O Cânon do Antigo Testamento

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O Cânon Bíblico O Cânon do Antigo Testamento por Fernando Saraví Frequentemente é-nos perguntado que diferença há entre a «Bíblia Católica» e a «Bíblia Evangélica». A resposta é que são idênticas no Novo Testamento, mas as Bíblias católicas incluem no Antigo Testamento alguns livros e porções de livros que não se encontram nas Bíblias evangélicas. Se a seguir nos perguntam a razão desta diferença, uma resposta breve é que nós (Cristãos Evangélicos) nos apegamos ao cânon hebreu (palestino), enquanto os Católicos definiram outro cânon mais longo no século XVI, no Concílio de Trento convocado pela Igreja Católica contra o movimento de Reforma Protestante. A seguinte é uma lista corrigida de mensagens que coloquei num fórum [de debate] católico como resposta a um escrito que apresentava os argumentos a favor do cânon "longo" definido em Trento, sob o provocativo título "A Bíblia Católica: Escritura Completa". Os parágrafos em negrito correspondem a tal documento [opiniões do forista católico], ao qual respondo de maneira detalhada. A Bíblia Católica: Escritura completa Por que as Bíblias católicas e protestantes têm mais ou menos livros? Qual é a autêntica? A Bíblia protestante é diferente da católica. Olhando o índice de livros que contém a Bíblia contamos 66 livros, enquanto a Bíblia católica e a Bíblia ortodoxa contêm sete livros mais. Em seu cânon do Antigo Testamento, tanto as Bíblias protestantes como as ortodoxas diferem das católicas. As protestantes têm menos livros, e as ortodoxas mais livros, que as católicas. Além dos livros do AT que se encontram nas nossas Bíblias, a Bíblia católica inclui: Adições a Daniel Adições a Ester Baruc Carta de Jeremias

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O Cânon do Antigo Testamento

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O Cânon Bíblico

O Cânon do Antigo Testamentopor Fernando Saraví

Frequentemente é-nos perguntado que diferença há entre a «Bíblia Católica» e a «Bíblia Evangélica». A resposta é que são idênticas no Novo Testamento, mas as Bíblias católicas incluem no Antigo Testamento alguns livros e porções de livros que não se encontram nas Bíblias evangélicas.

Se a seguir nos perguntam a razão desta diferença, uma resposta breve é que nós (Cristãos Evangélicos) nos apegamos ao cânon hebreu (palestino), enquanto os Católicos definiram outro cânon mais longo no século XVI, no Concílio de Trento convocado pela Igreja Católica contra o movimento de Reforma Protestante.

A seguinte é uma lista corrigida de mensagens que coloquei num fórum [de debate] católico como resposta a um escrito que apresentava os argumentos a favor do cânon "longo" definido em Trento, sob o provocativo título "A Bíblia Católica: Escritura Completa". Os parágrafos em negrito correspondem a tal documento [opiniões do forista católico], ao qual respondo de maneira detalhada.

A Bíblia Católica: Escritura completa

Por que as Bíblias católicas e protestantes têm mais ou menos livros? Qual é a autêntica? A Bíblia protestante é diferente da católica. Olhando o índice de livros que contém a Bíblia contamos 66 livros, enquanto a Bíblia católica e a Bíblia ortodoxa contêm sete livros mais.

Em seu cânon do Antigo Testamento, tanto as Bíblias protestantes como as ortodoxas diferem das católicas. As protestantes têm menos livros, e as ortodoxas mais livros, que as católicas.

Além dos livros do AT que se encontram nas nossas Bíblias, a Bíblia católica inclui:

Adições a Daniel

Adições a Ester

Baruc

Carta de Jeremias

Eclesiástico (Sabedoria de Jesus ben Sirá)

Sabedoria

Judite

Tobias

1 Macabeus

2 Macabeus

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As Bíblias ortodoxas grega e eslava incluem, além do cânon católico do AT, os seguintes livros:

1 Esdras (= 2 Esdras em eslavo = 3 Esdras no apêndice da Vulgata).

Oração de Manassés (no Apêndice da Vulgata)

O Salmo 151, que se segue ao 150 na Bíblia grega

3 Macabeus

Na Bíblia eslava (e no apêndice da Vulgata)

2 Esdras (= 3 Esdras na eslava = 4 Esdras no Apêndice da Vulgata)

(Nota: na Vulgata latina, Esdras e Neemias = 1 e 2 Esdras)

Num apêndice da Bíblia grega:4 Macabeus

De modo que é erróneo afirmar que as Bíblias ortodoxas reconheçam o mesmo cânon do AT que as católicas. E se o critério de ser "completa" fosse ter a maior quantidade de livros, então as Bíblias ortodoxas seriam mais completas do que a católica.

(Fonte: The Holy Bible with Apocrypha. New Revised Standard Version. New York: American Bible Society, 1989, p. vi).

Na Bíblia protestante faltam 1 e 2 Macabeus, Tobias (ou Tobite), Judite, Baruc, Sabedoria, e Eclesiástico (ou Sirácides) conhecidos como "deuterocanónicos".

A denominação de "deuterocanónicos" data do século XVI. Por sinal, segundo o autor do artigo "Cânon do Antigo Testamento" na Encyclopedia Catholica, "deuterocanónico" é um termo pouco feliz.

Os irmãos não católicos chamam aos sete livros deuterocanónicos "Apócrifos", embora não seja um termo muito exacto para o que se quer assinalar, já que "apócrifo" significa etimologicamente "escondido", fazendo alusão ao autor, que é "desconhecido" e costuma "esconder-se" atrás de um pseudónimo.

Se se esconde sob um pseudónimo deve falar-se propriamente de literatura pseudo-epigráfica.

Os evangélicos chamam-lhes apócrifos porque foi o qualificativo com o qual foram conhecidos durante muitos séculos antes que se delineasse o termo "deuterocanónico" depois do Concílio de Trento. Outra forma, talvez a mais correcta, é chamá-los "livros eclesiásticos".

Neste sentido há outros livros "apócrifos" que no entanto formam parte dos livros inspirados (como a carta aos Hebreus, que não foi escrita directamente por Paulo, mas que leva o seu nome).

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Errado. A carta aos Hebreus é anónima, como o são em sentido estrito, entre outros, os quatro Evangelhos canónicos e as cartas de João. Quem terá assessorado o autor deste artigo?

De qualquer forma, a realidade é que os protestantes não admitem estes livros como inspirados.

Bem diz, "de qualquer forma": esse é o ponto que deseja tratar. A precisão parece um assunto secundário.

Porquê a diferença?

Foi somente no ano 393 d.C. que os bispos se uniram com os sacerdotes e leigos para discernir quais livros são inspirados, ou também "canónicos".

A sério? A ninguém antes lhe tinha ocorrido considerar o assunto?

O autor faz aqui referência a um sínodo reunido em Hipona, cujas actas não se conservam. As suas decisões foram sustentadas, porém, em outros de Cartago de 397 e 419. Todos eles sob a influência de Santo Agostinho sobre cuja opinião podemos falar mais tarde. Estes três Concílios, no entanto, foram sínodos locais carentes de autoridade vinculante para a Igreja universal; e prova evidente disso é que muitos Padres ortodoxos e diversos escritores eclesiásticos posteriores mantiveram a distinção entre os livros do cânon hebreu e os chamados apócrifos ou eclesiásticos.

A Igreja tinha o poder de fazer isso porque Jesus lhe deu o poder de atar e desatar (Mt 18, 18) e prometeu enviar o Espírito Santo para a plenitude da verdade (Jo 14, 26).

De acordo, mas não é possível pôr "o carro à frente dos bois". Embora os protestantes discordem em outros ensinamentos católicos, estão de acordo com esta declaração acerca da natureza dos livros canónicos:

"Ora, a Igreja os tem por sagrados e canónicos, não porque compostos só pela indústria humana, tenham sido depois aprovados por ela; nem somente porque contenham a revelação sem erro; mas porque escritos por inspiração do Espírito Santo, têm Deus por autor, e como tais foram transmitidos à própria Igreja." (Concílio Vaticano I, Sessão III de 24 de abril de 1870; Constituição dogmática sobre a fé católica, Capítulo 2, Da revelação; Denzinger # 1787; negrito acrescentado).

Dado que os livros sagrados têm uma autoridade intrínseca que provém do seu Autor, o seu carácter canónico não depende da sanção humana em geral, nem eclesiástica em particular. A Igreja não decidiu nem decretou o cânon, mas o discerniu ou reconheceu, e a seguir o confessou e proclamou. Nisto cumpriu a sua vocação como coluna e baluarte da verdade.

No século XV Martinho Lutero pensou que os primeiros cristãos usavam o "cânon judeu da Palestina" (os livros escritos em hebreu), 39 livros.

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Martinho Lutero (1483-1546) não tinha entrado na Universidade e muito menos tinha sido ordenado ao terminar o século XV. É óbvio que o nosso autor não é muito cuidadoso nas suas afirmações.

Além disso, as opiniões do Dr. Lutero não diferem muito das sustentadas muito pouco antes dele por alguns ilustres e muito ortodoxos biblistas católicos (sem contar os Padres).

