o Cânon Bíblico

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O Canon Biblico

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APRESENTAÇÃO

Os primeiros cristãos deixaram-nos não só testemunho da Fé que professamos, como também o registro dos eventos que sucederam no caminhar da Igreja nesta terra. Sobre estes eventos muitos se falou a respeito do surgimento e do combate às heresias antigas, a realização dos Concílios (provinciais, regionais e ecumênicos), o amadurecimento teológico sobre as mais diversas questões doutrinárias (eclesiologia, cristologia, os sacramentos, escatologia etc); mas pouco se sabe sobre como que a lista dos livros sagrados surgiu, e o que conseqüentemente deu a origem à Bíblia Sagrada. Assim como a atual cristologia e a fé na Santíssima Trindade, o discernimento da lista dos livros sagrados também foi resultado de um longo e gradativo processo de amadurecimento teológico e espiritual sob a condução do Espírito Santo. Seguindo o exemplo de São Lucas, “depois de haver diligentemente investigado tudo desde o princípio”, é com muita alegria em Cristo Jesus que apresento ao prezado leitor a historia do “índice” da Sagrada Escritura, ou pra ser mais exato, do natal da Bíblia.

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INTRODUÇÃO

A palavra “cânon” vem do grego kanóni e significa “régua” ou “cana [de medir]”. A cana era usada pelos antigos como instrumento de medição. Desta forma, os cânones em sentido religioso são as réguas que devem ser usadas para medir a vida. Isto é, guiar o fiel em sua vida religiosa. O Cânon Bíblico é a lista dos livros sagrados que compõe a Bíblia Cristã. Esta lista também é chamada de lista canônica ou lista dos livros canônicos (=livros autorizados). A Palavra “Bíblia” vem do grego “biblos” que significa biblioteca. Assim, a Bíblia é uma “biblioteca”, porque é composta por um conjunto de livros que os cristãos crêem serem inspirados por Deus.A redação dos livros sagrados começou por volta do séc. XV AC. E somente se encerrou no final do séc. I d.C.

Ao contrário do que muitos pensam a Bíblia Cristã organizada como um único livros, não foi assim entregue pelos Apóstolos. Antes que fosse possível reunir os livros sagrados em um único volume, foi necessário saber quais eram esses livros.

A Sagrada Escritura em nenhum lugar define a sua lista de livros sagrados; o índice por si mesmo também não é um “rol” inspirado, mas uma criação humana visando facilitar a localização dos diverso livros sagrados existentes nessa “biblioteca” chamada Bíblia. Embora, alguns pesquisadores defendam a existência de um cânon bíblico judeu, já fixado depois do tempo do profeta Esdras, não havia nos primeiros séculos da Era Cristã um consenso sobre quais livros de tradição hebraica deveriam ser considerados canônico (AT). Desta forma, nos primeiros séculos, alguns livros eram aceitos por toda a Igreja, enquanto outros tinham sua inspiração contestada ou posta em dúvida. Por esta razão, alguns livros que hoje se encontram na Bíblia, só foram considerados canônicos mais tarde. Considerando tudo isto, os livros canônicos que compõe a Sagrada Escritura Cristã são classificados quanto ao reconhecimento de sua canonicidade como: protocanônicos e deuteronocanônicos.

Os protocanônicos (proto=primeiro, canônicos=autorizados) são aqueles que jamais tiveram sua canonicidade contestada, isto é, são aqueles que sempre foram considerados inspirados pó Deus. Os deuterocanônicos (deutero=depois, canônicos=autorizado) são aqueles que foram considerados canônicos mais tarde, pelo fato de ter havido inicialmente alguma dúvida quanto à sua inspiração e conseqüente canonicidade. Há ainda aqueles que inicialmente foram considerados canônicos e posteriormente não, incrementando assim o conjunto dos livros “apócrifos”.

Existem livros protocanônicos e deuterocanônicos tanto pra o AT quanto para NT. Normalmente são relacionados como deuterocanônicos do AT: Tobias, Judite, Sabedoria, Sabedoria de Sirac (ou Sirácida) ou Eclesiástico, Baruc ( Baruque), 1 e 2 Macabeus. Como veremos mais adiante, a inclusão do livro de Baruc neste conjunto

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parece ser equivocada, da mesma como também equivocada a não inclusão do livro de Ester.

Também são deuterocanônicos do AT os acréscimos no livro de Ester (10,4 a 16,24) e no livro de Daniel (“O Cântico dos três jovens” correspondendo aos versículos 24 a 90 do capítulo 3; “História de Susana” e “Bel e o Dragão” correspondendo respectivamente os capítulos 13 e 14). Do NT são deuterocanônicos: 2Pedro, 2 e 3 João, Tiago, Judas, Hebreus e o Apocalipse.

Não é escopo deste trabalho um estudo detalhado acerca das traduções e manuscritos bíblicos. No entanto este assunto será abordado na devida proporção no que concerne ao estabelecimento do Cânon Bíblico Cristão.

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CAPÍTULO 1

QUAL É O CONJUNTO DOS LIVROS CANÔNICOS?

Algumas pessoas acreditam que é possível saber o conjunto dos livros canônicos, simplesmente porque a sua inspiração divina é evidente. Este conceito além de ser bastante subjetivo, depende também de conceitos e critérios de verificação ainda mais subjetivos. Por exemplo: quais atributos definem se um livro é inspirado ou não? Quais são os critérios de avaliação e verificação destes mesmos atributos? As opiniões seria tão múltiplas quanto são as estrelas de céu.

