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Não me lembro de ter dado um grande abraço em meu vô materno. Houve sempre uma dificuldade de lidar com o carinho físico em nossa relação. Isso não ocorria entre ele e minha irmã ou, mesmo, entre ele e uma desconhecida qualquer. O problema, se é que havia um problema, era entre ele e eu. De qual- quer modo, a importância deste vô, muito se relacio- nou com suas “lições” sobre o amor. Fui seu segundo neto, mas apenas nos últimos seis anos, quando trabalhei como seu motorista, nos tornamos confidentes. O trabalho era propício para isto, o rádio do carro nunca era ligado e quase sem- pre ficávamos horas no trânsito, o que nos levava a conversar muito. Conversávamos sobre vários assun- tos: minha experiência na faculdade de filosofia, an- tigos e novos professores, alguns livros de meu inte- resse, artigos que ele escrevera, política, nossa famí- lia e, principalmente, sobre as mulheres. Na maioria das vezes que conversávamos sobre o amor, eu me comportava como um idiota que sem- pre está com a razão, especialmente, quando a mi- nha posição era a contrária da dele. Se ele gostava tanto de ser o socialista e revolucionário Florestan, não me restava opção, a não ser representar o ro- mântico, o sonhador, o apaixonado Eusébio. Não que ele não fosse um pouco de Eusébio também, tal- vez até fosse mais do que eu, mas ele era meu vô e concordou com a minha brincadeira. Seu discurso baseava-se na família, na amizade, na segurança e na serenidade. E estas deveriam ser a base para todas as relações afetivas. Ele contava sua própria história como se fosse o exemplo natural de quem sempre procurou alcançar uma estabilidade e, portanto, ser feliz. Por outro lado, as relações afetivas deveriam divi- dir espaço com o trabalho e as responsabilidades so- ciais. Guiar a própria vida de acordo com uma pai- xão seria uma fraqueza de caráter. Dualista convic- to, ele acreditava que as paixões, ainda que fossem inevitáveis, deveriam ser curadas. Não sei ao certo se era exatamente isso o que ele pensava, mas para mim, este era o meu vô que en- frentava o trânsito comigo. E, para desgosto dele, eu era um neto que se apaixonava com muito mais fre- qüência do que mergulhava nos livros (meu trabalho). Tínhamos, portanto, um problema para ser resol- vido: um neto pouco trabalhador e com uma grande tendência para ser infeliz. De qualquer maneira, fui eu que inventei a brincadeira, fui eu que pedi seus conselhos e sua ajuda mas é claro que isto fatalmen- te nos levava ao confronto de posições. Eu poderia falar inúmeros ‘causos’ relacionados com nossas conversas, histórias muito bonitas que ele contava para ilustrar sua posição, ou as atitudes dele para me proteger das minhas paixões. Quase sempre eu conseguia convencê-lo do encanto de minhas mu- lheres impossíveis. Uma vez, tentei assumir o projeto de ter uma única mulher, uma forte candidata a es- posa. Eu fiz exatamente como imaginava ser um rela- cionamento estável para ele. Fui um fracasso. Ele me ajudou a entender os ganhos desta experiência. Aos poucos, já não havia disputa em nossas conversas, nós nos misturamos em nossas histórias. E assim foi durante seis anos, eu adorava contar sobre meus amores, e ele parecia me ouvir com mui- to entusiasmo. Levava a sério tudo o que eu contava, mas sempre procurava mostrar que nada seria defi- nitivo no amor. Quando ele morreu, soube que ha- via perdido um grande companheiro, alguém que sa- bia me confortar. No último dia em que o vi, num quarto de hospi- tal, ele tinha os braços amarrados e canos por toda parte do corpo seminu. Não podia conversar, nem olhar para mim. Eu não pude fazer nada, a não ser um cafuné em sua cabeça. Ele ficou muito agitado e, com gestos, indicou que gostaria de ser desamarra- do; uma enfermeira fez o que ele pediu para que ele mostrasse onde doía; com os braços soltos, ele se acalmou e acarinhou suas mãos. Paulo Henrique Fernandes Silveira, neto de Florestan Fernandes O CARINHO DAS PALAVRAS A Associação dos Docentes da USP e a Comissão Editorial da Revista Adusp agradecem à família do professor Florestan Fernandes e ao seu amigo e colaborador direto Vladimir Sacchetta, sem os quais não teria sido possível a realização desta edição especial.

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Não me lembro de ter dado um grande abraçoem meu vô materno. Houve sempre uma dificuldadede lidar com o carinho físico em nossa relação. Issonão ocorria entre ele e minha irmã ou, mesmo, entreele e uma desconhecida qualquer. O problema, se éque havia um problema, era entre ele e eu. De qual-quer modo, a importância deste vô, muito se relacio-nou com suas “lições” sobre o amor.

Fui seu segundo neto, mas apenas nos últimosseis anos, quando trabalhei como seu motorista, nostornamos confidentes. O trabalho era propício paraisto, o rádio do carro nunca era ligado e quase sem-pre ficávamos horas no trânsito, o que nos levava aconversar muito. Conversávamos sobre vários assun-tos: minha experiência na faculdade de filosofia, an-tigos e novos professores, alguns livros de meu inte-resse, artigos que ele escrevera, política, nossa famí-lia e, principalmente, sobre as mulheres.

Na maioria das vezes que conversávamos sobre oamor, eu me comportava como um idiota que sem-pre está com a razão, especialmente, quando a mi-nha posição era a contrária da dele. Se ele gostavatanto de ser o socialista e revolucionário Florestan,não me restava opção, a não ser representar o ro-mântico, o sonhador, o apaixonado Eusébio. Nãoque ele não fosse um pouco de Eusébio também, tal-vez até fosse mais do que eu, mas ele era meu vô econcordou com a minha brincadeira.

Seu discurso baseava-se na família, na amizade,na segurança e na serenidade. E estas deveriam ser abase para todas as relações afetivas. Ele contava suaprópria história como se fosse o exemplo natural dequem sempre procurou alcançar uma estabilidade e,portanto, ser feliz.

Por outro lado, as relações afetivas deveriam divi-dir espaço com o trabalho e as responsabilidades so-ciais. Guiar a própria vida de acordo com uma pai-xão seria uma fraqueza de caráter. Dualista convic-to, ele acreditava que as paixões, ainda que fosseminevitáveis, deveriam ser curadas.

Não sei ao certo se era exatamente isso o que elepensava, mas para mim, este era o meu vô que en-frentava o trânsito comigo. E, para desgosto dele, euera um neto que se apaixonava com muito mais fre-qüência do que mergulhava nos livros (meu trabalho).

Tínhamos, portanto, um problema para ser resol-vido: um neto pouco trabalhador e com uma grandetendência para ser infeliz. De qualquer maneira, fuieu que inventei a brincadeira, fui eu que pedi seusconselhos e sua ajuda mas é claro que isto fatalmen-te nos levava ao confronto de posições.

Eu poderia falar inúmeros ‘causos’ relacionadoscom nossas conversas, histórias muito bonitas que elecontava para ilustrar sua posição, ou as atitudes delepara me proteger das minhas paixões. Quase sempreeu conseguia convencê-lo do encanto de minhas mu-lheres impossíveis. Uma vez, tentei assumir o projetode ter uma única mulher, uma forte candidata a es-posa. Eu fiz exatamente como imaginava ser um rela-cionamento estável para ele. Fui um fracasso. Ele meajudou a entender os ganhos desta experiência. Aospoucos, já não havia disputa em nossas conversas,nós nos misturamos em nossas histórias.

E assim foi durante seis anos, eu adorava contarsobre meus amores, e ele parecia me ouvir com mui-to entusiasmo. Levava a sério tudo o que eu contava,mas sempre procurava mostrar que nada seria defi-nitivo no amor. Quando ele morreu, soube que ha-via perdido um grande companheiro, alguém que sa-bia me confortar.

No último dia em que o vi, num quarto de hospi-tal, ele tinha os braços amarrados e canos por todaparte do corpo seminu. Não podia conversar, nemolhar para mim. Eu não pude fazer nada, a não serum cafuné em sua cabeça. Ele ficou muito agitado e,com gestos, indicou que gostaria de ser desamarra-do; uma enfermeira fez o que ele pediu para que elemostrasse onde doía; com os braços soltos, ele seacalmou e acarinhou suas mãos.Paulo Henrique Fernandes Silveira, neto de Florestan Fernandes

O CARINHO DAS PALAVRAS

A Associação dos Docentes da USP e a Comissão Editorial da Revista Adusp agradecem à família doprofessor Florestan Fernandes e ao seu amigo e colaborador direto Vladimir Sacchetta, sem os quais

não teria sido possível a realização desta edição especial.

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APRESENTAÇÃO

OBrasil acaba de perder o seu intelectual mais identificado comos problemas sociais dos trabalhadores, socialista convicto emilitante ativo da causa dos deserdados. Tudo o que se pode

enaltecer de seu trabalho , de sua produção acadêmica ecientífica e de suas memoráveis lutas políticas é muito pouco. Foi-se o

homem, ficou a fama, como nos versos da canção popular. Somando-seàs justas homenagens que estão ocorrendo em todo o país, a Associação

dos Docentes da Universidade de São Paulo procurou reunir nestaedição especial de sua revista um pouco do trabalho de Florestan e a dor

de sua perda. Desde a sua fundação, em 1976, a Adusp sempre contoucom o apoio efetivo do sociólogo que, naquela data, ainda amargando as

durezas de sua cassação política, não deixava de batalhar pelaorganização dos docentes numa entidade que viesse a defendê-los em

suas mais justas reivindicações.Após a anistia, conquistada pelas forças democráticas do país, em 1979,Florestan retorna às aulas para dedicar-se com mais ênfase ao trabalho

de que tanto gostava: ensinar. Sem se descuidar de suas atividadesacadêmicas, ele irá se juntar ao esforço notável de várias lideranças

sindicais e políticas combativas, que iriam contribuir para a fundação doPartido dos Trabalhadores, ao qual veio se associar mais tarde. Comoprofessor, pesquisador e, a partir de l987, deputado federal pelo PT,

Florestan foi um exemplo de brasileiro, que enchia de orgulho as novasgerações de universitários e de trabalhadores, que o prestigiavam com o

seu voto e a admiração pela sua coerência de idéias. Sem dispor de uma equipe numerosa, mas motivada pelo desafio, a

RReevviissttaa Adusp saiu a campo e, com a ajuda de amigos e admiradores deFlorestan, conseguiu reunir aqui um conjunto de matérias que reflete um

pouco o perfil do homenageado. É um trabalho que se soma a váriosoutros que estão sendo editados, procurando dar o merecido brilho que

Florestan Fernandes soube conquistar. Que o seu exemplo possacontribuir tanto para a melhoria das condições do trabalho acadêmico,como, também, para o resgate da cidadania dos milhões de deserdados

deste país tão rico e tão desigual.

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DIRETORIAMarco A. Brinati, Osvaldo Coggiola, Jair Borin, Heloísa D. Borsari, Valéria De Marco,

Primavera Borelli, José Nivaldo Garcia, Antonio César Fagundes,José Marcelino Rezende Pinto, Ozíride Manzolli Neto.

Comissão EditorialAdilson O. Citelli, Bernardo Kucinski, Fernando Leite Perrone,

Francisco Gorgônio da Nóbrega, Khaled Goubar, Lígia M. Marcondes Machado, Nilza Nunes da Silva e Zilda M. Gricoli Iokoi.

Editor: Marcos Luiz Cripa vdEditoração eletrônica: Maria Cristina Waligora e Luís Ricardo Câmara.

Capa: Doriana Madeira/Argeu GodoyFoto da capa: Éder Luis Medeiros/Folha Imagem

Foto da pág. 4: Daniel R. GarciaProjeto Gráfico: Dmag - Artes Gráficas

Revisão: Francisco JoséMendonça CoutoSecretaria: Alexandra Moretti Carillo e Rogério Yamamoto.

Distribuição: Marcelo Chaves e Walter dos Anjos.Fotolitos: Paper Express

Gráfica: Bandeirante

Tiragem: 5.000 exemplares

Adusp - S. Sind.Av. Prof. Luciano Gualberto, trav. J, 374

Cidade Universitária - São Paulo - SPCEP 05508-900

Telefones: (011) 813-5573/818-4465/818-4466Fax: (011) 814-1715

A RReevviissttaa Adusp é uma publicação trimestral da Associação dos Docentes da Universidadede São Paulo - S. Sind., destinada aos associados. Os artigos assinados não refletem,necessariamente, o pensamento da diretoria da entidade e são de responsabilidade dosautores. Contribuições serão aceitas desde que os textos inéditos sejam entregues emdisquete e tenham no mínimo dez mil e no máximo vinte mil caracteres. Os artigos serãoavaliados pela Comissão Editorial, que decidirá sobre seu aproveitamento.

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ÍÍNNDDIICCEE8

UUNNIIVVEERRSSIIDDAADDEE EE TTAALLEENNTTOOFlorestan Fernandes

12RREEFFLLEEXXÕÕEESS SSOOBBRREE OO SSOOCCIIAALLIISSMMOO EE

AA AAUUTTOO--EEMMAANNCCIIPPAAÇÇÃÃOO DDOOSS TTRRAABBAALLHHAADDOORREESSFlorestan Fernandes

19DDIITTAADDUURRAA MMIILLIITTAARR

PPRROOFFEESSSSOORREESS PPUUNNIIDDOOSS PPEELLAA CCOONNGGRREEGGAAÇÇÃÃOOFlorestan Fernandes

20OOBBRRAA

(organizada por Vladimir Sacchetta)

22EEnnttrreevviissttaa

FFLLOORREESSTTAANN FFEERRNNAANNDDEESS JJRR.. EE HHEELLOOÍÍSSAA RR.. FFEERRNNAANNDDEESS

28PPAARRAA SSAAUUDDAARR UUMM GGRRAANNDDEE HHOOMMEEMM

Antonio Candido

30AADDEEUUSS

Miriam Limoeiro Cardoso

32CCOONNFFLLUUÊÊNNCCIIAASS EE CCOONNTTRRAAÇÇÕÕEESSDDAA CCOONNSSTTRRUUÇÇÃÃOO SSOOCCIIOOLLÓÓGGIICCAA

Jacob Gorender

34FFLLOORREESSTTAANN FFEERRNNAANNDDEESS EE OO SSOOCCIIAALLIISSMMOO

Osvaldo Coggiola

39ÁÁLLBBUUMM

42HHOOMMEENNAAGGEENNSS

Frei Betto e José de Souza Martins

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RReevviissttaa Adusp

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UNIVERSIDADE E TALENTO

Educa

ção

Neste artigo, redigido no ano passado, Florestan Fernandes analisa a crise da educação no Brasil. Para ele, nunca existiu uma política educacional que atendesseaos interesses dos mais necessitados. O Estado não priorizou e não prioriza o ensino

gratuito e a pesquisa. Quanto à USP, Florestan lamenta que ela tenha conferido àantiga Faculdade de Pedagogia e à Licenciatura o segundo plano, não assumindo

sua vocação de formadora do quadro docente.

Claudomiro Teodoro/Folha Imagem

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Auniversidade en-frenta uma crise dealcance mundial. Jáescrevi sobre o as-sunto, que, aliás,preocupa muitos

estudiosos. A situação brasileiraé peculiar, porque atravessamosrápido demais a transição do ca-pitalismo competitivo para o ca-pitalismo oligopolista; e este sealterou em seus dinamismos eco-nômicos e culturais antes que ti-véssemos nos adaptado ao mode-lo anterior. Toda umainfra-estrutura, mon-tada principalmenteàs custas do poder po-lítico, foi obsoletizadanas duas transforma-ções sucessivas. E ogrande beneficiáriodos investimentos pú-blicos e do processode acumulação “pri-mitiva”, a firma gigan-te estrangeira, agoraexige um marco zerocomo novo ponto departida, com a privati-zação das estruturascriadas pelo interven-cionismo estatal, sobas bandeiras contradi-tórias do “nacionalis-mo econômico” e da“modernização” com vistas à “in-corporação no primeiro mundo”.Poucos países erraram tanto emsuas políticas econômicas e de-vastaram maior soma de recursosmateriais e humanos no altar do“desenvolvimento econômico”,primeiro, e da “aceleração do de-senvolvimento econômico”, de-pois. Mas não aprendemos a li-ção. A ilusão continua de pé e ogoverno, juntamente com as eli-tes no poder das classes domi-nantes, barafustou pela última al-ternativa, certos que as contasnão sairão de seus bolsos, masdos cofres públicos.

Isso quer dizer que as chama-das “políticas educacionais” dasvárias repúblicas deste séculonunca existiram. Se elas tivessem

realidade, o Estado daria, forço-samente, prioridade, no ensinogratuito e de qualidade em todosos graus, à pesquisa básica em to-dos os ramos do saber, à pesquisacientífica aplicada e à invençãotecnológica original, para evitarexatamente o que aconteceu - oque fizeram os Estados Unidos, aAlemanha e o Japão. A autono-mia da produção do saber e dopensamento inventivo represen-tam os alvos essenciais de umaNação que pretenda crescer e di-

ferenciar-se através do capitalis-mo. Este possui duas faces distin-tas. Ao lado de uma interdepen-dência inevitável, coexistem, noplano internacional, os países ca-pitalistas hegemônicos, cuja ex-pansão é relativamente auto-sus-tentada, e os países de origemcolonial ou não, cujo crescimentoé neocolonial, dependentes ouassociados, os quais transferempara o exterior parcelas variáveisdo excedente econômico, pilha-das através das técnicas econômi-cas, culturais e políticas do impe-rialismo. Quanto maior for a re-lação entre o excedente econômi-co gerado e as alíquotas apro-priadas pelas nações capitalistashegemônicas, maior será a ten-dência dos países explorados em

combinar alta concentração dariqueza, da cultura e de podernas mãos de minorias privilegia-das e a crescente concentraçãode miséria, de ignorância e de su-balternização nas inúmeras maio-rias dos de baixo. As classes so-ciais funcionam como bombas desucção: os que mandam reprodu-zem com maior dureza os proces-sos de expoliação aplicados pelasnações capitalistas centrais (oque levou alguns autores a usar oconceito de “colonialismo inter-

no”, pouco precisopor ocultar as mani-festações efetivas daluta de classes e dadominação imperialis-ta). Em conseqüência,o que sobra do exce-dente econômico vaipredominantementepara as funções deacumulação de capitaldo Estado. Destinam-se recursos mínimospara as demais fun-ções, vinculadas àeducação escolar, aosserviços de saúde e deassistência social oude habitação etc. Nãosão as escolas quebarram e expulsam ospobres da seleção po-

sitiva. É a estrutura de classes so-ciais que impede qualquer formade distribuição das oportunida-des educacionais entre todas asclasses, marginalizando as classessubalternas da participação edu-cacional, cultural e política“eqüitativa”e “democrática”.

