O Casarão 10

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nº dez - abril/maio de 2015 1 nº dez - ABR/MAI - ano 4 - 2015

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Casa em obras. Desculpe o transtorno. Enquanto os representantes que não representam se acomodam sorridentes em suas cadeiras, os (mal) representados maquinam ideias para mudar as caras, sempre as mesmas, que posam para os flashes no primeiro de janeiro de cada biênio. Borbulham as divergências sobre a quantidade necessária de sacos de cimento ou a marca de argamassa mais adequada para a reforma. Há os que pretendem pôr tudo abaixo e construir um sistema político do zero, com novos alicerces. Também estão presentes os engenheiros mais cautelosos que defendem a elaboração detalhada de um amplo plano de reparos. Opiniões plurais, coletadas com carinho a quem quiser abrir a porta.

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Caminho à esquerda

Carros frenéticos no Centro do Rio de Janeiro, pedestres de um lado a outro no fim de mais um dia de trabalho. Ônibus superlotados. A multidão enérgica passa-va pelas ruas, pelas barracas, pelas esca-das do metrô. Em um edifício comercial na Cinelândia, O Casarão encontrou-a. Uma vida dedicada às causas da esquerda e ao jornalismo alternativo, comunitário e popu-lar. Entre as notícias e os fatos históricos, ela abraçou o sindicalismo, o trabalhador. O vermelho vivo e voraz desabrochou no Brasil de Fato e no Núcleo Piratininga de Comunicação.

Nascida em Campo Grande e morado-ra da Tijuca, Claudia Santiago é também mãe, esposa e jornalista pela UFRJ. Cur-sou História e ainda pretende estudar Li-teratura. Atualmente, administra a livraria Antonio Gramsci com Vito Gianotti, seu marido e companheiro de militância. Ex--integrante do Partido Comunista Brasi-leiro, ela defende que a boa política não é feita apenas por um partido e que as pessoas boas estão espalhadas por aí. Ela afirma que é da esquerda e decla-ra: “não cedo nem um pouquinho. Mas não sou daqueles intransigentes que consideram o PT como inimigo”.

Por André Borba e Felipe Magalhães

Felipe Magalhães

Claudia Santiago, coordenadora do Núcleo Piratininga de Comuni-cação, defende uma comunicação construída pelos trabalhadores

Claudia Santiago também é fundadora do Brasil de Fato no Rio de Janeiro

Durante muito tempo você traba-lhou com comunicação sindical. Em algum momento isso se aliou à

comunicação comunitária?Dentro da Central Única dos Trabalha-dores (CUT) e nos sindicatos, procurei fazer uma comunicação alternativa que fosse comunitária. Queria que o pes-soal da base escrevesse, construísse. Nunca me comportei como “a jorna-lista” que possui o saber acadêmico e que eles deveriam respeitar por isso. Minha ligação com a comunicação co-munitária é muito menor do que com a comunicação sindical. Eu sou jornalista de sindicato, apesar de eu não traba-lhar mais em sindicato desde 2008. Eu sou de Campo Grande, embora tenha saído de lá aos 17 anos. É mais ou me-nos a mesma coisa.

Você faz parte da equipe do impres-so Brasil de Fato. Como você come-çou a participar?O jornal surgiu em São Paulo, no Fó-rum Mundial Social, em 2003, e foi lan-çado em uma grande festa no estádio Araújo Vianna, em Porto Alegre. Foi um sonho. O BF chegou ao Rio com a iniciativa de se criar um coletivo de jornalistas que produzissem, escre-vessem, e que ele fosse produzido co-letivamente por todo o país, apesar de isso nunca ter funcionado muito bem. Comecei a participar por acreditar que

o caminho de decência do jornalista é fazer um bom jornal, que mereça ser lido, que respeite o leitor.

Na grande imprensa, muitos jorna-listas assumem o discurso dos pa-trões. Por que isso acontece?Não vejo o jornalista como um traba-lhador diferente. A cabeça dele é feita como é a dos outros, feita pela mídia dos patrões. Ele é parte da socieda-de. Os valores, as ideias são todas contaminadas por valores dominantes na sociedade. São ideias antipovo, antitrabalhador, antivida. É lucro. Isso aparece no trabalho deles como apa-rece no de qualquer pessoa. Não con-sidero o jornalista diferente de outro trabalhador.

Com a internet, surgiram vários blogs e sites de informação alter-nativa. Existe alguma ameaça aos veículos hegemônicos?A internet é uma ameaça. Ela pode ser utilizada de uma forma positiva, para ameaçar um monopólio que fere os in-teresses da população e pode ser usa-da, também, para acabar rapidamente com reputações, de uma forma muito violenta. A internet tem esse poder de mobilização, de juntar. E isso pode ser usado para bem e para o mal.

Tem que haver uma regulamenta-ção dos meios de comunicação?Não tenho a menor dúvida. Tem que regulamentar. É só colocar em prática o que está na Constituição. A proprie-dade cruzada é um escândalo. Além da concentração na mão de poucas famílias, tem ainda os coronéis, que são donos de todas as rádios nos es-tados, e também são donos de televi-sões e jornais.

Você hoje está em algum partido?Não. Saí do PCB faz muito tempo. Vo-tei no PT por muitos anos. Hoje estou enroscada. Tem tanta gente boa por aí no PT, PSOL, PSTU, PCB. Sou da es-querda, não cedo nem um pouquinho. Mas não sou daqueles intransigentes que consideram o PT como inimigo.

ENTREVISTAEDITORIAL

Casa em obras. Desculpe o transtorno

Enquanto os representantes que não representam se acomodam sor-ridentes em suas cadeiras, os (mal) representados maquinam ideias para mudar as caras, sempre as mesmas, que posam para os flashes no primei-ro de janeiro de cada biênio. Borbu-lham as divergências sobre a quanti-dade necessária de sacos de cimento ou a marca de argamassa mais ade-quada para a reforma.

Há os que pretendem pôr tudo abaixo e construir um sistema político do zero, com novos alicerces. Tam-bém estão presentes os engenhei-ros mais cautelosos que defendem a elaboração detalhada de um amplo plano de reparos. Opiniões plurais, coletadas com carinho a quem quiser abrir a porta.

Já dentro da casa, na qual cada cômodo desempenha uma função, cada página (ou dupla de páginas) traz um contraponto. No quarto, rola um bate-papo com o cineasta Silvio Tendler, que acaba de lançar o docu-mentário “Privatizações: a Distopia do Capital”. Na sala, quem comanda o assunto são os profissionais da gra-xa, adeptos de uma ocupação cente-nária que persiste apesar do tempo no Centro do Rio.

Entre e deixe a porta aberta!

Reportagem e Fotografia: Amanda Soares, An-dré Borba, Augusto Mendes, Beatriz Jorge, Ber-nardo Oliveira, Bianca Alcaraz, Clara Barreto, Elena Wesley, Fabio Peixoto, Felipe Magalhães, Fernanda Costantino, Filipe Galvão, Francielly Ba-liana, Gabriela Antunes, Gabriela Novaes, Gabriel Vasconcelos, Gustavo Xavier, Isabella de Oliveira, João Pedro Soares, Leonardo Moura, Lucas Bue-no, Lucas Farizel, Luís Pedro Rodrigues, Marcos Kalil, Nathalia Vincentis, Raíssa Vidal, Rafael Bol-soni, Rebeca Letieri, Sabrina Nunes, Samantha Su e Wesley Prado. Arte: Arthur Figueiredo, Claudia Baldner, Gabriel Faza, José Gustavo Cal, Mariana Xavier e Thiago Medeiros. Redes sociais: Flavia Novelli, Gabriel Faza, Felipe Costa e Mariana Xa-vier

[email protected]/jornalocasaraoissuu.com/ocasarao

Produção laboratorial do curso de Comunicação Social

Orientação:Carla Baiense (18788 MTb) e Ildo Nascimento

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A última eleição para presidente gerou polarização entre os brasileiros. Após o segundo turno, quando Dilma Rousseff (PT) foi reeleita com 51,64% dos votos válidos, os opositores resolveram rea-gir. Além das petições que queriam o impeachment da presidenta, diversas pessoas se reuniram para implorar ao Exército Brasileiro, através do Facebook, que tomasse alguma iniciativa para derru-bar o atual governo. “Por favor em nome da nossa Pátria, olhem por nós. Nos liber-tem desse governo petista!”, comentou Katia Maurer, em uma foto postada na página oficial do Exército. Diante disso, o Clube Militar publicou uma nota, alegando que “a maioria decidiu. Não interessa que não seja a nossa opção.” Ainda assim, os pedidos continuaram.

Para o coordenador do curso Estudos de Mídia da UFF, Afonso de Albuquerque, a internet criou a lógica dos fãs e haters. “Tem muito mais petistas do que simpa-tizantes de outros partidos somados, só que tem muito hater do PT que não é simpatizante de outros partidos. Nós vi-vemos um contexto de política, não pela internet, mas por sua própria natureza, no qual estamos experimentando uma polarização, no Brasil, sem precedentes desde a democratização”, disse ele.

Além das discussões nas redes so-ciais, esses grupos se manifestaram nas ruas contra o resultado das eleições. Em algumas dessas manifestações, no en-tanto, o número de confirmações online foi muito superior ao de pessoas que efetivamente foram para as ruas. Afonso acredita que se superestima o poder de organização da internet. “A internet pro-duziu um fórum de discussão, no qual as pessoas repercutem aquele assunto ad eternum, com uma intensidade que não existia antes. Os assuntos ganham muita visibilidade, de uma forma histérica, mas logo as pessoas esquecem”, conclui.

Para entender a atual conjuntura po-lítica do Brasil e a polarização destas úl-timas eleições, o historiador Adriano de Freixo, mestre em História Política pela UERJ, analisa o momento em que sur-giu um novo grupo de ideias no país, o que ele chama de “nova direita”. Para ele, esse surgimento pode ser identificado a partir da chegada do ex-presidente Lula ao poder, quando o governo realizou uma série de políticas públicas que minimiza-ram a histórica desigualdade social.

Existe a direita tradicional, que tem posições mais conservadoras do ponto de vista da moral, e a “nova direita”, que se identifica com posições da antiga, mas encampa algumas bandeiras progressis-tas. “Aquilo que os define como de direi-ta são determinados discursos, como a defesa da meritocracia, a crítica aos pro-gramas sociais e de distribuição de renda definidos como assistencialistas, a crítica a políticas de ações afirmativas, a defesa do estado mínimo ”, diferencia. Este novo grupo, unido à lógica dos fãs e haters, faz com que o antipetismo se fortaleça.

A insatisfação com a situação política e econômica do país formou essa parce-la decidida a fazer mudanças, o que fez com que a oposição soubesse o que falar para conquistá-los. O partido de oposição que acirrasse esse discurso teria maior possibilidade de chegar ao poder. Por isso, “o discurso anti-PT acabou favore-cendo o Aécio, que cresceu na reta final por encarnar melhor esse sentimento do que a Marina, pois todo movimento de polarização dificulta o surgimento de uma terceira via”, afirmou o historiador.

Irresponsabilidade no discursoA postura conservadora associada à

Ditadura Militar era reconhecida como algo negativo. Recentemente, os grandes grupos de mídia tiveram um papel funda-mental na legitimação pública da ideolo-gia tanto da direita tradicional, quanto da “nova direita”. Isso fez com que os grupos que se identificavam com essa vertente ideológica “saíssem do armário”.

