O cavaleiro das palavras estranhas -...
Transcript of O cavaleiro das palavras estranhas -...
-
O cavaleiro das palavras estranhas
Milton Hatoum
Lngua que ondula entre os mastros ele
o cavaleiro das palavras estranhas
Adonis, Cantos de Mihyar, o Damasceno
i
Adonis uma fbula fencia que se irradiou na lite-
ratura da Grcia antiga com a fora e a complexidade dos
grandes mitos. Nascido de uma rvore, Adonis tornou-se
para os gregos um smbolo do mistrio da natureza: um
deus da vegetao e da fertilidade, ligado ao ciclo de nasci-
mentos, mortes e renascimentos.
Ainda jovem, ao escolher esse pseudnimo, o poeta s-
rio Ali Ahmad Said Esber introduziu na regio do isl uma
dimenso mtica e pag, que rene a literatura e o saber de
duas culturas do Mediterrneo. Esse elo cultural ter uma
forte repercusso na obra potica e crtica de Adonis.
Um episdio da infncia do poeta j faz parte de sua
mitologia pessoal: aos treze anos ele declamou seus poe-
mas ao presidente da Sria, que visitava uma cidade vizi-
nha a Qassabin, a aldeia onde o poeta nasceu em 1930. Por
esse gesto de audcia, ganhou uma bolsa para estudar no
liceu francs de Tartus, uma cidade porturia no centro-sul
do litoral srio. Em 1954, quando se formou em filosofia na
Universidade de Damasco, j havia lido a poesia rabe cls-
-
sica e pr-islmica, e tambm poemas de Charles Baude-
laire, Rainer Maria Rilke, Ren Char, Henri Michaux... Dos
dois anos do servio militar, passou onze meses na priso,
acusado de atividades subversivas.
Em 1956 mudou-se para Beirute, cidade que o aco-
lheu e onde morou por quase vinte anos. Beirute era
talvez ainda seja a capital rabe mais aberta cultura
do Ocidente e ao debate e confronto de ideias. Em 1960,
quando morou um ano em Paris, conheceu vrios poetas
europeus e latino-americanos: Henri Michaux, Paul Ce-
lan, Tristan Tzara, Octavio Paz, Yves Bonnefoix... A convi-
vncia com esses poetas e a vida cultural de Paris onde
passou a morar a partir de 1985 foram importantes no
apenas para Adonis, mas tambm para a revista libane-
sa Chiir (1957-64), fundada por ele e pelo poeta e crtico
Youssef al-Khal. Em 1959, ambos traduziram para o rabe
The waste land, de T. S. Eliot, e, quatro anos depois, uma
antologia da obra de Robert Frost.
Por certo j existiam outras revistas culturais relevan-
tes em Beirute como a Al-Adab , em Bagd e no Cairo,
onde o movimento do verso livre, liderado pelo poeta
iraquiano Abd al-Wahab al-Bayati, consolidara-se entre
1947 e 1954, com repercusses na produo literria da
Sria, Palestina e Egito. Mas foi a Chiir a que mais se empe-
nhou em estreitar os laos culturais com o Ocidente, tendo
publicado manifestos poticos, entrevistas com T. S. Eliot e
outros poetas, e tradues para o rabe das obras de poetas
europeus e norte-americanos.1
Em 1968, Adonis fundou a revista Mawqif [Posies],
cujo objetivo principal era dar voz a jovens poetas, prin-
-
cipalmente os que sugeriam formas inovadoras na poe-
sia rabe. Num artigo sobre a histria da Mawqif e sua
irradiao na cultura rabe contempornea, Khalida Said
ressalta que a revista
extrapolou questes literrias e abordou temas que at ento
eram tabus, sobretudo ligados ao nacionalismo e identidade,
inspirao divina, ao texto religioso, situao da mulher,
da universidade, da educao, s relaes entre o Ocidente e
o Oriente, violncia, criao artstica e nova escrita.