De fato, nenhum autor dos livros do NT diz ter escrito sob o impulso do Espírito Santo, exceto São João, ao escrever o Apocalipse. Ademais, ainda que cada livros da Bíblia começasse com frase: “Este livro é inspirado por Deus”, semelhante frase não provaria nada. Ora, o Alcorão diz ser inspirado, assim como o Livro do Mórmon e vários livros de religiões orientais. Ainda, os livros de Mary Baker Eddy (a fundadora da Ciência Cristã) e de Ellen G. White ( Fundadora do Adventismo do Sétimo Dia) se proclamam inspirados e muitos cristãos os rejeitam como tal. Pode-se concluir então, que o fato de um escrito atribuir a si qualidades de inspiração divina não quer dizer que assim o seja na realidade. Diante destes argumentos, alguns recuam e afirmam que “o Espírito Santo nos diz claramente que a Bíblia é inspirada”, uma noção bastante subjetiva, que também pode ser usada por hindu, mulçumano ou espírita, para afirmar que os Deuses, Alah ou os Espíritos, respectivamente lhes convencem que sua escritura é divina. Este mesmo exemplo se aplica ainda àqueles que afirmam que a inspiração divina de um livro pode ser verificada pela inspiração que causa no crente. Argumento conhecido como “È inspirado porque inspira”, Ora, note que há muitos escritos religiosos antigos que certamente são muito mais “inspirados” ou “emotivos” do que muitos testos e até livros inteiros do AT. Veja, por exemplo, o livro de Números no AT. Será que com este critério é possível afirmar que o livro de Números é inspirados? No entanto, ele está presente em todas as Bíblias Cristãs. Portanto, a fixação de um cânon bíblico, não está sujeita às opiniões alheias, fundamentadas em conceitos e métodos de verificação totalmente subjetivos e duvidosos. Alguns ainda acreditam que através dos livros consensualmente considerados canônicos (protocanônicos) é possível identificar dos

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demais. Esta proposta pode nos fornecer pistas importantes, mas infelizmente não é suficiente. Por exemplo, em Lucas 24,27.47 e João 10,34, aparecem as expressões “Moisés e os Profetas”, “Lei e os Profetas”, “Lei e os Profetas”, Lei Profetas e Salmos”, todas elas relacionadas ao conceito de Escritura Sagrada. A expressão “Profetas” abrangeria quais livros? Datados da mesma época dos profetas existe uma infinidade de outros livros cuja autoria é atribuída aos antigos profetas do AT, no entanto, hoje não são considerados canônicos. Assim como existem outros cuja autoria profética ainda é duvidosa e são considerados canônicos por todos os cristãos. O mesmo se aplica aos Salmos. Existe um escrito chamado Salmo 151, considerado canônico apenas pela Igreja Ortodoxa. O que dizer de livros como Provérbios, Eclesiastes, Ester, Rute, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis e Josué? Fariam parte de qual grupo? Lei, Profetas ou Salmos? Ou estariam em um outro grupo cuja menção não se encontra em qualquer um dos livros protocanônicos? Ainda, o AT faz referência a pelo menos 21 livros que hoje são considerados apócrifos (HAMMER, 2006). O mesmo acontece com o NT que menciona a “Ascensão de Moisés” (cf. Jd 1,9) e “O Livro de Henoc” (cf. Jd. Jd 1,14) Pelas questões já aqui apresentadas e pelo fato da Bíblia não definir o seu conjunto de livros sagrados, o discernimento do Cânon Bíblico depende de algo que é exterior aos livros sagrados. Isto significa que a Bíblia não se forma por si mesma a nem se autoriza por própria. A sua legitimidade depende de algo que lhe é exterior. Por exemplo, o Pentateuco sempre foi considerado canônico pelos judeus, não por si mesmos, mas porque tinham origem na Tradição judaica e em Moisés que tinha autoridade de seu legítimo Magistério (cf. Ex 18,13-14; Mt 19,-8). Um outro exemplo são os escritos dos profetas. A autoridade destes livros não tinha origem em si mesmos, mas no anúncio dos profetas (Tradição), ou porque sua autoria é atribuída a homens que eram legitimamente autorizados por Deus (Magistério).

Desta forma, atribuição de autoridade divina a um livro, isto é, a definição de usa canonicidade sempre dependeu da autoridade de algo que é exterior ao livro? a Tradição que lhe deu origem (e que por tanto lhe é anterior) e o Magistério legitimamente estabelecido por Deus, reconhecido como seu legítimo guardião e difusor. Esta antiga e divina relação não se aplica somente ao Cânon Bíblico. Alguns dos livros bíblicos não trazem o nome do autor (por exemplo, o Pentateuco e os 4

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Evangelhos). A atribuição da autoria de muitos livros canônicos também dependeu da Tradição e do Magistério divinos. Vejamos como o Senhor se utilizou destes dois instrumentos para nos comunicar o que hoje conhecemos como a Bíblia.

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CAPÍTULO 2

A Septuaginta ou Versão dos Setenta (LXX)

Durante o reinado de Nabucodonosor (Foi Rei da Babilônia no Séc. VI AC.), as Escrituras Sagradas hebraicas foram perdidas, por ocasião do cativeiro imposto ao povo Judeu, que em aproximadamente 587 a.C. foi deportado de Jerusalém para a Babilônia. As Escrituras foram novamente constituídas no tempo do Profeta Esdras, durante o reinado de Artaxerxes (cf. Esd 9,38-41). O conjunto de manuscritos hebraicos mais antigos que chegaram até nosso tempo, é conhecido como Texto Massorético. Nesta compilação das Escrituras, o texto foi transcrito com a omissão das vogais. Com origem no séc VI, o Texto Massorético possui este nome por ter sido desenvolvido por um grupo de judeus conhecidos como Massoretas; que deste então se tornaram os responsáveis em conservar e transmitir o texto bíblico hebraico. Bem anterior ao Texto Massorético, se conservou até nosso tempo, a versão Grega das Escrituras Hebraicas conhecida como Septuaginta ou Versão dos Setenta (LXX). Vertida, aproximadamente no séc. III a.C. para grego a partir dos mais antigos manuscritos hebraicos (hoje não mais disponíveis), o valor histórico da Septuaginta é inestimável e de profunda importância para a identificação do Cânon Bíblico Cristão.