Uma “política educacional”,aberta para a formação e o penei-ramento do talento, compreendea pré-escola e os demais graus deensino. E deve ser, necessaria-mente, seletiva a nível vocacional.A crítica corrente, sobre o “elitis-mo”, pressupõe equívocos circu-lares. Ela envolve um lapso con-tra-ideológico, que contém efeitoboomerang. O nosso ensino, espe-cialmente no segundo grau, masde modo particular na graduação

Outubro 1995RReevviissttaa Adusp

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As chamadas “políticas educacionais” das

várias repúblicas deste século nunca

existiram. Se elas tivessem realidade, o

Estado daria, forçosamente, prioridade, no

ensino gratuito e de qualidade em todos os

graus, à pesquisa básica em todos os ramos

do saber, à pesquisa científica aplicada e à

invenção tecnológica original.

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e pós-graduação, não é elitista -constitui um monopólio das elitesdas classes dominantes. A altaqualidade do ensino interessa aossetores das classes sociais dosdois níveis inferiores, trabalhado-ras ou médias. A antiga concep-ção da educação escolar comoum ascensor social, apesar de in-sustentável, continha aí o seugrão de congruência com o regi-me de classes e o carátercompetitivo da sociedadecapitalista. Em certas con-dições históricas, ela cor-responde às exigências edu-cacionais e psicoculturaisda mobilidade social.Quando foi fundada, a Fa-culdade de Filosofia, Ciên-cias e Letras respondia auma ideologia “oficial” daselites no poder, de buscarmeios de ampliação e reno-vação através de “sanguenovo”. Vilfredo Pareto eoutros cientistas sociaisanalisaram esse processo,que surge imperativamentequando as elites das classesdominantes “envelhecem”e “declinam” ou em cir-cunstâncias especiais, nasquais após uma prolongadaexclusão voltam para o in-terior da classe dominante(ou estamento; ou casta) aúnica viabilidade da “reno-vação das elites” (o quetambém pode ocorrer co-mo efeito de invasões ou daimigração). A licenciaturasurgiu nesse contexto, que lhe foifavorável, porque houve extensapassagem de professores de se-gundo grau e de escolas normaispara o ensino superior, patrocina-do e amparado pelo poder públi-co estadual. A experiência, a ma-turidade e por vezes a vocaçãodesses professores asseguraramum corpo estudantil sofisticado,crítico e ansioso por encontrar al-guma via de sair da rotina e deconseguir o ensejo de lançarem-se em outra linha de competiçãoprofissional.

A programação do curso dedidática subordinou-se ao objeti-vo de formar professores comcomprovado nível de profissiona-lização. Por isso, a escolha dasmatérias e os conteúdos dos cur-sos foram mais teóricos do quepráticos. Professores ideais paraalunos ideais de uma escola ideal.Esse nexo sustentou os resultadospositivos alcançados e, ao mesmo

tempo, alimentou a fonte dos ma-logros ocidentais que se segui-ram. Nas três primeiras décadas,os professores licenciados pos-suíam uma reserva de mercado eo professor de segundo grau e deescola normal desfrutava de pres-tígio social que o situava aproxi-madamente (embora de maneiranebulosa) nas cercanias do profis-sional liberal. Além disso, o pro-fessor conseguia um salário quepermitia sustentar as aparências euma tradição estamental o prote-gia de quedas abruptas e constan-

tes de avaliação. Acresce quemuitos lograram manter-se nauniversidade, como assistentes eprofessores contratados ou cate-dráticos. Era uma minoria que seamparava em status próprio, quea punha em um nível de reputa-ção social equivalente ao top dosprofissionais liberais mais consi-derados. No planejamento global,nunca se tentou um teste precoce

do “produto real” da licen-ciatura. Os professores maisatilados ou corajosos sa-biam que deviam fazeradaptações pedagógicas sé-rias, em benefício dos estu-dantes e de suas futuras ta-refas como professores. Po-rém, o Frankenstein teóricoe prático permaneceu, semmodificações pedagógicasestruturais e dinâmicas, pormuito tempo.

Enquanto isso, a socie-dade inclusiva alterou-se e oobjetivo de formar professo-res sofreu diversos desloca-mentos e outras tantas de-formações correspondentes.O próprio professor de se-gundo grau enfrentou umprocesso de desnivelamentopersistente, perdendo pres-tígio, renda e condições deauto-realização pedagógicapropícias. Em suma, a “car-reira de professor” perdeusuas lantejoulas, tornando-se pouco atrativa: só a voca-ção ou um grau profundode curiosidade pela sociali-

zação dos adolescentes garantiamuma procura oscilante. Paralela-mente, a ênfase (que começa coma ditadura militar mas aumentouprogressivamente, pela incorpora-ção do Brasil na economia oligo-polista mundial) foi posta na for-mação de massas de estudantesdos cursos técnicos e da gradua-ção e pós-graduação, nas quais sedifundiu a ambição do “profissio-nal para a iniciativa privada”. A li-cenciatura perdia sentido paraduas categorias importantes dealunos: os que pretendiam “seguir

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A “carreira de professor”

perdeu suas lantejoulas,

tornando-se pouco atrativa: só

a vocação ou um grau

profundo de curiosidade pela

socialização dos adolescentes

garantiam uma procura

oscilante.

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a carreira universitária”; e os quebuscavam os melhores saláriosnos melhores empregos, fazendoa conexão entre “empresa e uni-versidade” ao nível profissional.

Essas alterações teriam deafetar o número de candidatos àlicenciatura e o grau de atraçãopela imaginação pedagógica. Épreciso que se reconheça objeti-vamente: isso não acarretavauma natural deterioração da li-cenciatura. Ao contrário, punhaem questão a sua especificidadee o modelo de realizá-la. Quan-do saí da USP a situa-ção estava nesse pé enão tive ocasião de iralém das reflexões ali-nhadas acima. Desco-bri que a Faculdade deEducação encetou umaevolução que não seprevia, muito instigan-te e produtiva. E que,dentro dos altos e bai-xos dos obstáculos quea USP ergue à renova-ção fora e acima decertos campos de ensi-no e investigação, elase equipou para darum sentido mais pro-vocativo à formação doprofessor. Daí a preo-cupação que orientou aescolha do tema desteartigo. O talento conta como oalfa e o ômega das funções cru-ciais da universidade. E cabe aosprofessores conclamar o corpocoletivo da instituição em quetrabalham para essa função. Nãoporque o número de professoresformados seja pequeno. Masporque o talento permeia ou é onervo vital da existência de umamatéria-prima (perdõem-me a li-berdade) que valha a pena, o es-tudante, de uma universidadecom força criadora e de uma so-ciedade com condições para for-jar a sua autonomia cultural, ba-se do seu desenvolvimento eco-nômico relativamente auto-sus-tentado, da revolução cultural eda revolução democrática.

O maior erro que ocorreu naUSP foi o de conferir à antigaFaculdade de Pedagogia e à li-cenciatura o segundo plano, decompanheiros de viagem de ter-ceira qualidade. Desde o início,a Pedagogia deveria, pelo me-nos, ter uma preeminência à Fi-losofia. Trazer bons professoresdo exterior e fomentar a sua in-fluência interna segundo ritmosintensos. E difundir representa-ções que expusessem a pedago-gia como o eixo das esperanças,que movia a USP e a Faculdade

de Filosofia, Ciências e Letras.Correlatamente, os alunos quese destinavam à licenciatura epretendiam devotar-se ao ensi-no deviam aprender que abraça-vam uma vocação complexa efundamental. Cabia aos profes-sores do curso de pedagogia eda licenciatura ou do curso defilosofia assinalar a importâncianuclear do talento virgem e doseu polimento na universidade.A tarefa ficou, por algum tem-po, nas mãos de sociólogos e es-fumou-se, como se a Nação deorigem colonial e dependentenão devesse bater-se pela sele-ção e aproveitamento dos talen-tos, de todas as magnitudes,com os olhos voltados para den-

tro e para baixo. A universidadecondenou-se a subsistir comoprisioneira das elites das classesdominantes e não percebeu quedependia dos professores paraassociar a imaginação pedagógi-ca a um novo estilo de cultivar eestimular os talentos para ativi-dades que transcendiam aos “in-teresses empresariais” e ao“crescimento econômico”.

Uma “política educacional”pioneira e transformadora devecentrar-se na associação recí-proca da atividade docente críti-

ca e do despertar dotalento inconformis-ta. O que se preten-de? Integrar o jo-vem à estrutura e aofuncionamento domaquinismo ou daempresa? Ou con-duzir a Nação emer-gente em sua auto-emancipação coleti-va? A imaginaçãopedagógica nutre-sede conhecimentosteóricos e de proce-dimentos práticosque agitam a orga-nização e os conteú-dos da personalida-de. Ela não pode serexcluída das corren-tes culturais, sociais

e políticas que mudam dia-a-diao porvir do Brasil. No ponto ze-ro, pretendeu-se que a universi-dade fosse a serva dos podero-sos e de seus privilégios. Hoje, oque se quer é que a universida-de contribua para a libertaçãodos oprimidos e que promova,entre os de baixo, uma forte as-piração de combater o embrute-cimento, de promover a desalie-nação e desvendar o seu talentopara si, para a sua classe e paraa coletividade. O talento comodetonador social? E ele valeráalguma coisa, em si e por si, senão escapar à rotina, ao estran-gulamento da profissão comoum fim exclusivo, à tirania daordem?

Outubro 1995RReevviissttaa Adusp

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O maior erro que ocorreu na USP foi o de

conferir à antiga Faculdade de Pedagogia e

à licenciatura o segundo plano, de

companheiros de viagem de terceira

qualidade. Desde o início, a Pedagogia

deveria, pelo menos, ter uma preeminência

à Filosofia. Trazer bons professores do

exterior e fomentar a sua influência interna

segundo ritmos intensos.

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REFLEXÕES SOBRE O SOCIALISMO E

A AUTO-EMANCIPAÇÃO DOS TRABALHADORES

Soc

ialism

o

Em 1991, ainda investido do mandatode deputado federal, Florestan Fernandes

fez palestra no Sindicato dosMetalúrgicos, em São Bernardo do

Campo, para o seu público preferido: ostrabalhadores. Durante duas horas e

meia, ele debateu com os metalúrgicos aquestão das vias para a emancipaçãosocial da classe operária. Ao longo deseus dois mandatos como deputadofederal, Florestan procurou manterpermanentemente contato com ostrabalhadores, não se limitando àsdiscussões de caráter legislativo. A

RReevviissttaa Adusp reproduz, pela primeiravez na íntegra, a intervenção inicial doprofessor Florestan Fernandes. O texto

completo, inclusive o debate, serápublicado este ano no livro Em busca do

socialismo, pela Editora Xamã.

Luiz Carlos Murauskas/Folha Imagem

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Existe uma crise profunda em toda a ci-vilização ocidental. Seria algo estranhoque essa crise não se refletisse no mar-xismo. O dialético também seria que acrise atingisse o marxismo. Muitos dosargumentos usados para desqualificar

o marxismo são mais de natureza capitalista quede natureza operária e não têm uma base objetiva,que poderíamos chamar de lógica ou científica.

Se se toma a melhor enciclopédia que já se pu-blicou em ciências sociais, que não é a mais recen-te - foi editada no final de 1929 em 15 volumes etrazia uma contribuição internacional de primeiraordem -, sobre a palavra socialismo vem uma dis-cussão a respeito do que é a concepção marxistado socialismo. Isso é um ponto de referência muitoimportante para que se entenda que, no quadro daprodução das idéias que conduziram à formaçãodo socialismo, o marxis-mo foi considerado atendência mais impor-tante. Em torno do so-cialismo de orientaçãomarxista vai se constituira social-democracia eu-ropéia, no início, e ospartidos socialistas quesurgiram em diferenteslugares da Europa e, de-pois, em outras partes.

Aqui tentarei sinteti-zar a visão originária dosocialismo, que conside-rava a classe trabalhado-ra como a única classerevolucionária na socie-dade capitalista e a únicaclasse que tinha interes-ses e potencial de lutapolítica suficientementeforte para transformar a ordem social existente edestruir o capitalismo.

É necessário lembrar que a desagregação da so-ciedade feudal produziu a separação do produtordos meios de produção. Considerando uma área daprodução, de tecidos ou de sapatos, por exemplo,vamos supor que existissem trabalhadores artesãosque produziam em pequenas oficinas, como costu-reiras que produziam em suas próprias casas. Nofim do mundo feudal, através principalmente deuma acumulação de capital que se dá pela via co-mercial, surgiram recursos e, ao mesmo tempo, pelodesenvolvimento do conhecimento, surgiram técni-cas que permitiram uma nova forma de produção.A sociedade feudal era uma sociedade que dispersa-va o poder dos senhores e permitia que a burguesiacrescesse e se fortalecesse, através do comércio lo-

cal, nacional e internacional, ou da exploração deregiões coloniais. Mas o fato é que no fim há umproblema mais complicado, porque há mais de umaforma de acumulação de riquezas ao longo da socie-dade feudal, com o próprio senhor feudal assaltan-do, cobrando direito de passagem e segurança; como aparecimento de uma religião que valorizava aausteridade, que foi o protestantismo; com a exis-tência do entesouramento, que se expande atravésda acumulação de riquezas que procediam da usura,do comércio e das primeiras grandes tentativas de“colonização”, envolvendo as navegações, a desco-berta da Ásia, América e África. Então, surgiramvárias formas de acumulação de riquezas, inclusivea dos artesãos.

Entre os mestres artesanais apareceram pessoasque usavam os aprendizes ou mestres que não possuís-sem recursos para ter suas próprias oficinas ou seus

próprios estabelecimentos.Aqueles mestres, então,acumularam riquezas.

Constitui-se, então, umser humano com recursoseconômicos para concen-trar em suas mãos rique-zas suficientes para com-prar os meios de produ-ção e gerar um novo tipode economia. Essa evolu-ção é muito complexa eexigiria um curso de histó-ria econômica. Mas os tra-balhadores, os produtoresdiretos, por exemplo osservos, o artesão que tra-balhava individualmente,o artesão que não tinharecursos para gerir um es-tabelecimento em condi-ções de expandir-se, ser-

vem de pilar para uma forma de apropriação queexcluía o produtor dos meios de produção.

Formam-se vários modos de expropriação, deonde nasce um novo tipo de propriedade, que é apropriedade privada moderna. Em torno dessa pro-priedade moderna individual dos meios de produ-ção é que vai desenvolver-se a produção capitalista.

Exemplo: um negociante numa cidade inglesa,que conhecia pessoas que produziam um determi-nado produto em suas casas, criava uma empresa,uma fábrica, e comprava desses trabalhadores suasmáquinas. Esses trabalhadores iam vender depois oseu trabalho, como mercadoria, para aquele nego-ciante. De outro lado, toda a gente que morava nocampo e se viu expropriada de suas terras vai pararna cidade e servir de mão-de-obra. Emerge o em-brião da empresa moderna, na qual há uma con-

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Tentarei sintetizar a visão

originária do socialismo, que

considerava a classe trabalhadora

como a única classe revolucionária

na sociedade capitalista e a única

classe que tinha interesses e

potencial de luta política

suficientemente forte para

transformar a ordem social

existente e destruir o capitalismo.

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centração dos meios de produção. É uma invenção,dentro da tecnologia existente, que tornou possívelcriar essa nova maneira de organizar a produção ede submeter, através do dinheiro, aquele agenteeconômico fraco à condição de vendedor da suaforça de trabalho. Esse agente econômico pode fi-car morando no próprio local ou se desloca e moraem uma cidade, em áreas muito miseráveis, como édescrito em vários livros, inclusive o de Engels, so-bre o trabalhador na Inglaterra em 1844.

Quer dizer, as cidades se diferenciavam, há umaconcentração maior da população nas cidades, eocorre, também, a importação simultânea de artífi-ces mais qualifica-dos, por exemplo,franceses e espa-nhóis, que eram há-beis em certas espe-cialidades. Existe umgrande movimentona população e elacresce tanto por viada migração quantoda reprodução.

Esta nova formade propriedade, liga-da ao capital, é o re-curso que permite oinício do processocapitalista de produ-ção. O trabalho transforma-se em mercadoria, poiso produtor deixa de produzir para si próprio e pa-ra a família e passa a vender sua capacidade detrabalho para o proprietário do capital. O que ca-racterizava o sistema feudal era que quem quisesseum par de sapatos iria a um artífice e encomenda-va-o; poderia esperar um ou dois meses, mas obte-ria o par de sapatos. O processo era esse, não ha-via estoques de produtos em todos os ramos.

Com a nova invenção, o produto cresce em massae descobre-se um mercado diferente, que iria crescer,aumentar e difundir-se por toda parte em seguida.

Assim se compõe a nova forma de produção, li-gando capital e trabalho entre si. O capitalista, gra-ças a essa nova forma de produção e de proprieda-de, passa a administrar uma fábrica. Ele não com-prava a pessoa do trabalhador. Mas as horas de tra-balho dele, por exemplo, 12 ou 15 horas. Nesse pe-ríodo de tempo, o trabalhador não produzia sóaquilo que o capitalista estava lhe pagando; ele pro-duzia o equivalente ao que recebia e mais uma certaquantidade de produtos. Um exemplo, com 12 ho-ras: em 6 horas ele produzia o equivalente que rece-bia; nas outras 6 horas, ele produzia um excedenteeconômico, que ficava com o capitalista. Essa é anova forma de exploração: o produtor não recebiatodo o equivalente por aquilo que produzisse, mas

apenas a metade, dois terços ou um terço etc.Quando se trata de acumulação simples, o capitalis-ta elevava a exploração, aumentando a jornada detrabalho. Em vez de ficar 12 horas trabalhando, eleficava 16 ou 18 horas. O que ele produzisse a maispertencia ao capitalista. A extensão da jornada detrabalho permitia intensificar a exploração do traba-lho não pago.