Assim, operava uma reviso da questo da modernidade e de
seus conceitos na poesia e na arte, ou ainda na crtica e no
pensamento histrico, filosfico, religioso, social e poltico.2
Nesse sentido, Mawqif, na esteira de sua antecessora
Chiir, representou a maior efervescncia da poesia expe-
rimental em lngua rabe, sendo que a maioria dos poetas
desse perodo foi revelada ou consolidada a partir da pu-
blicao da revista.3
As duas revistas provocaram reaes speras de cor-
rentes religiosas e tambm de partidos laicos, de vis na-
cionalista, cujos militantes defendiam uma literatura po-
liticamente engajada, de teor mais social, diferente das
propostas dessas revistas, que pregavam uma ruptura
formal e temtica com a literatura clssica, uma ruptura,
alis, j defendida antes por al-Bayati, autor de notveis
poemas sobre o exlio. Um dos pontos mais agudos des-
sa polmica surgiu quando Adonis escreveu o Manifesto
para o 5 de junho de 1967, publicado nesse mesmo ano
em revistas rabes e, em 1968, na revista francesa Esprit.
Nesse manifesto, Adonis reivindicava uma mudana na
vida intelectual e no fazer artstico, enfatizando que essa
-
mudana devia ultrapassar o quadro poltico e nacionalista
para englobar uma dimenso mais profunda e mais vas-
ta: a do homem em sua verdadeira essncia. No poeta
aquele que no situa no corao de sua intuio potica a
transformao do mundo.4
Como assinalou Khalida Said, esse manifesto surgiu
no apogeu da voga nacionalista na Sria e em outros pa-
ses rabes, ento dominados pelo discurso da identidade
eterna, da autenticidade e da referncia s razes que ex-
primem qualidades essenciais. E Adonis, ao submeter o
conhecimento e a verdade experincia e ao questiona-
mento permanente, situando a identidade diante de ns
mesmos, como algo que deve ser construdo e inventado,
ops-se frontalmente ao pensamento conservador, com
suas normas e verdades absolutas impostas pelo poder, seja
este religioso, poltico ou moral.5
Assim, Adonis trouxe para sua poesia um novo espri-
to, que respondia mudana por meio de uma compreen-
so da tradio literria em nome da diversidade. Para ele,
tanto a modernidade quanto a renovao da tradio fa-
zem parte de um processo inacabado, contnuo, e relacio-
nam-se de um modo dialtico, que transcende ou supera
valores e formas rgidos.6 Ao argumentar que a linguagem
potica deve responder experincia, tenso e paixo, e
que a criatividade envolve transgresso, e no obedincia
e subordinao, Adonis se refere por certo ao poeta do
perodo abssida Abu-Tammam (sculos viii-ix) que j
havia rompido com as formas clssicas da lrica e ao sufi
-
Ibn-Arabi (sculos xii-xiii), que considerava a poesia uma
transgresso do habitual.7
Autor de estudos de potica rabe e de antologias da
poesia rabe de todos os tempos, Adonis descobriu no me-
lhor da poesia dos antigos o mesmo mpeto revolucionrio
e renovador que marca a literatura universal em busca da
modernizao. Assim, em vez de considerar o classicismo
um bloco engessado, ele v nos poetas e crticos antigos sa-
turao, questionamento, rompimento e inovao. Nessa
constatao, que aproxima o legado rabe da modernidade
ocidental, por exemplo, no cabe nenhuma comparao
ou juzo de valor entre os campos da cultura, mas talvez
seja um modo de dizer que essa poesia do passado, com
traos modernos, precisava de uma nova leitura interpre-
tativa: uma leitura luz da contemporaneidade, capaz de
confrontar a lrica clssica com a de outras pocas e cultu-
ras, e, assim, de tentar elaborar uma potica prpria.
