O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR E A SUA INTEGRAÇÃO SOCIOURBANA parte 7
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4º CAPÍTULO
4 O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR
E AS TENTATIVAS DE RECUPERAÇÃO ATÉ 1990
Eu vim
Eu vim da Bahia cantar
Eu vim da Bahia contar
Tanta coisa bonita que tem
Na Bahia, que é meu lugar
Tem meu chão, tem meu céu, tem meu mar
A Bahia que vive pra dizer
Como é que se faz pra viver
Gilberto Gil, Eu vim da Bahia
4 O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR
E AS TENTATIVAS DE RECUPERAÇÃO ATÉ 1990
PRESERVAÇÃO DE CENTROS HISTÓRICOS
Os centros antigos, pela sua arquitetura, se destacam dos demais
espaços que formam a cidade. Geralmente são constituídos de ruas estreitas,
becos, largos e praças que, na sua maioria, concentram os mais importantes
monumentos da cidade. No século XX os centros antigos assistiram a uma migração
centrífuga de sua população original, em razão das dificuldades de adaptação das
velhas edificações aos modelos contemporâneos de conforto urbano. As famílias se
trasladaram para outras áreas da cidade “permitindo a instalação de serviços,
repartições públicas e a realização de outras atividades nos espaços dos antigos
imóveis”.i A função residencial é mantida, e parte dos edifícios passa a ser ocupada
por uma população de estrato social mais baixo, que comumente realiza trabalho
informal no centro da cidade.
No mais das vezes o funcionamento de serviços e comércio nos
centros antigos é incipiente, com baixo volume de negócios e baixa produtividade. A
carência de vida noturna e pouca atratividade tornam o local ermo, favorecendo a
instalação de prostíbulos e da marginalidade. O sociólogo Gey Espinheira cria uma
imagem “barroca” para caracterizar essa paisagem:
O centro velho de uma cidade é também o lugar de gente sorrateira, de desafortunados, dos que vivem a solidão das ruas desertas, quando fecham as lojas e as instituições. É o lugar da amplidão silenciosa da cidade à noite. É o lugar de tipos característicos que culminam por caracterizar o lugar que frequentam.ii
Por tudo isso, o Centro Histórico se constitui em área de baixo valor
em arrecadação de impostos, ao tempo em que é dependente de atenção especial
da administração local no que concerne a limpeza, policiamento, prestação de
serviços públicos etc., “motivando uma rejeição por parte do restante dos habitantes
da cidade, no que diz respeito à utilização do centro histórico”.iii
Em várias partes do mundo, algumas cidades optaram pela
revitalização de seus centros urbanos antigos adotando um sistema diferenciado de
intervenção e gestão do Centro Histórico. Pode-se citar Grenoble e Le Puy, na
França; Urbino, Brecia, Ferrara e Bolonha, na Itália,iv e Salamanca, na Espanha.v
Para preservar e revitalizar o patrimônio ambiental urbano considera-
se que devem ser tomadas providências que envolvem dois momentos: o primeiro é
relacionado ao planejamento, ao projeto de recuperação ou revitalização de núcleos
de interesse documental ou artístico, somente possível após exaustivos
levantamentos de natureza variada.
O segundo momento é aquele decorrente da implantação do projeto, e
a intervenção administrativa tem como função recuperar signos — tornar possível
que determinadas atividades se implantem naquele lugar. A intervenção tem como
natureza sanear, asseptizar, e provoca considerável impacto social, pois ao se
intervir no imóvel se está intervindo na vida de seu ocupante.
No caso brasileiro, do planejamento de recuperação de um centro
histórico naturalmente decorre um Plano Diretorvi ou Programa,vii que, além de
tratar dos problemas comunitários, como aqueles da infraestrutura, também cuida
das normas de intervenções e uso das construções situadas dentro do perímetro
histórico, inclusive de novas edificações nos terrenos porventura disponíveis.
Para ter eficácia, um programa de revitalização de centros históricos
deve ser desenvolvido a longo prazo e os seus executores — entidades oficiais
como fundações, repartições públicas — necessitam realizar ações conjuntas com o
real objetivo da preservação, restauração e proteção.
A concretização total do programa é condição fundamental para a preservação do conjunto de uma obra arquitetônica, a satisfação de manter o bem cultural e, especialmente, o edifício em uso constante conforme as condições previstas no projeto. Muitas vezes torna-se difícil, pois o grande problema é que os movimentos preservadores sempre se deparam com as edificações em parte já mutiladas, descaracterizadas, arruinadas e, às vezes, até irrecuperáveis quanto à parte documental do imóvel.viii
Frente a esses problemas e desafios, a intervenção em área de
interesse histórico e cultural deve-se valer de uma boa dose de vontade política,
criatividade e inspiração artística para orientar a recuperação dos sítios deteriorados.
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Será objeto de investigação desse capítulo o Centro Histórico de
Salvador, sua caracterização e evolução sociourbana; a degradação física e social,
concomitante ao fenômeno da prostituição; e uma análise dos programas de
reabilitação desenvolvidos nas últimas décadas, isto é, desde as primeiras
intervenções para a sua preservação (1967) até o programa de revitalização atual
(1991-2006).
CARACTERIZAÇÃO DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR
O Centro Histórico de Salvador possui uma área de 76 hectares e está
localizado no sudoeste do município. O seu extremo oeste termina na escarpa, o
paredão natural da chamada “falha de Salvador”, de altura média de 64 metros; ao
leste vai até o vale que forma a Avenida Baixa de Sapateiros e a Ladeira do
Aquidabã. Limita-se no sentido norte-sul seguindo a encosta, começando desde o
Sodré até o Largo de Santo Antônio Além do Carmo. ix Essa área foi declarada
Patrimônio Histórico Nacional em 1984 e inscrito na Lista do Patrimônio Mundial da
Unesco em 1985.
Dentro da poligonal do Centro Histórico encontra-se o bairro do
Pelourinho, situado na zona que concentra o conjunto arquitetônico colonial de
maior significado patrimonial. Este nome — Pelourinho — confunde-se hoje com o
próprio Centro Histórico, sendo a sua marca e imagem.
O vocábulo pelourinho é derivado do francês pilori, possivelmente do
latim medieval pillorium, que corresponde a uma coluna de pedra ou madeira,
situado em praça ou lugar público, junto da qual se expunham e castigavam os
criminosos.x
No urbanismo português, o pelourinho era o símbolo obrigatório do
poder em todas as vilas e cidades. Em Salvador, quando da fundação da cidade, foi
erguido na Praça da Feira (atual Praça Municipal); transferido para o Terreiro de
Jesus, no século XVII, logo foi deslocado para o que é hoje a Praça Castro Alves —
alegando-se que os gritos dos açoitados atrapalhavam as atividades religiosas na
Igreja dos Jesuítas.xi
O alargamento da área no limite urbano das Portas do Carmo permitiu
que para ali fosse levada a feira da cidade, e com ela o pelourinho, em 1807, cuja
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coluna permaneceu neste sítio até 1835, quando foi abolido. Porém este nome já
identificava o largo da feira e seu entorno — o bairro do Pelourinho.
A área denominada Pelourinho tem uma extensão de
aproximadamente 138.420 m², correspondendo a um total de 1.170 imóveis. Seus
limites no sentido norte-sul vão desde a Ladeira do Baluarte até a Rua Monte
Alverne; no sentido leste-oeste vão da escarpa da montanha até a Baixa dos
Sapateiros e Ladeira do Aquidabã.
O Pelourinho foi considerado a principal área de expansão urbana da
cidade no século XVIII, período de grande prosperidade econômica, quando a
economia açucareira e tabagista, aliada à importância portuária, fizeram de Salvador
um centro de negócios do comércio internacional — a “Capital do Atlântico Sul”.xii
A geração considerável de recursos à época permitiu a construção de
suntuosos casarões, ricas igrejas, grandes conventos e edifícios públicos,
principalmente nesse trecho urbano. A área do Pelourinho concentrava o solo
urbano mais valorizado da cidade, resultando “num bloco arquitetônico único em sua
concepção construtiva, somente ao alcance de prósperos comerciantes, senhores
de engenho, autoridades graduadas e dos detentores de altos postos da hierarquia
eclesiástica”,xiii refletindo a abundância de riquezas nos luxuosos palacetes,
sobrados e na vida social da época.
Para melhor compreensão da evolução urbana e características
internas do Pelourinho pode-se dividi-lo em áreas norte e sul, tendo o Largo do
Pelourinho como centro.
A área sul do conjunto arquitetônico está compreendida entre o Largo
do Pelourinho e a Rua Monte Alverne, englobando o antigo bairro do Maciel, Terreiro
de Jesus, Praça Anchieta, Praça da Sé e toda uma trama urbana de ruas, ladeiras e
becos. A área norte do Pelourinho, localizada entre o Largo do Pelourinho e a
Ladeira do Baluarte, envolve os bairros do Passo, Carmo, Boqueirão e Santo
Antônio.
A área sul do conjunto arquitetônico tem uma predominância de
sobrados com dois ou mais pavimentos, e no período de referência — séculos XVIII
e XIX — podiam ser unidomiciliares ou pluridomiciliares. Quando de dois andares, a
família morava no andar superior, e o andar térreo servia de local de trabalho ao seu
proprietário ou era alugado a terceiros. Já na área norte há um considerável número
de casas térreas.
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A redefinição de funções pela qual passa o centro de Salvador nas
primeiras décadas do século XX faz com que as famílias tradicionais da sociedade
baiana comecem a se transferir para outros bairros da cidade, como o Politeama,
Campo Grande, Canela, Graça e, especialmente, o Corredor da Vitória, o “bairro dos
ingleses”. Este, com padrões urbanos e habitacionais modernos, casas rodeadas de
jardins, seguindo a nova tendência do modelo inglês em substituição ao tradicional
modelo urbanístico português.xiv
A área norte do Pelourinho passa então a ser ocupada por uma
população de estratos econômicos médios, que se acomodou nas casas térreas e
de dois pavimentos, “tipos de construções capazes de abrigar uma família de classe
média, sem a necessidade de despender grandes somas para mantê-las em
condições de habitabilidade”.xv Na área sul os pavimentos superiores dos casarões e
sobrados transformaram-se em hospedarias, casas-de-cômodo e outras formas de
moradia coletiva, reunindo os mais diversos tipos de pessoas, pertencentes aos
extratos econômicos mais baixos. Os pavimentos térreos desses imóveis foram
ocupados por um pequeno comércio e artesanato, como prolongamento das
atividades comerciais da Misericórdia, Praça da Sé e Terreiro de Jesus.
As atividades comerciais e artesanais implantadas nos pavimentos
térreos foram bazares, alfaiatarias, joalherias, armarinhos, tipografias, oficinas de
vulcanização, entre outras.
Haverá uma geografia da prostituição?
No bairro do Maciel predominam as construções de mais de dois
pavimentos, o que permite inúmeras moradias coletivas. É nesse bairro que irá se
concentrar a atividade de prostituição da cidade, quando ocorre o deslocamento
em massa de prostitutas para esta zona durante a década de 1930 — o que
caracterizou aquela área como de um grande meretrício.
Com esse nome — bairro do Maciel — se identificava um conjunto de
oito ruas entre o Largo do Pelourinho e as Praças do Terreiro de Jesus e Cruzeiro
de São Francisco. Dá nome ao bairro do Maciel um solar monumental construído na
área, em 1701, pelo comerciante José Sotero Maciel de Sá Barreto. O Solar do
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Maciel, depois chamado de Solar do Ferrão, sede atual do Ipac (Instituto do
Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia).
O bairro do Maciel é (era) formado pelas ruas João de Deus, Gregório
de Matos, Francisco Muniz Barreto, Frei Vicente, Santa Isabel, J. Castro Rabelo e
Leovigildo Carvalho (Figura 19). Este nome (Maciel) desapareceu na última reforma
do Centro Histórico, quando toda a área passou a ser denominada Pelourinho. O
estabelecimento ali do grande meretrício — atividade que depois se espraia para
todo o Pelourinho — vai marcar de maneira profundamente negativa a imagem do
Centro Histórico como um todo: lugar de prostituição, banditismo e tráfico de drogas,
portanto inseguro e que deveria ser evitado.