Mas na realidade os 46 livros do "cânon Alexandrino" ou "tradução dos Setenta" (a tradução para o grego dos livros hebraicos, pois o grego era o idioma internacional deste tempo) era aceite pela grande maioria dos judeus dispersos por todo o mundo (a "diáspora"). Alexandria era o maior e mais importante centro judeu no mundo de fala grega.

Quanto ao "cânon Alexandrino" é uma lenda que já não pode sustentar-se. Uma coisa é os judeus helenísticos terem usado a Septuaginta, e outra muito diferente é terem tido um cânon diferente do Hebreu. Durante muito tempo falou-se de um "cânon Alexandrino" mais amplo que o Hebreu. Contudo, não existe evidência de que tal cânon mais amplo tenha alguma vez existido. Copio a seguir duas citações representativas do estado actual da opinião:

O cânon Alexandrino

O Antigo Testamento, tal como chegou em tradução grega dos judeus de Alexandria por via da Igreja Cristã difere em muitos aspectos das Escrituras hebraicas. Os livros da segunda e terceira divisões [Trad., Profetas e Escritos] foram redistribuídos e dispostos segundo categorias de literatura – história, poesia, sabedoria e profecia. Ester e Daniel contêm materiais suplementares, e muitos livros não canónicos, seja de origem hebraica ou grega, entremisturaram-se com as obras canónicas. Estes escritos extra-canónicos compreendem I Esdras, a Sabedoria de Salomão, Eclesiástico (ben Sirá), adições a Ester, Judite, Tobite, Baruc, a carta de Jeremias, e adições a Daniel, como se enumeram no manuscrito conhecido como Codex Vaticanus (ca. 350 E.C.). A sequência dos livros varia, no entanto, nos manuscritos e nas listas sinódicas e patrísticas das Igrejas ocidentais e orientais, algumas das quais incluem também outros livros, como I e II Macabeus.

Deve notar-se que o conteúdo e a forma do inferido cânon judeu alexandrino original não pode ser determinado com certeza porque todas as Bíblias gregas existentes são de origem cristã. Os próprios judeus de Alexandria podem ter estendido o cânon que receberam da Palestina, ou eles podem ter herdado as suas tradições de círculos palestinos nos quais os livros adicionais tinham já sido considerados como canónicos. É igualmente possível que as adições às Escrituras hebraicas sejam de origem cristã.

Encyclopedia Britannica

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Contrariamente ao que se pensou durante largo tempo, nunca existiu um verdadeiro «cânon alexandrino» de língua grega, que pudesse ser considerado como um cânon paralelo ao «palestino» de língua hebraica...

A teoria tradicional sobre a existência de um «cânon alexandrino», que supostamente incluía mais livros que o cânon palestino, se baseava, entre outros dados, no facto de os códices da LXX conterem vários dos livros apócrifos. No entanto, é preciso ter em conta que os grandes códices do s. V tinham uma

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extensão muito superior à dos códices de séculos anteriores ... Os códices gregos reflectem a situação dos ss. IV e V, que não é comparável de modo algum com a de séculos anteriores.

É frequente supor que Filão e os judeus helenistas não compartilhavam o parecer dos rabinos da Palestina, segundo o qual o espírito de profecia tinha cessado há séculos... Na verdade, as obras de Filão não citam nem uma só vez os livros apócrifos, o que invalida toda a hipótese de um cânon helenístico. Por outro lado, seria bem estranho que um livro como 1 Mac[abeus], que insiste em que a profecia tinha cessado há tempo (4,46; 9,27; 14,41) pudesse formar parte de um suposto cânon helenístico, cuja existência se apoia precisamente na afirmação de que a profecia ainda não cessou, numa época inclusive posterior.

A teoria do cânon alexandrino tinha outros dois suportes que caíram igualmente por terra. O primeiro era que o judaísmo helenístico e o judaísmo palestino eram realidades distintas e distantes. O segundo era que os livros apócrifos foram compostos na sua maioria em língua grega e em solo egípcio.

Julio Trebolle Barrera, La Biblia judía y la Biblia cristiana. Madrid: Trotta, 1993, p. 241-242.

É bem sabido que o filósofo judeu, Filão de Alexandria, apesar de viver na cidade onde supostamente se originou o cânon alternativo, jamais cita os apócrifos/deuterocanónicos.

Por volta dos anos 90-100 d.C. alguns líderes judeus se reuniram para tratar o tema do cânon (conhecido como o cânon da Palestina) tirando os sete livros, o seu objectivo era regressar ao cânon hebreu, e distinguir-se assim dos cristãos. Pensavam que o que não foi escrito em hebraico não era inspirado (embora Eclesiástico e 1 de Macabeus estavam originalmente escritos em hebraico e Aramaico).

No entanto, a discussão entre eles prosseguiu por muitos anos, e as suas decisões não foram universalmente reconhecidas.

As discussões dos rabinos em Jâmnia (entre 85 e 115), numa academia estabelecida por Yohanan ben Zakkai, não "tiraram" sete livros que nunca ali estiveram anteriormente. As discussões giraram à volta da propriedade da pertença de alguns livros como Ezequiel, Cantares, Qohélet (Eclesiastes) e Ester, que já eram aceites. E de facto, não modificaram de modo algum o que fazia tempo estava estabelecido.

"O resultado dos seus debates [de Yohanan ben Zakkai e outros] foi que, pese as objecções, Provérbios, Eclesiastes, Cantares e Ester foram reconhecidos como canónicos; Eclesiástico não foi reconhecido (TB Shabbat 30 b; Mishná Yadaim 3:5; TB Magillah 7 a; TJ Megillah 70 d). Os debates de Jâmnia «não têm que ver com a aceitação de certos escritos dentro do Cânon, mas antes com o seu direito a permanecer lá» (A. Bentzen, Introduction to the Old Testament, i [Copenhagen, 1948], p. 31). Houve alguma discussão prévia na escola de Shammai acerca de Ezequiel, que já há muito estava incluído entre os Profetas, mas quando um rabino engenhoso mostrou que realmente não contradizia Moisés, como se havia alegado, se afastaram as dúvidas (TB Shabbat 13 b)."

F.F. Bruce, Tradition Old and New. The Paternoster Press, 1970, p. 133, n. 1 (TB = Talmude de Babilónia; TJ = Talmude de Jerusalém).

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O mais significativo das conclusões destes rabinos foi a sua resolução de não inovar.

Se se me permite resumir o exposto até agora:

1. O cânon católico não é igual nem ao ortodoxo nem ao protestante.

2. Os livros de que tratamos denominam-se historicamente "apócrifos" ou "eclesiásticos". A denominação "deuterocanónicos" é tardia (século XVI).

3. Não houve decisão taxativa e precisa de nenhum concílio ecuménico acerca da extensão do cânon antes do grande cisma do século XI. As decisões de sínodos locais não obrigam a toda a cristandade.

4. As opiniões de Lutero sobre o cânon do Antigo Testamento não diferiam da de muitos Padres nem das de eruditos católicos contemporâneos seus.

5. Não há evidência de que tenha existido um "cânon alexandrino" a par do cânon hebreu do Antigo Testamento.

6. Os rabinos reunidos em Jâmnia não introduziram modificações. Após muitas deliberações, terminaram ratificando o cânon que era aceite desde muito tempo atrás, provavelmente da era pré-cristã.

Havia muito desacordo entre os diferentes grupos e seitas judaicas. Os saduceus somente confiavam no Torá, os fariseus não podiam decidir sobre Ester, Cantares e Eclesiastes. Somente no segundo século os fariseus decidiram 39 livros.

Como já disse, é um erro sustentar que os fariseus "decidiram" 39 livros no século II. A verdade é que nesse tempo ficou formalmente estabelecida a posição sustentada por muito tempo antes da sua "oficialização". Quanto aos saduceus, a noção de que somente admitiam a Torá (os cinco livros de Moisés, ou Pentateuco) parece ter surgido de uma confusão de alguns Padres como Hipólito, Orígenes e Jerónimo. Eis aqui o juízo de duas referências confiáveis:

A opinião de numerosos Padres da Igreja no sentido de que os saduceus reconheciam unicamente o Pentateuco e rejeitavam os Profetas não conta com apoio algum em Josefo e, por conseguinte, é considerada errónea pela maior parte dos investigadores modernos.

Emil Schürer, Historia del pueblo judío en tiempos de Jesús. Edición revisada por Geza Vermes y otros. Trad. Cast. Madrid: Cristiandad, 1985, vol. 2, p. 530-531.

A sua atitude fundamental é uma fidelidade ao sentido literal da escritura, à manutenção da Sola Scriptura, perante as tradições e a lei oral dos fariseus: os sacerdotes são os únicos intérpretes autênticos desta Torah... os saduceus, contrariamente ao que afirmaram alguns padres da Igreja, admitiam como Escritura outros livros além do Pentateuco, por mais que este tivesse aos seus olhos valor preponderante...

R. Le Déaut, Los saduceos. En Augustin George y Pierre Grelot (Dir.), Introducción Crítica al Nuevo Testamento. Trad. Cast. Barcelona: Herder, 1982, vol. 1, p. 159.