O capitalismo, no sentido específico, surgequando a acumulação acelerada do capital se dá.Quer dizer, além do que foi descrito: quando aciência, a tecnologia, a organização da produçãofazem com que o indivíduo, em vez de produzir o

equivalente ao queganharia em 6 horas,passe a produzi-lo emtrês ou quatro horas,e a extração do exce-dente, a mais-valia,expande-se constan-temente e o dono docapital se apropria detodo o produto. Essaé a chamada acumu-lação capitalista ace-lerada - ela revolucio-na a produção mo-derna. À medida quea técnica evolui emultiplica a produti-

vidade do produtor direto, o capital cresce commaior rapidez.

É isso que caracteriza o aparecimento do capi-talismo em termos históricos e estruturais. O pro-dutor é despojado dos meios de produção, quepassam para as mãos do capitalista. Através da téc-nica, este utiliza os meios de produção, gerandoum produto maior, enquanto o trabalhador se vêdespojado desse excedente. Isso que dizer que aexploração se localiza ao nível da produção, noqual se dá a espoliação do agente de trabalho sobo capitalismo. E é muito importante entender esseesquema para se compreender que aquele que tra-balha está numa situação tal que vai ser sempre ex-plorado, qualquer que seja o progresso da organi-zação da produção. Pois a acumulação simples de-saparece, mas fica embutida na acumulação am-pliada e acelerada; e esta acumulação atribuirá aocapital industrial maior dinamismo. Portanto, capi-tal e trabalho vão ter uma relação dialética entresi. O capital precisa do trabalho assalariado paracrescer, e o trabalho assalariado, por sua vez, pre-cisa do capital, porque o trabalhador não temmeios de subsistência e reprodução dele própriocomo trabalhador e de sua família. Dentro dessaestrutura há um antagonismo entre capital e traba-lho que é irredutível, porque a função do capital

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Não é o trabalhador que é a mercadoria:

ele não é um escravo nem um servo,

em sentido literal. Ele só vende sua

força de trabalho. Com essa força de

trabalho, o agente capitalista obtém

um produto que ultrapassa de muito

o que ele paga ao trabalhador.

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consiste sempre em exercer uma espoliação, que setornará cada vez mais concentrada à medida que atecnologia eleva a produtividade.

O trabalhador, por sua vez, especialmente nascondições originárias da produção capitalista, teráque se contentar com um salário muito baixo, com-patível apenas com um padrão de vida paupérri-mo. Engels, pela investigação sobre as condiçõesde vida dos operários na Inglaterra em 1844, des-cobriu as áreas onde viviam os trabalhadores, maisou menos distantes de outras áreas, praticamenteisoladas e segregadas, de modo que os burguesespodiam ir para seus escritórios ou destes para suasmansões sem ver a miséria que ocasionavam aostrabalhadores.

Existe uma relação dialética entre o capital e otrabalho que é inevitável. Em qualquer modelo decapitalismo, o capital só cresce espoliando o agentede trabalho e, por sua vez, o agente de trabalho sópode se reproduzir e sobreviver na medida em queencontra um mercado de trabalho, que convertesua força de trabalho em mercadoria. Não é o tra-balhador que é a mercadoria: ele não é um escravonem um servo, em sentido literal. Ele só vende suaforça de trabalho. Com essa força detrabalho, o agente capitalista obtém um

produto que ultrapassa de muito o que ele paga aotrabalhador.

O que se deve ressaltar é que esse antagonismoirredutível opõe entre si o trabalhador e o capita-lista, adversários em termos econômicos, políticose culturais. Essa situação, naturalmente, foi en-frentada pelos trabalhadores ao tentarem se orga-nizar socialmente. Primeiro, criaram as uniões ouas associações, os sindicatos. Nem os economistasnem os socialistas conseguiram entendê-las: comoé que os trabalhadores desenvolveram essas orga-nizações, às vezes prejudicando seus próprios inte-resses? Ao se unirem em associações e sindicatos,sofriam pressão dos patrões; havia flutuação naoferta (o “não, eu pago um pouco mais para vo-cê”); ou, então, os próprios trabalhadores se viamobrigados a se cotizar para manterem a associação;ou eram obrigados a aceitar condições de trabalhoem que a remuneração era menos vantajosa, exata-mente para poderem formar o sindicato, porquehavia entre os mesmos profissionais qualificaçõesvariadas (uns poderiam ganhar mais que outros e,de repente, todos começavam a defender os inte-resses coletivos). Tanto os socialistas como, princi-palmente, os economistas não entenderam isso.Marx e Engels os chamavam proletários, coloca-ram em primeiro lugar a sua organização. No iní-

cio, a reação foi diferente,pois o trabalhador não

compreendia o com-plexo mecanismo

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síliaEm frente ao Con-

gresso Nacional, du-rante seu primeiromandato como de-putado, FlorestanFernandes participade manifestação detrabalhadores rurais.

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exigido pelas circunstâncias. Quebrava as máqui-nas, às vezes destruía a própria fábrica. Depois en-tendeu que o problema não estava na máquina, nafábrica, mas no capitalista e na propriedade priva-da dos meios de produção. Ele tinha que atacar ocapitalista e a relação de exploração imposta pelocapital. Não podia conseguir isso individualmente;tinha de ser coletivamente. Deviam, portanto, as-sociar-se. Constituem-se, assim, as primeiras for-mações proletárias, que promoviam a luta econô-mica, social e política coletiva e organizada.

Esse esboço é muito sumário, muito superficial,mas contém a essência da concepção marxista dosocialismo. Existe uma base econômica, social epolítica que não é inventada, é extraída da própriaformação e evolução do capital e do trabalho nasociedade moderna.

Não vou expor a primeira parte do Manifestocomunista, que é muito importante, onde vêm des-critas as etapas da evolução das classes. É claroque os trabalhadores são uma classe, os capitalis-tas são outra e vai haver antagonismos entre elas.Aparecerão também classes intermediárias e, des-tas classes, algumas têm interesse em se unir com ocapital ou com os trabalhadores. A única classe,porém, que possui interesse em revolucionar e aca-bar com a sociedade burguesa é a classe trabalha-dora. Por isso, a classe trabalhadora é tida comoclasse organicamente revolucionária. As outras po-dem participar de uma luta por reformas e até porrevoluções; mas, atingidos os seus objetivos, re-traem-se. Os trabalhadores precisam eliminar essasociedade e organizar a produção de tal maneiraque o capital não prejudique mais o produtor.

Agora, quais são os objetivos centrais dos socia-listas e daqueles que tomam essa posição? Existemcoisas que não foram citadas, sobre o embruteci-mento do trabalhador que, submetido às condiçõesde trabalho que praticamente brutalizam a pessoa ebloqueiam o desenvolvimento da consciência social,impedem a aquisição de cultura e a auto-emancipa-ção coletiva da classe. Já nos primeiros trabalhos deMarx e Engels são feitas essas análises da alienaçãosocial. O embrutecimento do trabalhador, a necessi-dade do trabalhador de tomar consciência de sua si-tuação social e o fato de que essa situação só possaser alterada pelo próprio trabalhador coletivamen-te. Portanto, ele precisa se organizar em sindicatos,partidos, forjar outras organizações culturais parapoder propor uma sociedade de caráter diferente,com uma nova forma de produção, com uma infra-estrutura que não seja espoliativa, que assegure aigualdade e a liberdade como algo generalizado eque envolva a autogestão coletiva dos meios de pro-dução, na qual se consagre a construção da demo-cracia (não da democracia apenas para uma mino-ria, mas a democracia da maioria e, com a evolução

socialista, a democracia universal). No Manifesto co-munista há uma parte que recebeu o título “A ÓticaComunista”. Nela, Marx e Engels expõem a idéia deque os comunistas não pretendem construir um par-tido para dirigir a classe operária. Os comunistassão aqueles que têm uma visão geral das tendênciasde transformação da economia e da sociedade e quecooperam com todos os partidos de trabalhadoresno sentido da transformação da sociedade e na cria-ção de uma sociedade nova.

E quais são os objetivos que eles salientam comoessenciais do socialismo proletário? Primeiro, a orga-nização da classe. É claro que, para o trabalhadortransformar a sua condição de existência e a socieda-de na qual vive, precisa proceder como faz a burgue-sia, isto é, organizar-se como classe. Esse processo éespontâneo, mas possui componentes que dependemda consciência social dos agentes históricos. O traba-lhador precisa compreender que o sindicato é ummeio de luta, mas que é insuficiente e que é necessá-rio inventar outros meios de luta, que são os partidospolíticos. Há um momento, como se deve lembrar noBrasil do passado, por exemplo, na época getulista,em que o trabalhador não podia ter capacidade de seorganizar autonomamente e pela base. Havia, então,uma tendência de aliar-se com a burguesia, utilizan-do os conflitos entre os setores da burguesia para al-cançar objetivos propriamente operários. Aí, surge opelego, o sindicato atrelado, a burguesia nacional, tu-do isso que já conhecemos. É claro que o quadro di-feria na Inglaterra, na França etc. Mas os problemasbásicos eram os mesmos. Assim como o capitalistatem uma situação de interesses de classe, o trabalha-dor também possui uma situação própria de interes-ses de classe. E essa situação não está confinada àexistência do salário, à melhoria do salário, a ter sin-dicatos, partidos etc., mas a mudar a sociedade demodo que as iniqüidades econômicas, as desigualda-des sociais e a subalternização política desapareçam.Portanto, os trabalhadores precisam se organizar co-mo classe para usar o poder real de classe na lutacontra o capital. Esse é o requisito número um paraque o trabalhador, que constitui maioria na socieda-de, possa modificá-la, utilizando sua força no sentidode uma revolução social.

O segundo objetivo a que os comunistas se pro-põem é a demolição da supremacia burguesa. Marxe Engels utilizam o conceito de supremacia e não ode dominação, embora o conceito de dominação se-ja prevalecente na sociologia. Para se derrubar essasupremacia burguesa, o que é necessário fazer?

Não basta ao trabalhador se desenvolver comoclasse, dispor de sindicatos, partidos e organiza-ções culturais, educacionais, de seguridade, de re-creação etc., próprias. É necessário que ele adqui-ra a consciência social da subalternização, da im-portância de adquirir todos os direitos concedidos

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pela cidadania e acabar com o despotismo na fá-brica e com o despotismo na sociedade civil, por-que esses dois despotismos caminham juntos. Seriailusório pensar que o despotismo na fábrica é umacontingência da vida burguesa, porque ele se re-produz na comunidade onde vivem os trabalhado-res. A pessoa é obrigada a usar ônibus, ter ummeio de transporte no qual vai apinhada e arriscaa vida, é obrigada a ter uma alimentação ruim, nãoascender à educação ou a receber uma educaçãoinferior, para si e para os filhos. Tudo isso impedeo trabalhador de contar com uma situação de con-fronto eficiente com o burguês. Daí a necessidadede limitar, primeiro, o poder da burguesia na fábri-ca, na sociedade global, no Estado, e de disputar,classe a classe, em todos os níveis, com a que exer-ce o monopólio da riqueza, da cultura e do poderpolítico. Por isso, é crucial desenvolver consciênciasocial de classe e capacidade de luta política orga-nizada, coisas que estão ligadas entre si. A partirdesse patamar, pode-se falar de movimento socia-lista e de desalienação dos de baixo. Os trabalha-dores formam, nesse momento, uma classe em si,capaz de lutar por seus objetivos, independente-mente de qualquer ligação - associação, submissão,cooptação - com o capital, com a burguesia e comoutras classes intermediárias (pequena burguesia,estratos médios mais altos, mais ricos, mas que sãoproprietários dos meios de produção).

Por fim, o terceiroe último objetivo doscomunistas é a con-quista do poder. Estaé a etapa mais avança-da, na qual o trabalha-dor pode sair para aluta política não maispara resolver proble-mas da sua classe, maspara construir uma so-ciedade nova e um Es-tado de novo tipo, nosquais a democracia seinicia como democra-cia da maioria e nãocomo democracia daminoria, não como de-mocracia representati-va que favoreça os po-derosos e subalternizeaqueles que são menosiguais, que são depen-dentes e vivem emcondições de desigual-dade social.

É algo importantedistinguir entre ocu-

par o poder e conquistar o poder. Há vários exem-plos históricos nos quais os trabalhadores, os parti-dos socialistas ou social-democratas ocuparam opoder. Mas a conquista do poder significa que omovimento social de transformação da ordem exis-tente atingiu seu objetivo, a classe capitalista nãoterá mais condições sociais e políticas de se repro-duzir como classe dominante e terá que ser reedu-cada, para viver na sociedade nova e sobreviverdentro dela. Esta é a concepção central de Marx eEngels. São estes os objetivos capitais do socialis-mo proletário e revolucionário.

Devemos recuperar algumas afirmações de Marxe Engels, redigidas logo depois da derrota da revolu-ção na Alemanha. Ocorreram revoluções na Europa,desencadeadas pela burguesia, a revolução francesa,a revolução inglesa, que se anteciparam historica-mente a outras revoluções burguesas (lembre-se, arevolução inglesa se desencadeou primeiro; a revo-lução francesa logo depois; e irão suceder-se outrasrevoluções em seguida, na Alemanha, Itália, Espa-nha e em vários países da Europa, com resultadosvariados). Marx e Engels, como alemães, voltaram àAlemanha. Marx, que saiu da Alemanha como jor-nalista, fundou então um jornal e pretendeu utilizá-lo para agitar os trabalhadores e avivar a sua cons-ciência social. Engels, que tinha treino e vocação mi-litares, se engajou militarmente na revolução. E ahistória acaba com Marx sendo banido da Alemanha

primeiro e Engels fo-ragido, logo depois.Voltam à Inglaterra,onde vão experimen-tar uma situação difí-cil, a situação amargada derrota. A revolu-ção burguesa não al-cançou na Alemanhao mesmo êxito que lo-grara na França, por-que na França o setormais avançado daaristocracia se aliacom a burguesia as-cendente e os outrossetores fogem, pararetornar mais tarde,chefiando a reação.Na Alemanha, a bur-guesia, apesar de terconquistado represen-tação parlamentar, semostrou muito covar-de e, principalmente,descobriu que seualiado principal na re-volução, os trabalha-

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Nair Benedicto/N Imagens

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dores, representavam um perigo muito maior para siprópria, pois, se os nobres e a Casa Real representa-vam uma limitação do poder, os trabalhadores apon-tavam o fim da burguesia como classe. Orientou-seno sentido da acomodação e do oportunismo no par-lamento, traindo a revolução e recuando nos propó-sitos nacionalistas e democráticos que estavam emjogo. Em conseqüência disso, a revolução se esgotounum processo de conciliação entre a aristocraciaprussiana e não-prussiana com a burguesia. A CasaImperial prevaleceu e a defesa da democracia cir-cunscreveu-se às relações históricas entre a burgue-sia, a aristocracia, a burocracia e o poder imperial.Max Weber, entre outros sociólogos, dedicou-se aanálises sobre o assunto que são muito esclarecedo-ras e merecem nossa atenção (inclusive por causa dopapel da burguesia nos anos decisivos, que começamno Brasil com a revolução de 1930).

Marx e Engels, na Inglaterra, vão encontrar umambiente dramático e um grande desânimo entre osrevolucionários, pois estes, es-pecialmente os de extrema-es-querda, pensavam que, logo decara, iriam conquistar o podere acabar com todas as desi-gualdades e injustiças sociais,construir um Estado democrá-tico e igualitário etc. Quandodescobriram que isso não erapossível, se recolheram a simesmos, ressentidos. Marx diz,numa carta, que eles se deitamno sofá, esperando que a revo-lução se faça enquanto elesdormem. Mas Marx e Engelsempenharam-se em outra coi-sa, depois de algumas vacila-ções: começaram a estudar as revoluções. Logo es-creveram uma carta à Liga dos Comunistas, com ofito de defender os ideais revolucionários e proletá-rios. Convém citar um ou dois trechos dessa carta,que é muito importante, pois trata também da orga-nização política da classe trabalhadora. É o primei-ro escrito onde se esboça o programa de um partidodos trabalhadores de uma perspectiva marxista. Ne-la vem a célebre afirmação, característica desse so-cialismo revolucionário: “Nós não queremos melho-rar as classes, nós queremos eliminá-las. Nós nãoqueremos aperfeiçoar a sociedade de classes, quere-mos suprimi-la”.

Essa é a concepção originária de Marx e Engels.Precisamos resgatar essa concepção, porque seataca o marxismo, dizendo que ele está em crise,que ele morreu. Mas, se se perguntar a um pessoao que é o marxismo, ela não sabe, “não estudou is-so”. O marxismo está enterrado e a classe traba-lhadora está condenada a ser subalterna na socie-

dade capitalista recente, com um melhor padrãode vida, mas com profundas desigualdades sociaise cicatrizes insanáveis. Tanto é assim que na Ingla-terra, nos EUA, nesses países “avançados”, a pro-porção de desempregados aumenta o número dosque vivem abaixo da linha de pobreza. Quais sãoas perspectivas de resolver esses problemas crôni-cos através da assistência social?

Aceitar esta visão significa comprometer-secom a idéia de que os trabalhadores não têm con-dições nem meios para organizar, com suas pró-prias mãos, suas próprias cabeças, uma sociedadenova, diferente da democracia ampliada e que evo-luirá até o comunismo.

A civilização engendra a barbárie e só atravésdo socialismo é que se pode produzir uma civiliza-ção sem barbárie. Mesmo nos países avançados en-frenta-se esse dilema, que é estudado por Engelsem A origem da família, da propriedade privada e doEstado. Onde persiste e se multiplica a conexão

entre civilização e barbárie,como nos países adiantados, osocialismo é necessário comoalternativa para gestar outrotipo de civilização, realmenteigualitária e democrática. Deacordo com o filósofo italianoDella Volpe, que designa a li-berdade maior como liberda-de com igualdade, é fantasiafalar em democracia sem a suaexistência. A democracia éuma palavra e é preciso sabero que ela significa, quem aaproveita e o que é um Estadocapitalista.