O estigma de bairro maldito se consolida pelas décadas seguintes,
assim como tentativas de campanhas saneadoras, como o movimento encabeçado
pelo então delegado de Jogos e Costumes de Salvador em transferir o meretrício do
Pelourinho para a zona portuária (Cidade Baixa), no ano de 1959. A luta contra o
meretrício tinha o intuito de “libertar para a Bahia e para os turistas a parte histórica
e artística da cidade que se encontrava transformada em bordel (...) libertar e
resguardar um patrimônio que se encontrava abandonado”.xvi
O propósito saneador era de concentrar o chamado “baixo meretrício”
em uma só zona, o porto, a fim de facilitar o seu controle. Curiosamente, deve ser
lembrado aqui que a concentração da prostituição no bairro do Maciel se deu com
essa mesma justificativa. Porém, à época (final da década de 1920) não havia o
apelo nem o interesse de exploração do patrimônio para a função turística — ou
sequer a consciência da sua importância.
O delegado Mozart Pedrosa, invocando o apoio do secretário de
Segurança do Estado, tranquiliza a opinião pública ao reconhecer que o problema
da prostituição é de ordem econômica e social e, portanto, não deveria ser tratado a
“borracha e cassetete”, isto é, com violência. Dizia já estar decidido que a
transferência do meretrício se daria em etapas sucessivas e a longo prazo, apesar
de que, quando assinalou “em oito meses”,xvii revelou-se que não era em tão longo
prazo assim.
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Figura 19 — Bairro do Maciel — Fonte: Elaboração própria. Base Sicar-Conder, 1992.
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A campanha pela limpeza social do Pelourinho ganha a imprensa, e
inspirados jornalistas lamentam a “degradação moral e física”xviii a que o bairro
chegou. Metaforizam ao comparar “a degenerescência dessas pobres mulheres
doentes, desesperadas, destinadas a um baixo comércio”xix com os “solares nobres,
os palácios majestosos, os sobrados dignos”xx assemelhados a “velhas prostitutas,
passadas de mão em mão, envelhecidas, envilecidas, relegadas ao desprezo e
escárnio públicos, apodrecendo paredes, telhados, soalhos, passeios”.xxi
O jovem jornalista e geógrafo Milton Santos entra nesse debate e
pergunta: “haverá uma geografia da prostituição?”xxii
Milton Santos analisa o fenômeno da prostituição na área central de
Salvador levando em conta questões de ordem socioecológicas, e considera que,
destarte a “operação limpeza” tivesse sido eficaz em remover prostíbulos da Rua da
Ajuda e alguns outros poucos logradouros, afirma que o deslocamento do meretrício
para outra zona só foi possível devido à mudança da “ecologia da rua”, fato que
ocorreria espontaneamente. Entretanto, em outros logradouros, onde as condições
para a substituição populacional não estivessem dadas, as medidas policiais teriam
caráter efêmero.
Nenhuma atividade se localiza impunemente dentro da cidade. A localização depende da combinação de certos fatores, mais ou menos gerais, e de outros, particulares a cada organismo. Por isso, em cada aglomeração, o problema se apresenta diferente, de nada adianta querer transplantar soluções exóticas. A erradicação da prostituição da área em tela somente poderá ser conseguida eficazmente, através de um conjunto de providências, dependendo de vários órgãos da administração. Uma só providência, por mais generosa que seja, não é bastante.xxiii
Para Milton Santos, a solução para o problema de degradação urbana
do centro antigo está na sua recuperação, e acredita que só a substituição das
atividades presentes, que degradam o quadro físico e social, por outras capazes de
o conservar ou melhorar, pode conduzir ao resultado desejado. E vaticina: “Há uma
solidariedade muito profunda entre aspectos materiais da paisagem e seu conteúdo,
incluindo, naturalmente, as ocupações dos que aí vivem. Só a remodelação integral
levará a um resultado durável”.xxiv
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O ambicioso projeto chegou a transferir muitas prostitutas para a
Cidade Baixa. Porém, a guerra contra o bordel foi perdida, pois a crise política que
se instalou resultante de incidentes com proprietárias de bordéis elegantes no centro
da cidade, que dispunham de cobertura política e a simpatia de um órgão de
imprensa local, resultou na demissão do delegado e no abandono do projeto. A rede
de meretrício logo se recompôs na área do Centro Histórico.
A aversão do restante da cidade por esta área degradada se consolida,
particularmente em relação ao bairro do Maciel. Nos anos 1960 o Terreiro de Jesus
se torna terminal de ônibus, e as “lotações” e kombi que servem aos ramais dos
bairros ao norte do Centro Histórico (Liberdade, IAPI, Cidade Nova, Cosme de
Farias) trafegam pelas ruas do Maciel, o que gera protestos nos jornais, com a
“visão de cenas degradantes” às quais os passageiros estavam expostos.
O trânsito por ruas estreitas e esburacadas, que obriga os carros a
transitar lentamente faz dos passageiros expectadores de episódios como o que vai
abaixo narrado por um diligente jornalista baiano:
Na última segunda-feira [...] o repórter presenciou cena que causou revolta e indignação a todos, inclusive e obviamente a duas senhoras e uma mocinha, também passageiras do veículo: uma mundana, em discussão com um marginal, talvez por ver passar a Kombi (pois elas hostilizam sempre que podem a sociedade, que não tem culpa de seu infortúnio), despiu-se quase que totalmente, no meio da rua, além de soltar irrepetíveis palavrões!xxv
Nos anos 1960 o estado de deterioração dos imóveis do centro antigo
era tanto que essa área concentrava a maior incidência de incêndios da cidade,
numa média de quatro incêndios por mês entre os anos de 1965 e 1966.xxvi
Um periódico local narra um surpreendente fenômeno em que a
população aplaudia entusiasmada um incêndio devastador no imóvel n° 18 da Rua
Inácio Acioli, no dia 22 de junho de 1967, e “exprimia o desejo que o fogo se
alastrasse, para outros prédios, numa missão purificadora”.xxvii E continua: “as
justificativas eram as mais diversas possíveis, começando pela falta de higiene
reinante em toda a rua, ponto de reunião de gatunos e maconheiros, prostituição da
mais baixa espécie e os prédios bastante arruinados”.xxviii
152
Essa paisagem físico-social e a imagem do Centro Histórico acima
descrito vão perdurar até o início dos anos 1990. Entretanto, apesar do estigma de
bairro “maldito” e de ter a sua imagem associada à prostituição, de fato o “povo do
Pelourinho” ou a “comunidade do Maciel” — esta, uma construção sociológica — era
composta tanto de prostitutas e marginais quanto de uma população trabalhadora
diversa e heterogênea, como também de tipos pitorescos e característicos de zonas
centrais deterioradas.
Heterogênea como as diversas funções que o Centro Histórico
abrigava, era a população que nele trabalhava e residia. Ao norte, sobre a Colina do
Carmo, residia uma classe média empobrecida, assustada com o avanço da
decadência e insegurança do bairro, perdendo a identidade para com ele, ansiosa
em mudar para locais “melhores” da cidade.
Ao sul encontravam-se “os trabalhadores urbanos (...) o pessoal da
Petrobras, as ‘mulheres da vida’, os investigadores de polícia, havia o que se
chamava na época o pessoal que era falso ao seu corpo”,xxix os ancestrais dos gays
da atualidade e “as mulheres que gostavam das outras, que agarravam as outras”.xxx
Para sobreviver no Centro Histórico degradado, a classe trabalhadora
que coabitava ruas e cortiços com a população marginalizada do Pelourinho,
constituía com os marginalizados locais uma relação semelhante àquela estudada
por Norbert Elias, num bairro industrial inglês, entre os estabelecidos e os
outsiders.
O Centro Histórico estava dividido entre o grupo dos estabelecidos
(membros da “boa” sociedade), que se percebia e era reconhecido como o
establishment local, e o outro grupo, encarado como os outsiders, isto é, a
população que vivia estigmatizada por “todos os atributos associados com a anomia,
como a delinquência, a violência e a desintegração”.xxxi
Os critérios utilizados para a construção da identidade dos
estabelecidos, em contraposição à dos outsiders, iam desde o princípio de
antiguidade (tempo de residência no bairro) até os mecanismos de inclusão social
existentes: emprego, renda, regime de moradia etc. Dessa maneira, tornava-se
“suportável” viver em um bairro tão degradado físico e moralmente.
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Uma outra especificidade do lugar era a sua condição de zona que
concentrava um grande número de organizações civis e religiosas — nove templos
católicos, mosteiros, conventos, centros espíritas, terreiros de candomblé e outras —
que configuravam no Pelourinho um quadro complexo e variado, onde os espaços
de circulação e frequência de gente “bem” ou de gente “suspeita” era delimitado
apenas por uma esquina, uma rua, um beco.
A seguir, será feito um esforço de caracterizar a população da área.
O POVO DO PELOURINHO (1930–1990)
Antropologicamente, as comunidades são vistas como construções
simbólicas, suas divisas, marcos e referências mudam com o tempo, e por isso
podem ser percebidas de diferentes maneiras. As divisas das comunidades são
paisagens visíveis no espaço, como prédios, “ruas, pontos orográficos, os rios, o alto
e o baixo”xxxii e os aglomerados sociais, que também mudam.
Os geógrafos Maria Auxiliadora da Silva e Délio Pinheiro consideram
que, para se entender a evolução sociourbana do Centro Histórico de Salvador
exige-se a construção de uma “geografia urbana retrospectiva”, que não dispensa a
colaboração da história. Para eles, “não se pode entender uma cidade, um bairro
antigo, um lugar, se não se pode compreender seu passado”.xxxiii Argumentam ainda
que, no espaço do Pelourinho, os símbolos e significados do passado se
entrecruzam com os do presente.
A concentração da prostituição na área arruinada do Pelourinho foi
favorecida pela degradação social e o tipo de estrutura arquitetônica do casario colonial,
que propiciava o uso como moradia coletiva. O estigma de bairro maldito e a
guetificação do Maciel — que paradoxalmente concentra o conjunto patrimonial de
maior relevância no Centro Histórico — teve sua origem aí, no estabelecimento forçado
de zona segregada, "ambiente de doenças, misérias e crimes".xxxiv
Nos cortiços, como são chamadas essas moradias coletivas, o
retalhamento arquitetônico em ínfimos cômodos se faz com a utilização de tabiques.
Nesses cubículos não há luz, nem ar e inexiste higiene. A vida nesses cortiços é um verdadeiro inferno e as diversas famílias que ocupam um mesmo andar se vêem obrigadas a se servirem de
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um único banheiro e de uma só latrina. Escadas estragadas, soalhos furados, paredes sujas, tetos com goteiras formam um quadro comum a toda esta zona de degradação.xxxv
A área de entorno do Maciel era também moradia de gente pobre, da
mesma composição social. Cenário de importante romance do escritor Jorge Amado
(1934), o casarão de número 68 da Ladeira do Pelourinho (Rua Alfredo Brito) é
assim por ele descrito, numa ficção que é retrato da realidade:
Visto da rua o prédio não parecia tão grande. Ninguém daria nada por ele. É verdade que se viam as filas de janelas até o quarto andar. Talvez fosse a tinta desbotada que tirasse a impressão de enormidade. Parecia um velho sobrado como os outros, apertado na Ladeira do Pelourinho, colonial, ostentando azulejos raros. Porém era imenso. Quatro andares, um sótão, um cortiço nos fundos, a venda de Fernandes na frente, e atrás do cortiço uma padaria árabe clandestina. Nos 116 quartos, mais de 600 pessoas. Um mundo. Um mundo fétido, sem higiene e sem moral, com ratos, palavrões e gente. Operários, soldados, árabes de fala arrevesada, mascates ladrões, prostitutas, costureiras, carregadores, gente de todas as cores, de todos os lugares, com todos os trajes, enchiam o sobrado.xxxvi
No Largo do Pelourinho, entre os anos 1940 e 1950, os seus 32
imóveis eram ocupados no andar térreo por atividades de comércio e artesanato
como:
[...] oficina de vulcanização, bazares, alfaiates, joalheiros, casas que compram e vendem ferro velho, consertadores de coisas várias, armazéns, armarinhos, restaurantes baratos, sapateiros, padaria, tipografia, fotografia, barbeiros de 3ª classe, açougues, uma pequena fábrica de sabão, etc.xxxvii
Nos pavimentos superiores dos sobrados residia uma população
heterogênea, em condições precárias. Em 1950, aí moravam 708 pessoas, sendo
que 60% das famílias não eram originárias da Cidade do Salvador; muitos não
dispunham de emprego fixo. Entre os ofícios mais frequentes encontravam-se os de:
[...] bicheiro, encanador, lavadeira, cozinheiro, bombeiro, pequeno funcionário, porteiro, engraxate, encerador, viajante comercial, tipógrafo, empregado doméstico, vendedor ambulante, chofer, condutor de ônibus, camelô, etc. [...] são pequenos empregados ou pessoas sem uma ocupação permanente ou bem definida, seu local de trabalho era, de preferência, no centro da cidade.xxxviii
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No bairro do Maciel, afora a grande incidência de prostituição,
encontra-se uma população com atividades ocupacionais semelhantes, como em um
levantamento de campoxxxix realizado no ano de 1969: para uma população
recenseada de 1.960 habitantes, com uma população masculina em idade ativa de
442 indivíduos, as ocupações mais encontradas são as de comerciário (23,0%),
ambulante (15,1%), comerciante (7,4%), biscateiro (5,0%) e mais sublocador,
sapateiro, industriário, marceneiro, mecânico, marítimo, pintor, engraxate, pedreiro,
motorista, militar, funcionário público, profissional liberal, aposentado, cabeleireiro,
alfaiate, cozinheiro e servente.