Numa passagem de seu livro Introduo poesia rabe,
de 1971, ele esclarece o dilogo que fez entre a poesia do
Oriente e a do Ocidente:
Foi a leitura de Baudelaire que mudou minha compreenso
de Abu-Nuwas e revelou sua particular qualidade potica e
modernidade; a obra de Mallarm me esclareceu os mistrios
da linguagem potica de Abu-Tammam e a dimenso moder-
na dessa linguagem. A leitura de Rimbaud, Nerval e Breton
me conduziu descoberta da poesia dos escritores msticos em
todo o seu esplendor e singularidade, e a nova crtica francesa
me indicou a novidade da viso crtica de al-Jurjani.8
-
Adonis assimilou as vozes desses e de outros poetas
at encontrar um modo prprio e inovador para expres-
sar seu lirismo. Como ele mesmo escreveu, a relao com
a herana literria no deve excluir nosso modo de ser e
nossa experincia especfica.9 Essa experincia individual,
e tambm histrica, est disseminada na vasta obra potica
de Adonis, que opera com uma enorme variedade de te-
mas, misturas de estilos e alternncias de tons do narrador
lrico. Uma parte significativa dessa diversidade temtica e
formal encontra-se na traduo notvel do poeta e profes-
sor Michel Sleiman.
Das formas breves da lrica aos poemas com versos
longos, de corte pico, o leitor se v diante de uma poesia
estranha, que evoca ao mesmo tempo a origem da prpria
poesia e o que nela h de mais moderno. A elaborao
formal dos poemas mais longos lembra, s vezes, a tcnica
da colagem, usada por poetas e artistas das vanguardas
europeias. Adonis tambm tem usado esse recurso tcnico
em seus trabalhos artsticos, juntando cacos e fragmentos
de pequenos objetos encontrados ao acaso e colando-os
sobre textos escritos em rabe, formando uma imagem
cujo efeito visual surpreende pela juno de materiais to
distintos: a arte milenar da caligrafia com pedaos de ob-
jetos inteis.
Em sua poesia sobretudo nos poemas Nos braos
de outro alfabeto e Tumba para Nova York h um
pouco dessa mistura de materiais e recursos tcnicos dife-
rentes. O tom do narrador ou das vozes lricas do poema
pode ser elevado, tal o canto de um ritual; s vezes o tom
coloquial, blasfemo e provocador, mesclado com provr-
-
bios, mximas e fragmentos de conversa. Essas vozes com
entonaes contrastantes e imagens inusitadas e surpreen-
dentes aludem a recortes da realidade e a perodos da His-
tria, indagam sobre o prprio corpo do sujeito lrico, ou
meditam sobre a escrita, a Natureza, os sentimentos. Penso
que essa liberdade inventiva deriva, em parte, da viso ex-
ttica dos poetas sufis, da atitude proftica e visionria de
Rimbaud e das iluminaes profanas dos surrealistas. No
por acaso Adonis escreveu um livro em que tece afinidades
profundas das obras desses poetas de lngua francesa com
a poesia sufi dos rabes e tambm persas, como Shams ud-
-Din Mohamed Hafiz, o grande poe ta mstico de Shiraz,
admirado por Goethe e evocado por Manuel Bandeira no
belssimo Gazal em louvor de Hafiz.
Mas, como notou o poeta francs Alain Jouffroy,
Adonis no um mstico, nem mesmo um mstico ateu,
apesar de ter revisitado e revivido interiormente a poesia
de al-Hallaj, Ibn-Arabi, Abu-Nuwas e al-Nffari, que fize-
ram de sua poesia um vitico de libertao interior. Para
Jouffroy, esses poetas serviram de referncia para que Ado-
nis no apenas lhes perpetuasse os desafios, como tambm
os superasse com uma nova linguagem, capaz de criticar
frontalmente todos os dogmas e destruir radicalmente um
sentido definitivo vida e morte, mas sem resignao,
sem se limitar constatao fcil demais do niilismo.10
De fato, na poesia de Adonis no h niilismo, nem
jogos gratuitos com as palavras, esvaziados de qualquer
sentido. O que se l, j nos Primeiros poemas (1957), uma
-
entrega do sujeito lrico ao segredo das coisas, ao momen-
to da criao e ao devaneio de ideias, como a arte que
estranha.... Em Canes para a morte, outro poema da
mesma srie, o eu lrico diz: mos da morte, alonguem
meu caminho/ meu corao presa do desconhecido,/
alonguem meu caminho/ quem sabe descubro a essncia
do impossvel/ e vejo o mundo ao meu redor.