O ressurgimento dessa direita e sur-gimento da nova não significam, porém, uma homogeneidade de ideias. “É claro que dentro dessa direita não há uma po-sição única, embora esses setores façam

mais barulho, os que defendem a inter-venção militar estão longe de serem ma-joritários”, acrescentou o pesquisador.

O problema, para Freixo, da radicali-zação dos discursos reside na irrespon-sabilidade de alguns setores da oposição: “Você já tem no submundo da internet um monte de teorias conspiratórias, aí o PSDB, sem nada plausível, entra com uma ação no TSE [Tribunal Superior Elei-toral]. É jogar gasolina na fogueira”.

Além disso, não foi rara a tentativa de manipulação pela grande mídia. O psicó-logo José Rodrigues cita como exemplo os discursos proferidos pela revista Veja: “As revistas não produzem apenas notí-cias, como nos dizem – de maneira sutil – o que pensar, como pensar, o que sen-tir. A Veja grita: tenha medo de mais qua-tro anos de PT, pois eles estão armando uma revolução bolivariana!”.

Houve ainda o fortalecimento da xe-nofobia, especialmente nas redes so-ciais, com a ideia de uma divisão no país, onde o Nordeste seria o “culpado” pela manutenção do PT no poder. Tal discur-so de ódio foi reforçado pela mídia e por parte da oposição, como na exposição de infográficos nos quais a parte norte do país aparecia vermelha, enquanto o azul predominava no sul, e por vezes de for-ma escancarada, como nas afirmações de Diogo Mainardi durante o programa Manhattan Connection, da Globo News, tratando o Nordeste como “retrógrado” e “subalterno em relação ao poder”.

“Eu vejo o futuro repetir o passado”Essa onda de pessoas pedindo in-

tervenção militar nos remete ao ano de 1964, quando ocorreu o golpe, onde o argumento era defender a democracia, contraditoriamente nos privando dela.

Existe similaridade entre os discursos dos segmentos mais à direita e o discur-so da própria mídia nessas duas épocas. Contudo, a conjuntura internacional e a posição dos EUA estão muito diferentes, assim como a predisposição das Forças Armadas.

Há também um sentimento de nostal-gia deixado pela ditadura, a partir da ideia de cultura de massas, que, segundo o psicanalista Félix Guattari, está ligada ao processo de produção de subjetividades. O psicólogo José Rodrigues explica: “As subjetividades são produzidas a partir de inúmeros agenciamentos sociais, como os diferentes tipos de mídia. No caso da ‘nostalgia da ditadura’, podemos olhar para alguns processos de subjetivação que têm sido produzidos atualmente, que reforçam a ideia de que sob uma ditadura militar estaríamos em melhores condi-ções sociais, como o sentimento de que o Estado é fraco; e de que estamos aos pés de uma barbárie sem precedentes.”

Para o psicólogo, há séculos a fabri-cação de medos tem sido uma potente ferramenta de controle social. “A ditadura civil militar brasileira precisou criar medos tangíveis para justificar sua intervenção militar. Qual era o perigo? O comunismo e os subversivos! Hoje, tentam construir o consenso que o governo do PT – “corrup-to, irresponsável e incompetente” – seria gerido por uma verdadeira organização criminosa”, compara.

Entretanto não existe a menor pos-sibilidade de uma intervenção. Segundo Adriano de Freixo, o golpe não teria apoio da sociedade: “O que acontece é que a imprensa superdimensionou essa mino-ria com a intenção clara de desgastar politicamente a presidente recém-eleita”, explica. De acordo com ele, as redes so-ciais e as novas mídias também ajudam a dar maior notoriedade à situação, pois na era da internet, tudo se espalha com muita rapidez.

Para Adriano, qualquer tentativa de impeachment também será em vão: “Neste momento, não acho que os pedi-dos vão levar a algum lugar. A não ser, claro, se aparecerem evidências, ligando efetivamente Dilma a qualquer questão envolvendo a corrupção na Petrobras. Mas nem é só aparecerem evidências, é haver uma disposição política do Con-gresso para tal”, conclui.

Guerra de tronos Por Bernardo Oliveira, Clara Barreto e Gabriela Novaes

O confronto político entre eleitores da esquerda e da direita ganha evidência no Brasil

ÁGORA

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“Esse foi o depoimento de Carla

Martins que, de forma emocionada, lembrou o caso de abuso policial que viveu no Colégio Estadual Ci-zinio Soares Filho, há dois meses. A professora de português e litera-tura é também diretora do Sindicato Estadual dos Profissionais da Edu-cação (SEPE) de Niterói e critica o modelo de controle policial que tem sido adotado nas escolas, que remete aos panópticos do século XVIII, projetos nos quais um obser-vador central pode vigiar todos ao redor.

Carla, por seu cargo na diretoria, já tinha ouvido outros casos de in-terferência policial na rotina escolar, após a implementação Programa Estadual de Integração na Seguran-ça (PROEIS).

Criado em 2012, pela Secretaria de Estado de Segurança (SESEG) em parceria com a Secretaria de Estado de Educação do Rio de Ja-neiro (SEEDUC), o programa prevê que, em troca de remuneração ex-tra, policiais desempenhem outras tarefas, além daquelas de rotina. Essas funções incluem “desde o apoio à Guarda Municipal no com-bate ao comércio irregular e fiscali-zação de trânsito à perturbação do sossego e em tudo que o município achar necessário”, conforme infor-ma a Secretaria. No bojo do projeto está a segurança do ambiente esco-lar. Cabe à escola pública requerer a participação no programa.

O projeto baseou-se numa inicia-tiva existente em São Paulo desde o fim de 2009 e foi trazido ao Rio de Janeiro em 2011, depois do caso de Realengo, onde um jovem de 23 anos assassinou 12 estudantes na Escola Municipal Tasso da Silveira. O caso comoveu a população do estado e produziu um clima de inse-gurança nas escolas, reforçado pelo intenso debate midiático em torno do assunto.

Em boletim divulgado à imprensa em abril de 2014, a SEEDUC reve-lou que 934 policiais militares par-

ticipam do programa, instalado em 292 colégios estaduais. O motivo da implementação na rede públi-ca seria baseado em “um histórico de delitos registrados no dia-a-dia, como invasão para uso de quadras esportivas e piscinas e para consu-mo de drogas no pátio, brigas entre alunos, roubos e furtos, a partir de informações e solicitações de dire-tores”.

Mas Carla questiona a necessi-dade de os policiais ficarem dentro das escolas. “Sempre se chamou a polícia quando acontecia uma situa-ção mais grave, por que a polícia precisa estar lá dentro?” A partir do PROEIS, a pergunta frequente no debate da educação pública atual é: cabe ao policial militar, agente treinado para o combate ao crime, atuar como mediador nas escolas, sobretudo em escolas públicas tão fragilizadas?

Poder questionado, formação questionávelA professora narra com proprie-

dade a “segurança” trazida pelos policiais em sua escola. Ela conta que no dia 15 de setembro de 2014, entrou na turma de 7º ano após o intervalo e começou a fazer a cha-mada, enquanto os estudantes che-gavam para a aula. Até que uma brincadeira - dessas que todo ado-lescente um dia fez - causou certo alvoroço na entrada da sala. Mas, da mesma forma que começou, dis-sipou-se em seguida. Logo depois a porta foi aberta violentamente, mas não por completo, de modo que ela não viu quem estava do lado de fora. Só ouvia, em tom muito alto:

- “Você sabe com quem está fa-lando?”

E seu aluno repetindo: - “Mas não fui eu...”, enquanto

uma pessoa esbravejava:- “Me respeita! Você sabe com

quem está falando?”. Até que a professora perguntou

Por Raissa Vidal e Wesley Prado

“A sensação que eu tive

na hora que o policial

veio com o discurso de ‘depois não

sabe porque acontece’ era de que se eu estivesse em

uma favela, levaria um tiro

nas costas e ninguém

saberia o que aconteceu.

Escolas sob vigilância

Arq

uivo

pes

soal

Carla Martins, professora

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para a turma: - “Quem é?”, e uma aluna, des-

crita como “esperta e sagaz”, expli-cou:

- “É as ‘otoridade’”.A professora conta que levantou-

-se da mesa, pediu educadamente ao policial que se retirasse, pois ali a autoridade não era dele, mas dela. No entanto, lembra, “ele continuou a gritar com meu aluno; pedi que ele o respeitasse e saísse da sala. Até que, após algum tempo, ele decidiu sair”.

Após a saída do policial da sala, Carla sentiu que o estudante estava envergonhado, constrangido e se sentindo humilhado, mas a indig-nação aumentou quando percebeu que a força utilizada ao abrir a porta havia machucado o ombro do me-nino. Isso fez com que ela decidis-se ir atrás do policial e esclarecer o acontecido.

O PM havia se dirigido à sala dos professores e, segundo o relato de Carla, ao ser questionado pela maneira como portou na frente dos alunos, o policial ironizou-a de for-ma grosseira, dizendo que ela “não tinha pulso com as crianças.” Com calma, ela respondeu que ele não poderia intervir assim na aula, mas ele insistia que ela não sabia impor limites à turma e que a sala estava uma bagunça. A professora disse que o policial não tinha condições de ensinar a ela como lecionar, pois não era professor. Outro policial que estava no local prontamente interfe-riu: “Mas eu sou!”. Argumento que não convenceu Carla: “Militar! Isso aqui não é educação militar”.

Enquanto a professora pedia respeito e insistia que os policiais não eram educadores, o tom de voz dele aumentava. Ela decidiu encerrar a discussão dizendo que voltaria para a sala. Quando virou as costas, ouviu o policial gritar: “Mulher nenhuma vira as costas pra mim, você é uma abusada e depois não sabe por que aconte-cem as coisas”. Carla sentiu medo, mas engoliu seco e foi para a sala. Os alunos choraram junto da pro-fessora, que ficou muito abalada pela situação. “Precisei até tirar uma licença”, desabafa.

O programa completou dois anos em 2014 e é alvo de inúme-ras críticas e denúncias de abusos policiais. A principal crítica é que os

agentes não recebem treinamento adequado para lidar com crianças e adolescentes em âmbito escolar. O curso regular para formar um po-licial militar dura 1182 horas (cerca de sete meses) e destina apenas 16 horas aos Direitos Humanos, 8 horas à Ética, 20 horas ao Poli-ciamento Comunitário e 20 horas à Sociologia Criminal, o que repre-senta aproximadamente 5% da car-ga horária total. A assessora de co-municação da SEEDUC, Ana Sílvia Magalhães, afirmou por e-mail que, além da formação regular do PM, o programa exige o curso “Polícia de Proximidade em Ambiente Escolar” que tem duração de oito semanas. Entre os módulos, o policial estuda o seu papel em ambiente escolar e procedimentos de condutas.