A população feminina em idade ativa era predominantemente
majoritária: 781 mulheres. É de surpreender o percentual de prostitutas, 57,6% do
total de mulheres em idade ativa (que somam 36,6% da população global da área
em idade ativa). Outras ocupações encontradas são: atividades domésticas (19,0%)
lavadeira, comerciante, sublocadora, ambulante, costureira, comerciária, biscateira,
funcionária pública e cabeleireira.
Pelo exposto, o Maciel era então um bairro onde predominava a
moradia coletiva de grupos populacionais cujo comportamento é “socialmente
patológico”,xl assim considerado por ser o comportamento de uma comunidade
anômala onde se localiza a prostituição, e essa comunidade constitui uma
verdadeira subcultura, formada, notadamente, por uma população que se dedica,
em sua maioria, a atividades socialmente marginalizadas.
A alta incidência de contravenções e criminalidade, ao lado dos mais
diversos tipos de transgressão, caracteriza esta área, que diante do regime
sistemático de insegurança causado pela “repressão ampla e indiscriminada por
parte dos órgãos policiais, provoca a desagregação social, incentivando as ações
divergentes das normas estabelecidas”,xli criando assim um ininterrupto círculo
vicioso.
Os anos 1980 não irão encontrar mudanças significativas no tecido
social da área, a não ser pelo agravamento das condições de violência e
insegurança, que deixam de ser exclusividade da zona segregada, transbordando
para toda a cidade.
Uma característica peculiar à população que então morava no
Pelourinho/Maciel era a de "extrema rotatividade",xlii cujos habitantes chegavam a
residir apenas um dia ou uma semana em cada local, com o aluguel dos cômodos
sendo cobrado adiantadamente. Ao lado de moradores com 15 ou mais anos de vida
no bairro, havia uma população flutuante de banidos do interior do Estado e
marginalizados urbanos,xliii como travestis e transgressores, que tratavam de agravar
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as condições sociais, face os inevitáveis conflitos que provocavam, comprometendo
a segurança de moradores e turistas.
[...] é uma população que vive em função do centro da cidade [...] de vender nas filas de ônibus, de cuidar dos carros, é gente que faz faxina de escritórios e lojas, são prostitutas. O centro é também uma área de submundo, de venda de "fumo", de recepção de roubo, de violência policial. É tudo misturado, tem família vivendo com prostituta, tem tudo. Há guardadeiras de crianças (...) essa população é considerada, por grande parte da classe média e das autoridades, como uma população out law, marginal: o maconheiro, a prostituta, o foragido. É, na verdade, uma população que vive na clandestinidade, que não pode aparecer.xliv
No levantamento realizado pelo Ipac (Instituto do Patrimônio Artístico e
Cultura da Bahia) em 1983,xlv o Maciel contava com uma população de 1.848
pessoas distribuídas por 223 imóveis — sendo 51 ruínas e 11 terrenos baldios.
Era uma população de inquilinos (78%) ou que residia em imóveis
cedidos (pelo Ipac) ou invadidos de particulares e ordens religiosas. Amontoavam-se
em cômodos sublocados, apresentando uma densidade de 3,3 pessoas por cômodo
e 17 pessoas por imóvel. Viviam em prédios arruinados e em condições sanitárias
precárias: 70% dos imóveis ofereciam instalações sanitárias de uso coletivo.
População predominantemente jovem (66% tinham até 28 anos de
idade), vindas do interior do Estado (61%) à procura de trabalho. Cerca de dois
terços da população economicamente ativa não possuíam vínculo empregatício,
sendo subempregados e desempregados, exercendo atividades ligadas ao "círculo
inferior" da economia: vendedores ambulantes, biscateiros, lavadeiras, costureiras,
pequenos comerciantes, prostitutas, vigilantes, serventes, artesãos etc. (Tabela 14)
percebendo rendimentos mensais inferiores a um salário mínimo (36%), até três
salários mínimos (29%) ou sem rendimento algum (27%).xlvi
No “Censo do Maciel” (1983) é identificado o declínio da atividade de
prostituição: enquanto em 1980 somava 13% o total da população trabalhadora
feminina que praticava a prostituição, em 1983 esse número caía para apenas
6,3%xlvii e continua declinando, a ponto de, em 1992, ser considerada apenas como
atividade residual dentro do Maciel.xlviii
Entretanto, o declínio da prostituição no Maciel não corresponde à sua
diminuição na área, pois nas ruas contíguas (28 de Setembro e São Francisco) se
conservou intensa a atividade de prostituição.
157
Tabela 14 — Quadro comparativo segundo a distribuição ocupacional no MacielOCUPAÇÃO 1980 1983
% %Vendedor ambulante 16,9 10,1
Prostituta 13,0 3,2Comerciante 7,0 2,7
Lavadeira 6,0 2,0Dona-de-casa 3,6 7,0
Costureira 2,8Vigilante 1,8Servente 1,9Biscateiro 1,6Artesão 1,4Artífice 1,2Fonte: Levantamento de campo — IPAC — 1980-1983. In: BOMFIM, J. D., 1994, p. 87.
Parece que os levantamentos realizados pelo Ipac não registraram o
fenômeno — então já bastante significativo — do travestismo (Tabela 15). Pois
embora os travestis não exercessem preferencialmente a prostituição no local de
moradia,xlix ali viviam e contribuíam para forjar a imagem do bairro.
Tabela 15 — Distribuição ocupacional por sexo no Maciel (1983)SEXO FEMININO % SEXO MASCULINO %
Dona-de-casa 13,8 Vendedor ambulante 11,7
Vendedor ambulante 8,7 Aposentado 3,7
Prostituta 6,3 Comerciante 2,3
Lavadeira 3,9 Artífice 2,2
Comerciante 3,0 Biscateiro 1,6
Aposentada 2,9 Servente 1,5
Empregada doméstica 2,0 Militar 1,5
Mecânico 1,4
Artesão 1,4
Fonte: Levantamento de campo — IPAC — 1983. In: BOMFIM, J. D., 1994, p. 88.
158
Uma limitação desse levantamento sociodemográfico foi a
impossibilidade de apreender o submundo da economia marginal e das atividades
ilícitas, pois embora fosse, à época, “covil” de bandidos e traficantes — além de
abrigar uma população ordeira e trabalhadora — na pesquisa de campo realizada
apenas um entrevistado se declarou "ladrão", e outra, "cafetina".l
Uma categoria sociológica que pode ser usada para caracterizar a
população marginalizada do Maciel é a de lumpemproletariado, termo utilizado por
Karl Marx em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte (1852) para designar a camada
social constituída por subempregados que vivem na miséria extrema e por
indivíduos direta ou indiretamente desvinculados da produção social que se dedicam
a atividades marginais como prostituição, rufianismo, mendicância, roubo e tráfico de
drogas.
Marx refere-se ao lumpemproletariado como o “lixo de todas as
classes", uma massa desintegrada que reunia “indivíduos arruinados e aventureiros
egressos da burguesia, vagabundos, soldados desmobilizados, malfeitores recém-
saídos da cadeia [...] batedores de carteira, rufiões, mendigos”li etc., nos quais Luís
Bonaparte apoiou-se em sua luta pelo poder. Esses indivíduos seriam incapazes de
qualquer ação consequente contra a sociedade capitalista.lii
Mais generoso na caracterização dessa população, Edmilson Carvalho
a classifica como “exército industrial de reserva” da Região Metropolitana de
Salvador:
O desenvolvimento urbano industrial de Salvador criou, na sua Região Metropolitana, um exército industrial de reserva, do qual uma pequena parcela foi alojar-se, ao cabo de décadas, no Centro Histórico. São biscateiros, prostitutas, semiempregados, etc. Esta população habita os casarões que constituem o acervo arquitetônico do Centro.liii
A população do Parque Histórico do Pelourinho
No ano de 1987 foi realizado um levantamento sociodemográfico de
caráter censitário em uma área do Centro Histórico abrangendo 42 quarteirões e 954
imóveis de uso residencial ou misto, dentro de uma poligonal com 31 hectares de
superfície, delimitado ao sul pelo encontro da plataforma onde está implantado o
Palácio Tomé de Sousa e a balaustrada da Praça Municipal; a leste, pela Baixa dos
Sapateiros (Rua J.J. Seabra, lado par); ao norte, pela Ladeira do Boqueirão (lado
159
ímpar); e a oeste pela encosta que divide a Cidade Alta da Cidade Baixa. Essa
poligonal foi declarada Parque Histórico do Pelourinho por decreto municipal,
numa das intervenções realizadas na década de 1980 — das quais será comentado
mais adiante.
Essa pesquisa de campo (1987) foi coordenada pelo autor deste livro e
encontrou inúmeras limitações e dificuldades: insegurança da área para os
pesquisadores, o que lhes dificultava o acesso aos imóveis em determinados
horários; omissão de informações por parte dos moradores clandestinos; dificuldade
de detectar o que seria um lar (porões, sótãos e escadas serviam de residência);
alta rotatividade de local de moradia e outras situações similares foram obstáculos
para o levantamento de dados.
Essa investigação buscou fazer um diagnóstico desse importante
trecho do Centro Histórico, que pode ser considerado a porção da área tombada
onde se concentra o maior acervo de conjuntos e monumentos arquitetônicos
isolados e espaços públicos da antiga capital do Brasil Colônia.
Foram recenseados 4.748 residentes na área designada por Parque
Histórico do Pelourinho. Essa era uma população surpreendentemente jovem (57%
dos moradores tinham até 28 anos de idade), com baixa escolaridade (apenas 19%
da população adulta cursaram o ensino médio; e 2% tinham curso superior
completo).
Exerciam como atividade principal os ofícios de vendedor ambulante,
biscateiro, comerciante, balconista, prostituta, vigia, servente, porteiro, empregada
doméstica, trabalhador do setor público, lavadeira, industriário, prestador de serviços
e aposentado (Tabela 16). Esses trabalhadores percebiam em sua maioria até um
salário mínimo (40% da População Economicamente Ativa) ou dois salários mínimos
(20% da PEA). Realizavam suas atividades preferencialmente no próprio bairro ou
no centro da cidade.
160
Tabela 16 — Distribuição ocupacional no Parque Histórico do PelourinhoOCUPAÇÃO NÚMERO %
Vendedores ambulantes 241 5%Porteiros, vigias e serventes 111 2%Biscateiros 110 2%Balconistas 104 2%Prostitutas 99 2%Empregadas domésticas 84 2%Trabalhadores do setor público 69 2%Lavadeiras 34 1%Cozinheiros 26 1%Outras ocupações 1.378 28%Estudantes 894 19%Prendas domésticas 443 9%Sem idade escolar 436 9%Sem ocupação, inválidos e incapacitados 409 9%Aposentados 310 7%TOTAL 4.748 100%Fonte: Levantamento de campo — Persh — 1987. In: BOMFIM, J. D., 1994, p. 93.