Nas suas discussões com os saduceus e fariseus, Jesus Cristo nunca se dirigiu a eles como se os primeiros aceitassem um cânon e os segundos outro. A principal diferença era que os fariseus sustentavam a existência de duas Leis, a escrita (em particular o Pentateuco) e a oral, que também teria sido dada a Moisés no Sinai. Os

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saduceus não aceitavam a suposta "torah oral" que para os fariseus era vinculante. E embora seja verdade que os saduceus consideravam o Pentateuco como dotado de uma autoridade especial acima dos Profetas e dos Escritos (a segunda e terceira divisões do cânon hebreu), também os fariseus tinham o Pentateuco em particular estima. Por exemplo, no Talmude - que reflecte a tradição farisaica - se estabelece que pode vender-se um rolo dos Profetas para adquirir um da Lei, mas que o inverso é ilícito.

O apóstolo Paulo, que viajou por todo o mundo de língua grega, utilizava a versão dos LXX.

Não há dúvida de que a Septuaginta (versão dos LXX, uma tradução do Antigo Testamento para o grego produzida em Alexandria entre os séculos III a I a.C.) foi a Bíblia usada correntemente pelos apóstolos, pelos escritores do Novo Testamento e pelos primeiros cristãos. Mas este facto não convalida a autoridade canónica dos livros eclesiásticos, por várias razões.

Em primeiro lugar, porque na época apostólica não havia outra tradução à qual apelar.

Em segundo lugar, porque o Novo Testamento jamais cita um livro apócrifo/eclesiástico como Escritura (não porque os seus autores não os conheceram).

Em terceiro lugar, porque não há evidência de que na era pré-cristã a Septuaginta circulasse em códices com todos os livros compilados numa mesma encadernação. O modo usual era o rolo, pelo que o texto bíblico circulava como rolos separados.

Quando a São Jerónimo se lhe pediu que traduzisse a Bíblia em latim (em 382 d.C.) optou por seguir a decisão dos judeus e rejeitou os sete livros, chamando-os "apócrifos". Esta decisão de Jerónimo foi rejeitada pelos concílios já mencionados e Jerónimo aceitou a decisão dos concílios.

Dificilmente poderiam dizer-se mais inexactidões em igual espaço.

1. Em 382 ninguém pediu a Jerónimo que traduzisse "a Bíblia" para o latim. Por esse ano, o bispo de Roma, Dámaso I, solicitou a Jerónimo, a quem tinha em grande estima como erudito bíblico, que revisse os Evangelhos e os Salmos da antiga versão latina. Jerónimo pôs mãos à obra e completou a tarefa com bastante rapidez.

2. Depois da morte de Dámaso em 384, Jerónimo emigrou para o Oriente, e em 386 se estabeleceu em Belém da Judeia. Aí continuou por sua própria conta (sem encargo oficial) com uma tradução para o latim baseada no texto da Septuaginta. Mas chegou à conclusão de que para fazer bem a sua tarefa, devia basear-se no texto hebraico. De modo que aproximadamente entre 391 e 404 Jerónimo se ocupou deste trabalho.

3. Os concílios provinciais de Hipona (393) e Cartago (397) tomaram como texto padrão não a Vulgata de Jerónimo – que estava em plena preparação e por séculos não seria conhecida por tal nome – mas a versão Latina Antiga.

4. Jerónimo expressou o seu ponto de vista sobre o cânon do Antigo Testamento privadamente no prefácio a Samuel e Reis, dirigido aos seus amigos Eustóquio e Paula, que data de 391.

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Jerónimo enumera o cânon hebreu exactamente, e dá conta da dupla numeração como 24 ou 22, segundo se Rute e Lamentações se contassem por separado ou agregados, respectivamente, a Juízes e Jeremias: "E assim há também vinte e dois livros do Antigo Testamento; isto é, cinco de Moisés, oito dos profetas, nove dos hagiógrafos, embora alguns incluam Ruth e Kinoth (Lamentações) entre os hagiógrafos, e pensam que estes livros devem contar-se por separado; teríamos assim vinte e quatro livros da Antiga Lei". Os 22 ou 24 correspondem exactamente com o cânon hebreu e protestante; a diferença entre os 39 contados por este último se deve a que Esdras-Neemias, Samuel, Reis e Crónicas se contam como dois livros cada um (soma 4), e os Profetas menores, que se incluíam num só rolo na Bíblia hebraica, se contam por separado (soma 11). Depois prossegue Jerónimo:

"Este prólogo às Escrituras pode servir como um prefácio com elmo [galeatus] para todos os livros que vertemos do hebraico para o latim, para que possamos saber – os meus leitores tanto como eu mesmo - que qualquer [livro] que esteja para lá destes deve ser reconhecido entre os apócrifos. Portanto, a Sabedoria de Salomão, como se a titula comummente, e o livro do Filho de Sirá [Eclesiástico] e Judite e Tobias e o Pastor não estão no Cânon."

Jerónimo traçou a diferença entre os livros canónicos e os eclesiásticos como se segue:

"Como a Igreja lê os livros de Judite e Tobite e Macabeus, mas não os recebe entre as Escrituras canónicas, assim também lê Sabedoria e Eclesiástico para a edificação do povo, não como autoridade para a confirmação da doutrina."

De igual modo, sublinhou que as adições a Ester, Daniel e Jeremias (o livro de Baruc) não tinham lugar entre as Escrituras canónicas.

Fonte: Prefácio aos Livros de Samuel e Reis. Em Nicene and Post-Nicene Fathers, 2nd Series, vol. 6, p. 489-490.

5. Não há a menor indicação de que Jerónimo se tivesse inteirado das decisões dos sínodos africanos. Vários anos mais tarde, em 403, escreveu uma longa carta a Laeta, que o havia consultado sobre a educação de sua filha Paula. Jerónimo dá uma série de conselhos; entre eles, que a instrua nas Escrituras, sugerindo a ordem em que deve lê-las. Depois acrescenta:

"Que [Paula] evite todos os escritos apócrifos, e se ela for levada a lê-los não pela verdade das doutrinas que contêm mas por respeito aos milagres contidos neles, que ela entenda que não são escritos por aqueles a quem são atribuídos, que muitos elementos defeituosos se introduziram neles, e que é preciso uma perícia infinita para procurar ouro no meio da sujeira."

Epístola 107:12 (Nicene and Post-Nicene Fathers, 2nd Series, vol. 6, p. 194)

6. Finalmente, Jerónimo não realizou traduções dos livros apócrifos, com excepção de Judite e Tobias, que traduziu apressadamente do aramaico por pedido de alguns amigos. Os restantes apócrifos foram acrescentados à versão de Jerónimo tal como estavam na versão Antiga Latina.

Como pode ver-se, o autor do artigo simplesmente desconhece os factos.

Ao fim e ao cabo, os judeus expulsaram os cristãos da sinagoga e não os deixaram participar na decisão sobre o cânon. Hoje em dia muitos se baseiam nas decisões judaicas sobre o cânon. Ora, esses mesmos judeus já tinham decidido rejeitar Jesus como Messias: por que dar a eles a autoridade sobre o cânon do AT?

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Por que, diria eu, dar autoridade aos judeus da diáspora acima dos da Judeia?

Este argumento é um dos mais estranhos que apresenta o autor deste curioso escrito. Primeiro apela à existência de um suposto "cânon Alexandrino" mais amplo que o Hebreu. Agora argumenta que os judeus não tinham autoridade em primeiro lugar para decidir que livros do Antigo Testamento eram canónicos. Em outras palavras, nega aos judeus palestinos a autoridade que reconhece aos judeus da diáspora. Com que critério? Não são uns e outros judeus? Os judeus de Roma que aparecem em Actos 28, ou os de Tessalónica, etc, eram mais judeus que os residentes na Palestina?

Se se argui que a decisão foi tomada em Jâmnia em finais do século I, replico que se enganam. Como já indiquei antes, em Jâmnia apenas se ratificou um consenso que vinha de muito antes.

Martinho Lutero e os demais reformadores decidiram seguir a decisão judaica de basear o cânon do AT sobre o idioma hebraico e retiraram os sete livros da sua Bíblia. Os chamaram "apócrifos" seguindo a ideia de São Jerónimo. Assim começou a Bíblia Protestante.

Outro concentrado de inexactidões às quais nos tem acostumado o anónimo autor. Lutero em particular não era o que se diz um apaixonado das opiniões judaicas. Os Reformadores admitiram o cânon Hebreu porque a sua autenticidade era indubitável, e porque os mais doutos eruditos e Padres eram de igual opinião.

Sim é correcto que os chamaram apócrifos, seguindo Jerónimo. Mas não é verdade que os retiraram da Bíblia. Durante séculos continuaram sendo incluídos nas principais versões protestantes, frequentemente agrupados entre o Antigo e o Novo Testamento. Em geral, com a advertência de Jerónimo, de que deviam usar-se para edificação mas não para formular ou defender doutrinas.

- No tempo da Reforma, Lutero (1534) introduziu a ideia de qualificar os vários livros do NT segundo o que ele considerava a sua autoridade.

- Atribuiu um grau secundário a Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse, os pôs no final da sua tradução.

- Fez igual com os sete livros do AT, mas não os tirou da Bíblia.

- Disse que não são iguais às Sagradas Escrituras, mas sim são úteis e bons para ler (Artigo VI dos 39).

Em que ficamos? Primeiro diz que os tirou, agora que não os tirou...

