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11 INTRODUÇÃO Nesta tese são apresentadas 6 partes para um estudo do livro Primeiras estórias, de João Guimarães Rosa. A primeira parte, intitulada O CICLO DAS ESTÓRIAS ROSIANAS, apresenta a relação entre a linguagem, o dizer do narrar e as estórias rosianas, tão presente no livro e fundamental para o pensamento rosiano. A segunda parte, denominada TEMPO E SER, A RESPOSTA HUMANA, apresenta a relação entre o ser e tempo nos contos rosianos. Essa relação torna-se importante para que se perceba que o tempo do ser não é cronológico ou fatual. A terceira parte, chamada A ÉTICA E A MORADA EM PRIMEIRAS ESTÓRIAS, trata sobre a questão da ética e da morada no sertão rosiano. Torna-se importante por suscitar que a ética é morada, assim como, a linguagem é a casa do ser. A quarta parte, intitulada AMOR E PROCURA, CURA ROSIANA, traz o amor como elemento constituinte da narrativa e como questão rosiana. As personagens, das mais diferentes idades, possuem no amor a procura e a cura. A quinta parte, denominada NAS MARGENS DA LOUCURA E DO REAL DAS ESTÓRIAS ROSIANAS, apresenta a relação entre o real e a loucura insurgida no sertão rosiano. A sexta parte, chamada O VIGORAR EXTRAORDINÁRIO E A MORTE, coloca em questão a morte experienciada em algumas estórias da obra rosiana. As estórias rosianas manifestam-se desde a linguagem. A abertura da linguagem consoante o sertão rosiano fomentam o dizer do narrar, da estória inaugural que se instaura mediante o operar da linguagem, presentificando o sertão. As estórias rosianas se dão com o apelo da linguagem que se doa doando-as. O ciclo é incessante, pois o dizer do narrar não apresenta finitude nem pode ser capturado em uma instância e em uma medida.

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INTRODUÇÃO

Nesta tese são apresentadas 6 partes para um estudo do livro Primeiras estórias,

de João Guimarães Rosa. A primeira parte, intitulada O CICLO DAS ESTÓRIAS

ROSIANAS, apresenta a relação entre a linguagem, o dizer do narrar e as estórias

rosianas, tão presente no livro e fundamental para o pensamento rosiano. A segunda

parte, denominada TEMPO E SER, A RESPOSTA HUMANA, apresenta a relação

entre o ser e tempo nos contos rosianos. Essa relação torna-se importante para que se

perceba que o tempo do ser não é cronológico ou fatual. A terceira parte, chamada A

ÉTICA E A MORADA EM PRIMEIRAS ESTÓRIAS, trata sobre a questão da ética e

da morada no sertão rosiano. Torna-se importante por suscitar que a ética é morada,

assim como, a linguagem é a casa do ser.

A quarta parte, intitulada AMOR E PROCURA, CURA ROSIANA, traz o

amor como elemento constituinte da narrativa e como questão rosiana. As personagens,

das mais diferentes idades, possuem no amor a procura e a cura. A quinta parte,

denominada NAS MARGENS DA LOUCURA E DO REAL DAS ESTÓRIAS

ROSIANAS, apresenta a relação entre o real e a loucura insurgida no sertão rosiano. A

sexta parte, chamada O VIGORAR EXTRAORDINÁRIO E A MORTE, coloca em

questão a morte experienciada em algumas estórias da obra rosiana.

As estórias rosianas manifestam-se desde a linguagem. A abertura da linguagem

consoante o sertão rosiano fomentam o dizer do narrar, da estória inaugural que se

instaura mediante o operar da linguagem, presentificando o sertão. As estórias rosianas

se dão com o apelo da linguagem que se doa doando-as. O ciclo é incessante, pois o

dizer do narrar não apresenta finitude nem pode ser capturado em uma instância e em

uma medida.

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O dizer das estórias é inaugural por presentificar a linguagem em doação e em

experienciação do sertão, de modo que as primeiras estórias são originais. Não se quer

dizer que as estórias são oriundas de um começo arquetípico comum, mas, trata-se de

considerá-las instauradoras e manifestadoras da linguagem dialogando com o Real,

instaurando o sertão e as estórias.

As estórias suscitam questões que não podem ser reduzidas ao enredo. Por ser

linguagem, cada conto é singular e plural. Não se trata da diferenciação do enredo, mas,

da instauração do dizer do narrar que se faz presença em cada um dos contos. A

personagens experienciam o sertão rosiano e se manifestam diante a abertura da

linguagem que fomenta o dizer, o mostrar do narrar. Vela-se, desvela-se e revela-se

cada estória no incessante vigorar da plenitude e consumação da narrativa.

O diálogo entre o tempo e o ser se dá originalmente nas estórias rosianas com as

personagens infantis e anciãs. Tanto a criança quanto o idoso. Eles não estão relegados

da vivificação do real nem escamoteados da experienciação que cada um pode fazer do

real, da linguagem, do sertão e da estória. São personagens dotados de

inaugurabilidade, presentes no desmedido agir do sertão, manifestadores do próprio de

cada um, e culminantes em plenitude de si.

O tempo cronológico não cerceia o personagem rosiano, pois, a limitação da

existência não decorre da faixa etária, de mesmo modo, que não há predileção por uma

fase da vida nas estórias rosianas. As personagens caminham pelas veredas do velar-se,

revelar-se e desvelar-se. O velamento, o desvelamento e a revelação são partícipes do

ser. A plenitude do ser é a consumação do próprio de cada um. Todas as personagens

rosianas não são restringidas às considerações cronológicas nem às fatuais. A amplitude

em que estão inseridas é o aberto da linguagem, do dizer do narrar que plenifica a cada

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uma delas, sem ater-se para a semelhança ou diferença, mas, sim, para a unidade que

fomenta o mostrar-se e o dizer-se próprio de cada um narrado pelas estórias.

E o próprio de cada um permeia a ética. Esta não deve ser remetida às

concepções moralizadoras do fazer humano nem às estipulações de atitudes impostas

por uma relação entre a ordem crescente ou decrescente de hierarquia. A ética deve

promover o diálogo formado pela harmonia do próprio de cada um articulado. No sertão

rosiano, as personagens sertanejas deambulam pelo ético e agem pela ausculta do

próprio de si.

A ética é reunião harmonizadora do próprio eclodido em cada um. Reunir a

diferença torna-a fulcral por possibilitar o diálogo e o fomento do velar, revelar-se,

desvelar-se que diz, mostra e silencia a cada um. As personagens rosianas compartilham

o sertão em sua unidade integradora do auscultar, auscultar-se, dizer e dizer-se. A ética

não pode ser resumida às ações esperadas e solicitadas, mas ao diálogo instaurador do

incessante brotar da linguagem na ausculta de si e do entredito com o outro. As

personagens são acometidas pela ética a fim de manifestarem a reunião entre si e o

outro.

Lançar-se a si e lançar-se ao outro pertencem ao amor. Este pode ser fruto de

assaz procura e pode ser colocado como a cura. Há personagens rosianas que têm no

amor a cura da procura. No entanto, não se trata de anulação do próprio referente a cada

um de si, mas se trata da harmonia instauradora que potencializa o diálogo integrador e

o manifestar-se no sertão. Portanto, não é requerido o apagamento do eu em detrimento

de um tu, nem o apagamento do tu em detrimento de um eu. Há a harmonia dialógica da

diferença e da unidade da experiência e da manifestação.

Entre a procura e a cura, o amor integra a existência, pois, para amar é

necessário ir de encontro à abertura do real, e, no presente caso, ao sertão. A intenção de

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formar paradigmas para a união dos casais é colocado em questão nas estórias, já que

nunca a estória repete a outra, seja do ponto de vista da estrutura, seja no ponto de vista

do enredo. Ir ao aberto requer ausculta do próprio e da procura o pôr-se em diálogo. O

amor ressurge da ausculta instauradora do diálogo que presentifica a manifestação de

cada um ao dizer-se e mostrar-se.

Para dizer-se e para mostrar-se a loucura manifesta-se. Ir além dos limites tênues

e adentrar a abertura do real são o caminho que a loucura envereda. Não se trata de

mencioná-la com o viés negativo e pejorativo, remetendo-a a imparcial visão do ponto

de vista, já que ela reivindica também, em si, a abertura do ser, do auscultar do próprio

de cada um, ultrapassando a qualquer consideração tida como imposição. Saber-se,

conhecer-se e auscultar-se são acontecimentos que dotam a experiência e a vivificação

para o humano e manifestam o próprio oriundo do ser de cada um.

A loucura não deve ser vista como prerrogativa para o isolamento. Tampouco

deve ser vista como instância a ser compartilhada. Deve ser vista como o manifestar do

próprio que ultrapassa as margens, manifestando-o em singularidade e em origem

vivificadora de mostrar-se a si. O elemento lógico aparece na loucura, mas esta vai além

das amarras lógicas, pois o pulsar de si, da descoberta de si, é maior do que qualquer

encadeamento racional.

A morte é uma questão também rosiana. Não há respostas prontas para essa

grande questão, mas as estórias dizem-na e mostram-na. A presentificação da morte se

dá com a plenitude de si. As personagens morrem mas não falecem, no sentido de partir,

mas sem perder o vigor. A manifestação de cada um é singular e a morte nunca é igual

para todos, já que cada um leva em si a sua questão dela. A instauração do próprio não

se perde com a morte, já que há o diálogo intercessor que harmoniza, reúne e

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compartilha a existência e o próprio de cada um. Versar sobre a morte é ir ao encontro

de uma das questões essenciais.

Desse modo, não se pode fugir das questões que se colocam e se dinamizam

diante do próprio de cada um. Tampouco se pode limitá-las a um parecer ou a um

encadeamento lógico, permitindo a perda do dizer-se, mostrar-se e conhecer-se. Não se

trata também de uma tomada de posição, mas do vigorar da experiência e da vivificação

no sertão. A morte não é uma barreira para a presença, nem é o fim do próprio de cada

um, já que há a memória, por exemplo.

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CAPÍTULO 1

O CICLO DAS ESTÓRIAS ROSIANAS

A linguagem diz-se no homem e as palavras nomeiam-se no narrar. A doação da

linguagem instaura a língua enquanto sentido. Para a linguagem converge tudo o que se

mundifica no dizer inaugural. Este se presentifica em Primeiras estórias, de João

Guimarães Rosa, onde as estórias rosianas são dizeres inaugurais na instauração da

linguagem.

As palavras são o narrar que articula a experienciação e o experienciável na

linguagem. A tessitura do narrar é profusão da linguagem. As palavras dizem, assim

como o silêncio. O não-dito faz-se presença na linguagem. As histórias inauguram o

narrar com o dizer primordial cuja presença se dá como a linguagem.

A inaugurabilidade da linguagem não é marco existencial nem espólio da

narrativa. Tampouco é projeção das palavras. É o dizer que instaura e mundifica. As

estórias são veredas, ou seja, estão na linguagem, são linguagem, para além de qualquer

limitação limítrofe e clauseante. São abertura para e na linguagem.

Diante do apelo da linguagem, a narrativa instaura-se nas veredas rosianas. A

simples remissão das palavras ao código lingüístico torna-se irrisória perante a profusão

de sentidos da linguagem presente nas narrativas. O sentido das palavras vai além da

forma imposta contida nelas. Ele ultrapassa o cabedal meramente lingüístico para

articular o poético. A linguagem é o poético no agir incessante que traz consigo o

silêncio. O silêncio que fala, poeticamente, diz.

O dizer é o apelo da linguagem. As palavras carregam a imersão no silêncio da

narrativa. Na mundividência narrativa, as palavras são sentidos, entre eles, silêncio. A

relação entre ambos se dá pela linguagem. Não há dicotomia, mas, sim, a plena

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consumação de ambos no agir da linguagem. Tampouco há relação dependente, eles são

o dizer e dizer-se no próprio. O silêncio se diz ao mostrar-se linguagem. Ele instaura-se

ao mundificar-se vigentemente. O silêncio diz. O sentido instaurado é linguagem.

A linguagem diz. O dizer da linguagem é o dizer primordial, inaugural, primevo,

instaurador, mundificador e originário. O dizer das estórias rosianas é doação da

linguagem instauradora. Aquelas se apresentam no vigorar da linguagem. O empenho

das estórias é o dizer. Este é a linguagem em seu mostrar-se e dizer-se. Ele é mais do

que um indicar ou deixar aparecer, é a mundividência da linguagem, a inaugurabilidade

do dizer. A mundividência das estórias rosianas é o dizer da linguagem em profusão.

Estória é diferente de história, do factual. É o narrar do dizer. É a linguagem

presentificando-se. A presentificação da linguagem é o narrar do dizer inaugural. A

instauração do dizer é abertura à escuta da linguagem, imergir no narrar que diz por

todos os lados e no silêncio. O essencial é abrir-se à escuta da linguagem. As narrativas

são presentificações da linguagem, do narrar que se mostra e mostra o dizer

mundificador.

As estórias narram experienciações. Estas se tornam narráveis graças à

linguagem que as mostra, delega-lhes sentidos e mundifica-se na originalidade do dizer

inaugural, do narrar primordial que é fazer presente o dizer e tornar presença a

linguagem. O narrar é o mostrar da linguagem. O indicar que não é incidente, nem

acidente, mas o mostrar reivindicador do velamento e desvelamento da linguagem.

Desse agir, o narrar abre-se ao poético.

Poeticamente, o narrar é conjuntura da linguagem. As estórias são, portanto, o

mostrar-se da linguagem na mundividência instaurada pelo dizer inaugural. Elas não são

projeções, mas a própria doação da linguagem enquanto doadora de sentido. Os sentidos

são o agir do dizer em seu velamento e desvelamento. Esta dinâmica não pode ser

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contemplada em sua totalidade, mas possui sua plenitude. Ao adentrar-se na estória, em

sua linguagem original, consuma-se plenamente o dizer.

O caminho para a estória é a vereda da linguagem. Onde a língua é mais do que

um código linguístico, mais do que um significado abstrato e mais do que um tecido

emaranhado racional e lógico. São nas veredas da linguagem que as estórias rosianas

transitam, de modo que o agir da linguagem não pode ser cerceado por fórmulas ou por

classificações, mas, sim, experienciado. Esta experienciação dá-se na linguagem, a

quem estiver aberto à escuta do dizer no narrar.

Primeiras estórias são contos de experienciações desde a linguagem. A

articulação dos contos mostra uma pluralidade de mundividência do dizer do narrar. As

estórias são plurais, frutos da originalidade vivificante da linguagem, que mostra nas

narrativas a pluralidade do sertão rosiano no agir poético do dizer do narrar.

Presentificar-se na linguagem requer consonância com o narrar do dizer e com a

experienciação da linguagem. Nas estórias rosianas, o sentido da linguagem deambula

pelas veredas do sertão mundividente, em seu agir incessante no narrar do dizer

inaugural doador de sentido.

Vivifica-se a linguagem mundificando-se nas estórias do narrar inaugural, do

dizer original, das primeiras estórias. A instauração do sertão rosiano é a linguagem em

profusão, no agir incessante e no silêncio. As palavras do narrar doam sentido às

estórias. São mais do que um depósito arbitrário imutável. Elas mundificam-se, pela

linguagem, mundificando. São moventes como as veredas. Não servem como

sinalizadoras da linguagem, mas, sim, são instauradoras do real.

O real é o agir poético. No agir poético, a linguagem mundifica e o real instaura-

se. O real é plural, multividente, também, incessante agir. É, inclusive, o sertão rosiano,

com toda sua mundividência. As estórias, igualmente, são o real. A doação do real, no

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narrar, mundifica o dizer, isto é, instaura tempo-espaço. Nas narrativas, as palavras,

isoladamente, não mundificam nada, muito menos doam sentidos, mas, sim, quando são

o dizer inaugural da linguagem em doação do agir poético.

As primeiras estórias preconizam o narrar ao enredo. Portanto, o essencial não se

remete à sinopse ou caracterizações e personagens, mas, ao experienciar a linguagem. O

empenho técnico presente no narrar, de modo algum, anula, suplanta, resume,

menoscaba o vigor poético do dizer do narrar. A técnica narrativa empregada, em toda

sua genialidade, em Primeiras estórias, não pode ser articulada maniqueistamente para

servir como pretexto e finalidade de caminho para enveredar-se nestas veredas originais.

Deve-se abrir à fenda oriunda da linguagem e por onde saem as estórias com o dizer

inaugural. Pois, as estórias são a própria linguagem enquanto instauração do agir

movente que não condiz às formas estabelecidas ou pré-estabelecidas.

Portanto, as estórias rosianas possuem como essência a linguagem e não

qualquer veículo, técnica, meio marcador de estilística ou enredo. Elas tampouco são

projeções arquetípicas, mas, o próprio real. Cada estória possui sua mundividência

própria que está em consonância com as demais. A pluralidade do real é, de fato, o agir

incessante, com as possibilidades infinitas da linguagem. As estórias, desse modo, são

essencialmente linguagem e ininterruptamente real. Assim, as experienciações do real

são o desmedido das estórias no narrar do dizer.

Desmedida é a linguagem que impossibilita sua apreensão por um viés

mecanicista. Há de adentrar-se na linguagem, nas veredas das estórias primeiras, abertos

ao real e ao seu dizer. Em Primeiras estórias, as profusões dos contos indicam a

vastidão do sertão rosiano. Desse modo, os contos dizem a linguagem e a cada um de si,

e ao todo, sem perda ou acréscimos de adjetivações e substantivações, contudo, com as

experienciações e a linguagem.

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Portanto, todas as estórias são o narrar do dizer. São elas, perspectivamente: “As

margens da alegria”, “Famigerado”, “Sorôco, sua mãe, sua filha”, “A menina de lá”,

“Os irmãos Dagobé”, “A terceira margem do rio”, “Pirlimpsiquice”, “Nenhum,

nenhuma”, “Fatalidade”, “Seqüência”, “O espelho”, “Nada e a nossa condição”, “O

cavalo que bebia cerveja”, “Um moço muito branco”, “Luas-de-mel”, “Partida do audaz

navegante”, “A benfazeja”, “Darandina”, “Subst ncia”, “ Tarantão, meu patrão” e “Os

cimos”. A particularidade de cada estória não anula o conjunto harmônico do todo em

um dizer inaugural que é a linguagem.

Se, para a linguagem, converge todo dizer e dela emanam todos os sentidos, o

narrar é inaugurabilidade da linguagem no agir do real. Para tanto, o narrar não condiz à

manifestação sintomática, nem às ações advinatórias, muito menos à aparição

misteriosa. Tampouco o narrar é projeção da linguagem. Ele é o próprio dizer da

linguagem, em plenificação. O narrar comporta o dizer e o silêncio. Do dizer, as

palavras pronunciam o que ele mostra e o sentido vigora na amplitude do narrar. O

silêncio diz e doa sentido. O eco do silêncio é solicitude da linguagem. A margem do

narrar é abertura da linguagem. Nesta, o narrar é liberdade criadora da linguagem, sem

amarras nem empecilhos. A operabilidade do narrar é imersão na linguagem.

O nomear do dizer é presentificação da linguagem. O nomeado é o mostrar do

dizer. Aquilo que é dito é nomeado, é feito sentido na linguagem. Na impoluta margem,

a linguagem é doação do nomear. Nomear é dar sentido, é tornar presente a linguagem.

O agir do nomear não deve ser resumido aos nomes próprios ou de personagens, ou

outras substantivações quaisquer, mas, sim, ao que rompe na linguagem enquanto agir

instaurador do dizer do narrar na mundividência do real. O nomear não abarca todo o

real, assim como, não abarca toda a linguagem. Desse modo, é impossível depreender a

totalidade do que seja a linguagem e o real através do nomear. Posto que o nomear não

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pode resumir a linguagem e o real, porque ambos possuem no agir incessante sua

essência de mundificadores, no sentido que instauram mundo, pessoas e narrativas.

Nomear é sentido original, inaugurabilidade da linguagem, oferta do narrar em

seu dizer primordial. Ele traz à tona, não o objetivo ou a subjetividade inerentes à

relação cingida do simulacro, mas, traz a potencialidade inauguradora de sentidos do

dizer primeiro, do narrar primeiro, do contar primeiro, da linguagem mundificadora e do

real mundificador. As palavras estão na linguagem enquanto frutos do dizer e o silêncio

está no agir da linguagem que nomeia o ser.

Nomear é trazer à presença. O narrado é narrável, incessantemente, na

linguagem. O conhecido, o próprio, o dizer é o narrar. Na narrativa não há coincidências

ou magia, e, sim, a linguagem, doadora do dizer, do silêncio, de si. Ao nomear, está-se

no âmbito da linguagem, de permanecer no real e dialogar com as palavras. O real é a

linguagem mundificando-se, instaurando-se na originalidade do agir incessante que é a

plenitude da imanência e da mudança. O operar do velamento e do desvelamento é o

agir da linguagem no narrar. A narrativa não é a fusão entre ambos, nem a cisão. É o

agir do real, o operar da linguagem, no dizer que diz e no dizer que silencia. As palavras

carregam consigo a possibilidade do dizer e a do silenciar.

O narrar é consonância harmônica do dizer, como inauguração de tempo-espaço.

Dizer é reunir. Reunião que apela para o dizer, para o mostrar da linguagem na narrativa

tecida pelo narrar. Diz-se o dizer e diz o narrar. O diálogo do dizer com o mostrar

emana o próprio. A tarefa de diálogo nunca é penosa, no entanto, instaurar o próprio

requer transitar pela abertura da linguagem. Essa abertura não é sempre presença, não é

sempre audível, não é sempre visível. A tríade da percepção fugaz pode ser tanto

simulacro e não ser ofertório da plenitude linguagem. A abertura é a luminosidade

operante de sentidos e de silêncio. O silêncio brilha no narrar. Brilho da imanência do

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silenciar. Para onde o silêncio se instaura, a linguagem opera. Os sentidos dialogam no

narrar. Na comunhão entre sentidos, a linguagem se presentifica em possibilidades. O

real é linguagem, agir mundificado, instaurado originalmente.

As palavras dizem para além do que se encontra cerceado pela dicotomia do

signo. Assim, o dizer da linguagem é abundância de sentidos, conforme se mostra ao

mostrar-se e mostrar o narrar. A linguagem ultrapassa qualquer barreira imposta pelo

entendimento. Ela é a abertura do real, para onde convergem os sentidos, o silêncio, o

dizer. Nela tudo é reunião. Incessantes diálogos mundificam a linguagem no narrar. Esta

não é um ente, nisso reside a impossibilidade de sua coisificação. Portanto, a linguagem

não possui visibilidade, funcionalidade, finalidade, formalidade, entidade,

conformidade, objetividade ou subjetividade. É passível de erro, atribuir-lhe

fundamentos, posto que a originalidade permeia-lhe ao mundificar sua mundividência

original, instauradora de sentidos, do dizer, do narrar, do mostrar, do fazer-se presença

inaugural.

As estórias são primeiras, ou seja, são inaugurabilidades originais da linguagem.

Em profusão, a linguagem é o agir incessante, de modo que as estórias são a pujança

inesgotável da linguagem. Elas são o narrar. Nas narrativas, o dizer é a abertura da

linguagem, fissura por onde o mostrar do dizer é agir criador e não indicador ou

indiciador de ruptura. As estórias são presentificações da linguagem, da experiência e

das experienciações do narrar no real e na linguagem. O real, como mundividência da

linguagem, é obra mundificada. Contudo, a linguagem não é uma mera construção, um

mero constructo, própria ou do dizer, é o poético desde o pulsar originário à

mundificação das estórias. A linguagem compreende o real, pois, o real mundificado é a

mundividência da linguagem. As estórias são, portanto, o diálogo inesgotável entre a

linguagem e o real.

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As estórias são plenitude do narrar. Esta não requer um percurso lógico entre o

começo, meio e fim. O enredo tampouco é preponderante para a plenitude do narrar em

cada estória. A plenitude do narrar dá-se na linguagem enquanto presença do dizer que

mostra a experienciação da linguagem mundificada e mundificante. O ápice do enredo

do conto não é a plenitude do narrar. A narrativa é progressiva, referente ao enredo,

porém, a linguagem não possui trajetória, ou seja, os trajetos, as delimitações das

margens, não funcionam como a duplicidade entre causa e consequência para que a

linguagem vigore, presentificando-se em cada uma das estórias. A linguagem plenifica

o dizer no narrar.

As experienciações na linguagem são a própria abertura para o vigorar do dizer

na linguagem. Essas experienciações são o fruto da escuta do dizer inaugural, do dizer

mundificador, do dizer instaurador, do dizer inaugural, do dizer que diz a si e o dizer. O

dizer do dizer é o mostrar da linguagem. Cada estória, de Primeiras estórias, é

permeado pela linguagem, na plenitude do dizer no narrado e no silêncio. Experienciar a

estória e experienciar o real, a linguagem no narrar do conto. A narrativa é plena quando

a linguagem diz o dizer inaugural, o dizer do experienciado, experienciável e

experienciando sem partilha nem junção, mas, com o agir incessante do real e a doação

inesgotável da linguagem.

Experienciar é sair do limite imposto pelas margens, é criar uma terceira

margem. Ultrapassar as formas impostas pelo uso unilateral das palavras é reivindicação

do experienciar. Nele não há tensão, mas, sim, o diálogo harmônico entre o real e a

linguagem, ou seja, o sertão rosiano. O encadeamento proposto pelo enredo ou pela

estrutura narrativa resume a estória à finitude. No entanto, a estória é o propulsar da

linguagem, em seu agir incessante e instaurador de mundo. A estória rosiana é o narrar

primordial da linguagem. Por isso, o dizer é diálogo e unidade sem ser unívoco. A

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pluralidade advém das possibilidades oriundas da linguagem, do dizer que diz a unidade

sem dizer o mesmo. A linguagem não é transcendência, pois ela vivifica-se por si, e, ao

nomear, presentifica. Seu diálogo com o real é mundificador e mundificante.

A experiência está presente no narrar no desmedido da linguagem. Nenhuma

ponderação há no experienciar do narrar e no experienciar na linguagem. As estórias são

o experienciar no experienciável do experienciado. Não é atributo da linguagem prover

respostas às questões e exatidões das experienciações, muito menos pela verberação de

que a linguagem não apresenta atributo. A linguagem não se apresenta em um contínuo

de completude. Ela é a plenitude do dizer em consonância com a verticalidade e a

horizontalidade do sertão rosiano. Portanto, responder às perguntas impostas pela

necessidade é impossível de ser ação eloquente da linguagem. A linguagem não oferta

respostas, já que é o sertão movente o agir do real em harmonia com a linguagem. As

veredas das estórias rosianas não é um mundo acabado e pronto, mas, sim, dito na

margem, na não-margem, no sem-margem, na além margem, da linguagem mundificada

no real do dizer inaugural, e, porventura, inaudito.

Fora do limite, as estórias não podem ser prensadas e comprimidas em palavras

escritas numa sucessão sintagmática e frasal. As estórias são as palavras em estado

puro, ou seja, palavras lançadas para fora do recurso claustrofóbico compressor de

representar o limite do nomear. As estórias dizem o sertão, na condição de que o dizer é

o narrar do sertão concebido na inaugurabilidade da linguagem instauradora e na

instauração do movente originário. Este movente é o agir próprio da linguagem, da

memória, do real, do ser. Mover do imanente, do imóvel, do silente, e, ao mesmo

tempo, do visível, do desmedido, do mostrado. Na abertura do dizer, a linguagem

frutifica sem ater-se às margens. É nas veredas onde a linguagem habita, onde as

estórias ditas dizem a si no experienciável do narrar, em experienciações da linguagem

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em sua presença. As estórias não são, meramente, ilimitadas, elas são a linguagem, o

narrar movente, o dizer primordial. Caso elas fossem consideradas simplesmente

ilimitadas, as estórias perderiam a essência do agir incessante no movente, no

descobrimento, no desencoberto da linguagem. Cada estória está para além da margem.

Isso corrobora para o lançamento das estórias para as veredas rosianas. As veredas estão

para além da visão, do tato, da audição, do paladar, do olfato. Elas são a sinfonia

harmônica do ser no implacável vigorar da linguagem e, inclusive, são a abertura da

linguagem, do real, do ser, da memória, da verdade, da plenitude.

As experienciações não são fatos consumados. As experienciações não são

mediadas pela reta progressiva do início, meio e fim. Elas são o diálogo do dizer

primordial. As experienciações estão na linguagem. Ou melhor, as experienciações são

a abertura da linguagem no dizer, no narrar. Nelas, a linguagem instaura-se e mundifica-

se à escuta da unidade harmônica do agir incessante do real. Narrar torna-se dizer

quando a linguagem apresenta-se primordialmente. Para ela não há tiro certeiro para um

alvo, pois, é na vereda, no desmedido, onde a linguagem mundifica-se na verticalidade e

horizontalidade do dizer. E, a vereda é o sertão rosiano movente nas estórias que estão

em consonância dialógica entre a linguagem e o real no dizer do narrar. A margem está

nas veredas, mas as verdades estão para além de qualquer margem. Na vereda, a

experienciação é desmedida, por estar no aberto da linguagem que nunca pode nem

poderá ser medido.

A linguagem é a vereda rosiana. Para tal afirmação, o crédito não recai sobre a

figura do escritor e autor, mas, sim, sobre a linguagem que mundifica o sertão rosiano

em sua vereda rosiana, a questão primordial do dizer do narrar nas estórias. Estar aberto

à linguagem não é sinônimo para reger-se através de perguntas, mas, de experienciar as

questões. Nada adianta querer perguntar sem querer ou com anseios de respostas e

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manter-se no vínculo vicioso de progressões, de projeções, de confabulações, de

enredos, de análises ou de individuação. A vereda, em primazia, está no aberto da

linguagem, ultrapassando a fissura do dito. Ela é a abertura do dizer no diálogo

harmônico entre a linguagem e o real. De modo que linguagem e real encadeiam a

instauração do sertão rosiano, das estórias rosianas, do dizer do narrar.

A questão da linguagem, com sua originalidade, mostra-se do título do livro,

Primeiras estórias, de cada conto, às estórias com sua pluralidade. De fato, a linguagem

no narrar é a questão latente, por si própria. Ela é, propriamente, a tessitura do dizer, já

que o dizer condiz à linguagem, assim como, o narrar é a linguagem instaurada,

original, mundificada. É por causa da linguagem que as estórias podem ser

mundificadas no narrar e podem ser experienciadas pelo dizer. Ainda, a linguagem diz o

homem em seu sentido inaugural, humano, de escuta dela e onde ele faz a moradia.

Habitar o sertão é habitar a linguagem, não como lugar de comodidade, de obtenção de

utensílios, de técnica de sobrevivência, mas como lugar que diz o homem naquilo que

nada nem ninguém pode mostrar por si só, pois a linguagem diz o homem no

desmedido, na vereda, deixando qualquer margem à parte do humano.

A linguagem diz o humano, mostrando-o. Graças à linguagem, o homem se

percebe humano. No entanto, nada advém da linguagem como tarefa ou técnica. Para

adentrar-se nos desígnios da linguagem não é necessário trabalho, cumprir atividades ou

possuir alguma técnica para ser apurada progressivamente. A linguagem requer a escuta

do humano. Na narrativa, a linguagem diz-se e diz o humano. Também, silencia. Ela

não possui forma nem conteúdo. Inclusive, não pode ser depreendida, posto que ela é o

produzir incessante. Ou seja, a linguagem não pode ser remetida às amarras da narrativa

estruturada. Ela vigora onde o dizer é inaugural e mundificador. O homem habita a

linguagem no humano do dizer do narrar. O homem é linguagem desde o ser. Ser

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homem é estar aberto à presença da linguagem no humano. O narrar narra e diz o

humano nas estórias.

Na narrativa, o humano é linguagem. O dizer diz o humano e não há captura

nem enlace. O humano não é metafísico nem técnico. O humano é o dizer da linguagem

no homem. O diálogo realizado pelo dizer e pelo homem é a consonância entre o real e

a linguagem. O homem realiza, a linguagem instaura e o real mundifica. Contudo, o ser

condiz com o silêncio, no dizer do silêncio na narrativa, na linguagem doadora de

sentido. Ele está além da representação, da fantasmagoria, da concretude, da ideologia e

da veracidade. O ser é linguagem, por isso é assaz incorreto querer delimitá-lo, ou, ao

menos, colocá-lo em uma forma, estruturá-lo em inteiro ou em partes. Ele é unidade

dialógica com a linguagem e o real. Esta tríade torna presença o dizer do narrar na

narrativa. Esta se torna mundificação de pluralidade dos sentidos que são incontáveis,

incalculáveis e incessantes.

A estória é dizer primevo. A estória diz o ser, sendo. O dizer da estória é o dizer

fundador da linguagem, do ser, do real, da verdade, da memória. A estória é o dizer do

ser, pois, o ser é instaurado no dizer do narrar, no agir da linguagem e do real. Dizer o

ser é mais do que pontuar a vigência do ente no desmedido da linguagem. Dizer o ser é

plenificar, plenamente, o vigorar da linguagem no dizer do narrar, do experienciar, do

contar, do mostrar. O homem é. Na narrativa rosiana, o ser mostra-se no dizer do narrar.

Ele vigora na estória no dizer dialogante entre o sertão linguagem e o sertão real. Estes

não se apresentam dicotomicamente, mas, no agir convergente da experienciação do

dizer do narrar, do ser. As estórias rosianas não são amplitudes do homem no mundo, e

sim, doação do ser na morada da linguagem. O ser vigora na linguagem, no agir

incessante.

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O ser mostra-se na abertura da linguagem. A direção não é importante em seu

âmbito. Muito menos, a frequência ou velocidade. A linguagem não é força mecânica, é

o agir propulsor incessante, pois, sua nascitividade é incontrolável, bem como, sua

instauração. A linguagem opera o dizer na narrativa. Assim, também, o ser opera o

dizer, visto que o ser é o dizer do narrar, o mostrar do dizer, o ente pleno na vigência da

linguagem. A linguagem diz o ser. O ser diz a linguagem. Na estória rosiana, não há

entificação, contudo, há a instauração do ser. Este não se apresenta comedidamente nem

de forma acometida. O vigorar do ser tampouco é um lance de luzes que se finda no

brilho do sol ou do luar nem é um relance de fumaça evaporada pelos ares. O ser vigora

na nascitividade do dizer do narrar, na narrativa presente na linguagem.

O ser dialoga com o humano. O humano é experienciação. A estória diz o

humano. No dizer do narrar, o humano apresenta-se na abertura da linguagem, na dobra

para onde pende o extraordinário. O humano não é trivial como pode parecer. O

humano encontra-se no extraordinário, onde vige, vigora, vigia a linguagem. O

extraordinário não significa ausência de ordem ou presença do incomum. Ele mundifica

o humano no desmedido do real e da linguagem. O humano é extraordinário na medida

em que se lança ao apelo da linguagem, que é o dizer inaugural do narrar na estória

rosiana. O humano da estória rosiana é unidade, seja no real, seja na linguagem, seja na

memória, seja na verdade. Para essa unidade, converge o humano da unidade que não é,

necessariamente, o mesmo. A mesmice está fora do humano, pois, ela age

independentemente de abertura incessante da linguagem. O dizer não é repetitivo, já

que, ao ser agir do vigorar, não pode ser representado, esquematizado, enclausurado,

informado, presenteado ou finalizado. A unidade dialógica é a abertura por onde o dizer

do narrar narra, diz, silencia.

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A linguagem não é um produto, mas instauração do ser. Ninguém pode almejar

obter a linguagem ao adentrar-se por suas veredas. A linguagem não pode ser mapeada,

pois não deixa rastros, atalhos, pegadas, ou, até mesmo, contornos ou caminhos. Ela

lança-se ao aberto do real, onde o mundo é mundificado pelo seu pulsar enquanto

doadora de sentidos, do real, de instaurações de palavras no narrar das estórias rosianas.

A linguagem, na narrativa, advém no dizer, no mostrar, no silêncio. Estar aberto ao

dizer e ao silêncio da estória é estar aberto à linguagem. As entrelinhas são a pausa e a

abertura, e, nelas a linguagem doa sentidos, doa vigência do silêncio que diz, doa vigor

da ambivalência do encoberto e do descoberto.

O dizer do tecido narrativo diz o ser na estória rosiana. O ser dá-se no encoberto

do tecido narrativo, ou seja, na dobra, onde a linguagem inaugura mundificando a

instauração do ser. Adentrar-se na dobra é adentrar-se nas veredas da linguagem, onde a

fissura é o dizer próprio. O vazio, no tecido narrativo, diz a dobra em plenitude. Não se

trata de aporia semântica, ou, insuficiência sintagmática, mas, sim, trata-se da escuta

silenciosa. Na dobra, o real é mundificado, sem reflexo e sem extensão. Ele é aquilo que

vem a ser agir imanente da presença, da solicitude de ser o que é naquilo que vigora e

mundifica.

Não há cronologia para a linguagem, para o real ou para o ser. A estória rosiana

não marca atributos cronológicos para a durabilidade da linguagem. O enredo das

estórias é, logicamente, remissão a um acontecimento que, na linguagem, adquire sua

questão permeada pelo real. A marca do tempo cronológico serve, meramente, ao

enredo. No entanto, o tempo da estória rosiana não pode ser medido por nenhum

relógio, nenhuma ampulheta, nenhuma lógica, nenhum utensílio, posto que o tempo da

estória rosiana é a dobra, a abertura, da linguagem que não vigora em representação, em

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mimetização, ficcionalização ou qualquer tentativa de depreensão da linguagem, bem

como, do real, do ser, da memória e da verdade.

O tempo da narrativa rosiana é o tempo da experienciação do desmedido da

linguagem. Ou seja, não é cronológico, e, sim, um tempo de experienciação da

linguagem e do real mundificados, instaurados pelo agir q ue opera o sertão rosiano nas

estórias. A existência, tampouco, pode ser medida. E a narrativa rosiana mostra que o

dizer da existência é o dizer da linguagem. A linguagem diz a existência na narrativa de

Rosa. A existência requer aprumo maior do que o simples respirar e vivenciar. Assim, a

existência caminha nas margens e nas veredas do sertão. Ela está nos desígnios da

linguagem não como competência adquirida ou a ser adiquirida, muito menos, como

habilidade humana, mas, sim, como plenificação do homem, seja no real, seja na

linguagem, seja no sertão. A plenificação não significa, restritivamente, consumação,

mas, o enveredar-se nas veredas do aberto da linguagem, entre o dizer e o silêncio, nas

primeiras estórias rosianas, que são inaugurais, mundificadoras, instauradoras de

sentido e que vigoram o ser no humano.

A existência não pode ser simbólica, mas presentificada. Ela é doação da

linguagem, do real e do ser. Portanto, ela não é fruto das vontades, mas do diálogo que

se estabelece com a linguagem em seu dizer que tudo diz e tudo silencia. A plenificação

da linguagem não é a totalidade, mas o operar, no dizer, a existência. Pois, a linguagem

é inesgotável. Ninguém poderá exauri-la. Ela é o agir ininterrupto que diz e silencia.

Nela está o tudo e o silencio. Enveredando pelas histórias rosianas, percebe-se a

abertura da linguagem que diz no sertão. Entre o real e a linguagem produz-se

nascitivamente o sertão rosiano, onde impera a experiência destoante de qualquer

convenção cronológica e lógica-racional. Esta não pode abrir-se ao sertão rosiano, pois,

não vige na abertura da linguagem, na experienciação, na existência na estória rosiana.

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É o real movente o sertão rosiano. É o dizer do narrar a estória rosiana. Atendo-

se aos recursos técnicos no patamar do enredo, da semântica, dos fatos, da estrutura

narrativa, ficcional e prosódica, perder-se-á em margens cerceadas pelo lugar comum e

alheio às questões inerentes ao humano como o amor, a loucura, a existência, a morte e

a ética. Graças à linguagem, o redor movente oferece sentidos. Graças à linguagem

pode-se dar e receber sentidos. O humano não é, resumidamente, transcendência, mas é

a própria escuta da linguagem em consonância com o real. As questões suscitadas pela

escuta da relação entre ambos são as veredas das primeiras estórias. Estas são primeiras

por serem originais e não porque possuírem uma ordem cronológica (ou, até mesmo

lógica) entre si ou demais estórias, e, ainda, outras obras.

As Primeiras estórias são a linguagem e o dizer do narrar. É necessário

auscultar e dizer. Com o fragmento de Heráclito tem-se: “Não sabendo auscultar, não

sabem falar.”1 Ao relacionar as narrativas rosianas com fragmento 19 de Heráclito,

pondera-se que cada estória é uma ausculta da linguagem, do silêncio e do sertão, e cada

uma delas diz e se torna presença pelo narrar. Saber auscultar e saber falar é ser todo

ouvidos, por plenificar aquilo que cada um é, e, é na unidade dialógica, é silenciar e

narrar, é procurar-se por si mesmo, é vigorar no diálogo concernente ao eu e ao tu, é

mostrar-se e dizer-se, é experienciar o velamento, desvelamento e revelação do colocar-

se da linguagem, da estória, do narrar e do sertão.

Se não se sabe auscultar, a narrativa nada fala, nada diz, nada mostra. Cria-se um

círculo vicioso de inutilidade da estória, anulando o que há de primeiro nela: o auscultar

e o dizer como origem do narrar. A estória rosiana sempre fala e diz. Se caso não

falasse, não seria estória, mas história simplesmente com um enredo e ações que não

apresentariam nenhuma questão que mobilizasse o humano e se tornaria simples

1 ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Os pensadores originários. Trad. Emmanuel Carneiro Leão

e Sérgio Wrublewski. 4ªed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005.

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sucessões de fatos, imbuídos em uma sequência lógica e temporal, encadeada para

ilustrar o ato concluído e esquematizado. A estória rosiana fomenta o auscultar e o dizer

do narrar, de modo que ela é a ausculta e o dizer do sertão e da linguagem. Cada estória

origina-se pela linguagem e pelo agir do sertão, no diálogo incessante e original que traz

o auscultar e o dizer. Trata-se de uma relação harmônica que impulsiona o humano na

descoberta de si, do sertão e da linguagem.

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CAPÍTULO 2

O TEMPO E O SER, A RESPOSTA HUMANA

O ser diz a estória. O dizer da presença manifestada pela linguagem mostra o

desvelamento velado. Não se trata de separação nem superposição ou interposição.

Trata-se, sim, da vigência vigente. Não há um antes ou depois para o ser. Tampouco há

um tempo cronológico, progressivo ou regressivo. Não há linha tênue no horizonte.

Nem há exatidão, precisão, pontualidade, concisão, brevidade, marcação, ponteiros,

segundos, minutos ou hora.

No desmedido, o ser faz-se presença por dizer e mostrar-se na abertura da

linguagem nas veredas das estórias. Ele não possui ordem crescente ou decrescente nem

é medido milimetricamente. Por isso, não pode ser resumido a qualquer ordem

classificatória, à lógica de causa e consequência, à finalidade, aos meios, aos utensílios,

à fórmula, à representação, à imitação, à materialização, à estrutura. De modo que o ser

vigora e mostra-se no real.

Ao dialogar com Heráclito, a estória traça vigor com o fragmento 49a, que diz o

seguinte: “No mesmo rio entramos e não entramos; somos e não somos.”2 Ninguém está

concluído e fechado, assim como, as personagens rosianas também não o são. Dizer e

mostrar a cada uma das personagens é fomentar em abertura o que ela é e o que ela não

é. O que silencia a cada personagem também a mostra e a diz. Cada personagem é,

mostra-se e diz-se com o narrar e com o que este silencia. Ela tampouco pode e deve ser

depreendida, pois não se trata de captar uma imagem ou capturar uma representação,

mas trata-se de dialogar com o vigorar do ser de cada personagem que se doa no

2 HERÁCLITO, Op. cit., p. 71

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incessante agir do narrar das narrativas. Do mesmo modo que o humano é e não é, a

personagem é e não é.

O sertão é real. O sertão, mundificado pela linguagem nas estórias, dá-se. O

humano é dito pela linguagem no sertão. O ser vige para além do humano. O ser é

unidade no dizer da linguagem que diz e diz-se. O ser não pontua o humano nem o

classifica. Aquele é o vigorar do que se dá, enquanto este diz-se no experienciável da

linguagem e do real. O ser é o para além porque não pode ser medido ou transformar-se

medida do humano, posto que diz que é para além de possibilidades, vigorar vigente.

A resposta humana é habitar poeticamente. No sertão, o florescer poético surge,

insurge e se plenifica nas estórias primeiras. Nestas, a condição humana é floreada pela

linguagem presentificada. O ser em seu vigorar doa vigência ao humano. Longe de

fatalidades, a resposta humana vigora por dar-se. Adentrar-se pela cronologia não marca

o humano, o humano é pleno ao ser. Independente do passado, do presente e do futuro,

a resposta humana é ser e vir a ser.

Nas estórias rosianas, de Primeiras estórias, a resposta humana é presença do

ser e não marca temporal em um espaço. A ambivalência temporal e a espacial servem

ao enredo, mas não à narrativa rosiana. O ser, portanto, cria um tempo-espaço na estória

feita linguagem. Ele não possui uma forma única, monótona e não é sempre o mesmo.

Nem é um modelo a ser seguido por tudo e por todos. O ser tampouco é imagético,

representacional, classificatório ou imediatista. O ser não habita em ninguém como

força entificadora. O habitar do ser é o dar-se mundificando, bem como a linguagem dá-

se instaurando e o real dá-se inaugurando. Não se trata de uma ação que possua início e

término. Não é um ato contínuo. É o agir propulsor no sertão.

Sendo o ser o sertão é. No vigorar daquilo que se é, é que o sertão se mostra no

dizer do narrar da estória, mundificando-se. O ser sertão é plenitude, portanto, não é um

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produto materializado por utensílios através de meios para a finalidade final. É

plenitude presente no vir a ser. Não como o futuro prometido, mas como a possibilidade

do desvelar do velado, do velar. Não está resumido ao fluxo contínuo, ininterrupto da

vertigem provocada pelo olhar imperceptível para o dizer, para o mostrar do narrar da

estória rosiana. Há que adentrar-se nas veredas rosianas para abrir-se ao ser.

O ser não é uma marca temporal ou de entendimento. Ele é, vige pelo agir

próprio do desmedido desvelamento do velado. Essa ação não provoca a dualidade nem

provem dela, tampouco é elemento de polos opostos. Não há contradição nem oposição

no agir. Nem complementariedade de elementos, nem encaixe perfeito, nem união

estável. O agir é o pulsar da harmonia consonante entre o velar e o desvelar, o

velamento e o desvelamento, o silêncio e o dizer, a fala e a escuta, o encoberto e o

descoberto. A consonância mostra a plenitude do ser e não a fragmentação ou a

separação dele.