Uma população de inquilinos: 70% dos moradores viviam em imóveis
alugados ou subalugados; 8% em imóveis cedidos ou invadidos. Apenas 11% dos
residentes declararam ser proprietários do imóvel onde moravam. Cerca de 51% dos
moradores informaram residir no mesmo imóvel por 4 anos ou mais, sendo, destes,
13% de residentes há mais de 20 anos na área do Parque Histórico do Pelourinho.liv
Foram contados à época 836 estabelecimentos comerciais e de
serviços em funcionamento no Parque Histórico do Pelourinho. Destes, 129 eram
bares, lanchonetes e restaurantes (15%); 45 instituições de caráter sindical,
carnavalesca ou religiosa (5%); 40 sapatarias (5%); 33 lojas de artesanato (4%); 32
escritórios (4%) etc., que empregavam um montante de trabalhadores em número
superior ao de residentes.
Essa é a realidade social encontrada pelos agentes públicos no Centro
Histórico de Salvador quando das primeiras intervenções na área (de 1967),
seguidas de outras intermitentes ações ao longo das últimas cinco décadas.
PROGRAMAS DE PRESERVAÇÃO DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR
Em Salvador, o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional)lv foi o primeiro órgão a adotar medidas de proteção, e “realizar obras em
161
monumentos religiosos de excepcional valor cultural”,lvi em 1959. Ao promover o
tombamento de significativas edificações protegia-se também a sua área de entorno
e vizinhança, e a concentração desses edifícios no Centro Histórico serviu para
preservá-lo.
Todavia, a história das ações governamentais para a preservação e
recuperação do Pelourinho — outra designação para o Centro Histórico de Salvador
— está intimamente associada à trajetória de um órgão público estadual: o Ipac
(Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia). Saíram das pranchetas desta
instituição os principais estudos, levantamentos sociodemográficos, projetos e
programas com a finalidade da reabilitação do patrimônio histórico do Centro de
Salvador (Tabela 17).
Tabela 17 — Políticas públicas para o Centro Histórico de Salvador
ANO AÇÃO INSTITUIÇÃO
1937 Criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; tombamento de monumentos
Sphan
1959 Medidas de proteção e obras de conservação Sphan 1967 Criação da FPACBa (Ipac). Promoção da conservação
do patrimônio artístico e cultural da BahiaGoverno da
Bahia1971 1ª etapa do Plano de Recuperação do Pelourinho Ipac-Seplan/PR1972 Plano de Desenvolvimento da Comunidade do Maciel Ipac, PMS,
Ufba1976-1979 Restauração de imóveis e instalação de serviços
públicos e privadosIpac
1977-1979 Plano Diretor do Pelourinho (Plandip) Conder, Ipac1978 Proposta de Valorização do Centro Histórico de Salvador Conder
1981-1985 Projeto Centro Administrativo Municipal Integrado (Cami) Oceplan/PMS
1981-1982 Projeto de Recuperação Habitacional do Centro Histórico (Pelourinho)
Ipac,Urbis/Cohab,
BNH1983 Criação do Escritório Técnico de Licenças e Fiscalização Ipac, PMS,
Sphan/FNPM1986 Criação da Fundação Gregório de Matos (FGM)
Criação do Programa Especial de Recuperação dos Sítios Históricos de Salvador
PMS
1986 Seminário do Programa Nacional de Recuperação e Revitalização de Núcleos Históricos.
MinC, MDU
1987 Criação do Parque Histórico do Pelourinho FGM-PMS1991-2006 Programa de Recuperação do Centro Histórico Ipac-Conder
Fonte: Elaboração própria, 2006.
Em abril de 1967, Michel Parent — inspetor principal do Ministério da
Cultura da França — veio ao Brasil como consultor da Unesco a pedido da Dphan
162
(Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), e elaborou um projeto de
turismo cultural para o Brasil, com diretrizes de intervenção para preservação
patrimonial.
No capítulo do seu relatório dedicado a Salvador, cidade que lhe
despertou especial atenção, Monsieur Parent a classifica como “a primeira cidade de
arte do Brasil”,lvii tanto por ter sido a primeira capital da Colônia, como também pelo
monumental patrimônio construído durante a sua Idade de Ouro.
No fim do século XVIII, ao tempo em que começa o seu declínio, Salvador é uma cidade de arte comparável a Toledo: cem igrejas se elevam em suas praças, em suas ruas, em suas ruelas que serpenteiam ao longo de um relevo acidentado que oferece ao visitante uma contínua renovação de planos, de vistas, de caminhos.lviii
No documento, Parent alerta para o que considera “a destruição em
marcha do mais precioso conjunto arquitetônico brasileiro”,lix tanto por uma lenta e
inexorável decadência quanto pela descaracterização do Centro Histórico com
“horrendas” construções modernas, isto é, arquitetura moderna de qualidade
suspeita.
Hoje, dos pontos mais altos da velha cidade, ainda se domina o ondeamento contínuo dos telhados antigos de telhas romanas, sobre os quais aparecem as torres e as frontarias das igrejas. Mas uma trintena de blocos medonhos de concreto — é em uma outra parte que se devem procurar as obras marcantes da moderna escola arquitetônica — já desfigura esse imenso conjunto. A destruição sistemática da velha Salvador já começou. Aonde irá ela agora?lx
O consultor da Unesco não se limitou à denúncia do fenômeno de
destruição patrimonial, pois também relacionou uma série de medidas a serem
tomadas, entre elas o estabelecimento de uma ampla zona de proteção
administrativa de toda a antiga Cidade Alta. Parent propunha também a implantação
de infraestrutura urbana no Centro Histórico, aquisição de imóveis e restauração das
unidades adquiridas, eliminação do tráfego e principalmente a criação de uma
instituição governamental para coordenar todas essas ações. O “Relatório
Preliminar” de Michel Parent passa a ser considerado o "responsável direto pela
criação"lxi da FPACBa (Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia).
163
Consultores da Organização dos Estados Americanos (OEA), como
Graene Shankland (em 1968) também sugerem a eliminação do tráfego no
Pelourinho; plano para as encostas do Centro Histórico; recomenda a preservação
maior possível dos habitantes e que se evitasse uma ação repressiva direta da
polícia contra a prostituição.lxii Relatório do arquiteto Flores Marini (1970)
recomendava que se evitasse o fachadismo e a cenografia e que se procurasse
motivar os proprietários para a recuperação dos seus imóveis, uma vez que era
impossível para a Fundação do Patrimônio arcar com o ônus total do investimento.
A Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia — atual IPAC
—lxiii foi criada pela Lei estadual nº 2.464, de 13 de setembro de 1967, tendo por
finalidade "promover a conservação do patrimônio artístico e cultural do Estado, bem
como realizar o planejamento e a pesquisa para o desenvolvimento das áreas sob
sua atuação”.lxiv Seu objetivo é a revitalização do tecido urbano, envolvendo a
restauração de edifícios e a promoção social da população local, pois "só assim
acentuam-se os valores culturais e reforça-se a paisagem humana que compõe esta
ambiência, reintegrando-a na cidade"lxv. Declara ter como meta principal o binômio
patrimônio/homem.
As principais preocupações em relação à intervenção no Centro
Histórico nesse período se concentraram em: conservação da população em zona
sob intervenção restaurativa e preservativa; aquisição de imóveis para fins sociais
(serviços públicos); execução de quarteirões integrados de habitação popular;
dotação de redes de infraestrutura (abastecimento de água, sistema de drenagem
de águas pluviais, esgotamento sanitário, rede elétrica e telefônica) e a criação de
incentivos fiscais favorecendo os investidores na área de preservação de bens
culturais, devendo tudo isso ser feito conforme a orientação dos órgãos
internacionais.lxvi
Tais propostas passarão a ser ponto recorrente de conflito na definição de
programas de recuperação e revitalização posteriores. O Ipac, a princípio, opunha-se à
ideia de transformar o Centro Histórico num cartão-postal, propondo-se a revitalizar o
tecido urbano, envolvendo a restauração de edifícios e a promoção social das
populações locais. Podem-se identificar três linhas básicas de atuação do Ipac: 1.
programa assistencial, médico, pedagógico e habitacional; 2. restauração volumétrica e
de fachada; 3. compra de imóveis para fins restaurativos e novas funções.lxvii
164
As primeiras intervenções realizadas se concentraram na Rua Alfredo
Brito, Largo do Pelourinho e Ladeira do Carmo — roteiro turístico — que tiveram
suas fachadas e alguns imóveis recuperados. Os recursos aplicados procediam do
governo do Estado e os obtidos junto ao Programa de Cidades Históricas do
Nordeste da Seplan/PR (Secretaria de Planejamento da Presidência da República),
que foi o primeiro grande investimento de forma maciça do governo federal em
restauração de monumentos. A Bahia, por já dispor de um órgão estruturado para
captar recursos, obteve vários financiamentos.lxviii
As restaurações ocorreram, basicamente, através da compra de
imóveis e conversão em equipamentos do tipo administrativo ou assistencial do
próprio Ipac; na instalação de um complexo de serviços voltados para o turismo
(restaurante, cine-teatro, anfiteatro, sala de exposições); agência bancária e mais
outras instituições.
Muitos dos antigos sobrados foram convertidos em função do tipo
público institucional ou serviços. A transformação da função ou uso das casas
provocou, ainda que indiretamente, uma série de expulsões. A população fixa se
deslocou para outros bairros contíguos, como Maciel e Tabuão, e, na maioria dos
casos, instalou-se em piores condições de habitação.
Estas consequências sobre a população local levaram o Ipac a
conceber um Plano de Desenvolvimento da Comunidade do Maciel (década de
1970). Este plano previa, além da participação do governo do Estado, de instituições
religiosas e civis, clubes de serviços, Prefeitura Municipal e a Universidade Federal
da Bahia. Pretendia-se que do trabalho integrado dessas instituições resultasse um
novo quadro social e produtivo na área, com a implantação de serviços médicos,
assistenciais e educacionais para estimular a formação de uma comunidade de
economia artesanal.lxix
165
Binômio patrimônio-homem
No quadriênio correspondente a 1976-1979 vários imóveis foram
restaurados e tiveram as suas funções de ocupação residencial alteradas.
Instalaram-se órgãos do Ipac, posto de saúde, posto policial, escolas, creche etc.,
criando-se o problema de compressão habitacional na área, pois com a conversão
funcional dos imóveis foram diminuídas as ofertas de moradia e intensificou-se o
arruinamento de muitas casas por abandono dos seus proprietários, na expectativa
de ter como comprador certo o governo da Bahia. Tais fatos provocaram a redução
acentuada do contingente demográfico local e o adensamento populacional nas
áreas de entorno.
Tendo o Ipac deslocado a população que habitava o Solar do Ferrão e
outros imóveis de sua propriedade para fazer obras, adaptou alguns imóveis seus
para utilização por essas pessoas: habitação pluridomiciliar com um sanitário por
andar e cozinha coletiva. Em alguns casos a política era de ceder gratuitamente a
locação, em outros o aluguel era reduzido. “Nos imóveis dados gratuitamente, a
população carente vendeu tudo que era possível vender. Desmontaram portas,
ferragens, louças sanitárias”.lxx Nos imóveis onde eram cobrados pequenos aluguéis,
o Ipac atuava como senhorio, administrando e conservando os imóveis em função
da pequena renda produzida.
Todas as recomendações internacionais sobre o problema de
habitantes em Centros Históricos insistem em que as populações que vivem nesses
conjuntos não devem ser expulsas ou pressionadas a deixá-los em consequência da
recuperação. O Ipac seguiu à risca essa diretriz, levando a cabo o seu trabalho de
promoção social na área do Pelourinho/Maciel, e tamanha era a escala de prioridade
que dava aos trabalhos nesse local que destinava mais de 70% do orçamento do
órgão, proveniente do Tesouro estadual, à cobertura de gastos com pessoal,
material de consumo e permanente das escolas, creches, postos de saúde etc.,
recursos esses que eram desviados, obviamente, de uma destinação mais inerente
às suas finalidades: o restauro.lxxi Com isso, o Ipac passou a ser classificado nos
meios intelectuais e acadêmicos de Salvador — depreciativamente, no mais das
vezes — de assistencialista e paternalista.
