o Cavaleiro Inexistente Artigo

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Resumo

Este artigo visa estudar o processo de intertextualidade em ItaloCalvino’s como tentativa da dissimulação da identidade, revendo oconceito de criação literária como local de absorção etransformação de outros textos. A partir de O cavaleiro inexistente,abordaremos também o tema da subjetividade como noção

fundamental de apropriação do “eu” inscrito numa corporeidade.Palavras-chave: intertextual; subjetividade; eu.

Summary

This article aims to study the intercontextuality process of “ItaloCalvino” work as an attempt of identity dissimulation reviewingliterary creation as a place of absorption and transformation of other

texts. From this work the subjectivity as a fundamental notion ofindividual ego is also approached.

Keywords: intercontextuality; subjectivity; ego

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QUANDO A ARMADURA VENCE O HOMEM:uma leitura de O Cavaleiro Inexistente

Fabiano Venturotti 

Especialista em filosofia política e mestrando em Estudos Literários da UFES

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Dom Quixote de la Mancha, precursor de o Cavaleiro Inexistente

“Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando seimpõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da

memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo e individual” (Calvino, 2003,p. 11-12). A frase, constitutiva da literatura calviniana, molda os contornos docorpus literário em questão, O Cavaleiro Inexistente, revigorando a noção derecriação literária em detrimento de originalidade literária. Nesta mesmaperspectiva, verifica-se que a “produção literária não pode ser 'criação', mas sim'repetição', não pode ser 'invenção', mas 'redação', não pode ser 'escritura', mas'leitura'” (Monegal, 1980, p. 122).

Ítalo Calvino mesmo sugeriu ironicamente que a literatura do século XXI

havia aberto, até aquele momento, dois caminhos possíveis: reciclar as imagensusadas, inserindo-as num contexto diverso a fim de lhes conferir novo significadoou então, apagar tudo e recomeçar do zero (Calvino, 2003, p. 111). Em vista destaprimeira orientação, afirmamos que Calvino processou O cavaleiro inexistente apartir de uma intertextualidade paródica, exigindo do leitor “não apenas oreconhecimento de vestígios textualizados do passado literário e histórico, mastambém a percepção daquilo que foi feito – por intermédio da ironia – a essesvestígios” (Hutcheon, 1991, p. 167).

Calvino já se mostrava consciente de um fato contundente: a literaturateria como possibilidade plausível, para sua sobrevivência, apenas a retomada do já feito e do já dito. A criação literária necessitaria então, do “movimento incessantede deslocamento de relações, de descontextualização dos modelos, dos estilosdos textos e das mensagens” (Iozzi, 2001, p. 6), condição em que nasce a novelacavaleiresca de Calvino.

Segundo Silva & Medina (2006), as novelas de cavalaria surgiam em finsdo século XII e tiveram seu apogeu até parte do século XIV. Nestas novelas, os

cavaleiros são dotados de características especiais, tais como: aptidão física edestreza com as armas, lealdade, integridade, honra e, sobretudo, obediência aorei e à Igreja. Direcionando suas ações por princípios morais e religiosos, asociedade conferia-lhes dignidade perante os outros homens e, sobretudo, Deus.Ao agirem desta maneira, os cavaleiros atuavam sempre em nome de outrem,representando não a si mesmos, mas a alguém exterior a eles.

Ao escrever sua grande paródia, Miguel de Cervantes y Saavedra (1547-1616) propôs-se a ridicularizar os livros de cavalaria, os quais gozavam de imensa

popularidade na época. A ação principal do romance Dom Quixote de la Mancha (1605) gira em torno das três incursões feitas pelo protagonista e por seu fiel amigoe companheiro, Sancho Pança, por terras de La Mancha, de Aragão e de Catalunha.

A personagem principal da obra é um fidalgo castelhano, Alonso Quijano,que perdeu a razão após assídua leitura dos romances de cavalaria (Cervantes,2004, p. 27-29). Sua loucura começa quando toma por realidades históricasindiscutíveis as façanhas das personagens dos livros, pretendendo imitar seusheróis prediletos. Envolve-se em uma série de aventuras, mas suas fantasias são

sempre desmentidas pela dura realidade. Por isso, o efeito da obra é altamentehumorístico.