O ser é unidade, por isso não se faz presente através de fragmentos. O tecido da

narrativa é a unidade onde o ser mostra-se pleno. A aparente redundância ocorre pelo

olhar afetado pela visão do copo vazio. Este está pleno sem nenhum líquido ou com o

líquido à sua borda. No entanto, o copo, que apresenta medição, está pleno sempre que

atinge a medida requerida. O ser é desmedido. Seu vigorar está para além de qualquer

medida e ato de medir. Ninguém poderá pontuá-lo, verificá-lo, analisá-lo por mais que

sejam reivindicadas técnicas, pois, ele não se apresenta corporeamente, mas instaurado,

mundificado, inaugurado. O dizer do narrar diz o ser.

O ser diz e diz-se, o mostrar do dizer-se como sertão. O mundo movente é o

dizer da linguagem, do ser, do real. São as veredas o dizer do ser. O sertão é o ser. Neste

não há amplitude, vastidão, síntese, simplificação, secção, separação, fragmentação,

unificação ou dualidade. Tampouco, o relógio é um utensílio eficaz para o ser, pois, o

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ser não possui marca temporal. O ser habita no sertão, no descampado, nas terras altas e

baixas sem a cronologia tecnicista, separatista, materialista. O ser é um, pois, a

tripartição entre passado, presente e futuro simplesmente não ocorre, e, sim, o tempo do

vigorar vigente do agir, harmonia de matizes e matrizes inaugurais. O originário é o ser

sendo.

As personagens de Primeiras estórias deambulam nas veredas do sertão das

estórias rosianas. São personagens que se apresentam na inaugurabilidade da linguagem

e não como entificação, corporeificação, materialização, tipificação do abstrato para o

concreto. São a presença do vir a ser, do ser mundificado nas veredas da linguagem, do

sertão, das estórias primeiras. São o nomear do dizer no descampado do sertão, nas

veredas da narrativa. São a questão temporal sem a ordem cronológica, ultrapassando

qualquer mesura e medição. São a resposta humana no reberverante do existir, na

imensidão do ser, na pluralidade do dizer.

Nas estórias, o ser punge as personagens no narrar da narrativa, no dizer da

linguagem. A relação entre o ser e as personagens dá-se na abertura da linguagem, no

operar do real, na doação do próprio ser. As personagens não carregam, resumidamente,

a uniformidade de localização e temporalidade, mas, são as possibilidades de ser e ser

das possibilidades. Elas vigoram no silêncio do dizer e no dizer do silêncio, bem como,

no narrar e no dizer das estórias.

O ser não é uma entidade, portanto, é irrisória a abstração que lhe é atribuída. O

movimento inverso, de concretização, tampouco, condiz com o ser. A essência, ou seja,

a unidade, está no ser com toda a possibilidade presente. É pelo agir que a dinâmica

harmoniosa entre o ser, a linguagem e o real tornam presença e tornam-se presença. O

ser não pode ser mimetizado, imitado ou representação devido ao fato dele vigorar no

inaugural instaurado e mundificado. Isso quer dizer que o ser não se repete nem pode

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ser fossilizado, estruturado. O ser não é uma forma pronta e acabada. Assim como, os

personagens rosianos não o são.

O nomear do dizer diz a personagem. E, nas estórias de Guimarães Rosa, há o

nomear inaugural, quando o nome diz o dizer daquela personagem em sua manifestação,

em sua mundificação no sertão rosiano. A nomeação inaugural é o agir da instauração

de sentidos, em plenificação. Ela diz o dizer da unidade reveladora no operar de

velamento e desvelamento, nas veredas rosianas, na linguagem. As personagens agem

no sertão rosiano, resguardada a unidade, em doações do ser, da linguagem, do real, da

memória e da verdade. O aparente torna-se irrisório diante das possibilidades do operar

operante do ser. Guiar-se pela aparência torna-se um grande engano, embuste que leva

ao erro e à perda do diálogo propiciado pela eclosão da linguagem nas estórias. O

nomear do dizer é lançar-se e lançar o ser ao aberto da linguagem.

A condição humana, de ver-se nascer e morrer, ainda, habitar, é presente nas

estórias. Assim, perguntar-se pela condição humana no sertão rosiano é notório e

importante para quem se adentre nas veredas destas estórias. Ao verificar que não é o

tempo cronológico que marca a via das personagens, ou seja, do humano sertanejo, o

agir do ser, da linguagem, do real em harmonia com o todo em consonância harmoniosa

é, de modo fulcral, o apontar da resposta humana poética nas estórias rosianas que são

ditas e dizem no narrar.

O ser é plenitude, portanto, não é fragmentação ou fração. Ele se apresenta em

totalidade e não por partes. É unidade e não divisível. O tempo cronológico não pode

medi-lo nem apresentá-lo ou reduzi-lo numericamente, nem cronologicamente. O tempo

adquire uma valência de operar o agir operante. Não é um novo tempo, mas, inaugural,

originário, incalculável. O tempo do ser é o operar, é o agir propulsor que se mostra e se

vela, se revela, se desvela no auscultar e no dizer do diálogo e no silêncio. A relação

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entre ser e condição humana dá-se no humano que se percebe outro e um na unidade do

desmedido, seja do real, da linguagem, do ser.

O sertão é e não é humano, portanto, não se deve resumir o ser ao humano. Nas

estórias rosianas, nas sagas rosianas, no romance rosiano, o sertão surge como

linguagem, no narrar que diz, mostra, vigora no encobrimento, no descobrimento, no

encoberto, no descoberto. O sertão mundifica-se em totalidade e plenitude na linguagem

e no real. O sertão é real. O sertão é linguagem. O sertão é ser. E o humano,

harmonizado com o sertão, é. O humano, como questão, está no para além das linhas,

das obviedades, das respostas prontas para cada um e para todos. Ele é inclassificável

por habitar o desmedido da linguagem, do real, do ser, da poética.

A condição humana, nas estórias rosianas, não pode ser medida, encadeada,

limitada ou reduzida. Guimarães Rosa, em suas narrativas, lança o precedente tema para

o agir inesgotável. Enquanto houver o humano, a condição humana será, é e foi a

questão fulcral para o ser, no entendimento de que o humano percebe-se no limite e para

além do limite, como o ser não serve como ponto ou marca do humano restritamente e

exclusivamente, mas, bem, lança-o ao desmedido.

A idade das personagens pode servir ao enredo, com sua ordem cronológica,

com sua sucessão de eventos e pontualidades numéricas, mas nada dizem do ser, da

linguagem e do real, das grandes questões reportadas pelo poético presente nas obras de

arte, no caso, das Primeiras estórias. A marca temporal serve somente ao encadeamento

lógico, racional, técnico, preciso, cifrado. Portanto, não é esta marca que se apresenta e

se revela nas estórias rosianas. O tempo insurge como o habitar (do humano), ou seja, o

habitar poeticamente, o habitar da linguagem, o habitar do ser, o habitar do real, o

habitar da verdade, o habitar da memória.

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Desse modo, a criança das estórias rosianas é mostrada pelo contingente do

sertão rosiano. Isso quer dizer que não há um julgamento moral nem social sobre a

criança rosiana, bem como, dos anciões, que são apresentados na narrativa, também, dos

adultos. A condição humana é mostrada na amplitude da linguagem, sem retenções,

juízos de valor, cristalizações de pensamentos e espaços. São personagens lançadas ao

aberto do dizer do narrar das estórias. São originais, inaugurais, primeiras.

Na estória “As margens da alegria”, em que “ia um menino, com os tios, passar

dias no lugar onde se construía a grande cidade”3, o real aparece com sua força

instauradora do caos e do cosmos. Pois, é nas margens da alegria, que o menino,

protagonista, se mostrará nas veredas da tristeza. E esse conhecimento da tristeza e da

alegria é uma grande aprendizagem da existência, do ser, do real, da linguagem. Dizer-

se alegre e/ou triste é mais do que um estado de ânimo e independe da faixa etária. A

criança depara-se com a alegria e a tristeza assim como um adulto ou idoso. Desse

modo, em meio ao voo, ao início do conto, é narrado o seguinte:

O avião era da Companhia, especial, de quatro lugares.

Respondiam-lhe a todas as perguntas, até o piloto conversou com ele.

O vôo ia ser pouco mais de duas horas. O menino fremia no arcoçôo,

alegre de rir para si, confortavelzinho, com um jeito de folha a cair. A

vida podia às vezes raiar numa verdade extraordinária. Mesmo o

afivelarem-lhe o cinto de segurança virava forte afago, de proteção, e

logo novo senso de esperança: ao não-sabido, ao mais. Assim um

crescer e desconter-se – certo como o ato de respirar – o de fugir para

o espaço em branco. O Menino.4

O Menino, maiúsculo ante o aprendizado do real, do dizer, abre-se ao mundo. A

idade, portanto, não serve como limitação imposta à personagem na narrativa. As

personagens rosianas são mundividentes por estarem abertas à linguagem, ao dizer, à

escuta do real movente, ao mundividente agir do caos e cosmos, que ajem para a

3 ROSA, João Guimarães Rosa. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001a. p. 49

4 Ibidem, p. 49

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diferença e para a unidade. O Menino depara-se com um fato que poderia ser visto com

o olhar puramente trivial, uma viagem, e ele insurge no real com toda sua amplitude de

sentidos. Ele não procura as respostas, mas a viagem, o “não-sabido”, o “mais”, “o

espaço em branco”.

Anteriormente, no mesmo parágrafo do conto, há o narrado a seguir sobre a

viagem: “Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho."5

Conclui-se, portanto, que era uma viagem desejada e esperada. O que o Menino não

podia saber era o que aconteceria adiante. A dinâmica do real não só surpreende como

muda as posições. De modo que não se pode apreendê-la em totalidade, posto que ela

ressoa o desmedido, a amplitude, o caos, o cosmos. Não se trata de percursos paralelos

ou complementares, mas da insuficiência humana para obter a abrangência totalizadora

do real. Os seres humanos estão contidos no real, mas o real em sua totalidadade não

está contido nos seres humanos. A condição humana é a ausculta do real, do ser, da

linguagem, da verdade, da memória, do agir poetizador e do tempo.

No caminhar ambivalente, as nuances adquirem projeções se o ter torna-se

valorizado em detrimento do ser. Na estória, é certeiro o sentido contemplado. É o que

mostra a narrativa a seguir: “E as coisas vinham docemente de repente, seguindo

harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes: as satisfações antes da

consciência das necessidades”6. O ganho adquirido mostra-se maior do que o desejo, a

ânsia e a vontade. A quebra da cláusula causa-consequência indica a vida curada no

real, longe de qualquer formulação ou formatação. Depreende-se, assim, que não é a

finalidade alcançada que torna a vida feliz e nem a construção, a fabricação, a

visualização de um produto.

5 ROSA, Op. cit., p. 49 6 Ibidem, p. 50

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É a alegria um sentimento ou estado de espírito? Na narrativa, ela é contingência

do humano. Assim, manifestada no menino, a alegria mostra-se operante. No entanto,

ela não ocorre pela posse efetivamente. Como se pode perceber no seguinte trecho:

Se homens, meninos, cavalos e bois – assim insetos? Voavam

supremamente. O Menino, agora, vivia; sua alegria despedindo todos

os raios. Sentava-se, inteiro, dentro do macio rumor do avião: o bom

brinquedo trabalhoso. Ainda nem notara que, de fato, teria vontade de

comer, quando a Tia já lhe trazia sanduíches. E prometia-lhe o tio as

muitas coisas que ia brincar e ver, e fazer e passear, tanto que

chegassem. O Menino tinha tudo de uma vez, e nada, ante a mente. A

luz e a longa-longa-longa nuvem. Chegavam.7

Portanto, ninguém é dono da alegria. Tampouco ela é fruto do acaso. No entanto,

ela insurge plenamente. Assim demonstra o trecho apresentado. A plenitude da unidade

de cada ser. De modo que a alegria não se divide em corpos, ou vivifica-se em alguns

escolhidos, nem tangencia outros. Ela é plenitude do inaugural instaurado. Pode-se abrir

à alegria quem a vivifica plenamente. Não há meia alegria, alegria mínima, alegria

máxima ou alegria potencial. Ela é na consumação do que é próprio no vigor da cura, da

procura, do encoberto e descoberto, do agir da verdade, da memória, da linguagem e do

ser.

Ter tudo e nada na mente não significa, restritamente, oposição entre mente

vazia e mente povoada. Visto na afirmativa haveria uma relação simplória entre muito o

que pensar e o nada a ser pensado. O Menino, no entanto, naquilo que se dá, mostra-se

aberto à alegria com todas as suas vicissitudes. Posto que, nela, não há pensamentos

rígidos e encadeados e nem a ausência deles. O tudo é a plenitude irrompida em

completude e o nada é a plenitude do inaugural silêncio.

Na linguagem, a complexidade da alegria não pode ser reduzida à diferença

entre estar alegre ou ser alegre. Não é um estado de espírito, uma qualidade, ou

7 ROSA, Op. cit., p. 50

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pressupõe uma ação. Muito menos uma meta a ser atingida. Não é uma finalidade. Nem

meio. Não pode ser remitida a um objeto, a um utensílio, a um corpo, a um material a

um instrumento. Não deve ser vista como fruto do acaso, do azar, da sorte ou da

predestinação.

A alegria não pode ser esquematizada e dicotomizada entre a permanência e a

mudança. Pois o movimento é o operar do permanente e do mutável em unidade de

sentido. Não são movimentos antagônicos que instauram a alegria, mas a unidade tecida

pelo agir no real. O agir do velar e o do desvelar, do encobrimento e do descobrimento,

mundificam a pluralidade múltipla do real. A alegria não serve como medida para todos

todo o tempo. Ela não é uma forma pronta a ser adquirida com muito, pouco ou

qualquer esforço em unificá-la. A alegria é própria de cada ser. Sua unidade está em

consonância com a mundificação inaugural de cada ser.

A alegria vigora no desmedido. Não está à disposição como mercadoria ou algo

a ser conquistado como um objeto com finalidade de fabricação. Longe de ser algo

aprendido e apreendido pela repetição, a alegria é vivência e experienciação. Não é uma

força centrífuga ou centrípeta, de dentro para fora ou de fora para dentro, articulada pela

alegria. Esta é o movimento harmonioso do apropriar-se daquilo que é próprio na

mundificação do real, da linguagem, da memória, da verdade. A alegria é o movimento

do ser.

O jogo do real é a unidade harmoniosa, entre o real, a realidade e a realização.

Não há movimento de afastamento, de exclusão, de impedimento ou dialético. Pela

consonância, tudo pode tornar-se vigente e silêncio. Assim, “O Menino tinha tudo de

uma vez, e nada, ante a mente.”8 No vigenciar a alegria, o menino depara-se com o tudo

a tornar-se vigência e o nada que silencia. Pelo aberto da linguagem, o sentido acontece

8 ROSA, Op. cit., p. 50

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pela relação estabelecida pelo próprio. Aquilo que faz sentido aparece pela linguagem.

A linguagem, por não ser linear, é abertura, e não imposição de sentidos, menos ainda,

de atribuições de signos arbitrárias para a existência. A alegria é própria do desmedido

do real em consonância com a linguagem.

O entendimento por desmedido recai na pluralidade de possibilidades no real.

Ninguém (e nunca) pode cercear o real, ou limitá-lo à realização corrente. O real

compreende os entes, o silêncio e o ser, sem que haja a ação limítrofe para este último.

Ser alegre é caminhar pelas veredas, onde as margens são ilimitadas, desmedidas, sem

estrutura, sem configuração, sem estado. É o operar do próprio em consonância com o

ser. Não pode ser fracionada ou dosada. A unidade da alegria é sentido na amplitude da

linguagem. No entanto, dizer somente que se é alegre não é requesito avaliativo ou

finalizador para tornar a alegria presente ou torná-la vigência.

A alegria não se remete às projeções, às objetivações, às funções, às

finalizações, às medições, às atribuições, às apelações, às relativizações, às proposições.

Tampouco sua vigência dá-se no plano temporal cronológico. É o momento instaurador

que diz a alegria em acontecimento. Desse modo, o seguinte trecho demonstra o exposto

anteriormente: “E as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia prévia,

benfazeja, em movimentos concordantes; as satisfações antes da consciência das

necessidades.”9 A alegria não se dá pelo preenchimento da falta. O que falta não é

próprio, não vigora no realizar do ser mundificado. O que falta é medida falaz que não

condiz à completude do próprio. A alegria não é possessão. Possuir algo ou alguém não

condiz com a alegria. A possessão indica a ação pelo simplório estado de fora do

próprio. A alegria não pode vigorar pela relação de posse, já que opera o próprio do ser

que se manifesta se instaurando no desmedido do real, da linguagem, da verdade. A

9 ROSA, Op. cit., p. 50

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alegria vigora no operar do real, do desmedido velar e desvelar do próprio, inerente ao

ser.

A alegria é uma aprendizagem, assim como a tristeza. Ao tomar ciência da morte

do peru, o qual o havia maravilhado, surge um novo momento, a tristeza mundifica-se.

E “tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas

coisas se roubavam.”10

A inexorabilidade das ações podem justificar os meios, mas não

a aprendizagem. Esta vigora na apropriação do próprio. O diálogo possibilita que haja

reunião com a permanência do diferente em harmonia. O real não pode ser manuseado

em sua integridade e união totalizadora. As ações dispersas ocorrem e não se pode

impedi-las, apesar de todo cuidado. Não se pode estar em todas as possibilidades do

real.

A descoberta da tristeza pela dor é a aprendizagem do menino. Assim, o menino

Cerrava-se, grave, num cansaço e numa renúncia à curiosidade,

para não passear com o pensamento. Ia. Teria vergonha de falar do

peru. Talvez não devesse, não fosse direito ter por causa dele aquele

doer, que põe e punge, de dó, desgosto e desengano. Mas, matarem-

no, também, parecia-lhe obscuramente algum erro. Sentia-se sempre

mais cansado. Mal podia com o que agora lhe mostravam, na

circuntristeza: o um horizonte, homens no trabalho de terraplanagem,

os caminhões de cascalho, as vagas árvores, um ribeirão de águas

cinzentas, o velame-do-campo apenas uma planta desbotada, o

encantamento morto e sem pássaros, o ar cheio de poeira. Sua fadiga,

de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o possível

de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço; e que

entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase

nada medeia. Abaixava a cabecinha.11

A aprendizagem é mais do que um processo, é se tornar em vigência com

diálogo. A morte do peru encadeou a aprendizagem do menino. Mais do que um tema, a

morte surge como processo de aprendizagem. A tristeza dá sentido ao que habita o

10

ROSA, Op. cit., p. 52 11

Ibidem, p. 53

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próprio no menino. O acontecimento se deu e a tristeza acometeu o menino. A nuança

do “contentamento” e da “desilusão” revela um mundo onde o acontecer pode insurgir

distante das vontades, dos desejos, das ânsias, dos caprichos, das tendências, das

adoções e das necessidades. E a aprendizagem condiz com a escuta do próprio no

acontecimento.

Abaixar a cabeça não é sinal de derrota, mas de resignação para a ação do real. É

momento de ponderação, de abertura para a tristeza que manifestada propicia a

aprendizagem quando o caminho escolhido é abrir-se à vida, ao real, sem fechar-se em

si, mas estar em diálogo com a amplitude da linguagem, da verdade, do ser que diz o

inaudito e mostra-se ao dizer no narrar. A dor é inaudível, mas o sentido é a

aprendizagem naquilo que é próprio e pode, também, ser em diálogo.

O dizer do inaudito é aprendizagem. A dor é experiência experienciável na

tristeza. Portanto, a tristeza não carrega em si, somente e inextensivelmente o polo

negativo que lhe é atribuído comumente. Ela, sendo abertura, é deambulação pelas

veredas da linguagem, do ser, da verdade, da memória, do narrar. Narrar a tristeza não é

remeter-se à encadeação de fatos ou remeter-se às adjetivações, substantivações ou

objetivações para um objeto ou sujeito, mas sim, estar à escuta do aberto em que a

tristeza faz sua morada. Viver a tristeza é estar aberto ao real, à linguagem, à memória, à

verdade, ao ser.

A tristeza faz parte da aprendizagem em totalidade. Ela mundifica-se na unidade

do próprio. A plenitude da tristeza pode ser medida na atitude do menino que “abaixava

a cabecinha”. Essa atitude não pode ser incompreendida e resumida a um ato de derrota,

de entrega dos pontos. Deve sim ser apreendida pela simbologia de voltar-se ao próprio.

A tristeza não pode ser apartada da vida, do vivenciar, do vigorar, do vigor, do vigiar,

do vigenciar, por atribuições, ideologias e significações de um oásis representado e

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intacto perante o caminhar pelo real. Este não pode ser representado, formulado ou

estruturado, pois se dá no desmedido operar do sertão, em que a linguagem, a verdade, a

memória e o ser são confluências harmoniosas consonantes instauradoras da

originalidade do próprio.

O menino rosiano vive o sertão movente e o para além do sertão. A amplitude

rosiana é o experienciar do real. As margens apresentam-se como tais, ou seja, são

caminhos, possibilidades, inaugurabilidades de acontecimentos, vigores do operar do

real. Elas não são empecilhos para o ser, para a escuta do próprio, para a ausculta do

sentido, da alegria e da tristeza. A tristeza sentida torna-se experiência quando se dá no

auscultar do próprio no real, na linguagem, na memória, na verdade, no ser em operar

dialógico harmonioso. Não se trata de um processo em que se deve percorrer estágios e

efetuar tarefas, mas, sim, trata-se de estar à escuta do dito, do mostrado no narrar, no

existir, no ser. Aprender através do que é próprio e para o próprio é experienciar o

experienciável na unidade, no sentido, no narrado; não é excludente, mas dialógico. É o

próprio diálogo, visto que lançar-se no desmedido é tecer conexões, pontes, relações,

sem preconizar a uniformidade ou igualdade. O carimbo de unicidade não existe nas

páginas das estórias rosianas.

Assim, a tristeza existe no vir a ser do sertão, no experienciável do experienciar,

do vigorar do narrar, no narrado, no menino. É o que demonstra o seguinte parágrafo do

conto:

Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era: já o vir da

noite. Porém, o subir da noitinha é sempre e sofrido assim, em toda

parte. O silêncio saía de seus guardados. O Menino, timorato,

aquietava-se com o próprio quebranto: alguma força, nele, trabalhava

por arraigar raízes, aumentar-lhe a alma.12

12

ROSA, Op. cit., p. 54

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Há o que não pode ser negligenciado, dispensado, trocado, concedido, recusado,

descuidado, mas, pode ser doado, narrado na estória. Há o que vigorar no próprio. A

tristeza mundificada no menino instaura o sofrer que traz consigo o sentido percebido e

inaugurado nele. As altas estrelas acompanham o sofrimento de muitos. Na plenitude, o

próprio diz mais do que meras palavras ou do que ditos mudezes. Diz a propriedade do

operar do próprio.

A tristeza amacia. A experiência curtida imprime força no tecido experienciável

e experienciado. A maciez é a vigência do próprio. E ela torna o menino aprendiz. A

vigência da tristeza instaura sua inaugurabilidade tecida pelo acontecer original em

consonância com o próprio na estória rosiana. Assim, a tristeza é rito, torna presença. A

aprendizagem aumenta “a alma”. A estória rosiana demonstra que a criança rosiana está

à escuta e em experienciação do real, do mundo, do sertão. A criança é pertencente ao

vigorar do sertão rosiano e do para além do sertão, do desmedido do mundo, do

desmedido do real.

Na narrativa de “As margens da alegria” a vigência da tristeza é sobrepassada

pela vigência da alegria. O menino fez, da experiência, aprendizagem no descampado.

Assim, o último parágrafo plenifica a alegria no narrado. A alegria da aprendizagem é o

diálogo do próprio com a linguagem, o real, o ser, o velar e desvelado dialógicos.

Narrar a alegria é narrar o experienciável experienciado. Assim, o conto é concluído:

“Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vagalume. Sim, o

vagalume, sim, era lindo ―tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se.

Era, outra vez em quando, a Alegria.”13

O vagalume maravilha o menino novamente. Agora, não mais o peru com suas

cores e penugem, mas sim, o vagalume com seu brilho. A alegria maiúscula é a

13

ROSA, Op. cit., p. 55

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plenitude. Vigora a alegria na consumação do próprio inaugurado e eclodido pelo

diálogo harmonizador da linguagem e do real, do mundo, do sertão, do ser.

A criança é personagem de excelência rosiana. Em outro conto, intitulado “Os

cimos”, um menino, provavelmente o mesmo de “As margens da alegria”, viaja

novamente. Assim, é o começo da estória, intitulado “O inverso afastamento”:

Outra era a vez. De sorte que de novo o Menino viajava para o

lugar onde as muitas mil pessoas faziam a grande cidade. Vinha,

porém, só com o Tio, e era uma íngreme partida. Entrara aturdido no

avião, a esmo tropeçante, enrolava-o de por dentro um estufo como

cansaço; fingia apenas que sorria, quando lhe falavam. Sabia que a

Mãe estava doente. Por isso o mandavam para fora, decerto por

demorados dias, decerto porque era preciso. Por isso tinham querido

que trouxesse os brinquedos, a Tia entregando-lhe ainda em mão o

preferido, que era o de dar sorte: um bonequinho macaquinho, de

calças pardas e chapéu vermelho, alta pluma. O qual, o prévio lugar

dele sendo na mesinha, em seu quarto. Pudesse se mexer e viver de

gente, e havia de ser o mais impagável e arteiro deste mundo. O

Menino cobrava maior medo, à medida que os outros mais bondosos

para com ele se mostravam. Se o Tio, gracejando, animava-o a espiar

na janelinha ou escolher as revistas, sabia que o Tio não estava de

todo sincero. Outros sustos levava. Se encarasse pensamento na

lembrança da Mãe, iria chorar. A Mãe e o sofrimento não cabiam de

uma vez no espaço de instante, formavam avesso ― do horrível do

impossível. Nem ele isso entendia, tudo se transtornando então em sua

cabecinha. Era assim: alguma coisa, maior que todas, podia, ia

acontecer?

Nem valia espiar, correndo em direções contrárias, as nuvens

superpostas, de longe ir. Também, todos, até o piloto, não eram tristes,

em seus modos, só de mentira no normal alegrados? O Tio, com uma

gravata verde, nela estava limpando os óculos, decerto não havia de

ter posto a gravata tão bonita, se à Mãe o perigo ameaçasse. Mas o

Menino concebia um remorso, de ter no bolso o bonequinho

macaquinho, engraçado e sem mudar, só de brinquedo, e com a alta

pluma no chapeuzinho encarnado. Devia jogar fora? Não, o

macaquinho de calças pardas se dava de também miúdo companheiro,

de não merecer maltratos. Desprendeu somente o chapeuzinho com a

pluma, este, sim, jogou, agora não havia mais. E o Menino estava

muito dentro dele mesmo, em algum cantinho de si. Estava muito pra

trás. Ele, o pobrezinho sentado.

O quanto queria dormir. A gente devia poder parar de estar tão

acordado, quando precisasse, e adormecer seguro, salvo. Mas não

dava conta. Tinha de tornar a abrir demais os olhos, às nuvens que

ensaiam esculturas efêmeras. O Tio olhava no relógio. Então, quando

chegavam? Tudo era, todo-o-tempo, mais ou menos igual, as coisas ou

outras. A gente, não. A vida não parava nunca, para a gente poder

viver direito, concertado? Até o macaquinho sem chapéu iria conhecer

do mesmo jeito o tamanho daquelas árvores, da mata, pegadas ao

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terreiro da casa. O pobre do macaquinho, tão pequeno, sozinho, tão

sem mãe; pegava nele, no bolso, parecia que o macaquinho agradecia,

e, lá dentro, no escuro, chorava.

Mas, a Mãe, sendo só alegria de momentos. Soubesse que um

dia a Mãe tinha de adoecer, então teria ficado sempre junto dela,

espiando para ela, com força, sabendo muito que estava e que espiava

com tanta força, ah. Nem teria brincado, nunca, nem outra coisa

nenhuma, senão ficar perto, de não se separar nem para um fôlego,

sem carecer de que acontecesse o nada. Do jeito feito agora, no

coração do pensamento. Como sentia: com ela, mais do que se

estivessem juntos, mesmo, de verdade.

O avião não cessava de atravessar a claridade enorme, ele voava

o vôo ―que parecia estar parado. Mas no ar passavam peixes negros,

decerto para lá daquelas nuvens: lombos e garras. O Menino sofria

sofreado. O avião então estivesse parado voando ―e voltando para

trás, mais, e ele junto com a Mãe, do modo que nem soubera, antes,

que o assim era possível.14

O sofrimento insurge em momentos agudos, quando o real se apresenta

desmedido e não se pode conter o agir incessante em que não corresponde ao ter e

conhecer. O Menino, do conto rosiano, sofre com a possível enfermidade da mãe e com

o seu afastamento dela pela viagem com os tios. A viagem é marcada pelo sofrimento e

não pela felicidade, comum a quem está vivenciando alegremente a viagem, sem pairar

a mente em questões que remetam a certa dor, sofrimentos quando vividos e pensados

na amplitude do real, da linguagem, do ser.

Apresenta-se um sofrimento só do menino, acompanhado pelo o macaquinho

dele. É preciso chegar-se ao centro de si para ser todo sentido, como o fez o menino: “E

o Menino estava muito dentro dele mesmo, em algum cantinho de si.”15

Na vastidão das

tantas possibilidades, o menino tem seu centro em si. Na vastidão do centro, ele se

instaura em um lugarejo, sem margem, na vereda. Auscultar a si permite que haja

aprendizado de si. Aprender sobre si torna-se a grande aprendizagem, não ligada ao

14

ROSA, Op. cit., pp. 224, 225, 226 15

Ibidem, p. 225

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egocentrismo ou idolatria, mas a aprender o que se é, em vista a ver o mostrar do dizer,

do ser, da linguagem, da verdade, da memória e do real e ao mostrar-se.

As crianças rosianas são aprendizes e mestres. Provável redundância de escuta

do sertão, do mundo, de qualquer passagem e paragem. Através da auscutação, faz-se

sentido. O sertão, portanto, não é ponto de partida nem de chegada. É o caminhar. É o

florescer. É a ausculta. O sertão é sentido. É linguagem. É a vereda. É o mundo

movente. É o aquém, o além e a margem. Neste real, as crianças são dotadas de

sabedoria do sertão, de ascultar.

Os sentidos surgem no narrar rosiano. O grande companheiro do menino, o

macaquinho é dito pelo auscultar. Assim, “O pobre do macaquinho, tão pequeno,

sozinho, tão sem mãe; pegava nele, no bolso, parecia que o macaquinho agradecia, e, lá

dentro, no escuro, chorava.”16

A simetria entre ambos, o macaquinho e o menino,

instaura-se pelo narrar e o mostrar do dizer. Não se trata de um correlato estabelecido

para dar ênfase, ou significar intensidade, mas, sim, para a instauração de sentido.

O sofrimento não ocorre segundo uma escala de ordem crescente ou decrescente,

nem se dá por força representativa. Ele é sentido pelo menino, e, como tal, mostra

sentido. A ausência da mãe é sentida pela ausência do menino. Assim, com a presença

do menino, logicamente, a enfermidade da mãe poderia ter sido evitada. É o que ele

chega a pensar: “Mas, a Mãe, sendo só alegria de momentos. Soubesse que um dia a

Mãe tinha de adoecer, então teria ficado sempre junto dela, espiando para ela, com

força, sabendo muito que estava e que espiava com tanta força, ah.”17

Sem remédio para

o passado, resta viver, auscultar a si, já que as chaves, para os acontecimentos, não se

encontram à disposição das mãos absortas, enfileiradas à espera de alguém sagaz para

desvendar os segredos.

16

ROSA, Op. cit., p. 226 17

Ibidem, p. 226

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51

“O inverso afastamento” é sentido pelo menino. Quanto mais ele vai ao longe,

mais se encontra próximo da mãe. O sentido da mãe despertado nele instaura uma

proximidade, traçando um diálogo pleno. Sente-se a falta da presença como

estabelecimento de sentidos e de diálogos. A enfermidade pode aproximar as pessoas

quando o sentido torna-se diálogo. O sofrimento da perda pode se configurar como a

ausência da presença. Mas, o sofrimento pleno se dá pela impossibilidade de se fazer

diálogo. E, apesar da distância, o menino se encontra próximo da mãe. Ele traça

sentidos para a relação dele com a mãe. Sua mãe não é uma figura distante, mas, sim,

fornece-lhe sentidos. Através da relação presente entre o menino e a mãe, o real adquire

uma nova dimensão, no desmedido, onde convergem os sentidos, doações da linguagem

em consonância com o ser. Auscultar o ser é ver além da linha tênue que põe limites a

tudo que se mostra. Auscultar o ser é ir além das margens impostas ou renegadas pelo

olhar turvo que dicotomiza, sintetiza, mimetiza e prioriza as classificações e não os

sentidos instaurados no real, bem como, a inaugurabilidade do ser.

O sofrimento, como instauração consonante do real, da linguagem, do ser, da

memória e da verdade, não é visto como negativo nem dito como empecilho a ser

evitado nas estórias rosianas. O sofrimento traz aprendizagem. Quem disse que o

caminho seria um mar de rosas, tangenciou os espinhos. O sofrimento não é apresentado

polarizado do negativo e dualizado com a positividade. Ele é inaugurabilidade para o

que pode ser aprendido e pelo que aprendizado no caminho que é a vida que surge e

insurge ao redor e em cada um.

A imanência do sofrimento manifesta a procura pelo contato, pelo sentido. O

sofrimento não vem da percepção, seja da solidão, da ingratidão ou do desprezo, nem do

olhar volátil ao redor, mas, sim, da escuta do próprio. O sofrimento é o caminho no

deambular do próprio de cada um. O sofrimento é a aprendizagem de cada um, no agir

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do desdobrar, descobrimento, revelação, desvelamento. Há que ouvir o dizer que se

mostra. Assim, a aprendizagem, mais que um ganho ou um bilhete premiado, torna-se o

auscultar de si, do próprio, do ser e o diálogo com a harmonia criadora de unidade

consonante.

A realização imediata não pode comportar o sofrimento, de modo que há o

transbordamento da margem, em vezes diagnosticada como loucura. A dor não cabe em

uma forma nem fórmula prontas. No real, os sentidos são plurais, bem como, os

personagens rosianos são, também, inaugurais. Inclusive, o sofrimento é plural e

inaugural. Do sofrimento nasce a experiência e a aprendizagem. Estas não são

sinônimas de facilidade, de representação, de estrada acabada, de conhecimento

adquirido, de caminho sem volta, de arrependimentos, de devaneios, de sublimações, de

adoção cega e intransigente, de fatos explicativos, de busca por sujeitos e objetos, de

desilusões, de frustrações, de relações estabelecidas causalmente e consequencialmente.

Os elementos e relações estabelecidos são artificiais e superficiais. Não demonstram a

operar do sofrimento no âmbito de escuta do próprio, do real, da linguagem, do ser, da

verdade, da memória, do sertão rosiano, das estórias rosianas.

Inclusive, não se pode fugir do sofrimento nem pedir-lhe que volte mais tarde ou

outro dia qualquer. Na estória, o Menino percebeu isso. E assim é narrado o seguinte:

“O quanto queria dormir. A gente devia poder parar de estar tão acordado, quando

precisasse, e adormecer seguro, salvo. Mas não dava conta. Tinha de tornar a abrir

demais os olhos, às nuvens que ensaiam esculturas efêmeras.”18

O sofrimento é resposta

humana cujo o sentido se dá no próprio em que a linguagem se instaura em diálogo com

o real. Como tal, é eclosão do real, é o agir dos acontecimentos em profusão de

sentidos, de linguagem. A aprendizagem se dá ao auscultar o próprio no sofrimento.

18

ROSA, Op. cit., p. 225

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Já que o real não se dá de acordo, inteiramente, com as vontades, desejos e

anseios, saber caminhar no real eclodido é aprendizagem. Assim, as estórias rosianas

indicam a supremacia do real frente às vontades humanas, como se pode perceber no

parágrafo a seguir:

Na casa, que não mudara, entre e adiante das árvores, todos

começaram a tratá-lo como qualidade de cuidado. Diziam que era

pena não haver ali outros meninos. Sim, daria a eles os brinquedos;

não queria brincar, mais nunca. Enquanto a gente brincava,

descuidoso, as coisas ruins já estavam armando a assanhação de

acontecer: elas esperavam a gente atrás das portas.19

Inclusive, não há para onde fugir, não adianta se fingir de cego e se afastar e se

opor aos fatos. Há que fazer dos fatos, acontecimentos que, sendo inaugurais, instauram

no próprio a aprendizagem, a escuta do real.

A escuta é o agir da linguagem, de modo que a eclosão do real em linguagem

pode ser vista nos seguintes parágrafos do conto rosiano:

E, vindo o outro dia, no não-estar-mais-dormindo e não-estar-

ainda-acordado, o Menino recebia uma claridade de juízo ― feito um

sopro ―doce, solta. Quase como assitir às certezas lembradas por um

outro; era que nem uma espécie de cinema de desconhecidos

pensamentos; feito ele estivesse podendo copiar no espírito ideias de

gente muito grande. Tanto, que, por aí, desapareciam, esfiapadas.

Mas, naquele raiar, ele sabia e achava: que a gente nunca podia

apreciar, direito, mesmo, as coisas bonitas ou boas, que aconteciam.

Às vezes, porque sobrevinham depressa e inesperadamente, a gente

nem estando arrumado. Ou esperadas, e então não tinham gosto de tão

boas, eram só um arremedado grosseiro. Ou porque as outras coisas,

as ruins, prosseguiam também, de lado e do outro, não deixando limpo

lugar. Ou porque faltavam ainda outras coisas, acontecidas em

diferentes ocasiões, mas que careciam de formar junto com aquelas,

para o completo. Ou porque, mesmo enquanto estavam acontecendo, a

gente sabia que elas já estavam caminhando, para se acabar, roídas

pelas horas, desmanchadas... O Menino não podia ficar mais na cama.

Estava já levantado e vestido, pegava o macaquinho e o enfiava no

bolso, estava com fome.20

19

ROSA, Op. cit., p. 226 20

Ibidem, pp. 227-228

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A apreciação, o auscultar, consonante pelo próprio, nem sempre é inaugurado.

Nos parágrafos suscitados, o narrador do conto elenca situações em que não são

experienciadas plenamente para tornarem-se acontecimentos, no diálogo instaurado pelo

real e pela linguagem, no vigorar do próprio.

Na estória “Os cimos”, o “aparecimento do pássaro” é extraordinário. É

inauguração da instauração original do real. Assim, verifica-se a abertura do real em

linguagem no trecho a seguir:

O alpendre era um passadiço, etre o terreirinho mais a mata e o

extenso outro-lado ―aquele escuro campo, sob rasgos, neblinas, feito

um gelo, e os perolins do orvalho: a ir até o fim de vista, à linha do

céu de este, na extrema do horizonte. O sol ainda não viera. Mas a

claridade. Os cimos das árvores se douravam. As altas árvores depois

do terreiro, ainda mais verdes, do que o orvalho lavara. Entremanhã

― e de tudo um perfume, e passarinhos piando. Da cozinha, traziam

café.

E: ― “Pst!” ―apontou-se. A uma das árvores, chegara um

tucano, em brando batido horizontal. Tão perto! O alto azul, as

frondes, o alumiado amarelo em volta e os tantos meigos vermelhos

do pássaro ―depois de seu vôo. Seria de ver-se: grande, de enfeites, o

bico semelhando flor de parasita. Saltava de ramo em ramo, comia da

árvore carregada. Toda a luz era dele, que borrifava-a de seus

coloridos, em momentos pulando no meio do ar, estapafrouxo,

suspenso esplendetemente. No topo da árvore, nas frutinhas, tuco,

tuco... daí limpava o bico no galho. E, de olhos arregaçados, o

Menino, sem nem poder segurar para si o embevecido instante, só nos

silêncios de um-dois-três. No ninguém falar. Até o Tio. O Tio,

também, estava de fazer gosto por aquilo: limpava os óculos. O tucano

parava, ouvindo outros pássaros ―quem sabe, seus filhotes ―da

banda da mata. O grande bico para cima, desferia, por sua vez, às uma

ou duas, aquele grito meio ferrugento dos tucanos: ― “Crrée!”... O

Menino estando nos começos de chorar. Enquanto isso, cantavam os

galos. O Menino se lembrava sem lembrança nenhuma. Molhou todas

as pestanas.

E o tucano, o vôo, reto, lento ―como se voou embora, xô, xô!

― mirável, cores pairantes, no garridir; fez sonho. Mas a gente nem

podendo esfriar de ver. Já para o outro imenso lado apontavam. De lá,

o sol queria sair, na região da estrela-d‟alva. A beira do campo,

escura, como um muro baixo, quebrava-se, num ponto, dourado

rombo, de bordas estilhaçadas. Por ali, se balançou para cima, suave,

aos ligeiros vagarinhos, o meio-sol, o disco, o liso, o sol, a luz por

tudo. Agora, era a bola de ouro a se equilibrar no azul de um fio. O

Tio olhava no relógio. Tanto tempo que isso, o Menino nem

exclamava. Apanhava com o olhar cada sílaba do horizonte.

Mas não pudera combinar com o vertiginoso instante a presença

de lembrança da Mãe ―sã, ah, sem nenhuma doença, conforme só em

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alegria ela ali teria de estar. E nem a ligeireza de idéia de tirar do

bolso o companheiro bonequinho macaquinho, para que ele visse

também: o tucano ― o senhorzinho vermelho, batendo as mãos, à

frente o bico empinado. Mas feito se, a cada parte e pedacinho de seu

vôo, ele ficasse parado, no trecho e impossivelzinho do ponto, nem no

ar ―por agora, sem fim e sempre. 21

O surgimento do tucano irrompido no real instaura uma mundividência primeira

na estória. O dizer do narrar do narrado abre-se à aparição inaugural vertido pelo real e

pela linguagem na estória. A instauração do aparecimento do tucano é um

acontecimento ante as retinas sofríveis do Menino. A mundividência auscultada

inaugura-se no Menino diante do real que se instaura. Ele “se lembrava sem lembrança

nenhuma”. A doação do real é o desmedido inaugural. É o original que vem de encontro

ao próprio, em que o Menino “molhou todas as pestanas”.

O acontecimento do sol se pondo firme no céu azul é a nascitividade da physis

na mundificação do real. Ele é instaurador na amplitude do dizer do narrar na linguagem

harmoniosa. Enquanto o tio olhava o relógio, o Menino “nem exclamava. Apanhava

com o olhar cada sílaba do horizonte.” Este é partícipe do sertão rosiano, da terceira

margem, no desmedido do real, da linguagem, da verdade, da memória. A linguagem

permite que o Menino leia o pôr-do-sol. O horizonte não se apresenta em fragmentos,

em pequenos espaços quadriculados como um quebra-cabeça. Mas, apresenta-se no seu

desmedido que é mundificado e pode ser dito e escutado pela linguagem e instaurado

pelo inaugural do real.

O próprio do Menino é diálogo com o real. Nem a lembrança da mãe sã nem a

presença do macaquinho ao seu lado podem desvirtuar o diálogo estabelecido entre o

próprio do Menino, o real e a linguagem. É o seu próprio que permite a auscultação do

real e da linguagem em doação da physis. Esta, com seu agir, é o aberto consonante com

21

ROSA, Op. cit., pp. 228-229

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a linguagem e do real. O Menino vivifica-a em seu desmedido aflorar enquanto que seu

Tio encontra-se preso nas artimanhas tecnicista do momento cronológico. O Menino

está na temporalidade do desmedido, da abertura da linguagem, doadora de sentidos, de

silêncio, do dizer do narrar na narrativa.

A presença do tucano no desmedido do céu simboliza o menino no desmedido

do real, da linguagem, do dizer do narrar. A narrativa apresenta-se para além do dito e o

dizível é a instauração dialógica entre a linguagem e o real, no brotar da physis

instauradora, mundificadora, de incessante operar. O tucano não é representação, mas o

agir da physis, original, da instauração do real, da presentificação da linguagem, da

experienciação do dizer do narrar. O tucano dialoga com o próprio do Menino. A physis

é diálogo com o Menino, marcado pela letra maiúscula, pois, ele é dialógico,

auscultador da linguagem e vivificador do real.

O Menino é consonante com o real e vivifica a physis em plenitude, harmonia

com a linguagem e com o ser. A physis, em plenitude, é diálogo em unidade. Em “O

trabalho do pássaro”, o tucano, propedêutico, inaugura a cura. Assim, apresentam-se os

seguintes parágrafos do conto:

Assim, o Menino, entre dia, no acabrunho, pelejava com o que

não queria querer em si. Não suportava atentar, a cru, nas coisas,

como são, e como sempre vão ficando: mais pesadas, mais-coisas

―quando olhadas sem precauções. Temia pedir notícias; temia a Mãe

na má miragem da doença? Ainda que relutasse, não podia pensar para

trás. Se queria atinar com a Mãe doente, mal, não conseguia ligar o

pensamento, tudo na cabeça da gente dava num borrão. A Mãe da

gente era a Mãe da gente, só; mais nada.

Mas, esperava; pelo belo. Havia o tucano ―sem jança ―em

vôo e pouso e vôo. De novo, de manhã, se endereçando só àquela

árvore de copa alta, de espécie chamada mesmo tucaneira. E dando-

lhe o raiar do dia, seu fôlego dourado. Cada madrugada, à horinha, o

tucano, gentil, rumoroso: ...chégochégochégo... ―em vôo direto,

jazido, rente, traçado macio no ar, que nem um naviozinho vermelho

sacudindo devagar as velas, puxado; tão certo na plana como se fosse

um marrequinho deslizando para a frente, por sobre a luz de dourada

água. [...]

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Esperava-se o tucano, que chegava, a-justo, a-tempo, a-ponto,

às seis-e-vinte da manhã; ficava, de arvoragem, na copa da tucaneira,

futricando as frutas, só os dez minutos, comidos e estrepulados. Daí,

partia, sempre naquele outro-rumo, no antes do pingado meio-instante

em que o sol arrebolava redondo do chão; porque o sol era às seis-e-

meia. O Tio media tudo no relógio. [...]

De repente, ouviu que, para consolá-lo, combinavam maneira

de pegar o tucano: com alçapão, pedrada no bico, tiro de

espingardinha na asa. Não e não! ―zangou-se, aflito. O que cuidava,

que queria, não podendo ser aquele tucano, preso. Mas a fina primeira

luz da manhã, com, dentro dela, o vôo exato. [...]