A poesia tenta desvelar a essncia do impossvel por
meio da alquimia verbal, que permite criar formas expres-
sivas no mbito do mistrio e do desconhecido. A alquimia
do verbo, o poder de transformao que move a palavra
potica com seus smbolos e metforas, o tema medular
do Livro das transformaes e da fuga pelas regies do dia e da
noite (1965), em que a rvore e, por extenso, a natureza
aludem simbolicamente a seres que passam por metamor-
foses sucessivas na mudana das estaes. Logo pensamos
em Dafne transformada em rvore nas Metamorfoses, de
Ovdio; ou nos poemas de rbol adentro, de Octavio Paz:
a rvore que o sujeito lrico v crescer a sua frente cresce
dentro de seu corpo, onde se misturam razes e veias, ner-
vos e galhos, folhagens confusas e pensamentos.11
No poema rvore do Oriente (da srie Flor da al-
quimia) o eu lrico e a natureza (a gua) se transformam
e se fundem, criando a imagem do duplo que se reflete
um no outro. Em Flor da alquimia, o narrador, atravs
de uma viagem imaginria, sai em busca de uma expe-
rincia mstica, em que as associaes de sons e de pala-vras repetidas geram um ritmo encantatrio que conflui transformao.
-
[...]
preciso viajar na fome, na rosa, rumo s colheitas
preciso viajar, descansar
sob o arco dos lbios rfos
nos lbios rfos, em sua sombra ferida
est a antiga flor da
alquimia.
A viso potica surge tambm das lembranas da in-
fncia, em que o sujeito lrico, embora viajante, permane-
ce ligado a sua aldeia, trancafiado pelas portas do tempo, e
a nica possibilidade de evaso atravs do amor, como se
l em Celebrao da infncia:
Pequena aldeia tua infncia
e apesar disto
no ultrapassars suas fronteiras
por mais que te afaste a viagem.
[...]
Tempo: porta trancada
tento no consigo abri-la.
Meu encantamento est cansado
meus amuletos, dormentes.
Nasci numa aldeia
pequena, reclusa, como o tero
e ainda no sa dela.
Meu amor vai pelo oceano
no pelas praias.
-
A publicao do livro Cantos de Mihyar, o Damasceno
(1961) foi um verdadeiro acontecimento literrio, e no
demorou a ser traduzido em vrias lnguas e analisado por
crticos rabes e ocidentais. Nesse poema cantado por v-
rias vozes, ou por outras vozes de um narrador lrico cam-
biante, o protagonista passa por sucessivas metamorfoses
e adquire mltiplas identidades. A abertura desse excerto
dos Cantos de Mihyar um salmo em prosa ritmada, que
anuncia a chegada do cavaleiro das palavras estranhas,
cuja ptria uma nebulosa e cujas palavras, com seu poder
transformador, rumam perdio.
Transforma o amanh em caa, corre atrs dela em desespero.
Inscritas, suas palavras seguem rumo: perdio perdio.
A confuso sua ptria, mas tem os olhos cheios.
[...]
Ele o vento que no volta atrs, a gua que no retorna fonte. Cria
sua espcie a partir dele mesmo. No tem ascendentes, suas razes
esto em seus passos.
Caminha no abismo e tem o porte do vento.