166
As restaurações pontuais realizadas nas décadas de 1970 e 1980 não
produziram os efeitos modificadores desejados para o Centro Histórico, que
continuou a apresentar a condição de degradação crônica. A incapacidade de
recuperar economicamente a população local e fixá-la foi, talvez, em todos esses
anos de ação institucional, a maior barreira para a obtenção de bons resultados. "O
programa assistencial, embora tenha amenizado as situações mais dramáticas, não
conseguiu, e não pode conseguir, resolver o problema estrutural". lxxii Os moradores
do Maciel tornaram-se "clientes"lxxiii dos programas sociais do Ipac. Na primeira
metade dos anos 1980, o autor deste livro assistia um então diretor do Ipac
"despachar" semanalmente com a população, e as demandas a serem atendidas
eram desde conserto de goteiras em telhados (problema muito frequente) até brigas
entre vizinhos ou problemas com a polícia de tóxicos. O quadro social continuava a
ser de forte presença de baixa-prostituição, acompanhada de vários outros
problemas sociais como a delinquência, representada pela criminalidade, vadiagem,
exploração de atividades ilícitas (tráfico de drogas, proxenetismo), isto é,
transgressões de toda ordem às normas da sociedade abrangente, definidas como
marginalidade.
Não se conseguiu estabelecer uma segurança mínima no Pelourinho,
que permitisse ser ele utilizado por toda a população de Salvador. A ação
implementada no Centro Histórico se dirigiu para o atendimento ao turismo — com o
complicador da violência afugentando os turistas — e para a comunidade microlocal,
através de ações assistencialistas.
A segunda linha de atuação do Ipac foi a de “restaurações
volumétricas”, que eram restaurações de fachadas e telhados; a terceira linha
baseava-se em comprar imóveis e restaurá-los, dando-lhes novas funções,
geralmente serviços públicos. Essa política, como já foi dito, desalojava a população
que ali vivia e transformava, cada vez mais, o bairro em setor de serviços.
Os benefícios da intervenção até então realizada foram captados por
órgãos e serviços públicos que ali se instalaram, por algumas empresas locais, pelos
turistas e atividades para estes voltadas, e, sobretudo, os proprietários de imóveis
da área que tiveram ganhos com a sua valorização — seja sob a forma de locação
ou espera de valorização para venda ao Ipac.
O Plano Diretor do Pelourinho e outros projetos
167
Entre 1977 e 1979 foi desenvolvido o Plano Diretor do Pelourinho
(Plandip) pelo Ipac, com a finalidade de recuperar a área sob sua jurisdição -—
incluindo-se a infraestrutura, os edifícios e a população residente — contando com o
apoio institucional da então instância de planejamento metropolitano (Conder —
Companhia de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Salvador) e do órgão
municipal de planejamento (Oceplan — Órgão Central de Planejamento).
i MIRANDA, Luciete Barreto; SANTOS, Maria Aparecida S.C. dos. Pelourinho. Desenvolvimento socioeconômico. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo, 2002, p. 38.ii ESPINHEIRA, Carlos Gey D’Andrea. A cidade invisível e a cidade dissimulada. Quem faz Salvador. COSTA LIMA, Paulo et al. (Coord.). Salvador: UFBA, 2002, p. 31.iii MIRANDA, L. B.; SANTOS, M. A. S. C., 2002, p. 38.iv Idem, ibidem, p. 38.v O professor Eugenio García Zarza descreve criticamente o Plan Especial para la Protección y Reforma Interior del Recinto Universitário y Zona Histórico-Artística de Salamanca in ZARZA, Eugenio García. El Barrio Antiguo o Universitario. Evolución histórica y problemas urbanos actuales. Salamanca: AESCON, 1992.vi O Plano Diretor é considerado o instrumento básico da política de desenvolvimento do município, e exigência constitucional para municípios com mais de 20.000 habitantes. Sua principal finalidade é orientar a atuação do poder público e da iniciativa privada na construção dos espaços urbano e rural na oferta dos serviços públicos essenciais. In: PLANO Diretor de Viçosa. Disponível em http://www.ufv.br/pdv/que.html Acesso em 16 set. 2006.vii Em áreas de caráter monumental, a maioria das leis que incidem estão relacionadas à preservação, e os órgãos atuantes são as instituições do patrimônio histórico e cultural, que desenvolvem programas de revitalização.viii MIRANDA, L. B.; SANTOS, M. A. S. C., 2002, p. 29.ix Todavia, Tânia Regina Torreão avalia que “os planejadores da modernidade, dos quais não se excluem inclusive os geógrafos [...] não conseguiram, até agora, fechar os limites do Centro Histórico ‘dentro de uma caixinha’. Esse espaço e sua dinâmica sempre extrapolam as tentativas de delimitação”. Centro histórico de Salvador-Bahia: a “mística” do lugar e a (des)concentração de sua espacialidade.In: PINHEIRO, Délio; SILVA, Maria Auxiliador (org.). Visões imaginárias da cidade da Bahia. Um diálogo entre a geografia e a literatura. Salvador: EDUFBA, 2004, p. 153. x DICIONÁRIO Aurélio. Século XXI. Versão Eletrônica. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2003. 1 CD-ROM.xi MIRANDA, L. B.; SANTOS, M. A. S. C., 2002 , p. 43; O historiador Cid Teixeira não confirma essa função do pelourinho na capital da Bahia. Ele afirma que em Salvador o pelourinho sempre foi uma representação de poder simbólico, e não algo funcionalmente usado para castigo de escravos e criminosos. TEIXEIRA, Cid. Salvador. História visual. Livro 3. Salvador: Correio da Bahia, 2001, p. 20.xii No dizer do historiador baiano Cid Teixeira. In: ESPINHEIRA, G.. A. A., 2002, p. 26.xiii MIRANDA, L. B.; SANTOS, M. A. S. C., 2002, p. 13.xiv Idem, ibidem, 2002, p. 13.xv ESPINHEIRA, C. G. A., 1971, p. 10.xvi BAHIA. Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural. Levantamento Sócio-Econômico do Pelourinho, 1997, p. 22.xvii Idem, ibidem, p. 22.xviii Ibidem, p. 22.xix Ibidem, p. 23.xx Ibidem, p. 23.xxi Ibidem, p. 23.xxii Ibidem, p. 24.xxiii Transcrição de artigo de jornal de Milton Santos. In: BAHIA. Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural. Levantamento Sócio-Econômico do Pelourinho, 1997, p. 25.xxiv Ibidem, p. 25.xxv Idem, ibidem, p. 27.xxvi Ibidem, p. 28.xxvii Ibidem, p. 28.
168
Constituía-se objetivo geral do Plandip a necessidade de ordenação
mais harmônica da estrutura urbana do Pelourinho visando a sugerir medidas para
orientar a intervenção do Poder Público na restauração do patrimônio cultural e na
revitalização do centro tradicional.
O Centro Histórico passa a ser reconhecido enquanto parte integrante
de um todo maior e, portanto, de interesse metropolitano, uma vez que em seu
espaço localizavam-se importantes elementos de centralidade de toda a região
xxviii Ibidem, p. 29.xxix ARAÚJO, Ubiratan Castro. Repassando pelo Centro da Bahia (ou Memórias em Trânsito). In: Pelo Pelô. História, cultura e cidade. GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia/ Faculdade de Arquitetura/Mestrado em Arquitetura e Urbanismo, 1995, p. 74.xxx Idem, ibidem, p. 74.xxxi ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os Outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 7.xxxii SANSONE, Lívio, O Pelourinho dos Jovens Negro-mestiços de Classe Baixa da Grande Salvador. In: Pelo Pelô. História, cultura e cidade. GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia/ Faculdade de Arquitetura/Mestrado em Arquitetura e Urbanismo, 1995, p. 59..xxxiii PINHEIRO, Délio; SILVA, Maria Auxiliadora apud Os Pastores da Noite – um diálogo entre a geografia, a literatura e o cinema na obra de Jorge Amado. In: PINHEIRO, Délio; SILVA, Maria Auxiliador (org.). Visões imaginárias da cidade da Bahia. Um diálogo entre a geografia e a literatura. Salvador: Edufba, 2004, p. 73.xxxiv ESPINHEIRA, C. G. A., 1971, p. 10xxxv SANTOS, M., 1959, p. 166.xxxvi AMADO, Jorge. Suor. 49 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 10.xxxvii SANTOS, M. 1959, p. 166.xxxviii Idem, ibidem, p. 167.xxxix ESPINHEIRA, C. G. A., 1971, p. 24-26.xl Idem, ibidem, p. 05.xli Ibidem, p. 43.xlii AZEVEDO, P. O., 1984, p. 249.xliii BOMFIM, Juarez Duarte. Migración y desempleo en Salvador de Bahía. Reflejos en el tejido social urbano del Centro Histórico de la ciudad. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona Nº 94 (86), 1 de agosto de 2001. Disponível em http://www.ub.es/geocrit/sn-94-86.htm. Acesso em 29 set 2006.xliv Idem, ibidem, p. 249-250; de lumpenato a exército industrial de reserva:O desenvolvimento urbano industrial de Salvador criou, na sua Região Metropolitana, um exército industrial de reserva, do qual uma pequena parcela foi alojar-se, ao cabo de décadas, no centro histórico. São biscateiros, prostitutas, semi-empregados, etc. Esta população habita os casarões que constituem o acervo arquitetônico do Centro... In CARVALHO, Edmilson. A questão da população no centro histórico de Salvador. In: RUA - Revista de Arquitetura e Urbanismo. Salvador: Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da Faufba, nº 0 ano 1 jun 1988, p. 72).xlv BAHIA. Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural. Censo do Maciel. Relatório. 1983, mimeo.xlvi Idem, ibidem, p. 11-12.xlvii Ibidem, p. 12.xlviii BOMFIM, J. D., 1994; Pode-se considerar que esses dados estatísticos e percepções são bastante limitados, pois o “grosso” do baixo meretrício se deslocou para ruas contíguas, que distavam alguns poucos metros, como as ruas 28 de Setembro e São Francisco.xlix Os locais preferenciais de prostituição dos travestis são as ruas centrais mais ao sul, a Orla Marítima e boates gays.l O autor deste livro, à época estudante de Ciências Sociais, trabalhou como estagiário nesse “Censo do Maciel”.li BOTTOMORE, Tom. Dicionário de Pensamento Marxista, Rio: Jorge Zahar Editor, 1988, p.223.lii SANDRONI, Paulo. Dicionário de Economia, São Paulo: Editora Best Seller, 1989, p. 180.liii CARVALHO, E. A., 1988, p. 72.
169
metropolitana, e os seus monumentos históricos e o padrão urbanístico colonial
despertavam grande interesse turístico.
O Plandip tinha a pretensão de "criar um modelo normativo de
intervenção na área, tanto nos seus aspectos físico-arquitetônicos, quanto nos
socioeconômicos".lxxiv Trazia como intento apresentar instrumentos de controle —
código de obras e código de posturas — de aplicação particular para a área, que
deveriam se pautar por critérios mais rigorosos que os aplicados para a cidade como
um todo, tendo o Ipac como órgão de execução.
Nos seus objetivos específicos, o Plandip buscava: estudar a evolução
histórica do Pelourinho e a análise das relações de estrutura social e econômica
com reflexos na organização do espaço; elaboração de um modelo orientador do
uso do solo; estudo de medidas para ampliar a oferta e operação dos equipamentos
liv Relatório (tabulação) de pesquisa de campo sócio-econômica e físico-ambiental realizada pelo escritório do Persh na área do Parque Histórico do Pelourinho, em 1987.lv Nas inúmeras reformas administrativas governamentais, esse órgão foi mudando de denominação: Secretaria, Superintendência, Diretoria e, por último, Instituto. Como se trata da mesma instituição, doravante será designado como Iphan. lvi SALVADOR, Centro de Planejamento Municipal - CPM. Termo de referência de Plano Específico para a Área Central, 1992, p.15.lvii BAHIA. Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural, 1997, p. 12.lviii Idem, ibidem, p. 12.lix Ibidem, p. 12.lx Ibidem, p. 13.lxi FUNDAÇÃO do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia. FPACBa. 10 Anos de Fundação. Salvador, 1979, p. 12-13.lxii Idem, ibidem, p.12-3.lxiii Essa instituição será doravante designada como Ipac.lxiv AZEVEDO, P. O., 1984, p. 229.lxv FUNDAÇÃO do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia. FPACBa, 1979, p. 27.lxvi BONFIM, Juarez Duarte; Silva, Paulo R. Guimarães da. O Caso do Parque Histórico do Pelourinho: Investigação de Originalidade numa Ação do Governo Local. Sitientitus, Revista da Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, n.13, jul./dez, 1995, p. 15-33. Disponível em www.uefs.br/sitientibus/sitientibus13/o_caso_do_parque_historico_do_ pelourinho .pdf . Acesso em 26 set 2006.
lxvii BAHIA. Companhia de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Salvador - Conder. Plano Diretor do Pelourinho Plandip Convênio Conder/FPACBA/Seplan-PR - Uma Visão Crítica do Plano - Relatório de Atividades. Salvador: março de 1979, fl. III - 06.lxviii Ibidem, p.27. lxix BONFIM, J. D.; Silva, P. R. G., 1995.lxx AZEVEDO, P. O., 1984, p. 230.lxxi BOMFIM, J. D., 1994, passim.lxxii AZEVEDO, P. O. 1984, p.232.lxxiii Clientelismo é outro nome que se dá a praticas paternalistas e assistencialistas por parte do Estado. Marcelo Bolshaw Gomes assim define clientelismo: “… é a prática da troca do voto por vantagens pessoais, políticas ou familiares. Com a troca de favores, o político se torna freguês do elector e vice-versa”. In: GOMES, Marcelo Bolshaw. Decifra-me ou te devorarei. A imagem pública de Lula no horário eleitoral em 1989, 1994, 1994 e 2002. Natal-RN: Edufrn, 2006, p. 68.lxxiv BAHIA. Plandip, fl. I-02.