O critério distintivo de Lutero foi até que ponto cada livro dava testemunho de Cristo. Mas a ideia de um "cânon dentro do cânon" não nasceu com Lutero. Pode remontar-se a Ireneu, vislumbrar-se em Orígenes e Eusébio de Cesareia, e pouco antes de Lutero, nos seus contemporâneos católicos Erasmo de Roterdão e no Cardeal Tomás de Vio (conhecido como Caetano).

Os 39 artigos são anglicanos. Não foram escritos por Lutero.

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- Em 1643 o professor John Lightfoot lhes chamou"apócrifa desgraçada".

- Em 1827 a Sociedade Britânica e Estrangeira da Bíblia os omitiu completamente na sua Bíblia.

- Depois, outras editoras fizeram o mesmo.

A decisão definitiva da SBBE tomou-se em 1826 e susteve-se até 1968. Os excluíram por razões práticas, já que de qualquer modo não os consideravam inspirados. Outras Sociedades Bíblicas continuaram incluindo-os conforme o uso eclesiástico estabelecido.

Alguns irmãos dizem que a Igreja católica acrescentou estes sete livros no Concílio de Trento (século XVI), mas Lutero não poderia rejeitar estes livros se eles não tivessem já estado no cânon.

Os livros incluíam-se nos manuscritos e nas primeiras versões impressas. Isso não lhes conferia condição canónica, mas dava testemunho de um uso antigo. Durante séculos os livros apócrifos/eclesiásticos/deuterocanónicos tinham estado ali, o que não significava que se os considerasse canónicos ao mesmo nível que o cânon hebreu. O que teve de particular a decisão de Trento é que pela primeira vez um concílio que pretendia ser ecuménico se arrogou o poder de estabelecer como artigo de fé a lista de livros canónicos incluindo os apócrifos, com o habitual anátema para quem a rejeitar.

Como é bem sabido, nos grandes concílios ecuménicos da antiguidade (antes do cisma entre a Igreja Ocidental e a Oriental) participavam centenas de bispos. Não ocorreu a mesma coisa em Trento, o concílio que determinou dogmaticamente a posição católica com respeito ao cânon da Bíblia.

É um facto que o Concílio de Trento teve uma história tão longa como acidentada. Foi inaugurado a 13 de Dezembro de 1545 após inevitáveis adiamentos, "com a assistência de apenas 31 bispos, na sua maioria italianos... O concílio, além disso, se havia atribuído a sua própria forma, que se afastava notavelmente do estatuto dos concílios do século quinze." (Hubert Jedin, S.J., Breve historia de los Concilios. Barcelona: Herder, 1963, p. 115, 116). Depois juntaram-se mais bispos. Uma das primeiras coisas a considerar foi o tema da revelação e das relações entre Escritura e Tradição.

"Gerou-se um considerável debate sobre se devia fazer-se uma distinção entre dois tipos de livros (Canónicos e Apócrifos) ou se deviam identificar-se três tipos (Livros Reconhecidos; Livros Disputados do Novo Testamento, depois geralmente reconhecidos; e os Apócrifos do Antigo Testamento). Finalmente a 8 de Abril de 1546, por um voto de 24 a 15, com 16 abstenções, o Concílio sancionou um decreto (De Canonicis Scripturis) no qual, pela primeira vez na história da Igreja, a questão do conteúdo da Bíblia foi feito um artigo absoluto de fé e confirmado com um anátema."

Bruce M. Metzger, The Canon of the New Testament- Its origin, development, and importance. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 246; negrito acrescentado.

Não havia ali 318 bispos de toda a cristandade, como em Niceia, nem 600 como em

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Calcedónia, nem sequer 150 como em I Constantinopla. Não, nada mais que 55 bispos, a maioria italianos. E o malfadado decreto sobre o cânon sancionou-se com o voto favorável de menos da metade dos presentes.

Resumo:

1. Não há evidência de que os saduceus reconheceram um cânon escritural diferente do reconhecido pelos fariseus.

2. A Septuaginta foi amplamente usada pelos cristãos, mas não há evidência de que na época apostólica circulasse em forma de códice (livro) encadernado com inclusão dos apócrifos. Também não há evidência de que Jesus ou os apóstolos considerassem inspirados estes livros.

3. A tradução de Jerónimo do AT não foi encomendada por autoridade eclesiástica alguma, nem sancionada oficialmente até ao Concílio de Trento.

4. Os cânones de Hipona e Cartago não eram vinculantes para toda a cristandade, e Jerónimo continuou firme na sua opinião depois de ambos os sínodos.

5. Jerónimo não traduziu a maioria dos apócrifos, excepto Judite e Tobias a pedido de amigos.

6. A opinião de Lutero em relação ao cânon não é singular. Além disso, não excluiu os apócrifos da sua edição da Bíblia.

7. No Concílio de Trento, em 1546, um punhado de bispos ocidentais (principalmente italianos) declarou pela primeira vez como artigo de fé para todos os cristãos que os livros apócrifos eram Escritura sem distinção com o cânon hebreu quanto à sua canonicidade e inspiração.

Outros dizem que não se citam no NT. Porém, o Novo Testamento também não cita Ester, Obadias e Naum, e no entanto os irmãos os aceitam na sua Bíblia.

Não há comparação possível. Na época de Jesus a divisão tripartida do cânon – Torah, Profetas, Escritos - estava muito claramente estabelecida, como o demonstram as próprias palavras do Mestre:

Depois lhes disse: «Estas são as minhas palavras que vos falei quando ainda estava convosco: É necessário que se cumpra tudo o que está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos acerca de mim.» (Lucas 24:44)

Os especialistas coincidem em entender aqui a referência aos Salmos como uma sinédoque dos denominados "Escritos". Ester formava parte deles, e portanto a sua canonicidade é indirectamente atestada ainda que não se o cite, provavelmente porque os autores do NT não necessitaram de fazê-lo.

Igualmente, Obadias e Naum formavam parte de um único livro, o dos Doze Profetas menores. Estes constituíam um único rolo, de modo que o facto que se citem outras partes do mesmo rolo (megillah-séfer), como Amós, Miqueias, Joel e Malaquias avaliza todo o seu conteúdo.

Em conjunto há à volta de 250 citações directas do cânon hebreu do Antigo Testamento no Novo (as alusões chegam a 10 vezes mais). No entanto, nenhum livro apócrifo/deuterocanónico se cita sequer uma vez como Escritura. Considerados por título, citam-se 80% dos pertencentes ao cânon hebreu, cifra que ascende a

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90% se se consideram por rolo. Valores bastante significativos comparados com 0% dos deuterocanónicos/apócrifos.

Os cristãos usavam mais o rolo grande que o pequeno por ser escrito em grego. O grego, idioma universal deste tempo, era o idioma do NT.

Antes da era cristã (e ainda hoje no uso litúrgico da Bíblia hebraica) as Escrituras não vinham encadernadas todas juntas, mas em rolos individuais. Isto se devia a várias razões. Uma delas era prática: o formato limitava a extensão do texto que podia incluir-se em cada rolo individual. Por exemplo, o grande rolo de Isaías recuperado entre os manuscritos do Mar Morto aproxima-se deste limite com uma altura de 25 cm e uma extensão de algo mais de sete metros. Em contrapartida, como disse, os Profetas Menores podiam ser incluídos todos num único rolo. Era virtualmente impossível contar com todo o AT manuscrito num só rolo.

Voltando à afirmação do nosso apologista, em princípios da era cristã não existia o Antigo Testamento num "rolo grande" e noutro "rolo pequeno".

Não foi senão em finais do século I da nossa era ou princípios do seguinte que os manuscritos bíblicos começaram a coleccionar-se em códices (formato similar ao dos livros modernos). O códice era menos volumoso e muito mais cómodo para procurar textos do que o rolo, no qual havia que desenrolar uma ponta e enrolar a outra até achar o texto desejado; é a mesma diferença que procurar uma faixa numa cassete e procurá-la num CD.

Ora bem, excepto para alguns fragmentos, os principais códices da Septuaginta que chegaram a nós são de origem cristã, de modo que não podem utilizar-se para sustentar um suposto "cânon alexandrino". Os cristãos coleccionaram escritos que eram reconhecidos unanimemente como canónicos juntamente com outros que não o eram, tanto para o Antigo como para o Novo Testamento. De modo que a mera presença de um livro num códice antigo não o torna nem canónico nem inspirado só por esta causa (ver mais abaixo).

Justino Mártir escreveu que a Igreja tinha um AT distinto do dos judeus. Contudo, por consideração aos judeus, sobretudo nas controvérsias, alguns representantes isolados da Igreja, pelo menos na prática, não puseram já desde o princípio, os sete na mesma linha com os outros 39.

Sim, é verdade que no fragor da controvérsia Justino acusou os judeus de ter adulterado as Escrituras. Não sei qual texto tem em mente o autor católico, mas eu recordo tê-lo lido no Diálogo com Trifão o judeu, capítulo 73. Aí diz: E do salmo noventa e cinco, das palavras de David, suprimiram estas breves expressões: "Do alto do madeiro". Pois dizendo a palavra: «Dizei entre as nações: O Senhor reina desde o alto do madeiro», só deixaram: "Dizei entre as nações: O Senhor reina".