O currículo e o treinamento pa-recem caminhar na contramão da realidade brasileira. O último Anuá-rio de Segurança Pública, organi-zado pela ONU, mostrou que aos menos seis pessoas foram mortas por dia em 2013 pelas mãos de policiais, uma taxa que está entre as mais altas do mundo. No total, o levantamento revelou que foram 26,6 pessoas mortas para cada 100 mil habitantes, dados que superam os Estados Unidos. Vale lembrar também que o Brasil tem mais de 574.000 mil pessoas encarceradas (quarto país do mundo), e mais da metade dos presos são negros, po-bres e com poucos anos de estudo.

Direitos em xequeCasos como o de Carla têm feito

parte da nova rotina das escolas. A diretora do Sindicato dos Profes-sores do Estado do Rio de Janei-ro (SEPE), Marta Moraes, aponta que o sindicato tem recebido mui-tas denúncias dos professores de várias cidades do Estado. “Chegou até nós um caso de um policial que emprestou a arma para os alunos tirarem foto, um que esqueceu a arma no banheiro e outro que usou spray de pimenta no banheiro de uma escola após um debate entre o policial e os alunos, no qual ele não gostou de ser questionado. En-tão, o SEPE-RJ acredita que lugar de policial não é na escola.” Ela su-gere que o Estado abra concurso para vigias e porteiros, funções que deveriam cumprir o papel de se-gurança, e não policiais treinados para o confronto.

Militante da educação, Carla não consegue dissociar o episódio das evidências de controle e cercea-mento de direitos que se vive hoje.

“O Estado está cada vez mais arma-do e esse armamento se volta para o pobre”, disse a professora ao ob-servar que esse programa só acon-tece em escolas públicas. “Nas es-colas particulares os policiais ficam apenas nos arredores, não entram no espaço, não aparecem armados, não interferem na rotina”, compara.

Carla conta, também, que casos de abusos vinham ocorrendo desde o início do ano. Os alunos relataram que os policiais queriam barrá-los em casos como atrasos ou uso de bonés e estavam sendo hostis nes-sa abordagem, que já é errada, pois o programa não prevê esse tipo de ação sem motivo que a justifique.

A professora também lamenta que a educação esteja tão voltada para o controle, ordem e disciplina, em vez de se voltar para o desen-volvimento de relações, criatividade e que o conteúdo seja passado em um ambiente harmônico. “As esco-las cada vez se parecem mais com presídios - com grades e câmeras”.

A militarização e a vigilância se estendem às direçõesA relação da segurança pública e o ensino público não é nova. Em

janeiro de 2014, o governo de Goiás anunciou que daria a direção de dez escolas públicas para policiais militares administrarem, como forma de combater a violência nos estabelecimentos de ensino. A ideia era dar disciplina para os alunos e promover as aulas de educa-ção física. As demais disciplinas continuariam sendo oferecidas pelos professores da rede estadual.

O panóptico era utilizado no século XVIII, em presídios e clínicas psiquiatricas, para vigiar os internos

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Em setembro de 2013, o então mi-nistro da Educação Aloizio Mercadan-te homologou o parecer das novas Diretrizes Curriculares dos Cursos de Jornalismo, e a discussão, já an-tiga, sobre a maneira mais adequada de ensinar Jornalismo e Comunica-ção Social no Brasil foi novamente fomentada por professores, alunos, profissionais e teóricos da área. A re-solução, no entanto, ainda não obte-ve unanimidade entre as escolas de Comunicação, que hoje enfrentam o desafio de adequar as diretrizes as suas realidades específicas.

O principal ponto de conflito nas novas diretrizes diz respeito à des-vinculação do Jornalismo das demais áreas da Comunicação. A principio, a formulação do documento criou dú-vidas sobre o futuro dessa área de conhecimento, uma vez que estipula a criação de um curso de bacharela-do de Jornalismo, mas não extingue os cursos de Comunicação no país. A principal preocupação das escolas em manter-se enquanto curso unifica-do seria então a validade do diploma e da avaliação dos cursos pelo MEC, após a implantação das diretrizes, que configuram-se como princípios norteadores dos respectivos projetos pedagógicos das escolas.

No início do processo, a própria

UFF mantinha esse posicionamento, de acordo com a professora Flávia Clemente: “Houve esse momento de luta, durante o qual tentou-se ir con-tra, mas há uma instância regulatória, e a partir de um determinado momen-to as universidades perceberam dois caminhos: ou continuar brigando ou criar um curso de acordo com as di-retrizes”. De acordo com a professo-ra, a principal preocupação do corpo docente passou a ser a questão das avaliações pelas quais os cursos pas-sam com frequência, principalmente em função do boicote ao Enade, exa-me avaliador do Ensino Superior, por parte dos alunos. “Percebemos que o MEC não iria abrir mão. Seria melhor, então, trabalhar a partir da perspecti-va de cursos distintos”, diz Flávia.

O texto, escrito em 2009 por espe-cialistas do campo do jornalismo, em tese tem como objetivo aproximar o ensino da prática e formar um profis-sional com visão crítica. Com as no-vas diretrizes, os cursos passam a se orientar por seis eixos: de fundamen-tação humanística; de fundamenta-ção específica; de fundamentação contextual; de formação profissional; de aplicação processual; e de prática laboratorial, que passa a ocupar obri-gatoriamente 20% da carga horária.

Dentro do setor de Jornalismo da

UFF, uma comissão de professores foi formada para debater o novo cur-rículo. A professora Flávia Clemente, integrante dessa comissão, explica o objetivo das diretrizes. “É uma dis-cussão sobre o modelo de curso mais produtivo do ponto de vista do mer-cado de trabalho. O jornalismo, por exemplo, é anterior ao conceito de Comunicação. Acredito que as dire-trizes vêm na intenção de direcionar, de dar um objetivo, não diria merca-dológico, mas de tornar o jornalismo uma profissão de formação específi-ca”, diz.

Em assembleia organizada pela gestão eleita do Diretório Acadêmi-co de Comunicação Social, DACO, o corpo discente votou pelo posicio-namento contrário à adesão às novas diretrizes curriculares, além de pedir, em reunião de departamento, uma nova votação acerca da adesão às diretrizes. A principal preocupação do corpo discente seria a aplicação dessa lógica, que segmenta cada vez mais as áreas de conhecimento. Na visão dos estudantes, isso pouco con-tribui para uma formação plena. Fer-nanda Ramos, do Diretório, ressalta o quanto o documento tendia para o tecnicismo. “É claro que ele não é tecnicista em si, já que contempla disciplinas humanísticas de caráter

crítico e reflexivo, mas consideramos essa tendência pelo fato de trazer os laboratórios como obrigação desde o primeiro período”, diz.

Na assembleia onde os estudan-tes de Comunicação discutiram e vo-taram o seu posicionamento em rela-ção às NDJ, foi considerada também a possibilidade de não conseguirem revogar a decisão do departamento. “Na ocasião, o que decidimos foi que, não conseguindo, iríamos participar da comissão de currículo e tentar bar-rar o máximo possível os pontos das diretrizes que não nos contemplam”, disse Fernanda.

Jornalismo deixa de ser Comu-nicação Social

Carmem Pereira, representante do departamento de Educação e Aper-feiçoamento Profissional da Fenaj no Rio de Janeiro, não vê a desvincula-ção da mesma forma: “Não encara-mos como uma separação. Ao con-trário, ao reconhecer a especificidade do jornalismo, a determinação de cur-so autônomo permitiu e estimulou um maior equilíbrio entre teoria e técnica. Nossa grande área continua sendo a de Ciências Sociais Aplicadas”. No entanto, é prevista pelas diretrizes a criação de um curso à parte, de acor-do com o documento divulgado pelo MEC, que institui o novo diploma de bacharel em Jornalismo.

Em nota divulgada em seu site ofi-cial, à época do início do processo, em 2009, a Executiva Nacional de Estudantes de Comunicação Social (Enecos), contestou o teor tecnicista das novas diretrizes, afirmando que “(...) o objetivo das NDJ está claro: lançar para o mercado, em um curto espaço de tempo, profissionais mini-mamente capacitados para reprodu-zir a técnica jornalística sem questio-nar as condições indignas de trabalho que hoje os trabalhadores sofrem e sem refletir sobre o papel que a co-municação exerce na manutenção do status quo da sociedade, assim como ela, opressora, desigual e a serviço da classe dominante.”

Sobre essa questão, a professora Flávia, da UFF, defende que o cará-ter teórico poderá ser mantido, uma vez que as diretrizes são apenas um direcionamento e cada universidade possui autonomia. “Na verdade isso vai muito em função de como cada universidade vai aplicar as diretrizes, que são apenas um guia”.

Manda quem pode,obedece quem tem juízo

Novas diretrizes curriculares para o curso de Jornalismo ainda causam polêmica. Universidades têm que se adequar ainda este ano

DIPLOMA

Por Isabella de Oliveira

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A Enecos também questionou o processo, uma vez que somente três audiências públicas, no Rio de Janei-ro, em São Paulo e em Recife, foram realizadas no país para debater o assunto. Carmem Pereira, da Fenaj, contesta essas afirmações. “Também procuramos dar conta das transfor-mações do Jornalismo, adequando a formação às realidades regionais. Como as demais práticas profissio-nais, o Jornalismo desempenha três funções diferenciadas: de prática profissional; de objeto científico, e de campo especializado de ensino”.

Associações como Fenaj, FNPJ (Fórum Nacional de Professores

de Jornalismo), SBPJor (Associa-ção Brasileira de Pesquisadores de Jornalismo) e Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplina-res da Comunicação) encabeçaram o projeto. À época da homologação pelo Ministério da Educação, a Fenaj considerou em nota uma “vitória” das entidades do campo do Jornalismo e da Comunicação. Somente a Enecos e a Associação Nacional dos Progra-mas de Pós-Graduação em Comuni-cação (COMPÓS) se posicionaram contrárias ao estabelecimento des-sas novas diretrizes.

Outro ponto de grande debate diz respeito aos estágios obrigatórios pre-vistos pelo novo currículo. De acordo com a nova grade, os alunos terão de cumprir obrigatoriamente 200 horas de estágio supervisionado. Para Car-mem, esse é o grande desafio para

os cursos de Jornalismo. “Tem que estar presente no projeto pedagógi-co, indicando critérios, procedimentos e mecanismos de avaliação. Devem, ainda, ser observadas a legislação e as recomendações das entidades profissionais do jornalismo. Isso pode contribuir para a aproximação das es-colas com os sindicatos”, aponta.

Para a professora Flávia, isso também representa um aspecto po-sitivo: “Obrigar as pessoas a terem uma inserção no mundo profissional faz parte do amadurecimento dos alunos, para eles não serem eterna-mente estudantes. Todo aluno de Co-municação precisa ter uma experiên-

cia de no mínimo um ou dois anos de mercado antes de virar teórico”, disse.

Resistências ao processoAlgumas escolas mantêm alguns

posicionamentos contrários às dire-trizes, apesar de também estarem passando pelo processo de revisão e implantação de um novo currículo. A UFRJ mantém, tradicionalmente, o curso de Comunicação com um ciclo básico de ingresso e somente a partir do quarto período os alunos optam pela respectiva habilitação. De acor-do com Amaury Fernandes, diretor da Escola de Comunicação da UFRJ (ECO), o posicionamento da institui-ção também não é favorável ao docu-mento: “Nós não estamos aderindo, a gente vai marcar posição contra, pois acreditamos que na entrada es-

pecífica há um retrocesso. Mas há uma ordem do MEC, e dentro do que o documento determina, eu não pre-ciso mudar o currículo, porque muito das diretrizes a gente já fazia”.