Quijano, investido dos ideais cavalheirescos de amor, paz e justiça, prepara-separa sair pelo mundo, lutando por tais valores e propondo viver o seu próprioromance de cavalaria. Escolhe um título para si mesmo, Dom Quijote de la Mancha,apelida um cavalo velho (Cervantes, 2004, p. 32) com o nome de Rocinante e elegecomo dama ideal de seus sentimentos uma simples camponesa a quem dá o nomede Dulcinea del Toboso, suposta dama de alta nobreza.

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Dom Quixote é um cavaleiro de armadura de latas e elmo de bacia debarbeiro. Intrépido, fraco, cômico e defensor das viúvas; um reflexo às avessas doscavaleiros de outrora. Lançando-se em busca de aventuras, luta pela justiça,levando a fama de suas façanhas aos ouvidos de sua amada, a fim de ser digno desua atenção. Porém, sua posição de cavaleiro não surte efeito algum sobre aopinião pessoas, não existindo respeito à sua figura (Silva & Medina, 2006).

Ao lado de Dom Quixote está seu escudeiro Sancho Pancha, refletindo oavesso de seu amigo. Enquanto aquele vive no mundo dos sonhos, este é quempossui o pensamento lógico. “Reflete-se em Dom Quixote e suas aventuras arealidade histórica de sua época [...]. Vê-se nele a liberdade de pensamentos e desonhos. Homem senhor de seu destino que busca transformar a realidade deacordo com seus anseios e desejos” (Silva & Medina, 2006).

“Com Cervantes, o universo cavaleiresco torna-se alvo do risocorrosivo que destrói as estruturas de um mundo representadona literatura como palco de afirmação do homem como heróivaloroso [...]. Seguindo a trilha cervantina, Ítalo Calvino comseu romance O cavaleiro inexistente polemiza com toda atradição dos romances de cavalaria e dialogicamente ri de todoesse universo idealizado, apresentando-nos a decadência,senilidade e finitude dos personagens [...].” (Alves, 2003)

A busca pela corporeidade

O romance, O Cavaleiro Inexistente, é baseado numa novela de cavalariaàs avessas, onde a narrativa literária cujos grandes heróis medievais e seuscavaleiros eram exaltados dá lugar a uma comédia nada heróica, a começar peloseu principal protagonista, Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri deCorbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez, possuidor de umaparticularidade inusitada: simplesmente não existia. O que permitia ao imperador

Carlos Magno saber da existência de Agilulfo era a armadura alva, bem conservada,sem um risco, bem-acabada em todas as juntas e impecavelmente limpa.

“Faltava esta! – exclamou o imperador. – Agora temos na tropaaté um cavaleiro que não existe! [...] E como é que estáservindo se não existe? – Com força de vontade – responseuAgilulfo – e fé em nossa santa causa”? (Calvino, 2005, p.10).

Por dentro da estrutura metálica e fria, o ser humano não se permitiaexistir. Havia apenas o vazio, a impessoalidade e a solidão, representando o

definhamento de uma visão épica de mundo. Se Cervantes nos premiou com umcavaleiro avesso de tudo o que era nobre, Calvino, com muita engenhosidade earte, vai além, retirando o cavaleiro de cena e deixando sua apenas exterioridade: aarmadura (Alves, 2003).

Agilulfo era um modelo. Conservador ético do mundo cavaleiresco-medieval, sempre correto, impecável e preso aos seus valores, entretanto, apenasaparência. O essencial lhe faltava: uma corporeidade. Não é possível falar do serhumano ou da realidade fora de um corpo: “o meu corpo (...) é o meu ponto de vista

sobre o mundo” (Merleau-Ponty, apud, Reale, 1991, p. 614). A ausência de umcorpo marca a não interação com o que está fora dele, restando-lhe apenas anorma e a rigidez de um código a ser seguido (Alves, 2003).

seu corpo inapreensível passava desperto todas as horas dodia e da noite, por saber que, se deitasse um só instante, nãose reencontraria de novo, estaria perdido para sempre; porisso intrigava-o como era possível o fechar de olhos, o afundar-se na perda da consciência de si e, ao despertar, descobrir-seigual como antes. (Vieira, 2004, p. 72)

