomuns para um acordo equitativo seriam aindamenores. A reivindicação do trabalhador de um paísmais rico no sentido de que se estabeleça um saláriomínimo comum que o proteja da concorrência de seucolega de um país pobre que trabalha por salário maisbaixo aparentemente reverteria em benefício deste.Na realidade, porém, isso constituiria, muitas vezes,apenas um meio de privar esse trabalhador maispobre da única possibilidade de melhorar suascondições de vida tentando superar desvantagensnaturais pela oferta de mão-de-obra a um preçoinferior ao de seus colegas de outros países. E, paraele, o fato de ter que dar o produto de dez horas doseu trabalho pelo produto de cinco horas de trabalho

do seu colega estrangeiro, melhor equipado emtermos de maquinaria, constituiria “exploração”semelhante à praticada por qualquer capitalista.

Num sistema internacional de economia dirigida, asnações mais ricas, e portanto mais poderosas, teriammuito maior probabilidade de suscitar o ódio e ainveja das mais pobres do que um regime de livremercado. E estas últimas, com ou sem razão,estariam convencidas de que a sua situação poderiamelhorar muito mais depressa se tivessem liberdadede fazer o que lhes aprouvesse. Com efeito, sepassássemos a considerar um dever da autoridadeinternacional o estabelecimento da justiça distributivaentre os diferentes povos, a transformação da luta declasses em luta entre as classes trabalhadoras dosdiferentes países não passaria de um desdobramentológico e inevitável da doutrina socialista.

Hoje em dia, há muita discussão incoerente sobre“planejamento para igualar os padrões de vida”. Seráinstrutivo considerar de forma mais detalhada umadessas propostas, para perceber exatamente o que elaimplica. A região para a qual nossos planejadores sevoltam com especial carinho no momento é a baciado Danúbio e o sudeste europeu. Sem dúvida, urge

melhorar as condições econômicas dessa região, tantopor razões humanitárias e econômicas como nointeresse da futura paz europeia.

Também é certo que tal melhoramento só poderáser conseguido numa situação política diferente daque até hoje tem reinado ali. Mas isso não pressupõeque a vida econômica dessa região deva ser dirigidade acordo com um único plano abrangente, quefavoreça o desenvolvimento das diversas indústriassegundo um cronograma traçado de antemão, demaneira que o êxito das iniciativas locais dependa daaprovação da autoridade central e da incorporaçãodessas iniciativas ao plano. Não se pode, porexemplo, criar uma espécie de administração do valedo Tennessee aplicável à bacia do Danúbio sem fixar,para um prazo bastante longo, o ritmo relativo doprogresso dos diferentes grupos étnicos que habitamessa região ou sem subordinar a essa tarefa asaspirações e desejos de cada grupo.

Tal planejamento deve começar necessariamentepor estabelecer uma ordem de prioridade entre asdiferentes reivindicações. Traçar um plano paraequiparar os padrões de vida significa dispor essasreivindicações numa ordem hierárquica de acordo

com o mérito, dar a algumas delas prioridade emrelação a outras e fazer com que algumas tenham deaguardar a sua vez – ainda que aqueles cujosinteresses são assim postergados estejamconvencidos, não apenas da superioridade dos seusdireitos, mas até da possibilidade de alcançarem maisdepressa o seu objetivo se tivessem liberdade de agircomo desejam. Não há base lógica que nos permitadeterminar se as reivindicações do camponês pobreda Romênia são mais prementes ou menos prementesdo que as do albanês, ainda mais pobre do que ele,ou se as necessidades do pastor das montanhaseslovacas são maiores que as do seu colega esloveno.Mas, para que a elevação dos seus padrões de vida sedê de acordo com um plano unitário, alguém terá decomparar os méritos de todas essas reivindicações edecidir entre elas. E uma vez posto em execuçãosemelhante plano, todos os recursos da região a queele se aplica deverão contribuir para a sua realização.Não será possível abrir exceções para os que sejulgam capazes de alcançar maior prosperidade por simesmos. Como outras reivindicações são sobrepostasàs suas, terão de trabalhar em primeiro lugar para asatisfação das necessidades daqueles a quem se deuprioridade.