Sobre essa lógica, os principais pontos controversos do documen-to de 2013 não acarretarão em mu-danças significativas na ECO. O teor tecnicista, por exemplo, na visão de Fernandes, não será uma realidade dentro da instituição. “Como o curso é de Comunicação a gente vai poder manter um núcleo em comum nos três primeiros períodos quando os alunos estarão efetivamente coexistindo num corpo grande de disciplinas. Só um nú-

mero muito pequeno de específicas é que serão abertas para atender à ordem do MEC”, disse.

Cristina Rego M. da Luz, vice-diretora da Escola da Comunica-ção da UFRJ, reitera esse posicionamento. “Existe uma tradição em perspectiva de for-mação em humanas dessas habilitações, extremamente calcada na origem histórica da escola, que é a Escola Nacional de Filosofia. A adequação às neces-sidades contemporâ-neas são bem-vindas e nós já a assimilamos aqui”. A vice-diretora inclusive não vê altera-ções para o campo da

Comunicação com a desvinculação das habilitações. “O MEC só estabe-leceu que a entrada é distinta”.

Para tentar manter a aproxima-ção entre as habilitações, uma das estratégias da universidade será a de manter, nas disciplinas equivalen-tes, aulas unificadas, como já acon-tece no ciclo básico. “Os corpos do conhecimento comuns a todas as habilitações serão mantidos, não há nada, nem nas diretrizes e nem nas determinações do MEC, que impeça isso”, disse Amaury.

Para ambos os professores, a qualificação do corpo docente será suficiente para manter o interesse do aluno em buscar a excelência da gra-duação de comunicação social. “Se o aluno quer uma formação merca-dológica, ele vai para uma instituição que tenha esse perfil. Se ele quer

uma formação de pensamento crítico e embasamento teórico, ao mesmo tempo da prática, ele vai para a UFRJ ou UFF”, disse. No entanto, de acor-do com o Ministério da Educação, existem 546 cursos de Jornalismo no país, dos quais 463 oferecidos por instituições privadas, já que a oferta de vagas na rede pública, com cor-po docente altamente qualificado, é insuficente.

Estrutura das universidadesO Conselho Nacional de Educa-

ção (CNE), órgão colegiado integran-te do Ministério da Educação que avaliou e homologou as novas dire-trizes, auxiliou também a elaboração e execução do novo Plano Nacional de Educação (PNE). Assim sendo, o principal objetivo do CNE ao aprovar as novas diretrizes do curso de Jorna-lismo foi o de atualizá-las, adequan-do-as às novas necessidades, além de zelar pela melhoria e qualidade do ensino nos cursos específicos.

Dentro dessas novas configura-ções do ensino superior no Brasil, no entanto, uma outra questão emble-mática nas novas diretrizes curricula-res é o fato de que ao mesmo tempo em que estão previstas alterações nas grades dos cursos, o documen-to não contempla outras alterações, como as estruturas físicas das uni-versidades e contratações no quadro docente. Com o aumento da carga horária total do curso, mais professo-res, com formação específica, serão necessários. “Para adequar, e é o principal problema, vai ter de aumen-tar o quadro docente”, afirma Cristina Rego, da UFRJ. No caso da obriga-toriedade de laboratórios específicos das disciplinas, por exemplo, o docu-mento não prevê a construção des-sas instalações.

Atualmente, o IACS passa pelo processo de construção de uma nova sede, que, no entanto, não contem-pla a implantação das diretrizes, mas é fruto da promessa de expansão, assumida com a adesão ao Reuni. A obra, cuja entrega estava prevista para 2011, sofreu um longo período de paralisação e foi retomada em 2013. Enquanto os novos prédios são concluídos, os departamentos dis-cutem a divisão dos espaços, e, no caso do setor de Jornalismo, como otimizar seu uso seguindo os novos parâmetros impostos pelo MEC.

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“Os políticos que estão aí não nos representam”. Em um universo de rei-vindicações tão difuso, este era um sentimento comum aos milhões de brasileiros que foram às ruas em junho de 2013. De fato, apesar de os atuais membros do Legislativo e do Executivo terem sido eleitos democraticamente, o distanciamento entre representantes e representados se revela cada vez maior. Como forma de canalizar essa insatisfa-ção popular em uma transformação con-creta, organizações e políticos ligados a causas progressistas intensificaram a campanha por uma reforma política. A própria presidenta reeleita, Dilma Rou-sseff, que reconheceu a importância da reforma ainda durante as “Jornadas de Junho”, voltou a tratar do tema no dis-curso da vitória. Dilma elencou a refor-ma como uma das prioridades do novo mandato. Agora, os agentes políticos da sociedade travam uma disputa em tor-no do modelo que melhor contemple os interesses que os representam. Nesta reportagem, O CASARÃO detalha o al-cance e as limitações de cada um deles.

Até agora, a proposta que ganhou maior visibilidade foi o Projeto de Lei (PL) de Iniciativa Popular para a refor-ma política apresentado em conjunto pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Conferência Nacional dos Bis-pos do Brasil (CNBB) e o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE). Com 103 organizações signatárias e o apoio da presidenta, o projeto tem como ponto principal o fim do financimento em-presarial de campanha. A proposta tam-bém defende o voto em lista partidária para o Legislativo, a paridade de gênero nesta lista e o fortalecimento dos instru-mentos de democracia direta, como os Conselhos Populares. Contudo, para que chegue ao Congresso e comece a tramitar, são necessárias 1,5 milhão de assinaturas. Até novembro, haviam sido recolhidas cerca de 500 mil.

O PL foi apresentado pelas entidades em meio às manifestações de 2013, mas é fruto de uma discussão antiga entre as diversas organizações que compõem sua base de apoio. Tobias Tomines, cientista político que representa o Fórum

das Pastorais Sociais da Arquidiocese do Rio de Janeiro, esclarece cada um dos pontos do projeto: “A Constituição é dúbia em relação à possibilidade de as empresas financiarem campanhas. Nós entendemos que, como o poder emana do povo, e empresa não é povo, empre-sa não pode financiar campanha. Mas a Constituição não deixa isso claro. Nes-sa eleição, sozinho, o grupo JBS colo-cou mais de R$ 100 milhões em cam-panhas eleitorais”. O projeto prevê que, no primeiro turno, os partidos debatam programas e o eleitor vote nas legendas. Só no segundo turno o eleitor votaria nos candidatos, escolhendo-os por meio de listas de nomes com paridade entre homem e mulher, apresentadas pelos partidos. Daí o nome “voto em lista”. Assim, o número de cadeiras de cada partido no parlamento seria definido na primeira etapa, e estaria mais submeti-do à disputa de plataformas partidárias e menos pelo voto personalista, como ocorre hoje. “Este formato acabaria com a enorme distorção que existe no voto proporcional. Prova disso é o deputado federal Tiririca (PR-SP), que ajudou a eleger outras quatro pessoas com sua grande votação”, ilustra Tomines.

Uma reforma do povo para o povo?

Embora o projeto encabeçado pela OAB, CNBB e MCCE possua maior visi-bilidade e raízes institucionais, outro mo-delo, que defende a convocação de uma Assembleia Constituinte Exclusiva para promover a reforma, conta com bastan-te força entre os movimentos populares. Para dar visibilidade a esta opção, du-rante o período eleitoral, foi organizado o “Plebiscito Popular por uma Constituinte

Exclusiva”. Conduzido por mais de 400 entidades, como o Movimento Sem Ter-ra (MST) e a Central Única dos Traba-lhadores (CUT), o plebiscito não-oficial durou uma semana e teve aproxima-damente 8 milhões de votos em urnas físicas espalhadas por todo o Brasil e na internet. Entre os que participaram, 97% votaram favoravelmente à realização de uma Constituinte Exclusiva.

Rafael Kritski, coordenador estadual do Levante Popular da Juventude (LPJ), uma das organizações que integraram a mobilização, explica que a iniciativa foi pensada como uma resposta dos movi-mentos sociais aos anseios políticos dos que foram às ruas em 2013. “Ali ficou evidente a necessidade da reforma e que isso não sairia daqueles que já es-tão no Congresso, visto que, se estão lá, são beneficiados pelas regras do jogo”, diz. Ele afirma, ainda, que uma reforma política adequada só será concretizada se envolver diretamente o povo, o que só um processo de “Constituinte Exclu-siva e Soberana” viabilizaria. “‘Exclusiva’ por se tratar apenas do que é referente ao sistema político. Mas devemos res-saltar que isso vai além do sistema elei-toral e afeta, por exemplo, a questão dos meios de comunicação, que se coloca sobre o panorama político. E seria ‘so-berana’, porque os seus integrantes não seriam os que já são favorecidos pelas atuais regras”, esclarece Rafael.

Caso a proposta fosse vitoriosa em plebiscito, deputados constituintes se-riam eleitos em um processo à parte do Congresso Nacional para deliberarem e votarem um Projeto de Emenda Consti-tucional (PEC) relativo ao novo formato político. A fim de evitar que estes de-putados ocasionais atuem de forma a

defender interesses de ordem pessoal, eles não poderiam mais ocupar cargos eletivos pelo resto da vida. Em outubro, centenas de integrantes da mobilização foram à Brasília levar os votos ao Con-gresso e à presidenta Dilma. O objetivo foi pressionar pela convocação de um plebiscito oficial sobre a reforma política.

Ouvido pelo CASARÃO, o deputado federal Miro Teixeira (PROS-RJ), eleito pela 11ª vez em 2014, alega ser favorável a um ambiente que corresponda a uma Constituinte, seja exclusiva ou congres-sista, como em 1988. “O sistema atual é definido pelos representantes e acaba servindo a interesses próprios. O ideal seria que, no próximo pleito municipal, se fizesse um plebiscito para saber se o povo quer atribuir poderes constituintes já a este congresso, ao próximo ou a um grupo exclusivo”, opina. Segundo Miro, entre seus pares parlamentares, as opi-niões são muito divididas, porém pouco simpáticas a uma constituinte porque “um processo dessa natureza costuma contar com intensa participação dos vários grupos da sociedade civil, o que

B Ide s te e

FORMA POLÍTICA NO BRASIL

Por Gabriel Vasconcelos e João Pedro Soares

CAPA

OS CAMINHOS PARA A RE

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limita o poder dos caciques partidários”.

Também com longa experiência le-gislativa, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) acredita que o plebiscito seria uma ideia interessante, mas ressal-ta que um referendo seria aceito com maior facilidade pelo Congresso. “Se os pontos da proposta da OAB forem discutidas no Congresso e votadas em referendo, não haveria necessidade de uma Constituinte Exclusiva. Mas tenho manifestado apoio a todas as iniciativas direcionadas à reforma, como a coleta de assinaturas para o plebiscito pelo PT”, conjectura. Na última legislatura, conta, as forças conservadoras impe-diram que a reforma fosse discutida, “inclusive barrando o PL que impedi-ria a doação por pessoas jurídicas às campanhas e limitaria a um teto de R$ 1.700,00 as doações por pessoas físi-cas, do qual fui relator”.