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Sua obstinação era ocupar-se para não se dissolver. Era e permaneciasempre em cada momento do dia ou da noite o mesmo Agilulfo Emo Bertrandinodos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore eFez. Durante o sono dos demais, percorria o acampamento, reino dos corpos, “umaexposição de velha carne de Adão, cheirando ao vinho bebido e ao suor da jornadade lutas” (Calvino, 2005, p. 14). Enquanto isso, as armaduras, testemunho de suaspatentes e nome, jaziam decompostas no umbral dos pavilhões, reduzidas a umaferragem vazia.

“Agilulfo passava, atento, nervoso, hierático: o corpo daspessoas que tinham um corpo de verdade dava-lhe um mal-estar semelhante à inveja, mas também uma sensação queera de orgulho, de desdenhosa superioridade”. (Calvino,

2005, p. 14)“A menor falha no serviço dava a Agilulfo a mania de controlar tudo,

encontrar outros erros e negligências na ação alheia” (Calvino, 2005, p. 15). Suasações impecáveis e seu comportamento racional são motivos deconstrangimento para os outros cavaleiros. Sua presença gera conflito edesmascara as ações de bravura desmedidas e honras inquestionáveis,imaginadas e sustentadas pelos outros cavaleiros, entre um banquete e outroapós as batalhas. Por isso, Agilulfo é “antipático a todos” (Calvino, 2005, p.11).Seu modelo desmascara e desmonta os ideais cavaleirescos, realçado pelo fatode sua não-existência, denunciando o ser humano como passível de falhas e,portanto, imperfeito (Silva & Medina, 2006).

“Diz Rinaldo:

— De qualquer modo, não há comparação com Fusberta.Passando os Pireneus, aquele dragão que enfrentei, cortei-oem dois com um fendente e vocês sabem que a pele de dragãoé mais dura que o diamante.

Agilulfo participa:

— Aí está, vamos tentar pôr as coisas em ordem: a passagemdos Pireneus foi em abril, e em abril, como todos sabem, osdragões mudam de pele, ficando moles e tenros como recém-nascidos.” (Calvino, 2005, p. 72-73)

Como Sancho Pancha, Agiluldo nega os sonhos quixotescos de seuscompanheiros e apresenta-lhes a dura realidade dos fatos, interpretando-osfriamente. Lembrava-se de cada detalhe, preservando nesta memória o seu existir.Essa memória, quase irritante, incomodava os seus companheiros que se viam

reduzidos na participação de um evento trivial ou um expediente normal de serviço.Por este motivo, Agilulfo era solitário, desconhecendo a interação com o outro,permanecendo sempre distante e irrealizado.

Apesar de sua autoridade e competência, vivia numa incerteza de si: “sósentia que incomodava a todos e gostaria de fazer algo para estabelecer umarelação qualquer com o próximo” (Calvino, 2005, p. 16). Por esta razão, oacampamento lhe era estranho, mas também pudera, destituído de corporeidade,não haveria como se portar diferente e, para sentir-se a si mesmo, gostava de

caminhar pelos limites do acampamento, em lugares solitários e morrosdespojados.

Aparece no acampamento um jovem, Rambaldo de Rossiglione,preocupado por um motivo: Vingar a morte de seu pai, o marquês Gherardo deRossiglione, matando o emir Isoarre. Por isso ele se aproxima de Agilulfo parainformar-se do procedimento nas batalhas, pedindo-lhe sub-repticiamente umafeto, um louvor ao seu pai falecido ou uma palavra de entusiasmo. Mas Agilulfo sóconhece a norma, a disciplina e a legalidade das questões, não importando-se com

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a subjetividade de Rambaldo. Por isso, apontando-lhe como solução a procura daSuperintendência para Duelos, Vinganças e Máculas à Honra, que se encarregariade conceder-lhe um local nas batalhas para satisfazer seu desejo. Mas paraRambaldo não interessava a instituição, mas sim o seu problema particular. Nãoestá ali por causa da expansão da cristandade e dos territórios de Carlos Magno,mas por sua questão absoluta, particular, individual.