Dessa forma, todos se sentirão em pior situação doque se outro plano tivesse sido adotado. Cada um seconvencerá de que foram o arbítrio e o poder dospaíses dominantes que o condenaram a viver emcondições menos favoráveis do que aquelas a quejulga ter direito. Semelhante experiência numa regiãodividida em pequenos países, cada um dos quaisacredita com igual convicção na sua superioridadesobre os demais, equivale a empreender uma tarefaque só pode ser executada pelo emprego da força. Naprática, isso significa que os ingleses e o poderioinglês determinariam se a elevação dos padrões devida do camponês búlgaro deve preceder a domacedônio, e se cabe ao mineiro tcheco ou aohúngaro aproximar-se mais depressa dos padrõesocidentais. Não é necessário ter grande conhecimentoda natureza humana, e por certo bastará conhecer umpouco os povos da Europa Central, paracompreender que, seja qual for a decisão imposta,haverá muitos – provavelmente uma maioria – aquem a ordem de precedência dada parecerá supremainjustiça. E o ódio comum não tardará a voltar-secontra o poder que, embora desinteressadamente,decidiu, na realidade, o destino de todos.

Muitos, sem dúvida, acreditam com sinceridade

que, se lhes fosse atribuída essa tarefa, conseguiriamresolver todos os problemas de forma justa eimparcial, e ficariam surpreendidos ao ver assuspeitas e o ódio voltarem-se contra eles, Noentanto, essas pessoas seriam provavelmente asprimeiras a lançar mão da força quando aqueles aquem pretendem beneficiar se mostrassemrecalcitrantes, e a exercer implacável coerção sobre opovo no cumprimento daquilo que julgam ser dointeresse popular. Esses perigosos idealistas não veemque, quando uma responsabilidade moral envolve anecessidade de fazer os nossos princípios éticosprevalecerem sobre os de outras comunidades,assumi-la pode nos colocar numa posição em que umcomportamento moral se torne impossível. Impor àsnações vitoriosas uma tarefa moral impossível é ummeio certo de corrompê-las e desacreditá-lasmoralmente.

Auxiliemos, pois, tanto quanto pudermos os maispobres em seus esforços para organizarem-se eelevarem o próprio padrão de vida. Uma autoridadeinternacional pode ser muito equitativa e contribuirenormemente para a prosperidade econômica, desdeque se limite a manter a ordem e a estabelecercondições em que os indivíduos possam desenvolver-

se por si mesmos. Mas é impossível ser justo epermitir que cada um viva a seu modo quando aautoridade central distribui matérias-primas e alocamercados, quando todo esforço espontâneo dependede uma “aprovação’’ e nada se pode fazer sem asanção da autoridade central.

Depois das exposições feitas nos capítulosanteriores, é quase desnecessário acentuar que essasdificuldades não podem ser enfrentadas conferindo-sea várias autoridades internacionais “apenas” podereseconômicos específicos. A ideia de que isso seja umasolução prática baseia-se na ilusão de que oplanejamento econômico é uma questão puramentetécnica que pode ser resolvida de maneira objetivapor especialistas, e que os pontos de fato essenciaiscontinuariam sendo decididos pelas autoridadespolíticas. Qualquer autoridade econômicainternacional, não sujeita a um poder políticosuperior, mesmo dentro dos estritos limites de umcampo específico, poderia exercer com facilidade opoder mais tirânico e irresponsável que é possívelimaginar. O controle exclusivo de um bem ou serviçoessencial (como, por exemplo, o transporte aéreo) écom efeito um dos poderes mais amplos que sepodem conferir a qualquer autoridade. E há poucas

possibilidades de controlar esse poder, uma vez quequase tudo pode ser justificado por “necessidadestécnicas” incontestáveis por um leigo de modoeficiente – ou mesmo por argumentos humanitários etalvez sinceros – sobre as necessidades de algumgrupo particularmente desfavorecido que não poderiaser auxiliado de outra maneira. A organização dosrecursos mundiais por órgãos mais ou menosautônomos, apoiada hoje em dia por setores os maisinesperados, um sistema de vastos monopóliosreconhecido por todos os governos nacionais masindependente de todos eles, acabaria por converter-seno pior de todos os sistemas de exploração – aindaque os homens incumbidos de administrá-lo semostrassem guardiões fidelíssimos dos interesses aeles confiados.

Basta ponderar sobre as consequências depropostas aparentemente inócuas, e tidas como abase da futura ordem econômica, tais como ocontrole e a distribuição deliberada da oferta dematérias-primas essenciais, para compreender astremendas dificuldades políticas e os perigos moraisque elas criariam. A autoridade encarregada docontrole da oferta de gasolina, madeira, borracha ouestanho, seria senhora do destino de indústrias e de

países inteiros. Ao decidir se cumpre ou não permitiro aumento da oferta e a queda do preço ou da rendados produtores, ela estaria decidindo se este ouaquele país terá permissão para iniciar uma novaindústria ou será impedido de fazê-lo. Enquanto essaautoridade controladora “protege” o padrão de vidadaqueles que considera especialmente confiados aoseu cuidado, privará muitos, em posição bem pior, damaior e talvez única oportunidade de melhorar aprópria condição. Se todas as matérias-primasessenciais fossem controladas dessa forma, nãohaveria indústria nova ou novo empreendimento aque um povo se pudesse lançar sem a permissão daautoridade, nenhum plano de desenvolvimento ou demelhoramento que esta não pudesse frustrar com oseu veto. O mesmo acontece com o acordointernacional para a “partilha” dos mercados, e aindamais com o controle do emprego de capitais e oaproveitamento dos recursos naturais.