A convocação de uma constituin-te, porém, não é unanimidade entre os defensores da reforma. Tomines, por exemplo, classifica o projeto como uma “temeridade”, pois acredita que os atuais congressistas poderiam aproveitar para dar uma guinada conservadora, derru-bando direitos conquistados em 1988. O temor é compartilhado pela professora Clarisse Gurgel, da Escola de Ciência Política da Universidade Federal do Es-tado do Rio de Janeiro (Unirio). “Um pro-cesso como este é positivo porque re-nova a casa do povo e permite que ele participe mais. No entanto, precisamos estar alertas. Nossa Constituição é pro-gressista e, numa revisão, poderia haver manobras para acabar com o sistema de previdência social e outros direitos con-quistados”, explica. Para ela, uma saída

seria criar mecanismos para se restringir as modificações ao sistema político.

Entre os juristas, há uma divisão quanto à legalidade da convocação de uma Constituinte Exclusiva. O advo-gado constitucionalista Pedro Cascão defende a viabilidade da convocação, embora ressalte a complexidade do tema e a consistência dos argumentos contrários. Mesmo assim, na visão dele, a melhor alternativa seria a convocação de um plebiscito para votar os pontos da reforma política, com um amplo debate público. “Sou mais fã das consultas po-pulares, sejam por meio de plebiscito ou referendo. Também é preciso ter uma abordagem pedagógica. O Uruguai deu um exemplo muito interessante com o plebiscito sobre a redução da maiorida-de penal. Embora se mostrasse favorá-vel à redução nas pesquisas iniciais, nas urnas a população disse não à proposta, motivada por uma campanha pedagógi-ca”, defende. O advogado acredita que, no caso de uma consulta popular, seria necessário um esclarecimento seme-lhante, com ao menos um ano de tempo de campanha na TV.

Uma reforma limitada às regras do jogo?

Mas a discussão sobre o melhor for-mato para a reforma não é tão acalora-da quanto o debate sobre os pontos do sistema a serem modificados, que viria em um segundo momento. Na maioria das vezes, as interpretações são frag-mentadas. Octávio Costa, colunista e chefe de redação do jornal Brasil Eco-nômico pondera: “Em caso de proibição do financiamento empresarial de cam-

panha, por exemplo, há que se levar em conta o montante de dinheiro que passaria a sair dos cofres públicos. As últimas campanhas de Dilma e Aécio receberam, respectivamente, cerca de R$ 350 e R$ 250 milhões de empresas privadas. O Tesouro passaria a arcar com esse grau de investimento? Teria de haver um teto e os valores cairiam muito. Os grandes partidos estariam dispostos a isso?”.

Outro tema controverso é o formato de votação. Para Costa, o voto em lis-ta defendido pela OAB tem limitações, porque as listas correm o risco de terem sempre os mesmos nomes, escolhidos pelas cúpulas dos partidos, o que im-pediria o surgimento de novos quadros. Já Clarisse Gurgel defende uma opção ainda mais radical: o voto em lista fe-chada indicada pela legenda. Na visão dela, porém, a falta de democracia inter-na dos partidos inviabiliza uma medida dessa natureza. “A maioria dos partidos não têm mais convenções e os filiados não poderiam participar ativamente da escolha dos nomes, que ficaria nas mãos das cúpulas. Por isso, a proposta da OAB é a mais razoável, por romper com o modelo atual e promover, ainda que parcialmente, o fortalecimento dos partidos”, explica.

Da mesma maneira, a possibilidade de adoção do voto distrital - que im-põe limites geográficos à concorrência pelo cargo eletivo - gera polêmica. De acordo com Costa, que já foi candida-to a vereador no Rio, “o voto distrital é interessante porque daria maior com-petitividade às campanhas com menos recursos, já que em disputas dentro de um bairro ou região, a força econômica

cai e a representatividade fica mais evi-dente. Há a possibilidade do voto misto, também, que abrange o distrital e o pro-porcional”. Gurgel discorda. Para a pro-fessora, o modelo não só dá abertura para o fortalecimento dos caciques re-gionais por causa do clientelismo ainda latente, como também restringe a atu-ação do político. “Quem se elege tem perfeitas condições de pensar questões mais amplas do que só locais, como pavimentação”, pontua a acadêmica, favorável à criação de um fundo público para campanha com distribuição unifor-me que também valeria para o tempo de televisão.

Apesar do entusiasmo em torno das mudanças que uma reforma poderia trazer ao sistema político, há quem já critique os rumos que o debate vem to-mando. Miro Teixeira acredita que uma reforma limitada às regras do jogo po-lítico não seria uma solução total. “É preciso se fazer mais do que um refor-ma política. É preciso uma reforma das atribuições, dos poderes constituídos”, afirma. Já Gurgel traz uma abordagem filosófica. “Todas as propostas são al-tamente referenciadas na questão da representação e não na participação. Passar ao largo da questão da demo-cracia interna dos partidos limita muito o processo”, critica. A fim de ilustrar a questão, ela analisa a possibilidade de aplicação de cláusula de barreira, um dispositivo que restringe ou impe-de a atuação parlamentar de partidos que não alcancem um percentual de votos determinado na eleição anterior. Defendida por muitos, o mecanismo representaria uma ameaça à partici-pação popular em sua visão. “Embora tenda a barrar legendas de aluguel, a cláusula de barreira incidiria também sobre os partidos que não focam na disputa eleitoral, mas trazem o aspecto mais avançado de tocarem na partici-pação militante, de atuarem nas bases, junto às comunidades e sindicatos, por exemplo”, explica Gurgel, para quem o critério de criação e manutenção de partidos deveria ser mais qualitativo, le-vando em conta, entre outros aspectos, o nível de nucleação.

C H O e c be a ? a ç s

FORMA POLÍTICA NO BRASILOS CAMINHOS PARA A RE

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10 nº dez - abril/maio de 2015

A varanda envidraçada faz quadro ao calçadão, aos vendedores de cama-rão e polvilhos. De fora, Copacabana, o mar. De dentro, Silvio Tendler. Nos recebe entre um montão de cadeiras e o Atlântico. Gira pelo apartamento tensionando tendões, flexionando as dobras. Faz fisioterapia para recupe-rar os movimentos do corpo depois de uma tetraplegia que durou pouco mais de um ano. Divide o tempo entre voltar a andar, finalizar os três filmes que faz simultaneamente, dar entrevistas e pro-jetar o futuro político do país. Acumula em práticas o que tem de utópico. Nada impede o carioca, filho de imigrante soviético, que começou a carreira em Paris com Chris Marker depois de es-tudar com Jean Rouch. “Privatizações, a distopia do capital”, lançado no último dia 21 de outubro, no Circo Voador, é o trabalho mais recente dirigido por Ten-dler. “Era um filme que eu devia a mim mesmo e ao país”.

Pra começar: existe outro resul-

tado dentro da perspectiva do capi-tal que não a distopia?

Existe. Eu não nasci nem estou aqui pra defender o capitalismo. Eu sou de esquerda socialista, mas vi-ver em uma sociedade capitalista não significa que essa sociedade precisa ser necessariamente escrota. A so-cialdemocracia, por exemplo, é uma vertente menos escrota do que a gen-te tem vivido no Brasil em termo de capitalismo selvagem, sanguinário. E as pri-vatizações são um re-flexo disso. Por anos o Estado investiu aqui no desenvolvimento econômico e aí de uma penada destruiu todo o patrimônio público.

Mas há utopia possível em um mo-delo fundamentado na produção de mi-séria?

O que temos hoje nasce no processo de globalização. Se você quiser pegar o ‘bom capitalismo’ a gente te-ria que olhar o Estado

de bem-estar social. Tivemos o Wel-fare State na Europa e no Japão. Isso não significa que tudo o que é produ-zido no capitalismo é ruim. Só que o capital não é muito bem intencionado, né? Tanto que nos anos 1980 a Tha-tcher e o Reagan quebram esse mo-delo para fazer um Estado privatista e dar início à globalização que só é global no nome, porque na verdade as pessoas não podem circular. São construídos grandes muros. Você tem o Muro de Melilla em Marrocos, que separa a Europa da África, e o Muro do México, que separa os EUA da América Latina. Daí pra frente o capi-talismo mostra a sua verdadeira face.

O Hobsbawn sugeria que a exis-tência do Estado de bem-estar social era uma espécie de temor do mundo capitalista ao seu oposto ideológico - a URSS. É o que ele questiona com o “que será da humanidade quando o capitalismo já não mais temer o socialismo?”.

É, mas o fim da União soviética foi uma questão política. Em Utopia e Bar-bárie, tem um depoimento do Galeano que diz ‘nós choramos por um morto que não era nosso’. Não adianta usar como contraponto ao capitalismo sel-vagem o socialismo real. Porque o sta-linismo massacrou camponeses, per-seguiu intelectuais, perseguiu judeus. Não dá pra ter saudade de uma coisa que não foi boa pra humanidade.

No Circo Voador, depois da exi-bição do filme, você reclamou com o Alessandro Molon (PT-RJ) da po-lítica deturpada de incentivo à Cul-tura desse Governo que só contabi-liza público de shopping.

Completamente deturpada. Na-quela sessão do Circo, por exemplo, nenhum expectador foi contabilizado. E aí chega a Ancine e diz que um filme como o “E aí, comeu?” fez três milhões de expectadores e o “Dis-topia do Capital” não faz nenhum. E eu já tenho 80 mil na internet, tenho os mil que estavam no Circo, tenho o público nas exibições em aulas da universidade, o pessoal de cineclu-be. O que eu cobrei do Molon foi uma política púbica que coloque esse tipo de filme como necessário e não só os de diversão. Eu não tenho nada con-tra cinema de shopping, mas não dá pra confundir cidadão com consumer. O público brasileiro é muito maior do que isso.

Mas o próprio discurso do Lula não é a transformação do indivíduo em consumidor?

Eu entendo que um operário te-nha um sonho de consumir. Não sou contra. Não sou contra o cara querer ter direito a uma televisão, a uma ge-ladeira, a um carro. Não sou contra alguém querer melhorar o padrão de vida, mas quando estamos falando de cultura nós precisamos trabalhar com

valores diferentes. São coisas dife-rentes.

O que eu digo na questão do Lula é que esse discurso da inser-ção social através do consumo é o que vai guiar as políticas, inclusive a política de cultura.

Sim, mas em primeiro lugar: o Lula nunca foi socialista. O Lula é um ope-rário de São Bernardo que é a primei-ra geração de operários que assume um comando político. E a luta deles era pela qualidade de vida, não pelo socialismo. O Lula queria melhores salários, melhores condições de vida, redução da jornada de trabalho, aces-so ao mundo de consumo. Essa é a formação dele e ele nunca enganou ninguém. Se enganou quem quis.

A gente vive uma escalada do Estado policial. Hoje tem tanque de guerra na Maré. E é dentro desse governo que se reelegeu. A articu-lação entre ação e denúncia das for-ças de repressão é um projeto...

