O caranguejo verde
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Transcript of O caranguejo verde
Leituras Partilhadas
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GRUPO A
O CARANGUEJO VERDE
No grande mar azul, junto às grandes rochas roídas pelas ondas e
pelo vento, vivia um pequeno caranguejo verde. Gastava o dia a trepar
pelas muralhas de pedra, em correrias desengonçadas. De tão
desajeitado, todos troçavam dele.
Voavam as brancas gaivotas no ar e no seu voo liso, pareciam
preguiçosas bailarinas cansadas de dançar. Às vezes pousavam nas rochas
negras; o pequeno caranguejo ficava a olhá-las, enquanto penteavam as
longas penas finas, brancas, com a vaidade de quem se sente belo e
admirado. As penas velhas caíam sobre as pedras, mas mesmo essas
eram ainda tão leves e macias que o caranguejo verde, de casca dura,
rugosa sonhava ter um vestido assim lindo, leve, branco como uma
espuma, um vestido que o fizesse voar.
Então, em segredo, todas as noites, quando os bichos dormiam e
as próprias estrelas piscavam os olhos de sono, o pequeno caranguejo
saía da sua toca para apanhar as penas caídas. Tantas foi juntando, tantas
e tão belas, que o feio esconderijo de pedra mais parecia um ninho de
pássaros.
Já ninguém agora via o caranguejo trepar pelos rochedos,
arrastado e triste, pois o seu prazer era unir as penas, de forma a arranjar
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um vestido da mais fina penugem, com longas asas brancas como as das
gaivotas, para parecer uma delas.
— Que será feito do caranguejo verde? — perguntavam as algas.
— Nunca mais se viu... Terá fugido com vergonha de ser tão feio.
— respondiam os peixes, e as ondas brincalhonas ficavam a cantarolar:
Caranguejo
não te vejo
caranguejo
não te vejo.
O caranguejo fingia nada ouvir, continuando a trabalhar no seu
disfarce. Faltava-lhe só uma touca de penas.
Os polvos peganhentos e senhores de tantos braços, que viviam
também nas rochas, andavam intrigados, censurando entre si:
— Ora esta, ir-se embora sem avisar os vizinhos! Este caranguejo,
afinal, não presta para nada e ainda por cima é malcriado!
O caranguejo ria, ria sozinho ao escutar tais conversas, no seu
buraco, mascarado de gaivota.
Até que um dia, quando o sol ia bem alto no céu, com a cara
redonda e quente toda a faiscar labaredas, voltada para o negro castelo
de rochas, o caranguejo saiu, majestosamente, do esconderijo, branco
como um nenúfar, uma noiva, uma espuma, uma gaivota. O próprio sol se
ia deixando cair, de espanto, na praia. Pararam as ondas, com as cristas
erguidas. Os peixes ficaram com as bocas abertas. E o vento, mais
atrevido, soprou de mansinho, que era essa a sua maneira de
cumprimentar.
Com a saudação, o caranguejo, de tão leve, voou pelo ar,
ondejando lentamente, admirado e trémulo com a sua proeza. Quando
tornou a cair nas rochas já os polvos, os ouriços, os mexilhões, as algas
estavam atónitos, a admirá-lo e as próprias gaivotas vinham descendo
dos seus passeios pelas nuvens.
— Que belo! Que gentil! Que pássaro maravilhoso! —
exclamavam uns e outros.
— Que brancura! Que ligeireza! Que graça!
O pequeno caranguejo verde agradecia tanta simpatia, por baixo
do seu disfarce, sorrindo.
Assim começou para ele uma nova vida. Já não precisava de se
esconder pelos buracos, com vergonha do seu corpo atarracado, das suas
patas tortas, peludas, da boca enorme, a espumar, a espumar. As penas
tudo encobriam e, quando o vento soprava, abria devagar as asas,
deixava-se levar sem destino, fingindo que voava. Rodopiava por cima das
ondas, das praias desertas, viajava nos longos comboios de nuvens e um
dia tão longe foi parar que já nem o alto castelo de rochedos se avistava.
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Caía uma chuva triste, tão gelada que o caranguejo, de penas
encharcadas, resolveu refugiar-se nuns arbustos que salpicavam a areia.
Não fora ele o primeiro a ter essa ideia. Já pardais e borboletas,
zumbidoras abelhas aí se tinham acolhido e, espantados, receberam o
estranho animal.
— Também vens para a grande festa da bicharada?
— Qual festa?
Então um dos pardais contou:
— Há muito tempo que os bichos do mar e da terra andam em
grandes discussões. Todos pretendem ser os mais belos, os mais capazes,
os mais fortes, mais poderosos e amanhã, perante a bicharada aqui
reunida, cada um mostrará aquilo que vale.
Foi uma algazarra, aquela noite. Os bichos da terra surgiam. de
todos os cantos e o litoral ena crespava-se de vida marinha.
Ao romper da manhã, já passado o temporal, saiu o caranguejo do
seu arbusto e aproximou-se da beira-mar.
Andorinhas, com flores no bico, vinham enfeitar o areal e os
peixes do largo tinham trazido as mais lindas algas, que formavam jardins
fantásticos sob a transparência das águas.