Esta frase cuja omissão questiona Justino é desconhecida nos manuscritos tanto hebraicos como gregos. Portanto, cabe pensar que Justino estava errado e que o seu interlocutor tinha razão.

Habitualmente quando Justino menciona as Escrituras refere-se ao Antigo Testamento, que conhece fundamentalmente na antiga versão Septuaginta. Um aspecto interessante é que na actualidade os católicos apelam ao facto de os manuscritos da Septuaginta incluírem os livros que desde o século XVI chamam

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"deuterocanónicos" (e nós apócrifos) como prova da existência de um imaginário "cânon alexandrino" similar senão idêntico ao estabelecido dogmaticamente no Concílio de Trento. Ora bem, o mestre e mártir Justino usa a Septuaginta, da qual cita profusamente o Pentateuco, os profetas e os salmos. No entanto, o exame dos seus escritos mostra que jamais cita textos dos apócrifos/deuterocanónicos.

Justino conhece também e cita os Evangelhos sinópticos, aos quais chama "memórias dos Apóstolos", e menciona que se liam nos cultos cristãos. A maior parte das citações evangélicas provêm de Mateus, mas também apela a Lucas e ocasionalmente a Marcos. Rara vez apela ao Evangelho de João, embora deva tê-lo conhecido.

Além disso, há nas suas obras, particularmente no Diálogo com Trifão, alusões a algumas cartas paulinas, em concreto Efésios, Romanos e 1 Coríntios; também uma alusão no capítulo 81 do citado Diálogo..., mostra que conhecia o Apocalipse e lhe atribuía autoridade apostólica.

Os judeus da Palestina decidiram o cânon do AT por volta dos anos 90-100, como se disse, rejeitando os sete livros escritos em grego.

Como já disse e repeti, as discussões de Jâmnia não resultaram em nenhuma novidade, mas na reafirmação do que já se cria desde muito antes. Não é por muito repetir uma falácia que ela se torna verdadeira.

Alguns irmãos baseiam-se em Rm 3, 1-2 para dizer que o cristão deve reconhecer esta decisão judaica palestina: "Que vantagem tem pois o judeu? Primeiramente, porque lhes foi confiada a palavra de Deus". No entanto, daqui não se segue que eles tenham mais autoridade que a Igreja do Novo Testamento para aprovar os livros sagrados. Como pode ser que rejeitem o Messias, se a eles tinha sido confiada precisamente a Palavra de Deus? O facto de que Deus lhes tenha dado a Palavra de Deus não garante que sejam infalíveis na sua interpretação ou discernimento; se o tivessem sido, nunca rejeitariam o Messias. Além disso: quem tinha que decidir o cânon? Que judeus? Que autoridade? Quem se reuniu em Jâmnia para essa decisão? Há algum documento?

Os resultados das discussões de Jâmnia conservam-se no Talmude. De novo, não decidiram o cânon, mas simplesmente ratificaram, perante algumas objecções, o consenso pré-cristão.

O resto das objecções são insubstanciais. No grego diz que «lhes foram confiados os oráculos [logia] de Deus». O verbo grego é pisteuô que significa "crer", "confiar", "ter fé", e na voz passiva (como neste caso), "confiar" algo a alguém. Aparece neste último sentido em outros três sítios do Novo Testamento: Lucas 16:11, 1 Timóteo 1:11 e Tito 1:3. Lucas 16:11 é uma pergunta retórica de Jesus: "Quem é fiel no pouco, também é fiel no muito; e quem é injusto no pouco, também é injusto no muito. Assim, pois, se não fostes fiéis no dinheiro injusto, quem vos confiará o verdadeiro?" (vv. 10-11). Aqui "confiar" ou "encomendar" significa claramente entregar em depósito a alguém confiável.

As outras duas passagens, ambas de Paulo, são ainda mais relevantes (negrito acrescentado):

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"..segundo o Evangelho da glória de Deus bem-aventurado, que me foi confiado." (1 Timóteo 1:11)

"Paulo, servo de Deus, apóstolo de Jesus Cristo para levar os escolhidos de Deus à fé e ao pleno conhecimento da verdade que é conforme à piedade, com a esperança de vida eterna, prometida desde toda a eternidade por Deus que não mente, e que no tempo oportuno manifestou a sua Palavra pela pregação a mim confiada segundo o mandato de Deus nosso Salvador..." (Tito 1:1-3)

Como pode ver-se, nas palavras do Senhor trata-se de confiar algo verdadeiro para ser guardado. Nas outras duas referências de Paulo, o depósito de que se fala é nada menos que o Evangelho e a sua pregação. Portanto, quando o Apóstolo diz que aos judeus lhes foram confiados os ditos ou oráculos de Deus, deve entender-se sem dúvida a totalidade da revelação do Antigo Testamento, facto admitido por comentaristas católicos:

À pergunta formulada pelo imaginário interlocutor responde Paulo, em geral, que a superioridade é grande em muitos aspectos. Em primeiro lugar – e como fonte de todos os privilégios não enumerados aqui [cf. Romanos 9:1-5- Fernando D. Saraví] -, aos judeus lhes foi confiada a revelação de Deus, especialmente as promessas messiânicas [Nota de rodapé: Entendemos por logia todo o A.T., sobretudo as promessas...].

José Ignacio Vicentini, S.I. Carta a los Romanos. En La Sagrada Escritura. Texto y comentario por Profesores de la Compañía de Jesús, 2ª Ed. Madrid: BAC, 1965, NT vol. II, p. 199; negrito acrescentado.

Além disso, o próprio Paulo refutou de antemão as objecções do nosso anónimo defensor dos apócrifos; pois o mesmo texto que ele questiona, prossegue:

"Pois quê? Se alguns deles foram infiéis, anulará, porventura, a sua infidelidade a fidelidade de Deus? De modo nenhum! Deus tem que ser veraz e todo o homem mentiroso, como diz a Escritura: Para que sejas justificado nas tuas palavras e triunfes ao ser julgado." Romanos 3:3-4

De maneira que resulta muito impróprio rebaixar a declaração de Paulo em Romanos 3:2 questionando a prerrogativa divinamente atribuída aos hebreus de ser receptores, guardiães e custódios da revelação do Antigo Pacto. E que isto não é modificado de modo algum pela infidelidade de uma parte de Israel o afirma explicitamente o Apóstolo no mesmo texto.

Além disso, os judeus demonstraram efectivamente ser diligentes e zelosíssimos conservadores e guardiães das Escrituras, como o mostra a fidelidade da transmissão do texto hebraico ao longo dos séculos.

Os manuscritos mais antigos do AT (por mil anos) contêm os Deuterocanónicos. Salvo a ausência de Macabeus no Codex vaticanus, o mais antigo texto grego do AT, TODOS OS DEMAIS manuscritos contêm os sete livros.

Se nos limitarmos aos mais antigos códices da Septuaginta que se conservam, ou seja o Alexandrino (A), o Vaticano (B) e o Sinaítico (Alef), vemos que:

O Códice Alexandrino, do século V, inclui as adições gregas a Ester e Daniel, Baruc, Tobite, Judite, 1 e 2 Macabeus, a Sabedoria de Salomão, e a Sabedoria de Jesus ben Sirá (= Eclesiástico). Mas também inclui livros que a Igreja Católica nunca admitiu como canónicos, a saber: 1 Esdras (não confundir com o Esdras canónico), 3 e 4 Macabeus e, no Novo Testamento, 1 e 2 Clemente e os Salmos de Salomão.

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O Códice Vaticano, do século IV, inclui a Sabedoria, o Eclesiástico, adições a Ester e Daniel, Judite, Tobite, Baruc com a epístola de Jeremias, mas também 1 Esdras, nunca aceite como canónico, e exclui os livros dos Macabeus.

O Códice Sinaítico, também do século IV, inclui Tobite, Judite, 1 Macabeus e ambas as Sabedorias. Faltam Baruc e 2 Macabeus, mas estão 4 Macabeus e, no NT, a Epístola de Barnabé e um fragmento de O Pastor de Hermas, livros nunca tidos por canónicos pela Igreja Católica.

Portanto, a presença dos livros eclesiásticos/deuteros/apócrifos nestes códices não é mais garantia da sua canonicidade do que a de 3 e 4 Macabeus, 1 Esdras, 1 e 2 Clemente, a Epístola de Barnabé ou O Pastor de Hermas.

"Dos 850 documentos que acharam restos em Qumrán, uns 223 são cópias de distintos livros do Antigo Testamento; se encontram representados quase todos os livros da Bíblia hebraica (menos Ester), e alguns deuterocanónicos (Tobias, e Ben Sira ou Eclesiástico)...

Como se sabe, a actual Bíblia hebraica tem como base um manuscrito de Leningrado copiado no ano 1008 D.C., e representa o texto consonântico oficial rabínico (Texto Massorético), fixado com toda a precisão no século II d. C., e transmitido sem variantes até aos nossos dias. Diante dele, os cristãos do Oriente e os ocidentais não reformados utilizaram habitualmente os livros e o texto representados pela antiga versão grega dos LXX... Ao publicar-se os primeiros manuscritos bíblicos de Qumrán, em concreto, os rolos de Isaías encontrados na cova 1, verificou-se que estes textos - mil anos mais antigos que os manuscritos medievais em que se baseiam as bíblias hebraicas e anteriores à unificação massorética.- eram praticamente iguais ao texto conhecido".