Olha. Isso é um equívoco. Eu já en-tendi aonde você quer chegar e quero te dizer, pra minha tranquilidade e pra tua, que eu não sou PT, nunca fui PT e nem pretendo ser PT. E jamais vou defender a burrice. Teve um general franquista que gritou “Viva la muerte”, na Espanha. E a resposta do Miguel de Unamumo foi “Viva la inteligencia”. Então não me confunda com essa

gente. Eu não sou a favor disso. Esse Es-tado é uma burrice muito grande, é um erro. O que se fez durante a Copa do mundo foi um erro. A privatização do Mara-canã foi um absurdo. O que fizeram com o Célio de Barros, o Jú-lio Delamare, a Aldeia Maracanã, todos ab-surdos. Belo Monte é outro absurdo. Então não me faça cumplice da burrice, só espero que daqui pra frente mude muita coisa. Ao contrário de você que é um jovem muito de-sesperançado! [risos]

Viva la utopia!Uma entrevista com Silvio Tendler

Por Filipe Galvão e Fernanda Costantino

ENTREVISTA

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nº dez - abril/maio de 2015 11

Com três milhões de habitantes, metade deles na capital Montevidéu, o pequeno Uruguai do ex-presidente José “Pepe” Mujica chamou a atenção do mundo pela adoção de novas leis so-bre os direitos civis a respeito de temas polêmicos. Nosso vizinho do sul, no in-tervalo de quatro anos, legalizou o casa-mento entre pessoas do mesmo sexo, descriminalizou o consumo e o cultivo da maconha e deu às mulheres o direito de interromper a gravidez até a 12ª se-mana de gestação. O país também fez plebiscito que rechaçou a redução da maioridade penal para 16 anos.

No comando do país entre 2010 e 2014, Mujica, que por si só chama a atenção por seus hábitos humi ldes - dispensou resi-dência e carro ofi-ciais, morando num sítio na periferia da capital, além de diri-gir, ele mesmo, um fusca 87 -, trouxe a bandeira dos direitos civis como um dos nortes do seu governo. Foram implan-tadas políticas de moradia popular e in-tensificada a universalização do sistema de saúde pública, iniciada no governo anterior. Jornalista político da UY Press, Mílton Ramirez explica que o desenvolvi-mento econômico no país foi fundamen-tal para que houvesse essas garantias, mas que sem vontade política, os inves-timentos poderiam ser feitos em outras áreas: “O bem estar social é a principal

bandeira da Frente Ampla (partido de Mujica), aqui só mora na rua quem quer, e quem trabalha tem direito à saúde pú-blica para si e para sua família. Na capi-tal, a maioria das pessoas em situação de rua tem algum problema psiquiátrico, questão que o governo ainda não mi-rou”. O país cresce cerca de 5% ao ano e na última década encontrou campos de petróleo e gás, escassos até então.

Legalização do AbortoIlegal no Uruguai desde 1938, o abor-

to consentido era punido com prisão de seis meses a um ano para a mulher e o dobro do tempo para quem realizou o procedimento, mas em 2012 o con-gresso uruguaio aprovou uma lei que deu à mulher o direito de interromper sua gravidez. Pelo texto aprovado, até

a 12ª semana de gestação, a mulher pode procurar o sis-tema de saú-de pública,

que garante o atendimento por uma equi-

pe multidisciplinar, com ginecologista, psiquiatra e assistente social. Realiza-das essas consultas, a mulher deve es-perar um período mínimo de cinco dias (chamado período de reflexão), para ra-tificar junto ao estado sua decisão de in-terromper a gravidez e realizar o aborto.

A medida causou muita polêmica no país e descontentamento de seto-res mais conservadores da sociedade. A Arquidiocese de Montevidéu declarou

que todos os deputados e senadores que votaram a favor da medida estavam excomungados pela Igreja Católica. Se-gundo comunicado oficial da entidade, trata-se de um processo automático, por facilitar uma prática contrária à vida, e que é grande o pesar que o país passe a ser o 2º do continente a descriminali-zar o aborto. Em 2013, o Partido Nacio-nal, principal ator da oposição no país, tentou através de uma consulta popular promover um plebiscito que decidiria a possibilidade de anulação da lei. A ideia foi rejeitada devido à participação de apenas 8,65% da população,

Descriminalização da maconhaEm 2013 foi a vez da descriminaliza-

ção da maconha. Uma nova legislação foi aprovada, na qual o Estado assume o controle da produção e distribuição da maconha para uso recreativo ou medi-cinal. Cada cidadão uruguaio passou a ter direito de consumir até 40 gramas da erva por mês e poderá adquiri-la atra-vés do próprio governo. As plantações de maconha estatais foram implantadas em 2014 e a meta, segundo o governo, é que os dispensários – lojas de venda da erva e seus derivados – passem a funcionar este ano. Os usuários tam-bém passam a poder cultivar até seis plantas de maconha para uso pessoal, ou participar de clubes de cultivo, onde o número sobe para 100 mudas, para um grupo entre 15 e 45 pessoas. Para tanto, é necessário efetivar um cadastro junto ao Instituto de Regulação e Con-trole de Cannabis (IRCC), órgão federal criado para regularizar o uso e o consu-

mo da maconha.O cadastro é alvo de críticas pelos

usuários. Ramiro Lemos, 24 anos, mo-rador de Montevidéu, é usuário há dez anos e vê pouca vantagem em se ins-crever no cadastro federal: “Sempre houve o plantio caseiro da maconha, é uma tradição aqui, quem pode plantar faz para si e para os amigos. O presi-dente diz que essa lei é uma experi-ência, nada impede que numa nova mudança da lei, o governo me trate como criminoso, fichado mais adian-te”, questiona o uruguaio, que acredita que, como ele, muitos usuários não irão aderir ao cadastro: “Claro que a lei é um avanço e dá mais liberdade ao usuário, mas o que todas as organizações pró-cannabis queriam - a legalização total do cultivo e do consumo - não foi feita”.

Casamento igualitárioAprovada também em 2013, a lei do

casamento igualitário no Uruguai não apenas permitiu que pessoas do mes-mo sexo se casassem como revisou os direitos sobre divórcios e pensões. A lei do divórcio a partir de 1913 dava exclu-sivamente à mulher o direito de se se-parar unilateralmente, enquanto os ho-mens deveriam justificar a decisão com um motivo, como adultério. A nova legis-lação deu direitos iguais para homens e mulheres e passou a proteger o cônjuge com a situação econômica mais frágil.

Ernesto Beltrame, diretor jurídico da intendência (governo regional) de Mon-tevidéu, explica que o Uruguai conse-guiu avançar nos direitos civis, por sa-ber interpretar os anseios da população em forma de leis que garantissem suas pretensões: “Em relação à maconha, o consumo e o porte, além de permitidos por lei, sempre foram vistos como algo normal pelos uruguaios. O crime era cultivar ou vender, uma contradição que a legislação procurou acabar”. Beltra-me acrescentou que o principal legado deixado por essas leis é que direitos ci-vis, uma vez consolidados, são difíceis de revogar: “A sociedade trata o tema como uma conquista e, além disso, as experiências mostram que sociedades que avançam em alguns direitos civis tendem a puxar outros para a pauta, o que a meu ver é excelente para o país”.

No fim de 2014, o Uruguai escolheu seu presidente para os próximos cinco anos. Ganhou Tabaré Vazquez, da Fren-te Ampla. Será o terceiro governo segui-do do partido de coalizão de esquerda, o que garante pelo menos por enquanto a manutenção das políticas sociais e de direitos civis no país. Vazquez, que é médico, sinalizou que seu governo terá um enfoque maior na segurança públi-ca, educação e infraesturutra, áreas cri-ticadas durante o governo Mujica, mas que seguirá o caminho trilhado pelo seu antecessor: “Vamos cumprir até a última vírgula do programa da Frente Ampla, dentro da constituição e da lei” afirmou o eleito.

A GRAMA DO VIZINHO É MAIS VERDECom uma política de vanguarda sobre os direitos civis, o

Uruguai ganha destaque no cenário mundial

Texto e foto por Fábio Peixoto

O Uruguai conseguiu avançar nos direitos civis, por saber in-terpretar os anseios da popu-lação em forma de leis

Ernesto Beltrame

“”

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12 nº dez - abril/maio de 2015

Brasil: sempre cabe mais um

Por Bianca Alcaraz e Augusto Mendes

Enquanto muitos não cogitam a possibilidade de mudar de estado, cidade, ou até mesmo de bairro, ou-tras pessoas se veem obrigadas a deixar sua terra natal rumo ao des-conhecido. E esse desconhecido muitas vezes é o Brasil.

Entre os estrangeiros que che-gam ao Brasil, os que vêm em maior número são sírios, angolanos e colombianos. Nos últimos anos, o número de refugiados que chegam ao país cresceu consideravelmen-te. Em 2014, o total de pedidos de refúgio superou a quantidade de re-fugiados vivendo no país. Segundo dados do Ministério da Justiça, atu-almente, 6.721 refugiados vivem no Brasil, e o número de estrangeiros que solicitaram refúgio ao governo até outubro daquele ano chegou a 6.886.

Os motivos que levam alguém a abandonar o lugar onde nasceu em busca de uma vida melhor são mui-tos. Desde guerra civil, até a perse-guição política ou religiosa, existe uma variedade de razões que fazem com que o horizonte se torne uma opção mais segura para recomeçar do zero. O colombiano Juarez San-chez*, de 32 anos, explica o que o levou a deixar seu país:

“A Colômbia tem uma história de violência e uma guerra declarada já há cerca de 50 anos. Existem cer-tas zonas que são mais críticas. O que acontece é que a guerra está tão absurda que um guerrilheiro me confundia com um paramilitar e vi-ce-versa... Depois de receber amea-ças de alguns grupos eu comuniquei a minha família, que já estava no Brasil, que eu também estava vindo

pra cá. Então, é tudo por conta da guerra”, afirma Sanchez.

O perfil dos refugiados ainda é predominantemente masculino, embora o número de mulheres re-fugiadas venha aumentando nos úl-timos anos, principalmente por con-ta dos casos de estupro no Congo. No país, a violência tornou-se tática de guerra, para atingir as comuni-dades. É o que explica a assistente social e coordenadora do trabalho com refugiados da Cáritas no Rio de Janeiro, Débora Alves:

“A questão do refúgio é muito masculina. Os homens em idade la-boral, ou seja, de 25 a 35 anos, ain-da são maioria. Mas a gente vem percebendo um crescimento no nú-mero de mulheres. Elas costumam vir sozinhas ou com crianças, e ge-ralmente grávidas. É muito comum você ver uma mulher no sétimo mês de gestação e com um filho de dois anos no colo chegando aqui no Brasil sozinha”, explica Débora.

“O problema do negro brasileiro é que toda vez

que ele vê um africano, ele se vê nessa pessoa, e ele não gosta desse reflexo”

Papy Mukwege, congolês

Além de chegarem sem nenhum apoio, as mulheres enfrentam ainda uma dificuldade maior na adapta-ção e na integração. Essa dificulda-de se deve, na maioria das vezes, a questões culturais, uma vez que

nos seus países de origem, a mu-lher não se sente à vontade para conhecer e confiar em outras pes-soas.

Mas as dificuldades não param por aí. Encontrar um lugar para morar, um emprego e lidar com a saudade da terra natal, além do preconceito são alguns dos obs-táculos enfrentados pelos refugia-dos. E esses desafios atingem não apenas as mulheres, mas também os homens. É o que conta o con-golês Papy Mukwege, de 26 anos, que deixou a República Democráti-ca do Congo por conta da questão política e agora enfrenta um racis-mo diferente no Brasil:

“No meu país, o racismo é por conta da classe social, aqui o pro-blema é mais de pele e pelo fato

de ser estrangeiro, sobretudo por ser africano. E o preconceito vem de todo tipo de pessoa, inclusive dos negros do Brasil. É bem forte por parte dos negros. O problema do negro brasileiro é que toda vez que ele vê um africano, ele se vê nessa pessoa, e ele não gosta desse refle-xo”, opina Mukwege.