É curioso observar como aqueles que se dizem osmais intransigentes realistas e não perdem ocasião deridicularizar as “ideias utópicas” dos que acreditam napossibilidade de uma ordem política internacionalconsideram, no entanto, praticável a interferênciamuito mais íntima e irresponsável na vida dos

diferentes povos, implícita no planejamentoeconômico. Além disso, acreditam que, uma vezconferido um poder jamais visto a um governointernacional que acabam de declarar incapaz deimpor um simples estado de Direito, esse grandepoder será usado com tanto desprendimento e tantajustiça que conquistará a aprovação geral. Ora, éevidente que, embora as nações possam respeitarnormas formais por elas aceitas de comum acordo,nunca se submeterão ao controle inerente aoplanejamento internacional. Talvez possam concordarsobre as regras do jogo; jamais concordarão, porém,com a ordem de prioridades que fixe por votomajoritário a importância relativa das suasnecessidades e a rapidez com que lhes será permitidoprogredir. Ainda que a princípio, iludidos quanto aosignificado de tais propostas, os povos assentissemem delegar tais poderes a uma autoridadeinternacional, não tardariam a descobrir que o quetinham delegado não era uma simples tarefa técnica esim o mais amplo controle sobre suas próprias vidas.

O que tem em mente, de fato, os “realistas” não detodo destituídos de senso prático que advogam essesplanos é que, se de um lado as grandes potênciasrelutarão em submeter-se a qualquer autoridade

superior, de outro poderão utilizar essas autoridades“internacionais” para impor a sua vontade àspequenas nações na área em que exercemhegemonia. Há tanto “realismo” nisso que,camuflando-se dessa forma como “internacionais” asautoridades planejadoras, seria, mais fácil alcançar aúnica condição em que é exequível o planejamento,isto é, aquela em que ele é realizado por uma sópotência dominante. Esse disfarce, entretanto, nãoalteraria o fato de que para os estados menores talcoisa significa uma sujeição bem mais completa auma potência externa, à qual já não seria possívelopor nenhuma resistência real, do que a sujeiçãoimplícita na renúncia a uma parte claramente definidada sua soberania política.

É significativo que os mais apaixonados defensoresde uma nova ordem para a Europa, com direçãoeconômica centralizada, revelem, como os seusprotótipos fabianos e alemães, o mais completodesdém pela individualidade e pelos direitos daspequenas nações. As opiniões do professor Carr, quenessa esfera, ainda mais do que na da política interna,representa as tendências totalitárias na Inglaterra, jálevaram um de seus colegas de profissão a fazer estapergunta muito pertinente: “Se o tratamento dado

pelos nazistas às pequenas nações soberanas deve serempregado agora de forma generalizada, por que,então, estamos em guerra?” 111Os que observaram ainquietação provocada entre os nossos aliados maisfracos por certas declarações recentes sobre oassunto, publicadas em jornais de orientação tãodiferente como o The Times e o New Statesman,112

não terão dúvidas de que nossos amigos maispróximos até hoje se ressentem dessa atitude e decomo será fácil dissipar a boa vontade acumuladadurante a guerra, se resolvermos seguir taisconselhos.

Aqueles que se mostram tão dispostos a espezinharos direitos das pequenas nações têm, é claro, razãonum ponto: não podemos esperar que reine a ordemou uma paz duradoura depois desta guerra se osestados, grandes e pequenos, reconquistarem umasoberania irrestrita na esfera econômica. Isso, porém,não quer dizer que se deva conceder a um novosuperestado poderes que não aprendemos a usar cominteligência sequer no âmbito nacional, ou a um órgãointernacional o direito de ditar a cada nação comoempregar os seus recursos. Significa apenas que devehaver um poder capaz de impedir que as diferentesnações adotem medidas prejudiciais aos seus

vizinhos; um conjunto de normas que defina o campode ação de cada estado; e uma autoridade capaz defazer cumprir essas normas. Os poderes necessários atal autoridade são basicamente de natureza negativa:ela deve, acima de tudo, estar em condições de vetartoda sorte de medidas restritivas.