O Tio, entanto, diante dele, parou sem a qualquer palavra. O

Menino não quis entender nenhum perigo. Dentro do que era, disse,

redisse: que a Mãe nem nunca tinha estado doente, nascera sempre sã

e salva! O vôo do pássaro habitava-o mais. O bonequinho macaquinho

quase caíra e se perdera: já estando com a carinha bicuda e meio corpo

saídos do bolso, bisbilhotados! O Menino não lhe passara pito. A

tornada do pássaro era emoção enviada, impressão sensível um

transbordamento do coração. O Menino o guardava, no fugidir, de

memória, em feliz vôo, no ar sonoro, até à tarde. O de que podia se

servir para consolar-se com, e desdolorir-se, por escapar do aperto de

rigor ―daqueles dias quadriculados.

Ao quarto dia, chegou um telegrama. O Tio sorriu, fortíssimo.

A Mãe estava bem, sarada! No seguinte ―depois do derradeiro sol do

tucano ―voltariam para casa.22

Mais do que agente de um momento prazeroso, o tucano foi o porta-voz da cura

e da aprendizagem do Menino. Ter a Mãe sã era o principal desejo do Menino. Mas o

caminho, interposto entre a doença e a cura da Mãe, é trilhado por ele na experienciação

do real, no auscultar da linguagem, na doação da physis, na instauração do ser em uma

harmonia dialógica.

A procura pela cura da Mãe é sentida pelo Menino no operar do real. A realidade

vivenciada pelo Tio não abarca o real mundificado, já que é uma possibilidade da

pluralidade do real, onde o Menino, como ser rosiano, cria amplitudes para vivenciar e

experienciar o real, nas suas múltiplas possibilidades de passados, de presentes e de

futuros, de tempo cronológico e de não tempo marcado mecanicamente.

22

ROSA, Op. cit., pp. 229, 230, 231, 232

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O encanto do Menino pelo tucano não era o de posse. Não era seu desejo

engaiolá-lo para quando quiser apreciar suas penas. Mas, sim, queria vê-lo em seu agir

na physis, liberto pelo brotar incessante da physis no real, pela procura em instaurar-se

originalmente primeiro. O tucano, na amplitude do real, posto que este não pode ser

medido nem enquadrado, tal como aquele em seu esplendor de ser, leva o Menino a

uma outra amplitude não marcada pelo sofrimento de ter a mãe doente. Não se trata de

alívio, mas de experienciar o real em uma outra instauração, outra dimensão de um real

que se dá e se encobre em operar mundos.

A physis é brotação incessante, assim como é o sertão rosiano. Diz-se sertão

rosiano para o real movente instaurado pelo narrar das estórias em seu dizer

mundificador. Uma conjectura pragmática e programada seria muito pouco para dizer

sobre a pluralidade desmedida do sertão rosiano. Assim, o Menino não é apresentado e

representado pela infantilidade, circunscrita, amiúde, para desqualificar a criança em

detrimento de sancionar uma etapa da vida como a única digna e respeitada para ser

vivida. Tanto as crianças quanto os anciões são originais nas estórias rosianas, pois eles

estão experienciando o real, auscultando a linguagem, sendo. Não há como enclausurar

as personagens rosianas em tipologias, posto que é, propriamanente, o desmedido do

ser no real o dizer original do narrar nas estórias rosianas. O ser que não pode ser

representado por não ser sempre o mesmo nem ser encaixotado por não ser passível de

materialização oxidável.

O pássaro trouxe consigo o agir da physis. Ele operar operou no Menino,

instaurando o real mundificado, inaugurando a linguagem em abertura com o ser. O

próprio é a procura de si, ainda que haja a procura pela cura da mãe. Ou seja, através da

procura pela cura da Mãe, ele se cura por experienciar o real, o agir da physis dita pelo

tucano. Este insurge e deambula pelo desmedido do ser tão veredas do real. Ele é o

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acalanto do mundificador real e do operar da physis, da auscultação da linguagem e da

inaugurabilidade do ser.

No brotar incessante da physis, mundifica-se a harmonia caótica e cosmogônica

do sertão rosiano, assim, como a alegria e o sofrimento são o operar do real. Nas

estórias rosianas, o sofrimento, como agir do real, propicia a experienciação do mundo,

do sertão. Sua inaugurabilidade não pode ser medida por sentimentalismo nem por

pragmatismo. Posto que o sofrimento é cadencia do real, não pode ser representado em

estagnações e conceituações.

O sofrimento, em si, não torna ninguém mais vulnerável, quando é dialógico

com o real, a linguagem, a physis, o ser. Ele é descoberta. Esta não se dá pela percepção

de fatos ou pela compreensão de palavras, mas, quando há a escuta do próprio. O

próprio é o nascer de si, a cura da procura, o desencoberto do encoberto, a voz da

unidade da pluralidade. O sofrimento leva, ao ápice, a experiência vivificada. As

lágrimas são o transbordamento, plenitude da inauguração do real e da linguagem.

Quem é acometido pelo sofrimento não pode ser adjetivado como peixe fora

d‟água. Ainda que a realidade seja uma coisificação para a pluralidade do real, o

sofredor não a impugna, mesmo quando ela é enclausurante, porém, ultrapassa-a ao ser

vigorado pelo acontecer primordial, pela abertura do real na amplitude da linguagem. O

real é tudo o que é; a realidade são as possibilidades do real. A unidade de physis e de

poiesis pode levar às realizações do que se diz e do que se dá.

Nas estórias rosianas, a alegria não é o privilégio, assim como a tristeza não é o

fundo do poço. Ambas são acontecimentos na doação do real, da linguagem, do ser. Ser

alegre é auscultar a si, velando pelo próprio, na experienciação e na vivificação,

plenificando o desmedido aflorar do sentido. A alegria insurge, portanto, da tristeza,

também. Como possibilidade de ser, a tristeza não dura ad infinitum, posto que o real é

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pluralidade. Não está dito que a tristeza é temporária ou esporádica, mas, sim, entende-

se que a tristeza é independente de qualquer medição cronológica, subjetiva, temporal,

adjetiva. E seu fim pode ser a inauguração da alegria.

E o desmedido momento é o abrir-se à vida, narrado no subcapítulo “O

desmedido momento”. Na singeleza do cotidiano, na sutileza do pensar, na simplicidade

de um seu suceder há o momento desmedido, quando se depara com a vida e procura-se

vivê-la.

E, com pouco, o Menino espiava, da janelinha, as nuvens de

branco esgarçamento, o veloz nada. Entretempo, se atrasava numa

saudade, fiel às coisas de lá. Do tucano e do amanhecer, mas também

de tudo, naqueles dias tão piores: a casa, a gente, a mata, o jeep, a

poeira, as ofegantes noites ―o que se afinava, agora, no quase-azul de

seu imaginar. A vida, mesmo, nunca parava. O Tio, com outra

gravata, que não era a tão bonita, com pressa de chegar olhava no

relógio. Entrepensava o Menino, já quase na fronteira soporosa. Súbita

seriedade fazia-lhe a carinha mais comprida.

E, quase num pulo, agoniou-se: o bonequinho macaquinho não

estava mais em seu bolso! Não é que perdera o macaquinho

companheiro!... Como fora aquilo possível? Logo as lágrimas lhe

saltavam.

Mas, então, o moço ajudante do piloto veio trazer-lhe, de

consolo, uma coisa: ― “Espia, o que foi que eu achei, para Você.”

―e era, desamarrotado, o chapeuzinho vermelho, de alta pluma, que

ele, outro dia, tanto tinha jogado fora!

O Menino não pôde mais atormentar-se de chorar. Só o rumor e

o estar no avião o atontavam. Segurou o chapeuzinho sozinho, alisou-

o, o pôs no bolso. Não o companheirinho Macaquinho não estava

perdido, no sem-fundo escuro no mundo, nem nunca. Decerto, ele só

passeava lá, porventuro e porvindouro, na outra-parte, aonde as

pessoas e as coisas sempre iam e voltavam. O Menino sorriu do que

sorriu, conforme de repente se sentia: para fora o caos pré-inicial, feito

o desenglobar-se de uma nebulosa.

E era o inesquecível de-repente, de que podia traspassar-se, e a

calma, inclusa. Durou um nem-nada como a palha se desfaz, e, no

comum, na gente não cabe: paisagem, e tudo, fora das molduras.

Como se ele estivesse com a Mãe, são, salva, sorridente, e todos, e o

Macaquinho com uma bonita gravata verde ―no alpendre do

terreirinho das altas árvores... e no jeep aos bons solavancos... e em

toda-a-parte... no mesmo instante só... o primeiro ponto do dia...

donde assistiam, em tempo-sobre-tempo, ao sol no renascer e ao vôo,

ainda muito mais vivo, entoante e existente ―parado que não se

acabava ―do tucano, que vem comer frutinhas na dourada copa, nos

altos vales da aurora, ali junto de casa. Só aquilo. Só tudo.

―”Chegamos, afinal!” ―o Tio falou.

―”Ah, não. Ainda não...” ―respondeu o Menino.

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Sorria fechado: sorrisos e enigmas, seus. E vinha a vida.23

E, após, a experiência, a vida se (re) inicia. Da partida, chega a saudade. Esta

irrompe do experienciado e do convivido no real. A teia da vida é a doação do real e da

linguagem. É a vereda. O Menino, de volta para casa, já está em um novo caminho, no

âmago inaugural. Ele sabe que não está no ponto de chegada, mas, no caminhar que é a

vida.

A criança rosiana é mundividente. Experiencia o real no pulsar original. Em, “A

menina de lá”, Nhinhinha, Maria, morre, mas, antes de sua consumação, experiencia o

real com todo o brotar poético, do dizer inaugural do narrar rosiano. Assim, apresenta o

seguinte fragmento:

Não que parecesse olhar ou enxergar de propósito. Parava

quieta, não queria bruxas de pano, brinquedo nenhum, sempre

sentadinha onde se achasse, pouco se mexia. ― “Ninguém entende

muita coisa que ela fala...” ―dizia o Pai, com certo espanto. Menos

pela estranhez das palavras, pois só em raro ela perguntava, por

exemplo: ― “Ele xurugou?” ―e, vai ver, quem e o quê, jamais se

saberia. Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com

riso imprevisto: ― “Tatu não vê a lua...” ―ela falasse. Ou referia

estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para

uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma

mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava;

ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a

gente vem perdendo. Só a pura vida.24

O agir poético é pulsar criador. Ele torna presença o incessante agir da physis. É

o instaurar da mundividência do dizer e do silêncio. No dizer do narrar, a poiesis é

eclosão de sentidos no ininterrupto fluir da linguagem. Esta unidade dialógica não é

excludente, já que a mundificação do real é consonante. Não devem ser tomados como

ingredientes de uma porção, mas, sim, como propulsores criativos inaugurais.

23

ROSA, Op. cit., pp. 232, 233, 234 24

Ibidem, pp. 67-68

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62

Nhinhinha é mundividente. É personagem do sertão rosiano que se inaugura na

instância da linguagem. O dizer do narrar diz o ser. O mostrar do dizer é mais do que

uma localização, é o mostrar do próprio. O próprio não pode ser transferido, mas pode

ser auscultado pelo diálogo, pelo dizer da linguagem, pelo criar do poético, pelo agir da

physis. A criança rosiana é partícipe do mundo movente sertanejo. Ela é inaugural como

o sertão, como a estória rosiana que diz e se diz na amplitude da linguagem e do real.

Nhinhinha é personagem que se insurge no desmedido e incalculável dizer do narrar,

posto que, simplesmente, este se dá pela linguagem e pelo real. Como a linguagem não

pode ser mensurada, o real não pode ser contabilizado. Da mesma forma, Nhinhinha é

original.

Nhinhinha experiência o real com originalidade. Ela se abre à grandiosidade do

real, com sua pluralidade e sua unidade. Assim, a caracterização da personagem é sem

valia, em detrimento da instauração do dizer de Nhinhinha na narrativa. A personagem

criança, em estórias rosianas, é o mostrar do real, da linguagem, do ser, da poética, da

physis, do logos. A conceituação, pela ação de depreender, falaria sobre Nhinhinha, mas

não falaria a Nhinhinha no desmedido da amplitude do dizer do narrar. Assim, o dizer

diz Nhinhinha, como é dito nos parágrafos a seguir:

Nada a intimidava. Ouvia o Pai querendo que a Mãe coasse um

café forte, e comentava, se sorrindo: ― “Menino pidão... Menino

pidão...” Costumava também dirigir-se à Mãe desse jeito: ― “Menina

grande... Menina grande...” Com isso Pai e Mãe davam de zangar-se.

Em vão. Nhinhinha murmurava só: ― “Deixa... Deixa...” ―

suasibilíssima, inábil como uma flor. O mesmo dizia quando vinham

chamá-la para qualquer novidade, dessas de entusiasmar adultos e

crianças. Não se importava com os acontecimentos. Tranqüila, mas

viçosa em saúde. Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam

suas preferências. Como puni-la? E, bater-lhe, não ousassem; nem

havia motivo. Mas, o respeito que tinha por Mãe e Pai, parecia mais

engraçada espécie de tolerência. E Nhinhinha gostava de mim.

Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite.

―Cheiinhas!” ―olhava as estrelas, deléveis, sobre-humanas.

Chamava-as de “estrelinhas pia-pia”. Repetia: ― “Tudo nascendo!”

―essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de

um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança. ―

“A gente não vê quando o vento se acaba...” Estava no quintal,

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vestidinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a gente é

que ouvia exagerado: ― “Alturas de urubuir...” Não, dissera só: ―

“... altura de urubu não ir.” O dedinho chegava no céu. Lembrou-se

de: ― “Jabuticaba de vem-me-ver...” Suspirava, depois: ― “Eu quero

ir para lá.” ―Aonde?― “Não sei.” Aí observou: ― “O passarinho

desapareceu de cantar...” De fato, o passarinho tinha estado cantando,

e, no escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo;

agora, ele se interrompera. Eu disse: ― “A avezinha.” De por diante,

Nhinhinha passou a chamar o sabiá de “Senhora vizinha...” E tinha

respostas mais longas: ― “Eeu? Tou fazendo saudade.” Outra hora,

falava-se de parentes já mortos, ela riu: ― “Vou visitar eles...” Ralhei,

dei conselhos, disse que ela estava com a lua. Olhou-me, zangada,

seus olhos muito perspectivos: ― “Ele te xurugou?” Nunca mais vi

Nhinhinha.

Sei, porém, que foi por aí que ela começou a fazer milagres.25

Nhinhinha é partícipe do real, como tal instaura-se, e da physis, como tal eclode.

Ela apresenta-se inauguralmente, com a linguagem primordial, mundificando-se no

extraordinário do real. Nhinhinha é uma personagem extraordinária, inaugurada no

ilimitado do dizer do narrar. A linguagem torna-se presença original, com a

originalidade do pensar de Nhinhinha. O lógos em diálogo com a linguagem, a verdade

e o real, mostra a Nhinhinha que é, no dizer inaugural.

Para o dizer na estória, o lógos é remissão à linguagem em unidade com o agir

convergente. Nhinhinha está lá, onde o lógos nutre o ser, dizendo-o no pulsar de

revelamento, desvelamento, velamento. Assim, ela diz: “― „Eu quero ir para lá.‟”.

Esse lugar vai além do imediato que não serve como parâmetro para o real, de modo

que uma alocação se torna morada humana quando há o esplendor da linguagem, bem

como, do lógos. Este é reunião de todos os sentidos, de modo que não pode ser

depreendido, mas, sim, auscultado pelo próprio.

O lógos, como unidade dialógica, instaura-se no agir incessante da physis, da

poética, do ser. Assim, o dizer de Nhinhinha é instaurador de sentido, do ser, de modo

que ela fala: “― „Eeu? Tou fazendo saudade.‟” O seu fazer é próprio. Apesar de que a

25

ROSA, Op. cit., pp. 68-69

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criança seja diminuída pela sociedade funcionalista, Nhinhinha se instaura no real, no

inaugural do lógos. E quem estiver ao pé dela, não saberá quem ela é ou quem ela não é.

Não dialogará com o dizer tecido por suas palavras enquanto doações da linguagem.

O lá habitado por Nhinhinha é povoado pelos milagres. Assim, a narrativa fala

pelo narrador que não mais avistou a menina: “Sei, porém, que foi por aí que ela

começou a fazer milagres.”26

Ao povoar o extraordinário, a menina está no desmedido

da linguagem, no fluir incessante da physis, no ilimitado do real, em nascitividade

plural, na morada do próprio. Fora do limite imposto, Nhinhinha se inaugura pelo dizer

das palavras, pelo dizer do narrar. A linguagem cria pontes no extraordinário,

permitindo que caminhos originais sejam trilhados.

Nhinhinha caminha pelas veredas rosianas, instaurando-se no sertão que é

inaugurado pelo real e mundificado pela linguagem. Portanto, não se deve relacionar a

personagem a uma caracterização de atributos e conceituais. Mas, deve-se abrir à

linguagem em toda plenitude dita pela narrativa, no dizer inaugural da linguagem, no

dizer da plenitude do logos e da physis, no dizer da mundificação do real. Nhinhinha

está para além da esquematização e sistematização impostas pelo olhar dicotômico e

segregador.

A menina insurge no movente do sertão. Ela habita o sertão e vivifica no

desmedido do real e no dizer da linguagem. Deste modo, Nhinhinha é mundificada pelo

dizer do narrar. Este dizer diz Nhinhinha em abertura de sentidos, elencado pela

linguagem. A vida é dita pelo narrar na inaugurabilidade de Nhinhinha. A plenitude da

vida se dá com a morte. Os trechos a seguir narram a passagem da morte da menina:

Daí a duas manhãs, quis: queria o arco-íris. Choveu. E logo

aparecia o arco-da-velha, sobressaído em verde e o vermelho ―que

era mais u vivo cor-de-rosa. Nhinhinha se alegrou, fora do sério, à

26

ROSA, Op. cit., pp. 68-69

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tarde do dia, com a refrescação. Fez o que nunca se lhe vira, pular e

correr por casa e quintal. ― “Adivinhou passarinho verde?” ―Pai e

Mãe se perguntavam. Esses, os passarinhos, cantavam, deputados de

um reino. Mas houve que, acerto momento, Tiantônia repreendesse a

menina, muito brava, muito forte, sem usos, até a Mãe e o Pai não

entenderem aquilo, não gostaram. E Nhinhinha, branda, tornou a ficar

sentadinha, inalterada que nem se sonhasse, ainda mais imóvel, com

seu passarinho-verde pensamento. Pai e Mãe cochichavam, contentes:

que, quando ela crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a

eles, conforme à Providência decerto prazia que fosse.

E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu. Diz-se que de má água

desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais.

Desabado aquele feito, houve muitas diversas dôres, de todos,

dos de casa: um de repente enorme. A Mãe, o Pai e Tiantônia davam

conta de que era a mesma coisa que se cada um deles tivesse morrido

por metade. E mais para repassar o coração, de se ver quando a Mãe

desfiava o terço,mas em vez das aves-marias podendo só gemer aquilo

de ― “Menina grande... Menina grande...” ―com toda ferocidade. E

o Pai alisava com as mãos o tamboretinho em que Nhinhinha se

sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia, que com o

peso de seu corpo de homem o tamboretinho se quebrava.

Agora, precisavam de mandar recado, ao arraial, para fazerem o

caixão e aprontarem o enterro, com acompanhamento de virgens e

anjos. Aí, Tiantônia tomou coragem, carecia de contar: que, naquele

dia, do arco-íris da chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha falado

despropositado desatino, por isso com ela ralhara. O que fora: que

queria um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes... A

agouraria! Agora, era para se encomendar o caixãozinho, assim, sua

vontade?

O Pai, em bruscas lágrimas. Esbravejou: que não! Ah, que, se

consentisse nisso, era como tomar culpa, estar ajudando ainda a

Nhinhinha a morrer...

A Mãe queria, ela começou a discutir com o Pai. Mas, nomais

choro, se serenou ―o sorriso tão bom, tão grande ― suspensão num

pensamento: que não era preciso encomendar, nem explicar, pois

havia de sair bem assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos,

porque era, tinha de ser! ― pelo milagre, o de sua filhinha em glória,

Santa Nhinhinha.27

A consumação da vida é a morte. Assim, Nhinhinha se realiza no caminhar pelas

veredas do sertão, do dizer da linguagem até a vivenciar sua plenitude com a morte. Na

plenitude, não há como fugir do destino que é a consumação. Nhinhinha disse sua morte

na abertura da linguagem, deambulando para a consumação. A morte não lhe foi

temerosa, já que a unidade da vida é a morte. Não há como se desvencilhar ou fugir da

plenitude da vida, para onde caminham todos. Seus milagres não podiam interceder por

27

ROSA, Op. cit., pp. 70, 71, 72

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si, pois, já intercedia que haveria sua plenificação com a consumação, de modo que é

canonizada, pela narrativa, “Santa Nhinhinha”.

Em memória de Nhinhinha, os pais resolvem fazer a vontade de Nhinhinha, de

enterrá-la em caixão cor-de-rosa com adereços verdes. Sua vontade manifestada no real,

pelo dizer de sua tia, que disse ter se zangado quando a menina lhe disse sua vontade,

no oportuno momento da morte. A morte é questionável, pois, sua consumação pode

ocorrer em discordância com as vontades. No entanto, a consumação da morte é

plenitude. Por ser criança, Nhinhinha pode não ter trilhado as consecutivas fases

humanas, mas, ela vivenciou o real e a linguagem em plenitude, inaugurando-se

originalmente no sertão rosiano. Ela se estabelece na consumação plena do real, do ser e

da linguagem.

Como ser do agir, Nhinhinha é presença e ausência. Sua ausência material, com

a morte, é presença pelo dizer do narrar e pela plenitude consumada. Cada um possui

sua consumação em um vir a ser, do qual, não há como fugir, se desvencilhar ou

protelar. Os planos dos pais de Nhinhinha para o futuro melhor, proporcionado pelos

feitos da menina, para quando ela crescesse, foram frustrados pela intercessão do real.

De maneira própria, o real é possibilidades singulares e plurais, ou seja, é desmedida

abertura do agir inaugurado, mundificado, instaurado.

A menina Nhinhinha inaugura-se no real e na linguagem de maneira original

com seus milagres e com sua experienciação de real e da linguagem. Sua vivencia é

própria, dita pela linguagem no dizer inaugural do narrar que mundifica o ser naquilo

que é próprio. Nhinhinha é agente do sertão na amplitude da doação da linguagem, da

physis, da poética e da verdade que age nas margens do dizer em revelação,

desvelamento e velamento. Ela é operar do sertão que é o real. Ela é o dizer da

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linguagem. Ela é a plenitude da physis. Ela é a auscultação do lógos. Ela é o fazer da

poética. Ela é o que é.

O tempo cronológico não mede as estórias rosianas, pois não pode servir como

medida para o experienciável e o experienciado do tempo de cada uma das personagens.

O tempo rosiano é o agir propulsor de tudo que é e não é. É o tempo instaurador que

funda e mundifica. É o tempo que diz e se faz linguagem. É o tempo de experienciar. É

o tempo de ser. O ser irrompe independentemente do tempo cronológico, pois ele não é

mediado pela consecução formada por passado, presente e futuro. Inexiste uma

linearidade cronológica temporalizada. Não são as marcas temporais que dizem o agir

temporal, mas, sim, o próprio agir do tempo, ou seja, o tempo não se resume às

digressões e progressões, já que o tempo é dialógico com o agir do ser, que, nas

histórias rosianas, permeia as personagens rosianas independentemente da faixa etária,

já que crianças e anciões experienciam o tempo em toda sua amplitude.

O desmedido, por condizer com a experiência, é ilimitado. É negável que possa

ser enclausurado, formatado, moldado e repartido, pois, é abertura incessante. Revigora-

se e renova-se por ser. O tempo encadeia-se fora de amarras e de preconcepções. Ele

opera sem conceitos por desprender-se das amarras conceituais para si e para a

experiência. O tempo é a experiência vigorada. A experiência vigorada é tempo. O

instante inexiste para a experiência, posto que esta se dá fora do cronológico e da

conceituação. Há o aflorar incessante do tempo para o agir incessante da experiência. O

ser opera em diálogo com o tempo. O que não quer dizer que um demarca o outro. Mas,

sim, há a consonância entre o operar de ambos, que frutifica a experiência.

Independentemente de escalas e valores, a experiência insurge pelo auscultar que a

personagem, e qualquer um, faz do que lhe é próprio, ou seja, há que auscultar o ser e o

tempo que pulsam e dizem. O agir do dizer invoca a linguagem que mais se presentifica

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quando a personagem mais se lançar no aberto da experiência, já que o silêncio mais se

revigora quando mais o dizer se calar, de modo que a linguagem diz e operam-se o

tempo e o ser.

A linguagem presentifica o dizer. O dizer é abertura para a linguagem. Quem

ausculta o dizer vigora na linguagem. Como já dizia Heráclito: tudo é um28

. Assim,

linguagem, ser e tempo são um. A tríade opera de modo que cada uma das partes não

anule a outra nem a suplante ou a diminua. É o operar harmônico que mundifica. É a

comunhão instauradora que diz e silencia.

O agir do tempo diz mais do que as simplórias marcas físicas. Esse pulsar não é

marcado especificamente pelas feições das personagens. A linguagem operando diz o

tempo de cada personagem, seja uma criança, seja ancião, ou, ainda, um adulto

qualquer. A linguagem opera o dizer que também diz sobre cada personagem, assim

como, o dizer de cada personagem diz. O fio temporal, portanto, constrói-se por

experiências ditas e audíveis, de modo que a cronologia não tece a narrativa rosiana,

ainda que haja enredos com alusões cronológicas. O tempo rosiano é o ser, a linguagem,

convergindo para a unidade, no sentido do um dito por Heráclito. E, ainda, o tempo

rosiano é poético. O agir do tempo é o produzir linguagem que diz na narrativa, e,

assim, nas estórias rosianas, sejam elas primeiras, segundas ou terceiras, sejam elas

ditas pelo narrar ou pelo silêncio. O tempo poetizado instaura-se quando há a ausculta

do dizer. Ser todo ouvidos requer a escuta do próprio no diferente, do mesmo modo que

a personagem opera naquilo que lhe é próprio, não se remetendo às características, aos

adjetivos e às conceituações, mas, sim, ao relacionar-se no agir próprio, no fluir do ser

que a mostra mostrando-se. As ações das personagens são mais do que predicados ou

28

“Auscultando não a mim mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um”. ANAXIMANDRO. PARMÊNIDES. HERÁCLITO, Op. cit., p. 71

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atributos, são o aflorar das experiências ditas e ditas novamente, e novamente, e

novamente, no inesgotável pulsar do tempo, da linguagem e do ser.

O tempo tampouco é relativo. O tempo é existência. O tempo é linguagem. O

tempo é ser. Considerar o tempo relativo constringe-o ao plano das pressuposições e o

tempo, deveras, não depende de nenhuma pressuposição, presunção, anulação,

ordenação nem conceituação para existir. Muito menos, depende do ponto de vista para

ser o que é: tempo.

O tempo é abertura desmedida. Por suas veredas, quem caminha em sua clareia

abre-se para o diálogo e quem se abre ao silêncio silencia o dizer desmedido do não dito

e silenciado percurso. A abertura do tempo diz questões que serão auscultadas por

aqueles que estejam abertos ao dizer do tempo, ao dizer da linguagem e ao dizer do ser,

no sentido de que deve estar auscultando, e sendo linguagem, tempo e ser, não do modo

como quem veste uma máscara ou adota roupas características de uma entidade e

representação, e, sim, do diálogo harmonioso do todo que um, que diz e silencia, que é

latente e opera, que revela e encobre, que é no que é e é quando não o e, que é unidade e

diferença.

O tempo diz o que as marcas que sinalizam a idade não podem dizer: a

experiência. Por mais que a cicatriz de um corte ou operação e a presença de rugas e

pregas se estabeleçam por marcar a idade e uma ação ocorrida, a experiência advém

com a ausculta do tempo, do ser e da linguagem. As marcas do corpo representam as

ações e cicatrizes, mas a experiência está em ouvir e dialogar com o tempo e o ser.

Ações e cicatrizes são pontuais. São feitos, que podem ser novamente recordados como

estátuas de fatos históricos. Mas, para as estórias, a questão do tempo é recordá-lo e

experienciá-lo como o agir mundificador e instaurador do dizer, da experiência, da

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vivência e da mundividência, com o incessante diálogo dito e silenciado pela

linguagem, pelo ser e pelo tempo.

Ter experiência é abrir-se à escuta do dizer. Não há o mais dito e o menos dito,

mas, sim, a plenitude do dizer, a consumação da escuta, a ausculta do apelo do dito e do

não dito, do descoberto e do encoberto, do velado, do revelado e do desvelado, do

emergente e do imergente. A experiência, em si, não é fruto de uma prática, de uma

ação, ou de um fato. É o acontecer da ausculta do tempo, do ser, da linguagem, do

pensamento e da memória. É a unidade harmoniosa que floresce e aflora os sentidos

para o agir do dizer, para a escuta do próprio e do diferente, para a consumação e

plenitude.

A experiência vigora no desmedido, para além e fora de qualquer limite. A

narrativa rosiana se dá fora da margem estrutural e distante do enredo fechado, de modo

que o operar da narrativa insurge conjuntamente com o operar do dizer. Assim, o dizer

da narrativa não se resume ao enredo da estória ou à fala das personagens, muito menos,

ao que o narrador pronuncia. O dizer do narrar é doação do dizer da linguagem que

revela e vela o ser, o tempo, a memoria e a verdade. Não se trata de um círculo vicioso,

mas, entende-se que há a unidade do operar na qual tudo é um. Esse agir não é

mecânico, mas sim é o vigorar de tudo que se presentifica e se encobre no próprio e no

diferente de cada um.

O narrar do dizer é o dizer do narrar. E a experiência vige no desmedido do

narrar. A sua plenitude é a ausculta do dizer da estória no próprio e na diferença de cada

uma delas. A consumação da estória se dá na abertura da linguagem, do tempo, do ser,

da memória e da verdade. A plenitude do dizer do narrar torna plena a estória que narra,

conta, revela, vela o dizer que é incessante na unidade do pensar e do ser. Parmênides

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diz que “... pois o mesmo é pensar e ser.”29

A relação dialógica entre o pensar e o ser faz

vigorar o dizer e a sua ausculta. O diálogo pleno se dá com o dizer do narrar em

consonância com a ausculta do dizer. Não se trata de um paralelismo. Trata-se do

vigorar e do vigor do diálogo incessante da estória rosiana, para o qual o dizer do narrar

diz o inaudível, o dito e vigora o não dito.

A narrativa rosiana narra o desmedido, de modo que as margens não são

privilegiadas pelo lado esquerdo ou pelo direito, nem pela profundidade, pela

superficialidade ou pela placidez, ou seja, não é a forma narrativa, a construção do

enredo e/ou o uso de uma língua rebuscada pelo caráter inventivo e pensador da

formação da língua que fazem da prosa rosiana a terceira margem. É o dizer do narrar,

ou melhor, a unidade em que Heráclito já disse quando mostrou que tudo é um. Um na

unidade que opera o próprio e a diferença. O que não quer dizer que tudo é igual, mas

deseja-se destacar que há a unidade que une tudo no diálogo operante do dizer que diz,

cala e diz quando cala. O tempo diz não pela passagem das horas, mas, sim, pelo que

age nas entre-horas, pelo que opera nos segundos, minutos e horas que não pode ser

cronometrado, mas pode ser vivenciado e experienciado.

O tempo é desmedido. O ser é desmedido. Seja pelo ponto de vista espacial ou

de ordem estabelecida. Entende-se que o tempo não pode ser espacializado, assim como

o ser, pois ele vigora no agir pleno incessante. O que não se quer dizer que haja um

alongamento do tempo nem uma contração temporal. O tempo é o pulsar que floresce a

experiência. É a questão que tudo arrasta e que age sobre todas as coisas e todos os seres

viventes. A Biblía menciona a ação do tempo, a seguir, dotando-lhe de totalidade

perante as ações humanas:

29

ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO, Op. cit., p. 45.

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Tudo tem seu tempo determinado, e há tempo para todo o

propósito debaixo do céu: há tempo de nascer e tempo de morrer;

tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de

matar e tempo de curar; tempo de derribar e tempo de edificar; tempo

de chorar e tempo de rir; tempo de de prantear e tempo de saltar;

tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar

e tempo de afastar-se de abraçar; tempo de buscar e tempo de perder;

tempo de guardar e tempo de deitar fora; tempo de rasgar e tempo de

coser; tempo de estar calado e tempo de falar; tempo de amar e tempo

de aborrecer; tempo de guerra e tempo de paz. 30

O tempo é origem e chegada. Não é um círculo vicioso, mas uma unidade de

vigorar incessante, sem se resumir à tripartição entre presente, passado e futuro. É o agir

que possibilita e é possibilidade da existência de auscultar o dizer do narrar, da

linguagem, da memória, da verdade e do ser. Este e o tempo são diálogos fundadores

que operam o dizer, não no sentido mecânico, mas, sim, por fundar o florescer do

auscultar que requer que se ouça e se diga o dito, que se mundifique o inaudível e que se

plenifique o não dito. Assim, depreende-se que o tempo rege a experiência, a vivência e

a mundividência rosiana nas estórias.

Experienciar quer dizer ir para fora do limite, da forma, do modo, do enclaustro,

da margem. A experiência insurge da ausculta do ser, do tempo, da linguagem, da

memória e da verdade. Experienciar é ser. Não se trata de vestir uma roupagem nova ou

apresentar-se com maquiagem ou mácara. A personagem que experiência é o que é na

medida em que ausculta o que diz e ausculta o que se mostra na narrativa, na estória. A

relação entre experienciar e ser advém do incessante agir que lhes é próprio. Não é

estabelecida por um caminho fechado, mas por uma via de diálogo permanente.

Ser é doação no sentido de que quem é dá o próprio, possibilitando o diálogo na

unidade com as diferenças, já que cada personagem que é não é igual e medida em

relação a outra personagem, mas, sim, é cada personagem que caminha pela via do 30

“Eclesiastes 3:1-8”. A Bíblia Sagrada. Trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1995. p. 672

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próprio na unidade que reúne todas as coisas e todos os seres. Nenhuma personagem

rosiana é igual à outra. Todas as personagens são o que são no que lhes é próprio, sem

que ocorra a negatividade de uma personagem em detrimento de outra na narrativa.

Qualquer personagem rosiana é singular. Sem igual. Sem modelo. É a unidade

instauradora que permite que haja diálogo entre as personagens, com todas as diferenças

que mostram o que dizem e o que são cada uma delas.

As personagens rosianas são dotadas de sabedoria. É o que acontece quando o

ser e o tempo são auscultados no dizer diálogo que se instaura. Na estória rosiana, a

relação tempo e ser não se forma pela relação idade-sabedoria, no sentido de que a

sabedoria é adquirida pelo tempo de vida de cada personagem, mas, sim, se dá por

vivenciar o sertão, o real que se apresenta. Isso explica o fato de personagens crianças e

anciões serem dotados de sabedoria. O novo não é imaturo e tampouco o velho é

ultrapassado.

Tio Man‟Antônio, no conto “Nada e a nossa condição”, experiência o real que se

dá, o sertão que se mostra de maneira singular. Vivencia-os sem procurar explicações,

conceituais e normatizações. Assim,

Pelas janelas, olhou; urgia a divagação. Passou a paisagem pela vista,

só a segmentos, serial, como dantes e ainda antes. De roda, na

vislumbrança, o que dos vales e serros vem é o que o horizonte é

tudo em tudo. Pois, noutro lanço de vista, ele pegava a paisagem pelas

costas: as sombras das grotas e a montanha prodigiosa, a vanescer-se,

sobre asas. Ajudavam-no, de volta. Agora que delas precisava?

Definia-se, ele, ali, sem contradição nem resistência, a inquebrantrar-

se, desde quando de futuro e passado mais não carecia. Talvez,

murmurasse, de tão dentro em si, coisas graves, grandes, sem som

nem sentido.”31

A questão está em não procurar soluções, evitar a busca pela sequência daquilo

que se dá e da vida, enfim. A vida não tem explicação, por mais que se busque uma 31

ROSA, Op. cit., p. 131

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lógica para tudo que se apresente perante os olhos. A busca por explicar o que se dá no

sertão, no real, é a procura pelo significado, mas o sertão e o real não são compostos

pela significação, e sim pela mundividência que se revela, desvela, e vela, pela

instauração que diz e pelo silêncio que silencia e mostra. A personagem aberta ao

sertão, ao real que se dá e tira, busca não a razão da vida, mas, o inexplicável. Ela

procura o que não pode ser falado, o que não pode ser mensurado, o que não pode ser

conquistado, o que não pode ser transferido. É a poiesis, é o sertão, é o real, é o tempo e

é o ser.

Para o que não há explicação, resta viver. Viver sem as amarras temporais e

espaciais. Viver em plenitude. Viver desmedidamente assim como o real que se

plenifique no agir do que se mostra e do que cala. A personagem rosiana não deambula

pelos paradigmas e o enredo não a aprisiona em funções e desempenhos na narrativa.

Ela se lança no aberto do narrar, no aberto da linguagem, no aberto do ser, no aberto do

tempo. Sem atrelar-se à dualidade entre os bons momentos e os maus momentos do que

se vivencia, posto que não são as adjetivações que fazem daquilo que acontece singular,

a personagem rosiana se presentifica por experienciar o real, o sertão de maneira

singular, plenificando, presentificando, mundificando, operando, atuando, vigorando e

agindo.

Tudo aquilo que veio à presença é o sertão. O agir da personagem no sertão

acontece pelo criar-se na narrativa, de modo que cada estória é uma mundividência que

surge da amplitude do sertão múltiplo, e, ao mesmo tempo, aberto na unidade que

permite o diálogo entre todas as estórias. A palavra de Tio Man‟Antônio para a

dualidade existente entre o bem e o mal supera o prognóstico e a manutenção da

separação e da perpetuação da dicotomia para a existência. É o que demonstra o

seguinte fragmento do conto:

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Transluz-se que, fitando-o, agora, era como se súbito as filhas

ganhassem ainda, do secesso de seus olhos, o incabível curativo de

uma graça, por mais longínquos, indizíveis reflexos ou vestígios.

Felícia, apenas, a mais jovem, clamou, falando ao pai: „Pai, a vida é

feita de traiçoeiros altos-e-baixos? Não haverá, para a gente, algum

tempo de felicidade, de verdadeira segurança?‟ E ele, com muito

caso, no devagar da resposta, suave a voz: „Faz de conta., minha

filha... Faz de conta...‟ Entreentendidos, mais não esperavam.

Cabisbaixara-se, Tio Man‟Antônio, no dizer essas palavras, que daí

seriam as suas dele, sempre. Sobre o que, leve, beijou a mulher. Então

as filhas choraram; mas com o poder de uma liberdade, que fosse qual

mais forte e destemida esperança.32

A poesia é o „faz de conta‟. É através dela que a personagem pode experienciar

o real com toda a sua amplitude e não se ater ao modo automático de ver o sertão com

olhos superficiais ou sedentos por explicação daquilo que se coloca frente à face. Por

ser o que é, Tio Man‟Antonio ausculta a poesia e experiência a vida, sem resignar-se na

constatação bipartida, entre o que pode ser bom e o que pode ser ruim. A questão é

viver poeticamente. É através da poesia, o agir que mundifica a existência, que se pode

viver, fora de conceituações, de considerações, de preceitos e de receitas. A grande

questão está em fazer da vida poesia, ou melhor, viver a vida poeticamente.

Os escritos de Hölderlin corroboram com Guimarães Rosa ao dizer que o

homem habita a terra poeticamente. É através da poesia que o homem e a personagem

rosiana mundificam a terra, plenificam a terra, habitam a terra. O sertão é poesia em

profusão. Cada personagem ausculta a poesia ao experienciar o sertão. Não é a idade

avançada que dota a personagem de poesia ou transfere-lhe a alcunha de ente realizado.

É por ser sertão que a personagem torna-se vigente no desmedido do narrar para além

das possibilidades claustrofóbicas da narrativa e mundifica para além das palavras, no

silêncio que silencia e diz e no dizer que vigora e silencia, que revela o ser e o encobre,

no agir da poesia que se presentifica e torna possível a existência. A poesia resguarda o

32

ROSA, Op. cit., p. 132

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homem do fluir cego do cotidiano, que somente se atém aos fatos, ofertando-lhe o

desmedido de ser poeta que cria a própria existência. O homem, e, por conseguinte, a

personagem, torna-se outro e mesmo na unidade que opera ser, tempo e linguagem. A

poesia faz com que o homem e a personagem deambulem pelo mundo, pelo sertão, pelo

real, para criar e criar-se e não viabilizr-se à procura de soluções.

O “faz de conta” não se apresenta por estudo de módulos e não se constitui

como uma receita de vida. Quer dizer: vigore na poesia que está aí no sertão, na vida,

seja onde for e onde estiver. No caminho de si silenciado, a poesia faz-se presente. O

fabular é fabuloso se a poesia preenche a personagem em plenitude. Tio Man‟Antônio

existe plenamente, pois vigora no vigorar da poesia. A sua ausência é presença poética.

Na narrativa, a aprendizagem do „faz de conta‟ não cabia somente à personagem, mas,

pelo dizer dela, estava aberta às demais personagens, que, se estivessem na ausculta

também poderiam vivenciar a poesia que preenche a vida inteira. É o que diz a seguinte

passagem do conto:

Com ver, porém, que Tio Man‟Antônio a andar de dó se

recusasse, sensato sem cuidados, sem acentos viuvosos. Inaugurava-se

grisalho, sim, um tanto mais encolhidos os ombros. Ele o transitório

só se diga, por esse enquanto. Nada dizia, quando falava, às vezes a

gente mal pensava que ele não se achasse lá, de novo assim, sem som,

sem pessoa. Ao revés, porém, Tio Man‟Antônio concebia. “Faça-se

de conta ordenou, em hora, mansozinho. Um projeto, de se crer e

obrar, ele levantava. Um, que começaram.

Seus-pés-no-chão muito camaradas, luzindo a solsim foices,

enxadas, facões, obedeciam-lhe, sequacíssimos, no que com talento de

braços executavam, leigos, ledos, lépidos, Mas ele guiava-os, muito

cometido, pelos sabidos melhores meios e fins, engenheiro e fazedor,

varão de tantas partes; associava com eles, dava coragem. “Faz de

conta, minha gente... Faz de conta...” em seu bom sussurro, lábios de

entre-sorriso, mas se vero, de si inflexível, que certo. Matinava, dia

por dia, impelindo-os, arrastando-os, de industriação, à dobrada

dobadoura, a derrubarem mato e cortar árvores, no que era uma

reformação a boa data de trabalhos. Seja esses homens, esforçados e

avindos, lentos e mandriões, nem percebessem ali sujeição e senhoria,

senão que, de siso, estimavam-no, decerto, queriam-lhe como quem. E

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em afã atacavam o inteiro rededor, que nem que medido em seqüentes

metros, acima e abaixo, com fórmulas e curvas.33

Tio Man‟Antônio age com sabedoria. Sua mediação não acentua nem diminui,

mas leva ao auscultar e ao produzir. Como mediador, ele guia os homens, demais

personagens, para que escutem e produzam. A poética não está restrita à contemplação e

à apreciação. Ela requer o acontecimento, mais do que a simples ação que pode ser

explicada pelo desenvolver do que ocorre no cotidiano. O ato de lavar os dentes em si

não é poético, apesar de produzir benefícios para o homem como a prevenção de

doenças, já que essa ação não se apresenta na singularidade que mostra ao homem

aquilo que é ele, ser e poético. Um quadro de arte pictórica que mostre o ato de lavar os

dentes como o dizer do ser do homem no acontecer do real é poético, posto que faz

surgir a questão do homem como o ser que se revela. Assim, o produzir proporcionado

pelo “faz de conta” é poético, por manifestar o homem em sua mundividência

vivificadora do real, do sertão rosiano.

A poesia não é um produzir individualista, não preza pelo egoísmo, pelo

egocentrismo nem pelo esnobismo. Ela é unidade mundificadora, na qual o homem, e,

por extensão, a personagem, pode encontrar-se a si e encontrar ao outro. Tio

Man‟Antônio não ensina o caminho do „faz de conta‟ mas impele os seus empregados a

produzir, a trabalhar naquilo que surge. Saber fazer é importante, mas o produzir

inaugural é fundamental. A personagem, com toda sua sabedoria, media o que seus

empregados realizam, a fim de servir como diálogo para a execução das atividades

realizadas por todos, que não possuem a sabedoria plena de ser, nas atividades

produzidas e nem à poesia do sertão, do real, da linguagem. O „faz de conta‟ dá à

personagem a possiblidade das possiblidades de ser, de criar, de narrar e de silenciar.

33

ROSA, Op. cit., pp. 132-133

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Para ser, criar, narrar e silenciar, a personagem deve auscultar e produzir (o silêncio

e/ou o dizer).

O saber ver o que se mostra e o auscultar o que se diz permitem que a relação

dialógica se instaure. Ser ouvido é abrir-se à amplitude do que vigora plenificando-se no

obrar da linguagem, do ser e do tempo. Não se trata de ouvir palavras pronunciadas

perfeitamente, nem de cumprir ações de acordo com os desejos próprios e

momentâneos, tampouco se trata de seguir a marcação temporal através de utensílios ou

percebê-la nas fisionomias dos seres. A completude está no dizer que se mostra

instaurando-se na presentificação dialógica do agir mundificante da linguagem, do ser e

do tempo. É por estar na ausculta e no ver que Tio Man‟Antônio experiencia o sertão, o

real, a estória, de modo que, dotado de sabedoria, já previa aquilo que se apresenta de

forma latente, apresentando mundividência. É o que diz o seguinte fragmento:

Que, não é que, em seu dito cuidar e encaprichar-se, sem querer

também profetizara, nos negócios, e fora adivinho. Porque subiu, na

ocasião, considerável, de repente, o preço do gado, os fazendeiros

todos querendo adquirir mais bois e arrumar e aumentar seus pastos.

Tio Man‟Antônio, então, daquele solerte jeito, acabara tão em pleno,

passando-lhes à frente e sem nenhum alarde. Do que, manso tanto, ele

de desdenhava? Passara a atentar também nas verdes próximas

vertentes em campina, de olhos postos; que não apenas na montanha:

alta como consequências de nenhum ato.34

A personagem dotada de mansidão não se perde no turbilhão dos fatos, da

tempestividade das ações circundantes. Prever o que acontece é possível se há o

desprendimento da personagem frente às amarras das realizações. Ser sábio é antever o

que é construído, com a visão restaurada pelo auscultar do dizer que mostra e cala, que

diz e silencia. Não há alarde para o sábio, pois, ele sabe que a realidade se dá como uma

das múltiplas possibilidades do real, nunca mostrando o real em toda a sua plenitude,

34

ROSA, Op. cit. p 135

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mas, velando, revelando, desvelando o que é dito e silenciado pela harmonia dialógica

da linguagem, do ser e do tempo. A questão é saborear o real, sertão, o tempo, o ser e a

linguagem no „faz de conta‟. É através da poesia que o homem, e, especificamente, a

personagem, encontra o seu lugar, a sua morada no mundo.

