O Chamado de Cthulhu 1

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    O Chamado de Cthulhu H.P. Lovecraft

    Fonte: O Horror em Red Hook. Ed. Iluminuras.

    Adquira o livro completo em http://www.iluminuras.com.br

    Notas de transcrio no constam nos originais da editora.

    O CHAMADO DE CTHULHU(Encontrado entre os papis do falecido Francis Wayland Thurston, de Boston)

    De tais seres ou potestades superiores pode ser concebida uma sobrevivncia... uma sobrevivncia de um

    perodo fantasticamente remoto onde... a conscincia se manifestava, talvez, em vultos e formas desde ento

    repelidos pela mar montante da humanidade... formas das quais apenas a poesia e a lenda captaram uma

    memria fugaz e as chamaram deuses, monstros, seres mticos de todos os tipos e espcies...

    Algernon Blackwood1

    I. O horror de argila

    coisa mais misericordiosa do mundo, acho eu, a incapacidade da mente humanacorrelacionar tudo que ela contm. Vivemos numa plcida ilha de ignorncia em meio a mares

    tenebrosos de infinidade, e no estvamos destinados a chegar longe. As cincias, cada umapuxando para seu prprio lado, nos causaram poucos danos at agora, mas algum dia a juno daspeas do conhecimento disperso descortinar vises to terrveis da realidade e de nossa pavorosaposio dentro dela que s nos restar enlouquecer com a revelao ou fugir da iluminao mortalpara a paz e a segurana de uma nova idade das trevas.

    Os teosofistas imaginaram o admirvel esplendor do ciclo csmico no qual o nosso mundo ea raa humana so incidentes transitrios. Eles sugeriram estranhos remanescentes com termos quecongelariam o sangue se no fossem mascarados por um suave otimismo. Mas no foi deles que mechegou o especial vislumbre de eras ancestrais proibidas que me arrepia ao lembrar e meenlouquece nos sonhos. Esse vislumbre, como todos os pavorosos vislumbres da verdade, revelou-se de uma hora para outra com a juno acidental de peas separadas, nesse caso, uma velha notciade jornal e as anotaes de um professor j falecido. Espero que ningum mais junte essas peas. Seeu viver, jamais ajuntarei, deliberadamente, um elo a to odiosa cadeia, com certeza. Imagino que oprofessor tambm pretendia guardar silncio sobre a parte que sabia, e que teria destrudo suasanotaes se a morte sbita no o tivesse colhido.

    Meu contato com o assunto comeou no inverno de 1926-27 com a morte de meu tio-avGeorge Gammell Angell, Professor Emrito de Lnguas Semticas na Universidade Brow,Providence, Rhode Island. O professor Angell era muitssimo conhecido como uma autoridade em

    inscries antigas e costumava ser consultado por curadores de museus importantes, de forma quemuitos se lembraro de seu falecimento, aos noventa e dois anos de idade. No meio local, ointeresse foi intensificado pela obscuridade da causa da morte. O professor fora atingido quandovoltava do barco de Newport, caindo de repente, segundo testemunhas, depois de receber oencontro de um negro com ar de marinheiro que saiu de uma das vielas tenebrosas da ladeirangreme que servia de atalho do cais at a casa do falecido na Williams Street. Os mdicos noconseguiram detectar nenhuma doena visvel e concluram, depois de um debate confuso, que ofim se devera a alguma obscura leso cardaca provocada pela subida apressada de uma ladeira tongreme por um homem to idoso. Na ocasio, no tive por que discordar dessa concluso, masultimamente me sinto inclinado a estranhar... e mais do que estranhar.

    1 Blackwood, Algernon Henry (1869-1951), famoso escritor ingls do gnero horror e muito admirado por Lovecraft.(Nota de Transcrio)

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    Na qualidade de herdeiro e executor testamentrio de meu tio-av, pois ele morreu vivo esem filhos, teria de examinar seus papis com certa meticulosidade, e para esse fim transferi todasas suas pastas e arquivos para minha moradia em Boston. Boa parte do material que eucorrelacionei ser no futuro publicada pela Sociedade Arqueolgica Americana, mas havia umacaixa que me intrigou sobremaneira e no quis exp-la a outras vistas. Ela estava trancada e noconsegui encontrar a chave at que me ocorreu olhar a argola de chaves que o professor trazia

    sempre no bolso. Consegui ento abri-la, mas ao faz-lo deparei-me com um obstculo maior eainda mais protegido, pois qual poderia ser o significado do estranho baixo-relevo de argila e osapontamentos, divagaes e recortes de jornais desconexos que encontrei? Teria meu tio, em seusltimos anos, se transformado num crdulo das mais levianas imposturas? Resolvi ento procurar oexcntrico escultor responsvel por aquela aparente perturbao da paz de esprito de um velho.

    O baixo-relevo era um retngulo tosco com menos de uma polegada de espessura e cerca decinco por seis polegadas de rea, de origem ao que tudo indica moderna. A atmosfera e as sugestesde seus motivos estava longe de ser modernas, porm, pois no obstante as excentricidades decubismo e futurismo serem muitas e alucinadas, elas no reproduzem amide aquela regularidadecrptcia que emerge de documentos pr-histricos. E o grosso daqueles desenhos com certezaparecia ser algum tipo de escrita, conquanto minha memria, embora familiarizada com os papis e

    as colees de meu tio, no conseguiu de maneira alguma identificar aquele tipo particular, oumesmo inferir suas filiaes remotas.

    Ao alto desses aparentes hierglifos havia uma figura com finalidade evidentementedecorativa, embora seu estilo impressionista prejudicasse a formao de uma idia muito precisa danatureza. Parecia uma espcie de monstro, ou smbolo representando um monstro, cuja forma spoderia ter sido concebida por uma fantasia mrbida. Se digo que minha imaginao um tantoextravagante forjou imagens simultneas de um polvo, um drago e uma caricatura humana, noestarei sendo infiel ao esprito da coisa. Uma cabea carnuda e tentaculada coroava um corpogrotesco, coberto de escamas, com asas rudimentares, mas era o contorno geral do conjunto que otornava mais aterrorizante. Por trs da figura havia a vaga sugesto de uma paisagem arquitetnicaciclpica.

    Exceto por uma pilha de recortes da imprensa, os textos que acompanhavam essaextravagncia eram obra recente da mo do Professor Angell, sem a menor pretenso a um estiloliterrio. O que parecia ser o documento principal se intitulava CULTO DE CTHULHU2 emcaracteres cuidadosamente grafados para evitar a leitura incorreta de uma palavra to invulgar. Omanuscrito estava dividido em duas sees, a primeira intitulada 1925 Sonho e Obra do Sonhode H.A. Wilcox, Thomas Street, 7, Providence, R.I., e o segundo, Narrativa do Inspetor John R.Lesgrasse, Bieville Street, 121, Nova Orleans, La., em 1908 A.A.S. Mtg. Notas sobre o Mesmo,& Prof. Webbs Acct. Os outros papis manuscritos eram todos anotaes breves, alguns delesrelatos de sonhos bizarros de diversas pessoas, outros citaes de livros e revistas teosficos(especialmente de Atlantis and the Lost Lemuria de W. Scott-Elliot), e o resto comentrios sobre

    antigas sociedades secretas e cultos proibidos, com indicaes de passagens de livros de refernciade antropologia e mitologia como Golden Bought3 de Frazer e Witch-Cult in Western Europe da

    2 O termo "Cthulhu" pronunciado comumente como "kuh-THOO-loo" (em portugus soa algo como: Katuuluu,pronunciado rapidamente), por causa da pronuncia indicada na caixa do famoso RPG de nome "Call of Cthulhu" daChaosium. Entretanto, existem vrios estudantes srios de Lovecraft que preferem a pronncia como Cloo-loo,justificando suas teses em referncias dos contos do autor. Fora isto a discusso se estende e encontramos ainda umasrie de pronuncias diferentes, mas que na prtica nada, ou muito pouco, acrescentam ao termo. O prprio Lovecraft

    brincava com seus amigos escritores pronunciando hora de uma forma ora de outra. (Nota de Transcrio)3 Traduzido no Brasil da verso inglesa resumida e ilustrada The Ilustrated Golden Bough, da monumental obra deantropologia da religio The Golden Bough de Sir James George Frazer, como O Ramo de Ouro, Ed. GuanabaraKoogan, 1982.

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    Srta. Murray4. A maior parte dos recortes aludia a doenas mentais excntricas e surtos de loucuraou mania coletiva na primavera de 1925.

    A primeira metade do manuscrito principal relatava uma histria muito estranha. Ao queparece, em 1 de maro de 1925, um jovem magro e soturno, de aspecto neurtico e exaltado, tinhaprocurado o Professor Angell, levando um curioso baixo-relevo de argila ainda muito fresco emido. Seu carto trazia o nome de Henry Anthony Wilcox, e meu tio o identificara como o filho

    mais jovem de uma excelente famlia que ele conhecia de longe. O jovem era estudante de esculturana Escola de Desenho de Rhode Island e morava no edifcio Fleur-de-Lys perto daquelainstituio5. Wilcox era um jovem precoce, de gnio conhecido, mas grande excentricidade, e desdea infncia ele chamava a ateno pelas histrias bizarras e sonhos curiosos que tinha o hbito derelatar. Ele se considerava psiquicamente hipersensvel, mas para o povo pacato da antiga cidadecomercial ele no passava de um esquisito. Sem nunca se misturar muito com sua prpria gente,ele foi perdendo aos poucos a visibilidade social e agora s era conhecido de um pequeno grupo deestetas de outras cidades. Mesmo o Clube das Artes de Providence, zeloso de seu conservadorismo,o considerava um caso sem esperana.