170
e serviços urbanos; proposição de alternativas visando o incremento da oferta de
emprego para melhoria das condições sócio-econômicas da população residente;
dinamização das atividades de lazer e turismo e, por último, elaboração de
legislação para respaldo legal às medidas propostas, "permitindo a intervenção e o
efetivo controle da área quanto à preservação de sua ambiência".lxxv
Como propostas de intervenção, o Plandip dispunha de programas
setoriais para o desenvolvimento social do Maciel e vários outros, tais como:
projetos habitacionais; de dotação de equipamentos urbanos; projetos de
alimentação, saúde e educação; projetos de treinamento de mão-de-obra para
atividades semiespecializadas e especializadas.lxxvi
O Plandip não chegou a ser concluído: o projeto foi interrompido em
1979 e em seguida desativado. Em convênio com o Ministério dos Transportes, colaboração da
Prefeitura Municipal e do Detran (Departamento de Trânsito da Bahia), a Conder
realizou, em 1978, o estudo de transportes coletivos de Salvador — Transcol — do
qual as principais proposições se encontram no documento Proposta de
Valorização do Centro Histórico de Salvador.lxxvii
É dada ênfase a problemas ligados à circulação de veículos e de
pedestres e considera-se que a estratégia para valorização do Centro Histórico de
Salvador deve ser orientada no sentido de minimizar a participação dos veículos na
dinâmica da área, "visto que este modo de transporte é responsável por conflitos
tanto com pedestres quanto com o próprio sistema de transporte coletivo".lxxviii
É proposta a concessão de prioridade para circulação de pedestres e
transportes coletivos, com a criação de vias exclusivas na parte nova do Comércio,
em grande parte da Baixa dos Sapateiros e no acesso desta à Barroquinha.
Oferecem-se como alternativas para o transporte individual a dinamização da
política de implantação de estacionamentos periféricos, a ampliação de linhas
servidas por ônibus seletivos e a implantação de novas linhas de coletivos
circulares.
Para uma possível segunda fase da proposta, a ser implantada a
médio e longo prazos, sugerem-se soluções mais radicais, com o objetivo de
lxxv Idem, ibidem, fl. III - 12-3.lxxvi Ibidem, fl. III- 19 a 20.lxxvii SANTOS Neto, I. C., 1991, p.81.lxxviii Idem, ibidem, p. 41.
171
especializar ao máximo as vias de circulação, em termos de sua utilização por
pedestres, veículos particulares e transportes coletivos: transformação das principais
ruas do Centro Histórico em exclusivas para pedestres; fechamento para veículos da
passagem entre o Terreiro de Jesus e a Praça da Sé; supressão de
estacionamentos nas áreas centrais; organização e implantação de um sistema de
horário de carga e descarga; construção de estacionamentos periféricos.
Complementando, deveriam ser tomadas uma série de medidas
técnicas e institucionais para efetivar e operacionalizar tais propostas, com projetos
mais específicos como: estudo e projeto das praças públicas do Centro Histórico;
plano operacional para renovação das áreas deterioradas; legislação específica de
proteção às áreas de importância arquitetônica e urbanística; renovação das áreas
de encostas.
Parece que a prioridade dada à época ao estudo de circulação e
tráfego corresponde a uma política do governo federal, através do então todo-
poderoso Ministério dos Transportes — prenhe de prestígio e recursos — de
financiamento de projetos e liberação de verbas para ações nesse sentido. Daí a
necessidade dos órgãos de planejamento regionais se "amoldarem" a programas do
governo da União, envidando esforços no que era sinalizado.
Quase todas as proposições para a primeira fase e algumas outras
vieram a ser implementadas. Cabe aqui lembrar que propostas para os Centros
Históricos como a de eliminação do tráfego são costumeiras recomendações
internacionais e nacionais para estes sítios, e aparecerão novamente, em outras
oportunidades. Entretanto, é provável que tais medidas tenham dificultado ainda
mais a circulação e acessibilidade ao centro da Cidade do Salvador, àquela altura já
assaz densificado de trânsito e ocupação do solo. O descongestionamento do
trânsito na Cidade Alta só irá acontecer com a inauguração do terminal de ônibus da
Lapa (1982) e o remanejamento de linhas e extinção do terminal da Sé — no
Comércio, o tráfego de veículos continuará “caótico”.
Uma avaliação possível é que as propostas de circulação e trânsito
talvez tenham sido medidas “de época”, modais, que obtiveram efeitos opostos aos
desejados. Paralelamente, nesse período se intensifica a saída de serviços da zona
central, como já foi visto, comprometendo a sua centralidade.
Em 1981 são realizados estudos, pela Oceplan, para criação do
Centro Administrativo Municipal Integrado (Cami) dentro da proposta de
172
utilização ampla da área central, como forma de conciliar numa mesma ação o
controle da área e a efetiva participação cotidiana da administração da Prefeitura no
centro da cidade, ainda que sob a coordenação do “organismo maior”lxxix da Região
Metropolitana de Salvador (Conder) e respectivos recursos locados do Minter-Birdlxxx
em projetos prioritários no âmbito da região metropolitana.
A pretensão da Prefeitura Municipal de Salvador era de "recuperar um
número significativo de imóveis dentro da área histórica"lxxxi para locar,
adequadamente, a maioria dos órgãos da administração direta da entidade
municipal. O tipo de intervenção a ser realizada nestes imóveis — parte deles de
propriedades da própria PMS, e os restantes pertencente a outras entidades,
públicas ou particulares — seria desde simples reforma, até reconstrução, restauro e
construção parcial ou total.
A seleção de imóveis com potencial de alocação foi feita levando em
conta a necessidade de integração institucional. A implantação do projeto se daria
nas zonas onde predominavam usos comerciais e de serviços, não interferindo
negativamente nos núcleos habitacionais, porém igualmente área de importância
paisagística, histórica e turística.
Considerou-se como polo concentrador das ações a Praça Municipal,
"de comprovada vocação administrativa",lxxxii em torno da qual seria localizado o
Cami. As ações planejadas foram de: recuperação do quarteirão do Paço do
Saldanha e daquele que abriga o Solar São Damaso; instalação de 12 secretarias e
órgãos municipais nos imóveis recuperados; criação do Centro de Informação e
Memória; Posto de Saúde vinculado ao Instituto de Previdência de Salvador e Casa
do Funcionário.
Numa etapa posterior deveriam ser desenvolvidos os seguintes
programas: creches para filhos de funcionários; estacionamentos periféricos;
programação visual do Cami.
A justificativa para o projeto Cami era que a sua implantação nessa
parte do Centro Histórico a valorizaria e contribuiria "decisivamente para ampliar a
zona de interesse turístico"lxxxiii numa área antes esquecida. E mais: concentração lxxix SALVADOR. Secretaria Municipal de Planejamento/Seplam; Programa Minter/RM Salvador. Projeto Cami - Centro Administrativo Municipal Integrado. Relatório Volume I junho/1985, p.10.lxxx Minter-Bird – Ministério do Interior/Banco Mundial.lxxxi SALVADOR. Secretaria Municipal de Planejamento/Seplam, junho/1985, p.10.lxxxii Idem, ibidem, p. 10lxxxiii Ibidem, p. 25.
173
das decisões políticas e estratégicas; agilização dos processos burocráticos;
consolidação dos sistemas; não fragmentação dos órgãos etc.
O Projeto Cami, enquanto política governamental, não sugeria ações
globais para intervenção no Centro Histórico, restringindo-se ao objetivo de
recuperar imóveis e neles locar serviços públicos, sendo a revitalização da área um
derivativo. Tratava assim o bem cultural simplificadamente, isoladamente, sem
considerar sua pluralidade funcional, com base nos elementos socioeconômicos que
compõem a dinâmica urbana — moradia, abastecimento, trabalho, educação, saúde,
circulação etc. — encravados numa ambiência física que é, ao mesmo tempo,
histórica e cultural.
Surpreende que, tendo como meta a concentração das decisões
político-administrativas e agilização da burocracia, esse projeto não tivesse
proposto, inclusive, o retorno do governo do município ao centro da cidade, que até
então vagava errante por sedes provisórias e bairros distantes.lxxxiv
Do projeto Cami a única obra realizada foi a restauração do Solar São
Dâmaso, que chegou a abrigar o Arquivo Histórico Municipal. Muito pouco para a
profusão de croquis, plantas e relatórios que foram produzidos e espalhados pela
biblioteca, salas e corredores do órgão de planejamento municipal.
Entre 1981 e 1982 o Ipac realizou em Salvador uma tentativa de
aplicação de recursos do Banco Nacional da Habitação (BNH), através da
Urbis/Cohablxxxv na recuperação do patrimônio habitacional do Centro Histórico, com
elaboração de projetos arquitetônicos e contato com famílias — possíveis mutuários
— para a aquisição de unidades habitacionais decorrentes da adaptação de
sobrados arruinados.
Tratava-se de uma experiência nova, tanto para o BNH quanto para o
Iphan e Fundação Nacional Pró-Memória, a tentativa de compatibilizar a demanda
de recursos do patrimônio histórico com a oferta do Sistema Financeiro de
Habitação (SFH).
A inadequação dos mecanismos técnicos e financeiros
institucionalizados pelo BNH contribuiu para a não efetivação dos projetos.
Exigências como emprego fixo e formal e renda mínima de quatro a cinco salários
lxxxiv O governo do município ocupou primitivamente a Casa de Câmara e Cadeia até instalar-se no Palácio Rio Branco, após a construção da Governadoria no CAB. Continuou, desse modo, na Praça Municipal. Depois de 1980, por razões políticas e partidárias, o Palácio Rio Branco, propriedade do governo do Estado, foi negado à prefeitura. A sede do governo municipal foi então transferida para o Campo Grande, ocupando o prédio que hoje é utilizado pelo Tribunal de Contas do Estado. Ficou por lá pouco tempo até transferir-se para o bairro de Brotas, após a restauração do Solar Boa Vista. A sede da Prefeitura Municipal só retornará ao Centro Histórico em 1987. lxxxv Urbis/Cohab – Habitação e Urbanização da Bahia S.A./Companhia de Habitação do Estado da Bahia.
174
mínimos inviabilizavam a participação de uma população residente pertencente ao
setor informal da economia e sem renda mínima garantida.
Ajustamentos foram feitos (em 1983) até que fossem estabelecidas as
alterações e adaptações do aparato institucional do SFH, indispensáveis à
preservação do patrimônio histórico e à efetivação de projetos pilotos em alguns
núcleos históricos a serem definidos entre conjuntos tombados pelo Iphan. Além de
Salvador, foram sugeridos os centros históricos de São Luís e Olinda, sendo que
somente nesta última cidade o projeto funcionou a contento.
Já nas outras cidades (Salvador e São Luís), apesar do
assessoramento técnico prestado, as equipes locais da administração estadual não
conseguiram estruturar-se para a condução dos trabalhos, e creditou-se à não
participação das prefeituras um dos motivos do fracasso.