A sabedoria vigora no experienciar o sertão com a unidade que harmoniza o

dizer e o silenciar no diálogo incessante da linguagem, do ser e do tempo. Não é

relevante o ente temporal, marcado por um espaço existencial em um tempo

determinado. O tempo é pulsar no desmedido, sem limitações ou barreiras que

concatenem ideias e desencadeiem ações. O tempo não pode ficar restringido aos

números, pois não pode ser medido. A sabedoria instaura-se pelo vivenciar o sertão, o

real, na unidade instauradora que diz o dizer e silencia. Ser sábio é auscultar o silêncio e

o dizer do sertão, do real. Esse diálogo é a inauguração da poesia. Ser sábio é ouvir a

poesia no mundo, no real, no sertão.

A personagem sábia lança-se à frente não para chegar à frente das demais

personagens, mas, sim, por auscultar o que se diz e por vigorar no silêncio

mundificador. Para ser sábio não há a necessidade de configurar o que se dá no sertão,

no real, em fórmulas que sirvam para a exemplificação, para a explicação e para a

contestação da existência. É necessário lançar-se ao desmedido ilimitado do agir da

poesia, que é pulsar incessante. A poesia vigora independentemente do ver e do

auscultar da personagem, porém, é olhando-a e auscultando-a que a personagem

instaura-se no sertão, no mundo. É sábio quem se adentra no desmedido da poesia,

povoando o mundo, o sertão, não somente por palavras, mas pelo vigorar que instaura a

criação, ou seja, o criar-se e o criar. O sábio cria-se e cria através do narrar, da estória,

da narrativa. A poesia é pulsar criador. O sábio instaura-se no sertão, no mundo, no real,

no operar da poesia.

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O agir de Tio Man‟Antônio é lúdico e lúcido. O que não quer dizer que vige

como uma brincadeira costumeira nem através de uma lógica racional. O eclodir do real

gera possibilidades infinitas em sua unidade mundificante. Jogar nesse jogo é poetizar.

Por ser vigor incessante, o poetar do sertão é ser outro e mesmo. Há a multiplicidade

movente, de modo que nada é igual. Jogar é abrir-se para o imensurável brotar do

sertão. A lucidez e a ludicidade ocorrem do desprender do jogo em que há a reunião da

linguagem, do ser e do tempo. Nesse diálogo, o jogo não tem regras a serem seguidas

nem há regras estabelecidas. Poetizar é dialogar com o mundo, com o sertão, com o

real. Para a poesia ser auscultada, a personagem tem que adentrar-se no jogo do “faz de

conta”. Quem quiser poetizar tem que ser nesse jogo, tem que agir nesse jogo, tem que

produzir nesse jogo e tem que silenciar nesse jogo.

O agir e o não agir não servem como paradigmas para que as personagens

sejam, de modo que um se interponha sobre o outro, já que no não agir a poesia atua

também, como atua agindo, não desempenhando um papel, mas como força

instauradora. O jogo do “faz de conta” torna tudo presença, mesmo que seja a presença

da ausência. A personagem se coloca na ausência jogada, posta no sertão pela plenitude

da incompletude, ou melhor, pelo incessante operar. O que se revela não pode ser

enclausurado, por vigorar no mostrar do dizer. A ausência é a procura plena pela

unidade. Ser pleno é ser unidade, ainda que haja a ausência no eclodir do jogo, não há a

lacuna, posto que nada por ser substituído, mas, sim experienciado. A ausência também

é experienciação, portadora do vigorar do sertão, na unidade que converge, diverge e se

inscreve na poesia do narrar da estória, que não diz o caminho a ser seguido, nem

apresenta os meios para fazer o percurso, mas, sim, apresenta-se como o pulsar criador

do sertão e dos sertanejos. Ser sertão não é uma marca. É sim obrar e operar sertão na

mundividência instauradora da poética, que está para além das palavras faladas e

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escritas, potência inaugural do ser e do tempo. Tio Man‟Antônio age poeticamente. É o

que indica o trecho a seguir:

Nada leva a crer, por aí, que ele não se movesse, prático, como

os mais; mas, conforme si mesmo: de transparência em transparência.

Avançava, assim, com honesta astúcia, se viu, no que quis e fez? No

outro ano e depois, quando à arte de contristem celebrarem, como se

fosse ela viva e presente, o dia de Tia Liduína, propôs uma festa, e

para enganar os fados.35

A transparência revela a personagem diante da própria unidade. Ao ver-se, a

claridade dispõe-se à personagem em toda sua amplitude e magnitude. Fora de qualquer

moldura, nada pode conter o ser, nominá-lo ou explicá-lo. No entanto, o ser diz e diz-se

em seu agir instaurador. O agir poético de Tio Man‟Antônio vigora em seu saber-se na

unidade de onde brotam a sua singularidade e a diferença. Não há outro Tio

Man‟Antônio a não ser o ser a si mesmo. Assim, insurge em seu pensar original

vivificado poeticamente, como demonstra o parágrafo da narrativa a seguir:

Sozinho, sim, não triste. Tio Man‟Antônio respeitava, o

tangimento, a movida e muda matéria; mesmo em seu mais

costumeiro gesto que era o de como se largasse tudo de suas mãos,

qualquer objeto. Distraído, porém, acarinhando-as, redimia-as, de

outro modo, às coisas comezinhas? Vez, vez, entanto, e quando mais

em forças de contente bem-estar se sentindo, então, dispostamente, ele

se levantava, submetia-se, sem sabida precisão, algum rude, duro

trabalho chuva, sol, ação. Parecia-lhe como se o mundo-no-mundo

lhe estivesse ordenando ou implorando, necessitado, um pouco dele

mesmo, a seminar-se? Ou a si ia buscar-se, no futuro, nas asas da

montanha. Fazia de conta; e confiava, nas calmas e nos ventos.36

Não fugia do que se apresentava, dotando–lhe poesia. Poetizar a existência é

ver-se em diálogo com o que se dá, de modo que um não suplante o outro nem um

discrimine o outro. O obrar é necessário para agir na realidade, mas a plenitude se dá

35

ROSA, Op. cit., p. 135 36

Ibidem, p. 136

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pelo ver-se no sertão. Vivenciar e experienciar o real requer a abstenção de uma única

possibilidade como única fonte instauradora. Há o real que se doa e se poetiza

auscultado pelos sertanejos que compartilham não o lugar, mas sim a poesia. Esta, por

sua vez, inunda a vida inteira. Tio Man‟Antônio poetiza sua existência. Não deseja ser

limitado nem ficar preso às amarras do lugar comum. Fazendeiro de longas terras, toma

a atitude plena de doar o que possui, dando-se por inteiro. Poeticamente, diz a narrativa:

Aos poucos, a diverso tempo, às partes, entre seus muitos,

descalços servos, pretos, brancos, mulatos, pardos, leguelhés,

prequetés, enxadeiros, vaqueiros e camaradas os próximos nunca

sediosos, então Tio Man‟Antônio doou e distribuiu suas terras. Sim,

tudo procedido à quieta, sob espécie, com o industrio de silêncios, a

fim de logo não se espevitar todo-o-mundo em cobiça, ao espalhar-se

o saber do que agora se liberalizava ali, em tanta e tão espantosa

maneira.37

O agir pleno não se dá por balbúrdia. Há que ser sábio para mediar a margem e

os acontecimentos, sem que a personagem se perca de si e perca aos outros, desviando-

os do que é próprio de cada um. Doar é existir plenamente. Despojar-se com sabedoria

requer ouvir-se por inteiro e compartilhar o inteiro. Ser sábio é saber doar com

sabedoria. A cada pedaço de terra doado, é o inteiro que se mundifica. É um novo surgir

que vigora. É uma nova morada que se presentifica. A cada doação, Tio Man‟Antônio

propõe o vigorar poético, que será unidade se alguém vivenciar e experienciar o diálogo

estabelecido entre ambos. Tio Man‟Antônio não propõe um caminho a ser seguido.

Tampouco estabelece diretrizes para seus súditos ou familiares. Ele potencializa a

poesia em seu florar genuíno, singular, de viver o inexplicável e ouvir o inaudito e o

indizível.

37

ROSA, Op. cit., p. 137

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Despojar-se é libertador. Retira-se o que sobra e o que diminui para o aflorar

pleno da existência. Para viver não é necessário muito nem pouco, mas o que é próprio a

cada um. Tio Man‟Antônio agiu para a sua plenitude poética, de modo que

De seu, nada conservara, a não ser a antiga, forme e enorme

casa, naquela eminência arejada, edifício de prospecto decoroso

espaçoso: e de onde o tamanho do mundo se fazia maior, transclaro,

sempre com um fundo de engano, em seus ocultos fundamentos.

Nada. Talvez não. Fazia de conta nada ter; fazia-se a si mesmo, de

conta. Aos outros amasse-os não os compreendesse.

Faziam de conta que eram os donos, esses outros, se

acostumavam. Não o compreendiam. Não o amavam, seguramente, já

que teriam de temer sua oculta pessoa e respeitar seu valimento, ele

em paço acastelado, sempre majestade. Por que, então não se ia

embora então, de toda vez, o caduco maluco estafermo, espantalho?

Sábio , sedentariado, queria que progredissem e não se perdessem,

vigiava-os, de graça ainda administrava-os, deles gestor, capataz,

rendeiro. Serviam-no, ainda e mesmo assim. Mas, decerto, milenar e

animalmente, o odiavam.38

Tio Man‟Antônio agia por impulso criador. Da técnica para as atividades do dia

a dia, partia para o além das ações, vigorando no acontecer desmedido. Prezava pelos

seus, para que seguissem o próprio caminho. A relação com os empregados era

desigual, já que Tio Man‟Antônio agia pelo produzir poético e eles por mesquinhez

existencial. Não entendiam o desapegar-se e o desprender-se do patrão. Tio

Man‟Antônio não agia por impulsos nem por vontades triviais, articulava-se pelo

desmedido da poesia, presentifica-se ao fazer do sertão sua morada poética. Para além

do cotidiano, a personagem deambula no fluir poético, que é o inexplicável da vida. Por

mais desejosos de explicações que os funcionários estivessem para o que sucedia e fazia

Tio Man‟Antônio, somente poderiam encontrar o desmedido da poesia, se retirassem

toda a armadura em relação ao patrão. Todos os enxertos oriundos de preconceitos e

tradições seriam desligados dos empregados, se vigorassem na abertura da poesia, na

qual Tio Man‟Antônio se lançava sem esperar ou atentar por nada nem ninguém. A

38

ROSA, Op. cit., p. 138

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necessidade poética é contingencia para os empregados que se encontram aquém de

todo o poder pleno da poesia. Com os olhos fechados e ouvidos tapados não podem ver

nem ouvir o dizer e o silêncio fulcral da poesia. Cerrados a tudo, nem podem saber do

nada, tampouco podem ver o desabrochar do florir poético do sertão.

A memória é poética. Do recôndito da memória, a narrativa é narrada, a cada

vez, originalmente. O narrar instaura-se poeticamente no dizer do narrado que é a

unidade e a diferença. O percurso da memória é sinuoso, pois, para que se instaure, não

é preciso que o ocorrido aconteça exatamente igual ao que ocorreu, mas, sim, que haja a

presentificação, que se revele o acontecimento, nem sempre advindo com explicações

ou com as colorações de outrora. A memória, em sua mundividência, é criadora por

excelência. Dialoga com o real que se põe, criando e recriando. Não se trata de trazer o

passado para o presente, ou trazê-lo à tona. Trata-se da inauguração incessante da

presentificação da memória e do real.

O ser também é memória. Não há a possibilidade de configurar o ser, de modo

que não há a probabilidade de depreendê-lo e de apreendê-lo. Não se pode captar e

capturar o ser em uma garrafa e deixá-la no armazém para quando alguém quiser

apresentar a doação do ser ou para quando quiser mostrar a claridade que se instaura o

diálogo entre o ser e o real. A memória vigora nesse diálogo iluminando a abertura da

unidade onde afloram o ser e o real.

O trazer da memória se dá por possibilidade do real e pelo revelar do ser. Pensar

em fatos passados, ações terminadas não quer dizer que a memória esteja presente em

plenitude. Ela plenifica-se no recordar primordial, que diz ao homem e à personagem o

que está, ou estava, escondido, velado, na obscuridade. O narrar traz à luz aquilo que

estava no negrume. É relevante saber que a memória não se apresenta através de

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velocidades de processos cognitivos, mas, sim, quando há doação no (re) inaugurar-se

plenamente. Possibilita que o homem, e, a personagem, vá além da realida daquilo que é

circundante, adentrando-se pelas margens do sertão e do real.

No conto “Nenhum, nenhuma”, a narrativa irrompe pelo dizer do narrar. Assim,

inicia-se o conto:

Dentro da casa-de-fazenda, achada ao acaso de outras várias e

recomeçadas dist ncias, passaram-se e passam-se, na retentiva da

gente, irreversos grandes fatos reflexos, rel mpagos, lampejos

pesados em obscuridade. A mansão, estranha, fugindo, atrás de serras

e serras, sempre, e à beira da mata de algum rio, que proíbe o

imaginar. Ou talvez não tenha sido fazenda, nem do indescoberto

rumo, nem tão longe? Não é possível saber-se, nunca mais.39

O narrar presentifica o inaugural, o singular, o primevo, sem dizer e sem

apresentar o mesmo. O que é não pode ser igual a outro, nem semelhante, somente pode

ser a si próprio no engendrar do mostra-se, velar-se, revelar-se, desvelar-se. A memória

não assegura a verossimilhança de sua mundividência. O seu ecoar é claridade para o

obscurantismo em que o que é dito é resguardado, para plenificar-se, e, assim, ser, ao vir

à luz. Vir à luz é tornar-se presença, não se tratando de privilégio para a lógica, para o

raciocínio e para o racional. Está ligada ao vir instaurando-se, plenificando-se e

mundificando-se. Tampouco, há a regência da dualidade entre o claro e o escuro como

dicotomias. Há sim um diálogo permeado pelo agir do cobrir e descobrir em que todo o

real se dá, dizendo-se ou calando-se.

A memória não se dá pelas fruições separatistas entre o que é certo e o que é

errado, ou o que é falso e o que é verdadeiro. O narrar, portanto, não quer tornar uma

personagem falsa ou verdadeira, muito menos, certa ou errada. Cada personagem trilha

sua vereda, que se dá pelo caminhar próprio de cada uma. Não resta à memória

39

ROSA, Op. cit., p. 97

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representar a personagem, nem cabe ao narrar fazê-lo. Mas, cabe-lhes trazer a

personagem em seu vigorar, não se atendo às polarizações das vigências entre negativas

e positivas. O narrar apresenta-se a si e às personagens, como se observa no fragmento a

seguir do conto:

Mas um menino penetrara no quarto, no extremo da varanda,

onde se achava um homem sem aparência, se bem que, por certo,

como curiosamente se diz, já “entrado em anos”; ele devia de ser o

dono de lá. E naquele quarto que, de acordo com o que se verifica,

em geral, na região, nos casarões-de-fazenda com alta e comprida

varanda, seria o “escritório”, há era uma data. O menino não sabia

ler, mas é como se a estivesse relendo, numa revista, no colorido de

suas figuras; no cheiro delas, igualmente. Porque, o mais vivaz,

persistente, e que fixa na evocação do restante, é o da mesa, da

escrivaninha, vermelha, da gaveta, sua madeira, matéria rica de

qualidade: o cheiro, do qual nunca mais houve. O homem sem

aspecto tenta agora parecer-se com outro um desses velhos tios ou

conhecidos nossos, deles o mais silencioso. Mas, segundo se apurou,

não era. Alguém, apenas, chamara-o, na ocasião, de nome com

aproximada assonância; e os dois, o ignorado e o sabido, se

perturbam. Alguém mais. Pois ali entrara? A Moça, imaginem. A

Moça é então que reaparece, linda e recôndita. A lembrança em torno

dessa Moça raia tão extraordinária, maravilhosa luz, que, se algum dia

eu encontrar, aqui, o que está por trás da palavra “paz , ter-me-á

sido dado através dela. Na verdade, a data não poderia ser aquela. Se

diversa, entretanto, impôs-se, por trocamento, no jogo da memória,

por maior causa. Foi a Moça quem enunciou, com a voz que assim

nascia sem pretexto, que a data era a de 1914? E para sempre a voz da

Moça retificava-a.

Tudo não demorou calado, tão fundamente, não existindo,

enquanto viviam as pessoas capazes, quem sabe, de esclarecer onde

estava e por onde andou o Menino, naqueles remotos, já peremptos

anos? Só agora é que assoma, muito lento, o difícil clarão

reminiscente, ao termo talvez de longuíssima viagem, vindo ferir-lhe a

consciência. Só não chegam até nós, de outro modo, as estrelas.

Ultramuito, porém, houve o que há, por aquela parte, até aonde

o luar do meu mais-longe, o que certifico e sei. A casa r stica ou

solarenga sem história visível, só por sombras, tintas surdas: a janela

parapeitada, o patamar da escadaria, as vazias tarimbas de escravos, o

tumulto do gado? Se eu conseguir recordar, ganharei calma, se

conseguisse religar-me: adivinhar o verdadeiro e o real, já havido.

Infância é coisa, coisa?40

40

ROSA, Op. cit., pp. 97-98

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A memória é prodigiosa. Não cerceia os acontecimentos, mas, sim, é o produzir

incessante de advir, com toda sua pujança inaugural, sem que haja a delimitação de

tempo e espaço de um outrora. O agir da memória se dá sem seguir a linha, por vezes,

tênue do desenrolar dos fatos. A ocorrência deles não simboliza a efetiva

presentificação da memória, em toda sua totalidade inaugural. A inaugurabilidade se

coloca livre das sequências e contingências pressupostas pela racionalidade. A

veracidade das ações não é atestada pela memória, posto que não há a comprovação de

ações, fatos e realizações, mas, sim, há o advento do acontecimento que não precisa de

explicação ou motivo para tornar-se presente. O que é posto e disponível por

eventualidade, causalidade e disponibilidade, ademais de condizer com o fato dado,

finalizado em si mesmo, não é articulado pelo agir poético. Indica-se que a realidade

não tem o papel de fazer-se poética, mas a personagem pode experienciá-la

poeticamente e tecer a memória poética de sua vigência nela.

Das três personagens jovens apresentadas na narrativa, o menino se mostra como

a personagem à procura, que desbrava o espaço, e desbrava a memória já como o

narrador adulto do conto. Por esperar da memória aquilo que não possui a alcunha de

ser rememorado nem de ser mediado por um filtro retentor dos fatos e das ações

ocorridas, o narrador custa a trazer à tona os acontecimentos já vividos e

experienciados. A amplitude da memória acontece dialogicamente com o real que se

articula pelo que se dá e pelo que se retrai.

A realização está aquém da grandiosidade instauradora da memória. A

realização não pode compreender toda a magnitude da memória de poder fazer o

mesmo, outro, e o outro, o mesmo. Os acontecimentos recordados sob o regaço da

memória vigoram sem uma ordem estabelecida e advêm independentemente das

vontades, dos desejos e das proibições. Pode-se ir ao encontro do aberto da memória,

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mas nem sempre haverá a completude, já que a memória não vigora para saciar as

vontades, os desejos e sancionar as proibições, por mais que haja a busca para que isso

ocorra. Para a memória está reservada a potencia criadora de recriar-se e recriar as

personagens e o homem.

O átimo instaurador é a instância inaugural que vigora na plenitude de fazer-se

presença no agir do (en) coberto e descoberto da memória. O encoberto significa o

velamento oriundo do esquecimento que é ponto propulsor da memória. É pela

dinâmica do encoberto que a memória ultrapassa qualquer mensuração. No encoberto, a

memória plenifica-se, mostrando-se no nada onde nenhum objeto pode tangenciá-la.

Para adentrar-se no encoberto faz-se necessário lançar-se no aberto da memória, como o

faz a personagem que narra, outrora menino. O descoberto não prima por tirar nada do

lugar, mas permite a vigência do mostrar do dizer no florescer da memória. O

descoberto não se resume a um movimento, mas sim se relaciona com o trazer à

presença, tornar presente a procura.

O que foi memória é memória e será memória, do mesmo modo que o que foi

memória não mais será memória. O cheiro sentido pelo menino, nunca mais foi sentido

ao longo de sua vida, até chegar a ser adulto. O que foi curtido na existência deixa

marcas, mas não pode compreender e depreender toda a relação do diálogo formado

entre o sentido e o rememorado, o lembrado e o recordado. O que se deu plenifica-se de

modo que sua vigência encontra-se na memória, no real, no pulsar do tempo. O agir

temporal não traz o que se deu nem o que foi amado, mas, sim, dialoga com a memória

para o advento inaugural, instaurador e presentificador. O cheiro da madeira dos móveis

restaura a casa, não no sentido de trazê-la nova, mas, sim, no originário despertador da

memória. Não é o impacto do aroma importante, mas aquilo que é insaturado,

vivenciado e experienciado.

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A Moça e o ancião relembrados e esquecidos são pujança da memória. Nela,

sabe-se que nada é totalidade e tudo é totalidade. Ambos povoam a memória do adulto

narrador, articulados pelo domínio da memória. Mas torna-se inviável trazer tudo e

todos pelo mesmo caminho. O “havido” aconteceu e jamais poderá ser repetido, ou seja,

se dar da mesma maneira sempre e compulsivamente. Sua existência vigora no

incessante inaugural. Para vivenciá-lo deve-se adentrar na memória, mesmo sabendo

que é um caminho dificultoso, que requer reencontrar-se e vivenciar o real, o sertão, que

se põe operacionalizando-se.

No conto apresentado, havia uma senhora, com a idade muito avançada que

ficava em um cômodo da casa, onde vivia o homem velho e o menino fazia a visita. Ela

se mantinha resguardada no quarto, sem estar à vista para os olhares constantes e

curiosos de quem chegasse à casa. A singularidade da idosa permanece nas memórias

do narrador na narrativa. Ao narrar, o narrador faz emergir a senhora com toda sua

plenitude. A memória tem esse poder inaugural de instaurar incessantemente o ser de

todos e das coisas. É feita a narrativa da seguinte maneira:

Venho a me lembrar. Quando amadorno. De como fora

possível que tão de todo se perdesse a tradição do nome e pessoa

daquela Nenha, velhíssima, antepassada, conservada contudo ali, por

seu povo de parentes. Alguém antes de morrer, ainda se lembrava de

que não se lembrava: ela seria apenas a mãe de uma outra, de uma

outra, de uma outra, para trás. Antes de vir para a fazenda, ela ter-se-ia

residido em cidade ou vila, numa certa casa, num Largo, cuidada por

umas irmãs solteironas. Mesmo essas, mal contavam. Dera-se que, em

tempos, quase todas as antecedentes mulheres da família, de roca e

fuso, sucessivamente teriam morrido, quase de uma vez, do mal-de-

semana, febre de parto; daí rompido o conhecimento, os homens se

mudando, andara confiada a estranhos a Nenha, velhinha, que durava

visual além de todas as raias do viver comum e da velhez, mas na

perpetuidade. Então, o fato se dissolve. As lembranças são outras

distâncias. Eram coisas que paravam já à beira de um grande sono. A

gente cresce sempre, sem saber para onde.41

41

ROSA, Op. cit., p. 103

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Quando se é, não se sabe de onde, para onde ou até onde se é inaugurado. Não

há barreiras nem paragens para o ser. Sua doação não é uma parte de um todo, e

nenhuma outra proporção fracionária pode compreendê-lo. O ser é unidade, totalidade,

plenitude. A Nenha não é recordada pela velhice, pelos anos de vida, mas, sim, pela sua

plenitude de viver a vida. Isso não pode ser mensurado, analisado, argumentado nem

explicado. É algo que tem que ser vivenciado e experienciado.

Mais importante do que as companhias durante o longo percurso de vida de

Nenha, a sua presentificação, sua inauguração, sua vivência no sertão é o ponto central

da memória do narrador sobre a personagem marcante. A lembrança traz consigo o

vigor da vida, o pulsar que produz, que diz, que mostra, que é pujante no jogo da

emersão e imersão, da iminência e eminência, e não está relacionada ao que é

considerado melhor de cada um, projetado por adjetivações, por ações, por

subordinações.

A memória é vigor do tempo por viger no real, no sertão, na narrativa, não por

dotar um território espaço-temporal, mas, sim, por vigorar na amplitude desmedida e

incessante do ser, considerado pelo agir pleno que pulsa a narrativa mundificando-a,

instaurando-a e inaugurando-a. O narrar é memória e se dá tanto pela presentificação

quanto pelas entrelinhas, já que o que não foi dá-se e o que foi vigora pleno na unidade

da diferença, como diz Heráclito: “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio.” 42

, sem

ater-se na linha tênue do tempo e sem limitar-se à linha espacial. Nenha é outra e a

mesma, de modo que o narrador não pode captar sua essência, já que o que é latente

nela é posta em movimento pelo agir do ser. Não importa quem a tenha acompanhado

por toda sua vida, mas, sim, o vigor que diz e mostra quem ela é. Sertaneja vigorosa que

atravessou épocas e espaços, ultrapassando os limites e as limitações, vivenciando e

42

ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO, Op. cit., p. 83

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experienciando sua existência. Para viver não é preciso partir para lugares longínquos,

mas, sim, viajar para dentro de si mesmo, como o faz o narrador através de sua memória

e seu narrar.

O diálogo existe e é nele que o narrador ressurge com a senhora Nenha por

dádiva da memória. Entre o eu criança e o eu narrador, a memória não fossiliza nada

nem ninguém e traz para a plenitude a mundividência que não se dá por sentidos de

imagens corpóreas e objetivas, mas, sim, pelo aflorar da instauração do real, recordado e

presentificado, livre dos engessamentos do passado, do presente e do futuro. O fio da

memória não pode ser resumido pela concepção tripartida do tempo. Há que

desprender-se dessa meada para poder lançar-se ao aberto da memória, do tempo e do

ser. Ao andar pelo desmedido da memória, o narrador não quer representar a senhora

Nenha, mas, sim, trazê-la para a vigência do narrar em toda sua amplitude e

completude, singulares.

Trazer a plenitude singular é o viger da memória. Mostra-se o que é na vigência

do que eclode, vivificado na memória no seu incessante agir, não se restringindo ao

plano estático nem ao sequencial. A memória não apresenta uma lógica para que seja

advinda, mas apresenta o vigorar dialógico. Deve ser entendido que a memória

mundifica-se poeticamente, já que permite que o homem, e, por extensão, as

personagem, reencontre-se consigo na abertura do ser, que não se funde nem se

solidifica, criando-se e recriando-se, assim como, o narrador na narrativa que se cria e

se recria nas experiências e vivências narradas.

As personagens rosianas também são lançadas ao aberto do narrar das estórias.

A estória rosiana não é fatual, não se restringe ao enredo, não é repetitiva e não se limita

às ações expressas e desencadeadas. Ela se dá pelo narrar que diz e silencia e a memória

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que vigora no operar do velamento e desvelamento, esquecimento e lembrança. A

memória vigora no narrar, posto que ambos mundificam experiências e vivências que se

apresentam no ilimitado e desmedido real, sertão. Do diálogo entre a memória e o

narrar, ser torna-se presença na harmonia conjunta em que um mais um não é dois, nem

três menos um é dois, apresentando-se a unidade. O ser não é uma possibilidade, mas a

vigência e o ocultamento do que é.

A criação está presente no universo infantil, de modo que a criança não só cria

brincadeiras, mas dota o mundo de acontecimentos, povoando o mundo, o sertão, o

universo. Além do mais, a criança recria-se e reinventa-se. As questões que agem no

humano também estão presentes para os jovens pequeninos. A estória “Pirlimsiquice”

apresenta a doação das crianças para representarem uma peça teatral. No dia da

apresentação, é apresentada a peça inventada e não a protocolada e ensaiada pelo Dr.

Perdigão. Zé Boné representa a estória de Gamboa e logo após os meninos decidem por

representar a estória inventada por eles. Os meninos recriaram a representação que seria

esperada pelo ensaiador, tornando-se atores criadores da peça. A narrativa inicia-se

conforme é apresentado a seguir:

Aquilo na noite do nosso teatrinho foi de Oh. O estilo

espavorido. Ao que sei, que se saiba, ninguém soube sozinho direito o

que houve. Ainda, hoje adiante, anos, a gente se lembra: mas, mais do

repente que da desordem, e menos da desordem do que do rumor.

Depois, os padres falaram em pôr fim a festas dessas, no Colégio.

Quem nada podia mesmo explicar, o ensaiador, Dr. Perdigão, lente de

corografia e história-pátria, voltou para seu lugar, sua terra; se vive,

estará lá já após de velho. E o em-diabo pretinho Alfeu, corcunda?

Astramiro, agora aeroviário, e o Joaquincas bookmaker e adjazidas

atividades com ambos raro em raro me encontro, os fatos recordam-

se. A peça ia ser o drama “Os Filhos do Doutor Famoso”, só em cinco

atos. Tivemos culpa de seu indesfecho, os escolhidos para o

representar? Às vezes penso. Às veze, não. Desde a hora em que, logo

num recreio de depois do almoço, o regente Seu Siqueira, o Surubim,

sisudo de mistérios, veio chamar-nos para a grande novidade, o pacto

de puro entusiasmo nosso avançara, sem sustar-se. Éramos onze, digo,

doze.

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Atordoados, pois. O padre Prefeito, solene modo, fez-nos a

comunicação. Donde, com o Dr. Perdigão ali ao lado rezou-se o padre-

nosso e três aves-marias, às luzes do Espírito. Aí, o Dr. Perdigão, que

empunhava o livro, discursou um resumo, para os corações da gente, à

toda. Então, cada um teve de ler do texto alguma passagem, extraindo

de si a melhor bonita voz, que pudesse; leu-se desabaladamente. Só o

Zé Boné não se acanhou de o pior, e promoveu risos, de preenchido

beócio, que era. Quando o Dr. Perdigão nos despachou, lembramo-nos

de que na turma estavam de mal os dois mais decididos e respeitados

Ataualpa, que ia ser o Doutor Famoso, e o Darcy, o Filho Capitão. Mas

os mesmos conviram logo em precisar pazes, sem o caso de a gente

bem-oficiar se oferecendo de permeio. Tocaram de bem, dando ainda a

Ataualpa ao Darcy um selo do Transvaal, e o Darcy a Ataualpa um da

Tasmânia ou da China. Em seguida, eles, de chefes, nos sobreolharam, e

pegaram com ordens: “Ninguém conta nada aos outros do drama

Concordados, combinou-se, juramos. Careciam-se uns momentos, para

a grandiosa alegria se ajustar nos cantos das nossas cabeças. A não ser o

Zé Boné, decerto.43

A representação da peça teatral “Os Filhos do Doutor Famoso” seria o mesmo

do que representar o cumprimento de um papel pré-estabelecido e fechado em si

mesmo. No entanto, o ensejo das crianças por criar a sua própria peça fomenta a criação

como acontecimento primordial artístico. Para criar, deve-se abrir ao ser que se revela e

se desvela, compassado ao velamento, para o clarear da existência. A criação é

luminosidade. Do velamento e do esquecimento caminha-se para o descobrimento de si

e do acontecimento da existência humana no agir, que vai além da técnica, e doa-se em

memória, verdade e linguagem.

A criação traz à luz o diálogo para a unidade, que diz, mostra, experiencia,

unindo as diferenças e singularidades, ao mesmo tempo, que potencia a origem, o

mostrar-se e o dizer-se de cada um perante o ilimitado sertão, ilimitado mundo,

ilimitado real. O ensaio da peça teatral limitava os alunos para uma representação que

não contava com o vigor do agir das personagens. Permaneciam presos à concepção que

o Dr. Perdigão tinha de peça teatral, bem como, de sua apresentação. Limitava assim a

43

ROSA, Op. cit., pp. 86-87

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visão de arte e do seu vigorar. O ato criador e recriador dos alunos desmembrava a linha

reta imposta pela visão limitadora com a qual era imposta de modo hierárquico,

escamoteando o vigorar da arte de cada uma das crianças.

A criação dos alunos é o acontecimento que quebra as limitações impostas pelo

ensaiador, a fim de advir o inaugural do real. No operar, as crianças se atentaram por

colocar em questão o teatro e o ser ator. Manuel de Castro diz o seguinte sobre a palavra

criação:

Arte é desafio humano de criação. Mas o que é criar? O que é

ser humano? Por etapas: A concepção de criar ressente-se

dos humanismos, frutos de

uma metafísica do esquecimento do sentido do Ser. Por metafísica

entenda-se aí fundamento. O Cristianismo, via Judaísmo, traduziu o

Ser / Physis como fundamento e este como Deus, o Criador. Logo,

Deus é o criador de entes e como fundamento tornou-se o ente

absoluto, ou seja, o "Então". O que ficou aí esquecido é o sentido do

Ser em seu mistério, irredutível à totalidade dos entes, a um "Então".

Portanto, a criação não depende de um fundamento, tradicionalmente

identificado com sujeito (em grego hypokeimenon e em

latim subjectum). Então em arte, o ser humano, identificado ao sujeito,

tornou-se o criador das obras de arte, que é

uma contradição metafísica. Em verdade o ser humano não cria nada.

Ele tem de enfrentar o grande desafio. Qual? De um lado, não nos

criamos, de outro, já estamos projetados nas questões, que não

criamos, ninguém cria, pois são elas que nos têm, se apossam de nós,

independentemente de nossa vontade. É então que entra aí o

propriamente humano, ou seja, o artístico: responder ao desafio das

questões. Cada obra de arte manifesta o humano porque cada uma é

uma tentativa de resposta às questões. E nisso consiste a "criação"

artística, ou seja, manifestação do humano. Mas nenhuma resposta dá

conta e elimina a questão, porque somos o fundamento ou sujeito das

respostas, não das questões. As questões são fundadas pelo Nada.

Somos fundados pelo nada. Então criar é responder às

questões originárias de modo original, porque cada situação, sempre

diferente em seu acontecer, exige de nós novas respostas, ou seja,

novas obras de arte, onde o humano se manifesta como destinado

pelas questões do sentido do Ser, do Inesperado, no dizer de Heráclito

(frag. 18). Cada obra de arte produz manifestação de mundo, o sentido

do Ser que se destina no ser humano enquanto pensar. Eis aí

a essência verbal da arte em suas épocas e, portanto,

da necessidade do contemporâneo.44

44

CASTRO: Criação, 2. In: CASTRO, Manuel Antônio de. Dicionário de Poética e Pensamento. Internet. Disponível em: http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Cria%C3%A7%C3%A3o

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Responder à questão originária de modo original é o que fazem os alunos ao

realizarem a peça teatral criada por eles. A criação consiste em perceber o que o real

lhes possibilita. Não houve qualquer fundamento que servisse de base para a criação da

peça teatral das crianças. Criaram a partir daquilo que se manifestou deles em uma

unidade dialógica. A primeira estória é o colocar no agir o por em questão do humano

manifestado pela narrativa. A narrativa propõe a questão envolvente à peça teatral como

ponto fulcral para dizer sobre a manifestação humana na obra de arte.

A peça ensaiada por Dr. Perdigão, a versão de Gamboa e a inventada pelos

jovens atores eram difundidas na surdina, sem o conhecimento e a autorização das

crianças atrizes. No dia da apresentação da peça oficial, a criança que seria o ponto (e é

o narrador da estória) teve que suprir a falta de Ataualpa, como o Doutor Famoso. A

apresentação deles tão esperada se dá da seguinte maneira:

é oné representava de rijo e bem, certo, a fio, atilado para

toda a admiração. Ele desempenhava um importante papel, o qual a

gente não sabia qual. Mas, não podia romper em riso. Em verdade. Ele

recitava com muita existência. De repente, se viu: em parte, o que ele

representava, era da estória do Gamboa! Ressoaram as muitas palmas.

O pasmatório. Num instante, quente, tomei vergonha; acho

que os outros também. Isso não podia, assim! Contracenamos.

Começávamos, todos, de uma vez, a representar a nossa inventada

estória. Zé Boné também. A coisa que aconteceu no meio da hora. Foi

no ímpeto da glória foi sem combinação. Ressoaram outras muitas

palmas.

A princípio, um disparate as desatinadas pataratas, nem que

jogo de adivinhas. Dr. Perdigão se soprava alto, em bafo, suas réplicas

e deixas, destemperadas. Delas, só a pouca parte se aproveitava. O

mais eram ligeirias e solertes seriedades. Palavras de outro ar. Eu

mesmo não sabia o que ia dizer, dizendo, e dito tudo tão bem sem

sair do tom. Sei, de, mais tarde, me dizerem: que tudo tinha e tomava

o forte, belo sentido, esse drama do agora, desconhecido, estúrdio, de

todos o mais bonito, que nunca houve, ninguém escreveu, não se

podendo representar outra vez, e nunca mais. Eu via os do público

assungados, gostando, só no silêncio completo. Eu via que a gente

era outros cada um de nós transformado. O Dr. Perdigão devia de

estar soterrado, desmaiado em sua correta caixa-do-ponto.

Gritavam bis o Surubim e o Alfeu. Até o padre Diretor se riu,

como ri papai Noel. Ah, a gente: protagonistas, outros atores, as

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figurantes figuras, mas personagens personificantes. Assim

perpassando, com a de nunca naturalidade, entrante própria, a valente

vida, estrepuxada. Zé Boné, sendo o melhor de todos? Ora, era. Ei. E.

Fuge, forte, Zé oné! freme a representação. O sucesso, que vindo

não se sabe donde e como; alguém me disse, que estava lá, jurou

como foi.

Mas de repente eu temi? A meio, a medo, acordada, e

daquele estro estrambótico. O que: aquilo nunca parava, não tinha

começo nem fim? Não havia tempo decorrido. E como ajuizado

terminar, então? Precisava. E fiz uma força, comigo, para me soltar do

encantamento. Não podia, não me conseguia para fora do ocorrido,

contínuo, do incessar. Sempre batiam, um ror, novas palmas. Entendi.

Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos

transvivendo, sobrecrentes, disto: que era o verdadeiro viver? E era

bom demais, bonito o milmaravilhoso a gente voava, num amor,

nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar. E

como terminar?

Então, querendo e não querendo, e não podendo, senti: que

só de um jeito. Só uma maneira de interromper, só a maneira de sair

do frio, do rio, da roda, do representar sem fim. Cheguei para frente,

falando sempre, para a beira da beirada. Ainda olhei, antes. Tremeluzi.

Dei a cambalhota. De propósito, me despenquei. E caí.

E, me parece, o mundo se acabou.45

A apresentação dos alunos se deu originalmente e não esteve resumida à peça de

Gamboa, nem à peça oficial, mas integrou-se à peça original, com a adoção de todos os

atores infantis. As crianças foram tomadas pela peça inventada, inseridas na linguagem

da obra de arte. A plateia dialogou com os atores, inebriando-se com a peça que estava a

ser proferida. O diálogo artístico cria a unidade, com todos que auscultam o que é dito,

mostrado, com o que é silenciado e com o que vigora nas entrelinhas. O drama que seria

encenado, após os ensaios, não é em nenhum momento representado.

Os atores são personagens personificantes, atores que não se restringem à

representação cênica, mas estão abertos ao manifestar da obra de arte, no caso, a peça

teatral. A manifestação do humano decorre também das crianças, que se manifestam

através da arte, como ouvintes e ensejadores de questões que vigoram no sertão rosiano

45

ROSA, Op. cit., pp. 95-96

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e no real. As crianças não compactuam com a postura cômoda e prejudicial de

considerar a peça como simulacro ou representação. O vigorar das crianças, enquanto

personagens personificantes, plenificam o agir incessante da obra de arte que é o

manifestar-se no real poeticamente, ao dialogar com a unidade da singularidade de cada

um da plateia e dos atores. A plenitude artística encontrava-se tão pulsante com o

vigorar dos atores que foi necessário que um deles pudesse por fim ao encenado, ao

atirar-se do palco para encerrar a peça. A estória “Pirlimpsiquice” narra a manifestação

humana no manifestar da arte.

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CAPÍTULO 3

A ÉTICA E A MORADA EM PRIMEIRAS ESTÓRIAS

A morada é um convite para/do ser. Nela se instaura e se presentifica aquilo que

se é. Não é um lugar alhures, estrangeiro nem delimitado espacialmente. A morada é o

próprio sertão. O acolhimento se dá pelo velamento e desvelamento. O agir da physis se

instaura. O velado vela e diz, e, esse dizer não é outro, é o dizer que mostra o velado. O

velamento se presentifica e permite a instauração de si em consonância com o

desvelamento. No entanto, o dizer do velamento não é de retração, mas, sim, linguagem

do mostrar instaurador de mundo. Velar não é uma ação consumada. É um agir

pulsante. E o desvelamento diz o mostrar que não é uma falácia ou palavras faladas ao

esmo, é o dizer inaugural, instaurador, a morada. Desvelar não é sinônimo de

descobrimento, pois há o desvelamento onde nada há para ser descoberto, e, sim,

inaugurado.

Inclusive, a morada é silêncio. É o que mostra Manuel de Castro no verbete

“Casa” do Dicionário de Poética e Pensamento:

A família, entendida como genos, sempre congregou toda a

casa. É nesse sentido que a casa é morada, pois nela se fazem

presentes todos os que constituem a família. Isso é o genos.

Justamente por isso, a casa, a morada, está ligada à linguagem,

porque, enfim, a morada não são as quatro paredes, mas o vazio que

acolhe a todos, na delimitação das quatro paredes e de quantos

cômodos compõem cada casa. É nesse sentido que nosso corpo é

nossa casa, porque nela habita o que somos. O vazio, o nada das

paredes, é a memória, que não passa, mas acolhe a todos, isto é, lhes

dá sentido porque o sentido é a linguagem vigorando. A linguagem é a

casa do ser, porque o ser é a memória, o tempo, a vida, a morte: a

impossibilidade de todas as possibilidades.46

46

CASTRO: Casa, 1. In: Manuel Antônio de. Dicionário de Poética e Pensamento. Internet. Disponível em: http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Casa

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O silêncio é morada. E o caminho do ser também é silêncio. Silêncio que não

cala, mas que em recolhimento diz. Recolhimento para/do ser.

A morada é a presentificação do ser, não no sentido de representação, mas, de

vigência. Esta é atemporal. Não há a tripartição do tempo para a presentificação do ser.

Sua vigência não segue um ciclo temporal. A morada não é uma construção concreta

nem abstrata. Não pode ser delimitada, nem remetida a um lugar que não seja o do ser.

No entanto, não se trata de um lugar meramente espacial, e, sim, um lugar onde a

espacialização do ser ocorra como vigência daquilo que é. O sertão rosiano não se refere

à paisagem, ou locação territorial em que ocorrem as histórias, é o próprio ser sertanejo.

O sertão rosiano fala, diz, mostra, é a linguagem em profusão poética. As personagens

rosianas são, inclusive, morada do sertão rosiano. Elas são mais que meras personagens,

são o agir do ser. Elas não são representações ou mimetizações de um protótipo

existencial, são a própria existência em doação de sentido, de linguagem, de ser, de

lógos, de physis.

Assim, a ética rosiana é mais do que regências de leis e pregações de moral, ou

sistemas de boas maneiras. As veredas do caminho são cadenciadas pela abertura do ser,

possibilidades de ser, presentificações do ser. O ser é uma asculta da physis do próprio.

Ninguém tem como plenitude aquilo que lhe é estrangeiro, alheio ou distante. Ser

naquilo que se é, é a plenitude. A ética rosiana não corrobora com o egocentrismo, o

egoísmo, o altruísmo, ou qualquer privação de diálogo ou presença. Tampouco prevê

mecanismos de sanções, adjetivações ou instruções. A ética rosiana não é dicotômica

nem requer qualquer tipo de separação ou segregação. As margens do ser, o nada que é

tudo, as veredas do ser são o caminho para a ética rosiana. Ética presente na physis, em

sua vigência, em sua instauração, em seu manifestar. Ética que não propõe alteridade,

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mas o diálogo. A confluência do sertão rosiano é próprio da linguagem, o dizer que

mostra. Cada um é aquilo que lhe é próprio.

A ética é o vigorar da diferença. A ética não requer a aceitação ou desaprovação.

Para ser ético é necessário que se abra à diferença. A ética não requer paradigmas. E o

agir do ser não segue correntes sociais. É o agir que está no aberto. O agir de cada um é

inaugural. Portanto, a ética se propõe à diferença que o ser instaura, já que cada um só

pode ser a si mesmo, caso contrário será fruto do engano, distanciamento e simulacro.

Desse modo, o ser se dá e só pode ser pela diferença. A diferença funda mundo,

instaura a morada. A diferença é possibilidade de existência, já que o agir é contínuo. A

repetição instaura mundo sempre em sua relação com a diferença, desde a diferença

instaurada pelo real como realidade nas realizações. O sertão rosiano não se preserva

pela identidade sem a diferença. A diferença presente no sertão não se refere à oposição

entre dois elementos ou mais, mas, à particularidade existente em cada um. Esta

particularidade condiz com o agir do ser em que cada um é. O sertão é, assim,

possibilidade de ser, do agir incessante.

A ética está fora da restrição à moral, aos usos e aos costumes. Está naquilo que

é próprio do humano. O próprio do humano é ser vigência da diferença. Tem-se o ético

enquanto humano. O ser é a justa medida. É pelo ser que se pode dizer o ético. E

mostrar o humano. O agir humano decide o ético. Pelo agir é-se. O agir humano é ethos,

quando ser. O ser não é funcional. O ter, sim. Ser sertanejo, para a personagem rosiana,

é estar aberto ao ético que é o agir humano como morada da physis e plenitude do telos.

O telos já se encontra dentro do ente, que tende a se plenificar, consumar, manifestar.

A ética vigora no sertão. Ela fomenta a manifestação das personagens que põem

em questão o humano. Há a unidade que une as diferenças e promove o diálogo e a

manifestação humana na singularidade de cada uma. A harmonia entre a diferença

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proporciona o advento unificador. Nessa instância, há um olhar em conjunto

harmonioso. Para Heráclito, “Lei, também a vontade de seguir uma só coisa.”47

O olhar

convergente é o habitar o sertão, instaurado pela linguagem no narrar das estórias

rosianas. No entanto, a lei não pode ser excludente, a ponto de propor a separação e a

segregação. A lei do movente rosiano preside a doação e a adoção do diferente na

singularidade de cada um no sertão que articula para unir, na abertura do sertão, e advir

a reunião originária.