    Por ocasio da visita, dizia o manuscrito do professor, o escultor, de repente, pediu a ajudados conhecimentos arqueolgicos de seu anfitrio para identificar os hierglifos dos baixo-relevo.

    Ele falava de maneira calma, sonhadora, sugerindo uma simpatia afetada e distante, e meu tio foium tanto rspido na resposta, pois a condio claramente recente da tabuleta indicava afinidade comqualquer coisa, menos com arqueologia. A rplica do jovem Wilcox que impressionou meu tio obastante para ele recordar-se dela e registr-la tal qual, teve um feitio potico que deve ter marcadotoda a conversa, e que mais tarde descobri tratar-se de uma forte caracterstica sua. Ele disse, novo, de fato, visto que o fiz na noite passada em meio a um sonho com cidades estranhas, e ossonhos so mais antigos do que a fervilhante Tiro, ou a contemplativa Esfinge, ou a ajardinadaBabilnia.

    Foi a que ele comeou aquele relato confuso que, de repente, espicaou memriasadormecidas e conquistou o interesse febricitante de meu tio. Tinha havido um rpido tremor deterra na noite anterior, o mais forte sentido na Nova Inglaterra em muitos anos, e a imaginao deWilcox fora fortemente abalada. Recolhendo-se ao leito, ele teve um sonho sem precedentes comgrandes cidades ciclpicas, construdas com blocos titnicos e monolitos projetados para o cu, tudoexsudando um limo verde e sinistro de horror latente. As paredes e pilares estavam cobertos dehierglifos, e de algum ponto indeterminado abaixo chegava uma voz que no era voz, umasensao catica que somente a fantasia poderia transformar em som, mas que ele tentara transmitircom o amontoado de letras quase impronuncivel Cthulhu fhtagn.

    Essa mixrdia verbal foi a chave para a recordao que exaltou e perturbou o ProfessorAngell. Ele interrogou o escultor com meticulosidade cientfica e estudou com ateno quasefantica, o baixo-relevo em que o jovem se vira trabalhando, enregelado e vestido apenas com asroupas de dormir, at a viglia insinuar-se em seu torpor. Meu tio culpou a sua velhice, disse Wilcox

    mais tarde, pela lentido com que identificou os hierglifos e a imagem. Muitas de suas perguntaspareceram deslocadas para o visitante, em especial as que tentavam relacion-lo com cultos ousociedades estranhos, e Wilcox no pde compreender as repetidas promessas de silncio que lheforam feitas em troca de ser aceito em alguma ordem religiosa mstica ou pag. Quando o ProfessorAngell se convenceu de que o escultor ignorava mesmo qualquer culto ou sistema de sabedoriacrptica, assediou o visitante com pedidos para que ele lhe relatasse sonhos futuros. Isso rendeufrutos regulares. Depois da primeira entrevista, o manuscrito registra visitas dirias do jovemdurante as quais ele relatava fragmentos surpreendentes de imaginao noturna cujo tema constanteera alguma vista ciclpica terrvel de pedra escura e gotejante, com uma voz ou inteligncia

    4 Margaret A. Murray publicou em 1921 o livro citado, onde defende a tese de que o culto s bruxas, tanto na Europa

    como na Amrica, tem origem numa raa pr-ariana que foi impelida para um mundo subterrneo, mas continua espreita em cantos escondidos da terra.5 Esta casa-estdio foi criada pelo artista de Providence, R.I., Sydney Richmond Burleigh e de fato existe na RuaThomas n 77 nesta mesma cidade. Foi utilizada como inspirao para esta histria. (Nota de Transcrio)

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    subterrnea gritando monotonamente atravs de enigmticos impactos sensoriais s possveis dedescrever com palavras sem sentido. Os dois sons repetidos com maior freqncia so os expressospelas letras Cthulhu e Rlyeh.

    No dia 23 de maro, prosseguia o manuscrito, Wilcox no apareceu, e indagaes feitas emsua moradia revelaram que, atacado por um tipo desconhecido de febre, ele fora levado para a casade sua famlia na Waterman Street. Ele havia gritado durante a noite, despertando outros artistas do

    prdio, e havia manifestado, a partir daquele momento, condies alternadas de conscincia edelrio. Meu tio telefonou incontinente para a famlia e dali em diante passou a acompanhar o casode perto, telefonando muitas vezes para o consultrio do Dr. Tobey na Thayer Street, o mdico queestava acompanhado o caso. A mente febril do jovem, ao que parecia, estava retida em coisasestranhas, e o mdico chegava a estremecer quando as mencionava. Estas incluam no s arepetio do que ele tinha sonhado antes, mas envolviam tambm algo gigantesco com milhas dealtura que andava ou se arrastava de um lado para outro. Em nenhum momento ele descreveu essacoisa, mas expresses alucinadas ocasionais, reproduzidas pelo Dr. Tobey, convenceram oprofessor de que ela devia ser idntica monstruosidade inominvel que ele tentara representar emsua escultura do sonho. A referncia a essa coisa, acrescentou o doutor, preludiava sempre a recadado jovem na letargia. Sua temperatura, por estranho que parea no subia muito acima do normal,

    mas seu estado geral sugeria antes uma febre genuna do que uma perturbao mental.No dia 2 de abril, por volta das trs da tarde, todos os sintomas da doena de Wilcox

    desapareceram de uma hora para outra. Ele sentou-se na cama, espantado por estar em casa e sem amenor noo do que tinha acontecido em sonho ou realidade desde a noite de 22 de maro.Recebendo alta do mdico, voltou a seus aposentos em trs dias, mas deixou de prestar qualquerajuda ao Professor Angell. Todos os vestgios de sonhos estranhos tinham sumido de sua memria,e meu tio no guardou nenhum registro de seus pensamentos noturnos depois de uma semana derelatos insossos e irrelevantes sobre vises perfeitamente normais.

    Aqui terminava a primeira parte do manuscrito, mas referncias a algumas anotaesespalhadas deram-me muito em que pensar, tanto, de fato, que s o arraigado ceticismo quemarcava ento a minha filosofia pode explicar a persistente averso que senti pelo artista. Asanotaes em questo descreviam os sonhos de vrias pessoas no mesmo perodo em que o jovemWilcox sofrera suas estranhas provaes. Meu tio, ao que parece, criou s pressas uma vasta rede depesquisa envolvendo quase todos os amigos a quem poderia fazer perguntas sem parecerimpertinente, pedindo-lhes que relatassem seus sonhos noturnos e as datas de qualquer visoextraordinria no passado recente. A receptividade a seu pedido parece Ter sido irregular, mas eledeve ter recebido, no mnimo, mais respostas do que uma pessoa normal poderia lidar sem umasecretria. Essa correspondncia original no foi preservada, mas suas anotaes formaram umresumo completo e realmente significativo. As pessoas comuns da sociedade e do meio comercial o sal da terra da Nova Inglaterra tradicional deram um retorno quase negativo, emboracasos esparsos de impresses noturnas perturbadoras mas informes apaream aqui e ali, sempre

    entre 23 de maro e 2 de abril, o tempo do delrio do jovem Wilcox. Os homens de cincia foramafetados um pouco mais, embora quatro casos de descrio vaga sugiram vislumbres fugidios depaisagens exticas, e, em um caso, seja mencionado o pavor de alguma coisa anormal.

    Foi dos artistas e poetas que vieram as respostas pertinentes, e tenho clareza de que o pnicose alastraria se eles tivessem podido comparar as anotaes. Tal como aconteceu, na falta das cartasoriginais, suspeitei que o compilador tinha feito perguntas indutivas ou editado a correspondnciapara corroborar o que ele estava potencialmente inclinado a ver. Isso reforou minha idia de queWilcox, de alguma forma conhecedor dos dados antigos que meu tio possua, vinha se insinuando

    junto ao veterano cientista. As respostas daqueles estetas contavam uma histria perturbadora. De28 de fevereiro a 2 de abril, uma grande parte deles havia tido sonhos extraordinrios e aintensidade dos sonhos havia sido muito maior durante o perodo do delrio do escultor. Mais de um

    quarto dos que relataram algo, registravam cenas e sons vagos parecidos com os descritos porWilcox, e alguns sonhadores confessaram ter sentido um intenso pavor da gigantesca e indescritvelcriatura avistada quase no fim. Um caso, que a anotao descreve com nfase foi muito triste. O