Centro Histórico de Salvador. Patrimônio da Humanidade
Em 1983 começam-se os estudos para se levar à Unesco a proposta
de inscrição do Centro Histórico de Salvador na Lista do Patrimônio da Humanidade,
a exemplo de Ouro Preto e Olinda. É composta uma comissão, com representantes
da Prefeitura, Ipac e Universidade Federal da Bahia, sob a coordenação do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e iniciado um levantamento para
ampliação da área tombada pelo governo federal, que atingisse quase a totalidade
do centro antigo de Salvador. Levantamento este feito para atender às
recomendações da Unesco, que define a elevação de sítios históricos à condição de
patrimônio mundial segundo uma série de exigências.
Foram planejadas medidas de proteção dos bens tombados, tais como
a não abertura de novas vias de tráfego e a proibição de edificação de imóveis que
impedissem a visão do trecho tombado. Optou-se por utilizar algumas normas do
Código de Obras do Município, que seriam satisfatórias no atendimento às
exigências da Unesco.
Na sua segunda visita a Salvador, passadas quase duas décadas,
Michel Parent participou do atolxxxvi de assinatura de três protocolos de intenções
(outubro de 1983) envolvendo órgãos representativos das três esferas de poder —
lxxxvi PATRIMÔNIO, Ano I nº 02. Salvador/Ba. Boletim informativo do Ipac, outubro 1983, p. 04.
175
federal, estadual e municipal — com fins de fiscalização e controle, ação integrada
na recuperação e revitalização do patrimônio histórico e cooperação técnica.
Da assinatura desses “protocolos de intenções”, o mais importante,
sem dúvida, foi a constituição do Etelf (Escritório Técnico de Licenças e
Fiscalização), com atribuição de acompanhamento, análise e aprovação dos
projetos de edificações, quanto aos usos, propostas de restauração ou novos
projetos. O Etelf é composto por técnicos das três instâncias da administração
pública, e se constituiu desde então como uma espécie de "polícia" do patrimônio
histórico, através da fiscalização e vigilância a agressões volumétricas, de fachada e
arquitetônicas.
Em maio de 1984, a Sphan alterou a dimensão do Centro Histórico de
Salvador, incluindo a área denominada Mancha Matriz, do Terreiro de Jesus a Santo
Antônio Além do Carmo, Perdões, Adobes, Corpo Santo, Pilar, Sodré, Conceição da
Praia, além da Barroquinha e São Bento, como resultado do trabalho desenvolvido
pela comissão que, além de nova delimitação da área, realizou cadastramento de
principais monumentos históricos e imóveis.
Após ansiosa expectativa da sociedade soteropolitana, o Centro
Histórico de Salvador é declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela
Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco)
em 03 de dezembro de 1985 com o tombamento da área compreendida entre o
Sodré e o Santo Antônio Além do Carmo.lxxxvii
Um grande otimismo quanto ao destino do patrimônio histórico de
Salvador cresce entre a população local, apesar do alerta das autoridades de que o
tombamento mundial não significa a perspectiva de mudanças imediatas e que a
Unesco não dispõe de recursos para financiar obras de recuperação e restauração.
Simplesmente, a responsabilidade do Estado aumenta com a nova legislação, mais rigorosa, de preservação. A Unesco intervém quando acontece alguma catástrofe, como em Veneza, cidade também patrimônio mundial e ameaçada de afundamento [...] O que acarreta essa declaração (Patrimônio da Humanidade) é chamar a atenção, em nível mundial e em nível nacional, sobretudo, para a necessidade e a obrigação moral que se tem, como país, de não permitir que esse patrimônio continue se deteriorando e se perdendo irreversivelmente.lxxxviii
lxxxvii PATRIMÔNIO. Ano III nº 8 Salvador - Ba. Boletim Informativo do Ipac/SEC, out/dez 1985, p. 4 e 5.lxxxviii PIMENTEL, Victor. Entrevista. Revista de Arquitetura e Urbanismo RUA no 1 ano 1 1988, p. 156.
176
O Parque Histórico do Pelourinho
Com base na experiência iniciada em Olinda de gestão do patrimônio
histórico pela prefeitura municipal, realizou-se em Salvador (maio de 1986) um
seminário promovido pelo Programa Nacional de Recuperação e Revitalização
de Núcleos Históricos, visando à sua implantação nos Estados da Bahia e Sergipe,
em decorrência de um acordo de cooperação técnica celebrado entre os ministérios
da Cultura e do Desenvolvimento Urbano.
Tal seminário definiu como fator importante e necessário a participação
ativa e permanente da comunidade no Programa, participação esta que se devia dar
em todo o processo de desenvolvimento, implantação e acompanhamento.
Considerou-se que a comunidade deveria ser o agente promotor de seu próprio
desenvolvimento.
O teor desse seminário reflete o espírito de época: redemocratização
brasileira, com o fim da ditadura militar, maior autonomia aos municípios, inclusive
com as primeiras eleições diretas para capitais de Estados, após mais de três
décadas, e a ascensão dos movimentos sociais — que coloca em evidência o
discurso da participação popular.
A 1º de janeiro de 1986 tinha tomado posse o primeiro prefeito eleito de
Salvador desde 1962, o sr. Mário Kertész (1986-1988). Ungido pelo voto popular, o
novo alcaide resgata o discurso da autonomia municipal e avoca a si o direito
constitucional de gestão sobre a totalidade do território, incluindo aí a área tombada,
considerado um “enclave administrativo federal” no território do município. O governo
local passa então a se interessar em garantir a coordenação do planejamento e dos
investimentos alocados nas áreas antigas da cidade e consideradas como históricas.
Durante o seminário, foi informado que uma das metas da nova
administração municipal eleita era a recuperação e revitalização do Centro Histórico
da cidade, e que já se encontravam em elaboração planos e programas voltados
para tal fim. A Prefeitura reivindicava, com exclusividade, verbas para seus planos e
projetos junto aos agentes financiadores federais — e para tanto o prefeito transitava
nos gabinetes ministeriais de Brasília.
Em missão especial, o diretor de Tombamento e Conservação do
Sphan/FNPMlxxxix visita a cidade para outorgar à Prefeitura de Salvador, na pessoa de
seu Executivo, a Coordenação do Programa Especial de Recuperação e
Revitalização dos Sítios Históricos de Salvador (Persh).
lxxxix Sphan/FNPM – Superintendência do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Fundação Nacional Pró-Memória.
177
Em relação ao Centro Histórico, pesquisas e levantamentos realizados
no início do governo — para efeito de identificação e caracterização do problema —
acusavam que 30% dos imóveis localizados na área tombada estavam
completamente arruinados ou em avançado estado de deterioração física. É dito que
o aspecto de vários quarteirões aparentava o de uma cidade bombardeada.
É construído, em tempo recorde, um prédio pré-moldado, projeto do
arquiteto João Filgueiras Lima (Lelé),xc de linhas "modernas", entre os monumentos
históricos da Praça Municipal, logo nos primeiros dias da administração, para ser a
nova sede da Prefeitura (Figura 20). A ousadia era de construir em meio aos
monumentos históricos, “uma edificação contemporânea, perfeitamente engastada
na escala local, a dialogar com os sobrados coloniais”.xci
Figura 20 — Sede da Prefeitura Municipal de Salvador. Foto: Juarez Duarte Bomfim. Em 12 set. 2006.
xc “Más funcionalista em su aproximación proyectual, el arquitecto João Figueiras Lima (Lelé), en el Estado de Bahia, ha perseguido una búsqueda constante de una arquitectura que conjugue componentes industrializados y un cuidadoso control ambiental”. In: PADOVANO, Bruno Roberto. Arquitectura contemporânea em Brasil: ¿Qué há ocurrido después de Brasília? Revista de Cultura Brasileña. nº 2. Editada por la Embajada de Brasil en España (Madrid). Nueva serie/Septiembre 2005.xci SALVADOR, Prefeitura Municipal. Fundação Gregório de Mattos, Parque Histórico do Pelourinho (portfólio publicitário), 1988, p. 7.
178
A administração municipal, através dos órgãos responsáveis, promove
em caráter de urgência um Plano Emergencial de Escoramento nos imóveis
ameaçados de desabamento iminente.
O Programa Especial de Recuperação dos Sítios Históricos (Persh) é
criado em 1986 com dois objetivos: 1. recuperar a vocação tradicional do centro da
cidade como ponto de encontro, trabalho, moradia e lazer da população; 2. preservar
o patrimônio arquitetônico, urbanístico, paisagístico e cultural do Centro Histórico.xcii
Pretendia-se fazer intervenção em parcelas definidas do território
urbano “com o compromisso de recuperar e preservar seus atributos físico-
ambientais e socioeconômicos".xciii
Foram delineadas três áreas de interesse histórico da Cidade do
Salvador: a Poligonal Centro Histórico, a Poligonal Itapagipe e a Poligonal Rio
Vermelho. Dessas três, serão analisadas neste livro apenas as ações para a
Poligonal Centro Histórico. Entretanto, desde já pode-se adiantar que somente este
foi, de fato, palco de intervenção deste programa.xciv
As ações para a recuperação do Centro Histórico deveriam ser
integradas de forma a fazer com que as intervenções físicas, ao lado de outras
medidas de ordem institucional e de apoio às atividades produtivas locais, pudessem
provocar um processo de revitalização com reflexos imediatos nos campos
econômico e social, garantindo a preservação do patrimônio artístico e cultural.
Os projetos de restauração e recuperação envolviam as áreas da
Barroquinha, do Caís do Ouro, do Maciel, da Ladeira da Misericórdia, seus
quarteirões residenciais, o contínuo de praças que engloba as praças Municipal, da
Sé, do Terreiro de Jesus, Largo do Cruzeiro e Pelourinho, além das encostas das
cidades Alta e Baixa.
A intervenção na infraestrutura urbana constaria de novas
pavimentações, melhoria e adequação de drenagem pluvial, contenção e arborização
das encostas, implantação de mobiliário urbano tais como bancos, lixeiras, bancas
de revistas, postos policiais e telefônicos, além da execução de redes elétrica e
telefônica subterrâneas e da sinalização indicativa e explicativa visando a atividade
turística.
xcii SALVADOR. Prefeitura Municipal. Fundação Gregório de Mattos. Recuperação do Centro Histórico de Salvador. Chegou a hora de você entrar para a história (Portfólio), s/n, 1987; cabe observar que, apesar de ser apenas um folheto publicitário, esse é um dos poucos documentos escritos sobre o Persh.xciii Idem, ibidem.xciv Foram promovidas ações no bairro do Rio Vermelho, porém, não pelo Persh.
179
Acreditava-se que ou se faria uma intervenção em grande escala, tipo
“reconstrução pós-guerra”, restaurando conjuntos de imóveis para o usufruto da
população, ou nada se poderia fazer em face da rapidez do intenso processo de
degradação.
O componente tecnológico era considerado um trunfo a ser utilizado
pela administração municipal através da Faec (Fábrica de Equipamentos
Comunitários da Prefeitura) com a confecção de elementos leves, pré-fabricados em
argamassa armada, que foram utilizados na construção da nova sede da
administração municipal e em outras obras públicas (escolas e passarelas de
pedestres).
O projeto piloto de restauração foi elaborado pela arquiteta Lina Bo
Bardi, para a Ladeira da Misericórdia — um contíguo de três sobrados deteriorados,
uma ruína e um terreno baldio — que chegou a ser executado, e serviria de modelo
para a restauração dos demais quarteirões degradados localizados no Centro
Histórico de Salvador (Figura 21).
Figura 21 — Plano Piloto da Ladeira da Misericórdia. Foto do Arquivo da Fundação Gregório de Mattos.
180
Combinando estilos arquitetônicos e materiais construtivos diferentes,
no terreno baldio foi levantada uma edificação contemporânea, em ferrocimento,
para funcionar como restaurante. Assim, o conjunto restaurado teria uso misto —
residencial e de serviços.
Outras obras pontuais também foram realizadas, sendo as mais
significativas: o Teatro Gregório de Mattos, no prédio do extinto Tabaris Night Club,
situado na Praça Castro Alves; o “Projeto Casa do Benin”, composto pela
restauração de três imóveis, situados na garganta do Taboão (esquinas das ruas Pe.
Agostinho Gomes, Rua das Flores e Ladeira do Carmo).
A Casa do Benin foi levantada num sobrado do século XVIII, que
sofrera um incêndio e fora destruído quase inteiramente em 1978, e ao lado deste, a
partir de duas fachadas remanescentes de antigos sobrados, ergueu-se um segundo
imóvel e, no pátio anterior, uma construção em barro e palha, que serviu como
“Restaurante do Benin” — uma citação da arquitetura rural tradicional daquele país
africano.