Quanto à periferia, aí não hánem o que discutir. O retrato traçado é tão válidoquanto na época em que ele apareceu na Inglaterra,na França ou na Alemanha. É claro que o capitalis-mo se transformou, as sociedades de classes se modi-ficaram, o próprio marxismo sofreu inovações, atra-vés de autores como Hilferding, Lênin, Tróstki, Bu-khárin, Lukács, Gramsci, etc. Todos eles mostram co-mo estas transformações podem ser absorvidas pelomarxismo e refinaram a explicação marxista da socie-dade e da revolução.

Não se trata de dizer que não há transformações.Porém, na periferia, as condições existentes (porexemplo, no Brasil) se casam com a descrição do pri-meiro capítulo do Manifesto comunista. E em outrospaíses da América Latina é a mesma coisa. Toda aperiferia está sujeita à problemática do desenvolvi-mento capitalista desigual. E o desenvolvimento ca-pitalista desigual só pode ser enfrentado, corrigido eeliminado através de revoluções nacionalistas liber-tárias reforçadas por revoluções socialistas.

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O desenvolvimento

capitalista desigual só pode

ser enfrentado, corrigido e

eliminado através de

revoluções nacionalistas

libertárias reforçadas por

revoluções socialistas.

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Em 1964 fui preso porum período e em 65comecei a participarde uma maneiramais intensa e ar-dente da luta políti-

ca. Era um processo político aque todos nós deveríamos nosengajar. Do final de 65 até o co-meço de 89 travei o combate deuma maneira intensa.

Naquele momento fiquei res-sentido porque a ditadura, aocontrário do que aconteceu comoutros companheiros, não que-ria que eu saísse do país e nãome dava o visto no passaporte.Eu estava sujeito a um processomilitar e, portanto, não teriapossibilidade de tomar o avião.

Os amigos e companheirosno exterior, com suas manifesta-ções, conseguiram fazer comque nós, principalmente no meucaso, saíssemos do Brasil. Eu ti-nha compromisso no Canadá elá permaneci nos anos 69 e 70.Nesse período, tudo que pudeperceber, durante as conferên-cias que andei fazendo no pró-prio Canadá, nos Estados Uni-dos, na Alemanha e em outrospaíses da América Latina, levou-me a verificar que era evidenteque a proteção que nos davam

não era tanto por nossas pessoase tudo o que elas representavampara a luta política. Era, sim,uma tentativa de retirar dos paí-ses que viviam situações análo-gas à do Brasil aqueles intelec-tuais ou outros ativistas que po-diam representar perigo para aditadura. Isso me levou a voltarpara o Brasil. Porém, poucas ve-zes fui convidado para conferên-cias de caráter político. Eu recu-sava as conferências retóricas,neutras, e exigia que elas tives-sem caráter político.

Com relação à Universidade,eu fazia parte da primeira listade cassados. Depois vieram asoutras. Mas a verdade é que eunão posso reclamar porquequem luta por certas causas de-ve estar preparado para aceitaras suas conseqüências positivasou negativas.

Quanto à caça de pessoasque não tinham vinculação polí-tica com qualquer movimentoopositor ao regime, é verdadeque isso foi um movimento mui-to negativo. Mas houve dentroda Universidade um movimentode resistência política feito poruma minoria e uma tentativa deretração feita por pessoas quenão queriam se envolver, mas

que também não queriam apro-var o que a ditadura estava fa-zendo. Além disso, existiam osintelectuais que eram propria-mente contra-revolucionários.Eu sempre lembro, e até escrevinum livro, uma frase de Lêninque diz: “não pode haver revo-lução sem revolucionários”. En-tão, Gama e Silva (reitor daUSP na época do golpe militar)e outras pessoas que estavam àtesta desse processo eram, den-tro da Universidade, represen-tantes da contra-revolução.

E não podemos nos esquecerque na Faculdade de Medicinaos professores que foram incor-porados à lista de punição nãoforam punidos pelos militaresque fizeram a auditoria. Eles fo-ram punidos pela própria Con-gregação.

Lembro que dois professoreseminentes da Universidade tive-ram os braços jogados para bai-xo quando tentaram cumpri-mentar-me porque eu sabia queeles estavam a serviço da dita-dura. Eu sempre entendi o quese passava com essas pessoas,mas nunca aceitei. Entendernão significa perdoar. Significater uma consciência objetiva daluta que se deve travar.

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DITADURA MILITARPROFESSORES PUNIDOS PELA CONGREGAÇÃO

Depoimento prestado pelo professor Florestan Fernandes ao Jornal Adusp em maio de 1994.

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oim

ento

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Karl Marx, contribuição à crítica da economia polí-tica. Tradução e introdução. São Paulo, Edito-ra Flama, 1946.

A organização social dos Tupinambá, São Paulo,Instituto Progresso Editorial, 1949; 2ª. edição,São Paulo, Livraria Pioneira Editora, Editorada Universidade de São Paulo, 1970.

A função social da guerra na socidade tupinambá.São Paulo, Museu Paulista, 1952; 2ª. edição,São Paulo, Livraria Pioneira Editora, Editorada Universidade de São Paulo, 1970.

A etnologia e a sociedade no Brasil. Ensaio sobre as-pectos da formação e desenvolvimento dasciências no Brasil. São Paulo, Editora Anhem-bi, 1958.

Negros e brancos em São Paulo. em colaboraçãocom Roger Bastide, Edição Independente,São Paulo, Companhia Editora Nacional,1959; 3ª edição, 1971. Publicação prévia, Re-vista Anhembi, 1953; edição original, com ou-tros trabalhos de vários autores, São Paulo,Editora Anhembi, 1955.

Mudanças sociais no Brasil. São Paulo, Difusão Eu-ropéia do Livro, 1960; 2ª. edição, refundidacom um ensaio global introdutório, 1974; 3a.edição, 1979.

Ensaios de sociologia geral e aplicada. São Paulo,Livraria Pioneira Editora, 1960; 2ª edição,1971; 3ª edição, 1976.

Folclore e mudança social na cidade de São Paulo.São Paulo, Editora Anhembi, 1961; 2ª edição,Petrópolis, Editora Vozes, 1979.

A sociologia numa era de revolução social. São Pau-lo, Companhia Editora Nacional, 1962; 2ª edi-ção regorganizada e ampliada, Rio de Janeiro,Zahar Editores, 1976.

A integração do negro na sociedade de classes. SãoPaulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-cias Humanas da Universidade de São Paulo,1964; 2ª edição, em dois volumes, São Paulo,Editora Dominus, Editora da Universidade de

São Paulo, 1965; 3ª edição, em dois volumes,Editora Ática, 1978.

Educação e sociedade no Brasil. São Paulo, EditoraDominus, Editora da Universidade de SãoPaulo, 1966.

Fundamentos empíricos da explicação sociológica.São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1967;2ª edição, 1967, reimpressão, 1972; 3ª edição,Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos,1978; 4ª edição, T. A. Queiroz, Editor, 1980.

Sociedade de classes e subdesenvolvimento, Rio deJaneiro, Zahar Editores, 1968; 2ª edição,1975; 4ª edição, 1981.

The Latin American in residence lectures. Toronto,University of Toronto, 1969/1970.

Elementos de sociologia teórica. São Paulo, Compa-nhia Editora Nacional, 1970; 2ª edição, 1974.

O negro no mundo dos brancos. São Paulo, DifusãoEuropéia do Livro, 1972.

Comunidade e sociedade no Brasil (organizador). Lei-turas Básicas de Introdução ao Estudo Macro-Sociológico do Brasil. São Paulo, CompanhiaEditora Nacional, 1972; 2ª edição, 1975.

Comunidade e sociedade (organizador). Leituras so-bre Problemas Conceituais, Metodológicos ede Aplicação. São Paulo, Companhia EditoraNacional, 1973.

Comunidade e sociedade (organizador). Tomos ain-da inéditos.

Las clases sociales en América Latina (em co-auto-ria com N. Poulantzas e A. Touraine). México,Siglo Veintiuno Editores, UNAM, 1973; publi-cado no Brasil como As classes sociais naAmérica Latina, Rio de Janeiro, Editora Paz eTerra, 1977.

Capitalismo dependente e classes sociais na Améri-ca Latina. Rio de Janeiro, Zahar Editores,1973; 2ª edição, 1975; 3ª edição, 1981.

A investigação etnológica no Brasil e outros ensaios.Petrópolis, Editora Vozes, 1975.

A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpreta-

RReevviissttaa Adusp

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NO BRASIL

Organizada por Vladimir Sacchetta

Desta relação não constam as colaborações para revistas e para os jornais O Estado de S. Paulo, Folha da Manhã, Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil e Jornal de Brasília.

Obr

a

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ção sociológica. Rio de Janeiro, Zahar Editores,1975; 2ª edição, 1976; 3ª edição, 1981.

A universidade brasileira: reforma ou revolução?São Paulo, Editora Alfa-Ômega, 1975; 2ª edi-ção, 1979.

Circuito fechado. Quatro Ensaios Sobre o “poderinstitucional”. São Paulo, Editora Hucitec,1976; 2ª edição, 1977.

A sociologia no Brasil. Contribuição para o estudode sua formação e desenvolvimento. Petrópo-lis, Editora Vozes, 1977; 2ª edição, 1980.

A condição de sociólogo. São Paulo, Editora Hucitec,1978.

O folclore em questão. São Paulo, Editora Hucitec,1978.

Lênin (organização e introdução). (pp. 7-49). SãoPaulo, Editora Ática, 1978 (duas edições).

Da guerrilha ao socialismo: A Revolução Cubana.São Paulo, T. A. Queiroz Editor, 1979.

Apontamentos sobre a “Teoria do autoritarismo”.São Paulo, Editora Hucitec, 1979.

Brasil: em compasso de espera. São Paulo, EditoraHucitec, 1980.

A natureza sociológica da sociologia. São Paulo,Editora Ática, 1980.

Movimento socialista e partidos políticos. São Pau-lo, Editora Hucitec, 1980.

Poder e contra-poder na América Latina. Rio de Ja-neiro, Zahar Editores, 1981.

O que é revolução? São Paulo, Editora Brasiliense,1981 (seis edições).

A ditadura em questão. São Paulo, T. A. QueirozEditor, 1982 (duas edições).

K. Marx - F. Engels: história (organização e introdu-ção). (pp. 9-143). São Paulo, Editora Ática,1983.

A Questão da USP. São Paulo, E. Brasiliense, 1984.Que tipo de República? São Paulo, Brasiliense, 1986

(três edições).Nova República? Rio de Janeiro, Jorge Zahar Edito-

ra, 1986 (três edições).O processo constituinte. Brasília, Câmara dos Depu-

tados, Centro de Documentação e Informa-ção. 1988

A Constituição inacabada, vias históricas e signifi-cado. São Paulo, Estação Liberdade Editora,1989.

O desafio educacional. São Paulo, Cortez Editora,1989.

Pensamento e ação: o PT e os rumos do socialismo.São Paulo, Editora Brasiliense, 1989.

0 significado do protesto negro. São Paulo, CortezEditora, 1989.

A transição prolongada. São Paulo, Cortez Editora,1990.

As lições da eleição. Brasília, Câmara dos Deputa-dos, CDI, 1990.

Depoimento, in Memória viva da educação brasilei-ra. 1, Brasília, INEP, 1991.

O PT em movimento - Contribuição ao I Congressodo Partido dos Trabalhadores. São Paulo,Cortez Editora/Autores Associados, 1991.

Reflexão sobre o socialismo e a auto-emancipaçãodos trabalhadores. São Bernardo do Campo,Departamento de Formação Política e Sindi-cal, Sindicato dos Metalúrgicos de São Ber-nardo do Campo e Diadema, 1992.

Parlamentarismo: contexto e perspectivas, Brasília,Câmara dos Deputados, Centro de Documen-tação e Informação, 1992.

LDB: impasses e contradições. Brasília, Câmara dosDeputados, Centro de Documentação e Infor-mação, 1993.

Democracia e desenvolvimento - A transformaçãoda periferia e o capitalismo monopolista daera atual. São Paulo, Editora Hucitec, 1994.

Consciência negra e transformação da realidade.Brasília, Câmara dos Deputados, Centro deDocumentação e Informação, 1994.

Tensões na educação. Salvador, SarahLetras, 1995.Brasil 1986/1994: atraso e modernidade. Salvador,

SarahLetras (em organização).O pensamento político de Marighella, in Anais do se-

minário sobre Carlos Marighella. Salvador, Uni-versidade Federal da Bahia (em organização).

A Contestação Necessária, S.Paulo, Ed. Ática (no prelo).

Traduções publicadas no exterior

La guerre et le sacrifice humain chez lesTupinambá. Tradução de Suzanne Lussagnet.Publicado e editado em separata por Journalde La Societé des Americanistes. Paris, Muséede L’Homme, 1952.

Fundamentos empíricos da explicação sociológica.México, UNAM, sd (em espanhol).

The Negro in Brazilian society . Tradução deJacqueline D. Skiles, A. Brunel e ArthurRothwell, editado por Phyllis B. Eveleth,New York/London, Columbia UniversityPress, 1969 e, como brochura, Atheneum,New York, 1971.

Die Integration des Negers in die Klassenge-sellschaft. Vol. 1, Verlag Gehlen, Bad Hom-burg v.d.H., Berlin/Zurich, 1969 (traduçãodo dr. Jurgen Grabvener); vol. 2, WilhelmFink Verlag, Munchen, 1977 (tradução deAngela Dulle).

La revolución burguesa en Brasil.Tradução de E-duardo Molina. México, Siglo Veintiuno Edi-tores, 1978.

Reflections on the Brazilian counter-revolution. Or-ganizado com introdução de Warren Dean.Armonk, New York, M.E. Sharpe, Inc., 1981.

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Entrev is ta

Florestan F. Júnior e Heloísa R. Fernandespor Zilda Iokoi e Marcos Cripa

TUDO NA VIDA É SÉRIO, MAS NADA É DEFINITIVO

Considerado um dos mais respeitados intelectuais brasileiros, Florestan Fernandes não tinha porhábito falar de sua vida pessoal. Aos que insistiam, dizia apenas que a casa dele era “uma redoma

de ouro”. Nesta entrevista, concedida duas semanas após sua morte, Florestan Júnior e HeloísaRodrigues falam do homem Florestan Fernandes e contam passagens que marcaram suas vidas ao

lado do pai. Lembram do afastamento imposto aos filhos, no início da carreira, para que o paipudesse elaborar seus trabalhos, e do café da manhã que Florestan Fernandes fazia questão de

preparar para a família. Falam, ainda, da esperança que Florestan teve de retornar à USP e de suaalegria ao ingressar na política partidária, onde foi deputado federal por duas legislaturas

consecutivas pelo Partido dos Trabalhadores. Não existiu, por parte dos entrevistadores e dos filhos,a preocupação com relatos cronológicos. A proposta era conhecer um pouco da vida familiar que

deu sustentação ao intelectual e ao político Florestan Fernandes.

Ronaldo Entler

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Adusp - Nesto momento, cen-tenas de textos no Brasil e em vá-rias partes de mundo analisam aobra do intelectual FlorestanFernandes. Gostaríamos que vo-cês falassem do homem, do cida-dão comum, do pai FlorestanFernandes.

Heloísa - Quase aos cinqüentaanos de idade, posso dizer que ti-ve o privilégio de não ter tido omesmo pai ao longo desse tem-po. Eu tive inúmeros pais. Umaos dez anos, outro aos quinze eum outro aos vinte anos. O paimais amoroso e o mais carinhosofoi o último. Sinto-me privilegia-da em relação a outras pessoasporque, em geral, com a velhiceos pais ficam mais agressivos,mais teimosos, e esse meu últimopai era mais amoroso, mais aten-cioso. Se nós não fossemos na ca-sa dele, no dia seguinte ele dizia:“Senti tanto a sua ausência, gos-taria tanto que você tivesse vin-do”. A perda ainda é maior por-que ele estava se relacionandomuito com os filhos, os netos e osbisnetos. Meu filho, de 26 anos,conviveu muito com este meu úl-timo pai. Eles conversavam, e pa-pai ouvia com enorme atençãotodos os problemas e as crisespróprias da idade do meu filho edizia: “Tudo é sério, mas nada édefinitivo”. Essa frase quer dizerque meu pai tinha o maior inte-resse em ouvir tudo o que vocêdissesse, de qualquer ordem eprocedência, com a maior serie-dade, mas querendo te mostrarque nada é definitivo na vida.

Florestan Júnior - Acho quenestes últimos dez anos, depoisque foi para a Câmara Federal,ele começou uma nova atividadena vida. Passou a ficar um poucomais distante da família e, por-tanto, bem mais sensível a essafalta. Tinha uma gratidão muitogrande pelos filhos porque du-rante toda a vida dele sempre lu-tou muito sozinho, virava a noiteescrevendo, à máquina. Lembro-me de, aos 11 anos, dormir escu-tando o bater da máquina de es-

crever e logo pela manhã, às 6horas, ele já estava em pé paraarrumar a mesa do café, cortar opão, e do jeito que cada um dosfilhos gostava. Quando nós acor-dávamos, o lugar de cada um àmesa já estava arrumado. Ape-sar disso, o contato, neste perío-do, era pequeno porque logo emseguida ele saía para a universi-dade e trabalhava até tarde. Noperíodo da política partidária, osfilhos foram muito solidárioscom ele, participando da campa-nha, arrecadando dinheiro, dis-tribuindo material de propagan-da, e disso tudo saiu uma uniãomuito grande. Ele teve váriosmomentos de pensar a família, eo momento do exílio, acredito,foi o mais difícil. Mas o momen-to mais bonito acho que foi odesses últimos dez anos, porqueele demonstrava existir uma ver-dade interior. A verdade de umsábio, a verdade de quem nãotem mais nada a provar. Ele es-tava muito tranqüilo.