Origem da Septuaginta

Ptolomeu II Filadelfo (287-247 a.C), rei do Egito, encomendou especialmente para sua Biblioteca em Alexandria (Fundada por Alexandre, o Grande tornou-se o grande centro cultural e comercial do império helênico.), uma tradução grega das escrituras sagradas dos judeus. Esta foi a primeira tradução feita dos livros hebraicos para uma outra língua. A tradução do hebraico para o grego, segundo a tradição, foi feita por 72 escribas durante 72 dias, por isso possui o nome Septuaginta que significa “Tradução dos Setenta”. A primeira menção à versa da Septuaginta encontra-se em um escrito chamado “Carta de Aristéias”, Segundo esta carta, Ptolomeu II Filadelfo tinha estabelecido recentemente uma valiosa biblioteca em Alexandria. Ele foi persuadido por Demétrio de Fálaro (responsável pela biblioteca) a enriquecê-la com uma cópia dos livros sagrados dos judeus. Para conquistar as boas graças deste povo, Ptolomeu, por conselho de Aristéias (oficial da guarda real, egípcio de nascimento e pagão por religião) emancipou 100 mil escravos, de diversas regiões de seu reino. Então,

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enviaram representantes (entre os quais Aristéias) a Jerusalém e pediu a Eliazar ( o Sumo Sacerdote dos Judeus) para que fornecesse uma cópia da Lei e judeus capazes de traduzi-la para o grego. A embaixada obteve sucesso: uma cópia da Lei ricamente ornamentada foi enviada para o Egito, acompanhada por 72 peritos no hebraico e no grego (seis de cada Tribo) (Por ordem divina o povo de Israel foi classificado em 12 Tribos, cada uma tendo origem em dos filhos do Patriarca Jacó (cf. Gn 49) para atender o desejo do rei. Estes foram recebidos com grande honra e durante sete dias surpreenderam a todos pela sabedoria que possuíam, demonstrada em respostas que deram a 72 questões; então, eles foram levados para a isolada ilha de Faros e ali iniciaram os seus trabalhos, traduzindo a Lei, ajudando uns aos outros e comparando as traduções conforme iam terminando.Ao final de 72 dias, a tarefa estava concluída. A tradução foi lida na presença de sacerdotes judeus, príncipes e povo, reunidos em Alexandria; a tradução foi reconhecida por todos e declarada em perfeita conformidade com o original hebraico. O rei ficou profundamente satisfeito com a obra e a depositou na sua biblioteca. Comumente se acredita, que a Carta de Aristéias foi escrita por volta de 200 a.C., 50 anos após a morte do Rei Filadelfo. Não há ainda entre os estudiosos um consenso sobre a origem e autenticidade desta carta. Embora a grande maioria considere seu conteúdo fantasioso e lendário, questiona-se se não há algum fundamento histórico disfarçado sob os detalhes lendários. Por exemplo, hoje se sabe com certeza que o Pentateuco foi mesmo traduzido em Alexandria.

Difusão e revisões

 

Pelo fato de serem pouquíssimos os Judeus que ainda possuíam conhecimento da língua hebraica, principalmente após o domínio helenista (entre os séculos IV e I a.C.) onde o koiné (grego popular) era o idioma falado, a Septuaginta foi bem acolhida, principalmente pelos judeus alexandrinos que foram os seus principais difusores, pelas nações onde o grego era falado. A Septuaginta foi usada por diferentes escritores e suplantou os manuscritos hebraicos na vida religiosa (JAEGER, 1991).

Em razão de sua grande difusão no mundo helênico (tanto entre judeus, filósofos gregos e cristãos), as cópias da Septuaginta passaram a se multiplicar, dando origem a variações contextuais. 

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Orígenes (4), motivado pela necessidade de restaurar o texto à sua condição original, dá origem à sua revisão que ficou registrada em sua famosa obra, conhecida como Hexápla. Luciano, sacerdote de Antioquia e mártir, no início de séc. IV publicou uma edição corrigida de acordo com o hebraico; tal edição reteve o nome de koiné, edição vulgar, e , às vezes, é chamada de Loukianos, após o nome de seu autor. Finalmente, Hesíqui, um bispo egípcio, publicou, quase que ao mesmo tempo, uma nova revisão, difundida principalmente no Egito.

Os Manuscritos Os três manuscritos mais conhecidos da Septuaginta são: o Vaticano (codex Vaticanus), do séc. IV; o Alexandrino (Codex Alexandrinus), do séc. V, atualmente no Museu Britânico de Londres; e do Monte Sinai (Codex Sinalticus), do séc. IV, descoberto por Tischendorf no convento de Santa Catarina, no Monte Sinai, em 1844 e 1849, sendo que parte se encontra em Leipzig e parte em São Petersburgo. Todos foram escritos em unciais (letras Maiúsculas), O Codex Vaticanus é considerado o mais fiel dos três; é geralmente tido como o texto mais antigo, embora o Codex Alexandrinus carregue consigo o texto da Hexapla e tenha sido alterado segundo o Texto Massorético. O Codex Vaticanus é referido pela letra B; o Codex Alexandrinus, pela letra A; e o Codex Sinaiticus, pela primeira letra do alfabeto hebraico (Aleph) ou S.

Os livros que estão presentes na Septuaginta

Os livros que estão presentes na Septuaginta, conforme a ordem original: Gênesis, Êxodo, Levitico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, 1 Samuel (1Reis), 2 Samuel (2 Reis), 1 Reis (3 Reis), 2 Reis (4 Reis), 1 Crônicas (1 Paralipômenos), 2 Crônicas (2 Paralipômenos), 1 Esdras, 2 Esdras (Esdras e Neemias), Ester, Judite, Tobias, 1 Macabeus, 2 Macabeus, 3 Macabeus, 4 Macabeus, Salmos, Odes, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Job, Sabedoria, Eclesiático (Sirac), Salmos de Salomão, Oséias, Amós, Miquéias, Joel, Obadias, Jonas, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias, Isaías, Jeremias, Lamentações, Baruque, Epistola de Jeremias, Ezequiel, Suzana, (“Historia de Suzane” que consta como apêndice no livro de Daniel nas Bíblias Católicas e Ortodoxas), Daniel, Bel e o Dragão (SOCIEDADE BIBLICA DO BRASIL, 2003, Xii-Xiii).