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    indivduo, um arquiteto muito conhecido, com propenses para a teosofia e o ocultismo, tornou-seum louco furioso na data do acesso do jovem Wilcox e expirou alguns meses mais tarde depois degritar incessantemente para ser salvo de algum invasor fugido do inferno. Se meu tio tivesseorganizado esses casos por nome em vez de nmeros, eu poderia tentar confirm-los e fazeralgumas investigaes pessoais, mas do jeito como as coisas se deram, s consegui localizar alguns.Desses, porm, confirmei as anotaes por completo. Muitas vezes me perguntei se todos os objetos

    das inquisies do professor ficaram to perplexos quanto esses poucos. bom que no lhes cheguenenhuma explicao.Os recortes da imprensa, como sugeri, abordavam casos de pnico, mania e excentricidades

    durante o perodo em questo. O Professor Angell deve ter-se valido de um servio especial, poisera imenso o nmero de recortes de fontes espalhadas por todo o Globo. Aqui, um suicdio noturnoem Londres; algum que dormia sozinho havia saltado pela janela depois de lanar um gritoassustador. Ali, uma carta delirante ao editor de um jornal da Amrica do Sul, onde um fanticodeduz um futuro ttrico de vises que tivera. Um despacho da Califrnia descreve uma colnia deteosofistas distribuindo mantos brancos em massa par algum acontecimento glorioso que nuncachega, enquanto notcias da ndia falam com reservas de srias rebelies de nativos no final demaro. Orgias de vodu multiplicam-se no Haiti e postos avanados na frica registram murmrios

    ominosos. Funcionrios americanos nas Filipinas sentem que algumas tribos esto inquietas naqueleperodo, e policiais de Nova York so atacados por levantinos histricos na noite de 22 para 23 demaro. Na regio oeste da Irlanda, tambm, correm abundantes rumores e lendas fabulosos, e umpintor de temas fantsticos, Ardois-Bonnot, expe uma blasfema Paisagem Onrica no salo deprimavera de Paris de 1926. E so to numerosos os distrbios registrados em asilos de loucos ques um milagre poderia Ter impedido a comunidade mdica de observar os estranhos paralelismos etirar concluses enganosas. No todo, um espantoso mao de recortes e at hoje mal consigoentender o calejado racionalismo que me fez deix-los de lado. Mas eu estava convencido ento deque o jovem Wilcox tinha conhecimentos dos assuntos mais antigos mencionados pelo professor.

    II. A narrativa do Inspetor Legrasse

    Os assuntos antigos que tornavam o sonho e o baixo-relevo do escultor to significativospara meu tio constituam o tema da segunda metade de seu extenso manuscrito. Ao que parece, oprofessor Angell j tinha visto a silhueta infernal da monstruosidade sem nome, j se tinha intrigadocom os misteriosos hierglifos e ouvido as slabas aziagas que s podem ser representadas porCthulhu, e isso tudo associado de maneira to excitante e terrvel que no causa espanto que eletenha o jovem Wilcox com perguntas e solicitaes de dados.

    A experincia anterior tinha ocorrido em 1908, dezessete anos antes, quando a SociedadeAntropolgica Americana realizara seu encontro anual em Saint Louis. O professor Angell, comoconvinha a algum com sua autoridade e suas realizaes, teve um papel destacado em todas as

    deliberaes, e foi um dos primeiros a ser abordado por diversos leigos que aproveitaram aconvocao para formular perguntas querendo respostas corretas e problemas para uma soluoespecializada.

    O principal desses leigos, e, dentro em pouco, o centro de interesse de todos os participantes,era um homem de meia idade e aparncia comum que tinha vindo de Nova Orleans atrs deinformaes especiais impossveis de obter junto a alguma fonte local. Chamava-se John RaymonLegrasse e era, de profisso, inspetor de polcia. Trouxera consigo o motivo de sua visita, umaestatueta de pedra, grotesca, repulsiva e ao que tudo indica muito antiga, cuja origem noconseguira determinar. No se deve supor que o Inspetor Legrasse tivesse o menor interesse emarqueologia. Ao contrrio, seu desejo de esclarecimento era movido por consideraes estritamenteprofissionais. A estatueta, dolo, fetiche, ou seja l o que fosse, fora capturada alguns meses antes

    nos pntanos arborizados ao sul de Nova Orleans, durante uma batida a uma suposta reunio vodu,e os ritos a ela associados eram to extraordinrios e repulsivos que a polcia no pde deixar deconcluir que tinha topado com um culto demonaco totalmente desconhecido e muito mais diablico

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    do que os mais tenebrosos crculos de vodu africanos. Sobre a sua origem, afora as histriasdesencontradas e inacreditveis extradas dos praticantes capturados, no se haveria de descobrirabsolutamente nada, o que explicava a ansiedade da polcia por qualquer sabedoria arcaica que aajudasse a situar o pavoroso smbolo e, atravs dele, a reconstituir a origem do culto.

    O Inspetor Legrasse no estava preparado para a sensao que seu oferecimento provocou.Bastou uma vista ao objeto para colocar os homens de cincia em estado de tensa excitao, e sem

    demora eles de aglomeraram ao seu redor para examinar a diminuta figura cuja absoluta estranhezae aparncia de antigidade abissal sugeriam poderosamente panoramas arcaicos e fechados.Nenhuma escola de escultura identificvel havia inspirado o terrvel objeto, mas, entretanto,centenas, milhares de anos, talvez, pareciam gravados na superfcie turva e esverdeada da pedrainclassificvel.

    A estatueta, que foi sendo passada com vagar de mo em mo para um estudo maiscuidadoso, tinha sete a oito polegadas de altura e um acabamento artstico raro. Representava ummonstro de perfil meio antropide, mas com uma cabea de polvo com um amontoado de tentculospor face e um corpo coberto de escamas aparentemente elstico, garras prodigiosas nas patasdianteiras e traseiras, e asas longas e estreitas nas costas. A coisa, que parecia animada de umamalignidade terrvel e apavorante, tinha o corpo um tanto estufado e estava acocorada num pedestal,

    ou bloco retangular, com inscries indecifrveis. As pontas das asas tocavam na borda escura dobloco, o traseiro ocupava o centro, enquanto as garras longas e curvas das patas traseiras dobradasagarravam a borda frontal e se prolongavam at um quarto da distncia at a base do pedestal. Acabea cefalpode estava curvada para a frente de tal forma que as pontas dos tentculos faciaisraspavam nos dorsos das patas dianteiras que se apoiavam nos joelhos erguidos da figuraacocorada. Ela dava uma impresso geral de estar viva, e era ainda mais assustadora por sua origemser to absolutamente desconhecida. Sua antigidade imensa, espantosa e incalculvel era inegvel,embora ela no revelasse qualquer ligao com algum tipo de arte da aurora da civilizao ou,mesmo, de alguma outra era. Em contrapartida, o prprio material de que era feita constitua ummistrio, pois a pedra lisa preto-esverdeada com suas listras ou estrias douradas ou iridescentes nose assemelhava a nada que a geologia ou a mineralogia conhecessem. As inscries ao longo dabase eram tambm intrigantes e nenhum dos presentes, apesar de ali se encontrar a metade doconhecimento especializado do mundo nesse campo, conseguiu formar a menor idia nem mesmode sua mais remota filiao lingstica. Assim como a figura e o material, elas pertenciam a algoterrivelmente antigo e distinto da humanidade tal como a conhecemos, algo que sugeria com pavorciclos de vida remotos e profanos, alheios a nosso mundo e a nossas concepes.

    Contudo, enquanto os membros abanavam com seriedade as cabeas e confessavam suaderrota em face do problema apresentado pelo inspetor, uma pessoa naquela reunio presumiu umtrao de estranha familiaridade na forma monstruosa e na inscrio e contou, com certa modstia,uma curiosidade de seu conhecimento. Tratava-se do hoje falecido William Channing Webb,professor de antropologia da Universidade de Princeton e conhecido explorador. O professor Webb

    participara, quarenta e oito anos antes, de uma expedio Groenlndia e Islndia em busca decertas inscries rnicas que no conseguiu descobrir, e na costa da Groenlndia Ocidental haviaencontrado uma tribo ou culto singular de esquims degenerados cuja religio, uma curiosa formade adorao ao diabo, o havia estarrecido por seu carter deliberado cruel e repulsivo. A f erapouco conhecida dos outros esquims e eles s a mencionavam entre arrepios, dizendo que tinhasurgido em pocas terrivelmente primitivas, antes mesmo do mundo existir. Alm de ritosindescritveis e sacrifcios humanos, ela inclua certos rituais hereditrios fantsticos devotados aum demnio ancestral supremo ou tornasuk, e o professor Webb havia conseguido uma cuidadosatranscrio fontica deste de um velho mago-sacerdote ou angekok, expressando os sons emcaracteres romanos da melhor maneira que pde. Mas no momento, tinha um significado todoespecial o fetiche que esse culto adorava e ao redor do qual os praticantes danavam enquanto a

    aurora boreal luzia por cima dos penhascos de gelo. Era, pontificou o professor, um baixo-relevoem pedra muito tosco exibindo uma figura repulsiva e algumas inscries misteriosas. At onde ele

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    saberia dizer, tratava-se de um similar tosco, em todos os traos, em todos os traos essenciais, doobjeto bestial pousado, naquele momento, diante daquela assemblia.

    Essas informaes, recebidas com espanto e admirao pelos membros ali reunidos,mostraram-se empolgantes em dobro para o inspetor Legrasse, e ele na hora assediou o informantede perguntas. Tendo anotado e transcrito um ritual oral dos adoradores do pntano que seus homenshaviam detido, pediu ao professor que se lembrasse o melhor possvel das slabas anotadas entre os

    esquims satanistas. Seguiu-se uma exaustiva comparao de detalhes e um momento de respeitososilncio quando ambos, investigador e cientista, concordaram sobre a identidade virtual da frasecomum aos dois rituais satnicos separados por mundos de distncia. O que, em essncia, tanto osfeiticeiros esquims como os sacerdotes do pntano da Louisiana tinham entoado para susvenerados dolos era algo assim sendo a diviso de palavras inferidas das quebras normais dafrase quando entoada em voz alta:

    Phnglui mglw nafh Cthulhu Ryleh wgahnagl fhtagn.