Dentre os contos de Primeiras estórias, para essa questão da ética e morada, são

indicados os seguintes: “Famigerado”, “Os irmãos Dagobé” e “Fatalidade” e “Luas-de-

mel”. No conto “Famigerado”, um “jagunço” se dirige a um doutor, depois de caminhar

léguas, porque quer saber o significado da palavra famigerado, proferida pelo “moço do

governo” para ele. Em “Os irmãos Dagobé”, o irmão mais velho de 4 irmãos

destemperados, Damastor Dagobé, é morto por Liojorge, pacífico sertanejo. Na estória

“Fatalidade”, um capiau, Zé Centeralfe, pede ajuda ao delegado Meu Amigo para dar

um jeito, matar Herculião, que estava em seu encalço porque cobiçava sua esposa. O

delegado comete o assassinato, e registra como resistência à prisão. No conto “Luas-de-

mel”, um casal se refugia na fazenda Santa-Cruz-da-Onça para se casarem. Casam-se e

o pai da noiva pede que retorne e consentirá com a união dos jovens.

Da relação entre arché e telos, caminha o ser. O ser se manifesta na eclosão que

se consome e se plenifica. A estória rosiana se mostra em arché e telos. O que é mostra

o ser. É na arché que aparecem o que é e o como é, não de modo extático, mas, sim, de

pulsar dinâmico. A ética, como agir humano, é a instauração do ser em vigência da/na

physis.

47

HERÁCLITO, Op. cit., p. 67.

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Como a poética, a arché é dinâmica. É um pulsar. É um produzir. É um agir. É

um vigorar. Em seu artigo “Por um educar poético-originário”, Manuel Antônio de

Castro indica o vigor da arché, ao considerá-la como “uma experienciação da realidade

não estática, mas dinâmica; não linear, mas circular; não finita, mas infinita; não de

exclusão, mas de inclusão.” 48

Depreende-se o vigor da arché em diálogo com o real,

sem se apresentar como representação estática da realidade. O seu movimento é

incessante e não ocorre em uma sequência entre pontos estabelecidos em uma reta nem

pela ordem progressiva estipulada entre começo, meio e fim.

A arché é abertura, de modo que não possui a finalidade de ser correta ou errada,

certa ou falsa, de acordo com o ponto de vista de alguém ou de uma personagem. Ela

não se dilata, não se expande, não se contrai, não se murcha. Tampouco estipula um

modo de agir, proceder, vivenciar e experienciar como correto e certo, abrangendo-o

para todos os homens e todas as personagens. O proceder da arché está em consonância

com a aletheia, no desabrochar e no consumir pleno, do desvelamento e velamento, no

encobrimento e descobrimento. Sobre essa relação na vida, no real e no sertão, Manuel

Antonio de Castro diz o seguinte:

Em última instância, a unidade de vivente e viver da Vida

acontecerá poeticamente no tender a e no caminhar para o Viver

enquanto Viver em sua plenitude. É o telos do vigorar

da arché. Tal telos, em sua plenitude, é o sentido ético-poético do

cuidar pensante de ser. Por isso não há nem nunca poderá haver

metafísica com atributos, seja imanente, seja transcendente, na

Poética, isto é, jamais o epistemo-lógico poderá determinar e eliminar

o onto-lógico. Jamais a lógica poderá eliminar a a-letheia. É em vista

disso que tudo se decide na questão da essência da verdade. Essa é a

questão decisiva onde a realidade/Vida, o ser humano e o pensamento

poético encontram o seu horizonte de compreensão e unidade. A

48 CASTRO, Manuel Antonio de. “Por um educar poético-originário”. 23 abril 2012. Disponível em:

http://travessiapoetica.blogspot.com.br/2012/04/ao-leitor-esteensaio-e-longo-mas-propoe.html

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aletheia e não a verdade lógica é o horizonte ético e poético

do humano.49

Do diálogo entre a arché e a alétheia, a ética vigora pela plenitude do agir, sem

arquétipos e simulacros de vivenciar e experienciar a realidade, o sertão, o mundo e o

real. No viver sem barreiras nem parâmetros, mas auscultando ao que é dito, ao que é

mostrado, a personagem rosiana experiência a si e ao sertão de modo singular. Há

personagens que experienciam e vivenciam o sertão de acordo com o pulsar inerente de

si, com o vibrar da plenitude das produções das personagens diante do sertão movente,

do real. Desse modo, a personagem não se move por representações nem simulações, de

modo que a verdade vigora no vigorar de velamento, desvelamento e revelação, gerando

caminhos trilhados pela personagem no rumo à sua consumação, à sua plenitude.

Manuel Antonio de Castro menciona que

O que verdade implica torna-se a questão, porque verdade é ser

se manifestando e jamais alguma adequação lógica, representacional.

Ela é tão misteriosa como o próprio ser, do qual sempre já estamos

próximos e distantes, porque a maior proximidade possível da verdade

ainda é a não-verdade do sentido do ser. E isso é o logos, pois o ser

é princípio (arché) e sentido (telos).50

Considera-se que a verdade é doação do ser que se oculta e se manifesta, que diz

e silencia. O ser irrompe em princípio e sentido, que não são os mesmos para todos os

seres e todas as personagens. O princípio, posto pela arché, é o eclodir do ser e o

sentido, colocado pelo télos, é a consumação plena do ser. Do dueto, princípio e sentido,

a ética surge como diálogo no entre inaugurado e presentificado. Não quer dizer que a

49

CASTRO, Manuel Antonio de. “Metafísica e pensamento poético”. 14 julho 2013. http://travessiapoetica.blogspot.com.br/

50 CASTRO, Manuel Antonio de. “Dialética, logos, lógica”. 04 maio 2013

http://travessiapoetica.blogspot.com.br/2013/05/dialetica-logos-logica.html

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ética irrompa em uma direção, mas, sim, que ela é o produzir incessante ao longo da

vivência e da experienciação das personagens e, amplamente, dos seres humanos.

A ética não pode virar um objeto ou uma cena para onde convergem todos os

olhares e todos os anseios, já que a ética dialoga com o ser. E, o ser não vigora para que

sejam cristalizadas cenas nem para que sejam realizadas as vontades que, nem sempre,

são reais, ou seja, advindas do agir consumador e pleno. O agir do ser não pode ser

mascarado por todo tempo nem pode estar restringido às inquietações pelas quais

passam pessoas e personagens. O princípio e a consumação possibilitam o vigorar do

ser, mesmo para os desatinados, ou melhor, para os que se perdem no incessante

vigorar, formando-se assim um turbilhão. Não há um eixo ou caminho a ser seguido.

Resta auscultar o que é dito e silenciado, e ver o que é mostrado, que não aparece em

sequência lógica crescente ou descrente. A relação entre a arché e o telos vige a

experiência e a vivência das personagens, de modo que o enredo não consegue

depreender aquilo que a linguagem, o narrar e a estória são possíveis de produzir.

Segundo Manuel Antonio de Castro, o telos e arché são diálogo infindável e se dão na

realidade, juntamente com a plenificação poética, como é demonstrado a seguir:

O grego pensava o princípio na palavra arché. Dessa palavra se

formou o substantivo archonte, aquele que comanda, que está à frente,

aquele que conduz. Nenhuma condução se dá em abstrato, como não

há dança em abstrato. A pauta de uma coreografia ainda não é dança.

O princípio vigora na obra e toda obra é obra na medida da sua

vigência num telos. A palavra telos diz fim, não enquanto término de

um percurso, mas enquanto consumar, levar à consumação, à plena

realização. A mãe se realiza nos filhos, a flor nos frutos, o fruto na

árvore, a árvore nas flores e assim permanentemente. Isso é telos. Não

há, portanto, arché sem telos, mas também não há telos sem arché.51

51

Castro, Manuel Antonio de. “Aprender com a dança”. 06 janeiro 2011. http://travessiapoetica.blogspot.com.br/2011/01/aprender-com-danca-prof.html

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A personagem se plenifica ao consumar o ser, ao torná-lo a questão central de

sua existência, no sentido de vigorar aquilo que é, plenamente. Ao sonhar, plenifica-se e

consome-se no real. Ao viver, plenifica-se e consome-se na realidade, no sertão, no real.

Ao narrar, plenifica-se e consome-se na realidade, no real, no sertão, na narrativa. Ao

auscultar, plenifica-se e consome-se na realidade, no sertão, no real, na narrativa, na

estória. Para plenificar-se a personagem insurge e vigora naquilo que é próprio, o

advento da ética. A ética não tende às explicações de assuntos, de trejeitos, de ações, de

fatos e nem de acontecimentos. A ética é vigorar da plenitude do ser no ilimitado e

desmedido real, sertão, mundo, realidade.

O evento extraordinário é um acontecimento inesperado. O homem nem a

personagem detém o fluxo das coisas, o suceder dos fatos, das ações, dos eventos e dos

acontecimentos, nem o narrador possui o poder de interferência naquilo que se mostra.

Por mais que haja uma intenção no desempenho das ações, o que surge não se limita ao

sujeito, nem às suas vontades, desejos, considerações, indicações e explicações. Ainda

que haja a procura de uma personagem para o sentido de uma palavra, de um

acontecimento, o que acontece através da descoberta não pode ser mensurado nem

enclausurado. A ética está em deixar viger aquilo que é em plenitude, que se instaura no

cume da caminhada, revigorante e que diz mais do que palavras ao esmo, dispersas,

dizendo, portanto, o acontecer que se mostra.

No início do conto “Famigerado”, a ética se instaura no acontecer que une o

jagunço Damázio e o doutor no desvendar da palavra, na plenitude do acontecer da

busca pela culminância da palavra. O enredo se dá ao fato de que um “jagunço” se

dirige a um doutor, depois de caminhar léguas, porque quer saber o significado da

palavra famigerado, proferida pelo “moço do governo” para ele. O conto começa do

seguinte modo:

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Foi de incerta feita o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés

nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo.

Parou-me à porta tropel. Cheguei à janela.

Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro

rente, frente á minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda,

três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos

nervos. O cavaleiro esse o oh-homem-oh com cara de nenhum

amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele

homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente.

Seu cavalo era alto, um alazão; bem areado, ferrado, suado. E concebi

aquela dúvida.

Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam

olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa

desbarata sopitados, constrangido coagidos, sim. Isso por isso, que o

cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo,

intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a

frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois

lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de

resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigada os outros ao ponto

donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem

contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de

rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os

três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para

proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na

escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras

de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também não

adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema

ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava.

Convidei-o a desmontar, a entrar.

Disse que não, conquanto os costumes. Conservava-se de

chapéu. Via-se que passara a descansar na sela decerto relaxava o

corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei:

respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta.

Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais

longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada

alardeia, sem farroma. Mas 8avessado, estranhão, perverso brusco,

podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de

macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:

“Eu vim perguntar a vosmecêe uma opinião sua explicada...!

Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a

catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí

desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior

valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do

cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um

alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se:

estava em armas e de armas alimpadas. Dava para sentir o peso da de

fogo, no cinturão, que usado baixo, para ele estar-se já ao nível do

justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido,

pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda

urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura.

Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções.

Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima

violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado entrar e um

café, calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-graças de

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hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem

medida e sem certeza.

“Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras...

Estou vindo da Serra...”

Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de

estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem

perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos

ele se serenara evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem em tais

tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! (...)52

A ética ultrapassa as amarras do significado e atinge o vigorar do acontecimento,

já que a palavra proferida gerou todo um acontecimento para que houvesse a plenitude,

não podendo ser resumido ao significado da palavra, mas, sim, podendo ser a abertura

do ser em dar-se no real, mediante o vigorar da verdade e da linguagem, posto que o

doutor não sabia o que estava por acontecer e teve que agir conforme o que lhe era

próprio, apresentando a palavra ao jagunço, mesmo que o significado da palavra não

estivesse tão próxima ao jagunço, realizando assim um aproximação da palavra para o

homem acabrunhado.

Não saber como proceder não significa que a ética esteja ausente, mas, sim, que

o evento é original. Sem paradigmas e sem parâmetros, o inaugural de cada um, de cada

personagem, entra em vigor. Saber como proceder perante as situações que emergem

não é garantia de que a ética esteja presente. A ética não é um objeto que se possa fazer

uso quando alguém quiser, é o proceder originário, oriundo da ausculta do real e do

próprio vigorar do sertão e do vir a ser da realidade. Ser ético é saber auscultar o que diz

e silencia, é saber ver e ler o que se mostra e o que se vela. O vigorar da ética é a

presentificação do ser, doando-se, mundificando-se.

O evento ocorrido é incerto, não acontece pelas margens, pelo esperado, pelo

desejado, pelo ansiado, pelo certo. A incerteza do agir do real faz com que o mundo seja

52

ROSA, Op. cit., pp. 56, 57, 58

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movente, e, assim, o sertão, no seu agir próprio, na narrativa rosiana, surge inaugural,

original e primordial. O doutor, personagem do conto, é tocado pela realidade e toca o

sertão sem uma resposta pré-concebida, mas, sim, com um agir próprio, temperado pela

sabedoria de sua vivência e experiência do sertão, do qual, ele faz parte. Ter um diálogo

com o sertão é saber auscultá-lo, ouvindo e vendo aquilo que está se dando em sua

presentificação no real, no sertão, na realidade. O personagem, com ética, não se prende

às amarras dos eventos, das ações e dos fatos. Há acontecimento inaugural na relação

entre a personagem e o sertão, assim como, entre o médico e o cavaleiro temido e

experienciado.

O sucedido é colocado, pelo narrador, como incerto, já que não se esperava que

o evento sucederia. De fato, o sertão não está agarrado a fórmulas, a exigências, a

solicitações. O que ocorre está no aberto do advir, do acontecer, do vigorar, do

mundificar. A personagem não é um boneco de cordas, manipulado por mãos sagazes e

inescrupulosas, no entanto, deve experienciar o que se dá, deve vivenciar o que acontece

no aberto da ética, da unidade que culmina e se plenifica com os acontecimentos

vigorados.

Não há margens para a ética. Ninguém pode encapsular e prender a ética, assim

como, ninguém pode reger a ética ou distribuí-la ou compartilhá-la entre as demais

personagens, bem como, uma pessoa não pode incutir a ética a uma outra. Pode-se sim

instaurar o diálogo que diz, mostra e silencia o vivenciar e o experienciar que faz- se

presente no narrar das estórias, as narrativas rosianas. Nelas não há margens, sendo

colocada a palavra margens nos contos para prover que as margens são solúveis perante

o agir do real, da realidade e do sertão.

O insólito vira a margem do avesso, de dentro para fora e de fora para dentro.

Tudo é. Tudo pode acontecer. Não há nada que não tenha o poder de vir a ser, de tornar-

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se presença, de vigorar-se, de mundificar-se, de instaurar-se, independentemente do que

fora ocorrido e do será advindo. Não se pode limitar os acontecimentos às margens, às

delimitações e demarcações. A ética flui como a água do rio que nunca é a mesma. O

que não quer dizer que para experiência-la, a personagem rosiana deve ser outro, ou

mudar sempre. Deve sim a personagem está aberta ao desmedido do sertão, no qual tudo

pode ocorrer, acontecer, vir a ser. É através da ética que a personagem conseguirá

vivenciar, experienciar, presenciar no sertão que surge, se vela, se revela, se desvela

frente à personagem, assim, como o mundo se apresenta frente a todos que estão

inseridos no ser aí do mundo.

A presença do sertanejo bélico provoca várias conjecturas no médico-narrador,

no entanto, o motivo pelo qual é dada a presença do jagunço na cada do doutor não é

concebida, posto que não é um motivo corriqueiro, apesar dos conhecimentos do

médico que não foi capaz de descobrir o que levou o sertanejo até a sua casa, com mais

sertanejos. A leitura que o médico faz do jagunço é dada pelo medo despertado, o lugar

do incômodo, do desconhecimento. É um evento incerto, com o propósito mais incerto

ainda, já que o médico não foi capaz de depreender o que levara o jagunço até a sua

moradia.

A frase que diz do momento vivenciado pelo médico é: “O medo é a extrema

ignor ncia em momento muito agudo.”53

Ter ética ainda que se sinta desconfortável,

desconhecedor e desfavorável é o movimento que o médico exerce perante o

acontecimento a sua frente. Ao estar em um terreno desconhecido, o doutor não sabe

como agir, como fazer-se presente no sertão, no acontecimento que ocorre juntamente

com a sua inserção nele. Por ser presumível de ter parte com o conhecimento, o doutor

se acha em uma situação, da qual nunca vivenciara até então, e não tem conhecimentos

53

ROSA, Op. cit., p. 57

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necessários para vivenciá-la, mas, na qual, deverá ele proceder, tornar-se presença,

posto que é chamado para o diálogo insurgente.

Ser ignorante é ter medo ante o acontecimento que se produz na realidade. O

medo insurge, no sertão, no desconhecimento, no não saber como proceder e o que

fazer. O desconhecido gera medo por ser impossível saber para quais lados ele vivifica,

ele se expande, ele vigora. Sem as margens que tranquilizam por apresentar suas linhas

limítrofes, confortando em um espaço estabelecido, o evento retira o médico da zona de

conforto, do conhecimento de suas obras, que atende os demais personagens que

estejam molestes e doentes. De todas as situações que invadiram a mente do doutor,

nenhuma esteve em sintonia com o que impeliu o jagunço a procurá-lo. No entanto, a

leitura do médico do evento, tranquilizou-o, ou melhor, a ética deu-lhe o lugar de

confiança, de controle, sobre si mesmo, permitindo que conseguisse ler melhor a

situação, ou seja, sem as amarras do medo e incutido de ética.

A palavra “famigerado” é o princípio que leva o sertanejo bélico ao encontro do

doutor. E assim se coloca na prática o ponto da unidade no conto:

“Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se

compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que

estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o Governo,

não estou com saúde e nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é

de seu tanto esmiolado...”

Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado

assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más

margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu.

Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes.

Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Lateja-lhe um

orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.

O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da

Serra, do São Ão, travados assuntos, inseqüentes, como dificultação.

A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as

mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim, no

fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava. E, pá:

“ Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o

que é mesmo que é: famisgerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo...

familhas-gerado...?”

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Disse, de golpe trazia entre dentes aquela frase. Soara com

riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez

primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não

queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso

suspendia-me: alguém poderia ter feito intriga, invencionice de

atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que

aqui ele se famanasse, vindo para exigir-se, rosto a rosto, o fatal, a

vexatória satisfação.

“Saiba vosmecê que saí ind‟hoje da Serra, que vim, sem

parar, essa seis léguas, expresso direto pra mor de lhe perguntar a

pergunta, pelo claro...”

Se sério, se era. Transiu-se-me.

“Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém

ciente, nem têm legítimo o livro que aprende as palavras... É gente

pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o

padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo

engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no

pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe

perguntei?”

Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:

Famigerado?

“Sim senhor...” e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos

vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava,

interpelador, intimativo apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara.

Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro

ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus

cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:

“Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só

vieram comigo, pra testemunho...”

Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o

verivérbio.

Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”...

Vosmecê mal não veja em minha grosseria no não entender.

Mas me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância?

Nome de ofensa?

Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de

outros usos...

“Pois, e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em

dia-de-semana?”

Famigerado? em. É: “importante”, que merece louvor,

respeito...

“Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?”

Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então

eu sincero disse:

Olhe: eu, como o sr. Me vê, com vantagens, hum, o que eu

queria uma hora destas era ser famigerado bem famigerado, o mais

que pudesse!...

“Ah, bem!...” soltou exultante.54

54

ROSA, Op. cit. pp. 58, 59, 60

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Nessa passagem, o doutor se sente amparado pelo que aconteceu, em terreno

aprazível, sem as dificuldades e perturbações inicialmente sentidas pelo

desconhecimento e insuficiência de saber o que se daria a partir da visita intempestiva

do sertanejo e o porquê de tal visita não marcada com antecedência. O diálogo

estabelecido entre o médico e o jagunço mostra-se em crescente, ou seja, em direção à

plenitude, incutida pela palavra “famigerado”, desconhecida pelo sertanejo, que andou

tantas léguas para saber o seu significado através da boca do doutor, considerado

conhecedor e instruído. A dinâmica do descobrimento da palavra foi tateada pela ética,

de modo que o médico não quer menoscabar o sertanejo, mas, também, não quer

diminuir-se perante o outro. Em uma situação embaraçosa, ambos dialogam a fim de

consumir o acontecer e finalizá-lo de maneira que todos saem vencedores, vigentes pela

ética, sem palavras nem ações abruptas.

O diálogo interpelado pelo médico e por Damázio culminou com o advento do

significado da palavra “famigerado”, depois de passar por um percurso com a tomada da

palavra de cada um deles. O começo desse momento se dá por um caminho sinuoso,

entre as idas e vindas dos interlocutores, sendo exposto cada um do seu próprio, o

reticente e o suspensivo no desenrolar do diálogo, que e é apontado, pelo narrador,

como uma conversa imbuída por teias de aranha, até chegar ao ponto luminoso. A

descoberta do sertanejo ocorre por uma via dificultosa, já que se encontra em

desvantagem quanto ao conhecimento da palavra, chegando a duvidar se o sentido da

palavra era pejorativo e negativo, quando o médico lhe havia dado alguns sinônimos

para que a compreendesse.

A ética leva o médico a dizer a palavra, no momento oportuno de acordo com o

que o diálogo solicitar, ainda que se achasse em desvantagem bélica se comparado ao

sertanejo. É no entre do diálogo que vai se desenvolvendo, vai se presentificando a

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culminância da plenitude, em que haja a unidade favorável aos dois que partilham e

compartilham o diálogo. Ninguém sai como o vencedor e ninguém sai como o perdedor

nesse duelo, posto que a ética se torna possível na culminância plena do doutor e do

jagunço, no ir e vir do diálogo. A procura dos dois é o diálogo, ou seja, cada um procura

o outro, sem anular-se a si, mas, procurando o outro nas interpelações feitas e

direcionadas ao outro. Não há um esquecimento de si, mas há busca em diálogo pela

unidade plena que é tão bem-vinda para um quanto para o outro. Apesar do lugar

diferente dos dois na conversa oriundo do evento incerto, é o diálogo que coloca os dois

em comunhão.

A ética possibilita que haja o diálogo sem a ofensa entre as partes envolvidas,

bem como, não há troca de ofensas entre as personagens. Há o congregar a unidade

propiciada pelo diálogo instaurador e mundificador. A estória ocorre sem adendos à

falácia ou às ações exemplares. O que há é o aflorar da instância dialógica como

experienciação do sertão, do real na estória. A ética torna possível essa experienciação

sem abusos ou deflagrações. O que está em conta é a vivência pela ética de vivenciar e

experienciar o sertão, a realidade, o real nas estórias rosianas e nas narrativas em geral.

O enredo não pode ser mais importante do que o movimento ético posto em questão,

como a procura para o advir do diálogo.

Como ponto final, a concordância entre as partes ocorre. Não como modo de

anular uma personagem em detrimento da outra, mas, sim, trata-se da unidade

mundificadora do diálogo. Desse modo, o conto se encerra da seguinte forma:

Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si,

desgravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles

três: “Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa

descrição...” e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me

a janela, aceitava um copo d‟água. Disse: “Não há como que as

grandezas machas duma pessoa instruída!” Seja que de novo, por um

mero, se torvava? Disse: “Sei lá, às vezes o melhor mesmo, para esse

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moço do Governo, era ir-se embora, sei não...” Mas mais sorriu,

apagara-se-lhe a inquietação. Disse: “A gente tem cada cisma de

dúvida boba, dessas desconfianças... Só para azedar a mandioca...”

Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em

minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o

trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.55

Encerra-se a querela e o sertanejo toma importantes conclusões sobre e para a

vivência e a experienciação, não só para o acontecimento em si: “Não há como que as

grandezas machas duma pessoa instruída!”; e “A gente tem cada cisma de d vida boba,

dessas desconfianças... Só para azedar a mandioca...” A abertura em que a personagem

é lançada é mundificada pelo narrar da estória rosiana, que não é um narrar de

desencadeamento de fatos ou um enredo, simplesmente, mas é o narrar que diz o ser na

singularidade de cada um em consonância com o diálogo da unidade da plenitude, e,

que, também mostra o dizer não o restringindo a uma personagem, mas, sim, lançando-o

ao aberto da linguagem e da ética.

A ética permite a reflexão. Não se pode delimitá-la a adequações ou situações a

serem seguidas. É abertura para o diálogo, em que há a consideração de que a vida é

sem certeza, é abertura. Dos eventos incertos, nasce a certeza sábia de que o mundo, a

realidade, o sertão e o real são aberturas para a ética, o ser, a linguagem, o tempo, a

verdade e a memória. A ética, com sabedoria retira o medo dos sentidos, da vivência e

da experienciação do sertão e do real, permitindo a doação livre da personagem diante

daquilo que vivencia e experiencia. Não são as palavras dos dicionários e dos livros

religiosos que dotam o ser humano, e a personagem, de ética, mas, sim, o viver do

homem, e da personagem, movido pelo diálogo instaurador de unidade na plenitude de

sua culminância, a do encontro. Há de serem ouvidas todas as partes, sem pretensões

55

ROSA, Op. cit., p. 61

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nem objeções para a conversa que vele, revele, desvele não somente as personagens,

mas, sim, o real, o sertão em sua amplitude.

A ética rege a unidade sertaneja. O sertão é imbuído pela ética que versa no

florescer do sertanejo. Não são as atitudes e as ações que devem ser executadas

igualmente por todas as personagens, mas é o vigorar do diálogo que plenifica a unidade

ética que se faz presente. Não há prescrições a serem seguidas, mas há o auscultar

daquilo que se dá no sertão, sendo dito e não dito, na harmonia da unidade da vigência

do real, onde não há restrição de conceituações, de finalidades, de objetivos, de

nomenclaturas e de normatizações. O sertão é movente e a ética não procura cerceá-la,

mas, sim, vige nas instaurações e experienciações do real no diálogo incessante entre as

personagens e as personagens e o real, o sertão que plenifica-se e plenifica

harmoniosamente com o narrar das estórias.

A ética não deve ser restringida à compostura em determinada ocasião, nem à

postura do enredo frente aos eventos. No conto “Os irmãos Dagobé”, a ética aparece na

questão suscitada pela morte de jagunço. A estória se inicia com o velório do mais

velho de 4 irmãos destemperados, Damastor Dagobé, morto por Liojorge, até então

pacífico sertanejo. Os irmãos são facínoras, apresentados na narrativa da seguinte

maneira:

Demos, os Dagobés, gente que não prestava. Viviam em estreita

desunião, sem mulher em lar, sem mais parentes, sob a chefia

despótica do recém-finado. Este fora o grande pior, o cabeça, ferrabrás

e mestre, que botara na obrigação da ruim fama os mais moços “os

meninos”, segundo seu rude dizer.56

Sem atender à unidade ética, que deve ser dialógica, o poder exercido por

Damastor para com os irmãos era despótico, já que os irmãos, segundo a narrativa, não

tinham vez de pronunciar, de buscar o diálogo com o irmão mais velho e líder do grupo

56

ROSA, Op. cit., p. 73

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Dagobé e até mesmo de fomentar a conversa entre todos, inaugurado uma harmonia

dialógica, sem que uma personagem seja a mais importante na relação estabelecida e

outra personagem seja a menos importante ou insignificante. Há um duelo desigual,

onde somente um mostra-se como o mandante das ações e das vigências dos outros,

formando-se um caminho a ser seguido, não sendo auscultados os outros ou vistos com

as múltiplas possibilidades da diferença dentro da unidade.

Depreende-se assim que a relação entre os irmãos não era harmoniosa, mas, sim,

baseada pelas insígnias do poder de um sobre os demais. As personagens encontravam-

se sob o domínio do irmão mais velho e mais autoritário. O poderio exercido por

Damastor era unilateral, sendo contada somente sua vontade, sem a abertura ao diálogo

fundador da unidade e da ética. A unidade contém o que une e o que separa, de modo

que não serve para distinguir os homens, e as personagens, segundo os raciocínios e as

ações exercidos, mas, é o ponto de encontro em que se torna possível o diálogo entre a

totalidade de cada um no todo.

Com o poder de um sobre o outro, não há ética, mas sim a tirania. O que pode

ser bom para um pode não ser para outro e vice-versa. A unidade dialógica permite que

cada um seja aquilo que é e se apresente doando-se sem ser separatista e sem vigorar na

mesmice. Não existe ética quando as vontades, os desejos, e as atitudes de um se

sobrepõe sobre os outros, de mesmo que uma personagem não pode se sobrepor às

outras personagens em um eclodir da unidade. O que une não são as igualdades, mas,

sim, a doação de cada um no experienciar, vivenciar o real, o sertão, o mundo e a

realidade no diálogo em que o eu e o tu não fazem projeções nem concessões, ao

contrário, fazem do diálogo a instância inaugural de cada um em detrimento da unidade,

da ética que os une sem o apelo à igualdade e à diversidade. Não se quer o outro

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semelhante nem alheio. O agir de cada um foi demonstrado e revelado ainda no velório,

quando a narrativa diz:

Aquilo podia-se entender? Eles, os Dagobés sobrevivos,

faziam as devidas honras, serenos, e, até, sem folia mas com a alguma

alegria. Derval, o caçula, principalmente, se mexia, social, tão

diligente, para os que chegavam ou estavam: “Desculpe os maus

tratos...” Doricão, agora o mais-velho, mostrava-se já solene sucessor

de Damastor, como ele corpulento, entre leonino e muar, o mesmo

maxilar avançado e os olhinhos nos venenos; olhava para o alto, com

especial compostura, pronunciava: “Deus há-de-o-ter!” E o do meio,

Dismundo, formoso homem, punha uma devoção sentimental, sustida,

no ver o corpo na mesa: Meu bom irmão...”57

Os irmãos agiram compassivos ante à inércia do irmão tempestivo. O evento

libertador: a morte de Damastor, pois dispôs a cada um dos irmãos remanescentes a

possibilidade de ser, ou seja, a doação de si perante o aberto do sertão. Em contrapartida

ao que era esperado pelos sertanejos que acompanhavam o velório, nenhum dos irmãos

Dagobé quis vingança, fazer valer a desforra com que foi acometida a vida do irmão

mais velho falecido. Eles não compactuam com as necessidades, os desejos e as

vontades do morto.

Na ética do sertão, o sertanejo mais vale quanto mais é o que ele é. Assim,

Liosorje não tenta a fuga diante da situação desfavorável. Sua vigência se dá no narrar

do seguinte modo:

O assombrável! Iam-se e vinham-se, no estiar da noite, e: o que

tratavam de propor, era só a respeito do rapaz Liosorje, criminal de

legítima de defesa, por mão de quem o Dagobé Damastor fizera

passagem daqui. Sabia-se já do quê, entre os velantes; sempre alguém,

pouco e pouco, passava palavra. O Liosorje, sozinho em sua morada,

sem companheiros, se doidava? Decerto, não tinha a experiência de se

aproveitar para escapar, o que não adiantava fosse aonde fosse, cedo

os três o agarravam. Inútil resistir, inútil fugir, inútil tudo. Devia de

57

ROSA, Op. cit., p. 74

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estar em o se agachar, ver-se em amarelas: por lá, borrufado de medo,

sem meios, sem valor, sem armas. Já era alma para sufrágios! E, não é

que, no entanto...

Só uma primeira idéia. Com que, alguém, que de lá vindo

voltando, aos donos do morto ia dar informação, a substância deste

recado. Que o rapaz Liosorje, ousado lavrador, afiançava que não

tinha querido matar irmão de cidadão cristão nenhum, puxara o

gatilho no derradeiro do instante, por dever de se livrar, por destinos

de desastre! Que matara com respeito. E que, por coragem de prova,

estava disposto a se apresentar, desarmado, ali perante, dar a fé de vir,

pessoalmente, para declarar sua forte falta de culpa, caso tivessem

lealdade.

O pálido pasmo. Se caso que já se viu? De medo, esse Liosorje

doidara, já estava sentenciado. Tivesse a meia coragem? Viesse: pular

da frigideira para as brasas. E em fato até de arrepios o quanto tanto

se sabia que, presente o matador, torna a botar sangue o matado!

Tempos, estes. E era que, no lugar, ali nem havia autoridade.58

Liosorje, ético, ao saber-se a si e a não fugir daquilo que é ele, do mesmo modo,

daquilo que foi e será, mesmo que em momento oportuno ou funesto, não foge das

circunstâncias, pois, a ética presente nele é maior do que o medo pela vingança.

Considerado somente por sua atitude, Liosorje ficaria marcado somente pela dualidade

da boa ação e má ação. Mas, o importante é o seu agir ético de não renunciar o que ele é

nem suas doações no real e no sertão. Sua presença no velório representaria sua chegada

aludida para sua ação que causou a morte. No entanto, não era seu proceder apresentar-

se como condenado ou absolvido do que praticou. Ele age pela ética que lhe infunde o

chegar e a permanecer na presença dos demais no velório.

A narrativa, com a consideração de que “presente o matador, torna a botar

sangue o matado”, se aplica mais às personagens, no conto, que almejassem a desforra

em um contínuo de procederes e motivações, que o Liosorje não compartilha e nem os

irmãos do morto. No narrar, Liosorje não é culpado pelos irmãos pelo ato cometido, ou,

ao menos, os irmãos não exigem a culpabilidade sentida, de modo que não deve

58

ROSA, Op. cit., pp. 75-76

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carregar a culpa consigo como assim desejam as personagens, que contabiliza a sua

presença no lugarejo e no velório como insígnia da morte anunciada.

A presença de Liosorje não infunde a desgraça, assim como, o seu ato foi um

agir que se deu em momento agudo, quando a única ação que o deixaria liberto era

defender-se matando o agressor. Mais do que uma simples escolha, o ato exercido por

Liosorje poderia deixá-lo preso a varias instâncias, que poderiam prender-lhe,

obstruindo seu livre ir e vir, bem como, a sua doação perante a experienciação e a

vivência do sertão movente. O que fez não foi premeditado. Ocorreu na disputa

enfrentada, de início desigual, comparando o que praticava cada um dos envolvidos, até

chegar na vitória imprevista. A atividade de Liosorje foi defender-se e atacar em uma

circunstância desigual, na qual, pela gravidade culminante, somente um poderia sair

vitorioso sobre o outro, já que nenhum deles quis voltar atrás, ou amenizar os nervos.

O conto apresenta-se com o percurso do enterro, começando no velório e

terminando com o sepultamento do Damastor. Liosorje chega ao enterro e, ao invés de

ser acometido por vingança ou por emboscada, carrega o caixão de Damastor,

juntamente com os irmãos do morto, até que o depositassem na cova e o enterrassem. O

conto narra que:

O rapaz Liosorje esperava, ele se escorregou em si. Via só

sete palmos de terra, dele diante do nariz? Teve um olhar árduo. À

pandilha dos irmãos. O silêncio se torcia. Os dois, Dismundo e

Derval, esperavam o Doricão. Súbito, sim: o homem desenvolveu os

ombros; só agora via o outro, em meio àquilo?

Olhou-o curtamente. Levou a mão ao cinturião? Não. A gente,

era, que assim previa, a falsa noção de gesto. Só disse, subitamente

ouviu-se: “Moço, o senhor vá, se recolha. Sucede que o meu saudoso

Irmão é que era um diabo de danado...

Disse isso, baixo e mau-som. Mas se virou para os presentes.

Seus dois outros manos, também. A todos, agradeciam. Se não é que

não sorriam, apressurados. Sacudiam dos pés a lama, limpavam as

caras do respingado. Doricão, já fugaz, disse, completou: “A gente,

vamos’embora, morar em cidade grande... O enterro estava acabado.

E outra chuva começava.59

59

ROSA, Op. cit., p. 78

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Liosorge é absolvido pelos irmãos pela ética e não pela justiça. Sua liberdade é

dada segundo a ética e não estaria atado à justiça moralizante presente na consideração

de que quem mata é o culpado. O grito pela revanche recorre os momentos dos contos

atribuídos pela narração de que a qualquer momento a morte do irmão mais velho seria

vingada, até chegar ao clímax, que deveria coincidir com a morte de Liosorje. Mas não

é isso o que acontece: Liosorje é expurgado do crime cometido, liberto de qualquer

revanche exercida pelas mãos dos irmãos do difunto. A ética prevaleceu sobre a justiça.

O sertão regido pela ética não procura por assassinos ou por vítimas, mas deixa vigorar

cada personagem nas imediações do sertão, que não apresenta margens inexpugnáveis

nem perenes, contrariamente, as margens são moventes do mesmo modo que o sertão.

Os três irmãos e Liosorje compartilham a partilha da unidade, da ética no pulsar do

sertão. A ética libertou também os três irmãos que não viam mais algo que os prendesse

no lugarejo. E resolveram partir para a cidade grande.

Na estória “Fatalidade”, um capiau, Zé Centeralfe, pede ajuda ao delegado Meu

Amigo para dar um jeito, matar Herculião, que estava em seu encalço porque cobiçava

sua esposa. O delegado comete o assassinato, e registra como resistência à prisão.

Assim, o enredo é delimitado em duas frases, mas, o desenrolar do conto condiz com o

inaugural do vivenciar o sertão rosiano. Ao iniciar o conto, diz o narrar:

Foi o caso que um homenzinho, recém-aparecido na cidade,

veio à casa do Meu Amigo, por questão de vida e morte, pedir

providências. Meu Amigo sendo de vasto saber e pensar, poetar,

professor, ex-sargento de cavalaria e delegado de polícia. Por tudo,

talvez, costumava afirmar: “A vida de um ser humano, entre outros

seres humanos, é impossível. O que vemos, é apenas milagre; salvo

melhor raciocínio. Meu Amigo sendo fatalista.

Na data e hora, estava-se em seu fundo de quintal, exercitando

ao alvo, com carabinas e revólveres, revezedamente. Meu Amigo, a

bom seguro que, no mundo, ninguém jamais, atirou quanto ele tão

bem no agudo da pontaria e rapidez em sacar arma; gastava nisso,

por dia, caixa de bailas. Estava justamente especulando: “Só quem

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entendia de tudo eram os gregos. A vida tem poucas possibilidades.”

Fatalista como uma louça, o Meu Amigo. Sucedeu nesse comenos que

o vieram chamar, que o homenzinho o procurava.60

Diante da impossibilidade da vida do ser humano, é através da ética que a

convivência e a vivência se tornam possíveis entre todos. O sertão não se apresenta

caoticamente, com personagens totalmente destrutivas. A personagem rosiana não segue

um script pré-determinado, está lançada no aberto do sertão, seu proceder está inserido

na ética do sertão compartilhado, vivenciado e experienciado.

No sertão movente rosiano, o impossível está presente porque o sertão não

representa a realidade. Esta é o aberto do real. O real é tudo o que se instaura, se

vivifica, se mundifica, se vigora, se apresenta e se mostra sem margem e sem direção no

sertão. Saber compartilhar-se através da ética é uma aprendizagem que não chega a

todos, como, também, não chega a todas as personagens. A chegada do capiau, Zé

Centeralfe, na casa de “Meu Amigo”, iniciará o diálogo estabelecido entre ambos, para

consumir uma ação. É extremamente relevante perceber que o fatalismo de “Meu

Amigo” o acompanha, mas não cerceia sua postura, posto que vai auxiliar o capião por

causa da unidade ética formada entre reles.

O pedido de Zé Centeralfe é atendido pelo fato do delegado compartilhar a

necessidade de uma ação para acabar com a falta de harmonia, oriunda da perseguição

de Herculião, com uma atitude maléfica e fora dos domínios da ética. “Meu amigo”

entendia de fatalidade, ao considerar que a vida tem poucas possibilidades, mas, mais do

que isso, ele estava aberto à ética. Ao caminhar juntamente com a ética, as escolhas são

reduzidas, porém, a abertura da ética não pode ser mensurada por nada, já que a

intenção e o acomodamento não podem servir como parâmetros para que a personagem

aja eticamente.

60

ROSA, Op. cit., p. 107

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Agir com ética requer saber ouvir o que é dito e não dito e saber ver o que se

mostra, se delineia, antes mesmo da consumação do que vai ser feito. Há um lançar-se

ao aberto do real, do sertão, que não apresenta um caminho tripartido entre o início, o

meio e o fim, mas, sim, há uma abertura para a unidade de onde provém e convergem as

doações dos seres e das personagens, sem serem restringidas às ações, às atitudes, aos

trejeitos, aos gestos, às vontades, aos desejos, às mensurações, às considerações e

estipulações.

Para a ética vigorar não se faz necessária a arquitetura de um projeto de médio

ou longo prazo. Faz-se necessário ser conhecedor de si e ser doador de si na unidade

plena. Sobre o proceder fatalista, “Meu Amigo” ao longo da narrativa faz algumas

considerações. Através do narrar, vê-se as seguintes:

O qual, vendo-se que caipira, ar e traje. Dava-se de entre vinte-

e-muitos; devia de ter bem menos, portanto. Miúdo, moído. Mas

concreto como uma anta, e carregado o rosto, gravado, tão submetido,

o coitado; as mãos calosas, de enxadachim. Meu Amigo, mandando-

lhe sentar e esperar, continuou, baixo, a conversa; fio que, apenas,

para poder melhor observar o outro, vez a vez, com o rabo-de-olho,

aprontando-lhe a avaliação. Do que disse: “Se o destino s o

componentes consecutivas além das circunst ncias gerais de pessoa,

tempo e lugar... e o karma...” Ponto é que o Meu Amigo existia,

muito; não se fornecia somente figura fabulável, entenda-se. O

homenzinho se sentara na ponta da cadeira, os pés e joelhos juntos,

segurando com as duas mãos o chapéu; tudo limpinho pobre.

Convidado a dizer-se, declinou que de nome José de Tal, mas,

com perdão, por apelido Zé Centeralfe. Sentia-se que ele era um

sujeito já arrumado em si; nem estava muito nervoso. Embrulhava-se

a falar, por gravidade: “Sou homem de muita lei... Tenho um primo

oficial-de-justiça... Mas não me abrange socorro... Sou muito amante

da ordem...” Meu Amigo murmurou mais ou menos: “Não estamos

debaixo da lei, mas da graça... cuido que citasse epístola de São

Paulo; e receei que ele não se simpatizasse com é Centeralfe. Mas, o

homenzinho, posto em cruz comprida, e porque se achasse rebaixado,

quase desonrado e ameaçado viera dar parte. Apanhou o chapéu,

que caíra, com a mão o espanava.61

61

ROSA, Op. cit., p. 108

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Por compartilhar a unidade sertaneja, o delegado sabia que, um dia ou outro dia

qualquer, um capiau poderia aparecer na sua frente para pedir um favor, não restringido

à moral, mas aberta à ética. Pelo diálogo instaurado e compartilhado entre o capiau e o

“Meu Amigo”, colocado em evidência como uma figura importante pelo uso das letras

maiúsculas para designá-lo, os dois lados da moeda são postos à mostra e à prova para

que o evento desejado seja, de fato, executado. A graça dita pelo delegado está

condizente com a ética que prevalece quando todos os envolvidos na conversa têm a

possibilidade de dar-se a conhecer e de conhecer o outro. No diálogo rosiano, há o

conhecimento de si e o conhecimento do outro na unidade que unifica pelas diferenças

presentes nas doações que cada um faz de si e recebe do outro. Desse modo, a graça

presente no sertão, no real, vale mais do que ordem tida pelo capiau como o exemplo a

ser seguido.

Entre o narrado e o diálogo interposto pelo capiau e pelo detetive, há uma

instauração que culmina com o ato do detetive, a fim de agir sob a tutela da ética. A

narrativa apresenta a interlocução narrada com a apresentação do que se deu até chegar

ao momento presente da narrativa. Em entremeios, a estória se dá do seguinte modo:

Só para atalhar discórdias, prudenciara; sempre seria melhor

levar à paciência. E se humilhara, a menos não poder. Mas, o outro,

rufião biltre, não tinha emenda, se desbragava, não cedia desse

atrevimento. “Ele n o tem estatutos. Quem vai arrazoar com homem

de má cabeça? Para isso n o tenho cara... Só se para o vir-às-mãos,

para alguma injusta desgraça. Nem podia dar querela: a marca de

autoridade, no Pai-do-Padre, se estava em falta. A mulher não tinha

mais como botar os pés fora da porta, que o homem surgia para

desusar os olhos nela, para a desaforar, com essas propostas.

“Somente a situação empiorava, por culpa de hirsúcia daquele

homem alheio... Curvara-se, sempre de meia-esguelha, a ponto que

parecia cair da cadeira. Meu Amigo animou-o: “Quanta crista ” e

aí ele depositou no colo o chapéu, e direito se sentou.

Sucedendo-se os sustos e vexames, não achavam outro meio.

Ele e a mulher decidiram se mudar. “Sendo para a pobreza da gente

um cortado e penoso. Afora as saudades de se sair do Pai-do-Padre;

a gente era de, muita estimaç o lá. Mas, para considerar Deus, e não

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traspassar a lei, o jeito era. “Larguei para o arraial do Amparo...

Arranjaram no Amparo uma casinha, uma roça, uma horta. Mas, o

homem, o nominoso, não tardou em aparecer, sempre no malfazer,

naquela sécia. Se arranchou. Sua embirração transfazia um danao de

poder, todos dele tomavam medo. E foi a custo ainda maior, e quase à

escondida, que José Centeralfe e a esposa conseguiram fugir de lá

também, tendo pesar.

Por conta daquele. “Cujalma proferiu Meu Amigo,

meticuloso indo ajeitar uma carabina, que se exibia, oblíqua, na

parede. Pois a sala de tão repleta de: rifles, pistolas, espingardas

semelhava o que nunca se vê. “Esta leva longe... disse, e riu, um

tanto malignamente, Tornou a sentar-se, porém, sorrindo agradado

para o José Centeralfe.

Mas mais o homenzinho se ensombrara.

Fosse chorar?

Falou: “Viajamos para cá, e ele, nos rastros, lastimando a

gente. É peta. Não me perdeu de vistas. Adonde vou, o homem me

atravessa... Tenho de tomar sentido, para n o entestar com ele. Durou

numa pausa. Daí, pela primeira vez, alçou a voz: “Terá o jus disso, o

que passa das marcas? É réu? É para se citar? É um homem de

trapaças, eu sei. Aqui é cidade, diz-se que um pode puxar pelos seus

direitos. Sou pobre, no particular. Mas eu quero é a lei... Tanto dito,

calou-se, em silêncio médio; pedia, com olhos e cachorro.