Se por um lado as dificuldades são grandes, por outro o governo brasileiro vem se esforçando no sen-tido de tornar o país mais acolhedor

“Não tenho uma nacionalidade, eu tenho

só um documento”Hassan Noun, sírio

O número de refugiados que chegam ao país cresce a cada ano. As origens são muitas, e as histórias de vida também

Rota de FugaArte: Arthur Figueiredo

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nº dez - abril/maio de 2015 13

para aqueles que chegam em busca de paz. A facilidade para conseguir o visto está entre uma das vantagens apontadas pelos refugiados que es-colhem o Brasil. Atualmente, todo o processo de emissão deste docu-mento é feito pela Polícia Federal, que solicita o preenchimento de um questionário, além de realizar uma entrevista para saber as condições que levaram aquela pessoa a pedir refúgio. A partir deste levantamento, é dado um parecer positivo ou ne-gativo sobre o direito de permanecer no país.

Após conseguir o documento que lhe dá o direito de permanecer no Brasil, o refugiado pode solicitar ajuda financeira e moradia, se não tiver condições de se manter por conta própria. Como existem muitas

solicitações e não há recursos sufi-cientes para todos, um advogado é quem faz a avaliação de quem está em condições mais precárias e pre-cisa do apoio do governo. O valor do auxílio é, em média, de 300 re-ais por pessoa, mas se forem duas pessoas o valor não chega a 600. O tempo de duração é de cerca de dois a três meses, podendo ser es-tendido para até seis meses em ca-sos de extrema necessidade.

Apesar das dificuldades de adaptação, alguns estrangeiros consideram que o brasileiro tem um perfil mais acolhedor, facilitando a integração à cultura do país. Para o filho de pais palestinos que nasceu na Síria, Hassan Noun*, de 28 anos, o Brasil é melhor que a Europa:

“O Brasil é um país que ajuda

ColômbiaA guerra civil na Colômbia deixou

nos últimos 50 anos 220.000 mor-tos, em sua maioria civis, e 5,3 mi-lhões de deslocados, segundo nú-meros oficiais. Além da FARC-EP, de orientação marxista-leninista, atua a AUC, grupo guerrilheiro de extrema direita envolvida com po-líticos de alto escalão e financiada por multinacionais, como a Chiquita Brands. A Colômbia é o país mais perigoso para ser sindicalista.

SíriaDesde o começo de 2011, o país

vive uma violenta guerra civil entre forças contrárias e leais à lideran-ça do presidente Bashar al-Assad, com 191 mil mortos entre março de 2011 e abril de 2014. Continuação da “Primavera Árabe” ou resulta-do de ingerência estadunidense, como revelaram alguns telegramas publicados pelo Wikileaks, o confli-to já gerou mais de 3 milhões de refugiados.

AngolaAngola viveu da independência,

em 1975, até 2002 uma guerra civil das mais fratricidas, que levou este país a ter a maior população de amputados do mundo. Além de ser palco de batalha da Guerra Fria, a guerra envolveu países vizinhos. Com o fim da guerra em 2002, An-

gola experimenta aumento do PIB, que chegou a 22,6% em 2007. No final de 2013 cessou o Estatuto de Refugiado concedido pelo AC-NUR aos cidadãos angolanos ins-talados nos países vizinhos.

LíbanoA outrora “Suíça do Oriente”

sofreu uma guerra civil de 1975 a 1990 além da guerra de 2006 en-tre Israel e o Hezbollah que des-truiu grande parte da infraestrutura libanesa. A imigração libanesa no Brasil remonta à época da coloni-zação. Conflitos religiosos ainda levam muitos libaneses a emigrar e pedir refúgio. O Brasil, onde vi-vem sete milhões de libaneses e descendentes, continua sendo uma opção.

República Democrática do Congo

O segundo maior país da Áfri-ca tem na sua guerra civil, que se arrasta há quase 20 anos, a mais sangrenta desde a Segunda Guer-ra Mundial, com mais de seis mi-lhões de mortos e desaparecidos. Apesar de riquíssimo em recursos naturais, ostenta uma das piores rendas per capita do mundo. Além da guerra civil, a perseguição polí-tica tem sido motivo de pedido de refúgio.

muito o povo palestino, e também não tem problemas com estrangei-ros. Aqui eu quero completar a mi-nha vida. Não tenho uma naciona-lidade, eu tenho só um documento. Eu me sinto acolhido no Brasil. Mo-rei um ano na Turquia, mas lá eles não gostam de estrangeiros. Não importa se você é árabe, europeu ou americano. Mas aqui no Brasil é muito mais fácil. Agora eu trabalho em um restaurante, mesmo sem conseguir falar português muito bem. Eu pretendo ficar no Brasil

De onde e por que vêm os refugiados que chegam ao país?

para sempre, aqui é melhor do que a Europa”, conclui Hassan.

*Os nomes foram alterados para garantir a privacidade dos entrevis-tados.

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14 nº dez - abril/maio de 2015

“Aconteceu de a gente ir ao campo do Nova Cidade, em Nilópolis, e quan-do chegamos lá não havia cabine de imprensa. A equipe teve que fazer o jogo em uma laje. Não tinha nada prote-gendo do sol forte. Tivemos que impro-visar um guarda-chuva para proteger o equipamento. Fizemos uma gambiarra gigantesca, arranjamos umas cadeiras e de lá fizemos a transmissão.”

Quando se fala em jornalismo es-portivo, principalmente em cobertura de futebol, é natural pensar na típica cena de um jogador que, logo após o fim da partida, é cercado por repórte-res. Ou na coletiva pós-jogo lotada. Ou, até mesmo, nos eventos luxuosos como a Copa do Mundo, que mobiliza jornalistas do mundo todo. Porém, nem sempre é isso o que se vê. A situação relatada acima pelo jornalista Gabriel Andrezo foi uma das enfrentadas pela equipe do FutRio para que fosse reali-zada a transmissão de um jogo de um campeonato considerado de menor in-vestimento, muitas vezes desconheci-do pelo público.

Criado em 2007, o FutRio é um site especializado em futebol carioca, mas se destaca por dedicar o seu maior es-paço aos chamados clubes pequenos que possuem pouca visibilidade na mí-dia. Com uma equipe de quatro pes-soas, os jornalistas precisam exercer mais de uma função na transmissão quando há mais de um jogo no mesmo dia e horário.

Foi o caso do repórter Vitor Costa que, no jogo Madureira x América, váli-do pela 6ª e última rodada da segunda fase da Copa Rio, fez os papéis de co-mentarista e repórter de campo, sendo o posto de narrador seu original. No mesmo horário em que o tricolor subur-bano e o Mecão disputavam a classifi-cação para a semifinal do campeona-to, no Aniceto Moscoso, em Madureira, mais três jogos aconteciam, sendo que, em dois deles, valendo a classificação para a semifinal.

“Na transmissão, originalmente, te-mos um comentarista e um repórter, só que como hoje é uma rodada com-pleta, de quatro jogos, optamos por eu

mesmo fazer as duas funções para que os repórteres e comentaristas ori-ginais pudessem estar escalados para a cobertura de todos os jogos”, expli-cou Vitor.

O número reduzido de pessoas na equipe não é a única dificuldade en-frentada por quem cobre os campeo-natos de menor investimento. Gabriel Andrezo, narrador do site FutRio conta que em certos estádios a internet não funciona, o que impossibilita a transmis-são do jogo. “Às vezes não tem energia e temos que puxar um cabo para ligar o equipamento num bar, por exemplo. É uma loucura desse tamanho, mas a gente tem procurado minimizar esses erros com o aprendizado”

Ricardo Antônio, que ajuda os re-pórteres do site operando o equipa-mento de transmissão em alguns jo-gos, completa:

– No Los Larios (estádio do Esporte Clube Tigres do Brasil) não pega tele-fone nenhum. Uma vez, a gente estava transmitindo Duque de Caxias e acho que era (sic) Tupi e eles conseguiram colocar uma linha. A equipe de Minas que estava no estádio para transmitir o jogo não conseguiu porque não tinha li-nha para eles. Nós tínhamos porque já sabíamos que era preciso pegar. Tem jogo que precisamos transmitir da ar-quibancada porque não tem sinal em outro lugar. Com a vivência, você vai aprendendo como se comportar em cada estádio.

A transmissão dos jogos é feita pela Rádio FutRio e conta com interativida-de dos torcedores que estão acompa-nhando as partidas. “Temos Whatsapp,

Twitter, Facebook e Chat. Durante a transmissão, deixamos tudo isso aber-to para os ouvintes possam mandar mensagem, sugestões, informações. A gente deixa todos os canais abertos para fazer com que o torcedor que está ouvindo se sinta parte da transmissão.

Interatividade também é o ponto forte das transmissões feitas por Célio Ferreira, torcedor fanático do América que acompanha o time em todos os jo-gos a fim de levar para os torcedores que não podem comparecer ao está-dio, um pouco do clima da partida. Ele conta que os torcedores podem man-dar seus recados e reclamações atra-vés de um chat. “Todos podem interagir com a gente. De vez em quando, eles até brigam porque a transmissão está ruim, com as imagens muito tremidas. E a gente briga com eles também. Às vezes a câmera treme por causa do vento, não temos culpa”, brinca.

Apaixonado pelo clube, Célio expli-ca que o principal motivo para começar a transmitir os jogos foi o pouco espa-ço que era destinado ao time na mídia. “Quando me aposentei, em 2008, eu vi o América muito sem mídia então pen-

sei em fazer um blog para acompanhar o dia a dia do clube. Eu estava todo dia no estádio, vendo treino, fazendo entre-vistas. Depois de um tempo, a torcida tomou gosto e em 2009 começamos a transmitir os jogos apenas com áudio e em 2010 com imagens. Eu mesmo narro e comento”.

Além de ter um ajudante que o auxi-lia no estádio durante as transmissões, ele também recebe um reforço de peso vindo de casa. “Minha esposa fica em casa vendo as mesmas imagens que os outros. Então se de repente o som fica ruim, ela me avisa e a gente tenta melhorar. Se a imagem cai ou fica dis-torcida também. Eu vou ajeitando con-forme ela vai me passando.”

Diferentes motivos levam os torce-dores a acompanhar as transmissões. Paixão, curiosidade e distância são al-guns exemplos. Adilson Rezende, mo-rador de Barretos, São Paulo, come-çou a ouvir os jogos feitos pelo FutRio após indicação do filho, o goleiro Adil-son Junior, que atualmente está sem clube mas que na época defendia o Friburguense, time da Região Serrana do Rio. Na webrádio, Adilson enxergou uma possibilidade de estar mais próxi-mo de seu filho.

“Descobri o FutRio num jogo do Fri-burguense. Eu ficava no chat comen-tando ‘Entrevistem meu filho, por fa-vor’. Quando entrevistavam, algumas lágrimas derramavam do lado de cá. Com isso, o FutRio acabou se tornan-do amor a primeira vista”, relata.