    Legrasse estava um passo frente do professor Webb, pois vrios de seus prisioneirosmestios tinham repetido pare ele o que os celebrantes mais velhos lhes tinham dito sobre o

    significado das palavras. Esse texto dizia algo assim:

    Em sua morada em Ryleh o morto Cthulhu espera sonhando.

    Ento, atendendo a um pedido geral e insistente, o inspetor Legrasse contou, da forma maiscompleta possvel, sua experincia com os adoradores do pntano, contado uma histria a que,como pude observar, meu tio atribuiu um significado profundo. Ela sugeria os mais alucinadossonhos dos criadores de mitos e teosofistas, e revelava um espantoso grau de imaginao csmicaem mestios e prias.

    Em 1 de novembro de 1907, a polcia de Nova Orleans recebera um chamado frentico daregio lacustre e pantanosa ao sul. Os posseiros da regio, em sua maioria descendentes primitivosmas de boa ndole dos homens de Lafitte6, estavam tomados de mais absoluto pavor por uma coisadesconhecida que se aproximara furtivamente deles durante a noite. Parecia vodu, mas vodu de umtipo mais terrvel do que todos que conheciam, e algumas mulheres e crianas tinham desaparecidodesde que o tant malfico comeara seu batimento incessante no corao dos bosques escuros eassombrados onde ningum se aventura. Havia gritos insanos e uivos angustiados, cantos dearrepiar a alma e chamas diablicas danantes, e, prosseguiu o assustado mensageiro, as pessoas napodiam mais suportar.

    Assim, um corpo de vinte policiais que lotava dois veculos e um automvel partiu aoentardecer, levando o trmulo posseiro como guia. No final da estrada transitvel eles apearam echapinharam muitas milhas em silncio pelos terrveis bosques de ciprestes onde o dia no

    penetrava. Razes pavorosas e festes pendentes e malignos de musgo espanhol os cercavam e, devez em quando, um amontoado de pedras midas ou fragmentos de alguma parede apodrecidaintensificavam, com sua sugesto de moradia mrbida, o sentimento de depresso que cada rvoreretorcida e cada ilhota musgosa se combinavam para produzir. Finalmente despontou o povoado deposseiros, um amontoado de casebres miserveis, e moradores histricos vieram correndoaglomerar-se em volta do grupo de lanternas balouantes. A batida surda dos tambores era agorapouco audvel ao longe, muito ao longe, e um uivo horripilante chegava em intervalos irregularesquando o vento mudava. Um claro avermelhado parecia filtrar atravs da plida vegetao rasteiraalm das interminveis avenidas de escurido florestal. Mesmo relutando em se deixados mais umavez a ss, os amedrontados posseiros recusaram-se a avanar uma polegada na direo do cultoprofano, e o inspetor Legrasse e seus dezenove colegas tiveram que seguir em frente sem guia pelas

    negras arcadas de horror que nenhum deles jamais percorrera.6 La Fayette, Marqus de (1757-1834), lder militar e poltico francs, lutou no bando dos rebeldes das colnias durantea guerra da Independncia Americana. (Nota de Transcrio)

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    A regio invadida pela polcia tinha m reputao e era geralmente desconhecida e nofreqentada por homens brancos. Corriam lendas de um lago oculto, jamais vislumbrado por olhosmortais, habitado por uma coisa poliposa branca e informe, com olhos luminosos, e os posseirossussurravam que demnios com asas de morcego saam voando de cavernas nas entranhas da terrapara ador-la meia-noite Eles diziam que a criatura j estava ali antes de DIberville7, antes de LaSalle8, antes dos ndios, e antes mesmo dos animais e pssaros so dos bosques. Era o prprio

    pesadelo e v-la significava a morte, mas ela fazia os homens sonharem e assim eles sabiam obastante para se manter distncia. A orgia de vodu acontecia, de fato, na fmbria s da zonaabominvel, mas aquele local era ruim o bastante, da, porque, talvez o prprio local da adoraoaterrorizasse os posseiros mais do que os pavorosos sons e incidentes.

    Somente a poesia ou a loucura poderiam fazer justia aos barulhos escutados pelos homensde Legrasse enquanto abriam cainho pelo pntano tenebroso na direo do claro vermelho e dotant abafado. H caractersticas vocais tpicas dos homens, e caractersticas vocais tpicas das feras,e terrvel ouvir uma quando a fonte devia indicar a outra. A fria animal e a libertinagemorgistica atingiram ali alturas demonacas com uivos e guinchos extticos que cortavam,reverberando o bosque sombrio como tempestades pestilenciais das profundas do inferno. De vezem quando, a gritaria desordenada cessava, destacando-se o que parecia um coro bem ensaiado de

    vozes roucas entoando compasssadamente aquela frase ou ritual hediondo:

    Phnglui mglw nafh Cthulhu Ryleh wgahnagl fhtagn.

    Atingindo um ponto onde o arvoredo era menos denso, os homens toparam de repente com aviso do prprio espetculo. Quatro deles cambalearam, um desmaiou e dois foram sacudidos porum pranto convulsivo que a furiosa cacofonia do festim felizmente abafou. Legrassse aspergiu guado pntano no rosto do desmaiado e todos ficaram paralisados, tremendo, quase hipnotizados pelohorror.

    Numa clareira natural do pntano havia uma ilha relvada e sem rvores, com um acre deextenso, talvez, e em certa medida seca. Sobre ela saltitava e se contorcia uma horda de

    anormalidade humana to indescritvel que s um Sime ou Angarola9 poderiam descrever.Desprovida de roupas, aquela prole hbrida zurrava, urrava e se contorcia em volta de um anel defogo cujo centro, revelado por aberturas ocasionais da cortina de chamas, era ocupado por umgrande monolito branco com quase oito ps de altura, sobre o qual repousava, parecendoincongruente por sua pequena dimenso, a prfida estatueta cinzelada. De um amplo crculoformado por dez patbulos dispostos em intervalos regulares, tendo monlito branco rodeado dechamas como centro, pendiam, de cabea para baixo, os corpos terrivelmente desfigurados dosinfortunados posseiros desaparecidos. Era no interior desse crculo que a roda de adoradores saltavae rugia, movendo-se da esquerda para a direita num Bacanal interminvel entre o anel de corpo e oanel de fogo.

    Pode ter sido apenas imaginao e podem ter sido apenas os ecos a induzir um dos homens,um espanhol impressionvel, a imaginar ter ouvido reposta antifnicas ao ritual de algum pontodistante e escuro das profundezas do bosque de antiga lenda e horror. Esses homem, Joseph D.Galvez, eu encontrei e interroguei mais tarde, e ele se mostrou espantosamente imaginativo,chegando a sugerir um tnue bater de grandes asas e o vislumbre de olhos brilhantes e de umenorme vulto branco alm das rvores mais distantes mas imagino que tenha ouvido muitassupersties nativas.

    7 Iberville, sieur d' (Pierre Le Moyne) (1661-1706), explorador famoso e um dos fundadores da Louisiana. (Nota deTranscrio)8 La Salle, Ren-Robert Cavelier (1643-1687), explorador francs famoso pela descoberta de um vale, o qual viria a sera atual Louisiana, em homenagem ao rei Lus XIV. (Nota de Transcrio)9 Sidney Herbert Sime (1867-1945), ilustrador admirado por Lovecraft; Anthony Angarola (1893-1929), ilustrador norteamericano de livros.

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    A paralisia de pavor dos homens, na verdade, durou pouco. O dever logo se imps e mesmohavendo por ali perto uma centena de mestios celebrantes, a polcia confiou em suas armas e caiu,com determinao, em cima da turba repugnante. Durante cinco minutos, o alvoroo e o caosresultantes foram indescritveis. Golpes terrveis, tiros e fugas, mas no final Legrasse pde contarcerca de quarenta e sete prisioneiros sombrios que foram obrigados a se vestir s pressas e sealinhar entre duas filas de policiais. Cinco adoradores estavam mortos, e dois gravemente feridos

    foram levados em macas improvisadas por seus colegas presos. A estatueta sobre o monlito foiretirada com cuidado, claro, e trazida por Legrasse.Inquiridos na delegacia depois de uma jornada de tenso e cansao intensos, os prisioneiros

    revelaram-se todos homens de um tipo de mestiagem muito inferior e mentalmente aberrante.Eram marinheiros, em sua maioria, e um punhado de negros e mulatos, sobretudos caribenhos ouportugueses de Brava nas ilhas de Cabo Verde, dava um toque de vodusmo ao culto heterogneo.Mas no foi preciso muita inquisio para ficar evidente que havia algo muito mais profundo e maisantigo d que o fetichismo negro. Degradadas e ignorantes como eram, as criaturas defendiam, comsurpreendente consistncia, a idia central de sua abominvel f.