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É importante notar que o conjunto de livros da Septuaginta é bem maior do que qualquer versão do AT disponível nas Bíblias Católicas, Ortodoxa e Protestante. O que isto necessariamente significa? Será que o catálogo da LXX corresponderia a um cânon bíblico conhecido e utilizado pelos antigos Judeus? Jesus e os Apóstolos utilizaram este catálogo mais amplo de Escrituras Sagradas?

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CAPÍTULO 3

As Escrituras SagradasUtilizadas no tempo de Jesus

Comumente é veiculada a informação (principalmente em sítio na Internet e livros, ambos de origem protestantes) de que Jesus e os Apóstolos não utilizaram a versão grega da Septuaginta, mas que manusearam as Escrituras do AT em manuscritos disponíveis em hebraico (O Protestantismo de forma geral crê que o cânon hebreu já estava definido antes de Cristo e que corresponde à atual Bíblia Hebraica. Esse assunto será abordado no Cap 4). Isto se deve basicamente, ao fato Septuaginta possuir livros que são considerados apócrifos pelas confissões protestantes. Desta forma, a tese propõe que Jesus e os Apóstolos não manusearam essa versão grega das Escrituras. Os cristãos crêem que Jesus foi concebido pelo Espírito Santo no ventre da Virgem Maria. A referência mais conhecida à doutrina da concepção virginal de Maria está em Mateus 1,18-23. Mateus, após relatar que a Mãe do Senhor concebeu por obra do Espírito Santo, antes de coabitar com José, e que então, um anjo do Senhor apareceu a José em sonhos para informar que este não deveria recusá-la como sua esposa, pois o filho que ele concebeu era obra do Espírito Santo (cf. versículos 18 a 21), nos versículo 22 e 23, escreve: “Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor falou pelo profeta. Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho, que chamará Emanuel, que significa: Deus conosco”. Mateus transcreve aqui Isaías 7,14. Conforme podemos observar, a tradução em língua portuguesa apresenta a expressão “eis que uma virgem conceberá”. Alguns cristãos defendem a tese de que Mateus citava Isaías 7,14 conforme a versão da Septuaginta. Como defesa, afirmam que na versão em hebraico, o adjetivo aplicado àquela que conceberá é almah, que significa jovem, pois o adjetivo mais apropriado para virgem seria b´tulah; enquanto que na Septuaginta, o versículo apresenta o adjetivo grego parthenos, que significa virgem. Embora seja possível, o adjetivo almah significar “virgem”, enquanto que b´tulah também pode significar “mulher casada” (cf Joel 1:8). Por exemplo, “ almah” aparece pelo menos sete vezes no AT: Gn 24,43; Ex 2,8; Sl 68,25; Pr 30,19; Ct 1,3; 6,8 e Is 7:14. Em todas as primeiras seis referências tem o sentido de virgem ou mulher solteira (que era virgem). Aliás, em Ct 6,8, o sentido de virgem é bastante claro: fala sobre 3

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classes de mulheres: as rainhas, as concubinas e as chamada “b´tulah [virgem em hebraico] a quem varão não havia conhecido” em Gênesis 24,16, é chamada no mesmo capítulo de almah.

Há citações da Septuaginta no NT?

Vários estudos atestam que os Apóstolos e Evangelistas usaram a Septuaginta, “pois, como se sabe, muitas citações (e alusões) do Antigo Testamento no Novo Testamento procedem diretamente da clássica versão grega” (SOCIDADE BÍBLICA DO BRASIL, 2003 i). Das 350 citações que o NT faz do AT, pelo menos 300 provêm da versão grega (BIBLIA, 1974, iii; BIBLEREARCH, 2006). Temos provas de que o Senhor Jesus usou a Septuaginta.Em Sua resposta ao diabo em Mt 4,4 Ele disse: “Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que precede da boca de Deus”. O Senhor referiu-se a Deuteronômio 8,3, onde não versão hebraica a expressão usada é “da boca do Senhor” enquanto a Septuaginta traz “da boca de Deus”. Nos capítulos 6 e 7 do Livro dos Atos dos Apóstolos, lemos que Estevão foi levado ao Sinédrio (Conselho nacional que no tempo de Jesus tinha autoridade entre os judeus para julgar casos religiosos ou civis. Jesus condenado primeiramente pelo Sinédrio e depois levado a Pôncio Pilatos.) pela multidão (cf At 6,12). Dirigindo-se a seus acusadores, conta-lhes como Jacó trouxe seu 75 descendentes para o Egito (cf At 7,14-15).

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Porém os textos hebraicos dizem que Jacó trouxe 70 descendentes para o Egito (cf Gn 46,26-27; Dt 10,22 e Ex 1,5). O Sinédrio conhecia bem a proibição divina de acrescentar ou retirar algo dos livros sagrados (cf Dt4,2; 12,32; SI 12,6-7 e Prov. 30,6), mas não ousou acusar Estevão de estar pervertendo as Escrituras, ordenando matá-lo porque foi contraditado na defesa de Cristo. A solução deste caso é muito simples. Estevão citava Gn 46,26-27 a partir da Septuaginta, que possui cinco nomes a mais que o Texto Massorético hebraico. Os cinco nomes que faltam na versão hebraica foram preservados na Septuaginta em Gn 46,20, onde Makir, filho de Manassés, e Makir, filho de Galaad (=Gilead, no hebraico), são apontados, posteriormente, como os dois filhos de Efraim, Taam (=Tahan, no hebraico) e Sutalaam (= Shuthelah, no hebraico) e seu filho Edon (=Eran, no hebraico). Outro exemplo é nome de um deus pagão citado por Estevão em At 7,43. Estevão citou-o como Renfã. Esta citação é de Amós 5,26. No texto hebraico o nome de deus é Quijum. Estevão citou a versão da Septuaginta que traz Renfã e não Quijum do texto hebraico. Isto significa que o uso da versão da Septuaginta era também comum entre os judeus de Alexandria aceitavam esta versão. Pelo fato da Septuaginta ter sido amplamente usada pelos apóstolos e presbíteros da primitiva Igreja, a Tradição Cristã conferiu-lhe lugar especial (SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL, 2003, v)