Longe de ser verdade que, como muitos acreditamhoje, necessitemos de uma autoridade econômicainternacional que não impeça os estados deconservarem soberania política irrestrita, trata-sequase exatamente do oposto. Do que necessitamos epodemos ter esperanças de conseguir não é umaautoridade econômica internacional irresponsáveldotada de maior poder, mas, ao contrário, um poderpolítico superior capaz de refrear os interesseseconômicos, funcionando como árbitro nos conflitosque surgem entre estes por não estar ele próprioenvolvido nos interesses em jogo.

Necessitamos de uma autoridade políticainternacional que, sem poderes para impor aosdiferentes povos o que devem fazer, tenha condiçõesde impedi-los de prejudicar a outros. Os poderes deque deve ser investida uma autoridade internacionalnão são aqueles recentemente assumidos pelos

estados, mas um número mínimo de poderes sem oqual é impossível manter relações pacíficas: emessência, os poderes do estado ultraliberal. E, aindamais que na esfera nacional, é indispensável queesses poderes da autoridade internacional sejamrigorosamente circunscritos pelo estado de Direito. Anecessidade de semelhante autoridade supranacionaltorna-se, com efeito, cada vez maior à medida que osestados se vão convertendo em unidades deadministração econômica, antes atores do quesimples supervisores do cenário econômico, e quetodo atrito só pode surgir entre estados como tais,não entre indivíduos.

A forma de governo internacional sob a qual certospoderes estritamente definidos são transferidos a umaautoridade superior, enquanto sob todos os outrosaspectos cada país permanece responsável pela suapolítica interna é, naturalmente, a da federação. Nãodevemos permitir que os numerosos argumentosirrefletidos, e muitas vezes tolos, apresentados emfavor de uma “união federal” durante o apogeu dapropaganda nesse sentido, obscureçam o fato de queo princípio federativo é a única forma de associaçãode povos diferentes capaz de criar uma ordeminternacional sem restringir de maneira indevida o

desejo de independência desses povos. 113Ofederalismo nada mais é do que a aplicação, aosassuntos internacionais, da democracia, único métodode mudança pacífica até hoje inventado pelo homem.Trata-se, porém, de uma democracia com poderesclaramente limitados. Além do ideal mais impraticávelque visa a fundir diferentes países num único estadocentralizado (cuja conveniência, aliás, está longe deser evidente), a federação é o único meio deconverter em realidade o ideal do Direitointernacional. Não devemos iludir-nos: no passado,ao denominar Direito internacional as regras deconduta entre as nações, estávamos apenasmanifestando uma aspiração hipócrita. Quandoqueremos impedir que as pessoas se matem umas àsoutras, não nos contentamos em declarar em públicoque o homicídio é condenável: conferimos poder auma autoridade para impedi-lo. Do mesmo modo,não haverá Direito internacional se não existir umpoder que o aplique.

O obstáculo à criação de tal autoridadeinternacional foi, em grande parte, a ideia de que eladeveria dispor dos poderes praticamente ilimitadosque o moderno estado possui. Com a divisão depoderes propiciada pelo sistema federal, porém, isso

não é de modo algum necessário.Essa divisão de poder atuaria, ao mesmo tempo,

como uma limitação do poder do conjunto, e dopoder de cada estado em particular. É provável quemuitas formas de planejamento em moda hoje em diase tornassem de todo impossíveis, 114mas isso demodo algum constituiria um obstáculo a qualquerplanejamento. Uma das principais vantagens dafederação é, com efeito, poder ser estabelecida demodo a dificultar quase todo planejamentoprejudicial, deixando o caminho aberto a todoplanejamento benéfico. Ela impede, ou é possívelfazer com que impeça, quase todas as formas derestrição, e limita o planejamento internacional aoscampos em que se pode chegar a um verdadeiroacordo – não apenas entre os “interesses”imediatamente envolvidos, mas entre todos os quepossam ser atingidos. As formas desejáveis deplanejamento que se podem levar a efeito em nívellocal e sem a necessidade de medidas restritivas sãodeixadas em liberdade e confiadas aos melhorqualificados para empreendê-las. É mesmo de esperarque, dentro de uma federação, onde já não existemrazões para fortalecer ao máximo cada estado, oprocesso de centralização utilizado no passado possa,

dentro de certos limites, ser invertido, permitindoinclusive que certos poderes sejam retirados doestado e devolvidos às autoridades locais.

Vale a pena recordar que a ideia de que o mundoencontrará por fim a paz mediante a fusão dosdiferentes estados em grandes grupos federados edepois, talvez, numa federação única constitui, naverdade, o ideal de quase todos os pensadores liberaisdo século XIX. De Tennyson, cuja visão muito citadada “batalha aérea” é seguida de uma visão dos povosfederados após a grande luta derradeira, até o fim doséculo, o estabelecimento final de uma organizaçãofederativa foi a esperança recorrente de uma próximagrande etapa no caminho da civilização. Talvez osliberais do século XIX não compreendessemplenamente até que ponto uma organização federaldos diferentes estados constituía um complementoessencial aos seus princípios; 115mas eram poucosentre eles os que não expressavam a sua crença emtal coisa como um objetivo final.116 Apenas com aaproximação do nosso século é que, ante o surtotriunfante da Realpoiitik, essas esperanças passarama ser consideradas utópicas e irrealizáveis.