Outras intervenções foram realizadas: recuperação de imóvel arruinado
na Rua Gregório de Matos, n° 22, para sede do grupo cultural negro baiano Olodum
— a Casa do Olodum — (Figuras 22 e 23) casarão do século XVIII do qual só
sobraram as paredes externas; o Belvedere da Sé — mirante localizado na área dos
fundos da antiga Sé Primacial da Bahia — demolida em 1933, e onde hoje está
situado o monumento da Cruz Caída.
Buscando captar recursos, via doações, para execução do Programa
Especial de Recuperação dos Sítios Históricos da Cidade do Salvador, é criado,
através da Lei Municipal nº. 3.722 de 18 de maio de 1987 e regulamentado pelo
Decreto nº. 7.838 de 11 de junho de 1987,xcv o Fundo Municipal para Recuperação
Física dos Sítios Históricos de Salvador (FMSH), que visava à recepção e aplicação
dos recursos. São assegurados aos doadores os benefícios da Lei Federal de
incentivo a cultura.xcvi Como gestora desta medida institucional-legal é eleita a
Fundação Gregório de Mattos (FGM), instituição autônoma criada pela Prefeitura de
Salvador, responsável pela política cultural do município.
xcv SALVADOR. Prefeitura Municipal. Leis e Decretos, 1986, 1987, 1988. Edição Setor de Publicação da Secretaria Municipal de Governo ( Diário Oficial do Município), p. 62.xcvi “Lei Sarney” - Lei nº 7.505 de 02 de julho de 1986. Lei Federal de incentivo a cultura, onde as doações seriam passíveis de dedução do imposto de renda. Leva o nome do então presidente da República (José Sarney) por ser este o seu idealizador.
181
Figura 22 — Casa do Olodum antes da reforma.Fonte: CENTRO Histórico de Salvador, Bahia: patrimônio mundial, 2000, p. 106.
182
Figura 23 — Casa do Olodum recuperada. Foto: Juarez Duarte Bomfim. Em 10 out. 2006.
183
No dia 04 de setembro de 1987 é criado o Parque Histórico do
Pelourinho, através do Decreto nº. 7.849.xcvii Poligonal com 31 hectares de
superfície, dentro da área tombada pela Sphan e reconhecida pela Unesco como
Patrimônio da Humanidade, englobava 42 quarteirões e "cerca de 1.000 edificações
entre sobrados, igrejas, conventos e solares",xcviii que "é a porção da área tombada
onde se concentra o maior acervo de conjuntos e monumentos arquitetônicos
isolados e espaços públicos, da antiga capital do Brasil Colônia".xcix O Parque
Histórico do Pelourinho...
[...] inicia-se ao sul, no encontro da plataforma onde está implantado o Palácio Tomé de Sousa e a balaustrada da Praça Municipal, segue em direção leste, cursando a rua da Misericórdia até encontrar a rua José Gonçalves, segue por este para o sul até a rua 28 de Setembro, por onde prossegue na direção leste cruzando as ruas do Saldanha, Oração e São Francisco até encontrar a rua J.J.Seabra, por esta prosseguindo em direção norte, encontrando neste processo as extremidades da ladeira da Ordem 3ª de São Francisco, Ladeira de São Miguel, Ladeira do Ferrão e Travessa da Baixa dos Sapateiros. Prossegue até o encontro da rua das Flores com a rua Ramos de Queiroz por onde prossegue até encontrar a rua dos Marchantes, segue por este até a Ladeira do Boqueirão, daí segue na direção oeste até encontrar os fundos dos edifícios na encosta da rua Direita de Santo Antônio, prossegue pela meia encosta em direção ao sul até encontrar a Igreja do Paço, daí volta para o oeste até a rua Caminho Novo do Taboão até onde esta se encontra com a rua do Pilar, segue por esta sempre em direção sul à base da ladeira do Taboão, segue pela meia encosta até a ladeira da Misericórdia e por esta prossegue até a praça Municipal.c
Ainda no Decreto de criação do PHP, é definido que o parque deveria
ser dotado de administração própria, vinculada à Fundação Gregório de Matos, que
teria por finalidade promover as ações referentes à segurança pública, proteção
contra incêndio e limpeza pública, fixação de calendário de eventos culturais,
ordenação de circulação interna, disciplinamento do comércio eventual e ambulante,
guias e tráfegos turísticos.
No ato de criação do Parque Histórico do Pelourinho é lançada a
Campanha pela Revitalização do Parque Histórico do Pelourinho e nos dias e meses
xcvii SALVADOR. Leis e Decretos, op. cit., p.227.xcviii SALVADOR, Prefeitura Municipal. Fundação Gregório de Mattos, 1988, p.3.xcix SALVADOR. Prefeitura Municipal. Surcap, Os sítios históricos de Salvador, 1988, p. 5. c DECRETO Nº 7.894 de 04 de setembro de 1987. Disponível em www.seplam.pms.ba.gov.br/legisla/legurban/downloads/d7894-87.PDF Acesso em 28 set 2006.
184
posteriores a este evento a cidade, o Estado e o Brasil inteiro assistem a um
marketing intenso e agressivo baseado nessa campanha. O lema divulgado era:
"Pelourinho. Patrimônio da Humanidade. Todo mundo tem que preservar".
Misto de publicidade e projeto para financiamento externo, é lançado
ao mesmo tempo o que se denominou "Projeto Quarteirões da Humanidade", onde
se elegia o quarteirão como unidade de intervenção para restauro (Figuras 24 e 25),
e propunha-se a "adoção" por países estrangeiros dos quarteirões da área do
Parque Histórico do Pelourinho para a sua recuperação.
Figura 24 — Quarteirão deterioradoFonte: BOMFIM, J. D., 1994, p. 120.
Figura 25 — Projeto de quarteirão restauradoFonte: BOMFIM, J. D., 1994, p.121.
Quando das visitas ao Centro Histórico de Salvador dos presidentes de
Portugal e da Alemanha, Mário Soares e Helmut Kohl (1987), é feito um apelo, pelo
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prefeito Mário Kertész, de auxílio à recuperação do Pelourinho e lançado, à guisa de
projeto, o "Quarteirão de Portugal" e o "Quarteirão Alemão", respectivamente. Não
se conhecem os resultados dessas investidas.
Foi diagnosticado que na área do Parque Histórico do Pelourinho
apenas o bairro do Maciel possuía rede de esgoto — e em situação precária — e
que as pavimentações de ruas e passeios necessitavam de recuperação. Com os
demais serviços básicos deteriorados ou inexistentes, decidiu-se pela realização de
obras de infraestrutura urbana básica com a dotação, na área, de abastecimento
d'água, drenagem pluvial, distribuição subterrânea de energia e telefone,
pavimentação de ruas e passeios. Obra extraordinariamente grande, que não
chegou a ser concluída.
Esse intento de consolidação de um “parque construído”, de caráter
urbano, composto por edificações e logradouros públicos, teve vida curta. Na gestão
municipal seguinte, do prefeito Fernando José (1989-1992), a administração do
Parque Histórico do Pelourinho foi transformada na primeira Administração Regional
da municipalidade, a AR-Centro, que ampliou os limites de sua ação para todo o
centro de Salvador e mais 36 bairros que o circundam. O Parque Histórico do
Pelourinho foi extinto e em seu lugar criada a Gerência de Sítios Históricos,
institucionalmente vinculada à Fundação Gregório de Mattos, responsável, à época,
pela política patrimonial do município nas áreas do Centro Histórico, Itapagipe e Rio
Vermelho.
Aparece aí um considerável fator negativo a se levar em conta na
administração pública brasileira: a descontinuidade administrativa. A alternância
de governos, salutar para a democracia, no mais das vezes resulta em paralisação
de importantes programas em desenvolvimento, particularmente quando ocorre
mudança político-partidária de gestores urbanos.
Tais paralisações provocam grandes prejuízos para a cidade e os seus
habitantes. É por isso que cresce no Brasil a consciência da necessidade de criação
de planos diretores de desenvolvimento urbano (PDDU), de longo prazo
(decenais), na tentativa de sanar tão grave problema.
O saldo das intervenções pontuais não foi o desejado: ao conjunto
arquitetônico da Misericórdia não foi dada a destinação planejada (função mista, de
habitação e serviços) e as casas acabaram sendo depenadas por vândalos, e rápido
voltaram a se degradar. Passados poucos anos, as casas abandonadas foram
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ocupadas por numerosas famílias egressas da área do Maciel/Pelourinho, expulsas
quando do programa de recuperação do governo do Estado, iniciado em 1992.
O pretensioso intuito de que a municipalidade local travasse relações
diplomáticas e culturais diretamente com outros países, que motivou a construção
do Conjunto do Benin — composto da Casa do Benin (um centro cultural), casa do
Representante do Benin e restaurante de comidas típicas daquele país — também
não vingou. Hoje funciona precariamente naquele local um modesto museu.
Cabe registrar que a recuperação de imóveis para destinação pública
— o Teatro Gregório de Mattos, a Casa do Benin — democratizando o usufruto do
bem público, era uma característica dos projetos arquitetônicos de Lina Bo Bardi, que
infelizmente não era a regra até então na Bahia.
Pode-se considerar que foi superestimado um possível "efeito
multiplicador" para revitalização e recuperação do Centro Histórico, pois acreditava-
se que ações pontuais de restauração de imóveis e mudança de uso provocariam o
crescimento do interesse em investimento na área — a desejada revitalização.
Em políticas públicas mais recentes, tomaram corpo e força na
administração pública brasileira as teses que enalteciam as vantagens da parceria
do setor público com a iniciativa privada, assim como a sua importância e
necessidade para a política e gestão urbanas, devido à reduzida capacidade de
investimento governamental decorrente da crise fiscal.
O Programa Especial de Recuperação dos Sítios Históricos da Cidade
do Salvador (Persh), que apostava na intervenção em larga escala para a
recuperação física do Centro Histórico, e não dispunha de recursos para tal
empreendimento, tentou buscar junto a agentes econômicos privados, através da
campanha publicitária e criação do Fundo Municipal para Recuperação Física do
Sítios Históricos de Salvador (FMSH), o capital necessário para o desenvolvimento
do programa. Essas gestões se mostraram infrutíferas, pois, na falta de realizações
concretas, possíveis investidores se retraíram.
A criação do Parque Histórico do Pelourinho pelo governo local, dotado
de administração própria, embora não tenha deixado marcas mais visíveis, foi uma
possibilidade de gestão de sítio histórico incrustado numa grande urbe, onde se
pode destacar as ações de delimitação física do espaço a sofrer intervenções para
ali promoverem-se políticas destinadas tanto para restauro como para serviços de
infraestrutura, melhoria de serviços públicos urbanos, disciplinamento de circulação
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e tráfego, fiscalização de posturas municipais etc. O Parque Histórico do Pelourinho
é também precursor da Administração Regional do Centro (AR-Centro), tentativa do
poder local de descentralizar a administração de algumas atribuições pertinentes ao
município.
O agressivo marketing (Figura 26) e a intensa publicidade divulgaram
nacionalmente o estado de abandono e arruinamento daquele que é considerado o
maior conjunto arquitetônico barroco-colonial das Américas, o Centro Histórico de
Salvador, e tornou este um problema nacional.
Figura 26 — Marketing do Parque Histórico do PelourinhoFonte: BOMFIM, J. D., 1994, p. 84.
Embora as intervenções realizadas tenham sido pontuais, o objetivo de
uma ação global em larga escala redefiniu o conceito de intervenção no Centro
Histórico para uma orientação geral, e se erigiu o quarteirão como unidade de
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intervenção. Qualquer política de recuperação futura teria que levar isso em
consideração.
O marketing realizado coisificou o Pelourinho, transformando-o num
produto mercadológico, lugar com potencial para a realização de negócios turísticos.
Isso de certa maneira “dessacralizou” o Pelourinho, abrindo espaço para a
integração sociourbana da área e a sua incorporação à dinâmica econômica da
cidade — o que virá a ocorrer no período logo imediato.
Quando o governo da Bahia inicia o Programa de Recuperação do
Centro Histórico em 1991, vai encontrar a área num avançado processo de
deterioração físico-territorial, porém, paradoxalmente, vivendo um intenso
movimento de efervescência cultural. Essa é a paisagem urbana a ser descrita no
capítulo a seguir.
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NOTAS DO 4º CAPÍTULO
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