    Eles adoravam, assim disseram, os Grandes Antigos que viveram muitas eras antes deexistirem os homens, e que tinha vindo do cu para o mundo jovem. Esses Antigos j tinham

    partido, para o interior da Terra e o fundo do mar, mas seus corpos mortos tinham revelado seussegredos em sonhos aos primeiros homens, que criaram um culto que jamais deixara de existir.Aquilo que praticavam era esse culto, e segundo os prisioneiros ele sempre existira e sempreexistiria, escondido em desertos remotos e lugares sombrios espalhados pelo mundo at o dia emque o grande sacerdote Cthulhu, saindo de sua ttrica morada na imponente cidade submarina deRyleh, emergeria e colocaria a Terra novamente sob seu jugo. Algum dia ele conclamaria, quandoas estrelas estivessem preparadas, e o culto secreto estaria pronto para libert-lo.

    At l, nada mais deveria ser dito. Havia um segredo que nem a tortura poderia extrair. Ahumanidade no era de modo algum a nica das coisas conscientes da Terra, pois emergiam vultoda escurido para visitar os poucos fiis. Mas esses no eram os Grandes Antigos. Nenhum homem

    jamais vira os Antigos. O dolo cinzelado era o grande Cthulhu, mas ningum saberia dizer se osoutros era exatamente iguais a ele. Ningum conseguira ler a antiga inscrio, mas as coisas eramtransmitidas de boca em boca. O ritual entoado no era o segredo esse jamais era dito em vozalta, apenas sussurrado. O canto significava apenas isto: Em sua morada em Ryleh, o mortoCthulhu espera sonhando.

    Somente dois dos prisioneiros foram considerados sos o bastante para a forca e o resto foiconfiado a vrias instituies. Todos negaram que a matana tinha sido feita pelos Alados Negrosque tinha vindo at eles de seu imemorial ponto de encontro no bosque assombrado. Mas daquelesaliados misteriosos, no se pde jamais obter um relato coerente. O grosso do que a polciaconseguiu extrair veio de um mestizo muito velho chamado Castro, que alegava ter navegado emportos estranhos e conversado com lderes imortais do culto nas montanhas da China.

    O velho Castro recordou fragmentos da odiosa lenda que fizeram empalidecer asespeculaes dos teosofistas e faziam o homem e o mundo parecerem recentes e transitrios.Durante muitas eras, outras Criaturas governaram a Terra, e Elas tinham construdo grandescidades. Restos Delas, segundo lhe disseram os chineses imortais, ainda poderiam ser encontradoscomo pedras ciclpicas em ilhas do Pacfico. Elas todas tinham desaparecido vastas eras antes doshomens chegarem, mas certas artes poderiam reviv-las quando as estrelas girassem novamentepara as posies certas no ciclo da eternidade. Elas prprias, na verdade, tinham vindo das estrelas,e trazido Suas imagens Consigo.

    Os Grandes Antigos, prosseguiu Castro, no eram totalmente de carne e sangue. Tinhamforma pois no o prova essa estatueta estrelada? mas essa forma no era feita de matria.Quando as estrelas estivessem posicionadas, Eles podiam saltar de mundo para mundo cu afora,

    mas quando as estrelas estavam na posio errada, no podiam viver. Mas embora no vivessemmais, Eles jamais podiam realmente morrer. Jaziam em casas de pedra em Sua grande cidade deRyleh, preservados pelos feitios do poderoso Cthulhu para uma gloriosa ressurreio quando as

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    estrelas e a Terra estivessem mais uma vez prontas para Eles. Mas a essa altura, alguma foraexterior teria de agir para libertar Seus corpos. Os encantamentos que Os mantinham intatostambm Os impediam de dar o passo inicial, e Eles s podiam ficar deitados, despertos, no escuro, epensar, enquanto incontveis milhes de anos transcorriam. Sabiam tudo que se passava nouniverso, mas se comunicavam por transmisso de pensamentos. Mesmo agora Eles conversavamem Seus tmulos. Quando, depois de infinidades de caos, surgiram os primeiros homens, os

    Grandes Antigos falaram aos mais sensveis deles, moldando seus sonhos, pois s assim Sualinguagem conseguia atingir as mentes carnais dos mamferos.Ento, sussurrou Castro, aqueles primeiros homens criaram o culto em torno de pequenos

    dolos que os Grandes lhes mostraram, dolos trazidos de estrelas escuras para zonas sombrias. Esseculto no morreria jamais at que as estrelas estivessem de novo em posio e os sacerdotessecretos tirassem o grande Cthulhu de Sua sepultura para reanimar Seus sditos e recuperar Seudomnio sobre a Terra. O momento seria fcil reconhecer pois a humanidade se teria tornado entocomo os Grandes Antigos, livre, selvagem, e alm do bem e do mal, com as leis e oscomportamentos morais deixados de lado, e todos os homens, em jbilo, gritando matando efestejando. Os Antigos libertadores lhes ensinariam ento novas maneiras de gritar, matar, festejar,se divertir, e toda a Terra arderia num holocausto de xtase e liberdade. At l, o culto, atravs de

    ritos apropriados, devia manter viva a memria daqueles costumes ancestrais e transmitirsecretamente a profecia de sua volta.

    Outrora, nos tempos idos, homens escolhidos tinham conversado com os sepultados Antigosem sonhos, mas alguma coisa acontecera ento. A grande cidade de pedra de Ryleh, com seusmonlitos e sepulcros, tinha afundado debaixo das ondas e as guas profundas, cheias do mistrioprimordial no qual nem mesmo o pensamento pode penetrar, tinham interrompido o intercmbioespectral. Mas a memria nunca morria, e sumos sacerdotes diziam que a cidade se ergueria denovo quando as estrelas se posicionassem. Depois sairiam do cho, mofados e ttricos, os espritosnegros da Terra, e cercados de rumores sombrios ocuparam cavernas por baixo dos leitosesquecidos dos mares. Mas o velho Castro no ousou falar muito deles. Calou-se bruscamente e nohouve persuaso ou sutilezas que pudessem elucidar mais nessa direo. O tamanho dos Antigos,tambm, o que curioso, ele no quis mencionar. Sobre o culto, disse que seu ncleo devia estar nocentro dos desertos intransitveis da Arbia, onde Irem, a Cidade dos Pilares, sonha oculta eintocada. Ele no tinha qualquer relao com o culto das bruxas europeu, e era virtualmentedesconhecido entre seus membros. Nenhum livro jamais se referira de fato a ele, embora, segundoos imortais chineses, houvesse um duplo significado no Necronomicon10do rabe louco AbdulAlhazred que os iniciados poderiam ler quando quisessem, especialmente no muito discutidodstico:

    Pois no h morto que fique em repouso eterno,

    E com imensa idade, poder finar-se a morte.

    Legrasse, muitssimo impressionado e no menos perplexo, tinha interrogado em vo sobreas filiaes histricas do culto. Castro, ao que parece, falara a verdade ao dizer que ele eraabsolutamente secreto. As autoridades da Universidade de Tulane no puderam lanar luz nemsobre o culto, nem sobre a imagem, e o investigador tinha procurado as mais altas autoridades dopas, obtendo apenas a histria da Groenlndia do professor Webb.

    O interesse febril provocado pelo relato de Legrasse ao encontro, corroborado como era pelaestatueta, repetiu-se na correspondncia subseqente dos participantes, embora s apaream

    10 Livro mstico imaginrio criado por Lovecraft. Neste grimrio desconhecido estariam guardados segredos sobre osAntigos e prticas mgicas. Em A Histria do Necronomicon, o autor nos fala, inclusive com mais detalhes, sobre

    cidade dos pilares de Irem, citada anteriormente e de cpias secretas do livro preservadas at hoje. importante dizerque este livro nunca existiu, e Lovecraft apenas se referia a ele nunca criando uma verso do livro, inclusive verses dolivro que no faltam na Internet algumas at ridculas associando Lovecraft ao famoso ocultista A. Crowley e outrasbesteiras mais. (Nota de Transcrio)

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    menes esparsas a ele nas publicaes formais da sociedade. A cautela o primeiro cuidado dosque se acostumam a enfrentar o charlatanismo e a impostura. Legrasse emprestou a imagem poralgum tempo ao professor Webb, mas quando este morreu, ela lhe foi devolvida e permanece emsua posse, onde eu a vi no faz muito tempo. , de fato, uma coisa terrvel, e estinconfundivelmente relacionada com a escultura de sonho do jovem Wilcox.

    No me espanta que meu tio ficasse excitado com a histria do escultor, pois o que poderia

    pensar ao saber, conhecendo o que Legrasse havia apurado sobre o culto, de um jovem sensvel quetinha sonhado no s com a figura e os hierglifos exatos da imagem encontrada no pntano e databuleta diablica da Groenlndia, mas chegara em seus sonhos a pelo menos trs das palavrasexatas da frmula pronunciada por satanistas esquims e mestios da Louisiana? O prontoempreendimento de uma investigao de extrema eficcia pelo professor Angell era perfeitamentenatural, embora eu suspeitasse que o jovem Wilcox tinha tomado conhecimento do culto por algumcanal indireto, e tinha inventado uma seqncia de sonhos para aumentar e prolongar o mistrio scustas do meu tio. As narrativas de sonhos e os recortes colecionados pelo professor eram, porcerto, uma prova poderosa, mas minha vocao racionalista e a extravagncia do assunto todolevaram-me a adotar o que considerei as concluses mais sensatas. Assim, depois de estudarcuidadosamente o manuscrito de novo e comparar as anotaes teosficas e antropolgicas com a

    narrativa sobre o culto de Legrasse, fiz uma viagem Providence para encontrar o escultor ecensur-lo, como achava que merecia, por se impor de maneira to atrevida a um homem culto eidoso.