Não conseguiremos reconstruir a nossa civilização

em grande escala. Não é por mera coincidência que,de um modo geral, havia mais beleza e honestidadena vida dos pequenos povos, e que entre os grandesexistia mais felicidade e contentamento na medida emque evitavam a doença fatal da centralização. E porcerto não lograremos preservar a democracia oupromover o seu desenvolvimento se todo o poder e amaioria das decisões importantes ficarem nas mãosde uma organização tão vasta que o homem comumnão a possa fiscalizar ou compreender. Em partealguma a democracia tem funcionado bem sem umagrande medida de autodeterminação em nível local,que constitua uma escola de adestramento políticopara os seus futuros líderes não menos que para opovo em geral. Só onde se pode aprender e praticar aresponsabilidade em assunto com que a maioria dopovo está familiarizada, onde a percepção dascondições do nosso vizinho e não um conhecimentoteórico das necessidades alheias orienta a nossa ação,é que o homem comum pode de fato participar dosnegócios públicos, porque dizem respeito ao mundoque ele conhece.

Quando o âmbito das medidas políticas se tornatão vasto que praticamente só os burocratas possuemo necessário conhecimento, os impulsos criativos do

indivíduo tendem a definhar. Creio que, nesse ponto,a experiência de países pequenos como a Holanda e aSuíça encerra muitas lições mesmo para os paísesgrandes mais afortunados, como a Grã-Bretanha.Todos nós teremos a lucrar com a criação de ummundo em que os pequenos estados possam viver.

Mas os pequenos só podem conservar a suaindependência, tanto na esfera internacional como nanacional, no âmbito de um verdadeiro sistema legalque garanta, de um lado, a aplicação invariável decertas normas, e de outro, que a autoridade investidado poder para fazê-las cumprir não possa utilizar talpoder para qualquer outra finalidade. Embora, para atarefa de fazer vigorar a lei comum, a autoridadesupranacional deva ser muito poderosa, a suaconstituição deverá ao mesmo tempo ser estruturadade modo a impedir tanto a autoridade internacionalcomo as nacionais de se tornarem tirânicas. Jamaispoderemos evitar o abuso de poder se não nosdispusermos a limitá-lo de um modo que tambémimpeça o seu uso ocasional para fins benéficos. Agrande oportunidade que teremos após esta guerra é ade que as grandes potências vitoriosas, começandoelas mesmas por submeter-se a um sistema denormas que estão em condições de fazer observar,

possam conquistar simultaneamente o direito moralde impor as mesmas normas aos demais.

Uma autoridade internacional que limite de modoefetivo o poder do estado sobre o indivíduo será umadas melhores salvaguardas da paz. O estado deDireito internacional deve tornar-se uma proteçãotanto contra a tirania do estado sobre o indivíduo,como contra a tirania do novo superestado sobre ascomunidades nacionais. Nossa meta não deve sernem um superestado onipotente, nem uma frouxaassociação indefinida de “nações livres”, mas umacomunidade de nações formadas de homens livres.Durante muito tempo, afirmamos que se tornaraimpossível adotar aos negócios internacionais umalinha de ação que nos parecia aconselhável, porqueos outros recusavam entrar no jogo. O acordo a serestabelecido constituirá uma oportunidade demostrarmos que fomos sinceros e que estamosprontos a aceitar as mesmas restrições à nossaliberdade de ação que, no interesse comum, achamosnecessário impor aos outros.

Empregado com prudência, o princípio federativode organização poderá revelar-se a melhor soluçãopara os mais complexos problemas mundiais. Sua

aplicação, porém, é tarefa sobremodo difícil, na qualnão obteremos êxito se, numa tentativa por demaisambiciosa, o forçarmos além do limite da suacapacidade.