Adusp - Heloísa, você falou deter convivido com vários pais aolongo das últimas cinco décadas.Como era o pai Florestan Fernan-des quando você tinha dez anos?

Heloísa - Eu sou a mais velha esempre tive uma ligação muitoforte com o meu pai, uma ligaçãomuito apaixonada. Então, temtambém a história dos maioresódios, dos maiores enfrentamen-tos e aquelas coisas que caracteri-zam a relação mais forte com opai. Certa vez eu estava conver-sando com ele acerca desse perío-do, que era exatamente o momen-to em que meu pai, muito jovem,estava batalhando para, no fundo,mudar de classe social. Fala-semuito que ele veio de outra classeetc., etc., mas isso teve um customuito alto para a nossa família.Principalmente eu e minha irmãNoêmia, a segunda filha, sofre-mos mais porque ele queria quenós tivéssemos uma família e sa-bia que era o chefe dessa família,mas não teve uma experiência de

família como aquela que nós está-vamos tendo. Ele cobrava de nóssegundo uma expectativa idealiza-da, que passava por se preocuparcom o que os vizinhos iriam pen-sar de um determinado fato ouacontecimento ocorrido em nossacasa. Ele dava importância a teruma família. Por outro lado, elemesmo reconhecia que não teveexperiência do que era uma famí-lia e, então, nós fomos a famíliaque ele teve de “inventar” porquenão existia um padrão familiar naformação dele.

Adusp - Foi um período duro?Heloísa - Foi, especialmente

para mim e para a Noêmia. Con-versando com o meu pai, certavez, ele disse que lastimava ter si-do tão duro comigo e com a mi-nha irmã, esquecendo-se que, dequalquer modo, era uma pessoamuito amorosa. Eu nunca duvi-dei do amor dele, e foi nessa se-gurança, nessa certeza, que nóstínhamos as nossas brigas.

Adusp - Nessa época vocês mo-ravam no Brooklin?

Heloísa - Morávamos noBrooklin e convivíamos com eleapenas na parte da manhã, por-que durante o resto do dia ele sededicava à faculdade e à noite re-colhia-se ao escritório para estu-dar e escrever seus textos. Eleera, de certo modo, ausente. Poroutro lado, dentro dessa ausên-cia, o Júnior lembrou do pão queele cortava pela manhã que elechamava de soldadinho. Eu melembro desse mesmo soldadinho,e a minha filha Ana, que viveucom ele os dois primeiros anosda vida dela, lembra, hoje aos 29anos, desse mesmo soldadinhoservido no café da manhã, assimcomo os outros netos tambémlembram do soldadinho.

Adusp - Heloísa, o que vocêlembra desse escritório a que vo-cê se referiu há pouco, e o Júniorlogo no início da entrevista?

Heloísa - O escritório era o lu-

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gar em que nós, aos dez anos, nãopodíamos entrar porque, se fizés-semos barulho, iríamos perturbaro meu pai. Eu até escrevi, no me-morial para a livre-docência, quenão é por acaso que, para mim,escritório ficou sendo uma salacheia de livros, onde um homemlê e escreve. Ele também desco-briu que aquele escritório, umasala cheia de livros, o oprimia.Não conseguia mais escrever ali eacabou montando um outro escri-tório, no fundo da casa, só pararedigir seus trabalhos. Quandohavia um problema com qualquerum dos filhos, ele chamava paraconversar no escritório. Aconteceque para nós o escritório tinha to-do aquele peso de inviolabilida-de, e o resultado é que, quandonós chegávamos lá, já entravamosem prantos, de tal modo que elenão conseguia mais falar conosco.Ele ficava irritado porque queriaconversar seriamente e o chorotornava impossível o diálogo.Certa vez conversei com minhasirmãs sobre o escritório, e elastêm essa mesma impressão.

Adusp - O escritório é mar-cante na vida de vocês.

Heloísa - Minhas irmãs lem-

bram muito esse aspecto: meupai estava em casa, mas estavanesse escritório, onde não se po-dia fazer barulho e conversar, oque significava que ele estava au-sente. Aí eu disse a elas: “Não éverdade. Vocês conhecem as can-tigas de criança, de folclore e deninar exatamente porque ele can-tava conosco”.

Júnior - Lembro-me que elenos colocava no colo e cantavavárias músicas. Ele fez isso comos netos também.

Heloísa - Sabemos muita coisade folclore por causa desse com-portamento, e eu contei esse fatoporque queria recuperar aquelacoisa dos inúmeros pais que eufalei no começo.

Adusp - Vocês moraram mui-tos anos no Brooklin, na Rua Ne-braska, e essas estórias são todasdaquela casa. O professor Flo-restan gostava daquele local?

Júnior - Ele tinha uma verda-deira paixão pela casa. Só saiu delá quando todos os filhos já ti-nham se casado. Quinze dias an-tes de ser inter-nado para otransplante eleme pediu para

passar em frente à casa, e ela jánão existia mais. Estava toda de-molida. Não tinha mais nada nolocal.

Adusp - Ele fez algum comen-tário?

Júnior - Não. Ficou um silên-cio dentro do carro.

Adusp - Quando é que vocêpercebeu a postura socialista doseu pai?

Heloísa - Eu tinha uma claraidéia de que meu pai tinha vindode uma outra classe, e isso nãosignificava que nós tivéssemos ti-do qualquer conversa específicasobre isso. Mas um dia converseicom ele sobre isso. O por quê deele nunca ter me dado um livrosocialista para ler ou de nunca fa-lar nesse assunto comigo. Elecontou que tinha tido uma dis-cussão com o Antonio Candido eque achava que a melhor formade educar os filhos era que elesnão tivessem um caminho pré-determinado pelos pais. Portan-to, se temos inclinações socialis-

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Acima, em 1968, Dona Myrian com osfilhos: Myrian Lúcia,Sílvia, Beatriz,Florestan Júnior,Noêmia e Heloísa. À esquerda, em 22 dejulho, parte da famíliareunida no últimoaniversário do prof.Florestan Fernandes.

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tas não foi por doutrinação domeu pai. A primeira vez que eutive a clareza das posições delefoi no momento da prisão. Foium impacto muito grande na fa-mília. Agora, foi na faculdadeque eu conheci esse meu outropai intelectual e socialista. Nãofoi dentro de casa, não.

Adusp - Como foram, para afamília, os dias que ele passouna prisão?

Júnior - Lembro que minhamãe me levou para o escritório, otal escritório, e disse: “O seu paiestá sendo preso, mas não é por-que ele cometeu algum crime,não. É porque ele discorda politi-camente do governo”. Minhamãe queria esclarecer os motivosda prisão porque fotos do meupai estavam saindo nos jornais eela estava com receio de que eutomasse conhecimento na escolaou através de outras pessoas. Navéspera da prisão já dava paraperceber um clima diferente por-que, como houve uma troca decartas entre o meu pai e um ofi-cial, muita gente apareceu em ca-sa, a exemplo do Fernando Hen-rique Cardoso, Octávio Ianni etantos outros, para se solidarizar.Eu via a minha mãe, de cabeçabaixa, chorando, preocupada. Is-so eu me lembro bem, porque foiuma cena que marcou muito.

Adusp - E as lembranças doretorno dele para casa, após aprisão?

Júnior - No dia que ele saiuda prisão eu entendi que ele nãogostava do governo. Eu não tinhauma percepção maior do que es-sa de que ele não gostava do go-verno e era contra o imperialis-mo norte-americano. Nesse mes-mo dia ele falou pra mim: “Va-mos até a Faculdade de Filosofia(que ficava na Rua Maria Antô-nia)”. No saguão ele ainda estavaconversando com um bedelquando os estudantes começa-ram a descer pelas escadariascantando o Hino Nacional eaplaudindo o meu pai. A escolatoda apareceu no saguão, e eu,como era pequeno ainda, nuncatinha visto tanta gente junta. Fi-quei muito assustado e comecei arecuar, distânciando-me do meupai. Era uma confusão tão gran-de que eu, assustado, agarrei aperna não sei se do FernandoHenrique, do Antonio Candidoou do Otávio Ianni.

Adusp - Logo após este episó-dio ele foi afastado da USP e seauto-exilou no Canadá.

Heloísa - Ele foi para o Cana-dá, e os filhos que ainda não es-tavam casados ficaram com a mi-nha mãe, que nunca trabalhoufora e, portanto, era a nossa refe-

rência doméstica. Uma pessoarealmente forte. Nesse períododo Canadá ele me escrevia sema-nalmente.

Adusp - E o retorno do Ca-nadá?

Heloísa - Foi ruim, porque elehavia investido tudo na universi-dade e de uma hora para outrachegam para ele e dizem: “Vocêestá fora”. Como se pode ver, nóstínhamos o pai da manhã, o paique nos ensinava cantigas, mas tí-nhamos também o pai que ficavano escritório, afastado da famíliae se dedicando à universidade.

Júnior - Foi nesse início dadécada de 70 que a doença delecomeçou a se manifestar. E alémdisso, ele ficou muito isolado. Osamigos sumiram e ele não tinhamais o espaço da universidade.Ele não tinha a quem falar. Elesó se reencontrou novamente, re-cuperou a felicidade, quando en-trou para a política partidária.

Adusp - E o pai parlamentar,como é que surgiu?

Júnior - Eu influenciei muitonessa decisão dele. Eu estavamuito preocupado com o fato de-le não estar bem. Outra influên-cia, mesmo que indireta, surgiude uma conversa do meu pai, queainda alimentava esperanças devoltar para a USP, com o OtávioIanni. Ele colocou meu pai narealidade ao dizer: “Professor, osnossos colegas gostam de nós,gostam do nosso trabalho e mui-tos foram solidários conosco, maseles não querem a nossa voltaporque isso vai causar uma sériede problemas internos na univer-sidade. A solidariedade deles vaiaté um certo ponto, mas não aoponto de nós termos espaços pravoltar”. Acho que foi aí que elese deu conta de que a USP erauma página virada na vida dele.

Adusp - Você acredita que elepossa ter morrido frustrado pornão ter voltado à USP?

Júnior - Acho que não, isso

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Ele havia investidotudo na universidade e

de uma hora paraoutra chegam edizem: “Você estáfora”. Tínhamos o

pai que nosensinava cantigas,

mas também oque ficava noescritório, se

dedicando àuniversidade.

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ele já tinha resolvido interna-mente. Penso que ele morreufrustrado de nunca ter tido férias.

Adusp - Você falava do ingres-so dele na política partidária.

Júnior - Após essa conversacom o Otávio Ianni, percebi quemeu pai deixara uma porta paraentrar na vida política. Aí, umdia, o Zé Dirceu conversou comi-go sobre a possibilidade de meupai entrar para o Partido dos Tra-balhadores, e nós marcamos umareunião com o Lula, o Suplicy e opróprio Zé Dirceu. Ele topou odesafio, e eu, particularmente, vinaquela decisão um caminho no-vo para ele.

Adusp - Como foi recebida es-sa decisão dele?

Júnior - Muitos achavam quenão daria certo porque ele já es-tava doente. Ele provou que esta-vam errados os que pensavam as-sim, porque a campanha tirou acabeça dele da doença, colocouuma nova esperança e foi umacoisa bonita porque, de repente,ele mesmo precisava se colocar àprova. Saber exatamente o queele representava. Foi nesse mo-mento que reuni a Heloísa, oOctávio Ianni, o Vladimir Sac-chetta e mais alguns amigos edisse: “Vamos lá, meu pai é can-didato , precisamos arrumar di-nheiro, montar comitê e sair à lu-ta”. De repente, começaram apa-recer adesões espontâneas. AUnicamp montou um comitê, aPUC/SP outro, a Unesp outro eassim começaram a aparecer co-mitês em todo o Estado. Enquan-to ele ia de carro participar deuma palestra em Ribeirão Preto,encontrávamos o Serra (José Ser-ra, atual ministro da Fazenda),que descia de um avião particu-lar, participava da palestra e pe-gava novamente o avião para sedirigir a outra palestra ou a umcomício. Nós não tínhamos muitaexperiência em campanha e aca-bávamos sacrificando o candida-to. Um exemplo é o das dobradas

(com candidatos a deputados es-taduais). Meu pai conversavalongamente com cada um deles epessoalmente sentava à máquinade escrever e redigia o texto, orasobre os problemas dos metalúr-gicos do ABC, ora sobre a saúde,e assim por diante. Os candidatosa estaduais saíam satisfeitos por-que passavam a ter um texto ela-borado pelo próprio FlorestanFernandes em seus panfletos.Não era a equipe quem produzia.Ele mesmo fazia questão de ela-borar os textos.

Adusp - Você falou do JoséSerra fazer a campanha deslo-cando-se de avião. Como é que oseu pai via a questão do podereconômico na eleição?

Júnior - Evidentemente elenão gostava. Achava que era umamaneira desleal de fazer a cam-panha, mas tinha a consciênciade que a democracia no capitalis-mo é exatamente isso. Mas, ao fi-nal, com poucos recursos finan-ceiros, ele ficou muito feliz porter obtido 50 mil votos. E olhaque nós gastamos naquela cam-panha o equivalente a um veículoGol usado. Imagine se ele tivessejatinho.

Adusp - Quais os fatos maismarcantes da campanha?

Júnior - São muitos, mas doisdeles especiais. O primeiro dizrespeito ao Fernando Henrique(PSDB). Ele me procurou e dis-se: “O seu pai não pode perder

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Em solenidade naUniversidade de Coimbra,

em 1990, FlorestanFernandes recebe o título

de “doutor honoris causa”.

Marçal

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essa eleição de jeito algum. Eletem de entrar na disputa para ga-nhar”. Isso me deixou meio para-nóico porque aumentou a res-ponsabilidade. O outro fato inte-ressante foi o Fernando Moraes(PMDB) mandar um envelopecom um cheque e uma carta di-zendo da importância da eleiçãode meu pai. Isso marcou muitoporque o Fernando também eracandidato a deputado federal.Naquela ocasião o Fernando Mo-raes pediu sigilo sobre a contri-buição que estava fazendo para acampanha do meu pai.

Adusp - O atual presidenteFernando Henrique, além de tersido aluno do professor Flores-tan Fernandes, acabou se trans-formando num amigo da família.Quando foi a última vez que elesse encontraram?

Júnior - Foi no dia em quemeu pai foi condecorado com aOrdem do Rio Branco, em Brasí-lia. Quando terminou a solenida-de, eu, meu pai e minha mãe fo-mos para a sala do FernandoHenrique, e, no caminho, conver-sando comigo, ele falou da suapreocupação com a saúde demeu pai e da possibilidade de en-caminhá-lo aos Estados Unidospara exames. Na sala da presi-dência nós nos sentimos comoestranhos no ninho. Meu pai eminha mãe sentados num sofá, eem pé o filho do Antônio CarlosMagalhães (Luís Eduardo Maga-lhães) e o Marco Maciel (vice-presidente). O Fernando Henri-que conversou com eles, e numdado momento sentou para con-versar com meu pai e minha mãe.Falaram sobre a viagem queFHC tinha feito aos EstadosUnidos e da homenagem que elerecebera em Portugal.

Adusp - Em Coimbra, ante-riormente, quando o professorFlorestan Fernandes foi homena-geado, o Fernando Henrique es-tava presente?

Heloísa - Estava sentado ao

meu lado, e realmente aquele foium momento muito emocionan-te. O Fernando Henrique chorou.

Júnior - A idéia que dá é quemeu pai não estava ganhando otítulo sozinho. Era o grupo todoque estava sendo homenageado.

Adusp - Além do FernandoHenrique e do Otávio Ianni, oseu pai nutria uma grande ami-zade pelo Antonio Candido.

Júnior - Eles eram tão amigosque se beijavam. Certa ocasião,perguntaram ao Antonio Candi-do por que ele beijava o Flores-tan Fernandes e ele respondeu:“Só faz essa pergunta quem nun-ca beijou um amigo”.

Adusp - Com relação aotransplante, como o professorFlorestan Fernandes o encarava?

Júnior - Ele acreditava muito,achava que era uma possibilidadeverdadeira, e dizia que, após arecuperação, finalmente iria tirarférias e viajar com minha mãepela Europa. Ele passou as horasque antecederam a cirurgia bas-tante consciente e segurando aminha mão. Estava apreensivo ecom medo. Eu saía para o corre-dor e chorava sozinho, sem queele percebesse. Naquele momen-to chegou a passar pela minhacabeçaa idéia de falar com elepara irmos embora e deixarmos otransplante de lado. Mas comoele e todos nós achávamos queiria dar certo, e também pelo fatodele estar sofrendo muito, nãodisse nada. Apenas liguei para aHeloísa, às 3h30 da madrugada, eavisei da cirurgia. Ela falou como meu pai e logo depois ele se-guiu para a sala de operação.

Adusp - A cremação era umdesejo dele?

Júnior - Era um desejo que elequeria ver cumprido. Mas outrodia eu fiquei pensando que cemi-tério tem uma coisa de referen-cial. Você vai à frente do túmulo eali está simbolizada a pessoa quevocê perdeu. Se eu quisesse falarcom o meu pai eu ia até o cemité-rio e conversaria com ele. Faleisobre isso com minha mãe e eladisse uma coisa muito bonita: “Nomomento em que você quiserconversar com seu pai, pegue ocarro, vá até a praia de Juqueí efique olhando para o mar. Vocêpode ficar conversando com eleali”. As cinzas foram jogadas aomar pelos meus sobrinhos.

Heloísa - Meu pai adorava omar, ele ia somente para nadar.Nunca vi uma pessoa que nuncase sentou na areia para tomarsol. Ele gostava de nadar pelamanhã e no final da tarde. Norestante do dia, ficava trabalhan-do, o que significa que na reali-dade ele nunca teve férias.

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Minha mãe disse umacoisa muito bonita:

“No momento em quevocê quiser conversarcom seu pai, pegue o

carro, vá até a praia deJuqueí e fique olhandopara o mar. Você podeficar conversando com

ele ali”. As cinzasforam jogadas ao marpelos meus sobrinhos.