A dedicação, as dificuldades enfren-tadas e o suor derramado por cada re-pórter e narrador durante o trabalho de transmissão não são em vão. Eles são recompensados com o crescente nú-mero de torcedores que acabam se tor-nando fiéis ouvintes e seguidores não apenas durante os jogos, mas também no dia a dia dos clubes. “Eu acho as transmissões fantásticas. Elas são fei-tas com o coração e rompem barreiras. Acho que eles só têm a crescer por da-rem espaço e colocarem em evidência essas agremiações de menor investi-mento”, afirma Adilson Rezende.

Desafios e paixão marcam as transmissões de jogos pela internet em campeonatos de baixo investimento

Por Nathália Vincentis e Sabrina Nunes

Futebol em sintonia

ARQUIBALDOS & GERALDINOS

“Eu acho as transmis-sões fantásticas. Elas

são feitas com o coração e rompem barreiras”

Adilson Rezende

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Quando o historiador Pedro Hen-rique Pedreira Campos decidiu pes-quisar a fundo as relações entre as empreiteiras e a ditadura no Brasil, não imaginava que, anos mais tarde, ocorreria a Operação Lava Jato. E muito menos que as investigações da Polícia Federal e do Ministério Públi-co viriam a público pouco depois do lançamento de Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadu-ra civil-militar, 1964-1988, pela Eduff, fruto de sua tese de doutorado. Bas-tou uma entrevista publicada em pá-gina inteira na Folha de S. Paulo com o historiador, em primeiro dezembro do ano passado, para desencadear a reação entre segmentos de esquerda e de direita na Imprensa.

Isto porque, no livro, Pedro Hen-rique demonstra como o poder das empreiteiras se iniciou na administra-ção JK, se consolidou durante o go-verno civil-militar e soube se adaptar mesmo depois da abertura política nos anos seguintes. No mesmo dia da veiculação da entrevista, o jor-nalista Reinaldo Jardim publicou em seu blog, hospedado no portal da

revista Veja, artigo intitulado “Formi-dável bobagem de um livro que não li e que não lerei”. No texto, Jardim afirma que Pedro Henrique “não es-creveu uma obra para analisar a gê-nese da corrupção, suas caracterís-ticas particulares durante a ditadura ou sei lá o quê. Ele escreveu um livro contra o capitalismo, o que sugere que sociedades comunistas foram ou são ainda imunes a esse mal.” Os mesmos argumentos foram repetidos pelo jornalista em entrevista à rádio Jovem Pan, no dia seguinte.

O escritor Luis Fernando Veríssi-mo saiu em defesa de Estranhas ca-tedrais, em sua coluna em O Estado de São Paulo do dia 4 de dezembro, recomendando sua leitura aos “nostál-gicos da ditadura”: “Na sua pesquisa de quatro anos para o livro, ele [Pedro Henrique] estudou a participação das empreiteiras no golpe de 64 e a sua relação com o governo militar que se seguiu, e os casos de corrupção, que na época eram acobertados porque não existia fiscalização, a imprensa era censurada e qualquer crítica era considerada contestação ao regime.”

Tanto a entrevista à Folha como a nota de Veríssimo foram republi-cadas à exaustão em blogs internet a fora. Com os desdobramentos da Lava Jato, outros veículos de comu-nicação entrevistaram o historiador nos meses seguintes. Entre eles, O Globo, Brasil Econômico e rádio CBN. Em março deste ano, a edi-ção brasileira do espanhol El país veiculou nova entrevista com Pedro Henrique, na qual ele descarta a pa-ternidade de tucanos e petistas na gênese da corrupção na Petrobras.

Mais preocupado com ações para interromper o ciclo de corrupção, o historiador aponta que “a lógica da política brasileira é colocar panos quentes e continuar adiante. (...) Para mudar a relação do Estado com as empresas no Brasil seria preciso uma mudança profunda, repensando o sistema de financiamento eleitoral, e criando alternativas às empreiteiras privadas no país”. Enquanto isso não acontece, vale a leitura de Estranhas catedrais, a fim de conhecer a fun-do como as empreiteiras Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Queiroz

Galvão, Norberto Odebrecht e Men-des Júnior, entre outras, se tornaram gigantes no setor, utilizando não ape-nas a corrupção, mas também uma rede de ligações pessoais e políticas ao longo das últimas décadas.

As ligações entre empreiteiras e ditadura acende polêmica na imprensaEstranhas catedrais

Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988. Pedro Henrique Pedreira Campos. Niterói,

Eduff, 444p., R$58,00.

Algumas edições Eduff na área de Comunicação

Nas margens: experiências de suburbanos com periodismo no Rio de Janeiro. Leandro Climaco Mendonça . 220p., R$28,00

Prata da casa: fotógrafos e fotografia no Rio de Janeiro (1950-1960). Silvana Louzada 359p., R$45,00

As múltiplas faces de Madame Satã: estéticas e políticas do corpo. Geisa Rodrigues. 255p., R$36,00.

Relações entre linguagens no jornal: fotografia e narrativa verbal. Regina Souza Gomes. 214p., 30,00

Narrativas juvenis e espaços públicos: olhares de pesquisas em educação, mídia e ciências sociais. Paulo Carrano e Osmar Fávero (org) . 384p., R$44,00Pesquisas

em mídia e cotidiano. Adilson Cabral, Alexandre Farbiarz e Denise Tavares (org.). 301p., R$ 45,00

Percursos do olhar: comunicação, narrativa e memória. Marialva Carlos Barbosa. 172p., 25,00

Silvio Santos vem aí: programas de auditório do SBT numa perspectiva semiótica. Silvia Maria de Sousa.160p., R$34,00

À venda nas livrarias

da Eduff com desconto

para estudantes e

professores da UFF

Livraria Gragoatá(Campus Gragoatá)

Tel. 2629.2937

Livraria Icaraí(na entrada da Reitoria)

Tel. 2629.5293www.editoradauff.com.br

Notícias da violência urbana: um estudo antropológico. Edilson Márcio Almeida da Silva. 256p., 30,00

Argentina-Brasil no cinema: diálogos. Tunico Amâncio (org) . 256p., R$35,00

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Quem chega ao número 93 da Rua da Assembleia, no Centro do Rio, encontra

oito homens uniformizados, com sa-patos pretos lustrosos e uma senho-ra que não se deixa intimidar com os seus 1,50m. Lá, funciona a Engra-xataria Cataldo, fundada em 1949, a única que sobreviveu ao tempo. Na loja, que fica quase na esquina com a movimentada Avenida Rio Bran-co, os clientes pagam entre R$9,00 (graxa comum) e R$14,00 (graxa importada com tinta).

Um dos funcionários da Cataldo é Odair José, que já se apresenta fazendo piada: “Odair José, isso mesmo, nome de engraxate tem que ser feio”. O trabalho ia ser tem-porário, mas Odair gostou do ofício e os dois meses iniciais se torna-ram oito anos e meio na função. Ele conta que aprendeu na prática a atividade que hoje lhe rende cer-ca de R$3.000,00 por mês, o sufi-ciente para uma vida confortável. “Atendo cerca de 40 clientes por dia e ganho por comissão, além da gor-jeta, que é um costume. Mas tem funcionário mais antigo que recebe R$5.000,00 e já formou até filho ad-vogado, acredita?”, conta.

Ele tem clientes fixos, a maioria formada por funcionários públicos. Entre novembro e janeiro, o negó-cio é mais lucrativo, mas, segundo Odair, “dá para viver o ano inteiro”. Época difícil mesmo foi a dos pro-testos que aconteceram no Centro da cidade, em junho de 2013, quan-do a frequência diminuiu bastante, lembra ele. Essas variáveis influen-ciam no número de clientes, mas o engraxate não pretende deixar tão cedo a loja, que garante carteira assinada e direitos trabalhistas: “Se tudo continuar como está, sigo aqui até a aposentadoria”, garante.

A poucos metros dali, Juninho, que prefere a autonomia de traba-lhar na rua, instalou seu ponto. O engraxate tímido, mas dono de um sorriso largo, sai de São Cristó-vão, na Zona Norte do Rio, para o Centro, há 32 anos, de segunda a sexta. O ponto, na esquina da Rua Sete de Setembro com a Rua do Carmo, tem sido motivo de preocu-pação para ele. Juraci – “Juninho é só apelido, nem sei dizer de onde veio” - conta que, ao tentar se regu-larizar, a Prefeitura determinou que ele deveria trabalhar em outro lu-gar. “Eles não entendem que estou no meu ponto há muito tempo, não posso simplesmente mudar agora,

perderia muitos clientes”, argumen-ta.

Para engraxar os sapatos, os advogados que passam a caminho do Fórum desembolsam R$5,00. Ele diz que conhece a maioria dos clientes, mas não gosta de contar quantos atende por dia, já que o importante é que não falte dinhei-ro no fim do mês. “Contar é ruim, porque depois você fica pensando que atendeu menos hoje do que se-mana passada e trabalhar na rua é assim, um dia pelo outro. O que sei é que sempre consigo manter meus dois filhos e minha esposa”, explica.

Perguntado se tinha alguma his-tória curiosa para contar, Juninho se lembra da mais romântica: “Quando comecei a trabalhar aqui, tinha um casal que estudava ali na Univer-sidade Cândido Mendes e sempre lanchava por aqui. Eles ainda pas-sam juntos de mãos dadas e isso já tem mais de trinta anos”. O que mudou de lá para cá, porém, foi a segurança. Ele diz que vê a cada dia mais assaltos na região. “A vio-lência aumentou muito na cidade, mas o Centro está insuportável”, la-mentou, contando que diariamente vê algum incidente, o que diminui o movimento.

Na mesma Rua do Carmo, pou-cos passos depois, César tem uma visão diferente. Ele começou a tra-balhar lá aos vinte anos, hoje tem 43, e acha que a clientela voltou a aumentar. Segundo ele, o período mais difícil foi quando os sapatos de camurça e nobuck ficaram na moda. “Estou até hoje procurando quem in-ventou isso, quando achar, mando matar”, diverte-se. Cesinha, como é conhecido, aprendeu a arte de engraxar com o pai, com quem tra-balha lado a lado. “Meu pai tem 79 anos e está aqui há 45 anos, foi ele quem me ensinou tudo o que sei”.

César mora em Laranjeiras com a mulher e seus quatro filhos e or-gulha-se de ter conseguido pagar os estudos de todos eles com o sa-lário de engraxate: “É uma profissão muito digna, mas fico feliz porque nenhum dos meus meninos vai pre-cisar vir para rua trabalhar”. Não é só o pai, que já tinha ido embora no momento da entrevista, quem tra-balha com calçados: “Meu avô era sapateiro, isso é de família, acho que está no sangue”. Se o início da entrevista foi repleto de receio e ti-midez, no final, Cesinha já estava à vontade: “Mas já acabou? Agora me empolguei, pergunta mais!”.

“Vai uma graxa

aí?”Histórias de um ofício

que sobreviveu aos “novos-tempos”

Por Beatriz Jorge e Leonardo Moura

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Há mais de vinte anos, César traba-lha ao lado do pai, no mesmo ponto da Rua do Carmo.

LIMOEIRO