Haverá provavelmente uma forte tendência paradar alcance mundial e universal a qualquerorganização internacional que se formar. E, é claro,far-se-á sentir a necessidade imperiosa de umaorganização abrangente, uma espécie de nova liga dasnações. Se, porém, no desejo de apoiar-mo-nosinteiramente nessa instituição, ela for encarregada detodas as tarefas que parece desejável confiar a umaorganização internacional, essas tarefas correm ogrande risco de não serem levadas a efeito de modoadequado. Sempre me pareceu que tais ambiçõesconstituíssem a causa da ineficácia da Liga dasNações. Para dar-lhe abrangência mundial (tentativaaliás fracassada) foi preciso debilitá-la. Uma ligamenor e ao mesmo tempo mais poderosa teria sidomelhor instrumento para a manutenção da paz. Creioque essas considerações ainda são válidas e que seriapossível realizar certo grau de cooperação entre, porexemplo, o Império Britânico e as nações da EuropaOcidental, incluindo talvez os Estados Unidos, aopasso que em escala mundial tal coisa seria

irrealizável. A associação bastante íntima implícitanuma federação talvez não seja praticávelinicialmente nem mesmo numa região tão limitadacomo uma parte da Europa Ocidental, embora possaser ampliada aos poucos.

É certo que, com a formação de tais federaçõesregionais, ainda permanecerá a possibilidade deguerra entre os diferentes blocos. Para diminuir aomáximo esse risco, seria preciso confiar numa uniãomais ampla e menos compacta. O que desejoacentuar é que a necessidade dessa outra organizaçãonão deve constituir um obstáculo à associação maisíntima de países que apresentem maior semelhançade civilização, ideias e padrões. Embora seja nossodever prevenir tanto quanto possível as futurasguerras, não se deve pensar que possamos criar deuma só vez uma organização permanente queimpossibilite a guerra em qualquer parte do mundo.

Além de sermos mal-sucedidos nessa tentativatalvez arruinássemos as probabilidades de êxito numaesfera mais limitada. Como acontece em relação aoutros grandes males, as medidas que tornariam aguerra de todo impossível no futuro talvez serevelassem piores do que a própria guerra. Se

conseguirmos diminuir os riscos de atrito capazes deprovocar a guerra, estaremos fazendo tudo o que,dentro dos limites do razoável, podemos teresperança de realizar.

CONCLUSÃOA finalidade deste livro não foi traçar um programa

detalhado para uma futura ordem social desejável. Seno campo dos negócios internacionais fomos umpouco além do nosso propósito essencialmentecrítico, é porque nesse terreno talvez tenhamos, embreve, de criar uma estrutura dentro da qual o futurodesenvolvimento poderá vir a processar-se por muitotempo. Muita coisa dependerá de como usarmos aoportunidade que então nos será dada. O que querque façamos, porém, só poderá ser o começo de umnovo, longo e árduo processo pelo qual todos nósesperamos criar pouco a pouco um mundo muitodiferente daquele que conhecemos nos últimos 25anos.

É duvidoso que, na fase atual, tenha grandeutilidade apresentar um plano detalhado de uma novaordem da sociedade – ou que alguém sejacompetente para fazê-lo. O importante, agora, é queteremos de encontrar um consenso em torno decertos princípios e de nos libertar de alguns erros quepautaram a nossa conduta nas últimas décadas. Pormuito que nos desagrade admitir este fato, devemosreconhecer que antes desta guerra havíamos

novamente atingido uma fase crítica. Agora, é maisimportante remover os obstáculos com que ainsensatez humana obstruiu o nosso caminho e liberara energia criadora dos indivíduos, do que inventarnovos mecanismos para “guiá-los” e “dirigi-los” –criar condições favoráveis ao progresso, em vez de“planejar o progresso”. A primeira necessidade élibertarmo-nos da pior forma de obscurantismocontemporâneo: aquela que procura persuadir-nos deque nossa conduta no passado recente foi, ouacertada, ou inevitável. Não nos tornaremos maissábios enquanto não aprendermos que muito do quefizemos era pura tolice.

Para construir um mundo melhor, devemos ter acoragem de começar de novo – mesmo que issosignifique, como dizem os franceses, reculer pourmieux sauter (N. do T.: literalmente, “recuar paramelhor avançar”). Não são os que creem emtendências inevitáveis que mostram essa coragem;nem aqueles que pregam uma “nova ordem” (quenão é mais do que uma projeção das tendências dosúltimos quarenta anos), sem nada melhor a oferecerdo que imitar Hitler. Aqueles que clamam mais altopela nova ordem são, na realidade, os que se achammais completamente dominados pelas ideias que

provocaram esta guerra e quase todos os males deque sofremos. Os jovens têm razão em depositarpouca confiança nos princípios pelos quais se norteiagrande parte da geração mais velha. Mas enganam-seou são enganados quando acreditam que taisprincípios ainda são os princípios liberais do séculoXIX. Estes, a geração jovem mal os conhece.Conquanto não possamos desejar nem efetuar a voltaà realidade do século XIX, temos a oportunidade derealizar os seus ideais – e esses ideais não eramdesprezíveis. Não temos direito de nos considerarmossuperiores a nossos avós neste ponto; e nuncadeveríamos esquecer que fomos nós, os homens doséculo XX, e não eles, que provocamos estadesordem. Se eles ainda não haviam aprendido detodo o que era necessário para construir o mundo quedesejavam, a experiência por nós adquirida desdeentão deveria ter-nos preparado melhor para a tarefa.Se fracassamos na primeira tentativa de criar ummundo de homens livres, devemos tentar novamente.O princípio orientador – o de que uma política deliberdade para o indivíduo é a única política que defato conduz ao progresso permanece tão verdadeirohoje como o foi no século XIX.