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Nuno Boavida ����Mafalda Batalha ����Maria João Filipe | Mar 2010
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GRUPO B
Quando a orquestra das ondas começou a tocar, acompanhando o
canto dos rouxinóis, o sol avançou por trás do reposteiro das nuvens,
falando assim:
— Animais aqui reunidos, chegou o tempo de decidir se são
melhores os bichos da terra ou do mar. É favor apresentarem-se os
concorrentes.
Ergueu-se pesadamente o elefante que, depois de dar os bons
dias, estendendo a grande tromba, abanando as orelhas, disse:
— Devo ser eu o rei da criação, pois sou o mais forte animal da
terra.
Mas logo a baleia, erguendo um repuxo de água a muitos metros
de altura em sinal de protesto, reclamou:
— Cabe-me a mim esse lugar, pois animal maior ou mais forte que
eu não existe.
Então o sol ordenou:
— Aproximem-se e meçam as vossas forças.
Mas nem a baleia podia avançar até à praia, sob perigo de
encalhar, nem o elefante se arriscava a perder o pé entre as ondas.
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— Como não podem mostrar o que valem, dou por encerrada a
primeira parte do concurso. Veremos agora qual o mais ágil e Iadino.
Saltou o veado de trás duma moita, escavando a terra com as suas
finas patas nervosas e propôs:
— Bata-me algum peixe nas minhas correrias, se for capaz.
— Experimente o veado ultrapassar-me a nadar — disse o salmão.
Mas nem o veado se atreveu a molhar os cascos, nem o salmão a
pôr as barbatanas em terra.
— Passemos a novas propostas — ordenou o sol.
— Não há quem voe mais alto que eu — ex clamou a águia real
— Quem muito sobe, muito desce. Serás tu capaz de pousar nas
profundezas do oceano? — perguntou o linguado.
Calou-se a águia e, mais uma vez, teve o sol de suspender o
concurso.
Avançou então o pavão, com a cauda aberta em leque, pintado
das mais lindas cores e, vaidoso, indagou:
— Não serei o mais belo animal do mundo? Haverá no mar um
bicho assim?
Logo avançou um peixe tropical, riscado como um arco-íris
fluorescente.
Gritavam os peixes:
— É este o mais belo!
E os bichos da terra:
— É o pavão!
— Aproximem-se um do outro — mandou o sol.
Como, porém?
Estava o caranguejo verde de boca aberta com o que via, quando
o macaco pulou, chiando:
— Onde se encontrará animal que trepe melhor que eu?
— Trepa o polvo, ora essa — respondeu o carapau. — Tu tens
quatro patas, ele tem oito, todas cheias de ventosas, que se prendem às
rochas com tanta força que ninguém o consegue arrancar. Serás tu capaz
de subir pelos rochedos quando as ondas batem de todos os lados e os
remoinhos puxam os bichos para o fundo do mar?
Calou-se o macaco e o próprio polvo se encolheu, pensando que o
sol o iria fazer subir às palmeiras.
— Parece-me que também estes concorrentes não podem medir
forças, pois o macaco da água tem medo e o polvo nem pode ouvir falar
em florestas. Os bichos do mar e da terra não se podem comparar, pois
os que num lado são bons, no outro não valem nada.
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Então o pequeno caranguejo verde, envergonhado, levantou-se do
seu lugar, murmurando:
— Mas eu consigo fazer o que mais ninguém consegue. Tanto
ando em terra como ando no mar.
— Tu?! — exclamaram todos. — Um pássaro...
— Não sou pássaro, mas caranguejo — e, dizendo isto, deitou fora
o branco vestido de penas, avançou pela areia, meteu-se pelo mar. Ao
voltar à praia trazia a casca luzidia, tão verde, brilhante que, ao sol,
faiscava como uma esmeralda.
— Não serei o mais lindo, mas a minha beleza pode comparar-se
com a de qualquer bicho. Não serei o mais ligeiro, mas corro em qualquer
par- te. Não serei o melhor trepador, mas trepo pelo que encontrar à
minha frente, ou nas minhas costas, pois a andar para trás é que ninguém
me vence. O mais forte também não serei, mas se me vierem atacar em
terra, fujo para o mar, e se no mar alguém me quiser mal, em terreno
firme não me apanhará. Em qualquer buraco ao ar me enfio, e por baixo
da própria areia tão tapadinho me escondo que ninguém será capaz de
me encontrar. Serei eu, afinal, o melhor bicho do mundo?
O sol ria à gargalhada ao ver o espanto da bicharada.
— Mas és feio... — dizia o pavão.
— E fraco. — lembrava a baleia.
— Andas para trás em vez de correres para a frente — continuava
o veado.
— Que desajeitado a trepar! — troçava o macaco.
— Mas, bem ou mal, faço tudo em qualquer parte. Sempre valho
mais que vocês.
— Assim é — concordou o sol. — E à falta de quem tudo faça
melhor do que tu, pequeno bicho do mar e da terra, te considero o rei
dos animais.
Recuando, recuando sempre, com a feia boca verde a espumar de
contentamento, o caranguejo agradecia, confuso, ainda mal acreditando
no que acabava de acontecer. Redondo, duro, lustroso como um seixo da
praia, raspando com as tortas patas peludas os grãos de areia, ele olhava
o seu disfarce de pássaro caído no chão, tão branco, tão leve, tão fino
como um nenúfar, uma noiva, uma gaivota.
Nuno Boavida ����Mafalda Batalha ����Maria João Filipe | Mar 2010