Los documentos del Qumrán, ¿qué aportan al cristianismo, por Eulalio Fiestas Le-Ngoc en Palabra, Octubre 1994, p. 71.

Perfeito, isto corrobora a fidelidade com a que os escribas judeus conservaram o depósito dos oráculos de Deus, de que fala Paulo em Romanos 3:2 e 9:1-5.

A existência de livros apócrifos/deuteros em Qumran não lhes confere nenhum valor canónico, pois acharam-se ali muitos outros livros muito apreciados pela seita que nunca entraram no cânon hebreu nem tampouco no católico, como a Regra da Congregação, o Génesis Apócrifo, o livro dos Jubileus e A guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas.

Nota F.F. Bruce:

«Porém, os homens de Qumran não deixaram uma declaração indicando precisamente quais dos livros representados na sua biblioteca tinham categoria de sagrada escritura na sua estimação, e quais não. Um livro que estabelecia a regra da comunidade para a vida ou a prática litúrgica era sem dúvida considerado como autoridade, do mesmo modo que o é (ou o era) o Livro de Oração Comum na Igreja de Inglaterra, mas isto não lhe dava status escritural....

É provável, de facto, que no começo da era cristã os essénios (incluída a comunidade de Qumran) estivessem em substancial acordo com os fariseus e os saduceus sobre os limites da Escritura hebraica.

F.F. Bruce, The Canon of Scripture. Downers Grove: InterVarsity Press, 1988, p. 39,40; negrito acrescentado.

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Os Padres conciliares (de Trento) sabiam que os concílios africanos (Hipona, Cártago) do século IV tinham aceitado os livros deuterocanónicos; resulta curioso, que Trento, ao aceitar um cânon mais longo, parece ter conservado uma autêntica lembrança dos primeiros dias do cristianismo, enquanto outros grupos cristãos, em seu reconhecido intento de voltar ao cristianismo primitivo, decidiram-se por um cânon judeu mais reduzido que, se estão certos alguns investigadores protestantes como A.C. Sundberg e J.P. Lewis, era uma criação de época posterior".

Estes investigadores protestantes descobriram que a Igreja primitiva usava o rolo grande!

Como disse, "o rolo grande" significando a Septuaginta com apócrifos, somente existe na imaginação do autor. As cópias da Septuaginta com apócrifos e outros livros não canónicos que se conservaram não estão em forma de rolo, mas de códice (livro).

Nada pode resultar "curioso" de Trento, se se recordar que entre os bispos ali presentes dificilmente haveria algum que estava inteirado dos factos históricos, e soubesse dos resultados da erudição mais recente. Tenho para mim que os bispos tridentinos obraram assim porque não conheciam outra coisa. A conclusão dos eruditos protestantes que nomeia (sem citar) não faz justiça aos ensinos da vasta maioria dos eruditos bíblicos que até ao próprio século XVI opinaram sobre o cânon.

Quando os autores do NT citam algo do AT, o citam segundo a tradução grega dos Setenta 86% das vezes. Alguns irmãos admitem isto mas tratam de dizer que os sete livros eram "suplemento" do rolo grande, e por isso Cristo e os apóstolos não os citaram. Mas os autores do NT não faziam esta distinção. Citar o rolo era admitir que todo ele é inspirado. Se eram falsos, juntá-los como "suplemento" teria sido fazer impuro todo o rolo (e o culto no qual se os utilizava). Sabemos a reverência dos judeus para com as Sagradas Escrituras. Quando Jesus entrou na sinagoga para ler o livro (Lc 4, 6-17) teria sido um momento proveitoso para dizer que entre os livros havia sete que não eram inspirados.

Todo este parágrafo se baseia no erro já apontado de crer que todo o AT circulava como um único rolo, quer fosse na sua versão "curta" ou "longa". Tudo indica que não era assim, pois nos tempos de Jesus e dos Apóstolos usavam-se com exclusividade rolos separados para os diferentes livros (com algumas excepções como Esdras-Neemias e os Doze Profetas Menores); ver Lucas 4:17, "o volume de Isaías" (= o rolo de Isaías; a palavra latina volumen significava "algo enrolado"); possivelmente também 2 Timóteo 4:13 atesta este uso.

Portanto, os Apóstolos e os seus discípulos podiam perfeitamente usar os rolos dos livros canónicos da Septuaginta sem por isso avalizar os rolos dos apócrifos.

Além disso, os sete são citados na Tradição oral, como demonstram os padres apostólicos. E são citados directa ou indirectamente nos seguintes: Mt 6, 7 alude a Eclo 7, 14. Mt 6, 14 alude a Eclo 28, 2; Rm 1, 19-32 alude a Sab de 12, 24 a 13, 9; Ef 6, 14 a ideia está em Sab 5, 17-20, e Tg 1, 19 é influenciado por Eclo 5, 13. 1 P 1, 6-7 se vê em Sab 3, 5-6. Compara Heb 1, 3 e Sab 7, 26-27 1 Co 10, 9-10 com Jud 8, 24-25, 1 Co 6, 13 e Eclo 36, 20, etc. É importante recordar que os irmãos aceitam livros do AT que nunca são citados no NT como Rute, Eclesiastes, Cantares, e que a Carta de Judas (vv. 14 e 9) cita 1

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Enoque e a "Assunção de Moisés"! Por que aceitar alguns livros, mas não todos quando foi a própria Igreja que decidiu aceitar toda a Bíblia de uma vez como a têm os católicos?

De novo, as decisões dos sínodos locais de Hipona e Cartago não foram vinculantes para a Igreja Universal ou Católica.

Sobre o facto de alguns livros do cânon hebreu não se citarem no Novo Testamento já falamos antes.

É verdade que o Novo Testamento faz alusão em Judas a um incidente que se narra em 1 Enoque, mas isto não bastaria para conceder status canónico a este livro tardio. Primeiro, porque é possível que ambos dependam de uma fonte comum. O que concede status canónico à tradição de Enoque é precisamente ser citada no Novo Testamento, não ao contrário. E por outro lado este livro em particular, 1 Enoque, nunca foi aceite por católicos nem protestantes.

Para além disso, no Novo Testamento também há citações de autores pagãos (Actos 17:28, palavras que aparecem no Hino a Zeus de Cleantes e nos Phaenomena de Arato; Tito 1:2, palavras de Epiménides; e outros possíveis exemplos). Isso não outorga estado canónico a estes autores da gentilidade. (Veja-se Poets, Pagan, Quotations from, em Merril C. Tenney, Ed., The Zondervan Pictorial Bible Dictionary. London-Edinburgh: Marshall, Morgan & Scott, 1963 p. 672.)

É também correcto que no NT existem alusões a livros apócrifos/deuterocanónicos e a outros que não pertencem ao cânon católico (pseudo-epigráficos, que os católicos chamam apócrifos). A compilação mais extensa que pude achar destas alusões, trinta páginas! encontra-se nas pp. 190-219 da obra de Craig A. Evans, Noncanonical Writings and New Testament Interpretation (Peabody: Hendrickson, 1992).

O que o entusiasta apologista católico não dá sinais de entender é que precisamente este grande número de alusões constitui a evidência mais clara de que os autores inspirados do Novo Testamento conheciam bem estes livros, e no entanto não os citam jamais como Escritura.

Como hebreus que eram em sua maioria, é natural que conhecessem muita literatura judaica não canónica, facto que é reflectido frequentemente na sua linguagem, mas ainda assim não extraíram nem sequer um texto dos apócrifos para citá-lo formalmente como Escritura. Pelo que esta evidência, longe de provar a tese católica, a refuta de maneira terminante.

Em resumo:

1. No Novo Testamento citam-se como Escritura 80 % dos livros canónicos (ou 90 % se se os conta como rolos) e 0 % dos apócrifos/deuterocanónicos.

2. No tempo de Jesus o Antigo Testamento não se reunia num livro, mas em rolos individuais com um só livro ou vários breves. Era impossível escrever todo o Antigo Testamento num único rolo de dimensões manejáveis.

3. Romanos 3:1-2 e 9:1-5 ensina que as Escrituras do Antigo Pacto (os oráculos de Deus e as Promessas) foram confiadas aos judeus, e que a infidelidade de alguns deles não invalidava este facto. Portanto, os cristãos devem admitir o cânon hebreu.

4. Os mais antigos códices cristãos (Alexandrino, Vaticano e Sinaítico) diferem entre

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si quanto aos apócrifos/deuterocanónicos que incluem, e além disso contêm livros que nunca foram admitidos como canónicos; portanto a mera presença de um livro apócrifo ali não é prova da sua canonicidade.

5. A existência de alguns apócrifos na biblioteca do Mar Morto também não é prova de um cânon mais amplo que o hebreu, porquanto não temos uma lista essénia de livros canónicos e, além disso, havia ali muitos livros que não se encontram no cânon católico.

6. É verdade que Justino usou a Septuaginta, mas chamativamente não cita os escritos apócrifos/deuterocanónicos.

7. O Novo Testamento contém numerosas alusões aos apócrifos/deuterocanónicos, o que demonstra que os apóstolos e seus discípulos conheciam estes livros. Apesar disso, nunca os citam como Escritura.