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Em Florestan Fernandes - meu fraternalcompanheiro e amigo há cinqüenta anos -se juntam o estudioso de saber profundoe sólido, o professor rigoroso, o formadorde equipes notáveis que abre trilhas novasà investigação, o autor de obras cuja im-

portância é decisiva no campo das ciências sociais, ocidadão empenhado em tarefas essenciais do seu tem-po e o militante político consciente do dever de lutarpara a transformação das bases desta sociedade iní-qua, na qual vivemos ao ritmo de umas desigualdadeseconômicas mais revoltantes do mundo.

Além disso, é preciso destacar as qualidades hu-manas que fazem dele um exemplo e lhe permitiramconstruir uma carreira excepcional a partir das con-dições mais adversas que se possa imaginar. Homemde luta e homem de ideal, Florestan Fernandes en-frentou desde menino a adversidade, com uma bra-

vura e uma eficiência difíceis de encontrar na bio-grafia dos homens eminentes da cultura. Na base,esteve sempre, sem dúvida, o destemor, a invariávelcoragem física, moral e mental com que empunhoua vida e abriu o seu caminho. Inclusive demonstran-do a rara capacidade de criar o escândalo necessárioe salutar, passando por cima do temível respeito hu-mano, quando se trata de afirmar o que é justo everdadeiro. Pesando bem as palavras, digo que emFlorestan Fernandes estão presentes os traços quecaracterizam os grandes homens. Por isso, costumodizer que ele é, a meu ver, o único de nossa geraçãoa quem cabe com justeza este qualificativo.

Portanto, não é de espantar que tenha feito umacarreira universitária exemplar sob todos os pontos devista, o que tornou mais odioso o ato que o separou docorpo docente de nossa faculdade. Como estudioso,professor, investigador e autor ele reúne qualidades

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PARA SAUDAR UM GRANDE HOMEMDaniel Ruiz Garcia

“ No dia 23 de junho de 1994 a Reitoria da

Universidade de São Paulo promoveu no

Centro Cultural da Rua Maria Antônia uma

sessão de homenagem a Florestan Fernandes,

com diversos pronunciamentos. A pedido do

professor Flávio Fava de Moraes eu o saudei

em nome da universidade com um discurso que

ficou inédito e que vai transcrito abaixo.”

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raramente existentes em conjunto. Dotado de uma po-derosa capacidade de atenção e concentração, é notá-vel a maestria com que sempre se atirou aos textos, co-mo leitor privilegiado. Foi assim desde estudante, tan-to com relação às obras de sua especialidade, quanto aquaisquer outras, de história, literatura ou política.Daí o cabedal enorme que juntou e sempre exploroude maneira penetrante, graças a uma segunda qualida-de: o poder de penetração analítica, que lhe permitechegar ao fundo dos problemas. Em terceiro lugar eumencionaria o dom de correlacionar, que lhe permitiuefetuar sínteses harmoniosas de teorias e pontos devista nem sempre afins, mas que ele decantou emcombinações originais de raro poder explicativo. Pen-so, por exemplo, em pensadores como Marx, Dur-kheim e Weber, vistos freqüentemente no que têm dediferente uns dos outros, mas que ele soube passar pe-la máquina poderosa, seletiva e ao mesmo tempo inte-gradora da sua inteligência, transformando-os em ele-mentos de uma visão compreensiva.

Sobre esta base, que estou simplificando para po-der ressaltar as linhas gerais, Florestan Fernandes foise inclinando cada vez mais na segunda fase da suacarreira para o marxismo, que sempre versara desdemoço e do estudo precoce dos escritos de Marx, inclu-sive a notável análise que escreveu sobre Crítica daeconomia política. Nesta segunda fase surge um mar-xista aberto e compreensivo, justamente porque despi-do de sectarismo teórico e embebido de sugestõesoriundas de outras fontes. Como Caio Prado Júnior,mas com maior amplitude de propósitos, ele forjouum instrumento analítico e interpretativo de cortemarxista, capaz de abolir qualquer imposição dogmáti-ca e de se abrir para as lições da realidade objetiva-mente observada.

Ao lado dessa rotação teórica, convém assinalaruma rotação paralela no domínio dos temas de investi-gação. Na fase inicial, Florestan Fernandes se tornoufamoso, aqui e no exterior, devido sobretudo aos tra-balhos admiráveis de reconstrução histórica e análiseetnológica sobre a organização social dos Tupinambá.Os documentos restantes sobre esses índios de tantaimportância na história do Brasil eram conhecidos eexplorados, mas considerados insuficientes para se co-nhecer a sua organização. Daí os númerosos estudosparciais sobre aspectos de sua cultura, como os de Mé-traux. É que faltava, aos estudiosos brasileiros e es-trangeiros, a força analítica e a imaginação sociológicacom que ele operou uma verdadeira quadratura docírculo, produzindo aos 27 anos o livro inovador ecientificamente revolucionário, cujo título era para osespecialistas uma verdadeira provocação intelectual:A organização social dos Tupinambá. A estes dedicououtra obra fundamental sobre a função social daguerra e tirou-se consequências teóricas num terceirotrabalho, explorando a fundo as possibilidades pro-porcionadas pelo funcionalismo no estudo das fontes.

Simplificando, eu diria que a partir dali, isto é, dosanos de 1950, deu-se a rotação dos temas e FlorestanFernandes se empenhou numa realidade dramática donosso tempo: a situação do negro no Brasil. Associadoao nosso mestre Roger Bastide na pesquisa sobre rela-ções raciais promovida pela Unesco, ele se tornou umdos mais importantes conhecedores e analistas dessegravíssimo problema social e transitou do passado aocoração mais dramático do presente. Assim, o teóricoque estava privilegiando cada vez mais a visão marxis-ta se associava ao pesquisador que privilegiava cadavez mais o estudo da situação contemporânea. Estavaportanto pronto o terceiro Florestan Fernandes, o damaturidade, a partir dos anos de 1960. Este foi, porexemplo, o da luta pela escola pública, em cuja defesapercorreu o país numa campanha memorável; foi odos pronunciamentos de corte socialista, que levarama ditadura a submetê-lo, em 1964, ao inquérito poli-cial-militar e, ante a sua firme reação de infconformis-mo e destemor, a detê-lo num quartel do Exército. Odesfecho veio em 1969: a aposentadoria punitiva, queo obrigou a viver alguns anos no exterior.

Na fase mais recente de sua carreira, FlorestanFernandes acentuou a disposição de assumir no âm-bito mais largo da sociedade posições regidas pelospressupostos socialistas, aplicando-se a temas de re-levo político na ação e na produção, como é o casodo estudo magistral sobre a República de Cuba ouas análises da realidade política brasileira. Eu costu-mava dizer que, sem pertencer a nenhum partido,ele se tornou com o tempo uma espécie de partidoindividual, pois as suas palavras e as suas ações va-liam pela de uma agremiação aguerrida e conscien-te. Sob este aspecto, é preciso dizer que a atitudepolítica foi sempre um baixo-contínuo na sua vida delutador no campo da educação e da cultura. Mas fi-nalmente ele decidiu adotar um enquadramentopartidário e entrou para o Partido dos Trabalhado-res, do qual tem sido um dos militantes mais capazese fecundos, eleito e reeleito deputado federal. Nãome cabe assumir a tarefa de outros, falando da suaatuação no Congresso Nacional. Cabe-me apenas di-zer que como deputado socialista Florestan Fernan-des efetuou um movimento culminante na sua luta,inclusive porque se tornou simultaneamente um dosjornalistas políticos mais eficientes e penetrantesque temos tido, forjando um instrumento ajustadoao combate pela imprensa e se tornando, junto a pú-blicos vastos, intérprete do que se poderia chamarde pensamento socialista quotidiano. Da sala de au-la ao grande púgblico, ele modulou em escala cadavez mais ampla a sua atuação de analista da socieda-de e de combatente do socialismo.

Antonio Candido de Mello e Souza é professor aposenta-do de teoria literária e literatura comparada da Universi-dade de São Paulo.

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Florestan morreu. Ador que essa perdacausa em nós é imen-sa e está espalhadaem cada canto dopaís, partilhada por

tantos, que se contam aos milha-res, não só estudantes, não sóoperários, não só intelectuais,não só militantes mais e menosrevolucionários, não só simplesdonas-de-casa e homens do povo.

Morte prematura. Nem tive-mos a oportunidade de saber seele resistiria, se sua capacidadede transformar fraqueza em for-ça o faria mais uma vez renascer.Ele que buscou incessantementea verdade, encontrou a mortenum erro, erro que não foi dele.É trágico, revolta, torna aindamais difícil suportar esse fim.

Seu lugar ficou vazio.Florestan foi um fazedor de

caminhos. Enfrentando toda sor-te de dificuldades, abriu cami-nhos para si mesmo, para a Ciên-cia Social, para a educação públi-ca, para a universidade, para osocialismo.

A adversidade, em vez de oabater, o estimulava. Sabia queera preciso entendê-la para po-der vencê-la. Trabalhava o tem-po todo, sem trégua, pensando,estudando, pesquisando, para al-cançar esse entendimento e ofe-recê-lo à prática. Quando a dita-dura o perseguiu e tentou calara sua voz, não se calou, respon-

deu com produção ainda maior.Seu modo de ser, sua reflexão

criadora e seu compromisso polí-tico se entrecruzam e se inte-gram, fazendo dele um Homemde verdade, raro.

Talvez uma de suas obras maisnotáveis tenha sido a vida quesoube construir para si próprio ea pessoa que soube tornar-se.Lutou sempre, incansavelmente,obstinadamente às vezes. Lutoucontra as condições pesadamenteadversas que a situação pessoal esocial que herdara lhe impu-nham. Mas se manteve fiel à suaorigem humilde, tomando comodever representar aqueles com osquais ela o identificava, e o fezcom vigor e com alegria. Ele osamava. E jamais tomou comoseus os valores dominantes quelhe abririam vias mais fáceis paraa aceitação e a ascensão social.

Dignidade e integridade o dis-tinguem como pessoa. Era ho-mem de princípios, que o orien-tavam de fato em todos os planosda sua vida. Homem que não fa-zia concessões e não se deixavavergar, seja pelo poder, seja porinteresses mesquinhos. Sendo eleassim, não é difícil entender porque alguns o temiam ou mesmonão o toleravam, mas tambémpor que tantos o admiravam e oamavam e vão continuar a admi-rá-lo e a amá-lo.

A preocupação ética o acom-panhava também no seu trabalho

intelectual e político. Entendiaque ciência e ordem social iníquasão eticamente incompatíveis e,portanto, que a liberdade, a críti-ca e o compromisso social sãocondição da atividade intelectuale científica. Conseqüentemente,Florestan Fernandes era muitoexigente consigo mesmo. Buscousempre uma prática intelec-tual/política que lhe permitisseproduzir o máximo de conheci-mento rigoroso necessário àtransformação da sociedade, co-nhecimento capaz de oferecer su-porte “para abrir ou aprofundarrupturas com a ordem”, procu-rando ampliar tanto quanto pos-sível o alcance desse conhecimen-to para despertar consciências, norumo da construção de uma so-ciedade nova e de homens com-prometidos com essa construção.

Florestan Fernandes era so-cialista. Durante quatro anos desua juventude, participou do mo-vimento trotskista. Em seguida,admitiu que poderia ser mais útilcomo intelectual do que na mili-tância direta, mas sem perder devista o horizonte da luta pelo so-cialismo. Mais recentemente, re-tornou à atividade política comotal, exercendo um grande traba-lho pedagógico/político atravésda publicação periódica de seustextos em grandes jornais e setornando parlamentar pelo Parti-do dos Trabalhadores, como de-putado federal constituinte e

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ADEUS

Miriam Limoeiro Cardoso

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num segundo mandato como de-putado federal.

Crítico severo do capitalismo,não acreditava que as injustiças ea opressão geradas pela ordemcapitalista pudessem ser equacio-nadas e resolvidas dentro destamesma ordem. Foi permanente-mente um militante pela liberda-de, pela democracia da maioria epela revolução socialista.

Florestan amou sobretudo aliberdade. Num mundo tãoopressor e tão indigente de cora-gem e de lucidez, alguém comoele vai fazer falta, muita falta.

Florestan Fernandes é o nomemaior da sociologia no Brasil.Sua produção cientifica, cujo re-conhecimento ainda não alcan-çou a medida real do seu valor, ocoloca entre os grandes da Ciên-cia Social mundial. Ele foi, sim,um formador, um mestre, masfoi, acima de tudo, um cientista,um grande cientista.

Na universidade, não se con-tentou com abrir espaço apenaspara a sua própria afirmaçãoprofissional. Dedicou-se a for-mar pessoas, educando-as para atarefa cientifica, incutindo-lhes anecessidade da formação emprofundidade, do rigor e da dis-ciplina para a investigação cien-tífica sistemática. Incentivadordo trabalho coletivo, não exigia,porém, identidades, mas reco-nhecia e aceitava de bom gradoas diferenças. Seu intuito eraconstituir equipes de trabalhocapazes de produção autônomae de alto nível, para o que ofere-cia os maiores estímulos de quepudesse dispor.

A sua atividade formadora, noentanto, foi ainda mais ampla.Foi um ardoroso defensor daeducação pública e gratuita noBrasil, tendo participado ativa-mente das lutas desta causa, sejana Campanha de Defesa da Es-cola Pública, seja na elaboraçãoda Constituição de 1988 ou nosencaminhamentos da Lei de Di-retrizes e Bases da Educação Na-cional, ainda não concluída. E foi

um construtor de espaços institu-cionais para o desenvolvimentoda pesquisa e do ensino dasCiências Sociais. Sua contribui-ção para a construção da Facul-dade de Filosofia, Letras e Ciên-cias Humanas da Universidadede São Paulo foi, neste sentido,enorme e ímpar. Dela se afastouquando foi compulsoriamente“aposentado” pelo AI-5 em abrilde 1969 e, anos mais tarde, pordecisão própria, ao reconheceros limites institucionais e o isola-mento cultural da universidade.

Florestan Fernandes foi umfundador de ciência. Ele sabiaque estava implantando a socio-logia e a investigação sociológicacientífica em nosso meio. Masseu trabalho na área da ciênciaproduziu frutos ainda maiores emais belos. Seu esforço intelec-tual concretizou-se numa obraque não é somente vasta, mas éde ponta e, acima de tudo, é defi-nidora de uma problemática no-va, a partir da qual e dentro daqual se passou a pensar o Brasil eo capitalismo dependente. Ele éo autor, na ciência, de um univer-so de problemas original e fecun-do. Não mais as origens, as trêsraças e a miscigenação, conformeum viajante de outrora, que ha-via recomendado como se deviaestudar a história do país. Nãomais a tentativa de marcação detraços psicológicos trazidos parao campo social. Mas sim umaproblematização sociológica, aonível macro-histórico e estrutu-ral, das questões vivas e canden-tes da sociedade, na época. Emais, tais questões problematiza-das com rigor conceitual e comtratamento analítico compatívelcom a teorização explicativa quese espera de procedimentos cien-tíficos. Deve-se acrescentar queisso tudo ele fez mantendo umagrande coerência interna, coe-rência que deriva da perspectivasob a qual ele trabalhou desdesempre, a ótica dos dominados edos excluídos, do ponto de vistada transformação social.

Quando a sociologia no Bra-sil se desloca deste para outrosuniversos de problemas, fazuma opção, a qual se afirma ne-gando — e, se possível, esque-cendo e fazendo esquecer — aproblemática florestaniana e to-da a sua coerência teórica, me-todológica e política, o que se-guramente não deixa de ter níti-do significado teórico, metodo-lógico e político.

A problemática constituídapor Florestan Fernandes não seesgotou. Não somente porque éparte de uma obra científica devalor, que, como tal, é perene,mas porque permite pensar fe-cundamente, entender e explicara sociedade viva e em movimentoda qual fazemos parte. Essa pro-blemática não é, portanto, um ar-caísmo, ela não é apenas coisa dopassado. As formas, os conflitose as lutas presentes se esclarecemquando colocados sob a sua re-flexão e a sua luz. Trabalhandocom essa problemática, fica fácilperceber, nela e com ela, queFlorestan está vivo!

Devemos, portanto, falar deFlorestan Fernandes no presente.Sua obra está inscrita definitiva-mente na construção da CiênciaSocial. Seu modo de ser está mar-cado naqueles que tiveram o privi-légio de conviver com ele, naque-les que ouviram a sua voz ouacompanharam os seus gestos e osseus sonhos, e permanecerá comoexemplo de uma vida toda vividano mais alto nível de integridadepessoal, intelectual e política.

E, como ele costumava dizerultimamente, enfrentando sem-pre tão digna e corajosamente adoença e seus continuados e atro-zes sofrimentos: É preciso ter pa-ciência! E continuar lutando!

Miriam Limoeiro Cardoso é pro-fessora da Universidade Federal doRio de Janeiro, Departamento deCiências Sociais. Atualmente de-senvolve a pesquisa “Para umahistória do socialismo no Brasil: aobra de Florestan Fernandes”.

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Aatividade de Florestan Fernandes comosociólogo - desenvolvida nas funções deprofessor, teórico e pesquisador - ficoumarcada pela polarização entre as atra-ções do marxismo, enquanto doutrinada militância revolucionária, e a socio-

logia, enquanto disciplina acadêmica.Conforme afirmou em várias entrevistas, a origem

social o levou, em sua juventude, a sentir a forte atra-ção do marxismo, com a conseqüente atuação numgrupo trotskista clandestino, sob cuja orientação sededicou à luta democrática contra o Estado Novo.Essa atração do marxismo não se esgotou com a ju-ventude, como acontece com tantos intelectuais. Elase exerceria por toda a vida, até o último minuto.

Se o marxismo representou escolha iniciante, asociologia veio como vocação acadêmica, como elei-ção de carreira científica.

Florestan se empenhou na tarefa de colocar a ati-vidade sociológica universitária sobre bases teóricaso mais possível coerentes. Decerto, não se encontra-va solitário em semelhante empenho, uma vez que aele se entregaram tantos dos grandes nomes da so-ciologia no exterior e também no Brasil. Mas ao so-ciólogo paulista cabe o mérito inegável de haver da-do a contribuição principal à edificação conceitual emetodológica da disciplina em nosso país. Contribui-ção tão notável que ultrapassa o âmbito nacional ese integra no acervo internacional da sociologia.