    Wilcox ainda morava sozinho no Edifcio Fleur-de-Lys da Thomas Street, uma pavorosaimitao vitoriana da arquitetura Breton do sculo XVII que pavoneia sua fachada de estuque emmeio s adorveis casas coloniais da antiga colina e sombra do mais belo campanrio da Amrica.Encontrei. Encontrei-o a trabalhar em seus aposentos, e deduzi, imediatamente, pelos modelosespalhados por ali, que seu gnio era mesmo profundo e autntico. Algum dia, acredito, ele serconhecido como um grande decadentista, pois conseguiu cristalizar em argila a algum dia espelharem mrmore aqueles pesadelos e fantasias que Arthur Machen11 evoca em prosa e Clark AshtonSmith12 exibe em versos e pinturas.

    Frgil, soturno e um tanto desleixado, virou-se languidamente minha batida perguntou-me,sem se levantar, o que eu queria. Quando lhe contei quem eu era, mostrou algum interesse, pis meutio havia excitado sua curiosidade ao investigar seus sonhos bizarros, mesmo sem nunca explicar asrazes de seu estudo. Eu no ampliei seus conhecimentos a esse respeito, mas tentei, com algumasutileza, interess-lo. Em pouco tempo, convenci-me de sua absoluta sinceridade, pois ele falou dossonhos de uma maneira que no deixava dvidas. Os sonhos e seu resduo subconsciente tiveramprofunda influncia em sua arte, e ele me mostrou uma esttua cujos contornos me fizeramestremecer com a perversidade que sugeria. No se lembrava de ter visto o original da coisa excetono baixo-relevo sonhado, mas as linhas foram insensivelmente tomando forma em suas mos. Era,sem dvida, a forma gigante que ele tinha expressado em seu delrio. Logo ficou claro que ele no

    sabia nada sobre o culto secreto afora o que a sabatina implacvel de meu tio deixara escapar, emais uma vez tentei imaginar alguma maneira pela qual ele pudesse ter recebido as pavorosasimpresses.

    Ele falou de seus sonhos de uma maneira curiosamente potica, fazendo-me ver, comterrvel nitidez, a mida cidade ciclpica de pedras verdes escorregadias cuja geometria,comentou casualmente, era toda errada e ouvir, em suspensa expectativa, o incessante e quasemental chamado das profundezas: Cthulhu fhtagn, Cthulhu fhtagn. Essas palavras eram emparte do terrvel ritual que falava da viglia em sonho do falecido Cthulhu em sua cripta de pedra emRyleh, e fiquei profundamente comovido a despeito de minhas crenas racionais. Wilcox, comcerteza, ouvira falar do culto de maneira casual e logo se esquecera dele em meio profuso de

    11 Machen, Arthur (1863-1947), escritor ingls de renome que abordava temas sobrenaturais, admirado por Lovecraft.(Nota de Transcrio)12 Smith, Clark Ashton (1893-1961), escritor e artista plstico que alm de amigo de Lovecraft era admirado por ele.(Nota de Transcrio)

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    leituras e fantasias tambm excntricas. Mais tarde, sendo muito impressionvel, aquilo tinhaencontrado expresso subconsciente em sonhos, no baixo-relevo e na terrvel esttua que eu agoratinha diante de mim, de forma que sua imposio sobre meu tio tinha sido muito inocente. O jovemera de um tipo um tanto afetado e um tanto rude ao mesmo tempo, de que eu jamais poderia gostar,mas eu j me sentia inclinado a admitir seu gnio e sua honestidade. Despedi-me amistosamente,desejando-lhe todo o sucesso que seu talento promete.

    A questo do culto continuava a me fascinar, e s vezes eu tinha vislumbres de glriapessoal com as pesquisas sobre sua origem e suas conexes. Visitei Nova Orleans, conversei comLegrasse e outros participantes daquela antiga batida policial, vi o dolo assustador e cheguei ainquirir os prisioneiros mestios sobreviventes. O velho Castro, infelizmente, morrera h algunsanos. O que ouvi de forma to vvida de primeira mo, conquanto apenas confirmasse em detalhes oque meu tio tinha escrito, animou-me de novo, pois me parecia estar na pista de uma religio muitoreal, muito secreta e muito antiga cuja descoberta faria de um antroplogo ilustre. Minha atitudeainda era toda materialista, tomara ainda fosse, e desconsiderei com perversidade quaseinexplicvel a coincidncia entre as anotaes dos sonhos e os curiosos recortes colecionados peloprofessor Angell.

    Uma coisa de que comecei a suspeitar, e que agora temo saber, que a morte de meu tio no

    fora natural. Ele cara numa rua enladeirada e estreita que levava a um antigo cais coalhado demestios estrangeiros, depois do esbarro involuntrio de um marinheiro negro. Eu no meesquecera do sangue misto e das atividades marinhas dos membros do culto em Louisiana, e no mesurpreendia ficar sabendo de mtodos secretos e agulhas envenenadas to implacveis e toancestralmente conhecidas quando os ritos e crenas eram secretos. Legrasse e seus homens, verdade, no tinham sido afetados, mas na Noruega, um certo marinheiro que vira cosas est morto.As investigaes mais profundas de meu tio depois de obter os dados do escultor no poderiam terchegado a ouvidos sinistros? Creio que o professor Angell morreu porque sabia demais, ou porque,provavelmente, viria a saber demais. Resta saber se irei como ele se foi, pois tambm sei muitoagora.

    III. A loucura vinda do mar

    Se o cu algum dia quisesse conceder-me uma beno, esta seria apagar de todo os efeitosdo acaso que fez meus olhos se fixarem num pedao de papel que forrava uma prateleira. No eraalgo com que eu me teria deparado naturalmente em minhas ocupaes dirias, pois se tratava deum nmero velho de um jornal australiano, o Sydney Bulletin, de 18 de abril de 1925. Ele tinhaescapado inclusive firma de distribuio de recortes que, por ocasio de sua edio, vinhacoletando material para a pesquisa de meu tio.

    Minhas investigaes sobre o que o professor Angell chamava de Culto de Cthulhuestavam quase paradas e eu estava de visita a um amigo erudito em Paterson, Nova Jersey, curador

    de um museu local e mineralogista de renome. Examinando, certo dia, o espcimes de reservaespalhados nas prateleiras de uma sala de fundo do museu, meu olhar foi atrado por uma curiosailustrao num dos velhos jornais estendidos embaixo das pedras. Tratava-se do Sydney Bulletinque mencionei, pois meu amigo tinha amplas relaes no exterior, e a ilustrao era uma autotipiarecortada de uma repulsiva imagem de pedra quase idntica que Legrasse tinha encontrado opntano.

    Retirei, impaciente, as peas preciosas de cima da folha de jornal e examineiminuciosamente a matria, despontando-me com o pouco que dizia. O que ela sugeria, porm, teveprofundas repercusses em minha busca periclitante e recordei com todo cuidado para tomarmedidas imediatas. Ela dizia o seguinte:

    MISTERIOSO NAVIO PERDIDO ENCONTRADO NO MARVigilant chega rebocando iate neozelands armado e abandonado.

    Encontrados um sobrevivente e um morto a bordo.

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    Histria de batalha desesperada e mortes no mar.

    Marinheiro resgatado omite detalhes sobre a estranha experincia.

    Encontrado dolo estranho em sua posse. Investigaes prosseguem.

    O cargueiro Vigilantda Morrison Co., com destino a Valparaso, chegou esta manh a suadoca no Porto de Darling, rebocando o iate a vapor Alert, combatido e inutilizado mas fortemente

    armado, de Dunedin, Nova Zelndia, que foi avistado no dia 12 de abril em 34 21 de Latitude S. e152 17 de Longitude O. com um homem vivo e um morto a bordo.O Vigilantdeixou Valparaso em 25 de maro, e no dia 2 de abril foi impelido muito ao sul

    de sua rota por tempestades excepcionalmente violentas e ondas monstruosas. Em 12 de abril, onavio abandonado foi visto, e embora parecesse estar deserto, depois de abordado verificou-se queabrigava um sobrevivente em condies quase delirantes e um homem que, com certeza, estavamorto havia mais de uma semana. O vivo estava agarrado a um horrvel dolo de pedra de origemdesconhecida, com cerca de trinta centmetros de altura, sobre cuja natureza autoridades daUniversidade de Sydney, da Royal Society e do Museu da College Street professaram totalperplexidade, e que o sobrevivente fiz ter encontrado na cabine do iate, num pequeno escrniocinzelado de tipo comum.