NOTAS BIBLIOGRÁFICASA exposição de um ponto de vista que durante

muitos anos vem sendo desfavorecido pela opiniãogeral torna-se ainda mais difícil pelo fato de que, noslimites de uns poucos capítulos, só é possível debateralguns de seus aspectos. Para o leitor cujas opiniõesse tenham formado segundo as ideias dominantes nosúltimos vinte anos, uma exposição tão sumária nãopoderá ser suficiente para fornecer os elementosbásicos indispensáveis a um estudo proveitoso. Mas,embora não prevaleçam nos dias atuais, as ideias doautor deste livro não são tão incomuns quantopoderiam parecer a certos leitores. Sua perspectivafundamental é a mesma de escritores cujo númerovem crescendo substancialmente em muitos países.

Desenvolvendo seus estudos de modoindependente, eles chegaram a conclusões quaseidênticas. O leitor desejoso de conhecer melhor o quepossa ter julgado um conjunto de ideias poucocomum, porém pelas quais sinta afinidade,considerará útil a lista, que apresento a seguir, dealguns dos trabalhos mais importantes dessa linha depensamento.

Nela incluo diversos estudos em que o caráter

essencialmente crítico deste livro é complementadopor análises mais amplas da configuração que deveriater a sociedade futura.

CASSEL, G. From Protectionism ThroughPlanned Economy. Londres, Cobden MemorialLecture, 1934.

CHAMBERLIN, W. H. A False UtopiaCollectivism in Theory and Practice. Londres,Duckworth, 1937.

GRAHAM, F. D. Social Goals and EconomicInstitutions. Princeton, Princeton University Press,1942.

GREGORY, T. E. Gold, Unemployment, andCapitalism, Londres, King, 1933.

HALÉVY, E. L’ère des tyrannies. Paris, Gallimard,1938. Dois dos ensaios mais importantes dessa obraforam publicados em tradução inglesa emEconomica, de fevereiro de 1941, e em InternationalAffairs, em 1934.

HALM, G.; MISES, L. von et all. CollectivistEconomic Planning. Org. F.A. HAYEK. Londres,Routledge, 1937.

HUTT, W. H. Economists and lhe Public.

Londres, Cape, 1935.LIPPMANN, W. An Inquiry into the Principies of

the Good Society. Londres, Allen & Unwin, 1937.MISES, L. von. Socialism. Trad. J. Kahane.

Londres. Cape, 1936. —. Omnipotent Government.New Haven, Yale University Press, 1944.

MUIR, R. Liberty and Civilization. Londres, Cape,1940.

POLANYI, M. The Contempt of Freedom.Londres, Watts, 1940.

QUEENY, E. M. The Spirit of Enterprise. NovaYork, Scribners, 1943.

RAPPARD, W. The Crisis of Democracy.Chicago, University of Chicago Press, 1938.

ROBBINS, L. C. Economic Planning andInternational Order. Londres, Macmillan, 1937.

—. The Economic Basis of Class Conflict andOther Essays in Political Economy. Londres,MACMILLAN, . 1939. — The Economic Causes ofWar. Londres, Cape, 1939.

ROEPKE, W. Die Gesellschaftskrisis derGegenwart. Zurique, Eugen Rentsch, 1942. —.

Civitas Humana. Zurique, Eugen Rentsch, 1944.ROUGIER, L. Les mystiques économiques. Paris,

Librairie Medicis, 1938.VOIGT, F. A. Unto Caesar. Londres, Constable,

1938.Os seguintes Public Polícy Pamphlets publicados

pela University of Chicago Press:GIDEONSE, H. D. Organised Scarcity and Public

Policy. 1939.HEILPERIN, M. A. Economic Policy and

Democracy. 1943. HERMENS, F. A. Democracyand Proportional Representation. 1940.

SIMONS, H. A Positive Program for Laissez-Faire. Some Proposals jor a Liberal Economic Policy.1934.

SULZBACH, W. “Capitalist Warmongers”: AModem Superstition. 1942.