A questão sempre presente em sua obra - sejanos livros de conceituação metodológica, seja naspesquisas concretas - é a de como a sociologia podee deve ser uma ciência, capaz de satisfazer às exigên-cias categóricas impostas a toda ciência. Mas tam-

bém sempre presente esteve a atração original domarxismo. Tal polarização poderia conduzir a incon-gruências e dilacerações esterilizantes. Não foi o ca-so de Florestan. Dedicou sua enorme capacidade detrabalho ao objetivo de substituir contradições porconfluências. Nem sempre o esforço se revelou bem-sucedido. Nem todas as contradições da polarizaçãointelectual puderam ser efetivamente superadas.Mas o resultado de tal esforço é admirável, entre ou-tras muitas razões, precisamente pelo fato de quenão apaga os vincos da polarização e de suas contra-dições intrínsecas.

A questão mencionada inexiste para os marxistas,que identificam o materialismo histórico com a pró-pria sociologia científica. O mais, para esses marxis-tas, seriam problemas de procedimento na pesquisaempírica, porém nunca questionamentos teóricos.Tal enfoque pôde ser fecundo nos países capitalistas,onde o marxismo por natureza assume uma posturacrítica e revolucionária. Se pôde ser fecundo, não ofoi, porém, naqueles casos, tão freqüentes, nos quaisa paixão dogmática prevaleceu sobre o imperativoda fidelidade aos fatos objetivos. Já na antiga UniãoSoviética e nos demais regimes comunistas do Lesteeuropeu, o marxismo, uma vez convertido em dou-trina oficial, ficou impedido da postura crítica e seesterilizou enquanto corpo teórico inspirador dapesquisa sociológica. Ali, simultaneamente, se asfi-xiou o marxismo e se cortou pela raiz a própria pos-sibilidade de uma sociologia.

A solução escolhida por Florestan consistiu emfazer de Marx um dos três fundamentadores da so-ciologia, em companhia de Émile Durkheim e deMax Weber. Assim, no plano da teoria, o materialis-

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CONFLUÊNCIAS E CONTRAÇÕES

DA CONSTRUÇÃO SOCIOLÓGICA

Jacob Gorender

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mo histórico comparece a par com o funcionalismopositivista e com a sociologia compreensiva.

Os três elementos não poderiam fundir-se numasíntese na qual perderiam as identidades originais edariam lugar a algo com características inteiramentenovas. No plano mais rigoroso da teoria, materialis-mo histórico, sociologia dos tipos ideais e sociologiafuncionalista não teriam como ser combinados a fimde engendrar um corpo doutrinário, que, ao mesmotempo, conservasse e superasse a contribuição de ca-da uma dessas teorias fundantes.

Foi possível, porém, fazê-las confluir para a cons-tituição compósita de um cânone metodológico. Nu-ma obra densa, publicada em 1963, Florestan reali-zou a façanha de explorar a riqueza canônica dastrês teorias, de extrair delas o que considerou maisgerminativo para a pesquisa das relações sociais epropor uma norma pluralista para a sociologia. Ado-tada por Florestan e por seus discípulos, a confluên-cia metodológica se comprovou proficiente.

Decerto, a confluência con-tinha dificuldades e mesmoobstáculos insuperáveis, pró-prios das composições ecléti-cas. Mas abria espaço para apesquisa e a explicação socio-lógica, fornecendo-lhe funda-mentos empíricos. Foi esta abase doutrinária em que as-sentou a escola sociológicapaulista, da qual coube a Flo-restan a liderança indiscutívele respeitada. Sua influência sefez sentir com o mesmo vigorliderante para além do âmbitoda sociologia, estendendo-se àantropologia e à historiografia.

Pode-se afirmar que a car-reira acadêmica permitiu aFlorestan a realização de umaobra de alta significação para a cultura brasileira, coma ressalva por si mesma evidente de que a carreiraacadêmica não seria uma condição suficiente. O quehouve de importante consistiu em que ela salvou Flo-restan da submissão ao marxismo dogmático impe-rante em nosso país, de tal maneira sufocante que secontam pelos dedos de uma só mão os intelectuais co-munistas que, durante décadas, conseguiram produziruma obra relevante. Condição necessária foram tam-bém, como não poderia deixar de ser, o talento pes-soal e a determinação para um trabalho incansável.

Observe-se que, dez anos depois de Florestan e,ao que tudo indica, sem conhecê-lo, o sociólogo bri-tânico Anthony Giddens levou a termo o mesmoempreendimento de exame das contribuições deMarx, Durkheim e Max Weber à moderna teoria so-ciológica. Giddens seguiu inspiração própria, que

não cabe aqui avaliar, mas é notável que houvessepercorrido exatamente a mesma trilha seguida pelocolega brasileiro com um decênio de antecedência.O que denota, sem dúvida, a força da percepção in-telectual do mestre paulista, bem como sua extraor-dinária afinação com a contemporaneidade.

Contudo, o marxismo não foi para Florestan tão-somente uma das três vertentes confluentes do méto-do sociológico. O marxismo teve para ele a significa-ção singular e única de indicador dos temas de pes-quisa, de crivo inicial das opções de investigação. Nacondição de líder de uma escola de pensamento so-cial, sua orientação se imprimiu na atividade de váriosdos mais destacados sociólogos brasileiros. O próprioFlorestan produziu trabalhos de grande envergadurasobre as questões em cuja priorização teve influênciadecisiva sua formação marxista. Questões como as desegmentos discriminados da sociedade brasileira, ouseja, os índios e os negros. Ou questões de relevânciaabrangente para o entendimento de nossa história e

da nossa vida social, como asda revolução burguesa, dasclasses sociais e do poder po-lítico num país dependente,do imperalismo e do desen-volvimento econômico numasituação de atraso histórico,da ditadura militar e da re-construção democrática nu-ma sociedade impregnadapela tradição autoritária dasclasses dominantes.

O mais notável foi, toda-via, que Florestan houvesseacentuado sua orientaçãomarxista neste final do nossoséculo XX abreviado, preci-samente quando ruíam oMuro de Berlim e os regi-mes comunistas do Leste eu-

ropeu. Sua convicção socialista se fortaleceu precisa-mente no momento em que passou a lavrar confusãotremenda na esquerda mundial (ainda persistente),induzindo reações de ceticismo, de desânimo e, nãoraro, de mudança de campo ideológico. Já afetadopela enfermidade que lhe havia de ser fatal, o profes-sor universitário se dedicou inteiramente à militânciapolítica, colocando seu prestígio e fazendo ouvir suavoz a favor dos oprimidos, daqueles que caracteriza-va como os “de baixo”. No parlamento, nas instân-cias do partido ao qual se filiou, nos sindicatos e nasescolas, na coluna de jornal, envolveu-se por inteirona luta de classes e deixou uma lição de agudeza in-telectual, de firmeza política e de integridade moral.

Jacob Gorender é historiador, professor visitante doInstituto de Estudos Avançados da USP.

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O marxismo não foi para

Florestan tão-somente uma das

três vertentes confluentes do

método sociológico. O

marxismo teve para ele a

significação singular e única de

indicador dos temas de

pesquisa, de crivo inicial das

opções de investigação.

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Um dos conceitospreferidos e maisr e i t e r a d a m e n t eutilizados por Flo-restan Fernandes,quer na sua obra

sociológica, quer naquela pro-priamente política, era o de “de-senvolvimento desigual e combi-nado”. Ele está presente namaioria de seus escritos de fôle-go, às vezes explicitamente, e àsvezes de modo implícito, comono primeiro parágrafo da suacontribuição na famosa coletâneasobre o Brasil, publicada em LesTemps Modernes em 1967: “Brasilvive, simultaneamente, em váriasidades histórico-sociais. Presente,passado e futuro se entrecruzame confundem, de tal modo que épossível passar de um estágio his-tórico para outro através do meiomais simples: o do deslocamentono espaço”.

Florestan e o PSR

Não é em absoluto irônico que,na hora da sua morte e do balançoapressado da sua obra e do seusignificado para o Brasil, o próprioFlorestan fosse considerado comouma expressão dessa “lei”, ao serqualificado como “um dos de-miurgos do Brasil moderno”, e co-mo o mais irredutivelmente socia-lista dos seus intelectuais, ou seja,

como portador simultâneo (“com-binado”) da “modernidade” (bur-guesa) e da sua negação socialista.Se, por um lado, temos aqui o nóda contradição à qual viu-se con-frontado, ao longo de toda a suatrajetória, aquele que não poucosconsideram o maior intelectualbrasileiro do século, temos tam-bém, por outro lado, uma das cha-ves para entender a relação entreo pensamento de Florestan e a lu-ta pelo socialismo no Brasil.

O conceito citado anterior-mente pertence ao arsenal dopensamento de Trótski, e a pró-pria relação de Florestan com osocialismo só se deixa entenderpela sua militância inicial (isto é,que precedeu à sua trajetóriaacadêmica) nos anos 40, no Parti-do Socialista Revolucionário, se-ção brasileira da IV Internacio-nal fundada por Leão Trótski em1938, liderada por Hermínio Sac-chetta até a sua dissolução, noinício dos anos 50.

Embora o PSR nunca atingis-se uma estatura político-organi-zativa realmente partidária, a mi-litância nele marcou Florestan deum modo em absoluto superfi-cial. Ele próprio se referiu ver-balmente ao assunto, em palestranum curso de pós-graduação mi-nistrado por Carlos GuilhermeMota, no Departamento de His-tória da USP, no segundo semes-

tre de 1981, quando relatou a“crise de consciência” que lheprovocou a sua saída do PSR noinício dos anos 50, para cumprircom obrigações decorrentes dacarreira acadêmica, então nosseus primórdios (manifestoutambém o seu agradecimento re-troativo ao apoio que AntonioCandido lhe dera na ocasião).Em 1986, agora por escrito, vol-tou a adotar o tom confessionalpara referir-se a essa transiçãodecisiva, que o marcaria para orestante da sua existência:

“Passado o período de militân-cia, defrontei-me com uma aco-modação improdutiva: ou ser mili-tante, com o sacrifício de minhaspossibilidades intelectuais, ou seruniversitário, com atividades polí-ticas de fachada, mistificadoras.Uma tormentosa crise foi resolvi-da com a generosidade dos com-panheiros políticos, que viam claroa realidade: a esquerda ainda nãopossuía partidos que pudessemaproveitar o intelectual rebelde deforma produtiva para o pensa-mento político revolucionário. Porsua vez, Antonio Candido ajudou-me a conviver com feridas e frus-trações, que sugiam como um pe-sadelo e me levaram a sublimar acastração política parcial com umaprática exigente e (acredito) auto-punitiva do significado da respon-sabilidade do intelectual”.

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FLORESTAN FERNANDES E O SOCIALISMO

Osvaldo Coggiola

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O “intelectual inorgânico”

Em 1981 ainda, Florestan ex-plicou que, superado o dilemainicial, e já de retorno de uma ex-periência acadêmica no exterior,defrontou-se com a inexistênciano Brasil de um partido de es-querda ao qual pudesse servir de“intelectual orgânico”, fora dopróprio PCB (do qual rejeitava asua natureza stalinista). Os de-poimentos de contemporâneos ea pesquisa deveriam, hoje, ajudara reconstituir a passagem de Flo-restan pelo PSR, que teve paraele pelo menos tanta impor-tância, na sua opção político-intelectual ulterior, quanto asua origem social na classeoperária, filho de uma lavadei-ra portuguesa e obrigado atrabalhar desde criança. Amilitância no PSR durou umadécada (desde 1942-3 até1952), também os anos de for-mação do Florestan intelec-tual e acadêmico (que lecio-nou na Faculdade de Filosofiaa partir de 1945). Em 1991,Florestan voltou sobre esseperíodo, em depoimento aTeoria & Debate:

“Comecei a freqüentar asredações de O Estado de S.Paulo, e principalmente da Fo-lha da Manhã, onde conheci oHermínio Sacchetta, que eralíder do movimento trotskista,ligado à IV Internacional. As-sim, em 43 me tornei militantedo Partido Socialista Revolu-cionário na célula a que perten-ciam o Sacchetta, Rocha Barros,Plínio Gomes de Mello, Vítor deAzevedo e José Stacchini... Oscomunistas levavam as pessoaspara reuniões, festas, conferên-cias, mas havia um elemento au-toritário que eu repelia. Com afiliação ao PSR, a seção brasilei-ra da IV Internacional, minhamilitância se tornou sistemática.Nessa época, fiz a tradução daCrítica da economia política, deMarx... (no PSR) Eu me mantiveaté o início dos anos 50. Aí os

próprios companheiros acharamque não seria conveniente que eudesperdiçasse o tempo em ummovimento de pequeno alcance,quando podia me dedicar a tra-balhos de maior envergadura nauniversidade. O Sacchetta, queera um homem esclarecido, meaconselhou: “É melhor você seafastar da organização e se dedi-car à universidade, que vai sermais importante para nós”.

A partir daí, teria início o dile-ma que preocupou e, visivelmen-te (pela freqüência com que apa-

rece nos seus trabalhos e depoi-mentos), até atormentou Flores-tan Fernandes, durante toda asua existência: o da unidade entreteoria e prática, sob o ângulo deum intelectual, ou seja, não ape-nas o do “engajamento” político-social, mas também o da perspec-tiva teórica a ser adotada no tra-balho intelectual, e a vinculaçãodeste com o desenvolvimento his-tórico real. São constantes as suasreferências a uma situação histó-rica que, nas suas próprias pala-vras, “arranca o sociólogo do ga-

binete, integrando-o nos proces-sos de mudança social, fazendo-osentir-se como alguém que possuio que dizer e que, eventualmente,poderá ser ouvido... A sociedade,que não lhe pode conferir sosse-go e segurança, coloca-o numaposição que o projeta no âmagodos grandes processos históricosem efervescência”.

Florestan defrontou-se comuma tarefa tríplice: 1) fundaruma sociologia científica no Bra-sil; 2) fazê-lo com base no desen-volvimento do pensamento mar-

xista; 3) fazer ambas as coisascombatendo o dogmatismo, decunho stalinista, perigo inevi-tável diante da preponderân-cia do PCB na intelectualida-de de esquerda brasileira. Le-vou-a ele adiante caindo numaespécie de ecletismo teórico,como parece sugerir CarlosGuilherme Mota? Ou a suavinculação com as “ciênciassociais” obedeceu ao padrãodefinido pelo sociólogo (e, en-tão, também trotskista) PierreFougeyrollas: “A pretensa con-ciliação entre ciências sociais emarxismo é comparável ao ca-samento da água com o fogo,cujo resultado só poderia ser aextinção do fogo. Entre aideologia das ciências sociais eo marxismo é preciso escolher.Escolhendo o marxismo, épossível integrar os saberesfragmentários fornecidos pelasciências sociais. Escolhendo asciências sociais como tais, é

completamente impossível inte-grar o marxismo”.

Florestan foi sempre conscien-te da separação total entre a so-ciologia marxista e a não-marxis-ta, partidário declarado da pri-meira, o que lhe forneceu o con-ceito-chave para a sua análise di-ferenciada da “revolução burgue-sa no Brasil”, definido nestes ter-mos: “Fora da sociologia marxistaprevalece o intento de explicar arevolução burguesa somente pelopassado (especialmente pela vitó-ria sobre uma aristocracia deca-

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Florestan defrontou-se com

uma tarefa tríplice: fundar

uma sociologia científica no

Brasil; fazê-lo com base no

desenvolvimento do

pensamento marxista e fazer

ambas as coisas combatendo

o dogmatismo, de cunho

stalinista, perigo inevitável

diante da preponderância do

PCB na intelectualidade de

esquerda brasileira.

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dente e reacionária, variavelmen-te anticapitalista), ignorando-seou esquecendo-se a outra face damoeda, com freqüência mais de-cisiva: a imposição da dominaçãoburguesa à classe operária”.

Sociologia e política

Não parece, portanto, que te-nha estado entre as suas intençõesa elaboração de uma “síntese ori-ginal” entre “Wright Mills, Thors-tein Veblen, Max Weber, KarlMannheim e Karl Marx” paraanalisar o Brasil, como afirmaEmília Viotti da Costa, emboraela acerte em situar o dilema cen-tral de Florestan e seu contextohistórico-social:

“Como conciliar rigor acadê-mico e militância política é umaquestão que tem atormentado,senão mesmo paralisado, muitosintelectuais do nosso tempo. Sãopoucos os que, como FlorestanFernandes, conseguiram satisfa-zer as demandas, por vezes con-traditórias, desses dois tipos deenvolvimento. A maioria acaboupor sucumbir ao desafio, ouabandonou o trabalho intelec-tual para dedicar-se à política,ou sacrificou a militância às exi-gências da academia. Esse dile-ma é peculiar ao nosso tempo,quando o intelectual se profissio-nalizou e suas atividades comoprofessor, pesquisador e escritortornaram-se cada vez mais ab-sorventes, em detrimento do en-gajamento político”.

A tarefa múltipla

Vejamos mais de perto a trí-plice tarefa com que se defron-tou a obra de Florestan. De umlado, ele é legitimamente consi-derado como o principal introdu-tor da “sociologia moderna” noBrasil. No entanto, ele não se fa-zia ilusões sobre essa sociologia,cujas origens históricas na crisedo capitalismo e da necessidadedesse sistema de adequar-se aela, ele sabia reconhecer: “A so-

ciologia nasceu da crise do siste-ma capitalista moderno, no sécu-lo XIX, como um conjunto depreocupações que apanham amudança. Trata-se de um sistemade civilização que necessita damudança para se manter emequilíbrio. O essencial é partir daidéia de sociedades que mudam,que, quando não se transformam,se enfraquecem”. Florestan nadateria oposto à conhecida defini-ção de Anísio Teixeira: “Em ri-gor, as ciências sociais são ciên-cias políticas, só podendo seraplicadas quando forem aceitas

politicamente, ou seja, quandoaceitas pela estrutura do poder”.