As descobertas do Mar Morto

Partes da Septuaginta foram encontradas na Judéia, entre os manuscritos do Mar Morto, descobertos em Qmran, sendo anteriores ao ano 70 d.C. alguns exemplares foram encontrados na caverna 4 (119LXXLev.; 120papLXXLev,; 121 LXXNum.; 122LXXDeut.) um texto não identificado da Septuaginta grega encontrado na caverna 9 (Q9), e existe um fragmento de papiro, escrito em grego, encontrado na caverna 7 (LXXExod.) A caverna 7 produziu ainda muitos pequeno fragmentos em grego (da Septuaginta), cujas identificações permanecem em discussão ou sem classificação. O Dr. Emanuel Tov sugere as seguintes identificações para alguns destes fragmentos gregos do primeiro século antes de Cristo: 7Q4. Números 14,23-24 7Q5. Êxodo 36,10-11; Números 22,38; 7Q6. 1 Salmo 34,28; Provérbios 7,12-13 7Q6. 2 Isaías 18,2

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7Q. Zacarias 8,8; Isaías 1,29-30; Salmo 18,14-15; Daniel 2,43; Eclesiastes 6,3. Entre estes fragmentos constam ainda trechos dos livros deuterocanônicos do AT:

Em grego foram encontrados fragmentos de: 4Q478 [Tobias], 4Q383, 7QLXXEpJer. [Epístola de Jeremias];

Em hebraico foram encontrados: uma cópia do livro de Eclesiástico [manuscrito 2QSir.], “A Historia de Suzana” (correspondente ao capítulo 13 do livro de Daniel [manuscrito 4Q551] e fragmentos do livro de Tobias [manuscrito 4Q200].

Em aramaico foi encontrado um fragmento do livro de Tobias [manuscrito 4Q196-9]

Uma cópia do livro do Eclesiástico, em hebraico, foi encontrada nas ruínas de Masada e é datada como do início do século I a.C.

Estas evidências mostram que os livros deuterocanônicos eram conhecidos e manuseados pelos Judeus da Palestina. Alguém poderia objetar afirmando que tais descobertas correspondem à literatura usada Ebionitas (seita de Qumran), um grupo estranho ao ramo principal do Judaísmo. Não é desta forma que pensam os especialistas: “Tanto no judaísmo moderno quanto no cristianismo, uma ‘seita’ é, geralmente, um ramo de um tronco religioso maior e é freqüentemente vista como excêntrica ou desviada nas suas crenças.Mas os pesquisadores e leigos deveriam recordar que durante todo o período de existência de Qumran, os fariseus e os saduceus eram ‘seitas’, assim como eram os essênios! Foi apenas a partir do século II d.C. que passou a se formar um tipo de judaísmo ‘ aquele dos fariseus, dos rabis ‘ que veio a se tornar padrão para o povo judeu como um todo. Tais matérias são de menor importância se comparadas com os manuscritos bíblicos. Primeiro, porque todos os pesquisadores concordam que nenhum dos textos bíblicos (tais como Gênese ou Isaías) foi composto em Qumran; ao contrário, todos eles se originaram antes do período de Qumran. Também é aceito que muitos ou a maioria desses manuscritos foram trazidos de fora para Qumran e, depois, aí reproduzidos. Isto significa que os valores da maioria dos manuscritos bíblicos enganam, não em estabelecer precisamente onde foram escritos ou copiados, mas especificamente quando ao estudo das formas textuais que encerram (ABEGG,1999).(fragmento traduzido por Carlos Martins Nabeto.)

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Não é possível afirmar que todo conjunto de livros da Septuaginta foi considerado sagrado pelos judeus alexandrinos, judeus palestinenses ou por Jesus e seus Apóstolos. Só podemos afirmar que era conhecido por todos eles por constar na versão bíblica por eles usada. O tempo levará a sinagoga e a Igreja a escolherem alguns livros da Septuaginta como canônicos e a rejeitarem outros. Nesta decisão a sinagoga saiu na frente. Vejamos no próximo capítulo como isto aconteceu.

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CAPÍTULO 4

O Cânon de Jâmnia

No tempo do Imperador Romano Nero, desencadeou-se a primeira revolta aberta dos judeus da Palestina contra Roma (66-70). Tito, na primavera de 70, sitiou Jerusalém, a cidade inteira foi saqueada, arrasada e o Templo foi destruído no dia 10 do mês de agosto do mesmo ano. Os fariseus de Jerusalém (16) se transferiram para a cidade de Jâmnia, onde formaram próspera escola rabínica. Aproximadamente no ano 90, este grupo de rabinos define uma lista dos livros que deveriam ser considerados sagrados pelos Judeus. O Cânon de Jâmnia (como ficou conhecida esta lista) deu origem à atual Bíblia Hebraica. O Cânon de Jâmnia excluiu os sete livros deuterocanônicos [do AT] e os acréscimos de Daniel e Ester.

Um cânon sagrado pré-existente?

Alguns afirmam que o Cânon de Jâmnia foi a confirmação de um Cânon Sagrado anterior e definido pela autêntica Tradição judaica.