Meu amigo fez uma coisa. Virou, por metade, o rosto, para

encarar aquela carabina. Sério, carregando o minuto. Só. Sem voz.

Mais nela afirmando a vista, enquanto umas quantas vezes rabeava

com os olhos, na direção do homenzinho; em ato, chamando-o a que

também a olhasse, como que a o puxar à lição. Mas o outro ainda não

entendia que ele acenasse em alguma coisa. Sem tanto, que deu: “E

eu o que faço? na direita perguntação;

Surdeava o Meu Amigo, pato-mudo. Soprou nos dedos. Sempre

em fito, na arma, na parede, e remirando o outro ao tempo que tanto

quanto tanto. De feito. O homenzinho se arregalou de desperto.

Desde que desde, ele entendesse, a ver o que para valer: a chave do

jogo. Entendeu: Disse: “Ah. E se riu: às razões e consequências.

Donde bem, se levantou; podia portar por fé.62

Há um entendimento entre o capiau e o delegado. A conversa entre ambos se deu

na unidade. O pedido de um foi atendido pelo outro. O que foi contado pelo capiau

gerou a culminância escutada pelo delegado, a partir do agir próprio em buscar auxílio,

assistência, ajuda, pelo agir do outro, de modo que o diálogo ético fosse instaurado,

através das ondulações da conversa com que um se faz presente perante o outro que

também se faz presente em seu turno.

62

ROSA, Op. cit., pp. 109, 110, 111

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125

Ao ser narrado o que levou Zé Centeralfe a ir falar com o delegado, há a

explanação do que acometeu ao capiau durante tanto tempo de sua vida e de sua esposa.

Há a busca do proceder ético que só poderá ser acatado se há uma partilha e

compartilhamento comuns presentes na unidade da ética. Há que existir o proceder

consoante à ética que vigora nos acontecimento para dizer que há uma unidade de

auscultação do que diz o real que instaura e o sertão que mundifica. Presentifica-se o

proceder de „Meu Amigo”, ao matar o Herculião, facínora que seguia é Centeralfe, que

pendia os olhos para a esposa do outro, pela ética e não por questões legais, nem de

normas impostas por alguém ou por uma instituição, posto que o motivo alegado e

circunscrito pelo delegado não tinha a ver com o motivo principal perpassado pelo

diálogo do delegado e do capiau. O diálogo instaurador é ético por permitir que se funde

a unidade instaurada pela relação entre o eu e o tu, consoante o próprio de cada um

presentificado no real e no sertão rosiano.

Na estória “Luas de mel”, o dono da fazenda Santa-Cruz-da-Onça recebe um

casal fugido, pois o pai da jovem era desfavorável à união. Após o casamento, no dia

seguinte, aparece o irmão da noiva, para dizer que pai dela aceita a relação e solicita o

retorno do casal. Eles consentem e partem. Ao receber os noivos em sua fazenda, o

fazendeiro Joaquim Norberto aceita o pedido de Seo Seotaziano e decide por abrigar os

jovens. Ele acata a solicitação, imbuído de ética perpassada pela relação existente com o

outro e decide resguardar o casal conforme o que foi solicitado. Assim é narrado:

E quero-me com esta! É o que soletreio: “Estimado meu

amigo e compadre... Seo Seotaziano, de sua sede distante, os fatos de

marca manobrando, com estopim curto e o comprido braço. O chefe

demais, homem de grande esfera, tigroso leão feito o canguçu, mas

justo e pão de bom, em nobrezas e formato. Meu compadre-mor,

mandador, dês que quando. E há que tempos isso fora. Mas, agora, se

lembrava deste, aqui, neste ponto, confioso de lealdade. E com caso.

Para despautas: o que decerto havia de haver cachorro, gato e

espalhafato. Mas, tenho de segundar, e quero. Se ele riscou, eu talho.

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126

Só os resumos, declarados: “Para um moço e uma moça, lhe peço

forte resguardo. O mais se verá, mais tarde Essas doidices de

amor! Sorri. Saí dos suspensos para os preparativos.

No quieto, do que se precisava. Temperar o vir de outras

coisas, acomodar os hóspedes, que esperados. Pondo ordens,

consoante. Prevenido para valer por quatro. Aquele dia era de sábado.

Sobreentendi, com o José Satisfeito, e com o Seo Fifino, meu filho:

vai, que, do retiro do Meio, me trouxessem: certos homens; e, dos

tantos desses, do Munho, das roças; sempre ainda restassem outros, no

hoje por hoje, para o trabalho. Aqueles, porém, aqui à mão; pois, que:

a horas competentes, homens de possibilidades. Tendo-se arroz e

feijão à-bastança, e cargas de pólvora, chumbo e bala. Sensato, se me

se diz. Só em paz, com Deus sossegado. Sensato, sincero e honrado.63

Narra-se o aceite para a vinda dos jovens e a orquestração dos preparativos e da

retaguarda para velarem o casal de enamorados. Há um operar que move Joaquim

Norberto para condizer com o que foi solicitado por “Seo Seotaziano”. O pedido

plenificou a reunião existente entre ambos. O percurso comungado estabeleceu a relação

a posteriori, partilhada e compartilhada para acolher e cuidar daquilo que reunia a

ambas as partes. A ética não se dá restritamente pela adoção dos envolvidos por algo,

mas se dá pelo recíproco diálogo instaurado pela manifestação de cada um, consoante a

harmonia entre as presentificações e vivificações das personagens, dos sertanejos e do

movente sertão.

Joaquim Norberto empreende então as minúcias para que os jovens estejam

resguardados a salvo. A atenção desprendida para o casal é guiada pela ética do

fazendeiro. O fato dos enamorados fugirem do aconchego da família por não aceitar a

união, para assim poderem realizar o enlace, não é posto em questão pelo senhor. O laço

familiar não é inquebrável nem intransponível. O amor dos jovens, mal visto pelos

parentes, impeliu-os a buscar a união. Joaquim Norberto não se atém à moral familiar,

para agir com ética e acolher os jovens. Dar segurança a quem precisa e a quem solicita

é ultrapassar as segmentações morais impostas por segmentos sociais, econômicos e

63

ROSA, Op. cit., pp. 158-159

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políticos, para articular a ética com a vivificação de cada um, com o próprio de cada

um, compartilhado com a unidade que converge as diferenças e diverge o próprio das

personagens. Ser ético é ir além das amarras moralizantes e moralizadoras, é abdicar de

preconceitos, para dar espaço ao diálogo e a doação de si em detrimento das

necessidades dos outros.

O desprendimento do fazendeiro é realizar as boas-vindas e manter o casal em

segurança. A narrativa apresenta o acontecer ético do fazendeiro:

As coisas bem feitas, medidas, como só um grão-capitão

concebe. Esse outro se chamava Bibião, era um brabo de cronha e

cano: me tomou a benção. Bom. Tudo em tudo, em ordem, adormeci,

consoante, proprietário de meu sono. Como não? Gente minha já

galopava, nessa noite e madrugada. Um próprio à Fazenda Congonha,

do meu compadre Veríssimo, por três rifles, três homens emprestados.

Pelo seguro. Povo lá é de brasas. E um à Lagoa-dos-Cavalos, por

outros três para o meu compadre Serejério não se dar de melindrado.

Bom. Eu tiro os outros por mim. Com tino e consideração, é que o

respeito é granjeado: com honra, sossego e proveito. De encaminhar,

me adormeci bem. Só vivo no supracitado.64

Joaquim Norberto vigencia-se eticamente. Não age para atender pedidos e

resolver problemas, mas opera pelo agir ético de acolher os noivos chegados à meia-

noite na fazenda. Após a chegada do casal o trabalho continua a fim de que haja

resguardo e prontidão em defendê-lo caso seja necessário. O fazendeiro age em doação,

de modo que a ética é posta como questão essencial para o relacionamento entre as

personagens e no humano nas estórias rosianas.

A ética é uma via de mão dupla, é um ir e um vir incessante, não significando

que os caminhos percorridos devam ser iguais, mas significando que a doação é

ocorrida entre todas as partes, cada um, em seu caminho, realiza o percurso que insurge.

64

ROSA, Op. cit., p. 159

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128

Não são somente as escolhas realizadas ao longo do trajeto que diz a ética, mas a

manifestação do próprio no diálogo interposto com a doação de si na reunião com o

próprio do outro. Não se trata unicamente de um tratamento recíproco, mas à harmonia

existencial entre os diferentes aceitando ao outro na unidade existencial, em que cada

um vivifica e existe doando-se.

O clima de contenda é instaurado no conto. Após o casamento, narra-se o

seguinte:

A gente tendo de saroar. Na sala. Nestes bancos e cadeiras.

Aqueles lampiões e lamparinas. Todos, os de mando, Que eu, meu

irmão João Norberto, compadres Veríssimo e Serejério, e o Noivo,

mais Seo Fifino. Também a Noiva, em seu vestido branco, e Sa-Maria

Andreza, mulher minha. Todos e todas. A furupa de homens bons.

Que, perto de mim, meu é Sipío. E a ceia o enterro-dos-ossos com

alegria. Homem comendo em pé, o prato na mão; alerta o ouvido. A

gente, risonhos de guerra, a qualquer conta. Aqui, o inimigo que

viesse! esses Dioclécios, dianhos. A hora de fechar os fôlegos.

Aqui, a gente esperava com luz para mil mariposas. E: manda o tri-o-

li-olá... se me se diz pique-será! Ninguém viesse? Ao-que-é-que-é,

estávamos.65

As personagens encontravam-se à espreita da chegada de enviados do pai da

moça, Major João Dioclécio, que era contrário à união. Estavam à espreita da revelia

que era desejosa pelo fim do amor entre os jovens. Lutar com ética, não é uma luta vã,

como comprova a estória. Além da consideração com “Seo Seotaziano”, o amor dos

jovens impele o fazendeiro a lutar pela causa deles, fomentando a união do casal.

A ética vai além das ponderações e das práticas exercidas. Desde o envio da

mensagem até a partida dos jovens da fazenda Santa-Cruz-da-Onça, a ética permeia o

agir de Joaquim Norberto. O seu proceder versa condizente àquilo que ele considera

como próprio e dialógico. A ética torna unidade o indissociável do próprio de cada um,

reunido e compartilhado. As estórias rosianas instauram a ética como constituição do

65

ROSA, Op. cit., p. 162

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real para o humano. A ética não pode delimitar o humano, já que ela é a manifestação

do humano pelo operar incessante do sertão e do real, que não são sempre os mesmos e

nem articulam o mesmo. A escolta de Joaquim Norberto finaliza-se com a partida do

jovem casal para a fazenda do pai da moça, que enviou um filho para dar a palavra do

seu aceite para a união. Os jovens partem e o fazendeiro fiel dá por encerrado o

acontecimento com a declaração de acolhimento do pai da moça para os jovens fugidios

e com o pedido de ser o padrinho da criança. A ética não abandona o humano de cada

um, fazendo-se presença em virtude de reunir o próprio, compartilhando-o na unidade

formada pelos personagens.

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CAPÍTULO 4

AMOR E PROCURA, CURA ROSIANA

Amar é ser. Amar é o vigorar do agir que, incessantemente, se manifesta, se

instaura e se plenifica. Amar é a vigência do ser, que se mostra e, ao se mostrar, diz.

Amar é silêncio. Silêncio que diz e silencia. Vela e desvela. Amar é entre. Ser e não ser.

O amor é procura do ser. Assim, não pode ser representado por um fato

consumado ou por palavras cristalizadas. O amor não é clichê. Sua originalidade se dá

como fonte primordial. Sem parâmetros e paradigmas, o amor é o caminho original para

o ser. É diferente do mesmo. É possibilidade originária, que funda mundo. Para o amor,

o ser se mostra em sua diferença, não há como se mostrar, se dizer e se portar

indiferentemente.

O amor é agir. Este agir operante convergente é próprio da physis por ser

possibilidade do agir em seu velar e desvelar. Portanto, o amor não pode ser visto como

fato consumado ou pertencente a um ciclo tempo-espacial. O tempo do amor é tempo de

eclosão da physis, do real, da linguagem, do ser. O amor não pode ser medido pela

durabilidade, ou seja, por tempo de duração. É próprio do amor o agir que diz e mostra e

que silencia. Não se trata de uma duração cronológica, mas, sim, do tempo do ser, da

physis.

O amor é escolha. É um lançar-se. O amor não requer identidade, caso o fosse,

seria somente um sentimento acionado pela mesmice, pela prontidão de querer um ser

igualitário. No entanto, a marca do amor é a diferença. A escolha pelo diferente que,

pela diferença, marca o inaugural em unidade. A escolha pelo diferente é escolha

primordial para o diálogo. Dialogar é ausculta do ser que se mostra e diz ao dizer-se. A

instauração do diálogo, que é o entre, não separa o eu do tu. É uma reunião original.

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Não por fossilizar um sentimento em concretude material, mas, sim, por ser

possibilidade de originalidade instauradora de linguagem, de physis, de real, de verdade.

A fruição do amor é latência revigorante e iminência reconfortante. O latente

tem seu vigor vivificador e forma a experiência consumadora. Não há tempo que

consuma o amor, a não ser a experiência de amar. Não há pressa para a sua plenitude, já

que cada revigorar já é pleno. Não há sequência, pois pulsa a abertura, onde não há

limites nem margens que o delimitem. No fragmento 47 de Heráclito é dito: “Nas

grandes coisas não nos acordemos apressadamente.”66

Assim, o amor vige e se plenifica

como questão motriz e, portanto, não deve ser apresentada por respostas e contingências

prontas, mas deve propiciar o operar experiencial de cada um no diálogo reunificador,

sem que haja a preocupação e o anseio por plenificar-se e consumá-lo pela fluidez

temporal ou racional.

A procura do amor é ser no desmedido. Amar o amor que ama amar. E no entre

da proximidade o amor se nutre. Manuel de Castro, em Dicionário Poética e

Pensamento, diz o seguinte:

O amado será um inquilino como o próximo, ainda que sempre

como o mais próximo. Este é o paradoxo do amar, só vigorar na

proximidade, mas isto não é uma questão de individualismo e

isolamento, mas a nossa condição de jamais podermos ser senão o ser

que somos e só como proximidade sermos o amado. A proximidade

não é negativa, mas a possibilidade máxima de poder afirmar no amar

a diferença que é o amado. Amar não é anular mas afirmar

originariamente aquele que sendo o que não sou me é o mais próximo.

Só assim podemos co-habitar na proximidade do coração. Amar é co-

habitar o coração, é Ser coração-co-habitante. A unidade dos amantes

é o Amar assim como a unidade do sou de cada amante é o Ser. A

proximidade é mais do que compreender o outro, é aceitá-lo como ele

é e não pode deixar de ser.67

66

HERÁCLITO, Op. cit., p. 71 67

CASTRO: Amar, 1. In: CASTRO, Manuel Antônio de. Dicionário de Poética e Pensamento. Internet. Disponível em: http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Amar

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O amor não requer um emissor e receptor isolado em sua função. Para amar, não

há função. E como mencionou Manuel de Castro, a proximidade não é anulação. Ela

provém da possibilidade de ser na unidade que é amar. Unidade que possui na diferença

a sua igualdade. Ser próximo não se refere à localidade espacial e, nem mesmo, sobre a

maneira de pensar, ideologias, conceitos, ideias, convicções, juízos, conhecimentos,

opiniões, lembranças.

O amor é cura. Manuel de Castro diz o seguinte sobre a cura:

A essência da cura é deixar-se assaltar, possuir pela questão. Não

somos nós que temos questões. São as questões que nos têm. Quando

isto acontece então nos movemos nos elementos da Cura, ou seja, o

homem é de-finido por ela na medida que deixa eclodir nele as

questões. Estar aberto ao apelo da cura é a questão maior. Como esta

abertura gera um limiar e se dá numa tensão, nós nos movemos na

cura na medida e na proporção em que estamos já sempre e desde

sempre na pro-cura, onde não somos nós que pro-curamos, mas na

qual nos apropriamos do que nos é próprio: o que nos é próprio é o

que somos. Ser para o homem significa tornar-se homem na e pela

pro-cura. Por isso, é necessário distinguir querer e desejar. O desejar é

do homem. O querer é da cura.68

Como questão, a cura é própria do ser. E o amor, como questão, é a cura da

proximidade da unidade. Em Primeiras estórias, o amor é, inclusive, apresentado como

cura e procura. Sobre o amor, serão indicados os seguintes contos: “Seqüência”, “Luas-

de-mel”, “Subst ncia” e “Partida do audaz navegante”. Na estória “Seqüência”, um

fazendeiro ordena a um filho seu trazer a vaca fugida de volta à fazenda. Ele, por seguir

no encalço da vaca, chega à fazenda Pãodolhão. É bem recebido, e se enamora pela

segunda filha de Major Quitério. Em, “Luas de mel”, um casal se refugia na fazenda

Santa-Cruz-da-Onça para se casarem, já que o pai da jovem não consentia com o enlace.

Casam-se. No dia seguinte chega, na fazenda, o irmão da jovem, e diz que o pai dela

68

CASTRO: Cura, 2. In: CASTRO, Manuel Antônio de. Dicionário de Poética e Pensamento. Internet. Disponível em: http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Cura

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pede o retorno do casal e que consente com a união dos jovens. Eles partem. No conto

“Subst ncia”, Maria Exita trabalha quebrando polvilho nas lajes da fazenda de Sionésio.

Com uma família problemática, foi trazida pela Nhatiaga para lá. Sionésio se enamora

por ela e a convida para viver com ele. Ela aceita. No conto já mencionado “Partida do

audaz navegante”, a história do “audaz navegante” co-ocorre com o enamoramento de

Ciganinha e Zito, que estavam em desentendimento. O amor rosiano, portanto, se

mostra como cura e procura. É uma das questões centrais em Primeiras estórias.

O conto “Partida do audaz navegante”, de João Guimarães Rosa, apresenta como

personagem principal uma criança. Esta se encontra para além do olhar imediatista do

adulto e do dogma simplório do conto infantil, pois para a poética de João Guimarães

Rosa, a criança é mundividente e não está sob o ver de um adulto menospreciativo.

Assim, a infância é vida e em plenitude. As sensações da criança formam um mundo

onde a mundividência infantil cerceia-o com impressões e percepções sensitivas e

pensantes. rejeirinha, protagonista, narra o “Audaz navegante” com vivacidade e

ternura. E o amor se mundifica na estória rosiana e na narrativa do narrar da estória.

A invenção não precede ao pensamento. O pensamento é cura, constitui-se com a

existência, não antes desta. Pensa-se então naquilo que é. Para a invenção ocorrer faz-se

necessário a linguagem, um viés para presentificação. Da relação entre invenção e

fantasia, pode-se pensar que ambas dependem da linguagem para coexistirem, já que,

isoladamente, ambas ficam impossibilitadas de existirem e de serem presentificadas. A

narrativa como linguagem precede a fantasia. Narrar é mostrar-se. É ser linguagem.

A fantasia infantil é diagnosticada quando há a cisão entre o pensar e o real, o

imaginário seria o sinônimo perfeito. A fantasia torna-se importante, já que é

direcionada através do eclodir da linguagem, do narrar, do pensar. Fantasiar é deixar ver

um pensamento, um narrar, uma linguagem que desponta para a percepção, longe de um

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lugar comum e que possa ser acessado formalmente. Os contos rosianos não podem ser

comparados aos contos tradicionais devido à consideração de que os contos rosianos

preconizam a narrativa como linguagem que se mostra, sem preocupar-se com a

delimitação da forma como ponto máximo atingido ou a ser atingido.

Em “Partida do audaz navegante”, rejeirinha narra sobre a partida do audaz

navegante. Toda essa narrativa se desenvolve para o fechamento. Essa narrativa serve

ao conto como ponto de convergência. A história de amor é o elo entre a narrativa de

Brejeirinha e a narrativa do conto. A narrativa de Brejeirinha é uma história de amor. O

audaz navegante parte com sua amada.

Além de Brejeirinha, duas irmãs e o primo são personagens do conto. Suas irmãs

Pele, Ciganinha e o primo Zito não participam da narrativa de Brejeirinha. Mas

Brejeirinha arquiteta sua narrativa a partir da relação entre sua irmã Ciganinha e seu

primo Zito. A fantasia de Brejeirinha irrompe a partir da narrativa do conto que aponta a

relação entre Ciganinha e Zito. Ambos se amando e sem audácia para seguir em frente.

Com a narrativa de Brejeirinha, percebe-se que para o amor tem que ser audaz, é preciso

audácia para seguir e mundificar o amor. O primo tem que ser mais audaz para

aprofundar o amor com Ciganinha.

A fantasia possui vínculo com a realidade. Ela não é um sinônimo para

disparate, pois, a fantasia é partícipe de um pensamento. Ao fantasiar abre-se o

pensamento para o descoberto, o que pode ser mostrado. Com a fantasia de Brejeirinha,

em sua narrativa, vê-se o descobrimento do amor. E da força do amor que une e felicita

a vida.

A narrativa de Brejeirinha funciona como um paratexto da narrativa do conto.

Há a coordenação de pensamento entre o narrador do conto “Partida do audaz

navegante” e a narradora rejeirinha. A fantasia de Brejeirinha é alocada por uma

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situação real e conectada a uma representação. Impelida pela linguagem, irrompe na

narrativa sua fantasia. A história de amor faz-se presente através da linguagem na

narrativa que desabrocha.

Para a narrativa, a fantasia faz-se necessária porque abre a fenda para o

extraordinário. Aquilo que não pode ser visto por olhos imediatos e simplificadores. Do

ponto de vista real, uma porção de estrume é somente fezes bovinas. Já para a fantasia,

no âmbito do real, se há sentido e pensamento, logo se pode adquirir valor qualquer

objeto ou forma. Assim, o Aldaz Navegante é presentificado, através da forma de

esterco bovino, para uma forma humana, segundo Brejeirinha.

A fantasia mostra que há a possibilidade de novos parâmetros com novos

sentidos. Desse modo, o sentido novo indica um novo valor, longe da trivialidade.

Assim, os objetos ganham nova roupagem, tal como, as palavras que adquirem um novo

sentido. Se a viagem do Aldaz Navegante é permeada pela ternura na narrativa de

Brejeirinha, já que é uma viagem cerceada de acordo com um plano sentimental, por

outro lado, pelo fato corriqueiro da realização, o Aldaz Navegante nada mais é do que

uma forma de estrume levado pelas águas da chuva. Para a fantasia, o novo sentido doa

maior renovação na narrativa, presentificando- se o real.

Para a narrativa de João Guimarães Rosa, a infância é caracterizada pela alta

sensibilidade. Nos vários contos com personagens infantis, a sensibilidade apresenta

crianças sensitivas e sábias. Assim, as crianças não são (pré) concebidas como tabula

rasa. Por serem portadoras de alta sensibilidade, as crianças ganham destaque nos

contos de Guimarães Rosa. O pensamento infantil, para a estória rosiana, não é

atribuído à escassez de vocabulário nem à imaturidade de pensamento. O pensamento

infantil, segundo o autor, é criativo, sensível e sabedor das coisas. A criança rosiana é

mundividente. Entende a si e ao mundo com grandiloquência na narrativa.

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A mundividência infantil apresenta-se particularmente em oposição ao mundo

adulto. Não há, por parte de Guimarães Rosa, qualquer negativa em relação ao

pensamento infantil. Para o autor, a criança é dotada de vida e concebe o redor

ativamente. A criança, portanto, não se apresenta passivamente diante do mundo. Esse

atuar infantil favorece o desprendimento humano, a criança não se mostra presa a um

pensar, mas, sim, presa ao pensar, ao fantasiar, à linguagem, à narrativa.

O pensar infantil não está moldado segundo a imaturidade, o descuido, a

fugacidade, o alheamento, a passividade, o enclaustramento, a servidão e a

insensibilidade. A sapiência infantil é dotada e relacionada com a própria criança, com

seu mundo interior e exterior. Há o cuidar de si e do mundo. Há a luminosidade que

resplandece o momento com sua plenitude. Há a particularidade de ver-se e ver o outro

em diálogo. Há um pensar ativo que impulsiona à frente. Há o pensar livre com suas

próprias conjecturas e próprios desvelos. Há a concepção sem a adoção cega dos fins

pré-estabelecidos. Há a sensibilidade para consigo, para o outro e para o mundo. A

particularidade do pensar infantil permite a inferência e percepção do olhar pensante

diante da grandiosidade da vida.

A criação literária por ser ação da linguagem, concebe as palavras longe do

plano trivial. Criar é conceber um mundo. No plano da linguagem, o dito e o não-dito

são meios de presentificação. Nem sempre o não-dito será silenciado pelo

esquecimento. O silêncio do não-dito é a entrelinha do resguardado. Por mais que haja o

dito, nunca será narrado todo ele. Pois, o dito é a proximidade da linguagem para ser

mostrada em presentificação pelas palavras. Por isso, criação literária está para além das

palavras, pois o não-dito pode dizer muito mais do que o vazio aparente. O silêncio diz

sobre si e sobre as palavras. Assim, a criação literária articula-se entre o pensar e a

linguagem.

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137

Brejeirinha, a personagem narradora do conto, percebe a linguagem como

criação. Assim, há a percepção do caráter inventivo e inovador da linguagem, quando a

personagem diz “Eu sei por que é que o ovo se parece com um espeto.”69

. Esse caráter

inventivo possibilita que o não habitual surja com força inovadora, já que, possibilita o

advento do novo a partir do já conhecido. Desse modo, vocabulários já conhecidos

adquirem nova roupagem. Esse engrandecimento da língua, um elogio ao caráter

inventivo infantil para as palavras, permite maior mobilidade para o plano da narrativa,

pois, palavras com novos sentidos indicam novos caminhos.

A infância, para João Guimarães Rosa, é marcada pela riqueza da experiência

vivencial. De certo modo, é a vivência com a experienciação da realidade o traço

marcante na infância para o autor. A criança não está alheia ao entendimento de e do

mundo. É partícipe, com o seu próprio pensar, e sujeito de suas criações. O pensamento

infantil não se apresenta isoladamente, é parte integrante do mundo. Na mundividência

infantil rosiana, o sertão é dotado de linguagem, e, assim, de narrativa. A criatividade

literária, narrativa, é encontrada em personagens crianças, adultas e anciãs. O privilégio

está para aqueles que sentem o sertão e presentificam-no pela linguagem.

A grande dúvida da personagem Brejeirinha era se uma criança poderia

compreender o amor. A resposta, retirada pela própria narrativa de Brejeirinha, é

positiva, é verdade, como é indicada no conto. Diante de muitas indagações, uma, em

especial, serve como ponto principal na narrativa, é a seguinte: “―Sem saber o amor, a

gente pode ler os romances grandes?”70

Tanto para ler os romances grandes quanto para

ler os contos pequenos, a sensibilidade é extremamente importante. Essa sensibilidade

está presente na personagem Brejeirinha, que narra uma narrativa de amor, o operar

fulcral da narrativa.

69

ROSA, Op. cit., p. 167 70

Ibidem, p. 168

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138

Logo ao princípio de sua narrativa Brejeirinha compara seu primo Zito com o Aldaz

Navegante. Assim:

Mas Brejeirinha tinha o dom de apreender as tenuidades: delas

apropriava-se e refleti-as em si ―a coisa das coisas e a pessoa das

pessoas. ― ‘Zito, você podia ser o pirata inglório marujo, num navio

muito intacto, para longe, lo-õ-onge no mar, navegante que o nunca-

mais, de todos?’ Zito sorri, feito um ar forte. Ciganinha estremecera,

e segurou com mais dedos o livro, hesitada. Mamãe dera a Pele a

terrina, para ela bater os ovos.71

O explicitado pela narrativa do conto indicava que Zito e Ciganinha haviam

brigado, e, por isso, não se falavam, a pesar da vontade de se falarem. Brejeirinha

adianta na sua narrativa que o audaz navegante será seu primo. A narrativa do conto se

encontra com a narrativa de Brejeirinha desde o início, quando a narrativa de amor é

evidenciada. Brejeirinha percebe no primo um personagem de uma narrativa de amor,

apesar de não ser leitora de grandes romances, já que diz ser leitora, e diz à Pele: “Pois

eu li as 35 palavras no rótulo da caixa de fósforo...”72

A complexidade do amor é entendida pela criança. Compreender o amor em

contos de João Guimarães Rosa requer percepção para a sensível. O amor é união

harmoniosa. A harmonia do amor forma pares amantes e inebriados pelo sentimento

fundador da união. É união de alguém consigo mesmo e com o outro. Estar junto

consigo mesmo e com o outro. A procura por si e pelo outro marca a busca humana pela

cura. O amor é harmonia porque não há anulação, mas diálogo amoroso. Com o

sentimento amoroso, a procura é pelo bem que se torna sujeito e objeto da procura. Há a

união para o bem comum. A união, compartilhar do sentir, forma um. Assim, na

narrativa de Brejeirinha, é apontado o amor do “Aldaz Navegante”:

71

ROSA, Op. Cit., p. 168 72

Ibidem, p. 168

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139

― “O Aldaz Navegante n o gostava de mar Ele tinha assim

mesmo de partir? Ele amava uma moça, magra. Mas o mar veio, em

vento, e levou o navio dele, com ele dentro, escrutínio. O Aldaz

Navegante não podia nada, só o mar, danado de ao redor,

preliminar. O Aldaz Navegante se lembrava muito da moça. O amor

é original... 73

A sensibilidade instaura uma instância reveladora. Quem lê pode sentir o

mostrar do amor se estiver aberto e receptivo para tal, assim como aquele que ama e é

amado deve estar na abertura para receber e dar amor. Por muitas vezes, o amor é

considerado como uma via única, já a estória rosiana nos mostra que o amor é uma via

dupla incessante e contínua. O amor existe em doação e recepção. Não há amor perdido

e nem achado, apesar da procura e do ganho. O amor é luminosidade, porque ilumina a

via que é a vida. Viver e amar são sinônimos à medida que é um diálogo incessante e

permanente. Assim como o Aldaz Navegante sentiu a falta da amada, a amada sentiu

falta do amado: “― „A moça estava paralela, lá, longe, sozinha, ficada, inclusive, eles

dois estavam nas duas pontinhas da saudade... O amor, isto é... O Aldaz Navegante, o

perigo era total, titular... não tinha salvação... O Aldaz... O Aldaz...‟”74

O amor requer união. Brejeirinha fez sua narrativa e o amor possível. Sem ter

amado, a personagem compreende o amor. Como desfecho da narrativa do Aldaz

Navegante de Brejeirinha, unem-se os elementos amantes e amados em união

harmoniosa. Pois o Aldaz Navegante e sua amada partem, enfim, juntos. Assim,

― “Agora, eu sei. O Aldaz Navegante n o foi sozinho; pronto

Mas ele embarcou com a moça que ele amavam-se, entraram no

navio, estricto. E pronto. O mar foi indo com eles, estético. Eles iam

sem sozinhos, no navio, que ficando cada vez mais bonito, mais

bonito, o navio... pronto: e virou vagalumes... 75

73

ROSA, Op, cit., p. 172 74

Ibidem, p. 172 75

Ibidem, p. 174

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140

A união harmoniosa prevalece onde o amor cativa. Assim, a luminosidade do

amor transforma os amantes em vagalumes.

A narrativa rosiana é conhecida por sua alta complexidade. No conto “Patida do

audaz navegante” há dois narradores bem marcados, o narrador do conto e a narradora

Brejeirinha. Logo ao início da narrativa aparece o narrador adulto. Inicialmente, o

narrador adulto narra:

Na manhã de um dia em que brumava e chuviscava, parecia

não acontecer coisa nenhuma. Estava-se perto do fogo familiar, na

cozinha, aberta, de alpendre, atrás da pequena casa. No campo, é

bom; é assim. Mamãe, ainda de roupão, mandava Maria Eva estrelar

ovos com torresmos e descascar os mamões maduros. Mamãe, a mais

bela, a melhor. Seus pés podiam calçar as chinelas de Pele. Seus

cabelos davam o louro silencioso. Suas meninas-dos-olhos brincavam

com bonecas. Ciganinha, Pele e rejeirinha ―elas brotavam num

galho. Só o Zito, este, era de fora, só primo. Meia-manhã chuvosa

entre verdes: o fúfio fino borrifo, e a gente fica quase presos,

alojados, na cozinha ou na casa, no centro de muitas lamas. Sempre

se enxergam o barranco, o galinheiro, o cajueiro grande de variados

entortamentos, um pedaço de um morro ―e o longe, Nurka, negra,

dormia. Mamãe cuida com orgulhos e olhares as três meninas e o

menino. Brejeirinha, menor, muito mais. Porque Brejeirinha, às

vezes, formava muitas artes.76

Aparentemente, era um dia como qualquer outro. No entanto, o que

transformaria esse dia era a história do Aldaz Navegante. Assim, Brejeirinha começa

sua história:

[Mas Brejeirinha punha mão em rosto, agora ela mesma

empolgada, não detendo em si o jacto do contar:] ― “O Aldaz

Navegante, que foi descobrir os outros lugares valetudinário. Ele foi

num navio, também, falcatruas. Foi de sozinho. Os lugares eram

longe, e o mar. O Aldaz Navegante estava com saudade, antes, da

mãe dele, dos irmãos, do pai. Ele não chorava. Ele precisava

respectivo de ir. Disse ― “Vocês vão se esquecer muito de mim? O

navio dele, chegou o dia de ir. O Aldaz Navegante ficou batendo o

lenço branco, extrínseco, dentro do indo-se embora do navio. O

navio foi saindo do perto para o longe, mas o Aldaz Navegante não

dava as costas para a gente, para trás. A gente também inclusive

76

ROSA, Op. Cit., pp. 166-167

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141

batia os lenços brancos. Por fim, não tinha mais navio para se ver,

só tinha o resto de mar. Então, um pensou e disse: ― “Ele vai

descobrir os lugares, que nós não vamos nunca descobrir...” Então e

então, outro disse: ― “Ele vai descobrir os lugares, depois ele nunca

vai voltar...” Então, mais, outro pensou, esférico, e disse: ― “Ele

deve de ter, então, a alguma raiva de nós, dentro dele, sem saber...”

Então, todos choraram, muitíssimos, e voltaram tristes para casa,

para jantar... 77

A narradora criança inicia a sua narrativa com a partida do Aldaz Navegante.

No entanto, no decorrer do conto, ela mudará sua narrativa, pois o Aldaz Navegante não

parte sozinho, mas com a Moça, a quem ele ama. O que seria uma viagem solitária se

transforma em uma viagem de amor. O que seria saudade se torna presença. E o dia, que

poderia ser um outro qualquer no conto, se torna especial devido à narrativa de

Brejeirinha e sua percepção do amor.

A narrativa rosiana suscita a imagem tal como o suscitar da fantasia. Assim, a

imagem formada da partida do Aldaz Navegante permite o operar vivificador na estória.

O narrador rosiano traz um mundo de imagens, um mundo sinestésico, em que o leitor

tem uma junção entre imagem e palavra. As palavras rosianas são utilizadas longe do

sentir habitual e formam um elo instaurado com as imagens que suscitam. A força da

palavra rosiana cria imagens e a fantasia através de si mesma, mundificando o sertão.

O narrador rosiano apresenta um mundo imagético onde as palavras são

eclodidas com força imagética. O sertão rosiano é a linguagem do sertão que demonstra

um sertão rosiano, em imagens narradas e experienciadas por um narrador sensitivo, em

sintonia com o sertão. Contar o sertão rosiano é adentrar-se em uma mundividência

poética onde não há uma simbiose marcada entre o interior e o exterior, o humano e o

natural, o sensível e o fictício. Há sim a busca pelo experienciar o sertão com o dizer do

narrar. Os narradores rosianos, narradores adultos ou crianças, narram a experiência.

77

ROSA, Op. cit., pp. 168-169

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142

A narrativa de Brejeirinha funciona como uma narrativa-espelho do conto

“Partida do audaz navegante”. O ponto de contato entre elas é a narrativa do Aldaz

Navegante. Pois, a narrativa de Brejeirinha é uma história de amor, assim como a

narrativa do conto apresenta a relação entre o primo Zito e a Ciganinha. E o primo Zeca

e o Aldaz Navegante são personagens que são um ponto de encontro entre as duas

narrativas. O Aldaz Navegante é uma personagem-espelho e reflete o primo Zito na

narrativa do conto. A própria personagem-narradora já explicita. Na narrativa de amor

de Brejeirinha, o Aldaz Navegante é personagem protagonista.

Na narrativa do conto, há também as personagens interlocutoras. Assim, no

decorrer da narrativa de Brejeirinha, suas irmãs dialogam com a própria narrativa e com

a narradora. É o que demonstra o seguinte trecho:

― “Sim. E agora? E daí?” ―Pele intimava-a.

― “Aí? Então... então... Vou fazer explicação! Pronto.

Então, ele acendeu a luz do mar. E pronto. Ele estava combinado

com o homem do farol... Pronto. E...

― “Na-ão. Não vale! Não pode inventar personagem novo,

no fim da história, fu E ―olha o seu ‘aldaz navegante’ ali. É

aquele...

Olhou-se. Era: aquele ―a coisa vacum, atamanhada,

embatumada, semi-ressequida, obra pastoril no chão da limugem, e às

pontas dos capins ―chato, deixado. Sobre sua eminência, crescera

um cogumelo e haste fina e flexuosa, muito longa: o chapeuzinho

branco, lá em cima, petulante se bamboleava. O embate e orla da

água, enchente, já o atingiam, quase.78

Cada narrativa de Guimarães Rosa é um mundo narrativo. Sempre há um

narrador diferenciado. Em “Partida do audaz navegante” tem-se uma narradora dentro

da narrativa; além do narrador do conto, há a narradora Brejeirinha, em uma narrativa

espelho de amor.

78

ROSA, Op. cit., pp 172-173

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143

Por mais que se procure, o amor é um achado, um presente ofertado no grande

sertão, no desmedido real. Amar é vivenciar o outro em totalidade de plenitude da

unidade que une as pessoas envolvidas no diálogo instaurador. No conto “Seqüência”,

um fazendeiro ordena a seu filho trazer a vaca fugida de volta à fazenda. Ele, por seguir

no encalço da vaca, chega à fazenda Pãodolhão. É bem recebido, e se enamora pela

segunda filha de Major Quitério. O enredo já está apresentado, resumidamente, no

primeiro parágrafo da estória, como se observa a seguir:

Na estrada das Tabocas, uma vaca viajava. Vinha pelo meio do

caminho, como uma criatura cristã. A vaquinha vermelha, a cor grossa

e afundada o tom intenso de azamar. Ela solevava as ancas, no trote

balançando e manso, seus cascos no chão batiam poeira. Nem hesitava

nas encruzilhadas. Sacudia os chifres, recurvos em coroa, e baixava

testa, ao rumo, que reto a trazia, para o rio, e para lá do rio a terras

de um Major Quitério, nos confins do dia, à fazenda do Pãodolhão.79

No entanto, esse enredo superfial, a sequência e as peripécias da vaca pelo

sertão, até chegar às terras do Major Quitério, é transpassado pelo enredo instaurador, a

sequência que leva o sertanejo ao encontro do amor. De antemão, o enredo do percurso

da vaca é lançado, mas, é no transcorrer do conto que o narrar evidencia que o caminhar

da vaca fujona se torna algo mais, ao permitir o vigorar do amar entre o sertanejo e a

sertaneja que se encontrarão pela tentativa de buscar a vaca, que se converte na procura

pelo amor.

A vaca sacramenta o amor, na busca da unidade que quanto mais tira de si,

maior fica, e quanto mais traz para si, menor fica. É o operar da unidade, que mesmo

partilhado e compartilhado, não é diminuído, vivendo em si e no(s) outro(s), no

desmedido do dizer-se e dizer do vigorar de si e do outro no desmedido do sertão, do

real na união, no diálogo, onde não há partes de um todo nem um todo em partes, mas 79

ROSA, Op. cit., p. 113

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há a completude. Há a unidade plena, que plenifica não somente o amor, vigoroso no

amor, mas, plenifica a cada um que ama. O andar da vaca irrompe o caminhar do amor

que pode se dar no transcurso cheio de obstáculos, mas, que, no fim, atinge sua

culminância, ao enlaçar dois sujeitos para amar. Desse modo, a estória apresenta a

seguinte narrativa, com a frase questão ao final do parágrafo:

No Arcanjo, onde a estrada borda o povoado, foi notada, e,

vendo que era uma rês fujã, tentaram rebatê-la; se esvencilhou, feroz,

e foi-se, porém. De beira dos pastos, os anus, que voavam cruzando-a,

desvinham de pousar-lhe às costas. No riachinho do Gonçalves, quase

findo à míngua d‟água, se deteve para beber. Deram tiros, no campo,

caçando às codornas. Latidos, noutra parte, faziam- na entrar oculta no

cerrado. Ora corriam dela umas mulheres, que andavam buscando

lenha. Se encontrava cavaleiros, sabia deles se alonjar, colada ao

tapume, com disfarces: sonsa curvada a pastar, no sofrido

simulamento. Légua adiante, entanto, nos Antônios, desabalava em

galope, espandongada, ao passar por currais, donde ouvia gente e não

era ainda o seu termo. Tio Terêncio, o velho, à porta de casa,

conversou com o outro: “Meo fi’o, q’vaca qu’é essa? “Nho pai,

e’a n’é nossa, n o. Seguia, certa; por amor, não por acaso.80

Amar é verdade, entendido como o agir que realiza o velamento, o desvelamento

e a revelação do amor. Quem ama vela o amado no desvelo do amor revelado. A vaca

diz sobre o amar que é certeiro, ou, ao menos, é um caminho de abertura para a verdade

de cada um, para revelar-se, velar-se e desvelar-se e para revelar, velar e desvelar o

outro que se presentifica e se instaura no diálogo amoroso.

Ao ser narrado que a vaca seguia certa pelo caminho que propiciaria o amor, a

narrativa indica que o trajeto principal é o que traça o amor, não como uma reta

perpendicular ou paralela, mas, sim, como um círculo, no qual, o início é o fim, e o fim

é o início, ou seja, o início já está na chegada e a chegada já se faz presente no início.

80

ROSA, Op. cit., pp. 113-114

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145

Seguir pelo amor é seguir certo, ou melhor, é necessário despojar-se das dúvidas, dos

acasos e dos infortúnios para seguir com o amor. No amor, há a certeza de amar,

independente das conveniências e das elucubrações, já que se ama no desvelamento,

revelação e revelamento do outro sem paradigmas nem explicações.

Amar é o agir sem parâmetros no desmedido do real, bem como, do sertão.

Amar é o operar ilimitado. É o agir no transcendente viver que não se torna necessário,

mas, sim, torna-se a apertura de mostrar-se, dizer-se e ser, na estória, no mundo, no real

e na realidade. É o que demonstra o seguinte trecho do conto, ao indicar que o jovem se

lançara ao desmedido de experienciar e vivenciar o real e o sertão mesmo sem o saber e

conceber a ideia, e, ainda, sem saber o que sucederia, até mesmo se acharia a vaca no

descampado:

Já o rapaz se anorteava. Só via o horizonte e sim. Sabia o de

uma vaquinha fugida: que, de alma, marca o rumo e faz atalhos

querençosa. Entrequanto, ele perguntava. Davam-lhe novas de

arribada. Seu cavalo murça se aplicava, indo noutra forma, ligeiro.

Sabia que coisa era o tempo, a involuntária aventura. E esquipava. Ia o

longo, longo, longo. Deu patas à fantasia. Ali, escampava. Tempo sem

chuvas, terrenas campinas, os tabuleiros tão sujos, campos sem

fisionomia. O rapaz ora se cansava. Desde aí, o muito descansou. Do

que, após, se atormentava. Apertou.

Com horas de diferença, a vaquinha providenciava. Aqui alta

cerca a parou, foi seguindo-a, beira, beira. Dava num córrego. No

córrego a vaquinha entrou, veio vindo, dentro d‟água. Três vezes

esperta. Até que outra cerca travou-a, ia deixando-a desairada.

Volveu irrompida ida: de um ímpeto então a saltou: num salto que

queria ser vôo. Vencia. E além se sumia a vaca vermelha, suspensa em

bailado, a cauda oscilando. O inimigo já vinha perto.

O rapaz, no vão do mundo, assim vocado e ordenado. Ele

agora se irritava. Pensou de arrepender caminho, suspender aquilo

para mais tarde. Pensou palavra. O estúpido em que se julgava.

Desanimadamente, ele, malandante, podia tirar atrás. Aonde um

animal o levava? O incomeçado, o empatoso, o desnorte, o necessário.

Voltasse sem ela, passava vergonha. Por que tinha assim tentado?

Triste em torno. Só as encostas guardando o florir de árvores

esfolhadas: seu roxo-escuro de julho as carobinhas, ipês seu amarelo

de agosto. Só via os longes de um quadro. O absurdo ar. Chatos

mapas. O céu de se abismar. E indagava o chão, rastreava. Agora,

manchava o campo a sombra grande de uma nuvem. O rapaz lançou

longe um olhar. De repente, ajustou a mão à testa, e exclamou. Do

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146

ponto, descortinou que: aquela. A vaquinha, respoeirando. Aí e lá,

tomou-a em vista. O vulto, pé de pessoa, que a cumeada do morro

escalava. Ver o que diabo. Reduzida, ocupou, um instante, a lomba

linha do espigão. Aí, se afundou para o de lá, e se escondeu de seus

olhos. Transcendia ao que se destinava.

O rapaz, durante e tanto, montado no bom cavalo, à espora

avante, galgando. Sempre e agudamente olhava. Podia seguir com os

olhos como o rastro se formava. Só perseguia a paisagem. Preparava-

se uma vastidão: de manchas cinzas e amarelas. O céu também em

amarelo. Pitavam extensões de campo, no virar do sol, das

queimaduras; altas, mais altas, azuis, as fumaças desmanchavam-se. O

rapaz desdobrada vida pensou: “Seja o que seja.” 81

O jogo do percurso da vaca se plenifica com o encontro do amado com a amada,

que não estava estabelecido no início do caminhar do animal no enredo superficial, mas,

no enredo intersticial, o jogo do caminhar une dois amores em uma unidade de sentir e

de ser compartilhado. O amor é união, pois põe em vigência o agir que se fundamenta

pelo diálogo ou pelo reconhecimento.

A verdade gera o momento de instauração do real. Os porquês, as certezas, nem

sempre se fazem presentes na vida e na estória, já que o porquê não impulsiona a vida

no sertão que está posto como questão na narrativa rosiana. O sertão é movente, por isso

não se instaura como certeza, mas, sim, como o desmedido, ilimitado viver. Estar no

sertão é estar no aberto da narrativa, da estória. O agir não se dá por atitudes pré-

concebidas, pela relação causa e consequência nem pela razão e finalidade. O agir, no

sertão, é vigorar no transcendente, para onde não há margens.