    Esse homem, depois de recobrar os sentidos, contou uma histria muito estranha de piratariae chacina. Trata-se de Gustaf Johansen, um noruegus de alguma inteligncia, e que fora ocontramestre da escuna Emma, de Auckland, que zarpou para Callao com uma tripulao de onzehomens em 20 de fevereiro. AEmma, dizia ele, foi retardada e empurrada com toda fora para o sulde sua rota pela grande tormenta de 1 de maro, e em 22 de maro, estando em 49 51 de LatitudeS. e 128 34 de Longitude O. encontrou Alert, manejado por uma tripulao estranha e mal-encarada de canacas e mestios. Ordenado peremptoriamente a voltar, o capito Collins se recusou,diante do que a estranha tripulao comeou a atirar com selvageria e sem aviso na escuna com abateria pesada de canhes de bronze que equipava o iate. Os homens daEmma travaram luta, contao sobrevivente, e embora a escuna comeasse a afundar com os tiros recebidos abaixo da linhadgua, eles conseguiram emparelhar o barco com o inimigo e abord-lo, enfrentando a tripulaoselvagem no convs do iate, e sendo forados a matar todos, cujo nmero era um pouco superior,devido ao modo particularmente abominvel e desesperado, ainda que canhestro, com que eleslutavam.

    Trs homens da Emma, inclusive o capito Collins e o imediato Green, foram mortos, e osoito restantes, comandados pelo contramestre Johansen trataram de manobrar o iate capturado,seguindo em seu curso original para ver se existia alguma razo para a ordem de voltar. No diaseguinte, ao que parece, eles desembarcaram numa pequena ilha, embora no soubesse da existnciade nenhuma ilha naquela parte do oceano, e seis dos homens morreram, de alguma forma, em terra,embora Johansen seja curiosamente reticente sobre essa parte de sua histria e fale apenas de elesterem cado numa fenda da rocha. Mais tarde, ao que parece, ele e um companheiro subiram a bordo

    do iate e tentaram manobr-lo, mas foram fustigados pela tempestade de 2 de abril. Daquelemomento at seu resgate no dia 12, o homem pouco se recorda, e nem mesmo se lembra de quandoWilliam Briden, seu companheiro, morreu. No h evidncias visveis da causa da morte de Briden,e provvel que se tenha dado perturbao mental ou desproteo. Informaes telegrficas deDunedin relatam que oAlertera bem conhecido ali como um barco mercante na ilha, e possua umapssima reputao em todo o cais. Pertencia a um estranho grupo de mestios cujas reuniesfreqentes e incurses noturnas aos bosques atraam grande curiosidade, e tinha zarpado comgrande pressa pouco depois da tempestade e dos tremores de terra de 1 de maro. Nossocorrespondente de Auckland confere uma excelente reputao Emma e a sua tripulao, eJohansen descrito como homem sbrio e valoroso. O almirantado vai abrir um inqurito sobre oassunto todo a partir de amanh, e todos os esforos sero enviados para induzir Johansen a falar

    mais fracamente do que tem feito at agora.

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    Isso era tudo, alm da imagem da estatueta infernal, mas que associao de idiasdesencadeou em minha mente! Ali estavam novas e preciosas informaes sobre o Culto deCthulhu, e evidncias de que ele guardava estranhas relaes com o mar, assim com a terra. O queteria levado a tripulao mestia a ordenar que a Emma retornasse enquanto seguiram em frentecom seu hediondo dolo? O que seria a ilha desconhecida onde seis homens da Emma tinhammorrido, e sobre a qual o imediato Johansen era to reticente? O que a investigao do vice-

    almirantado teria apurado e o que se saberia do abominvel culto em Dunedin? E o mais admirvel,que relao profunda e sobrenatural de datas era aquela que emprestava um significado malignoagora inegvel s diversas viravoltas dos acontecimentos to cuidadosamente anotadas por meu tio?

    Em 1 de maro nosso 28 de fevereiro segundo a linha internacional da data vieram oterremoto e a tempestade. De Dunedin, oAlerte sua deletria tripulao tinha partido a toda pressacomo se fossem imperiosamente convocados, e no outro lado da Terra, poetas e artistas tinhamcomeado a sonhar com uma estranha cidade ciclpica e mida, enquanto o jovem escultor tinhamodelado, durante o sono, a forma do temvel Cthulhu. Em 23 de maro, a tripulao da Emmadesembarcou numa ilha desconhecida onde deixou seis mortos; e naquela mesma data, os sonhos dehomens sensveis assumiram uma vivacidade acentuada, obscureceram de pavor da perseguiomaligna de um monstro gigantesco, enquanto um arquiteto enlouquecia e um escultor mergulhava

    no delrio! E quanto a essa tempestade de 2 de abril a data em que todos os sonhos com a cidademida cessaram e Wilcox escapou ileso do jugo de estranha febre? O que pensar disso tudo e dassugestes do velho Castro sobre os Antigos de origem estelar submersos e o advento de seu reinado,seu culto religioso e seu domnio sobre os sonhos? Estaria eu cambaleando beira de horrorescsmicos que a capacidade humana seria incapaz de suportar? Se assim fosse, deviam ser apenashorrores mentais, pois, de algum modo, o dois de abril dra um fim qualquer ameaa monstruosaque tivesse comeado seu assdio alma da humanidade.

    Naquela noite, depois de um dia de arranjos e telegramas apressados, despedi-me de meuhospedeiro e tomei um trem para San Francisco. Em menos de um ms, eu estava em Dunedin,onde descobri, porm, que pouco se sabia dos estranhos membros do culto que tinham perambuladopelas velhas tavernas do cais. A escria das docas era comum demais para merecer alguma menoespecial, embora corressem vagos rumores sobre uma viagem ao interior feita por aqueles mestiosdurante a qual se notaram um longnquo rufar de tambores e chamas vermelhas nos morrosdistantes. Em Auckland, fiquei sabendo que Johansen tinha voltado com os cabelos lourosembranquecidos depois de uma inquisio perfunctria e inconclusiva em Sydney, e depois dissovendera sua casinha na West Street e navegara com a mulher para sua velha casa em Oslo. Sobre asua estarrecedora experincia, ele no diria aos amigos mais do que dissera aos funcionrios doalmirantado, e tudo que eles puderam fazer foi dar-me seu endereo em Oslo.

    Depois disso, fui a Sydney e conversei com marinheiros e membros do tribunal do vice-almirantado, mas foi em vo. Vi o Alert, agora vendido e em uso comercial, no Cais Circular emSydney Cove, mas de nada me serviu sua aparncia vulgar. A estatueta agachada com sua cabea de

    choco, corpo de drago, asas escamadas e pedestal hierglifo, estava guardada no Museu do ParqueHyde. Eu a estudei atentamente, achando-a de um artesanato muito raro, contendo o mesmoabsoluto mistrio, terrvel antiguidade e sinistra estranheza de material que eu tinha notado noexemplar menor de Lagrasse. Os gelogos, contou-me o curador, a tinha considerado um grandemistrio, pois juravam que no havia no mundo uma pedra daquele tipo. Estremecendo, pensei noque o velho Castro tinha dito a Lagrasse sobre os Grandes primitivos: Eles vieram das estrelas etrouxeram Suas imagens consigo.

    Abalado por uma revoluo mental como jamais conhecera, resolvi visitar o contramestreJohansen em Oslo. Navegando at Londres, tornei a embarcar em seguida para a capital da Noruegaonde desembarquei, num certo dia de outono, nas docas bem cuidadas sombra de Egeberg13. Oendereo de Johansen, conforme verifiquei, ficava na Cidade Velha do Rei Harold Haardrada, que

    mantivera vivo o nome de Oslo durante os sculos em que a cidade maior se disfarara de

    13 Bergen, cidade martima e porturia do sudoeste da Noruega. (Nota de Transcrio)

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    Christiana.14 Fiz o breve percurso de txi com o corao palpitando, na porta de um velho e bemcuidado edifcio com a frente rebocada. Uma mulher de rosto melanclico, de preto, atendeu,causando-me profunda frustrao ao me contar, num ingls vacilante, que Gustaf Johansen j noexistia.

    No sobrevivera a seu retorno, contou-me a esposa, pois os acontecimentos ao mar, em1925, tinham acabado com ele. Ele no tinha contado esposa nada alm do que dissera em

    pblico, mas tinha deixado um longo manuscrito sobre assuntos tcnicos como dizia escritoem ingls, evidentemente para proteg-la do risco de uma leitura casual. Caminhando por umaestreita viela perto do cais de Gotemburgo, fora atingido e derrubado por um fardo de papel cadode uma janela de sto. Dois marinheiros indianos ajudaram-no prontamente a se levantar, masantes que a ambulncia chegasse, ele estava morto. Os mdicos no encontraram nenhuma causaapropriada para o seu falecimento e atriburam a problemas cardacos e constituio debilitada.

    Sentia agora corroer-me as entranhas aquele terror hediondo que jamais me abandonar atque eu tambm fique em repouso, por acidente ou de alguma outra forma. Persuadindo a viva deque minha conexo com os assuntos tcnicos de seu marido me intitulava a ficar com omanuscrito, levei o documento e comecei sua leitura no navio para Londres. Era uma coisasimplria, desconexa o esforo de um marinheiro ingnuo num dirio a posteriori e

    procurava recordar, dia a dia, aquela ltima e terrvel viagem. No posso tentar transcrev-loliteralmente em toda sua nebulosidade e redundncia, mas reproduzirei o bastante de seu contedopara mostrar por que o som da gua contra os costados do navio se tornou de tal forma insuportvelpara mim que tapei os ouvidos com algodo.