Segundo esta tese, o fato de Jesus e os Apóstolos se referirem às Escrituras Sagradas disponíveis em seu tempo de forma geral (“Escrituras”), mostra que eles tinham em mente uma quantidade precisa de livros que estavam incluídos sob aqueles títulos gerais.

Apresenta-se como prova o registro do Evangelista Lucas ao diálogo entre Jesus e os discípulos na estrada de Emaús: ‘E começando por Moisés e por todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava em todas as Escrituras.”(Lc 24,27). A expressão “todas as Escrituras” demonstraria que já no tempo de Cristo, uma lista de livros canônicos já estava fixada.

Cita-se ainda João 5,39, quando Jesus manda os Fariseus, que eram os legítimos intérpretes da Lei (cf. Mt 23,1), verificarem que Nele se cumpriram todas as profecias messiânicas. Jesus ao utilizar a expressão “Escrituras” estaria se referindo a um conjunto de livros bem conhecido, tanto por Ele quanto pelos Fariseus.

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Chama-se ainda a atenção à expressão “Moisés e os Profetas” (cf. Lc 24,27). “Moisés e os Profetas” ou “A Lei e os Profetas” seria a estrutura de como este cânon judeu estaria organizado, sendo que na seção “Lei”, estariam contidos também os Salmos (cf. João 10,34). Assim, se quer defender a existência de um cânon bíblico, organizado em uma tríplice estrutura: a Lei, os Profetas e os Salmos. Também se costuma fazer referência a Lc 24,44, onde Jesus ao aparecer aos apóstolos e discípulos lhes disse: “(...) era necessário que se cumprisse tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés, nos profetas e nos Salmos”.

Estes argumentos são bastante frágeis, pois em todas as referências apresentadas, Jesus está tentando demonstrar que Nele se cumprem todas as profecias messiânicas. E onde estão estas profecias? Estão justamente nos livros de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Desta forma, dentro do contexto em questão, é bem mais certo que Jesus esteja referenciando esta triplica estrutura, porque nela se encontram as profecias messiânicas, do que Ele esteja fazendo referência a um cânon sagrado existente em seu tempo.

Há também quem apresente como prova do suposto cânon, então confirmado pelo Cânon de Jâmnia, os testemunhos históricos de Flávio Josefo e Áquila (o qual criou uma nova versão grega das Escrituras hebraicas, que leva o seu nome).

O testemunho de Áquila é reconhecidamente posterior ao Cânon de Jâmnia, e por isso, também não pode ser aceito como prova; muito pelo contrário...

Por outro lado, reproduziremos abaixo o texto de Josefo, conforme consta em sua obra “Contra Apion”:

“38. É, pois natural, ou melhor dizendo, necessário, que não exista entre nós uma multiplicidade de livros em contradição entre si, senão somente vinte e dois (17) que contém os registros de toda história e que com toda justiça são dignos de confiança. 39. Deles, existem cinco de Moisés, os quais contêm as leis e a tradição desde a criação do homem até a morte de Moisés. Compreende, mais ou menos, um período de três mil anos. 40. Desde a morte de Moisés até Artaxerxes (18), sucessor de Xerxes (19) como rei dos persas, aos profetas posteriores a Moisés foram deixados os feitos do seu tempo em treze livros, os quatro restantes contém hinos a

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Deus e conselhos morais aos homens. 41. Também desde Artaxerxes [tempo do Profeta Esdras] até nossos dias cada acontecimento tem sido registrado; embora estes não sejam dignos da mesma confiança dos anteriores, porque não havia uma sucessão rigorosa de profetas. 42. Os feitos provam com claridade como nós nos acercamos das nossas próprias escrituras: havendo já transcorrido tanto tempo, ninguém se atreveu a adicionar, tirar ou trocar nada nelas “ (JOSEFO, 2006, p. 21-22).

Não é possível precisar se o testemunho de Josefo é anterior ou posterior ao Cânon de Jâmnia, devido à incerteza entre as datas do Cânon e seu testemunho.

Costuma-se dizer que “Contra Apion” foi terminada pelo ano 94; e o Cânon de Jâmnia, normalmente é referido pelos especialistas como sendo do ano 90. Entretanto, nenhuma destas datas é conclusiva; sabemos apenas que ambos são os últimos anos do séc I d.C.

Com efeito, não é possível precisar se o testemunho de Josefo é anterior ou não ao Cânon de Jâmnia, devido à incerteza entre as datas do Cânon e seu testemunho. Esta incerteza compromete por completo o testemunho de Josefo, pois não se sabe com certeza se o mesmo foi influenciado ou não pelo Cânon de Jâmnia. Porém, há indícios que sim.

Josefo era fariseu e os rabinos de Jâmnia também, assim possivelmente ele esteja simplesmente defendendo a posição de sua facção religiosa.

O prólogo da tradução Grega do Eclesiástico (ou Sabedoria de Sirac), livro escrito por volta de 130 a.C., portanto anterior ao testemunho de Josefo, parece contradizê-lo. Nele lemos:

“Pela Lei, pelos Profetas e por outros escritores que os sucederam, recebemos inúmeros ensinamentos importantes (...) Foi assim que após entregar-se particularmente ao estudo atento da Lei, dos Profetas e dos outros Escritos, transmitidos por nossos antepassados [...]”.

Enquanto o testemunho de Josefo procura restringir o Cânon Sagrado ao tempo de Esdras, “porque [depois de Esdras] não houve uma sucessão precisa de profetas”, o Eclesiástico parece ser mais amplo e fiel à História ao afirmar que “por outros escritores que os sucederam [os profetas], recebemos inúmeros ensinamentos importantes”.

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O testemunho do Eclesiástico refere-se a livros posteriores ao tempo dos Profetas.

Veja o que estudioso protestante Leonard Rost tem a dizer sobre isso:

“Vê-se, pelo prólogo de Sirac [Eclesiástico ou Sabedoria de Sirac], que, além dos escritos assumidos no Cânon hebraico, traduziram-se também outros que parecem ter gozado de bastente estima como obras religiosas de edificação, em círculos mais ou menos amplos, até o final do século I d.C” (ROST, 1980, p.19).