Seja o que seja. E, mais do que o jovem possa encontrar a vaca, que o amor

possa encontrá-lo, não como um desejo ou vontade a ser saciada, nem como um

passatempo para dias chuvosos e monótonos, muito menos, para acabar com a solidão

ao decorrer do dia a dia. Mas, o acontecimento se dá com o amor encontrado, para que

81

ROSA, Op. cit., p. 116-117

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ele seja o que é, e no diálogo harmonioso com o outro também seja o que é, no aberto

desmedido ilimitado sertão, que não se presentifica por causalidades. O amor não

apresenta causas nem margens, e, quem estiver no operar do amar vivencia e

experiencia o amor em toda sua amplitude que torna a ser unidade dialógica inaugural.

Para amar não é necessário abdicar-se de si em detrimento do outro. Faz-se

necessário conhecer-se e estar aberto para o outro com toda sua singularidade e suas

diferenças. O percurso da vaca pelas fazendas foi de idas e vindas, mas sem se deixar

ser capturada. Realizou sua viagem; e o jovem em seu percalço abriu-se ao sertão e a si,

no ciclo sertanejo em que o amor, a linguagem, o real, o ser, o tempo, a memória, a

verdade e o sertão se instauram inauguralmente. O sertão é poetizado através de um

olhar amoroso, de escuta do que se diz e se cala, como demonstram as seguintes

passagens:

Outrarte o ouro esboço do crepúsculo. O rapaz, o cavalo bom,

como vinham, contornando. Antes do rio não viam: as aves, que já

ninhavam. À beira, na tardação, não queria desastrar-se, de nada;

pensava. Às pausas, parte por parte. Não ouviu sino de vésperas.

Tinha de perder de ganhar? Já que sim e já que não, pensou assim:

jamais, jamenos... o filho de seo Rigério. A fatal perseguição, podia

quebrar e quitar-se. Hesitou, se. Por certo não passaria, sem o que ele

mesmo não sabia a oculta, s bita saudade. Passo extremo! Pegou

qüilas águas trans às braças. Era um rio e seu além. Estava, já, do

outro lado.

“A vaca?” e apertava o encalço à boa espora, à rédea larga.

Mas a vaca era uma malícia, precipitava-se o logro. Nisso, anoiteceu.

E não é que, seu cavalo, o murça, se sentia da viagem de pelo a pelo:

os joelhos bambeava, descaía, quase caía para a frente o cavaleiro.

Iam-se, na ceguez da noite à casa da mãe do breu: a vaca, o

homem, a vaca transeuntes, galopando. “Onde então o Pãodolhão?

Cujo dono? Vinha-se a qual destinatário?” Pelas vertentes, distante, e

até ao cimo do monte, um campo se incendiava: faíscas as primeiras

estrelas. O andamento. O rapaz: obcego. Sofria como podia, nem

podia mais desespero. O arrepio negro das árvores. O mundo entre as

estrelas e os grilos. Semiluz: sós estrelas. Onde e aonde? A vaca, essa,

sabia: por amor desses lugares.

Chegava, chegavam. Os pastos da vasta fazenda; A vaca

surgia-se na treva. Mugiu, arrancadamente. Remugiu em fim. A um

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bago de luz, lá, lá. Às luzes que pontilhavam, acolá, as janelas da casa,

grande. Só era uma luz de entrequanto? A casa de um Major Quitério.

O rapaz e a vaca se entravam pela porteira-mestra dos currais.

O rapaz desapeava. Sob o estúrdio atontamento, começou a subir a

escada. Tanto tinha d explicar.

Tanto ele era o bem-chegado!

A uma roda de pessoas. Às quatro moças da casa. A uma

delas, a segunda. Era alta, alva, amável. El se desescondia dele.

Inesperavam-se? O moço compreendeu-se. Aquilo mudava o

acontecido. Da vaca, ele a ela diria: “É sua.” Suas duas almas se

transformavam? E tudo à sazão do ser. No mundo nem há parvoíces: o

mel do maravilhoso, vindo a tais horas de estórias, o anel dos

maravilhados. Amavam-se.

E a vaca vitória, em seus ondes, por seus passos.82

O acontecimento fica para o final, na culminância do desfecho do encontro

amoroso entre o filho de “seo Rigério” e a segunda filha do Major Quitério, que

coincidiu com o fim da estória. As travessuras marcadas pelo deslocar da vaca somente

prorrogaram a estória e o encontro dos amados amantes. A suspensão narrativa surtiu o

efeito de dizer sobre as dificuldades do encontro entre os que se amam, mas, também, o

plano da confluência amorosa fica resguardado pela incidência dada ao itinerário da

vaca, que leva o jovem a conhecer a jovem, no decorrer da narrativa rosiana. São

colocadas questões pertinentes à espera e à busca de amar e ser amado, como a incerteza

que ronda em relação a encontrar o amado, em uma leitura mais intersticial, quando o

jovem partiu à procura da vaca.

A vaca sacramenta o amor, portanto, cumpre o sua missão. Serviu como ponte

que une as duas margens, criando um desmedido habitar amoroso. Como anel que

marca a fidelidade, a vaca seguiu seu caminho entre várias paragens até cumprir sua

meta, ao chegar à fazenda Pãodolhão e unir duas vidas, graças à ousadia da vaca de

82

ROSA, Op. cit., pp. 117-118

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fugir e lançar-se ao sertão desmedido. A jovem prontamente reconheceu o amor

despendido pelo jovem, do mesmo modo que o jovem o reconheceu nela, em uma

sintonia do operar do amor. O grande encontro não foi o do moço com a vaca, mas, sim,

foi o encontro dos dois jovens, que, antes separados, foram unidos graças às peripécias

da vaca rubra, como o amor, que é cura. É o grande encontro.

O amor é o ponto de saída e o de encontro. Amar é partir e chegar. A junção do

amor se dá com o abandono do fragmento para a unidade singular. A relação

estabelecida fomenta o encontro, obliterando o desencontro, as vias dispersas que

podem afastar o caminho com suas vias sinuosas. Amar é escolher, é optar por amar,

pelo amado. No conto “Luas-de-mel”, amar é escolha, é partida e chegada, é começo e

fim. Um casal se refugia na fazenda Santa-Cruz-da-Onça para se casarem, já que o pai

da jovem não consentia com o enlace. Casam-se. No dia seguinte chega, na fazenda, o

irmão da jovem, e diz que o pai dela pede o retorno do casal e que consente com a união

dos jovens. Os jovens partem consentidos.

E o amor é novidade e renovação. Logo ao início da estória, o narrador-

personagem indica que “no mais, mesmo, da mesmice, sempre vem a novidade.”83

Ele

continua a narrar:

Naquela véspera, eu andava meio relaxo, fraco; eu já declinava

para nãoezas? Nos primeiros de novembro. Sou quase de paz, o

quanto posso. Desconto, para trás, o em que me tive, da mocidade:

desmandos, desordens e despraças. Daí, depois, da vidaa sério, que,

cá, de brava danava-se. Sou remediado lavrador, isto é de pobre não

me sujo, de rico não me esporcalho. Defesa e acautelamento é que não

falecem, nesta fazenda Santa-Cruz-da-Onça, de hospitalidades; minha.

Aqui é um recanto. Por moleza do calor era que eu ficava a observar.

Nesse dia, nada vezes nada. De enfastiado e sem-graça, é que eu

comia demais. Do almoço, empós, me remitia, em rede, em quarto.

Questão de idade, digestões e saúde: fígado. Sa-Maria Andreza, minha

santa e meio passada mulher, ia ferver um chá, já, para o meu

empacho. Bom. Seo Fifino, meu filho, banda de fora da porta, noticiou

83

ROSA, Op. cit., p. 156

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que tendo chegado certo sujeito, um positivo, com carta. Tomei pausa.

Prestezas e pressas não me agravavam.84

O que continha na carta de “Seo Seotaziano” entregue pelo Baldualdo dizia para

que Joaquim Norberto recebesse um moço e uma moça. O dia corriqueiro adquire uma

nova nuança. Um casal dirigia-se para a fazenda Santa-Cruz-da-Onça por amor, doando

um novo percurso para a ordem do dia tão marcada corriqueiramente, destoando e

dando uma nova configuração para os acontecimentos. Uma nova atmosfera se instaura,

o amor é exalado. Amar é manifestar-se, tornar presente a ausência e colocar o ausente

presente.

O fazendeiro vivia no limiar da existência. Sem lançar-se na vida, considerava

que “de pobre não me sujo, de rico não me esporcalho.” Por andar em medidas, já que o

narrador-personagem diz que “Prestezas e pressas não me agravavam.”; e “Sou

mosquitinho em queixo de onça: não fiz celhas, não dei pasmo.”, a forma do Joaquim

Norberto se desmedir era comer muito, já que ele faz a seguinte menção: “De enfastiado

e sem-graça, é que eu comia demais.” Na linha tênue reta, a vida de Joaquim Norberto

se desmedia na comida. Mas a vinda do casal jovem lhe dá outro percurso, ou melhor,

outra desmedida, que é fatalmente o amor. A sua fazenda será a morada do amor. Amor

desmedido que pôs os jovens em fuga por que o pai da noiva não aceitava a união.

O acontecer da vida é abertura para a experiência, desde o real. A experiência é

tida pelo fazendeiro no acontecer que é a vida. Ele realiza as seguintes verbalizações:

“Só a vida é que tem dessas r sticas variedades. Eu ponho a mesa e pago a despesa.”85

Narra-se o dispor-se da personagem a realizar-se na vida, experienciar sem fugas, mas a

enfrentar aquilo que se lhe apresenta e insurge à sua frente. A sua ciência é agir perante

84

ROSA, Op. cit., pp. 156-157 85

Ibidem, p. 157

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os fatos e os acontecimentos, compartilhando e reiterando as relações estabelecidas, de

modo que, para a solicitação do seu compadre, diz : “Se ele riscou, eu talho.”86

É o amor que dá um novo rumo ao cotidiano do fazendeiro. A chegada da carta é

renovação. A estória apresenta: “Só os resumos, declarados: „Para um moço e uma

moça, lhe peço forte resguardo. O mais se verá, mais tarde.‟ Essas doidices de amor!

sorri. Saí dos suspensos para os preparados.”87

O pulsar do amor é o caminho para a

unidade. É o ir para além dos espaços limítrofes e enclausurados. Para vingar, amar

procura curar que procura amar. Para o concreto do amar, pode-se sair da linha

confinante, ir à procura de si e do outro, encontrando a cura de amar e ser amado, seja

onde for e por quanto tempo for. Os jovens partem para a morada onde o amor possa

vigorar e em amplitude vingar, tornando-se uma morada potencializada pela cura de

amar.

O amor agiu no fazendeiro, tirando-o da inércia. Da letargia ao acontecimento. A

irrupção do amor opera no fazendeiro, levando-o a agir. O fazendeiro se esmera nos

preparativos para a recepção dos jovens fugidios, esmerados pelo amor, o sentimento de

amar. Assim a narrativa diz: “Tendo-se arroz e feijão à-bastança, e cargas de pólvora,

chumbo e bala. Sensato, se me diz. Só em paz, com Deus, sossegado. Sensato, sincero e

honrado.”88

A serenidade chega propagada pelo recolhimento, tanto do fazendeiro em

relação a si, quanto do fazendeiro em relação ao casal de jovens, que tão logo chegará

em sua fazenda. Amar é reconhecimento, ser reconhecido, reconhecer-se e reconhecer o

agir que pulsa vida e, assim, pulsa o sertão das estórias rosianas. Amar não é realizar o

caminho de mão única, mas transitar no diálogo que impera a unidade da morada, que a

todos converge e diverge.

86

ROSA, Op. cit., p. 157 87

Ibidem, pp. 157-158 88

Ibidem, p. 158

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O recolhimento de amar perpetua o diálogo e instaura a comunhão. Amar não

representa uma idade nem um local específico. Na sinfonia do amor, Joaquim Norberto

se instaura, e a narrativa prossegue narrando o enlace narrativo:

Sa-Maria Andreza, minha mulher, me mirava.

Aquele aldualdo, decente: “Se lhe respraz, meu Senhor, por

uns dias, aqui, paro...” só me disse, baixo, sabendo de cor seu mister.

Ele já meu companheiro sendo por artes dos anjos-da-guarda. Na

varanda, caminhei, uns passos, exercitados. Os que por vir, moço e

moça? Sa-Maria Andreza, minha correta mulher, os um ou dois

quartos arrumasse toalhas, bem-estar, flores em vasos. Seguro que de

noite chegavam, sagazes. “Ah, minha velha, vamos tocar

rabecas...” gracejei, limpando a parabélum. Sa-Maria Andreza, boa

companheira, só disse, abanando os topes: “Aroeira de mato não

alisa...” Peguei na mão dela, meio afetuoso. Repensei em todas as

minhas armas. Ai, ai, a longe mocidade.89

O amor é recordação. A lembrança do amado irrompe em ancestralidades

temporais sem perder o fio condutor: amor. Ao ser presença, ele perdura em tempos

imemoriais, tornando-se experiência vivificadora. O amor é vida. Estar acordado para

viver é estar amando. Quem ama vive duplamente em si e no outro na unidade

harmonizadora de dizer-se próprio e dizer-se unidade. O afeto das ações irrompe e faz

com que o corriqueiro perca espaço para o manancial de amar. O acontecimento é o

amor e a não a fuga dos jovens. A doçura do grande encontro, com a ruptura das

amarras que tentam segurar e impedir que se cumpra o amor, instaura novas nuanças

que se propagam pela fazenda. O amor dos jovens faz rejuvenescer o amor dos donos da

fazenda.

O encanto amoroso é mais do que consumação dos atos. A escolha de amar e ser

amado requer audição primorosa do audível tecido pelo encontro do próprio e da

unidade. Juntar-se sem perceber a culminância da cura, a totalidade da procura e da

89

ROSA, Op. cit., p. 158

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escolha é perder-se nos emaranhados das instâncias da vida. A junção seria formada

pela desigualdade e estaria fadada ao engodo de querer ser amado e não ser, de querer

amar e não poder ou não conseguir. Os laços do amor estão no silêncio, na separação,

no entrevir dos acontecimentos. A narrativa prossegue com a chegada dos jovens à

fazenda:

Sem ninguém de nós desprevenidos, de fato em meia-noite

chegaram. Noivos, amor muito. Ela, era das lindas, suspendendo as

atenções; nem eu soube filha de que pai. Só meio assombradazinha,

sorrisos desabafados. O moço rapaz! dos bons. Vi, com olho

imediato. Tinha um rifle longo. Tinha o garbo guapo. Não, inda não

eram casal. Cearam. Nada falaram. A moça se recolheu em camarinha,

no internato da casa; de donzela, com recato. O moço, esse, valoroso,

quis se arranchar na casa-do-engenho. Moço esporte de forte.

Apreciei. Pude me dar foros de seu pai. Ah, eles tinham viajado vindo

sozinhos, como se devede, em fugas particulares. Gostei, mais. Após,

hora menos hora, foi que outro cabra chegou, que, a eles dois, em boa

dist ncia, afiançara proteção, sem eles saberem a mando também de

Seo Seotaziano.90

O consentimento do fazendeiro em abrigar os jovens culmina na chegada deles à

fazenda. Em uma primeira instância trata-se de um ato de deferimento do fazendeiro em

favor de “Seo Seotaziano”. No entanto, em uma segunda instância trata-se de uma

adoção ao amor, ao agir do amor: amar. O acontecimento, a chegada do amor, marca,

experiencia e vivifica Joaquim Norberto. O consentimento realizado para que

chegassem os jovens fugidios proporcionou a chegada do amor na fazenda Santa-Cruz-

da-Onça. O amor é tão pleno, totalmente totalizador, ao permitir que não somente o

corriqueiro da existência mudasse, mas, também o agir do fazendeiro por amar, sendo

outro e o mesmo. Os jovens ainda não haviam consumado a união carnal, mas já eram

um. Haviam feito a escolha de ser um ao partirem foragidos para poderem consumar a

união com a cerimônia do casamento. Anteriormente à partida, quando um se deparou

90

ROSA, Op. cit., p. 158-159

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com a propriedade do outro e resolveram tornar-se um, a instauração já havia sido feita.

O laço matrimonial deriva da união estabelecida entre os jovens de amar-se um e ao

outro. A procura dos jovens é a cura por amar. Foi dada a chance ao amor.

O despertar do amor se dá na plenitude da vida. Amar é ser pleno no conhecer e

reconhecer o outro como unidade, além do conhecer-se e reconhecer-se amando e

amado. O diálogo do amor instaura-se nos ambientes hostis e contrários, mas, vivifica-

se nos mananciais da existência. Reconhecer-se amando é conhecer o amado no

compartilhamento da fonte primordial. Reconhecer o amado é conhecer-se no próprio

que vigora na procura pela unidade consoante, a cura. Amar é remediar, não como

postergação, mas como simbiose de sentidos e acontecimentos que vivificam o

necessário, o próprio e a propriedade formada pela relação. A aliança entre jovens é

narrada na estória com

Aquele dia, de domingo. Almoçou-se, com-fome-mente,

apesardes. A Moça e o Moço, mesmo ante mim, ditosos se

contemplavam. Tanta coisa neste mundo, bem feita. Sa-Maria

Andreza, minha conservada mulher, em cozinhar se esmerava. Se me

se diz, nem pensei: os namoros dessas gentes, são minhas outras

mocidades.91

A cumplicidade do amor dos jovens infunde jovialidade ao amor do fazendeiro

por sua esposa. A mocidade, tida como o tempo de outrora, presentifica-se no ciclo

atemporal do amar, já que o amor entre os amados não se restringe a um passado, a um

presente ou a um futuro isolado. Amar é mocidade, pois é renovo. Quem ama contempla

o amado com os olhos do amor, da reciprocidade de ver no diferente o próprio. Bem

aventurado é quem ama e é amado, sem medidas e sem restrições. O olhar contempla a

união, a renovação que é amar e ser amado, em qualquer tempo-espaço. O fazendeiro

91

ROSA, Op. cit., p. 159-160

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percebe o amor dos jovens, vivificando a sua existência no despertar do amor

resguardado e lançado na corrente. O amor reinaugura a sua existência, ao vê-lo e ver-se

que também ama e é amado.

A consumação da união dos jovens se dá com o casamento na fazenda Santa-

Cruz-da-Onça. Na narrativa, o grande enlace é narrado:

Assim mais gente, outra vez, acordou-se antes dos galos. Ali,

para a incerta segunda-feira meio redonda. Dia dos fortes chegares.

Primeiro, mais uns dois homens, que Seo Seotaziano enviava. Chefe

bravo. Daí, conforme dado aviso, ainda outros, um par de cavaleiros:

o sacristão atrás do padre. Ave. O padre, moço, espingarda às costas?

Armado de ponto de ponto em branco; rifle curto. Se apeou, tudo

abençoou, aprestado para o casamentício, que se ia ter: bodas em casa.

Tive de fazer ação de me aprontar, botei minha roupa melhor pelos

momentos. Sa-Maria Andreza, minha mulher, com gosto dispôs o

altar. Moço e Moça impavam. Amor é só amor. Airosos. Iam os dois,

braço pelo braço. Vejam como são as paixões! Tudo bom, bem bom.

Minha Sa-Maria Andreza bem vestida, figuro também que até corada.

Sou homem para bandas-de-músicas. O padre disse belas palavras. A

essa altura eu já soubesse: a noiva, de que família. Filha do Major

João Dioclécio, duro e rico, forte em fato. Essas coisas são friezas...

Bom. Dei de ombros. Fecho um campo, e nele eu sopro: destorcidas

claridades. Terminada a casação, se saiu do altar para a mesa, passou-

se de sala para sala.92

A situação de conflito se apazigua no amor, no pulsar de amar dos jovens, na

cura. Na narrativa, o amor torna-se o centro e se irradia incandescendo o fazendeiro.

Casar é amar, é vivenciar o amor. É o culminar da cura. Para os jovens fugidios, o

casamento é a cura, de modo que casar não precisa da aceitação dos outros, alheios ao

diálogo amoroso, mas deve ressoar no próprio de cada um, no originário de cada um. A

cena do casamento indica o conflito circunstancial, mas não elimina a pujança da união

do casal. A boda é renovação dos votos de aliança que foram dados desde a procura e a

aliança do casal de amantes, de forma que renova também o fazendeiro. O amor dos

jovens ilumina os senhores proprietários. O ato dos jovens renova os votos de amor dos

92

ROSA, Op. cit., pp. 160-161

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donos da fazenda. Estes comparecerem ao casório com a melhor roupa. O amor os

acalenta.

No ir e vir do conflito, à espreita da chegada de jagunços por causa da fuga dos

jovens e da recepção do fazendeiro, a junção dos noivos é coincidente e concomitante

com a união de Joaquim Norberto e Sa-Maria Andreza, após o casamento. São dois

casais amorosos, que revelam amar com olhares, toques e palavras. Assim é o que

apresenta a narrativa:

A gente, a um passo da morte, valentes, juntos, tantos,

bastantes. Ninguém vinha. A Noiva sorria para o Noivo, em fofos;

essas núpcias. E eu com a mente erradamente, de quem se acha em

estado de armado. Com o que outro míngua, eu me sobejo. Minha Sa-

Maria Andreza, mulher, me sorria. O que os velhos não podem mais

ter: segredinhos, segredados. Ninguém vinha. Madrugar, e galos

cantavam. O padre rezou, guerreiro, em destemido prazer das armas.

Senti o remerecer, como era de primeiro, nesse venturoso dia. Recebi

mais natureza fonte seca brota de novo o rebroto, rebrotado. Sa-

Maria Andreza me mirou com um amor, ela estava bela, remoçada.

Nessa noite ninguém vinha? Enquanto nada! Madrugada. O Noivo se

retirou, com a Noiva; e mais uns, que com mais sono, já estando

soprando nas palhas. Resolvemos revezar vigias. Eu, feliz, olhei

minha Sa-Maria Andreza; fogo de amor, verbigrácia. Mão na mão, eu

lhe dizendo na outra o rifle empunhado : “Vamos dormir

abraçados...” As coisas que estão para a aurora, são antes à noite

confiadas. Bom. Adormecemos.93

A boda foi o rito de passagem do casal que antes foram apresentados como o

moço e a moça, em seguida o Moço e a Moça, para depois serem designados o Noivo e

a Noiva, com a singularidade e propriedade do uso da consoante em maiúscula. Os

votos dos jovens renovaram a união dos fazendeiros. O rito de núpcias dos jovens

envolto com os preparativos e com o desenrolar do casamento insurgiu a relação dos

fazendeiros. A renovação das núpcias dos senhores é a renovação do amor, da força

propulsora harmoniosa de união e enlace em que cada um coloca o que lhe é próprio na

93

ROSA, Op. cit., pp. 162-163

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unidade. O amor é fogo por incandescer a vivência e totalizar a existência. O facho que

estava brando se incendeia.

Um serviçal dos Dioclésios avisa que o irmão da noiva vem na fazenda Santa-

Cruz-da-Onça para a reconciliação, ofertando uma receptiva festa de casamento para os

recém-casados. A proposta é aceita e o casal parte. E a narrativa finaliza-se:

Olhei minha Sa-Maria Andreza, que me olhava. Ai-de.

Enquanto nada.

Lá se foram o Baldualdo e o Bibião, também, consoantes. Seo

Seotaziano estando servido, e meus deveres concordados. Meu

capataz, o José Satisfeito, meio mole fechava a porteira. Aquelas luas-

de-mel, tão poucas, assim em assopro de gaita. As passageiras

consolações: fazer-de-conta-de-amor, o que era o meu cestinho de

carregar água. A gente, agora: sair das desilusões, o entrar na idade.

Mas, Seo Fifino, meu filho, um dia devia de roubar uma moça assim

em armas! Sorri, eu, Joaquim Norberto, respeitante. Abracei minha

Sa-Maria Andreza, a gente com os olhos desnublados. Se me se diz? E

então. Aqui nesta fazenda Santa-Cruz-da-Onça; aqui é um recato. Ah,

bom; e semelhante fato foi.94

O reconhecimento do amor do casal desencadeou o retorno dos jovens para os

seus familiares anteriormente contrários ao enlace. A fruição do amor dos jovens

desencadeou a renovação dos fazendeiros, que auscultaram o amor que se doava em

meio ao conflito, mas que em nenhum momento se esmoreceu, e ainda intensificou a

relação dos anfitriões da fazenda, renovando-a. A cumplicidade dos jovens que optaram

por sair de seus lares para poder concretizar a união e assim vivificá-la está em

consonância com a cumplicidade dos fazendeiros que se entendem também pelos

olhares atribuídos e retribuídos de um para o outro. A cumplicidade de amar é deixar de

lado as reservas e olhar com a luminosidade do amor que clareia a existência e ilumina

os caminhos, contribuindo para que o amor se efetive e perdure, como a culminância da

94

ROSA, Op. cit., pp. 164-165.

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procura na cura, na escolha de amar e ser amado, seja onde for e quando for. Não há

barreiras para o amor.

O amor é con-sistência. No conto “Subst ncia”, Maria Exita trabalha quebrando

polvilho nas lajes da fazenda de Sionésio. Com uma família problemática, foi trazida

pela Nhatiaga para lá. Sionésio se enamora por ela e a convida para viver com ele. Ela

aceita. O amor é alvo. A narrativa inicia-se com a apresentação de Maria Exita:

Sim, na roça o polvilho se faz a coisa alva: mais que o algodão,

a garça, a roupa na corda. Do ralo às gamelas, da masseira às bacias,

uma polpa se repassa, para assentar, no fundo da água e leite, azulosa

o amido puro, limpo, feito surpresa. Chamava-se Maria Exita.

Datava de maio, ou de quando? Pensava ele em maio, talvez porque o

mês mor de orvalho, da Virgem, de claridades no campo. Pares se

casavam, arrumavam-se festas; numa, ali, a notara: ela, flor. Não

lembrava a menina, feiosinha, magra, historiada de desgraças, trazida,

havia muito, para servir na Fazenda. Sem se dar idéia, a surpresa se

via formada. Se, às vezes, por assombro, uma moça assim se

embelezava, também podia ter sido no tanto-e-tanto. Só que a ele,

Sionésio, faltavam folga e espírito para primeiro reparar em

transformações.95

Sionésio repara na formosura de Maria Exita em uma festa, como a flor que se

desabrocha e vigora em cor e forma. Na beleza alva que brilha e encandece. Perscrutar a

alvura no átimo do relance e realizar a retrospectiva das iminências primordiais da

jovem outrora menina. O achado é claro e responsivo. O clarão é um arroubo que traz

consigo mais do que a brancura incandescente, traz o litúrgico do encontro do eu com o

outro. Incide-se sobre o alvor da candura de Maria Exita, que não pode ser representada

pelo embelezamento para a festa, mas, sim, pela claridade que lhe é própria, presente,

também, no polvilho socado por suas mãos.

Sionésio não possui o hábito de visualizar transformações. Está habituado ao

aqui e agora. Quem sabe somente os afazeres corriqueiros da fazenda sejam os que

95

ROSA, Op. cit., p. 205

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tomam sua atenção. Mas, Maria Exita retira-lhe do comum, embranquecendo um plano

formado por cores sombrias e escurecidas. Por estar sempre em atividade, o patrão não

descansa os olhos, até que repara na empregada e vem a surpresa, a alvura luminosa de

Maria Exita nos domínios de Sionésio. De tão atarefado, ensimesmado, nunca havia

reparado na empregada, ao trabalhar o polvilho, e em sua beleza luzidia.

Imbuído de seus afazeres na fazenda, supervisionando, oriundo das amarras com

os fatos triviais do dia a dia do lugarejo, o fazendeiro não se achegou rapidamente à

Maria Exita. O encontro narrado se dá a seguir:

Demorara para ir vê-la. Só no pino do meio-dia de um sol do

qual o passarinho fugiu. Ela estava em frente da mesa de pedra; àquela

hora, sentada no banquinho rasteiro, esperava que trouxessem outros

pesados, duros blocos de polvilho. Alvíssimo, era horrível, aquilo.

Atormentava, torturava: os olhos da pessoa tendo de ficar miudinho

fechados, feitos os de um tatu, ante a implacável alvura, o sol em

cima. O dia inteiro, o ar parava levantando, aos tremeluzes, a gente se

perdendo por um negrume do horizonte, para temperar a intensidade

brilhante, branca; e tudo cerradamente igual. Teve dó dela pobrinha

flor. Indagou: “Que serviço você dá?” e era a tola questão. Ela não

se vexou. Só o mal-e-mal, o boquinãoabrir, o sorriso devagar. Não se

perturbava. Também, para um pasmar-nos, com ela acontecesse

diferente: nem enrugava o rosto, nem espremia ou negava os olhos,

mas oferecidos bem abertos olhos desses, de outra luminosidade.

Não parecia padecer, antes tirar segurança e folguedo, do triste,

sinistro polvilho, portentoso, mais a maldade do sol. E a beleza. Tão

linda, clara, certa de avivada carnação e airosa uma ilhazinha, moça

feita em cachoeira. Viu que, sem querer, lhe fazia cortesia. Falou-lhe,

o assunto fora de propósito: que o polvilho, ali, na Samburá, era muito

caprichado, justo, um dom de branco, por isso para a Fábrica valia

mais caro, que os outros, por aí, feiosos, meio tostados...96

A cena do encontro entre o patrão e a empregada é mundificada na narrativa. A

relação de ambos é perpassada pelo antagonismo. Enquanto o padrão supervisiona a

empregada, deleitando-se com a sua beleza e condoído com o seu trabalho braçal, a

empregada realiza as suas atividades profissionais e se dispõe com simplicidade, sem ter

96

ROSA, Op. cit., pp. 207-208

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a pretensão de fazer-se vista; exerce suas tarefas como sempre as desempenhou e como

sempre foi de seu agrado. O fazendeiro tratou a empregada com cortesia embebecido de

sua luminosidade que se exalava pelos olhos tão luminosos. Ele gracejou a moça com o

que seria o mais digno: o seu bom trabalho na fazenda, o tão branco polvilho feito por

ela que valia mais para a fábrica do que os outros polvilhos.

O cuidado de Sionésio para com Maria Exita é imperado pelo amor. Amar é

também cuidar do amado. Ele mostra ser condoído pelas transfigurações da amada,

devido às fustigações do trabalho duro em pleno sol escaldante. E ela mostra ser uma

trabalhadora com afinco, disposta a fazer o seu trabalho que lhe é tão aprazível, e

receptiva às investiduras do padrão com quem trava um diálogo iniciado por ele. A

pureza da moça está simbolizada no talhar o polvilho, não como um simples objeto a ser

produzido, mas como o fruto de sua pureza ao exercer uma atividade, fruto de seu

produzir com a sua técnica, que, para o patrão, é a mais apurada e aguçada da região.

Como artífice, Maria Exita revela o que é, com a alvura de sua pureza, e mostra-se

perante Sionésio que se retém diante dela, contemplando-a. E a presença dela tornou-se

uma constante no pensamento dele. Narra-se:

Depois, foi que lhe contaram. Tornava ainda, a cavalo, seu

coração não enganado, como sendo sempre desiguais os domingos; de

tarde, aí que as rolinhas e os canários cantavam. Se bem ele ali o

dono sem abusar da vantagem. “De suas maneiras, menina, me senti

muito agradado... repetia um futuro talvez dizer. A Maria Exita.

Sabia, hoje: a alma do jeito e ser, dela, diversa dos outros. Assim, que

chegava lá, com os vários sem-remédios de amargura, do oposto

mundo e maldições, sozinha de se sufocar. Aí, então, por si sem

conversas, sem distraídas beiras, nenhumas, aportara àquele serviço

de toda a despreferência, o trabalho pedregoso, no quente feito boca-

de-forno, em que a gente sente engrossar os dedos, os olhos

inflamados de ver, no deslumbrável. Assoporava-se sob refúgio,

ausenciada? Destemia o grado, cruel polvilho, de abater a vista,

intacto branco. Antes, como a um alcanforar o fitava, de tanto gosto.

Feito a uma espécie de alívio, capaz de a desafligir; de muito lhe dar:

uma espécie mais espançosa. Todo esse tempo. Sua beleza, donde

vinha? Sua própria, tão firme pessoa? A imensidão do olhar doçuras.

Se um sorriso; artes como de um descer de anjos. Sionésio nem

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entendia. Somente era bom, a saber feliz, apesar dos ásperos. Ela que

dependendo só de um aceno. Se é que ele não se portava alorpado, nos

rodeios de um caramujo; estava amando mais ou menos.97

Sionésio percebe-se amando Maria Exita, pela singularidade dela e pela

propriedade que tem de si. A aspereza da vida no sertão não tosou os sentimentos nem a

formosura da moça. Ele a vê com a luminosidade que é trabalhada por ela na fruição do

polvilho. As amarguras da vida e o trabalho árduo não lhe tiraram a doçura do olhar e

do sorriso. Esses se tornam tão intensos como o polvilho extremamente alvo feito por

ela. De Maria Exita não sai o dissabor. Dela provem a plenitude e a intensidade de

vivificação.

A pessoa nasce para ser o que lhe é próprio. Assim, cumpre-se a plenitude da

existência de lançar-se sendo e ser. Desse modo, a luminosidade de cada um o

acompanha por onde for e quando for. Com Maria Exita não foi diferente. A sua

proveniência e as circunstâncias não lhe tornaram uma estátua de sal, encrostada com

todos os dissabores insurgentes, mas deram-lhe a luminosidade do polvilho curtido. A

relação entre o polvilho e Maria Exita é contínua.

Sionésio com suas idas e vindas, com seus achegamentos e afastamentos, com as

palavras, os pensamentos e as ações, tinha, pela jovem, o amor nutrido, que cada vez

mais vem sendo sedimentado, totalizando-se. Lentamente e sinuosamente, o amor vai

potencializando-se na redescoberta de Maria Exita por Sionésio, com sua beleza e

dureza. Ela é vista no viés antagônico do trabalho: inferir a dureza e a leveza de seu

trabalho braçal, ao fazer o polvilho tão alvo como a sua pureza, conquistando-o cada

vez mais. Técnica do produzir tão apurado exerce a profissão tão bem, assim como se

mostra acessível ao Sionésio.

97

ROSA, Op. cit., p. 208-209

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No muito matutar, as dúvidas surgem:

“Se outros a quisessem, se ela já gostasse de alguém?” as asas

dessa cisma o saltearam. Tantos, na faina, na Samburá, namoristas; e

às festas a idéia lhe doía. Mesmo de a figurar proseando com os

próximos, no facilitar. Porém, o que ouviu, aquietava-o. Ainda que em

graça para amores, tão formosa, ela parava a cobro de qualquer deles,

de más ou melhores tenções. Resguardavam a seus graves de sangue.

Temiam a herança da lepra, do pai, ou da falta de juízo da mãe, de

levados fogos. Temiam a algum dos assassinos, os irmãos, que

inesperado de a toda hora sobrevir, vigiando por sua virtude.

Acautelavam. Assim, ela estava salva. Mas a gente nunca se provê

segundo garantias perpétuas. Sionésio passara a freqüentar nas festas,

princípios e fins. Não que dançasse; desgostava-o aquilo, a folgazarra.

Ficava de lá, de olhos postos em, feito o urubu tomador de conta. Não

a teria acreditado tão exata em todas essas instâncias o quieto pisar,

um muxoxozinho úmido e prolongado, o jeito de pôr sua cinturinha

nas mãos, feliz pelas pétalas, juriti nunca aflita. A mesma que no

amanhã estaria defronte da mesa de laje, partindo o sol nas pedras do

terrível polvilho, os calhaus, bitelões. Se dançava, era bem; mas as

muito poucas vezes. Tinham-lhe medo, à doença incerta, sob a

formosura. Ah, era bom, uma providência, esse pejo de escrúpulo.

Porque ela se via conduzida para não se casar nunca, nem podendo ser

doidivã. Mas precisada de restar na pureza. Sim, do receio não se

carecia. Maria Exita era a para se separar limpa e sem jaças, por cima

da vida; e de ninguém. Nela homem nenhum tocava.

Sem embargo de que, ele a queria, para si, sempre por sempre. E, ela,

havia de gostar dele, também, tão certamente.98

O querer exacerbado desponta a incerteza de Sionésio em relação à Maria Exita.

As contendas familiares, as chagas e as intemperanças do histórico familiar são

colocadas em cheque no pesar. No entanto, nada retira o gosto de amar de Sionésio a

sua amada. Tudo que serve para afugentar outros pretendentes não é capaz de

desaparecer e mudar o amor. O ciúme serve para aproximar ainda mais o fazendeiro da

moça, já que ele sai ao seu encalço, passando a frequentar mais as festas e observar-lhe

o comportamento. Nada pode mudar a luminosidade ou servir como comprovação de

alternância de Maria Exita. Sempre harmoniosa consigo mesmo, oferece-se aos outros

98

ROSA, Op. cit., pp. 208-209

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com a luminosidade da pureza. A apreensão de Sionésio é infundada, já que Maria Exita

vive por mostrar-se, ocultar-se pura e revelar-se luminosa.

O ciúme, assim, é infundado no amor, bem como, as dúvidas também são sem

fundamentos. As dúvidas, as incertezas e o ciúme são lançados fora por Sionésio,

proporcionado a vivificação do amor. Este não abre espaço para o incongruente. A

incredibilidade nega o amor. O amor é verdade. É descobrimento. É revelação. É

desvelamento. É agir. É unidade.

A harmonia inteira é narrada com o desejo de Sionésio ser para sempre de Maria

Exita e ela ser dele. No amor não há metades, mas a reunião de experiências e

vivificações. Para ser um diálogo amoroso, os envolvidos devem estar a par e

condizentes com a relação. O impasse amoroso afugenta a relação e posterga a aliança e

é narrado:

Mas, no embaraço de inconstantes horas às esperanças velhas

e desanimações novas de entre-momentos. Passava por lá, sem paz

de vê-la, tinha um modo mordido de a admirar, mais ou menos de

longe. Ela, no seu assento raso, quando não de pé. Trabalhando a

mãos ambas. Servia o polvilho a ardente espécie singular, secura

límpida, material arenoso a massa daquele objeto. Ou, o que vinha

ainda molhado, friável, macio, grudando-se em seus belos braços,

branqueando-os até para cima dos cotovelos. Mas que, toda-a-vida, de

solsim brilhava: os raios reflexos, que os olhos de Sionésio não

podiam suportar, machucados, tanto valesse olhar para o céu e encarar

o próprio sol.

As muitas semanas castigavam-no, amiúde nem conseguia

dormir, o que era ele mesmo contra ele mesmo, consumição de

paixão, romance feito. De repente, na madrugada, animava-se a vigiar

os ameaços de chuva, erguia-se aos brados, acordando a todos:

“Apanhar polvilho Apanhar polvilho ... Corriam, em confusão de

alarme, reunindo sacos, gamelas, bacias, para receber o polvilho posto

no ar, nas lajes, onde, no escuro da noite, era a única coisa a afirmar-

se, como um claro de lagoa d‟água, rodeado de criaturas

estremunhadas e aflitas. Mal podia divisá-la, no polvoroso, mas

contentava-o sua proximidade viva, quente presença, aliviando-o.

Escutou que dela falassem: “Se não é que, no que não espera, a mãe

ainda amanhece por ela... Ou a senhora madrinha...” Salteou-se. Sem

ela, de que valia a atirada trabalhadeira, o sobreesforço, crescer os

produtos, aumentar as terras? Vê-la, quando em quando. A ela a

única Maria no mundo. Nenhumas outras mulheres, mais, no

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repousado; nenhuma outra noiva, na distância. Devia, então, pegar a

prova ou o desengano, fazer a ação de a ter, na sisuda coragem, botar

beiras em seu sonho. Se conversasse primeiro com a Nhatiaga?

achava, estapeou aquele pensamento contra a testa. Não receava a

recusação. Consigo forcejava. Queria e não podia, dar volta a uma

coisa. Os dias iam. Passavam as coisas, pretextadas. Que temia, pois,

que não sabia que temesse? Por vez, pensou: era, ele mesmo, são?

Tinha por onde a merecer? Olhava seus próprios dedos, seus pulsos,

passava muito as mãos no rosto. A diverso tempo, dava o bravo: tinha

raiva a ela. Tomara a ele que tudo ficasse falso, fim. Poder se

desentregar da ilusão, mudar de parecer, pegar sossego, cuidar só dos

estritos de sua obrigação, desatinada. Mas, no disputar do dia, criava

as agonias da noite. Achou-se em lágrimas, fiel. Por que, então, não

dizia hás nem eis, andava de mente tropeçada, pubo, assuntando o

conselho, em deliberação tão grave assim de cão para luar? Mas não

podia. Mas veio.99

A insegurança de Sionésio aflige-lhe de tão maneira que ele fica sem ação para

se unir com Maria Exita. A presença dela é tida como o elo encantador, sem que precise

dirigir-se a ela com palavras, ele a sente presente. O silêncio infunde proximidade à

relação. Não é preciso que o fazendeiro fale com a sua empregada, para que o pulsar do

amor esteja presente. Ao vê-la, Sionésio sente-se atido à moça, pela formosura e

graciosidade. Ver a jovem em serviço faz-lhe vivificá-la em plenitude de suas tarefas

tão bem desempenhadas e tão bem realizadas.

O complicado histórico familiar da Maria Exita e o acometimento de possíveis

enfermidades colocam o patrão em insegurança, já que alguém poderia levar-lhe a

moça, ou alguma doença severa poderia tirar-lhe a vida, a existência, deixando-o em

profunda solidão amorosa. Sionésio a vê como presença de sua vida sertaneja, como

partícipe singular da fazenda e dos seus sentimentos tão nutridos por ela. Restava-lhe,

para a união, tão somente falar com a moça. Desse modo, deixando de lado, a incerteza,

a insegurança e a dúvida, Sionésio enfim requer a unidade da união com Maria Exita.

Assim é narrado:

99

ROSA, Op. cit., pp. 209, 210, 211

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165

A hora era de nada e tanto; e ela era sempre a espera. Afoito, ele

lhe perguntou: “Você tem vontade de confirmar o rumo de sua vida?

falando-lhe de muito coração. “Só se for já... e, com a resposta,

ela riu clara e quentemente, decerto que sem a propositada malícia,

sem menospreço. Devia de ter outros significados o rir, em seus olhos

sacis.

Mas, de repente, ele se estremeceu daquelas ouvidas palavras.

De um susto vindo de fundo: e a d vida. Seria ela igual à mãe?

surpreendeu-se mais. Se a beleza dela a frutice, da pele, t o fresca,

viçosa só fosse por um tempo, mas depois condenada a engrossar e

se escamar, aos tortos e roxos, da estragada doença? o horror

daquilo o sacudia. Nem agüentou de mirar, no momento, sua preciosa

formosura, traiçoeira. Mesmo, sem querer, entregou os olhos ao

polvilho, que ofuscava, na laje, na vez do sol. Ainda que por instante,

achava ali um poder, contemplado, de grandeza, dilatado repouso, que

desmanchava em branco os rebuliços do pensamento da gente,

atormentantes.

A alumiada supresa.

Alvava.

Assim; mas era também o exato, grande, o repentino amor o

acima. Sionésio olhou mais, sem fechar o rosto, aplicou o coração,

abriu bem os olhos. Sorriu para trás. Maria Exita. Socorria-a a linda

claridade. Ela ela! Ele veio para junto. Estendeu também as mãos

para o polvilho solar e estranho: o ato de quebrá-lo era gostoso,

parecia um brinquedo de menino. Todos o vissem, nisso, ninguém na

d vida. E seu coração se levantou. “Você, Maria, quererá, a gente,

nós dois, nunca precisar de se separar? Você, comigo, vem e vai?

Disse, e viu. O polvilho, coisa sem fim. Ela tinha respondido: “Vou,

demais. Desatou um sorriso. Ele nem viu. Estavam lado a lado,

olhavam para a frente. Nem viam a sombra da Nhatiaga, que quieta e

calada, lá, no espaço do dia.

Sionésio e Maria Exita a meios-olhos, perante o refulgir, o

todo branco. Acontecia o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua

imaginação. Só o um-e-outram um em-si-juntos, o viver em ponto sem

parar, coraçãomente: pensamento, pensamor. Alvor. Avançavam,

parados, dentro da luz, como se fosse no dia de Todos os Pássaros.100

A aceitação da Maria Exita por viver com Sionésio é o encontro tão almejado

por ele, e, por que não, por ela também. Cabe mencionar o fragmento 49 de Heráclito

que diz: “Um para mim vale mil, se for o melhor.”101

Esse encontro é o melhor do que

100

ROSA, Op. cit., pp. 211-212 101

HERÁCLITO, Op. cit., p. 71

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poderia suceder a ambos. É o fim das dúvidas, das inseguranças e das incertezas. Nem a

possível doença nem o possível abandono obliteraram o amor fundando entre ambos. O

consentimento de Maria Exita retira Sionésio do lugar de ultraje, colocando-os lado a

lado, no sentir harmônico de um para com o outro. Forma-se assim a unidade, o diálogo,

o silêncio, a reunião e a aliança, seja onde for e seja quando for.

O amor é liberdade. É a experiência grandiosa da vida, que retira os amantes da

letargia e da enxurrada dos acontecimentos no sertão, na vida. O amor ilumina quem

ama e quem é amado. Nessa união resplandecem Sionésio e Maria Exita preparados

para o ir e o vir do tempo na escolha de serem a unidade amorosa. Ele é poeticamente

narrado, com a linguagem doadora e instauradora.

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CAPÍTULO 5

NAS MARGENS DA LOUCURA E DO REAL DAS ESTÓRIAS ROSIANAS

A linguagem é a morada do agir. Agir do acontecimento e não fatual. O

acontecimento poético é o agir da linguagem, agir incessante. A linguagem é

possibilidade de ser. Possibilidade ilimitada lançada ao extraordinário. Assim, não há

parâmetros para a doação da linguagem e a vigência do real. Não se pode aprisionar o

real, assim como, não se pode delimitar a linguagem. Desse modo, o ser não pode ser um

sistema fechado cristalizado pelo ente. As possibilidades de ser está na própria

possibilidade de physis, de linguagem, de verdade.

O ser é a physis em doação. Não se remete a um sujeito ou predicado. Não

requer uma adjetivação. O ser não advém de qualificações ou exemplificações. Muito

menos de constatações. O ser tampouco é representação. O ser está no aberto da

linguagem, e, devido a isso, o ser se desvela. O desvelamento do ser possui no agir

incessante sua dinâmica. Quando se está no aberto da linguagem, o ser se desvela e revela

(inclusive se vela) e a mundificação do real se dá. O ser se dá em consonância daquilo

que lhe é próprio. E o próprio, pelo agir pulsante incessante, não é o da igualdade, mas, o

da diferença.