Na Superintendência o jovem se frustra. Dizem-lhe não ser possívelvingar o pai matando o emir Isoarre. Poderia eliminar três majores ou quatrocapitães, o que escolhesse, numa contabilidade pragmática, pois o pai era apenasum general-de-brigada.

“Mas um dos funcionários que até aquele momento mantivera

a cabeça enfiada nos mapas levantou-se contente:— Tudo resolvido! Tudo resolvido! Não é preciso fazer nada.Nada de vingança, nem é preciso! Outro dia, Ulivieri, pensandoque seus dois tios haviam morrido em combate, vingou-os!Contudo, eles estavam bêbados debaixo de uma mesa!Acabamos ficando com duas vinganças de tio a mais, uma boatrapalhada. Agora está tudo certo: uma vingança de tiopodemos contar como meia vingança de pai; é como setivéssemos uma vingança de pai completa, já executada.”(Calvino, 2005, p. 21)

A busca pela subjetividade

Não é difícil observar na estrutura de O Cavaleiro Inexistente uma crítica àcultura pós-moderna da crise de identidade do sujeito. O quadro explicitadotrabalha com o conceito de recriação literária, onde o modelo de cavaleiro perfeito,aquele dos séculos XIII e XIV, permanece como fundo criativo, mas alterando-sesignificativamente as discussões sob o influxo da realidade exterior e de seu

momento histórico.1O que denominamos aqui como crise de identidade é um tema

demasiadamente complexo e em desenvolvimento para ser posto à prova,permitindo apenas algumas clarificações. Hall (2002) propõe três concepções aoabordar o tema da identidade. Primeiro ele visualiza o sujeito proposto peloIluminismo, baseado numa concepção de pessoa humana como “centro”norteador. A seguir, com a efervescência do mundo moderno, surge o sujeitosociológico, refletindo sua identidade a partir da relação com “outras pessoas

importante para ele, que mediavam pra o sujeito os valores, sentidos e símbolos – acultura – dos mundos que ele/ela habitava” (Mill, 2002, p. 11). Por fim, a partir dadescoberta de interação entre as identidades dos “eus”, surge o sujeito pós-moderno, ou seja, aquele indivíduo que se encontra na possibilidade de assumirvárias identidades simultaneamente, sem um paradigma referencial externo.

“Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando emdiferentes direções [...]. Se sentimos que temos umaidentidade unificada desde o nascimento até a morte [e apenasporque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos

ou uma confortadora narrativa do eu.” (Hall, 2002, p. 13)

A sociedade pós-moderna é uma sociedade de mudança constante eimpulsionada pelo avanço tecnológico, constituindo-se numa forma altamentereflexiva da vida, onde as práticas sociais são constantemente examinadas à luzdas ciências e confrontadas com as demais culturas. Esta realidade não eracomum às sociedades tradicionais, quando o passado e seus símbolos eramvenerados porque perpetuavam a experiência das gerações (Giddens apud Hall,2002).

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É lugar-comum evocar nos tempos hodiernos a noção de individualismo,mas isto não significa dizer que anteriormente os sujeitos eram destituídos destanoção. Segundo (Hall, 2002), o indivíduo pós-moderno libertou-se de seu apoionas tradições e estruturas para transitar na busca pela identidade.

Agilulfo é a perfeição de um discurso ideológico, porém, nega suasaplicações ao ser humano pelo fato de não existir fisicamente. Ele traça uma vidaíntegra a partir de um recorte ideológico e processa seu existir a partir desta teoria,mas só pode agir desta maneira porque é destituído de corporeidade. Acorporeidade sugere uma subjetividade e a experiência de corpo próprio conduz osujeito a experimentar-se como individualidade numa coletividade.

Calvino lança uma reflexão pós-moderna, onde a principal discussão gira

em torno da subjetividade. O que estava em relevo na intencionalidade daspersonagens, de modo geral, não era apenas representar uma instituição, ou seja,não focalizavam suas ações para servir somente a um corpo coletivo. Começavam adescobrir algo mais relevante, a suas próprias existências, somente “era uma épocaem que a vontade e a obstinação de existir, de deixar marcas, de provocar atrito comtudo aquilo que existe, não era inteiramente usada” (Calvino, 2005, p. 35).