Ao fim e ao cabo o debate sobre se os sete livros são apócrifos ou não, é um debate sobre como sabemos se eles são inspirados. E vimos que sem a Igreja não podemos saber isso. O católico sabe com certeza que a Bíblia é inspirada porque a Igreja católica disse que o era, a última vez no concílio de Trento.

Ah! Até que enfim o disse...Toda a discussão está encaminhada a justificar uma autoridade abusiva da Igreja. Que não seria o que hoje chamamos "Igreja Católica", mas a autenticamente católica Igreja antiga, que compreendia toda a cristandade e não apenas parte da cristandade ocidental.

A ser assim, um católico teria permanecido na incerteza por mais de quinze séculos, já que não havia decisão explícita prévia de nenhum concílio ecuménico. E porque além disso, como explico mais abaixo, a lista de livros canónicos do Antigo Testamento de Hipona e Cartago não coincide exactamente com a de Trento.

Os membros da Igreja não sabem que são inspirados por eles próprios, mas pelo testemunho do Espírito Santo.

Martinho Lutero no seu Comentário sobre São João disse: "Estamos obrigados a admitir aos Papistas que eles têm a Palavra de Deus, que a recebemos deles, e que sem eles não teríamos nenhum conhecimento desta".

Correcto, porque o Dr. Lutero formou-se como "papista", foi ordenado na Igreja Católica e, naturalmente, conheceu as Escrituras aí. Não teria dito a mesma coisa se tivesse nascido em Bizâncio ou Antioquia.

Esta Igreja pronunciou que TODOS os 73 livros que compõem o Antigo e Novo Testamento são revelação.

Sim, em 1546, numa decisão sem precedentes tomada por um punhado de bispos mal informados. O Concílio tinha sido inaugurado a 13 de Dezembro de 1545.

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"O assunto da Sagrada Escritura e da Tradição foi então trazido para a sua discussão preliminar a 12 de Fevereiro. Quatro artigos tomados dos escritos de Lutero foram propostos à consideração, ou melhor, para a sua condenação. Destes, o primeiro afirmava que só a Escritura (sem tradição) era a única e completa fonte de doutrina; o segundo que somente o cânon hebreu do Antigo Testamento e os livros reconhecidos do Novo Testamento deviam ser admitidos como providos de autoridade. Estes dogmas foram discutidos por cerca de trinta eclesiásticos em quatro reuniões. Sobre o primeiro ponto houve um acordo geral. Admitiu-se que a tradição era uma fonte de doutrina coordenada com a Escritura. Sobre o segundo ponto houve grande variedade de opiniões. Alguns propuseram seguir o juízo do Cardeal Caetano e distinguir dois tipos de livros como, se argumentou, tinha sido a intenção de Agostinho. Outros desejavam traçar a linha de distinção ainda mais exactamente, e formar três tipos, (1) os Livros Reconhecidos, (2) os Livros Disputados do Novo Testamento, como tendo sido depois geralmente recebidos, [e] (3) os Apócrifos do Antigo Testamento. Um terceiro partido desejava dar uma mera lista, como a de Cartago, sem nenhuma definição adicional da autoridade dos livros incluídos nela, de modo a deixar o assunto ainda aberto. Um quarto partido, influenciado por uma falsa interpretação das decretais papais anteriores, insistiu na ratificação de todos os livros do cânon ampliado como de autoridade igualmente divina. A primeira opinião depois se fundiu com a segunda, e a 8 de Março se confeccionaram três minutas compreendendo as três opiniões persistentes. Estas foram consideradas privadamente, e a 15 [de Março] a terceira foi aceite por uma maioria de vozes. O decreto no qual foi finalmente expressa foi publicado a 8 de Abril, e pela primeira vez a questão do conteúdo da Bíblia foi feito um artigo absoluto de fé e confirmado com um anátema.

Este decreto fatal, no qual o Concílio, acossado pelo medo aos críticos laicos e "gramáticos", deu um novo aspecto a toda a questão do cânon, foi ratificado por cinquenta e três prelados, entre os quais não havia nenhum alemão, nenhum estudioso distinguido por sua erudição histórica, nem um que fosse apto mediante especial estudo para o exame dum assunto no qual a verdade somente poderia ser determinada pela voz da antiguidade. Quão completamente oposta era a decisão ao espírito e à letra dos juízos originais das Igrejas grega e latina, quanto diferia na igualação doutrinal dos livros disputados e reconhecidos do Antigo Testamento com a opinião tradicional do Ocidente, quão absolutamente sem precedentes foi a conversão de um uso eclesiástico num artigo de fé..."

Brooke Foss Westcott, The Bible in the Church, 3rd Ed. London-Cambridge: Macmillan & co., 1870, p. 255-257.

Ao condenar poucos dias depois da morte de Martinho Lutero (ocorrida a 18 de Fevereiro de 1546) a doutrina da Sola Scriptura, os bispos de Trento acreditaram percorrer um caminho seguro. Adeririam à decisão de Cartago, a qual tinha sido enviada a Roma para sua corroboração, apesar de esta nunca ter ocorrido de maneira oficial. No entanto, mais tarde o papa Inocêncio I, numa carta de 405 dirigida ao bispo de Tolosa, Exupério, deu uma lista idêntica à de Cartago para o Antigo Testamento (ver # 96 em Enrique Denzinger, El Magisterio de la Iglesia. Manual de los Símbolos, Definiciones y Declaraciones de la Iglesia en Materia de Fe y Costumbres. Versión directa de los textos originales de Daniel Ruiz Bueno. Barcelona: Herder, 1955, p. 37). E algum tempo depois a mesma lista apareceu numa série de Decretais atribuídas variavelmente aos papas Dámaso (366-384), Gelásio (492-496) ou Hormisdas (514-523), que na realidade parecem ter sido fruto de uma compilação privada feita no século VI em algum lugar de Itália. Além disso, no Concílio de Florença (Bula Cantate Domino de 4 de Fevereiro de 1442, Denzinger #706) se tinha imposto a mesma lista aos cristãos jacobitas. Ao que parece, isto foi suficiente para os bispos tridentinos. Eis aqui a declaração de Trento sobre o cânon do Antigo Testamento:

Ora, [o sacrossanto, ecuménico e universal Concílio de Trento] acreditou ser seu dever escrever adjunto a este decreto um índice [o cânon] dos livros sagrados, para

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que a ninguém possa ocorrer dúvida sobre quais são os que pelo mesmo Concílio são recebidos. São os que a seguir se escrevem: do Antigo Testamento, 5 de Moisés; a saber: o Génesis, o Êxodo, o Levítico, os Números e o Deuteronómio; o de Josué, o dos Juízes, o de Rute, 4 dos Reis, 2 dos Paralipómenos, 2 de Esdras (dos quais o segundo se chama de Neemias), Tobias, Judite, Ester, Job, o Saltério de David, de 150 salmos, as Parábolas, o Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, a Sabedoria, o Eclesiástico, Isaías, Jeremias com Baruque, Ezequiel, Daniel, 12 Profetas menores, a saber: Oseias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias; 2 dos Macabeus: primeiro e segundo.

Denzinger #783-784; p. 223.

Para os não habituados, aclaro que os quatro de Reis são 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis; que Paralipómenos é outro nome de Crónicas, e que Parábolas se refere a Provérbios. O conjunto é muito parecido ao decidido em Cartago.

Porém havia um erro fatal. A decisão do III Concílio de Cartago sobre o cânon da Sagrada Escritura dizia o seguinte para o Antigo Testamento:

Can. 36 (ou 47). [Acordou-se] que, fora das Escrituras canónicas, nada se leia na Igreja sob o nome de Escrituras divinas. Ora, as Escrituras canónicas são: Génesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronómio, Jesus Navé [Josué], Juízes, Rute, quatro livros dos Reis, dois livros dos Paralipómenos, Job, Psaltério de David, cinco livros de Salomão (Provérbios, Eclesiastes, Cantares, Sabedoria, Eclesiástico), doze livros dos profetas, Isaías, Jeremias, Daniel, Ezequiel, Tobias, Judite, Ester, dois livros de Esdras, dois livros dos Macabeus.

Na transcrição desta decisão na obra de Denzinger (#92, p. 35) se omite a menção aos dois livros de Esdras. Isto é particularmente notável porque precisamente aí está a discrepância entre o cânon proclamado pelos bispos de Cartago e o sancionado pelos de Trento.

Com efeito, há que ter em conta que os bispos do norte de África usavam por aquela época a tradução da Septuaginta conhecida como a Antiga Latina, ou Ítala. E como naquele tempo os códices da Septuaginta incluíam outros livros além dos pertencentes ao cânon hebreu, não é estranho que os incluíssem entre os livros canónicos. No entanto, os dois livros de Esdras de que fala Cartago não são os mesmos a que se quis dar sanção canónica em Trento. Isto se explica por uma diferença entre as versões Antiga Latina e a Vulgata de Jerónimo.