Isto significa uma tarefa du-pla, ou um desdobramento neces-sário da tarefa inicial: induzir,junto à necessária introdução da“modernidade sociológica” (sema qual o pensamento brasileiro fi-caria atrelado ao padrão tradicio-nalista), a sua própria crítica. Es-ta provinha, simultaneamente, deum campo exterior à sociologiaacadêmica (o marxismo, que emFlorestan precedeu à sociologia)e de um campo interior, comomanifestação da autoconsciênciada crise sociológica, tal como foisintetizado pelo seu discípulo Oc-távio Ianni: “Estamos assistindo

à decadência da “imaginação so-ciológica”. Com a implantação eexpansão da divisão do trabalhono campo das ciências humanas,com a institucionalização dessaatividade científica, com a redefi-nição social dos significados polí-ticos do conhecimento relativo aosocial, abandonam-se paulatina-mente as possibilidades abertaspelos pioneiros das ciências hu-manas. Em especial, procura-seabandonar a problemática dosclássicos e a compreensão básicados tipos de vinculação dos ho-mens entre si e com as configura-ções histórico-estruturais”.

A possibilidade de sair dessaambigüidade situacional estariadada pela prática do que um ana-lista da obra de Florestan definiucomo “saber militante”, ou seja,através de uma “sociologia enga-jada”, cujo padrão básico foradefinido por T. B. Bottomore em1974: “O teste básico de qual-quer ‘teoria crítica’ ou ‘sociologiade oposição’ só pode ser o desen-volvimento ou o fracasso em de-senvolver movimentos sociais deampla escala, que busquem criar,e comecem a fazê-lo na prática,uma forma de vida social iguali-tária, não coercitiva. Neste meio-tempo a teoria permanece hipo-tética. O que justifica a sua exis-tência atualmente e torna tal in-vestigação teórica válida é a po-tencialidade que se manifestouno movimento operário e nos no-vos movimentos sociais da déca-da passada no sentido de umaatividade renovada para transfor-mar a sociedade”.

Num escrito de 1967, Flores-tan nomeava esperançosamenteos potenciais membros da “esco-la” para a qual se considerava“fio condutor”: “Servi como umaespécie de fio condutor, ligandohipóteses e conclusões funda-mentadas em várias investiga-ções, realizadas por mim ou porFernando Henrique Cardoso,Octávio Ianni, Luiz Pereira, Ma-rialice Mencarini Foracchi, PauloSinger, Juarez Brandão Lopes,

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De um lado, ele

(Florestan) é

legitimamente

considerado como o

principal introdutor

da “sociologia

moderna” no Brasil.

No entanto, ele não se

fazia ilusões sobre

essa sociologia.

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Leôncio Martins Rodrigues Net-to, Maria Sylvia Carvalho FrancoMoreira, Roberto Cardoso deOliveira, José Carlos Pereira, Jo-sé de Souza Martins, José CesarAprilanti Gnaccarini, GabrielCohn e vários outros colegas (al-guns de outras cadeiras, comoFrancisco C. Weffort, FernandoNovaes, Emília Viotti da Costa,Nícia Vilela Luz, Gioconda Mus-solini, Eunice Ribeiro Durhanetc.) É provável que, no futuro,se possa ir mais longe, corrigin-do-se as lacunas do esquema dereferência que tentei construirsobre fundamentos ainda relati-vamente precários”.

Como é bem sabido, as identi-dades políticas construídas pelosmembros desse grupo foram asmais diversas, sendo as mais no-tórias (a começar pelo próprioFHC) diametralmente opostasaos anseios políticos de Flores-tan. Como quer que seja, nosanos seguintes Florestan seriamuito otimista quanto ao futurorumo político da intelligentsia la-tino-americana e brasileira, emespecial sob a influência da revo-lução cubana, que teria dado“alento às correntes sociais quenão se empenhavam, apenas, emcombater ‘os problemas humanosdo subdesenvolvimento’, mas emcorrigir, simultaneamente, os di-lemas materiais e morais da or-dem social capitalista; e compeliuos ‘círculos de esquerda’, de di-versos matizes, a reverem e a mo-dificarem a estratégia anterior,de contenção do radicalismo po-lítico e de apoio decidido a umnacionalismo econômico despro-porcionalmente benéfico aos in-teresses empresariais”.

Nesse quadro, e contra o pa-no-de-fundo das ditaduras milita-res, um importante papel históri-ca estava reservado aos intelec-tuais. Sobre esse papel potencial,Florestan se expressou em termosclaramente otimistas: “As ditadu-ras militares atuais e seus possí-veis sucedâneos não podem evitarum colapso futuro (que poderia

ser evitado unicamente se uma re-volução burguesa autônoma ocor-resse, como sucedeu nos EstadosUnidos e no Japão). A consciên-cia política de tal situação históri-ca não foi alcançada por todos osintelectuais. No entanto, os círcu-los intelectuais mais maduros eresolutos da intelligentsia latino-americana estão aprendendo,através de experiências concretas.De um lado, estão descobrindo osmeios potenciais da revolução so-cialista na América Latina (tão di-versos dos modelos ‘clássicos’ jáconhecidos). Por outro lado, estãoacumulando novos conhecimen-tos sobre a estrutura e a dinâmicado sistema de classe sob o capita-lismo dependente, ou seja, conhe-cimentos que constituirão a basepara uma teoria viável da revolu-ção socialista na América Latina”.

Intelectuais e socialismo

Uma década depois, Florestanconstatava que o colapso das dita-duras não realizava essas previ-sões, muito especialmente no quediz respeito à inevitável radicali-zação política da intelligentsia. Eleatribuiu às mudanças estruturaisdo capitalismo a raiz desse pro-cesso: “No presente, o capitalismooligopolista vinculado à automati-zação e à administração informa-tizada aumentou, sob esse aspec-to, o espaço da classe dominantee reduziu drasticamente a capaci-dade de iniciativa dos de baixo”.

Por outro lado, deve-se cons-tatar que as condições de misériasocial que, no seu momento, pre-cederam o surgimento da “socio-logia crítica” não fizeram senãopiorar. Essas mesmas condições,combinadas com a crise políticadas ditaduras (o seu “colapso”),foram palco do nascimento demovimentos inéditos dos traba-lhadores, pela sua amplitude eprofundidade, que propiciaram,por exemplo, no Brasil, o surgi-mento da CUT e do PT. As con-dições objetivas e subjetivas quedeveriam favorecer um engaja-

mento socialista da intelectuali-dade, no entanto, produziam oefeito contrário. Florestan cons-tatou claramente: “Muitos inte-lectuais e políticos da ‘esquerda’- antigas vítimas da ditadura, lu-tadores de proa da década desessenta ou no início dos setentae grandes esperanças do radica-lismo democrático e do socialis-mo - aderiram a esse jogo, semrebuços. O mesmo acontece comorganizações e entidades políti-cas que deveriam ser proletáriase se mostram ‘aliancistas’. Aoque parece, o desenraizamentonão chegou tão fundo a ponto dedesprender os intelectuais rebel-des, os políticos inconformistas eas organizações e entidades revo-lucionárias da ordem burguesa,identificando-os com o socialis-mo proletário. Conformam-seaos papéis de campeões da ‘nor-malidade institucional’, comocauda do movimento políticoconservador, cérebros do ‘mu-dancismo’ e mão civil da transi-ção lenta e segura...”

A perspectiva teórica de Flo-restan se modificava no confrontocom o desenvolvimento históricoe a luta de classes. Não foi casualque, no 50º aniversário da mortede Leão Trótski, não vacilasse emrepor claramente “o conceito derevolução permanente de Marx eEngels em uma perspectiva simul-taneamente teórica e prática, indoao fundo dos dinamismos coleti-vos das classes despossuídas naimpulsão e na fusão dialética dereforma e revolução sociais”, fa-zendo desta reposição a base paraser “implacável com os ‘fariseus’que se proclamam socialistas ouex-marxistas, mas cerram fileirascom as correntes intelectuais damoda a partir dos centros de pro-dução cultural e de propagandadas nações capitalistas centrais. Ademocracia que nasce do marxis-mo nada tem a ver com a demo-cracia plutocrática”.

Com toda essa bagagem, Flo-restan estava mais do que prepa-rado para denunciar o novo álibi

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ideológico do reformismo e do fa-risaísmo, posicionando-se, nas po-lêmicas iddeológicas mais recen-tes, contra a possibilidade de que“o socialismo desapareça e que omarxismo se torne uma peça demuseu, tema de mera reflexãoabstrata de historiadores, filósofose cientistas sociais. Ora, o que équestionável é a existência de um‘neoliberalismo’. Harold Laski jádemonstrou que o liberalismo nãosobreviveu à transformação histó-rica das condições que o engen-draram. Hoje, sua argumentaçãoencontra suporte ainda mais sé-rio. Que ‘neoliberalismo’ poderiaajustar-se ao desenvolvimento dasmultinacionais, à internacionaliza-ção do modo de produção capita-lista em seu modelo oligopolista eao sistema de poder que resultoudessas metamorfoses do capital?”

Florestan no PT

De tudo que antecede,se depreende que Flores-tan não se incorporou acri-ticamente ao Partido dosTrabalhadores, sendo seudeputado federal mais vo-tado (depois de Lula) em1987, exercendo duas vezesesse mandato. No mesmomomento, denunciava que“o socialismo comprometi-do com a democracia bur-guesa ainda é uma formade reprodução do sistemacapitalista de poder. A revoluçãoproletária volta-se para a emanci-pação coletiva dos trabalhadorespelos próprios trabalhadores. Ouo PT decifra a solução corretadessa necessidade histórica nacena brasileira ou ele engrossaráas fileiras dos partidos reformis-tas imantados à ‘reforma capita-lista do capitalismo’, ao ‘capita-lismo melhorado’ ou ao ‘capita-lismo do bem-estar social’. Pensoser esta a principal resposta às in-dagações, às esperanças e às con-vicções que nos lançam, dentrodo PT, à luta pelo socialismo pro-letário e revolucionário”.

Há mais de uma década, Flo-restan Fernandes foi pela primeiravez vítima do colapso do sistemabrasileiro de saúde pública, quan-do, depois de uma operação semriscos, recebeu uma transfusão desangue contaminado pelo vírus dahepatite B. A partir desse momen-to, começou a sofrer sistemáticosproblemas de saúde, originados dofígado, que o levaram nos últimostempos à beira da morte. Os siste-mas de detecção do vírus da hepa-tite B já eram bem conhecidos naépoca da tranfusão, mas não eramaplicados no sistema de saúde pú-blica; isto em plena época do “mi-lagre brasileiro”.

Desde então, a situação pio-rou, chegando aos níveis do paro-xismo, levando a saúde públicabrasileira a ostentar índices situa-dos entre os piores do mundo,

começando por uma epidemiasistemática de “infecções hospi-talares”, que levaram milhares depacientes à morte como conse-qüência de coisas tão simplesquanto uma operação de apendi-cite. É óbvio que se tratou deuma política consciente de des-truição da saúde pública, ao ser-viço da privatização da saúde,que assistiu à constituição deenormes monopólios de merca-dores do corpo (cujas empresasnão pagam impostos por serem“serviços de interesse geral”!).

Florestan Fernandes semprerecusou qualquer privilégio deri-

vado da sua condição de figurapública e deputado (como o fa-moso expediente de “furar a fila”dos transplantes) e exigiu ser tra-tado pelo sistema de saúde públi-ca, como exemplo de luta para asua defesa. Recentemente, inclu-sive, recusou a oferta que lhe fi-zera Fernando Henrique Cardo-so, seu antigo aluno e discípulo,para um tratamento vip no exte-rior, sem gastos de sua parte.

A discusão que sua morte de-sata será uma ocasião para de-nunciar a destruição do sistemade saúde pública, a serviço dosgrupos capitalistas. “Erro médi-co” ou “falha de máquina”: atéum néscio sabe que quanto pioro funcionamento dos instrumen-tos e equipamentos (por falta demanutenção) maiores são aschances de erro humano. A atitu-

de valente de Florestandeve ter a merecida res-posta dos combatentesque permanecem.

A denúncia do segun-do assassinato de Flores-tan Fernandes deve seruma plataforma em defe-sa da saúde e da educaçãopúblicas, contra os mono-pólios capitalistas, contrao imperialismo espoliadordo Brasil, contra o gover-no que impulsiona a polí-tica que acelerou a mortedo mestre do próprio pre-sidente da República.

Como disse um sindicalista,nem na hora da morte Florestandeixou em paz os inimigos da clas-se trabalhadora. Ficam conosco oexemplo de uma vida e a fecundi-dade de uma obra que florescerãonas novas gerações de revolucio-nários do Brasil e da América La-tina, junto aos quais permanecerácomo um fermento de revolta ede pensamento crítico, em todasas circunstâncias, para sempre,Florestan Fernandes.

Osvaldo Coggiola é professor doDepartamento de História da USPe vice-presidente da Adusp.

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Florestan não se incorporou

acriticamente ao Partido dos

Trabalhadores ... denunciava que

“o socialismo comprometido com a

democracia burguesa ainda é uma

forma de reprodução do sistema

capitalista de poder...”.

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ÁLBUM

Fotos do arquivo da família

Em 1925, aos 5

anos, Florestan

Fernandes numa de

suas primeiras

fotografias. À

direita, em 1934,

com sua mãe, Dona

Maria Fernandes.

Acima, em 1926 (sentado na segunda fila, o

terceiro da esquerda para a direita), com a

turma do primário do

Grupo Escolar Maria José.

Em São João da Boa Vista, Florestan,

o segundo da direita para a esquerda,

com os companheiros de Madureza.

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Em 1936, no Tiro de

Guerra e, em 1944, com

um grupo de estudantes

da Faculdade de Filosofia,

Ciências e Letras da USP,

na divisa do Brasil com

o Paraguai.

Na Feira Nacional da Indústria

(São Paulo, 1940), Florestan

com sua futura esposa,

Dona Myrian Rodrigues.

Em 1963, com o filho Júnior,

na Alameda Jaú.

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Durante o primeiro

comício da Campanha

das Diretas (novembro

de 1983/ Praça Charles

Müller), Florestan com o

filho, Caio Prado Jr. e o

publicitário Carlito Maia.

Ao lado, na primeira

reunião da campanha

eleitoral (1986) e, abaixo,

com Antonio Candido e

Aziz Ab'Saber, em 1994, na

USP, durante o lançamento

do livro "13 razões para

votar em Lula".

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Intelectual coerente

Florestan Fernandes foi umsociólogo coerente com as suasorigens populares, de alfaiate,garçom e engraxate. Como inte-lectual, cumpriu rigorosamenteo sentido da palavra “intus-le-geris”, ou seja, aquele que é ca-paz de ler por dentro. Toda me-todologia que ele adotou na suasociologia é aquela que nos ex-plica melhor as causas dos pro-blemas e dos fenômeno sociais.Por outro lado, um homem coe-rente com os seus princípios.Não era daquele que trocava deconvicção e de ideologia comoquem troca de camisa. Umapessoa coerente no sentido deque a razão pela qual ele tantose dedicou à militância e ao tra-balho intelectual não só conti-nua a existir, como cresce dia-riamente, que é a pobreza nomundo e, em especial, no Brasil.Então, nesse sentido, o legadoque ele nos deixa é prosseguirnessa luta para superar esse es-tado de desumanidade da maio-ria da população. Destaco o tra-

balho que ele teve como deputa-do, já que era um excelente ededicado parlamentar. A partici-pação dele, sobretudo na elabo-ração da Constituição, foi fun-damental para assegurar algunsdireitos sociais.

Carlos Alberto Libânio Christo (FreiBetto) é escritor, autor de O paraíso per-dido - nos bastidores do socialismo.

Palavra de despedida

Foi-me pedido que falasseem nome da Congregação, dosprofessores, dos funcionários,dos alunos e dos ex-alunos daFaculdade de Filosofia; que pro-nunciasse, neste momento, apalavra pequena e pobre da ho-ra solene da despedida, hora dosilêncio e do pranto.

Difícil palavra porque nosdespedimos de alguém que per-manece e permanecerá. Em pri-meiro lugar, palavra de gratidãoà Dona Myriam, aos filhos e pa-rentes do professor FlorestanFernandes por terem comparti-lhado conosco, seus alunos ecolegas, o privilégio de com eleconviver e de com ele aprender.Que seja também palavra deapoio e de amizade de todosnós que nele tínhamos o mestre,o amigo e companheiro.

E que seja também uma pa-lavra aos alunos, aos jovens es-tudantes, que não t iveram ogrande privilégio de acompa-nhar suas aulas, de ouvir suaslições de professor competente eexigente, apaixonado pela causado ensino e da ciência.

Mesmo do exílio seus alunose ex-alunos recebiam comentá-

rios longos e cuidadosos, escri-tos com tinta roxa, sobre os tra-balhos que lhe mandavam. Oargumento sempre lúcido doamigo que era, do professor quenunca deixou de sê-lo.

Através da obra extensa e ri-gorosa, o professor continuaráensinando - ensinando a deci-frar os enigmas desta complexasociedade, a entender o nossopovo e o nosso país, a encontrarcaminhos e veredas.

O seu legado não se esgotaaí, porque ele foi também mes-tre de vida, de luta contra injus-tiças, de resistência ao que pu-desse arranhar até mesmo os di-reitos de seus adversários, deempenho obstinado em favordos direitos dos que, como ele emuitos de nós, vieram dos re-cantos escuros da sociedade.

O professor Florestan Fernan-des nos deixa um imenso legado.Não só legado à universidade e àciência. Mas ao nosso país, aoqual ofereceu completamente,sem amargura, em retribuiçãogenerosa, o que de melhor a vidalhe deu. Tudo retribuiu multipli-cado e com grandeza.

Nesse imenso legado a seusalunos e a todos nós, o maior,certamente, é o legado da ale-gria de lutar pela grande causada emancipação do homem detodas as carências e de todos oscativeiros - aqueles que se podever e os que não se deixam ver,mas oprimem e humilham.

Palavras pronunciadas no velório doprofessor Florestan Fernandes, noSalão Nobre da Faculdade deFilosofia, Letras e Ciências Humanasda Universidade de São Paulo, no dia10 de agosto de 1995, pelo professorJosé de Souza Martins, antigo aluno eassistente do professor FlorestanFernandes na cadeira de Sociologia I.

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Homenagens

Ronaldo Entler