Adonis recorre ao antigo tpico da viagem como fon-
te de metamorfoses, da perambulao, da transgresso, do
excesso. Sem regressar ao porto de origem, Mihyar um
rei que vive no reino do vento e reina na terra dos segre-
dos, um rei cujo sonho palcio e jardins de fogo, um
ser cujos olhos nascem em busca do mito num mundo
que veste o rosto da morte.
Na viagem de um ser desgarrado e errante, o tempo
se esfuma numa espcie de fulgor, e o espao se expande
at o fim do cu. O cavaleiro que faz errar o desespero
-
percorre sem esperana o caminho da utopia, anuncian-
do a morte dos deuses e sua prpria morte. Cavaleiro de
uma travessia ininterrupta, Mihyar um brbaro santo
que estende as palmas das mos para a ptria morta e para
as ruas mudas, que avana na estao das novas letras e
entrega-se em poesia aos ventos. No poema Exortao
da morte, um coro de vozes dramatiza a fria de Mihyar,
que queima nossa casca de vida/ nossa resignao/ nosso
jeito amvel. Mais adiante, outra voz exorta para que ele
seja crucificado na cidade dos exilados:
cidade dos exilados, receba-o
com espinhos, receba-o com pedras
pendure suas mos como um arco
onde um funeral passe embaixo
coroe suas tmporas
com brasa e tatuagem, e que abrase Mihyar.
ii
No so poucas as referncias ao exlio na obra de
Adonis e de outros poetas rabes contemporneos, como
o iraquiano al-Bayatti e o palestino Mahmoud Darwich.
Alm da experincia pessoal de cada poeta, o exlio tem
sido desde o sculo ix ou mesmo antes um dos gran-
des temas da literatura rabe e serviu de ponte entre a tra-
dio e a modernidade.12
O exlio de Adonis em Beirute, a intuio de que em
1971 o Lbano estava beira de uma guerra civil, os cri-
mes cometidos pelo exrcito norte-americano no Vietn,
-
a conscincia crtica da vergonhosa submisso de monar-
quias despticas e ditaduras rabes aos interesses de pode-
rosas naes ocidentais, tudo isso est insinuado no poe-
ma Tumba para Nova York, em que o lrico e o pico
se misturam para evocar um captulo infernal da histria
contempornea, com aluses a outras pocas e culturas,
onde lderes polticos, estadistas e poetas aparecem como
personagens dotadas de simbologia e relevo histrico.
Para alguns crticos, Tumba para Nova York marca
uma clara inflexo na potica de Adonis, que d, pela
primeira vez em sua obra, um sentido histrico imedia-
to escrita.13 Os leitores brasileiros talvez se lembrem
de alguns versos do poema Inferno em Wall Street, de
Sousndrade. Ou dos versos do poema Elegia 1938, de
Carlos Drummond de Andrade: Aceitas a chuva, a guer-
ra, o desemprego e a injusta distribuio/ porque no po-
des, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan. De algum
modo, ambos criticam a capital mundial das finanas, que,
no nosso tempo, tambm o centro da cultura do Ociden-
te. Nesse dilogo sofisticado e alucinado com a metrpole
vital e polimorfa, a viso crtica de Adonis visceral, sem
ser maniquesta. A democracia do pas de Walt Whitman e
Abraham Lincoln se ope aos crimes de Richard Nixon, do
secretrio de Defesa Robert McNamara e de Calley, um mi-
litar de baixa patente que chefiou a matana na aldeia de
My Lai.14 A Quinta Avenida e o poder econmico de Wall
Street contrapem-se ao Harlem e ao Greenwich Village,
bairros que indicam um futuro mais otimista.15 Nas pala-
vras do crtico e tradutor espanhol Federico Arbs Ayuso,
o poema aponta, sobretudo, para uma crtica estrutu-
-
ra profunda de uma metrpole que simboliza o violento
domnio que o imprio norte-americano exerce em vrias
regies do planeta, onde as vtimas, segundo o narrador de
Adonis, so pessoas sem outra histria a no ser o fogo:16
NOVA YORK,
mulher esttua de mulher
numa mo ergue um trapo que a folha chama Liberdade que ns
chamamos Histria
noutra mo estrangula uma criana chamada Terra.