Atualmente, reflete-se muito sobre a crise de valores a partir dadescoberta da subjetividade e da quebra de paradigmas pela utilização da

racionalidade. As correntes filosóficas niilistas do século XX, sobretudo, negam aexistência de uma normatividade moral, com valor universal e racional (Leite,2002). A base filosófica da modernidade deve muito a Descartes (1596-1650),apontado como inaugurador da racionalidade baseada no sujeito, exprimido emseu axioma Cogito ego sum.

A tradição cartesiana esclarece que há somente duas maneiras do sermanifestar sua existência: ou existe como coisa ou existe como consciência.Contestando a dicotomia entre corpo e consciência, Merleau-Ponty sugere que "la

experiencia del propio cuerpo nos revela, por el contrario, um modo de existenciamás ambíguo. [...] Su unidad es siempre inplícita y confusa" (Merleau-Ponty, 1984,p. 215).

Outro destaque na filosofia ocidental foi Immanuel Kant (1724-1804), cujatese valorizou o predomínio da razão e alicerça as condições de acesso aoconhecimento. Com sua Crítica da Razão Pura (1781), solidificou-se o núcleo dafilosofia da consciência. Mas o século XX foi palco de refutação desta escolafilosófica, pois

“tem audiência crescente os contestadores da razãouniversalista moderna e de seu portador, o Sujeito. Razão esujeito são acusados de hegemonia e dominação, de situar-seem um quadro teorético sujeito-objeto sempre já derivado, nãooriginário e instrumentalizante, redutor do ser ao ente, incapazde dar espaço ao “diferente” e de pensar a intersubjetividade.”(Luchi, 1999, p. 7)

Na encenação literária de Calvino, entra em foco a interação entre osujeito-instituição e sujeito-sujeito. Para obter qualquer verdade sobre mim, é

necessário que eu considere o outro. “O outro é indispensável à minha existênciatanto quando, aliás, ao conhecimento que tenho de mim mesmo” (Sartre, 1987, p.16-17). Se não vemos ninguém em nosso campo visual, somos levados ainterpretar a realidade somente a partir de nós mesmos, como centro. Este outroque nos vê é nossa referência, pois a construção de nossa subjetividadeestabelece-se a partir do seu olhar. Preciso do olhar do outro para admitir minhaprópria existência e afirmar minha identidade. Agilulfo encena esta imprecisão donão-ser, em busca de uma identidade, tão atual em nossa sociedade.

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“Era uma época em que a vontade e a obstinação de existir, dedeixar marcas, de provocar atrito com tudo aquilo que existe,não era inteiramente usada, dado que muitos não faziam nadacom isso — por miséria ou ignorância ou porque tudo dava

certo para eles do mesmo jeito — e assim uma certaquantidade andava perdida no vazio. Podia até acontecerentão que num ponto essa vontade e consciência de si, tãodiluída, se condensasse, formasse um coágulo, como aimperceptível partícula de água se condensa em flocos denuvem, e esse emaranhado, por acaso ou por instinto,tropeçasse num nome ou numa estirpe, como então haviamuitos disponíveis, numa certa patente da organização militar,num conjunto de tarefas a serem executadas e de regrasestabelecidas; e — sobretudo — numa armadura vazia, poissem ela, com os tempos que corriam, até um homem queexistia corria o risco de desaparecer, imaginem um que nãoexistia...” (Calvino, 2005, p. 35).

Este universo é narrado por irmã Teodora, que do interior de um conventoelabora toda esta história. Ela percebe o contexto pelo lado de fora, flagrando asverdades estabelecidas por uma racionalidade hermética, funcionando parareforçar seu poder. A cavalaria representa uma instituição fechada em si, exaltadaem sua razão metonímica. Dentro dela, não era possível pensar num desejo

individual, pois era necessário adequar-se para obedecer às instituições (Igreja eEstado). Agilulfo age por este impulso, contrastado pelos demais cavaleiros, comono caso de Bradamante, Torrismundo ou Rambaldo, que se permitem sonhar eutilizarem-se de seus corpos em proveito pessoal.