Há ainda em Josefo um trecho bem polêmico, vejamos:

“havendo já transcorrido tanto tempo, ninguém se atreveu a adicionar, tirar ou trocar nada nelas [nas Escrituras]”.

Alguns entendem que neste trecho Josefo confirma que os livros escritos depois do tempo de Esdras não estavam dispostos num mesmo volume com os livros que foram escritos antes deste mesmo período (protocanônicos), pois isto configuraria um acréscimo nos primeiros.

Ora, ele está dizendo que nada foi alterado nos textos presentes nestes livros, nenhuma sílaba a mais, nenhuma a menos. Josefo não está se referindo à adição ou retirada de livros a um conjunto pré-estabelecido de outros livros.

A tese do Cânon pré-existente apresenta sérios problemas. Primeiro, se este suposto cânon correspondia ao Cânon de Jâmnia, por que era comumente usada a Septuaginta com um catálogo bem maior, conforme é comprovado pelo testemunho do NT e as descobertas do Mar Morto e Massada?

Segundo, se este suposto cânon correspondesse aos livros da Septuaginta, logo não seria permitida a definição de qualquer outro cânon bíblico; então por que foi estabelecido o Cânon de Jâmnia?

Terceiro, os judeus alexandrinos e etíopes recusaram o Cânon de Jâmnia e até hoje guardam como sagrados os livros da Septuaginta. Se realmente este suposto cânon bíblico existisse, não haveria disputas entre os judeus

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sobre este tema; todos adotariam o mesmo conjunto de livros sagrados definidos pela Tradição Judaica.

Fílon de Alexandria, historiador e filósofo judeu, viveu entre os anos de 20 a 50 d.C. Em sua obra “Exposições sobre a Lei”, onde faz comentários sobre a doutrina da Torah (20), as referências ao Pentateuco são todas da Septuaginta, que possuía os livros deuterocanônicos e as partes deuterocanônicas de Daniel e Ester, não aceitas posteriormente pelos Judeus de Jâmnia.

Um dos especialistas sobre a vida de Fílon de Alexandria, o Prof. Ritter, quanto ao uso da Septuaginta pelo filósofo escreve:

“A princípio o texto que ele [Fílon] comenta é o da tradução grega dos Setenta; algumas diferenças que se assinalou com razão entre seu texto e aquele que possuímos atualmente dos Setenta se explicam de uma maneira satisfatória não pela leitura do texto hebraico, mas pelo fato de que nossa recensão é de origem posterior à da que ele usava” (RITTER, 1979).

Antes que alguém objete afirmando que a Tradição dos judeus palestinenses era diferente da Tradição dos judeus alexandrinos, devo lembrá-los que ambos os grupos manuseavam a versão grega da Septuaginta, portanto, possuíam a mesma Tradição Judaica.

A correspondência entre a Tradição Judaica Alexandrina e a Palestina é atestada pelo estudioso Wolfson:

“O judaísmo alexandrino, no tempo de Fílon, era do mesmo tronco do judaísmo farisaico, que então prosperava na Palestina, ambos tendo brotado daquele judaísmo macabeu [c. 165 a.C.] que fora moldado pelas atividades dos escribas” (WOLFSON, 1982).

Ainda segundo o estudioso Werner Jaeger:

“O grego era falado nas synagogai (21) por todo o Mediterrâneo, como se torna evidente pelo exemplo de Fílon de Alexandria, que não escreveu o seu grego literário para um público de gentios, mas para os seus compatriotas judeus altamente educados” (JAEGER, 1991).

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Fílon de Alexandria, falava grego como era costume em seu tempo e utilizava as escrituras hebraicas através da Septuaginta. Isto era muito comum até entre os judeus da Palestina. Josefo defende os judeus de Alexandria de diversas calúnias, mostrando haver identidade entre eles e os judeus da palestina (JOSEFO, 2006, p. 96-102).

Se o cânon das Escrituras Hebraicas já estivesse fechado no tempo de Jesus, todos os judeus hoje (palestinos ou alexandrinos) observariam o mesmo conjunto de livros sagrados, e os fariseus de Jâmnia não precisariam se preocupar com isto no final do séc. I d.C.

Interessante é a constatação do estudioso Fedeli Pasquero:

“Na realidade, seguramente os judeus alexandrino no séc. I d.C. reconheciam como sagrados os livros deuterocanônicos [do AT]; não obstante a isso, eles estavam em plena comunhão de fé com os judeus da Palestina, coisa que não teria sido possível se houvesse divergências em relação aos livros sagrados. Com efeito, os doutores hebreus faziam uso de pelo menos alguns dos livros deuterocanônicos [do AT]; de modo especial, encontramos frequentemente citados Baruc, o Sirácida [Sabedoria de Siarc ou Eclesiástico], Tobias” (PASQUERO, 1986).

Sobre a possibilidade de um cânon de Escrituras hebraicas pré-definido, assim se manifesta Rost:

“[...] não havia um cânon oficial, ou, como diz a Mixná Yaddyim IV 6, não havia Ktby qds’, Escrituras sagradas, como grupo fechado. Mesmo na época em que se fixou a Mixná, por volta de 100 d.C., reinava ampla discussão entre os eruditos a respeito de saber se o Cântico dos Cântico ou o Eclesiastes de Salomão (Qohelet) faziam ou não parte do grupo, discussão esta que foi aplainada por uma sentença arbitral em favor da inclusão destes livros entre os escritos sagrados (Mixná Yadvim III 5 cd). As descobertas dos manuscritos do Mar Morto, provenientes do período que vai de 150 antes de Cristo até 70 da era cristã, em particular os que foram encontrados nas cavernas de Qumran, mostram-nos claramente que naquela época ainda não havia uma distinção rigorosa entre Escritura sagrada e menos sagrada [...] Mas o fato de um fragmento bastante extenso do Sirac hebraico, copiado em escrita esticométrica, vale dizer, executado com capricho e dispêndio de tempo, constituir um dos poucos restos de manuscritos descobertos em Masada, é prova da estiva que este

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escrito desfrutava no círculo dos zelotes, no correr do século I d.C” (ROST, 1980, p.13-14).