Em vrias passagens os versos longos adquirem o
ritmo da prosa e lembram os versculos usados por Walt
Whitman, evocado no captulo ix do poema, em que o nar-
rador se dirige ao grande poeta norte-americano e cita v-
rios versos de Leaves of grass. O poema de Adonis tambm
dialoga com o Poeta en Nueva York, na medida em que recu-
pera, em outro contexto histrico-poltico, determinadas
reminiscncias das imagens de Federico Garca Lorca.17
Se em Tumba para Nova York a viso trgica fala
principalmente de um determinado momento histrico
a dcada de 1960 , no poema Espelho do sculo xx essa
mesma viso trgica alcana um impressionante poder de
sntese para evocar o sculo passado:
Caixo revestido com rosto de menino
livro escrito nas entranhas de um corvo
fera que avana levando uma flor
rocha que respira nos pulmes de um louco
assim
o sculo XX.
-
iii
Desde o comeo, a linguagem potica de Adonis sonda
os segredos das coisas e dos seres; ou, como diz Bandeira
em seu Gazal, o mistrio do mundo, que resiste ple-
na decifrao. A busca do sentido do cosmo se entrelaa
com a do sentido da existncia humana, e essa experincia
potica, como assinalou Adonis, referindo-se aos sufis e a
Rimbaud, uma tentativa de realizar o que normalmente
irrealizvel: uma viagem ao mais fundo do nosso ser para
explorar ao mximo o desconhecido.18
A certa altura de Nos braos de outro alfabeto, poe-
ma sobre Damasco, uma voz aconselha: Diz, ento, a
teu corpo, conquanto amigo do mistrio [...] no poders
transformar as palavras em coisas. E ainda nesse poema,
um provrbio que parece vir da voz de um poeta sufi diz:
no vs at a porta pelo que ela em si, mas pelo que nela
oculto.
Nessa Damasco fantasmagrica, em que o passado e o
presente, imbricados, so evocados por um coro de vozes,
h vrias referncias concretas cidade e vida de seus
moradores, s palavras escutadas nas ruas, praas, banhos,
escolas, cafs e mercados. Uma dessas vozes diz: Mal te
refugias na realidade, vs que em seu rosto uma miragem
beija a terra. Nesse verso belssimo a realidade, transfor-
mada em quimera pelo olhar, o outro refgio possvel:
lugar em que a miragem se une terra por meio de um
gesto do desejo.
-
Em dois excelentes ensaios sobre a poesia de Roberto
Piva, o crtico e escritor Davi Arrigucci Jr. ressalta que a lin-
guagem do poeta paulistano depende da fora visionria
da imagem e do assombro imaginativo, capaz de despertar
o leitor e abrir seus olhos. O crtico salienta tambm que
o conflito que aflora na mescla de vozes do poeta neces-
sita do xtase para ter voz e exprimir o que secretamente
fervilha em seu inalcanvel interior.19 Penso que algo se-
melhante se pode dizer sobre muitos poemas de Adonis,
apesar das diferenas estilsticas e temticas entre as obras
dos dois poetas.
iv
Se sou nativo do Oriente, escreveu Adonis,
porque, antes de mais nada, invento meu prprio Oriente.
Perteno a ele na medida em que ele me pertence. Este Orien-
te ao mesmo tempo memria e esquecimento, presena e
ausncia. Ele afirma o caos, que no se sabe se o barro ou a
mo, a luz ou a noite, o nada ou o tudo. Para mim, o Oriente
o indefinvel, a extenso vazia, o nomadismo original.20
Nessa travessia sem fim, a palavra potica parece obe-
decer vontade, mais utpica que qualquer outra, de fazer
dialogar todos os tempos e todos os lugares possveis no
espao terrestre.21 Os mitos e as narrativas que lhes do
significado simblico e histrico movem essa viagem da
imaginao, s vezes alucinada e delirante a caminho do
-
xtase. Talvez seja esta a nica forma de o cavaleiro das pa-
lavras estranhas se acercar do desconhecido, da essncia
do impossvel, do enigma da vida.