    Johansen, graas a Deus, no sabia tudo, apesar de ter visto a cidade e a Coisa, mas eu jamais dormirei tranqilo enquanto pensar nos horrores que espreitam sem parar por trs daexistncia no tempo e no espao, e naquelas blasfmias profanas de estrelas primitivas que sonhamno fundo do mar, conhecidas e veneradas por um culto de pesadelo pronto e vido para solt-las nomundo sempre que algum terremoto suspender sua monstruosa cidade de pedra novamente at o sole o ar.

    A viagem de Johansen tinha comeado tal como ele contou ao vice-almirantado. A Emma,navegando com lastro, fizera-se ao mar em Auckland, em 20 de fevereiro, e tinha sido atingida emcheio por aquela tempestade provocada pelo terremoto que devia ter desprendido, do fundo do mar,os horrores que povoam os sonhos humanos. De novo sob controle, a embarcao avanava em boamarcha quando foi atacada pelo Alert, em 22 de maro, e pude sentir o desgosto do imediatoenquanto descrevia seu bombardeio e afundamento. Aos fanticos mestios do Alert, ele se referecom perceptvel horror. Eles tinham alguma coisa especialmente abominvel que parecia quase umdever destru-los, e Johansen manifesta um espanto ingnuo com a acusao de impiedade feita aseu grupo durante o inqurito judicial. Depois, impelidos pela curiosidade, seguiram em frente noiate capturado sob o comando de Johansen e avistaram uma grande coluna de pedra se projetandopara cima da superfcie do mar, e em 47 9 de Latitude S. e 126 43 de Longitude O. chegaram a

    um litoral combinando lodo, limo e construes de alvenaria ciclpica coberta de ervas daninhasque outra coisa no poderia ser seno a substncia tangvel do supremo horror sobre a Terra apavorosa cidade-defunta de Ryleh, construda em eras imemoriais anteriores Histria pelasformas imensas e malignas que se infiltraram das estrelas sombrias. Ali jaziam o poderoso Cthulhue suas hordas, ocultos em criptas verdes, enlameadas, e expedindo, enfim, depois de ciclostemporais incalculveis, os pensamentos que espalhavam o terror nos sonhos de pessoas sensveis econvocavam imperiosamente os fiis a uma romaria de libertao e restaurao. Disso tudo nosuspeitava Johansen, mas Deus sabe que ele logo veria o suficiente.

    Imagino que um nico topo de montanha, a hedionda cidadela encimada por monlito sobrea qual o grande Cthulhu estava enterrado, emergiu mesmo das guas. Quando penso na extenso detudo que pode estar germinando naquele lugar, tenho vontade de me matar. Johansen e seus homens

    14 Oslo foi fundada por Harold III da Noruega por volta de 1050. Destruda em 1624 por um incndio, Christian IV areconstruiu batizando-a de Cristiania em sua homenagem. Assim foi at 1925, quando recuperou seu nome histrico.(Nota de Transcrio)

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    contradies to grandes de matria, fora e ordem csmica. Uma montanha caminhado ou searrastando. Deus! No espanta que, por toda a Terra, um grande arquiteto enlouquecesse e o pobreWilcox delirasse de febre naquele instante teleptico! A Coisa dos dolos, a cria verde e gosmentavinda das estrelas, tinha despertado para reclamar o que era seu. As estrelas estavam posicionadasuma vez mais e o que um culto ancestral no tinha conseguido deliberadamente, um grupo deinocentes marinheiros tinha obtido por acidente. Aps eras incontveis, o poderoso Cthulhu estava

    livre outra vez, e vido de prazer.Trs homens foram varridos pelas patas balofas antes de algum poder virar-se. Quedesansem em paz, se algum repouso existir no universo. Era eles Donovan, Guerrera e CngstromParker. Parker escorregou enquanto os outros trs mergulhavam freneticamente em paisagensinterminveis de rocha incrustada de verde para o barco, e Johansen jura que ele foi engolido porum ngulo de parede que no deveria estar ali, um ngulo que era agudo mas se comportava com sefosse obtuso. Assim, s Briden e Johansen conseguiram alcanar o barco e remaram desesperadospara o Alertenquanto a monstruosidade montanhosa se deixava cair pesadamente sobre as rochasescorregadias, at parar, hesitante, beira do mar.

    O vapor do navio no estava totalmente extinto, apesar da ida de todos os braos para apraia, e alguns minutos de correria febril de um lado para outro entre a roda do leme e as mquinas

    foi o que bastou para colocar o Alert em movimento. Devagar, em meio aos horrores distorcidosdaquela paisagem indescritvel, ele comeou a agitar as guas letais, enquanto sobre a estrutura depedra daquela praia espectral que no era da Terra, a Coisa titnica das estrelas babava eresmungava como Polifemo maldizendo o navio em fuga de Ulisses15. Em seguida, mais audaciosodo que os clebres Ciclopes, o poderoso Cthulhu deslizou viscosamente para a gua e saiu emperseguio do navio com braadas de uma potncia csmica e to imensas que chegavam a fomarondas na superfcie do mar. Briden olhou para trs e enlouqueceu, rindo histericamente, e assimseguiu rindo, com intervalos, at que a morte o encontrou, certa noite, na cabine, enquanto Johansenperambulava delirante pelo navio.

    Mas Johansen ainda no tinha desistido. Sabendo que a Coisa certamente alcanaria oAlertantes que o navio navegasse a pleno vapor, resolveu fazer uma tentativa desesperada e ajustando amquina para plena velocidade, correu como um raio para o convs e inverteu o leme. Formou-seum portentoso turbilho de espuma no abominvel oceano, e enquanto a presso do vapor iaaumentando, e aumentando, o bravo noruegus dirigia a proa da embarcao para o caadorgelatinoso que se erguia acima da espuma imunda com a proa de um galeo infernal. A pavorosacabea de lula com tentculos retorcidos j estava quase alcanando o gurups do robusto iate, masimplacvel, Johansen avanava. Houve um rudo de bexiga estourando, uma sujeira gosmenta depeixe-lula rasgado, um fedor como se um milhar de sepulturas fossem abertas e um som que ocronista no conseguiu pr no papel. Por um instante, o navio ficou coberto por uma nuvem verde,acre e cegante, e depois restou apenas um fervilhar venenoso a r, onde Deus! a massaplstica dispersa daquela inominvel criatura celeste ia vagamente recompondo sua odiosa forma

    original, enquanto se alargava a distncia que a separava, a cada segundo, do Alertque ganhavampeto com a presso crescente do vapor.Isso foi tudo. Em seguida, Johansen apenas meditou sobre o dolo na cabine e cuidou da

    comida para si e para o manaco risonho ao seu lado. Ele no tentou navegar depois da primeira ecorajosa fuga, pois o contra-ataque tinha extrado algo de sua energia. Depois veio a tormenta de 2de abril e sua conscincia se anuviou. H uma sensao de vertigem espectral por abismos lquidosdo infinito, de corridas alucinadas por universos instveis montado numa cauda de cometa, e desaltos histricos do poo lua e da lua novamente ao poo, tudo animado por um coro cachinante

    15 Ulisses, nome latino de Odisseu, na mitologia grega, governador da ilha de taca e um dos chefes do exrcito gregodurante a guerra de Tria. (Nota de Transcrio)

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    dos corrompidos, hilrios deuses antigos e dos zombeteiros duendes verdes com asas de morcegodo Trtaro.16

    Fora daquele sonho, veio a salvao o Vigilant, o tribunal do vice-almirantado, as ruas deDunedin e a longa viagem de volta para a velha casa sombra de Egeberg. Ele no poderia contar eles o achariam louco. Escreveria tudo que sabia antes da morte chegar, mas sua esposa nodevia suspeitar. A morte seria uma bno se ao menos pudesse apagar as lembranas.

    Esse foi o documento que li e coloquei agora na caixa de estanho ao lado do baixo-relevo edos papis do professor Angell. Com ele ir esse meu registro esse teste de minha prpria atitudemental, em que se reconstituiu aquele que eu espero que jamais se reconstitua de novo. Considereitudo de que o universo dispe para conter o horror, e mesmo os cus de primavera e as flores devero sero, para sempre, veneno para mim. Mas no creio que minha vida dure muito. Assim comomeu tio se foi, como o pobre Johansen se foi, eu irei. Sei demais, e o culto ainda vive.

    Cthulhu ainda vive, tambm, imagino, naquele abismo de pedra que o abrigou desde que osol era jovem. Sua maldita cidade est novamente submersa, pois o Vigilant navegou at o localdepois da tormenta de abril, mas seus agentes em terra ainda urram, cabriolam e matam em torno demonlitos coroado por dolos em locais desertos. Ele dever ter sido apanhado pelo afundamentoenquanto estava dentro de seu abismo negro, seno o mundo estaria agora gritando de pavor e

    loucura. Quem conhecer o fim? Aquilo que emergiu pode afundar, e o que afundou pode emergir.A repugnncia espera e sonha nas profundezas, e a podrido se espalha sobre as precrias cidadesdos homens. Chegar um momento... mas no devo e no posso pensar! Deixem-me rezar para que,se no sobreviver a este manuscrito, meus executores testamentrios coloquem a cautela a frente daaudcia e cuidem que ele no chegue a outros olhos.

    16 Trtaro, na mitologia grega, a regio mais baixa dos infernos. Segundo Hesodo e Virglio, o Trtaro fechado porportas de ferro e est to abaixo do mundo subterrneo de Hades quanto a terra est em relao ao cu. (Nota deTranscrio)