Havia na realidade quatro livros atribuídos ao sacerdote e escriba Esdras. O autor católico Charles L. Souvay observa:

"Não pouca confusão surge dos títulos destes livros. Esdras A [= 1 Esdras] da Septuaginta é o 3 Esdras de São Jerónimo, enquanto que o Esdras B [= 2 Esdras] grego corresponde a 1 e 2 Esdras da Vulgata, os quais estavam originalmente unidos num livro. Os escritores protestantes, de acordo com a Bíblia de Genebra, chamam 1 e 2 Esdras da Vulgata respectivamente Esdras e Neemias, e 3 e 4 Esdras da Vulgata respectivamente 1 e 2 Esdras. Seria desejável contar com uma uniformidade de títulos."

s.v. Esdras (Ezra) em The Catholic Encyclopedia, vol 5, 1909.

Na Septuaginta cristã, como na Antiga Latina baseada nela que usava Agostinho e os africanos, 2 Esdras era o que hoje conhecemos como Esdras e Neemias. Por seu lado, 1 Esdras era um apócrifo que incluía algum material original sobre o retorno de Zorobabel juntamente com outro retirado principalmente de Crónicas e do Esdras canónico. Os cartaginenses admitiram este livro no seu cânon. Mas na Vulgata que conheciam os prelados de Trento, 1 e 2 Esdras correspondiam a

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Esdras e Neemias, enquanto o livro 1 Esdras de Cartago encontrava-se num apêndice da Vulgata como 3 Esdras (4 Esdras é o chamado Apocalipse de Esdras).

Em resumo, o Concílio de Trento na verdade deixou fora do seu Cânon um livro que tinha sido sancionado como canónico em Cartago. Devido a este erro, os cânones de Trento e de Cartago não são de facto iguais entre si no que ao Antigo Testamento diz respeito.

Há que acrescentar que além de invalidar o decidido em Cartago, em Trento se contradisse na verdade também o papa Inocêncio I (e quiçá outros) que tinha aderido à lista cartaginesa baseada na Antiga Latina.

Em 1615 o Arcebispo Anglicano de Cantebury proclamou uma lei que previa um castigo de um ano na prisão para qualquer pessoa que publicasse a Bíblia sem os sete livros deuterocanónicos, uma vez que a versão original da King James os tinha. "Foi decidido que nada seja lido na Igreja além das Escrituras divinas. As Escrituras canónicas são as seguintes: Génesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronómio, Josué...Tobite, Judite,... os dois livros de Macabeus, dois livros..." (Cânon N° 3).

Muito bem, mas não se trata de uma "definição infalível".

Os Trinta e Nove Artigos da Igreja de Inglaterra estabeleceram a posição oficial anglicana em relação aos livros apócrifos em 1563, nos seguintes termos: E os outros Livros (como disse Jerónimo) a Igreja os lê para exemplo de vida e instrução de costumes; mas não se dirige a eles para estabelecer doutrina alguma. (Artigo VI).

Irmão, imaginemos que um cristão somente tem o Evangelho de Marcos, lhe faltaria muito no seu conhecimento de Jesus Cristo, não saberia nada da sua infância, porque isto se encontra somente em Lucas e Mateus; nada do Pai Nosso (não está em Marcos), a parábola do filho pródigo, a boda de Caná, etc. Se um irmão tivesse somente uma folha da Bíblia, poderia pensar que sabe toda a revelação de Deus? Sem a Bíblia católica um irmão dificilmente saberia toda a revelação de Deus sobre:

-Os defuntos e o purgatório (2 Mac 12, 45; Sab 3, 5-6), sobre a alma (Sab 3,1),

-O bom uso do vinho (Eclo 31, 25-27),

-Maria, a mãe de Jesus (Jdt 13, 18-20),

-A intercessão dos Santos por nós (2 Mac 15,13-14)

E muitas outras coisas. Por que não pedir a Deus luz sobre este assunto importante?

Haveria que analisar cada um destes textos no seu contexto para ver se realmente apoiam o que se diz. De momento, simplesmente notarei que a maioria das coisas que se mencionam ora são ensinadas noutros textos, ora são doutrinas especificamente católicas, e daí o óbvio interesse em conservar estes livros dentro do cânon. Não se trata de se são inspirados ou não, mas se servem para

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ser usados como textos de prova para doutrinas que possuem escasso ou nulo apoio no cânon hebreu ou no Novo Testamento.

Que disse a Igreja primitiva? Entre os padres da Igreja

-Clemente cita Judite, Tobias e Ester. Na sua Carta aos Coríntios (27, 5). Cita Sab. 12, 12.

-Didaquê cita Eclo 4, 31 (em 4, 5) e Sab12, 5 (em 5, 2).

-Carta de Barnabé cita Sab 2, 12 (em 6, 7).

-Policarpo, na sua Carta aos Filipenses (10:2) cita Tobias 4, 10.

Também os sete livros "deuterocanónicos" ofereceram aos antigos artistas cristãos matéria para decorar as catacumbas.

É uma pena que não tenha explicitado as citações de Judite, Tobias e Ester. Parece-me que o autor confunde Clemente de Roma com o seu homónimo que viveu em Alexandria no século seguinte (não lhe importa, o fundamental é provar a própria tese). É verdade que Clemente de Roma reproduz o texto de Sabedoria 12:12 na sua carta aos coríntios (27:5), mas também é verdade que não introduz tal texto como se fosse Escritura.

Clemente, um dos vários bispos que por então havia em Roma, em finais do século I escreveu uma extensa carta aos coríntios. Demonstra conhecer muito bem tanto o Antigo Testamento como os escritos apostólicos. Cita os Evangelhos, as cartas de Paulo, de Pedro e de Tiago. Também Hebreus, epístola com a qual mostra grande afinidade. Do Antigo Testamento cita as três divisões, Lei, Profetas e Salmos, estes últimos com muita frequência. No entanto, não cita nenhum dos livros eclesiásticos embora umas poucas alusões indicam que conhecia a Sabedoria de Salomão (facto já mencionado). Eis aqui pois, um pastor romano do primeiro século que se distingue pelo seu conhecimento das Escrituras e que jamais cita os livros eclesiásticos (apócrifos, deuterocanónicos) como Escritura.

A Didaquê (4:5) não introduz Eclesiástico 4:31 como uma citação escritural. E do longo versículo 12:5 de Sabedoria, em 5:2 somente coincide (de novo sem citá-lo como Escritura) nas palavras "assassinos dos seus filhos".

A Epístola de Barnabé diz em 6:7 "Como, pois, havia o Senhor de manifestar-se e sofrer na carne, foi de antemão mostrada a sua paixão. Diz, com efeito, o profeta contra Israel: Ai da alma deles, pois tramaram desígnio mau contra si mesmos! Amarremos o justo, porque ele nos incomoda."

Por seu lado, Sabedoria 2:12 diz: "Armemos laços ao justo porque nos incomoda, e se opõe à nossa forma de actuar. Censura-nos as transgressões da Lei, acusa-nos de sermos infiéis à nossa educação."

No entanto, tanto Barnabé como Sabedoria parecem depender do muito canónico Isaías: "Ai deles, porque fazem o mal a si mesmos! Feliz o justo, porque tudo lhe vai bem! Com efeito, colherá o fruto do seu procedimento. Mas ai do ímpio, do homem mau! Porque será tratado de acordo com as suas obras." (Isaías 3:9-11, Bíblia de Jerusalém)

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Finalmente, Policarpo reproduz as palavras de Tobias 4:10, "a esmola livra da morte", mas novamente sem citá-las como Escritura.

É verdade, por outro lado, que outros escritores cristãos primitivos, como Clemente de Alexandria, foram mais amplos nas suas citações dos apócrifos. No entanto, virtualmente todos os Padres que se pronunciaram explicitamente sobre o cânon põem os apócrifos/deuterocanónicos num nível inferior ao do cânon hebreu, como livros "eclesiásticos", contrariamente ao que séculos mais tarde se decidiu em Trento.

Em resumo:

1. Se se necessitasse da autoridade infalível da Igreja Católica Romana para conhecer o cânon do Antigo Testamento, todo o cristão teria permanecido no erro ou pelo menos na incerteza até 1546.

2. Após algumas deliberações de uns poucos bispos, o Concílio de Trento condenou de facto os pontos de vista de Lutero sobre a suficiência da Escritura e sobre o cânon do Antigo Testamento (onde Lutero coincidia com São Jerónimo).

3. A posição oficial da Igreja Anglicana coincide com a de São Jerónimo e Lutero.

4. No Concílio de Trento fez-se do conteúdo preciso da Bíblia, pela primeira vez na história da Igreja, um artigo de fé obrigatório, sancionado com um anátema.

5. No entanto, por um grosseiro erro, o Cânon do Antigo Testamento sancionado em Trento deixou fora do cânon um livro (1 Esdras da Antiga Latina = 3 Esdras do Apêndice da Vulgata) que tinha sido declarado canónico pelo Concílio de Cartago e por vários papas.

6. Uma razão pela qual a Igreja Católica defende tão decididamente os apócrifos/deuterocanónicos é que crê achar neles apoio para algumas das suas doutrinas peculiares.

7. Outra razão é que se se admite a sua autoridade para decidir o cânon, forçosamente terá de admitir-se a sua autoridade noutros assuntos.

8. É verdade que os Padres Apostólicos conheciam os Apócrifos, mas não os citam como Escritura.

9. Outros foram mais amplos na prática, mas a maioria admitiu a distinção entre livros canónicos (os do cânon hebreu) e livros eclesiásticos, de valor mas não ao mesmo nível que aqueles.

Fernando D. SaravíMendoza-Argentina