O vinho que corre na veia da melhor poesia rabe
tambm circula nos poemas de Adonis. O vinho como me-
tfora da grande poesia: assombro, prazer, embriaguez do
conhecimento, e uma percepo expansiva da realidade e
do eu lrico, capaz de expressar um sentido aguado de
beleza e alcanar o sublime.
Milton HatouM escritor. Publicou os livros Dois irmos, Relato de um certo
Oriente e Cinzas do Norte, entre outros.
-
Notas
1. Ver, nesse sentido, arbs ayuso, Federico. Tres calas en la produccin
potica de Adonis, Anaquel de Estudios rabes, Madrid, 2006, vol. 17, pp.
31-76. Uma sucinta mas tima abordagem sobre as principais caractersti-
cas dos movimentos literrios que fundaram a poesia rabe contempornea
encontra-se nas pginas 32-47 da referida revista.
2. Cf. sad, Khalida. Mawqif ou la contre-utopie. In: jouffroy, Alain
et al. Adonis, un pote dans le monde daujourdhui, 1950-2000. Paris: Institut du
Monde Arabe, 2000, pp. 159-64. A referncia est na p. 162.
3. Idem, ibidem, p. 163.
4. Idem, ibidem, p. 160.
5. Idem, ibidem, p. 160.
6. Ver al-Musawi, Muhsin. Arabic poetry: Trajectories of modernity and tra-
dition. Londres/ Nova York: Routledge, 2006, p. 57.
7. Idem, ibidem, p. 60.
8. Cf. adonis. An introduction to Arab poetics. Trad. Catherine Cobham.
Austin: University of Texas Press, 1990, p. 81. Citado por Al-Musawi, op.
cit., p. 59. H uma traduo francesa desse livro: Introduction la potique
rabe. Paris: Sindbad, 1985.
9. Citado por al-Musawi, Muhsin, op. cit., p. 61.
10. Ver jouffroy, Alain, op. cit., p. 15.
11. O livro de Adonis anterior ao de Paz. Os dois poetas se encon-
traram vrias vezes: em Paris (1960), em Beirute (1964) e em Estocolmo,
nos anos 90.
-
12. Sobre o tema do exlio na poesia rabe clssica e contempornea,
ver Envisioning exile, captulo 6 do livro de Al-Musawi, j citado.
13. arbs ayuso, Federico, op. cit., p. 66.
14. Idem, ibidem. Nessa matana, corpos de crianas, mulheres e ido-
sos foram queimados por napalm. O crtico espanhol lembra que foi pro-
vado que o comando militar norte-americano sabia no haver ali nenhum
vietnamita armado.
15. Idem, ibidem, p. 65. Segundo Arbs, esse desejo do poeta eu
diria: do narrador lrico exprime certo otimismo histrico naquele mo-
mento.
16. Idem, ibidem, p. 65.
17. Cf. arbs ayuso, Federico, op. cit., p. 61.
18. adonis. Sufismo y surrealismo. Trad. de Jos Miguel Puerta Vlchez.
Madrid: Ediciones del Oriente y del Mediterrneo, 2008, p. 286.
19. Ver O mundo delirante e O cavaleiro do mundo delirante. In:
arrigucci jr., Davi. O guardador de segredos: Ensaios. So Paulo: Companhia
das Letras, 2010, p. 49 e 66, respectivamente.
20. adonis. A citao foi extrada de um dos textos de Six notes du
ct du vent. Trad. Claude Esteban. In: Mmoire du vent: Pomes 1957-90.
Pref. e sel. Andr Velter, vrios tradutores. Paris: Gallimard, 1991, p. 190.
21. jouffroy, Alain, op. cit., p. 11.