Durante a formação do Cânon Hebreu, alguns rabinos se opuseram também à inclusão do livro de Ester, conforme atesta o Prof. Samuel Sandmel (22):

“O livro de Ester, segundo os antigos rabinos, é o livro mais novo da Escritura. Houve, entre estes rabinos, quem não quisesse que ele fosse incluído na Escritura” (BIBLIA, 1974, Introduções Aos Livros Históricos, verb. Ester, xxiii).

Ainda conforme o Prof. Sandmel, a tradição rabínica quase excluiu do Cânon das Escritura Hebraicas, o livro do Profeta Ezequiel:

“O livro de Ezequiel foi julgado desapropriado para o cânon porque regulações dos capítulos 40 – 48 parecem contradizer regulações similares do Pentateuco. Como o sábio rabínico Hananias ben Ezequias foi capaz de resolver estas contradições com uma apurada interpretação, o livro salvou-se de ser abandonado juntamente com outros livros que não podiam circular publicamente” (Ibid.; Introduções Aos Livros Proféticos, xliii).

Além destes, também foram inicialmente contestados pelos rabinos, Jó (Ibid., xvii), Provérbios, Cântico dos Cânticos e Eclesiastes (Ibid., xxxi), concordando assim com o parecer de Rost.

Tudo isto mostra que realmente houve em Jâmnia um acordo entre os fariseus sobre os livros que deveriam ser considerados canônicos pelos judeus. Note o leitor que alguns livros do AT considerados canônicos por todos os cristãos, quase ficaram fora do Cânon Hebreu; livros estes que foram amplamente usados pelos antigos judeus. E se tivessem sido excluídos do Cânon Hebreu, isto significaria que jamais foram considerados canônicos antes? E os livros que os fariseus rejeitaram [os deuterocanônicos], será mesmo que não eram canônicos? Mas ainda resta a pergunta: por quê os rabinos da palestina adotaram um Cânon Bíblico mais restrito que o conjunto de livros da Septuaginta, se este era amplamente utilizado pelos judeus tanto alexandrinos quanto palestinenses?

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Notas

(16) Alguns autores identificam a Escola Rabínica em Jâmnia como o antigo Sinédrio (BERARDINO, 2002, verb. Jerusalém, p. 750). Entretanto há controvérsias entre os especialistas, já que o Sinédrio era predominantemente formado por Saduceus, que neste tempo foram desimados.

(17) Os judeus organizavam suas Escrituras conforme o número de letras de seu alfabeto.

(18) Na tradução original está Artajerjes (“j” no lugar do “x”), o que difere do uso comum em outras traduções. Por motivo de unidade textual mantive conforme o uso comum.

(19) Mesma razão da nota anterior.

(20) É como os Judeus chamam a Lei de Moisés.

(21) Sinagogas, onde os judeus se reuniam para o estudo das Sagradas Escrituras.

(22) Prof. De Bíblia e Literatura Helenística na Hebrew Union College, Cincinnati, Ohio – EUA.

Objetivos protecionistas

Tudo indica que a definição do Cânon de Jâmnia deveu-se a razões protecionistas. Goodnough afirma o seguinte: “Judeus que tinham sido mais helenizados tornaram-se cristãos, como dito, enquanto que o restante retornou ao judaísmo normativo do qual se separaram, quando muito, apenas superficialmente”(GOODENOUGH, 1988). Fatos como a destruição do Templo de Jerusalém em 70 d.C., a Septuaginta utilizada amplamente pelos Judeus (tanto na Palestina como em Alexandria), poucos judeus com conhecimento do hebraico, o grego comumente utilizado na vida religiosa dos judeus, o aparecimento das primeiras escrituras cristãs, as conversões de judeus ao Cristianismo e etc; todo este conjunto de eventos levou os judeus da Palestina a se protegerem da extinção total de sua cultura e religião. Como isso poderia ser feito, sem que fosse necessário restaurar o hebraico na vida comum e religiosa dos judeus, resgatar da identidade judaica e estabelecer políticas que impedissem o contato com as Escrituras cristãs? Não é no mínimo curioso que no final do primeiro século da Era cristã, os líderes judeus da Palestina, se reúnam para definir um conjunto de

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livros como sagrados, onde todos estes foram escritos em hebraico e no território de Israel? Não são estes critérios nacionalistas demais, já que o povo judeu viveu tanto tempo em terra estrangeira, produzindo lá tantos escritos, escritos estes que também constavam em uma versão bíblica comumente usada por todos os judeus, inclusive na Palestina? É claro que o restabelecimento do hebraico na vida religiosa dos judeus não poderia se dar de uma hora para outra, mas medidas de curto prazo foram tomadas para dificultar a pregação da mensagem cristã junto aos judeus. Novas versões gregas das sagradas escrituras judaicas foram produzidas, nas quais as mais conhecidas são as de Áquila, Símaco e Teodocião. O leitor lembra de Isaias 7,14, que comentamos no capítulo anterior? Em todas estas versões, no referido versículo, a palavra grega “parthenos” que significa “virgem” , foi trocada por “neanis”, que significa “jovem”. Por que esta alteração? Os cristãos usavam Is 7,14 para provar que o Messias viria ao mundo através de um nascimento virginal, o que atestaria sua origem divina; a alteração posterior feita pelos judeus propiciaria as pessoas a entenderem isto de forma totalmente diferente. Esta atitude dos judeus palestinenses por causa do Evangelho é confirmada pelo conceituado estudioso judeu, o Prof. Aage Bentzen:

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