Há também importantes estudos da mesmaorientação, de alemães e italianos; mas, porconsideração para com seus autores, seriainconveniente mencioná-los no momento atual. Aessa lista acrescento três livros que, mais do que

quaisquer outros que eu conheça, ajudam acompreender o sistema de ideias que rege nossosinimigos, bem como as diferenças que os separam denós:

ASHTON, E. B. The Fascist: His State and Mind.Londres, Putnam, 1937.

FOERSTER, F. W. Europe and the GermanQuestion. Londres, Sheed, 1940.

KANTOROWICZ, H. The Spirit of English Policyand the Myth oj the Encirclement of Germany.Londres, Allen & Unwin, 1931.

E acrescento ainda uma importante obra recentesobre a História moderna da Alemanha, não tãoconhecida na Inglaterra como merece:

SCHNABEL, F. Deutsche Geschichte im 19,Jahrhundert. Freiburg i. B., 1929-37, 4 volumes.

Talvez os estudos mais esclarecedores sobre algunsde nossos problemas contemporâneos ainda seencontrem em certas obras dos grandes filósofospolíticos da era liberal, como de Tocqueville ou LordActon, e, para ir ainda mais longe no passado,Benjamin Constant, Edmund Burke e os ensaiosreunidos em The Federalist de Madison, Hamilton e

Jay – homens de gerações para as quais a liberdadeainda constituía um problema e um valor a serdefendido, enquanto a nossa geração, que a encaracomo algo que sempre continuará existindo, não sabede onde vêm os perigos que a ameaçam nem tem acoragem de livrar-se das doutrinas que a ela seopõem.

Rodapé

107 A respeito de todos estes pontos e de outros quesó poderemos abordar muito por alto, consulte-se oprofessor Lionel Robbins, Economic Ptanning andInternational Order, 1937, passim.108 Veja-se, em especial, a significativa obra deJames Burnham, The Managerial Revolution, 1941.109 A experiência na esfera colonial da Grã-Brctanha, tanto quanto na de qualquer outro país,demonstrou que mesmo as formas mais brandas deplanejamento, conhecidas como desenvolvimentocolonial, implicam, queiramos ou não, a imposição decertos valores e ideais àqueles a quem pretendemosauxiliar. Foi por sinal, essa experiência que tornou os

peritos em assuntos coloniais, inclusive os maisinternacionalistas, tão descrentes da praticabilidade deuma administração “internacional” das colônias.110 Se alguém ainda não percebeu essas dificuldades,ou acalenta a esperança de que todas elas possam servencidas como um pouco de boa vontade, ser-lhe-áproveitoso imaginar as consequências de uma direçãocentral das atividades econômicas, aplicada em escalamundial. Haverá dúvidas de que isso importaria numatentativa mais ou menos consciente de assegurar odomínio do homem branco, e de que as outras raçasteriam razão em assim considerá-la? Enquanto eu nãoencontrar um homem são de espírito convicto de queas raças europeias submeterão voluntariamente o seupadrão de vida e o ritmo do seu progresso àsdeterminações de um parlamento mundial, não possodeixar de considerar absurdos tais planos. Mas isso,infelizmente, não impede que se advoguem certasmedidas que só se justificariam se o princípio daplanificação mundial fosse um ideal realizável.111 Professor C. A. W. Manning, numa resenha dolivro Conditions of Peace, do professor Carr, emInternational Affairs Review Supplement, jun. 1942.112 É bastante significativo que, como observavarecentemente uma das nossas revistas semanais, “já

estávamos esperando sinais das doutrinas de Carr naspáginas de New Slatesman assim como nas de TheTimes” (“Four Winds”, em Time and Tide, 20 fev.1943).113 É lastimável que o grande número de publicaçõesfederalistas editadas nos últimos anos tenha impedidoque as poucas obras importantes e sensatas entre elasrecebessem a merecida atenção. Uma, em particular,deveria ser cuidadosamente consultada ao se tentarestabelecer uma nova estrutura política da Europa – olivro do doutor W. Ivor Jennings, A Federation forWestern Europe, 1940.114 Veja-se, quanto a este assunto, o artigo do autorsobre as “Condições econômicas da federação entreestados” em New Commonwealth Quarterly, v. 5,set. 1939.115 Ver, a este respeito, o livro já citado do professorRobbins, pp. 240-57.116 Ainda nos últimos anos do século XIX, HenrySidgwick pensava não estar “fora dos limites de umaprevisão moderada conjeturar que alguma integraçãofutura poderá ocorrer nos estados da EuropaOcidental; e, se isso se converter em realidade,parece provável que seja seguido o exemplo dosEstados Unidos da América e que se forme a nova

agregação política sobre a base de uma constituiçãofederal” (The Development of European Polity, –publicado postumamente em 1903, p. 439).