Agilulfo, cavaleiro metódico e burocrático, só existe, só adquire status deherói, por causa de uma virgindade defendida. O código de honra da cavalaria e ainstituição o fizeram existir, deram-lhe vida própria, eram seus progenitores. Tudo

aquilo que Agilulfo pensava “ser” estava ligado à sua ação em defesa de umavirgem: patente, títulos, reconhecimento e nomes que se agregavam depois(Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura,cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez) eram conseqüências de tal episódio,registrado em sua historicidade. Essa personagem inusitada, que existia com aconsciência de não existir, inaugura-se como cavaleiro tomando como proteçãode sua espada a virgindade de Sofrônia, filha do rei da Escócia, quando atacadapor malfeitores. A inexistência desta virgindade faria tudo se esvair em fumaça(Alves, 2003).

Destituído de corpo, Agilulfo encarna sua não-existência pautado nosentido de abnegação de si mesmo e na defesa de seus progenitores. O seu não-corpo denuncia a sociedade de sua época, colonizadora do ser humano e desuas vontades, representada, sobretudo, pela cristandade. O vazio dentro daarmadura pode muito bem representar a era pós-moralista, o fim de uma épocade valorização do sacrifício e de condenação do prazer, a derrocata de umamoral rigorista e o surgimento de uma era polissêmica, que exalta os desejos, o

ego e o bem-estar individual. (Lipovetsky, 2005).“Na era do vazio, estamos menos carregados e mais livres,mais lúcidos e menos dependentes, mais exigentes e menossubmissos, mais flexíveis e menos engessados porengrenagens de poder em nome de verdades que seapresentavam como transcendentais ou universais, emboranão passem de formas locais de controle.” (Lipovetsky,2005, p. X)

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Conclusão

Agilulfo regia-se pela idéia de um mundo ordenado, controlável e estático,representando a razão pura em detrimento do sentimento, das paixões e das

sensações; sua razão, destituída do contrapeso sentimental, o faz agir dentro dasconvenções contidas nos limites de uma hierarquia estabelecida como normativa ereal, excluindo assim qualquer realidade que lhe fosse arbitrária ou diferente,absolutizando sua experiência e não deixando espaço para o entendimento do queé ser humano numa experiência de corpo próprio (Alves, 2003).

Esse cavaleiro se mostra superior aos demais pelo fato de não possuir umcorpo que o exponha ao absurdo do viver, como os baderneiros e glutões de CarlosMagno. De seu lado, a brancura e a polidez, de outro, percebe o ser humano comoum saco de tripas incoerente e fedido (Calvino, 2005, p. 56). Sua armaduraalegoriza a roupa, a grife, o exterior ao qual nossa sociedade se apegou comotranscendência de si e de reconhecimento social (Lipovetsky, 2005).

No prefácio da trilogia Os Nossos Antepassados, Calvino afirma queAgilulfo, o cavaleiro que não existe, tomou os traços psicológicos de um tipohumano muito difuso nos ambientes de nossa sociedade, onde protótipos deAgilulfo se encontram por toda parte (Alves, 2003).

Ao final, o cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez deixa sua armadura,remetendo à morte simbólica de uma era que encarnava a ideologia do uno (um sóDeus, uma só religião, um só rei, um só Pastor), excludente em si mesma eprioritária na formação do corpo social da Idade Média, dando lugar às vozespolissêmicas e autenticas da Idade Moderna aos tempos atuais. Contemplamossua morte como decisão de nascimento do sujeito moderno.

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NOTA1 Ao dizermos “crise de identidade” não estejamos querendo utilizar o termo “crise” no sentido negativo oupositivo. Não estamos autorizados aqui a fazer um juízo de valor. Ao dizermos “crise de identidade” estamos

usando uma terminologia com caráter de estudo. Nosso propósito aqui não é julgar ou acreditar que o estadoatual da cultura é o pior dos mundos.

REFERÊNCIAS

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CALVINO, Ítalo.Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

CARNEIRO, Flávio. Entre o cristal e a chama. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001.

CERVANTES, Miguel de.Don Quijote de la Mancha. Edición del IV Centenario. Madrid: Alfaguara, 2004.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

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HUTCHEON, Linda.Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

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