O real é inaugural. É instauração da linguagem. O real faz-se presente a quem

estiver no aberto. Estar no aberto diz respeito a auscultar ao lógos, à linguagem, à physis,

ao ser. A ausculta está na vigência consonante que gera a unidade das diferenças. Por

isso, o mesmo está longínquo do real, da linguagem, da physis, na medida em que o agir

incessante é fonte original para a instauração de mundo. O mesmo simplificaria o real à

simples repetição mimética. No entanto, o real é possibilidade de ser, de existência. É

instauração de linguagem. É instauração de physis. É instauração de verdade. O real dá-

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se. O real não é uma representação de algum sistema, mimetização de um mundo

idealizado ou maquete para o que se dará.

A realidade é o conjunto das possibilidades do real, entre as quais a linguagem

constitui mundo. O real não se restringe às realizações. O real é a linguagem instaurada e

mundificada. O real é a brotação da physis, agir incessante. O real dá-se em disposição.

De modo próprio, o real não é estranho, estrangeiro, alheio. Ele ocorre de modo próprio.

Não se mostra como um corpo fora, dicotômico, unilateral, simulacro ou falso. Quem não

estiver aberto ao real, estará em contato com o simulacro, como a linguagem resumida ao

código. Portanto, o real não pode ser representado, pois, assim, ele perde todo o seu

vigorar do agir.

A loucura é real. Como termo pejorativo, carrega toda gama negativa

pertencente à palavra. No entanto, o que é considerado loucura por olhos clínicos e

patológicos, em Primeiras estórias, adquire uma forma peculiar, ou seja, diferente do

modo como é, depreciativamente, vista nos meios comuns e pelos olhos comuns. Os

fatos não podem dar conta do real. Tornam-se, portanto obsoletos, e não respondem à

questão suscitada, de modo que se apresentam longínquos à abertura da linguagem. Sem

a linguagem, a dicotomia, a separação, o alheamento, a alienação servem como causa

para os fatos. Como consequência, aparece a quebra do ser, que não mais é ser, por não

estar ponderado no agir do real, da linguagem, do logos, da physis.

E, como se dá pela pluralidade da linguagem e do real, a loucura é a plenificação

do logos, que se dá de forma ilimitada, de modo que nem sempre se pode cerceá-la ou

impedi-la de fazer-se presença. O fragmento 45 de Heráclito assinala para os vastos

caminhos do logos: “Não encontraria a caminho os limites da vida mesmo quem

percorresse todos os caminhos, tão profundo é o Logos que possui.”102

A vigência do

102

HERÁCLITO, Op. cit., p. 71

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logos é abertura e não pode ser restringida nem medida. Assim, também o é a loucura,

que se dá além das margens e vigora na consumação do que é próprio de cada um e não

pode ser baseado e nem ser remitido ao que está disponível no lugar comum

circundante.

O ser não é parte, não se apresenta por partes, não é fragmentado, não é

operatório de subtração ou divisão, não é igualitário, não possui relação de

subordinação, não se mostra por caracterizações, não possui decodificação. O ser não

pode ser codificado. Caso o fosse não seria ser, e sim, algo de mecânico, de técnico, de

simulacro, de sistêmico. O ser é abertura de ser. Agir incessante originário. Agir que diz

e mostra o inaugural, pois o ser está no âmbito do real.

Em uma definição do racional, no Dicionário de Poética e Pensamento, Manuel

de Castro confere a diferença entre o racional e a loucura, no início do verbete racional:

A definição do homem como animal racional ocasionou alguns

desvios fundamentais, pois o racional acabou por impor ao homem um

padrão ou padrões que exatamente não dão conta do que mais

caracteriza o homem. Temos o caso da loucura. Esta não se encaixa na

definição do homem como animal racional e aí ele começa a ser

excluído do sistema, porque a loucura é humana e só o homem pode

ser louco, mas não é racional. A loucura é uma das características

mais tradicionais e originárias do homem. No fundo, o racional nada

tem a dizer sobre a loucura, até porque a loucura em seu sentido mais

radical indicia a eclosão do homem como linguagem. Na medida em

que o racional é uma medida da linguagem (ratio = linguagem

medida), cria-se uma incompatibilidade entre razão e linguagem não

medida.103

Assim, já mencionado anteriormente, o agir do real se presentifica na loucura.

Portanto, ela não deve ser vista como elemento estranho ou exterior, já que é o próprio

agir do real, da linguagem se manifestando. A manifestação do real, em sua

inaugurabilidade, se dará a quem estiver na abertura da linguagem, no diálogo

103

CASTRO: Racional, 1. In: CASTRO, Manuel Antônio de. Dicionário de Poética e Pensamento. Internet. Disponível em: http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Racional

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incessante da physis. Portanto, ela é revelação, velamento e desvelamento. A loucura é

linguagem. E por ser linguagem, ao mesmo tempo em que está disponível a todos,

somente quem estiver na claridade de sua abertura poderá ser e vislumbrar sua luz. O

agir da linguagem diz mais do que atos, palavras, mostra o real. A razão não dá vazão à

grandiosidade do real, da physis, da linguagem, do logos, da verdade, da loucura. Ela

nunca se abre ao real, pois sua tendência é padronizá-lo, esquematizá-lo, limitá-lo.

A loucura está no não medido. Ela não pode ser dimensionada. Para lidar com

esta falta de dimensão, através do viés racional, o estigma tornou-se produto da

consciência racional que tende a menosprezar o que não cabe em sua delimitação.

Portanto, Guimarães Rosa, como homem poético, traz esse tema para Primeiras

estórias. No conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, a mãe e a filha de Sorôco são levadas

pelo governo para serem tratadas, já que Sorôco não pode cuidar mais delas. Ele,

portanto, fica sozinho. No conto “Um moço muito branco”, um moço aparece na

Fazenda do Casco de forma misteriosa e, depois, parte, sem dizer aonde, com asas. Na

estória “A benfazeja”, Mula-Marmela matou seu esposo, que era temido e, após

conviver somente com o filho dele, Retrupé, que ficara cego dos dois olhos, mata-o um

dia após ele tentar matá-la. Em “Darandina”, um ladrão de caneta-tinteiro sofre um

“surto” na rua e sobe no mais alto de uma palmeira. Após um tempo, ele “volta a si”,

desce da palmeira e, devido à multidão, desaparece sem ser levado. No conto

“ Tarantão, meu patrão”, João de Barros Diniz Robertes, galopa feito Dom Quixote,

com seus “recrutas”, para chegar à casa do doutor Magrinho. Assim, vê-se que o real se

dá de diferentes maneiras em seu agir incessante.

A narrativa se mostra através da linguagem. Ela diz, ao mostrar, para além da

função de código da língua. A linguagem está para além da língua, na medida em que a

linguagem é manifestação primordial. Diz o ser de cada ente. A linguagem é o dito e o

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não dito da narrativa. As entrelinhas dizem enquanto silêncio que instaura a

presentificação da linguagem. O dito é palavra em consonância.

Na narrativa de “Darandina”, ocorre um surto psicótico de um homem. O

começo e o desenrolar do surto estão em consonância com o desenvolvimento da

narrativa. Um homem, aparentemente com as faculdades mentais normais, de repente,

pratica ações que fogem da considerada linha da normalidade. No entanto, ao término

do conto, ele volta a si, sai do surto psicótico.

A estória “Darandina” apresenta o humano no extraordinário. O fato deve-se à

consideração de que o homem se insere no extraordinário quando está além de alguma

explicação simplista ou enquadramento de qualquer ordem. A loucura acometida,

repentinamente, não possui explicação exata para sua gênese e para o desenrolar dos

fatos ligados à ela.

No conto, a aparição do homem aloucado é surpreendente, tal como suas ações

na narrativa. É o que se pode comprovar com o seguinte trecho do conto:

― “Sujeito de trato, tão trajado...” ―estranhava, surgindo do

carro, dentr‟onde até então cochilara, o chofer do dr. ilôlo. ― “A

caneta-tinteiro foi que ele abafou, do outro, do lapela...” ―depunha o

menino dos jornais, só no vivo da ocasião aparecendo. Perseguido,

entretanto, o homem corria que Luzia, no diante pé, varava pela praça,

dava que dava. ― “Pega!” Ora, quase no meio da praça, instalava-se

uma das palmeiras-reais, talvez a maior, mesmo majestosa. Ora, ora, o

homem, vestido correto como estava, nela não esbarrou, mas, sem

nem se livrar dos sapatos, atirou-se-lhe abraçado, e grimpava-a, voraz,

expedito arriba, ao incrível, ascensionalíssimo. ― Uma palmeira é

uma palmeira ou uma palmeira ou uma palmeira? ―inquiriria um

filósofo. Nosso homem, ignaro, escalara dela já o fim, e fino. Susteve-

se104

O extraordinário deu-se com a loucura, porque a linguagem povoa o

extraordinário, mesmo quando há escassez de forma para os sentidos, e a loucura, como

linguagem, apresenta sua mundividência particular. Assim, a loucura se mostra no

104

ROSA, Op. cit., p. 189

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âmbito da linguagem também. A linguagem, em sua particularidade, é extraordinária,

pois está além do simplesmente humano.

A linguagem corporal é aberta ou pode ser mimética. As ações de alguém

acometido pela loucura não apresenta um padrão, tal como a linguagem. Os atos

advindos da loucura são desconexos dos atos tidos normais. Eles, no âmbito do

extraordinário, não apresentam explicações. É uma outra mundividência. É o real.

O humano, de certo modo, apresenta suas delimitações, já que é a linguagem que

é doadora de ser e dá sentido ao homem. Para além do humano, a linguagem existe e

persiste em mostrar o ser para o homem e mostrar-se a si mesma. É um caminho de

margens marcadas pelas narrativas. A margem serve à dualidade e à particularidade do

humano, inclusive à pluralidade. A linguagem dá sentido ao humano.

Cada narrativa rosiana é uma mundividência particular. Em “Darandina”,

aparece a narrativa de um homem acometido, repentinamente, pela loucura. Sem

qualquer parâmetro e qualquer vínculo com uma ideologia ou corrente, a narrativa

apresenta o homem com suas delimitações. Um homem limitado é inserido na amplidão

da margem da loucura. O extraordinário.

A loucura, percebida como ruptura, vai de encontro à narrativa de ruptura, no

caso do conto “Darandina”. A ruptura entendida como interrupção de uma ordem

vigente, propõe uma quebra, na narrativa, de um pensamento e/ou de uma sequência de

atos. A exegese da narrativa e a da loucura possuem, como ponto comum, querer a

ruptura de uma ordem vigente e evidenciada.

A narrativa apresenta a ruptura como elemento norteador desde o início do

conto. Assim, apresenta-se o início a seguir:

De manhã, todos os gatos nítidos nas pelagens e eu em serviço

formal, mas, contra o devido, cá fora do portão, à espera do menino

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com os jornais, e eis que, saindo, passa, por mim e duas pessoas que

perto e ali mais ou menos ocasionais se achavam, aquele senhor,

exato, rápido, podendo-se dizer que provisoriamente impoluto. E,

pronto, refez-se no mundo o mito, dito que desataram a dar-se, para

nós, urbanos, os portentosos fatos, enchendo explodidamente o dia: de

chifrim, afã e lufa-lufa.105

A passagem de ruptura do início do conto coincide com a aparição do homem

acometido pela loucura. Dessa relação, a ruptura é ponto culminante entre a narrativa e

o enredo. A ruptura, presente no conto “Darandina”, se relaciona com vários expoentes,

seja da ordem da narrativa, do humano, do social ou do filosófico. A ruptura da prosa

rosiana está presente, de modo geral, em todas as narrativas de Guimarães Rosa.

Os atos consecutivos e de ruptura imprimem um tempo à narrativa. Um tempo de

narrativa que surge rápido, veloz, de ruptura, tal como as ações de alguém acometido

pela loucura. Pode-se verificar isso no trecho do conto a seguir:

Porque, o nosso, o excelso homem, regritou: ― “Viver é

impossível!...” ― um slogam; e sempre que ele se prometia para falar,

conseguia-se, cá, o multitudinal silêncio ― das pessoas de milhares.

Nem esquecera-lhe o elemento mímico: fez gestos ―de que

empunhasse um guarda-chuva. Ameaçava o quê a quem, com seu

estro catastrófico? ― “Viver é impossível!” ―o dito declarado assim,

tão empírico e anermenêutico, só através do egoísmo da lógica. Mas,

menos como um galhofeiro estapafúrdio, ou alucinado burlão, pendo a

ouvir, antes em leal tom e generoso. E era um revelar em favor de

todos, instruía-nos de verdadeira verdade. A nós ―substantes seres

sub-aéreos ―de cujo meio ele a si mesmo se raptara. Fato, fato, a vida

se dizia, em si, impossível. Já assim me pareceu. Então, ingente,

universalmente, era preciso, sem cessar, um milagre; que é o que

sempre há, a fundo, de fato. De mim, não pude negar-lhe, incerta, a

simpatia intelectual, a ele, abstrato ―vitorioso ao anular-se

―chegando ao píncaro de um axioma.106

A narrativa de “Darandina” é recheada de falas de personagens junto à narrativa,

ou seja, não há divisão entre falas das personagens e o dizer do narrador, não há a

separação entre os parágrafos das falas dos personagens e os parágrafos referentes ao

105

ROSA, Op. cit., p. 188 106

Ibidem, pp. 192-193

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dizer do narrador na narrativa. A junção entre ambos dá a idéia de ruptura no âmbito da

narrativa e indica o pensamento com a ruptura de um ser acometido pela loucura, sem

um eixo linear e progressivo. A narrativa apresenta a ruptura em seu plano formal e de

sentido.

Como elemento da narrativa, a ruptura retira o leitor da inércia da sequenciação.

Fazer acontecer uma outra (ou outras) mundividência (s) é papel da narrativa, caso seja

considerada seu caráter totalmente inventivo e fazedor de novos caminhos. Com a

ruptura na narrativa, o elemento surpresa faz-se presente, em consonância com a

mundificação do homem acometido pela loucura.

A plenitude do narrar dá-se na narrativa consumindo a linguagem em plenitude.

Esta incandescência é um mostrar-se do dizer. A narrativa mostra e diz revelando e

revelando-se naquilo que há na linguagem. A plenitude do narrar é revelação, desvelar.

O desvelamento acontece, também, por ruptura. A consumação da loucura é revelação

dada por parte de um homem acometido por ela.

Do desvelamento da loucura, o acercamento para o diagnóstico é difícil, já que o

termo loucura é extremamente generalizado. Assim, a indicação para uma ação comum,

para o fato recorrente, para o ato previsível torna-se difícil. Isso pode ser percebido no

seguinte trecho:

Sete peritos, oficiais pares de olhos, do espaço inferior o

estudavam. ― “Que ver: que fazer?” ―agora. Pois, o dr. Diretor

comandava-nos em conselho, aqui, onde prestimosa para nós, dilatava

a Polícia, a proêmios de casse-têtes e blasfemos rogos, uma clareira

precária. Para embaraços nossos, entretanto, portava-se árduo o ilustre

homem, que ora encarnava a alma de tudo: inacessível. E ― portanto

― imedicável. Havia e haja que reduzi-lo a baixar, valha que por

condigno meio desguindá-lo. Apenas não estando à mão de colher,

nem sendo de se atrair com afagos e morangos. ― “Fazer o quê?”

―un nimes, ora tardávamos em atinar. Com o que o dr. Diretor, como

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175

quem saca e desfecha, prometeu: ― “Vêm aí os bombeiros!” Ponto.

Depunham os padioleiros no chão a padiola.107

O desvelamento da loucura, consequentemente, da mundificação do homem

aloucado, permite a compreensão de que o humano está no extraordinário, pois ele

encontra-se em uma situação que vai além da considerada normalidade. O diagnóstico

mostra-se pendente, já que a consideração de que o homem padeça de loucura é dada de

forma geral. A loucura é totalizada pela linguagem em um âmbito diverso do

convencional. O vínculo com o real acontece, mas em outra sintonia.

A narrativa “Darandina” apresenta o surto de um homem, desde o seu irromper

inicial na narrativa até o seu fim. Coincide o surto com a própria narrativa. A plenitude

da narrativa dá-se na apropriação do ocorrido, no acontecimento narrado. O surto é

apresentado por momentos e fatos oriundos do estado psíquico do homem. Cada

instauração originária torna-se importante por revelar, mostrar, o existir vivenciado no

todo da narrativa.

A plenitude da narrativa é a unidade em si, que é o próprio conto. A quebra da

narrativa convencional, presente no conto, mostra-se na própria forma dos parágrafos,

pois, o discurso direto é inserido no próprio parágrafo referente à narração. Há uma

simbiose. Tudo é uma narrativa singular, permeado pelo narrador. Assim, os seguintes

trechos demonstram o mencionado:

Vindo o que o Adalgiso, com de-curtas, não urgira em

cochichar-me: nosso homem não era nosso hóspede. Instantes antes,

espont neo, só, dera ali o ar de sua desgraça. ― “Aspecto e facies

nada anormais, mesmo a forma e conteúdo da elocução a princípio

denotando fundo mental razoável...” Grave, grave, o caso. Premia-nos

a multidão, e estava-se na área de baixa pressão do ciclone. ― “Disse

que era são, mas que, vendo a humanidade já enlouquecida, e em

véspera de mais tresloucar-se, inventara a decisão de se internar,

voluntário: assim, quando a coisa varresse de infernal a pior, estaria

107

ROSA, Op. cit., p. 193

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176

já garantido ali, com lugar, tratamento e defesa, que à maioria, cá

fora, viria a fazer falta...” ―e o Adalgiso, a seguir, nem se culpava de

venial descuido, quando no ir querer preencher-lhe a ficha.

― “Você se espanta?” ― esquivei-me. De fato, o homem

exagerava somente uma teoria antiga: a do professor Dartanhã, que,

mesmo a nós, seus alunos, declarava-nos em quarenta-por-cento casos

típicos, larvados; e, ainda, dos restantes, outra boa parte, apenas de

mais puxado diagnóstico... Mas o Adalgiso, mas ao meu estarrecido

ouvido: ― “Sabe quem é? Deu nome e cargo. Sandoval o

reconheceu. É o Secretário das Finanças Públicas... ― assim

baixinho, e choco, o Adalgiso.108

A forma particular da narrativa rosiana indica um afastamento seu da

considerada narrativa convencional. Seja do ponto de vista estrutural, da forma, seja do

ponto de vista do sentido da narrativa, a prosa rosiana adota a mundividência singular,

pois é criação em plenitude da linguagem. A narrativa de Rosa não possui uma

linearidade, mas, desenvolvimento em plenitude.

A estória dá-se ao mostrar-se através da linguagem. A narrativa diz por que a

linguagem faz-se presente e se instaura em revelação. Ela revela sua mundividência

com sentidos instauradores e inaugurais. A linguagem produz sentidos novos para

propiciar o advento de uma nova mundividência na narrativa. O narrar diz por que

mostra a mundividência que se ergue no decorrer da narrativa.

Na narrativa “Darandina”, em que a mundividência do processo da loucura faz-

se presente, o processo da loucura se transforma em elemento temático da narrativa. A

problemática da loucura mostra-se assaz fulcral por e para todos âmagos envolvidos na

sociedade, muitas vezes, problematizados pejorativamente, além da maestria rosiana

quanto à estrutura e o sentido suscitados na narrativa. Do ponto de vista existencial ou

do ponto de vista social, a loucura não é tratada de acordo com a sua grandiosidade.

Desse modo, são demonstradas as ações do homem acometido por ela com teor

tragicômico. É que se pode perceber na passagem do conto a seguir:

108

ROSA, Op. cit., pp. 190-191

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Isto é, o homem, o prócer, protestou. ― “Pára ... Gesticulou

que ia protestar mais. ― “Só morto me arriam, me apeiam ―e não

à toa, augural, tinha ele o verbo bem adestrado. Hesitou-se, de cá para

cá, hesitávamos. ― “Se vierem, me vou, eu... Eu me vomito daqui ...

―pronunciou. Declamara em demorado, quase quite eufórico,

enquanto que nas viçosas palmas se retouçando, desvárias vezes a

menear-se, socilante por um fio. À coaxa acrescentou: ― “C o que

ladra, n o é mudo... ―e já que só faltava mesmo o triz, para passar-

se do aviso à lastima. Parecia prender-se apenas pelos joelhos, a

qualquer simples e insuportável finura: sua palma, sua alma. Ah... e

quase, quasinho... quasesinho, quase... Era de horrir-me o pêlo. Nanja.

― “É de circo... ―alguém sus sussurrou-me, o dr. Enéias ou

Sandoval. O homem tudo podia, a gente sem certeza disso. Seja se

com simulagens e fictâncias? Seja se capaz de ilidir-se, largar-se e se

levar do diabo. No finório, descabelado propósito, perpendurou-se um

pouco mais, resoluto rematado. A morte tocando, paralela conosco

―seu tênue tambor taquigráfico. Deu-nos a tensão pânica: gelou-se-

me. Já aí, ferozes, em favor do homem: ― “N o N o ―a

gritamulta ― “N o N o N o ― tumultroada. A praça reclamava,

clamava. Tinha-se de protelar. Ou produzir um suicídio reflexivo ―e

o desmoronamento do problema? O dr. Diretor citava Empédocles.

Foi o em que os chefes terrestres concordaram: apertava a urgência de

não se fazer nada. Das operações de salvamento, interrompeu-se o

primeiro ensaio. O homem parara de balançar-se ― irrealmente na

ponta da situação. Ele dependia dele, ele, dele, ele, sujeito. Ou de

outro qualquer evento, o qual, imediatamente, e muito aliás, seguiu-

se.109

A loucura é apresentada sem qualquer parâmetro no conto. No livro Primeiras

estórias, a palavra margem é recorrente para marcar essa falta de parâmetro na narrativa

e no ser. A opção de Guimarães Rosa é mostrar que não há nada fixo ou algum modelo

perpétuo. A vida, assim como, a margem, é ondulante, de difícil esquematização.

Assim, não há margem para a loucura.

Apesar de ter sido acometido pela loucura, o homem volta a si. E a conclusão do

conto é que a vida é um “progressivo desconhecimento”. A certeza, a precisão, a forma

não são essências para a/da vida. Esta é uma constante ondulação, sem margem, na

terceira margem, ao aberto.

No aberto do sertão, também está a personagem Sorôco. No conto “Sorôco, sua

mãe, sua filha”, a mãe e a filha de Sorôco são levadas pelo governo para serem tratadas,

109

ROSA, Op. cit., pp. 195-196

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já que Sorôco não pode cuidar mais delas. Ele, portanto, fica sozinho. Vivenciar a

loucura, não como o louco, mas aquele que serve de guia para personagens loucas,

como a mãe e filha, lança Sorôco para experienciar a loucura, que não acomete a si

próprio, mas, sim a duas pessoas de seu convívio diário e familiar. É o narrar da estória

que apresenta o enredo, logo no primeiro parágrafo da estória, e focaliza a relação entre

Sorôco e as duas mulheres no parágrafo seguinte, como se pode observar nos

fragmentos a seguir:

Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera,

tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro,

na esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de

primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava

as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas

sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que,

com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí de baixo,

fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para

longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12h45m.

As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do

carro, para esperar. As pessoas não queriam poder ficar se

entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez,

como sabendo mais do que os outros a prática de acontecer das coisas.

Sempre chegava mais povo o movimento. Aquilo quase no fim da

esplanada, do lado do curral de embarque de bois, antes da guarita do

guarda-chaves, perto dos empilhados de lenha. Sorôco ia trazer as

duas, conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns

setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas,

não conhecia dele o parente nenhum.110

Sorôco não compartilha a loucura acometida à sua volta pela sua família, mas,

está inserido do desmedido do real, fora da margem, fora da construção racional do que

é verdadeiro, do que é certo, já que ele vivencia a loucura, não em si, mas a partir do

diálogo construído com os entes queridos. Com a provável partida de sua mãe e de sua

filha única, Sorôco permanecerá sozinho, sem a presença de qualquer outro parente, já

que sua família é constituída, na estória, somente pela mãe e pela filha.

110

ROSA, Op. cit., pp. 62-63

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O acometimento da loucura separa Sorôco de sua família, segundo a narrativa,

para o sempre. Com o partir das duas, quebra-se um elo formado pelo homem e as duas

mulheres, implicando na separação e solidão de Sorôco no sertão. O movimento era

grande do povo na cidadezinha para ver a partida da mãe e da neta para outro lugar,

onde elas não teriam mais os cuidados daquele que é o filho e o pai em uma única

pessoa. Sorôco não mais dispenderia seus cuidados para cuidar de mãe e filha, cabendo

a ruptura do convívio familiar em detrimento da impossibilidade de Sorôco ter cuidados

para suas parentes. É o que diz a narrativa a seguir:

O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita

paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas

pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam

voltar, nunca mais. De antes, Sorôco agüentara de repassar tantas

desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí, com os anos, elas

pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi

preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, terminar de dar as

providências, de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha

mandado o carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com

as duas, em hospícios. O se seguir.111

Sorôco já não podia mais cuidar das duas integrantes de sua família. Teve que se

dispor a enviá-las apara um hospício, cuidando para que estivessem bem respaldadas no

local para onde estavam sendo destinadas, já que ele já não poderia mais cuidar bem

delas.

As vestimentas da mãe e da filha de Sorôco, assim como, dele mesmo, indicam

que se trata de uma família pobre, sem recursos materiais, sendo assim uma família

humilde. Desse modo, retrata-se que vieram acudir a Sorôco que já não podia mais

cuidar daquelas que formavam a sua família. Desse modo, é narrada como se

111

ROSA, Op. cit., p. 64

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apresentavam os três, na estória, quando se dirigiam à locomotiva, nos parágrafos

seguintes:

Aí, paravam. A filha a moça tinha pegado a cantar, levantando

os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer

das palavras o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem

santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de

admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma

carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas

roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas

virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um

fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que

diferentes, elas se assemelhavam.

Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em

mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza.

Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não

querendo afirmar as vistas, por causa daqueles trasmodos e

despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco para não parecer

pouco caso. Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com

chapéu grande, botara usa roupa melhor, os maltrapos. E estava

reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de

dó. Ele respondia: “Deus vos pague essa despesa...”112

As vestimentas retratam a simplicidade da família em uma ocasião tão singular e

tão emotiva. Juntamente com as ações da mãe e da filha de Sorôco, remetem-se,

também, à instância em que estão acometidas, na qual as demais personagens não estão

condizentes, dotadas de formalidades e normalidades. Não se apresentam para o trivial,

mas para o desmedido sertão, o ilimitado real. Pela importância do acontecimento,

Sorôco se veste da melhor forma dentro de suas possibilidades e se presentifica,

também, através do que mostra de si, com nobreza para o acontecimento instaurado.

Cada um se faz presente pela própria singularidade.

As roupas, portanto, não marcam somente a representação da loucura, mas,

marcam a simplicidade e o arcabouço criativo presente na loucura. A criatividade se

relaciona com a imaginação de cada uma das duas mulheres permitindo que elas

112

ROSA, Op. cit., pp. 63-64.

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vivenciem e experienciem a si e ao redor movente de maneira própria, singular, original

e fora de qualquer parâmetro ou paradigma, em relação às suas roupas e aos seus

procederes.

A mãe e a filha de Sorôco se presentificam libertas das margens impostas pelo

lugar comum e se lançam ao aberto desmedido e ilimitado do sertão e do real. Elas não

estão enclausuradas em formas e modelos, mas, sim são livres das amarras impostas

pelos juízos de valores. Por tornarem-se presença na abertura do sertão, as personagens

não precisam seguir um encadeamento lógico valorativo, não importando inclusive os

olhares que reprovam as suas roupas e as suas atitudes na cidadezinha sertaneja do

grande sertão rosiano.

A relação estimada entre a avó e a neta era muito próxima; o que comprova que

quem padeça de loucura não possa criar vínculos com nenhuma outra pessoa, mas, sim

traz o inverso. A relação amistosa entre ambas é repercutida na seguinte passagem do

conto:

De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se

sentar no degrau da escadinha do carro. “Ela n o faz nada, seo

Agente... a voz de Sorôco estava muito branda: “Ela não acode,

quando a gente chama... A moça, aí, tornou a cantar, virada para o

povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-

se em espetáculo, mas representava de outrora grandezas,

impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto

de pressentimento muito antigo um amor extremoso. E,

principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a

cantar, também tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que

ninguém entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de

cantar.

(...)

Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçoo do canto, das duas,

aquela chirimia, que avocava: que era um constado de enormes

diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem

jurisprudência de motivo nem lugar, nenhuma, mas pelo antes, pelo

depois.113

113

ROSA, Op. cit., pp. 64-65

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Sorôco também demonstra, igualmente, em sua singularidade, o carinho por sua

mãe através do que foi narrado, ao dizer palavras de contenção das ações de outros em

virtude das ações exercidas por sua mãe. O sentimento familiar une os membros da

família na estória rosiana. Há a compaixão, mais do que uma consideração,

denominação e aceitação da loucura, que é mais do que partilhar ou do que compartilhar

algo. Trata-se da compaixão de ver o outro e aceitá-lo como é, independentemente do

que possa ser representado e das predicações atribuídas a ele. O importante é aceitá-lo

em toda sua singularidade, mesmo que não esteja em vigor com a ordem estabelecida

pelo redor.

Estar em diálogo com alguém não significa que um deve se sobrepor ao outro,

mas, sim, que deve existir a unidade com as diferenças presentes em cada um e com o

elo que uno um ao outro. A cantiga cantada desencadeou a unidade, que se estendeu aos

vizinhos do lugarejo, após a partida da mãe e do pai do Sorôco. O sentir de Sorôco

culminou na cantiga que plenamente chegou e adentrou em todos os que estavam

presentes no acontecimento, como demonstra o seguinte trecho do conto:

Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de

chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo o que nele mais

espantava. O triste do homem, lá, decretado, embargando-se de poder

falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco

sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso. E lhe falaram:

“O mundo está dessa forma...” Todos, no arregalado respeito, tinham

as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de Sorôco.

Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e

virou, pra ir-s‟embora. Estava voltando para casa, como se estivesse

indo para longe, fora de conta.

Mas parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o

de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E

foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num

rompido ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si e

era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado.

Cantava continuando.

A gente e esfriou, se afundou um instant neo. A gente... E

foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de

uma vez, de dó de Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele

canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com

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ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase

que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da

memória. Foi um caso sem comparação.

A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de

verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.114

Na unidade não importam as partes, mas, sim, o diálogo advindo dos encontros

plurais e do dizer próprio de cada um. É o canto o que permite a unidade entre todos,

não no sentido de compartilhar a loucura, mas, sim, de experienciar o real, o sertão, que

também é o desmedido pela loucura instaurada, não como sintomas de patologias

mentais, mas, como força de vivenciar o sertão e o real. O canto é abertura para

experienciar o real, para auscultar e dizer o sertão, na unidade dialógica entre os

sertanejos, que, no conto, instauraram-se pela cantiga. Desse modo, o desfecho da

estória se coloca como a culminância dialógica que não apresentou a separação entre

loucos e não loucos, sendo todas as personagens uma unidade sertaneja.

Para experienciar o sertão, o sertanejo não se apresenta com amarras oriundas do

enredo lógico, de modo que o enredo, em muitos contos de Guimarães Rosa, já é

apresentado ao início, logo no primeiro parágrafo da estória. E a loucura também se

instaura no real, no sertão. Para vivenciar o sertão, João de Barros Diniz Robertes, o

patrão Tarantão, dono de terras, parte a vivenciar a sua estória de cavaleiro, no

desmedido da estória.

No conto “ Tarantão, meu patrão”, João de Barros Diniz Robertes, galopa feito

Dom Quixote, com seus “recrutas”, para chegar à casa do doutor Magrinho. Através da

narrativa, vê-se que o real se dá de diferentes maneiras em seu agir incessante. Antes de

seu galopar destemidamente, seguido por seu empregado Vagalume, os preparativos são

narrados da seguinte maneira:

114

ROSA, Op. cit., pp. 65-66

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184

Suspa! que me não dão nem tempo para repuxar o cinto nas

calças e me pôr debaixo de chapéu, sem vez de findar de beber um

café gostoso nos sossegos da cozinha. Aí ... “ai-te... a voz da

mulher do caseiro declarou, quando o caso começou. Vi o que era. E,

pois. Lá se ia, se fugiu, o meu esmarte Patrão, solerte se levantando da

cama, fazendo das dele, velozmente, o artimanhoso. Nem parecesse

senhor de tanta idade, já sem o escasso juízo na cabeça, e aprazado de

moribundo para daí a dia desses, ou horas ou semanas. Ôi, tenho de

sair também, por ele, já se vê, lhe corro todo atrás. Ao que, trancei

tudo, assungo as tripas do ventre, viro que me viro, que a mesmo

esmo, se me esmolambo, se me despenco, se me esbandalho:

obrigações de meu ofício. “Ligeiro, Vagalume, não larga o velho!”

acha ainda de me informar o caseiro Sõ Vincêncio, presumo que se

rindo, e: “Valha-me eu rogo, ih, danando-o, êpa! e desço em

pulos passos esta velha escada de pau, duma droga, desta

antiquíssima fazenda, ah...

E o homem no curral, trangalhadançando, zureta, de

afobado se propondo de arrear cavalo! Me encostei nele, eu á ordens.

Me olhou mal, conforme pior que sempre. “Tou meio precisado de

nada...” me repeliu,e formou para si uma cara, das de desmamar

crianças. Concordei. Desabanou com a cabeça. Concordei com o não.

Aí ele sorriu, consigo meio mesmo. Mas mais me olhou, me

desprezando, refrando: “Que, o que é, menino, é que é sério demais,

para você, hoje Me estorvo e estranhei, pelo peso das palavras. Vi

que a gente estávamos era em tempo-de-guerra, mas com espadas

entortadas; e que ele não ia apelar para manias antigas. E a gente,

mesmo, vesprando de se mandar buscar, por conta dele, o doutor

médico, da cidade, com sábias urgências! Jeito que, agora, o velho me

mandava pôr as selas. Bom desatino! Nem queria os nossos, manos,

mas o baio-queimado, cavalão alto, e em perigos apresentado, que se

notava. E o pedresão, nem mor nem menor. Os amaldiçoados, estes

não eram de lá, da fazenda, senão que animais esconhecidos, pegados

só para se saber depois de quem fosse que sejam. Obedeci, sem outro

nenhum remédio de recurso; para maluco, maluco-e-meio, sei. O

velho me pespunha o azul daqueles seus grandes olhos, ainda de muito

mando deliberados. Já estava com a barba o ar aquela barba e se

recruzar e baralhar, de nenhum branco fio certo. Fez fabulosos gestos.

Ele estava melhor do que na amostra.115

João de Barros Diniz Robertes, o patrão Tarantão, se apronta para partir para as

suas aventuras, desbravando o sertão. A sua atitude intempestiva já é esperado pelos

seus, já que é narrado que o patrão é “um senhor de tanta idade, já sem o escasso juízo

na cabeça”116

. Tarantão é tido como um idoso sem as plenas faculdades mentais em

pleno funcionamento com o raciocínio lógico. Destemperado, não mede as ações

115

ROSA, Op. cit., pp. 213-214 116

Ibidem, p. 213

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185

habituais a serem realizadas no dia-a-dia, e, deambula pelos eventos criados por si, a

partir de sua vivencia no sertão. Suas peripécias são vistas como receosas, posto que há

personagens que consideram que o Tarantão deve ser seguido, amparado e

supervisionado por um empregado da fazenda, o Vagalume. Temem que o senhor se

prejudique ou que aconteça algo de ruim com ele, ao meio de seus procederes

intempestivos e inesperados por todos que convivem com ele. Taratão tem um guardião

que não é bem visto por ele, já que acredita poder cuidar-se de si mesmo, sem precisar

da ajuda de outros. Sem ter como detê-lo, parte o empregado e o patrão cavalgando pelo

sertão, como é demonstrado na narrativa a seguir:

Mal pus pés em estrivos, já ele se saía pela porteira, no que

esporeava. E eu arre a Virgem em seguimentos. Alto, o velho,

inteiro na sela, inabalável, proposto de fazer e acontecer. O que era se

quer um descendente de sumas grandezas e riquezas um Iô João-de-

arros-Diniz-Robertes! encostado, em maluca velhice, para ali, pelos

muitos parentes, que não queriam seus incômodos e desmandos na

cidade. E eu, por precisado e pobre, tendo do aguentar o restante, já se

vê, nesta desentendida caceteação, que me coisa e assusta, passo

vergonhas. O cavalo baio-queimado se avantajava, andadeiro de só

espaços. Cavalo rinchão, capaz de algum derribamento. Será qie o

velho seria de se lhe impor? Suave, a gente indo, pelo cerrado, a bom

ligeiro, de lados e lados. O chapéu dele, abado pomposo, por debaixo

porém surgindo os compridos alvos cabelos, que ainda tinha, não

poucos. “Ei, vamos, direto, pegar o magrinho, com ele hoje eu

acabo bramou, que queria se vingar. O Magrinho sendo o doutor, o

sobrinho-neto dele, que lhe dera injeções e a lavagem intestinal.

“Mato Mato, tudo esporeou, e mais bravo. Se virou para mim, aí

deu o grito, revelando a causa e verdade: “Eu ‘tou solto, ent o sou o

demônio!” A cara se balançava, vermelha, ele era claro demais, e os

olhos, de que falei. Estava crente, pensava que tinha feito o trato com

o Diabo!

P’r’onde evou? a trote, a gente, pelas esquerdas e pelas

direitas, pisando o cascalharal, os cavalos no bracear. O velho tendo

boa mão na rédea. De mim, não há de ouvir, censuras minhas. Eu,

meus mal-estares. O encargo que tenho, e mister, é só o de me poitar

perto, e não consentir maiores desordens. Pajeando um traste ancião

o caduco que não caia! De qualquer repente, se ele, tão doente, por si

se falecesse, que trabalhos medonhos que então não ia haver de me

dar? Minha mexida, no comum, era pouca e vasta, o velho homem

meu Patrão me danava-se. Me motejou: “Vagalume, você então

pensa que vamos sair por aí é p’ra afzer crianças? A voz toda, sem

sobrossos nem encalques. E ia ter a coragem de viagem, assim, a

logradouros tão sambanga se trajando? Sem paletó, só o todo

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abotoado colete, sujas calças de brim sem cor, calçando um pé de

botina amarela, no outro pé a preta bota; e mais um colete, enfiado no

braço, falando que aquele era a sua toalha de se enxugar. Um de

espanto! E, ao menos, desarmado, senão que só com uma faca de

mesa, gastada fino e enferrujada pensava que era capaz, contra o

sobrinho , o doutor médico: ia pôr-lhe nos peitos o punhal! feio, fulo.

Mas, me disse, com o pausar: “Vagalume, menino, volta, daqui, n o

quero lhe fazer enfrentar, comigo, riscos terríveis. Esta, então!

Achava que tinha feito o trato com o Diabo, se dando agora de o mor

valentão, com todas as sertanejices e braburas. Ah, mas, ainda era m

homem da raça que tivera e o meu Patrão! Nisto, apontava o dedo,

apara lá ou cá, e dava tiros mudos. Se avançou, à frente, só

avançávamos, a fora, por aí, campampantes.117

Tarantão e seu empregado partem para desbravar o sertão, com o objetivo de

recobrar a honra do patrão, ferindo o sobrinho que lhe havia medicado injeção, contra a

vontade. Dão, assim, início ao viajar desmedido a fim de executar o plano arquitetado

por Tarantão, com o Vagalume como o seu escudeiro. No entanto, seu empregado

somente o segue por ser seu trabalho acompanhar o patrão como cão de guarda. Fiel ao

seu trabalho, não lhe resta outra opção a não ser acompanhá-lo. Tarantão, acometido

pela loucura, explicita que não está atrás de relacionamento amoroso, de fazer herdeiros

ou fazer filhos fora do casamento, mas, sim, que vai fazer valer a sua honra, por

acreditar que o médico, para o qual se direcionam os dois, não o tratou de maneira

respeitosa.

Por ser considerado pelas pessoas de seu convívio como velho e louco, acredita-

se que oTarantão necessita de atenção especial e de alguém que o acompanhe ao longo

de suas loucuras, de modo que os dois seguem a partir do rompante do patrão, já que

este recrutou o empregado para seguir viagem com ele. Após o Valente se untar ao

patrão, os dois partem atrás de aventura e Tarantão recruta um homem que nada se

parece com um cavaleiro que defenda a honra de alguém. Esse encontro com Sem-

117

ROSA, Op, cit., pp. 215-216

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Medo é narrado na forma a seguir, deixando claro que o patrão não estava agindo de

acordo com o raciocínio lógico proporcionado pelos fatos apresentados ao que se dava:

Por entre arvoredos grandes, ora demos, porém, com um

incerto homem, desconfioso e quase fugidiço, em incerta montada.

Podia-se-o ver ou não ver, com um tal sujeito não se tinha nada. Mas o

velho adivinhou nele algum desar, se empertigando na sela, logo às

barbas pragas: “Mal lhe irá!” gritou altamente. Aproximou seu

cavalão, volumou suas presenças. Parecia que lhe ia vir às mãos. Não

é que o outro, no tir-te, se encolheu, borrafofo, todo num empate?

Nem pude regularizar o de meu olhar, tudo expresso e distenso demais

se passava. O velho achando que esse era um criminoso! e, depois,

no reberê, se sabendo: que ele o era, de fato, em meios termos. Isto

que é, que somente um Sem-Medo, ajudante de criminoso, mero. Nem

pelejou para se fugir, dali donde moroso se achava; estava como o

gato com chocalho. “Ai-te o velho, sacudindo sua cabeça grande,

sem com que desenfezar-se: “Pague o barulho que você comprou

o intimava. O ajudante-de-criminoso ouviu, fazendo uns respeitos, não

sabendo o que não adiar. Aí, o velho deu ordem: “Venha comigo,

vosmicê! Lhe proponho justo e bom foro, se com o sinal de meu

servidor... E... É de se crer? Deveras. Juntou o homem seu cavalinho,

bem por bem vindo em conosco. Meio coagido, já se vê; mas, mais

meio esperançado.

Sem nem mais eu me sonhar, nem a quantas, frigido de calor e

fartado. Aquilo tudo, já se vê, expunha a desarrazoada loucura. O

velho, pronto em arrepragas e fioscas, no esbravejo, estrepa-e-pega.

No gritar: “Mato pobres coitados Se figurava, nos trajos, de já ser

ele mesmo o demo, no triste vir, na capetagem?118

O arremate do primeiro escudeiro fora do ambiente familiar se dá fora da razão

pelo fato do homem não possuir uma linhagem da cavalaria, podendo estar mais

próximo de um pícaro. A situação inusitada para a oferta e o recebimento do convite

imputa a aversão de Tarantão para o que se dava diante de seus olhos, que não pode

explicar, conceituar, denominar todo o processo criativo e de imaginação da loucura

presente no agir do patrão, ao sair de sua casa para desbravar o sertão cavalgando com a

finalidade de atingir o “Magrinho”, ao considerar que lhe fez mal.

118

ROSA, Op. cit., pp. 216-217

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Considerado estar fora de si, por quem o visse na situação e nos trajes que se

apresentava, Tarantão dava ares para sua imaginação e criatividade, desbravando o

sertão com todas as peripécias cabíveis a um cavaleiro que rege sua tropa, com bravos

homens, fortes e poderosos, segundo o imaginário formado em geral para as estórias de

cavalaria. Mas, na verdade, o regimento do patrão será formado pouco a pouco por

indivíduos que não condizem com a representação fossilizada de cavaleiros, assim

como, Dom Quixote e Sancho Pancha se lançaram para combater os moinhos de ventos.

Vagalume, como bom criado, decide acompanhá-lo e acaba por se lançar no aberto da

loucura, mesmo que, a cada momento, visse com outros olhos aquilo que o patrão

considerasse ser a sua realidade. O que é explicado pelo fato do patrão experienciar e

vivenciar o desmedido do sertão.

Tarantão age no aberto do sertão, sem um itinerário arquitetado previamente

nem conforme causas e finalidades conhecidas e estabelecidas. Vai com seu cavalo e

seu séquito experienciado o sertão que se lhe apresenta ante seu caminhar pomposo,

segundo suas considerações com a pompa de um jagunço que quer sua revanche. No

desenrolar de seu caminhar e de seu rompante, depara-se com uma mulher que se torna

sua Dulcinéia, sem recursos financeiros e sem vestimentas condizentes com a donzela

de algum reino. Assim, é narrado o encontro de Tarantão com a mulher, resultando na

aceitação dela seguir-lhe pelo sertão:

Só de déu e em léu tocávamos, num avante fantasmado. O

ajudante-de-crimososo não se rindo, e eu ainda mais esquivançando.

Nisto, o visto: a que ia com feixinho de lenha, e com a escarrapachada

criança, de lado, a mulher, pobrepérrima. O velho, para vir a ela,

apressou macio o cavalo. Receei, pasmado para tudo. O velho se safou

abaixo o chapéu, fazia dessas piruetas, e outras gesticulações. Me

achei: “Meu, meu, mau Esta é aquela flor, de com que n o se bater

e nem em mulher Se bem que as coisas todas foram outras. O velho,

pasmosamente, do doidar se arrefecia. Não é que, àquela mulher,

ofereceu tamanhas cortesias? Tanto mais quanto ele só insistindo,

acabou ela afinal aceitando: que o meu Patrão se apeou, e a fez montar

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189

em seu cavalo. Cuja rédea ele veio, galante, a pé, puxando. Assim, o

nosso ajudante-de-criminoso teve de pegar com o feixe de lenha, e eu

mesmo encarregado, com a criança a tiracolo. Se bem que nós dois

montados; já se vê? nessas peripécias de pato.119

Sua amada do rompente resolve acompanhar a Tarantão em seu deambular no

sertão, juntamente com os cavaleiros recrutados para a missão especial. Há um olhar

dual de quem olha o galapar itinerante do patrão: os que se compadecem e se lançam ao

que o louco criar com toda sua imaginação e criatividade e os que se opõem

severamente e tentam encarcerar o louco em seu mundo, sem ocorrer o diálogo entre o

louco e as demais pessoas de seu entorno. Bem tratada pelo chefe, em meio à loucura

suscitada, a mulher segue com ele a desbravar o sertão, em uma posição de honra e

nobreza que, talvez, nunca tenha ocupado até então.

O tropel de Tarantão foi sendo aumentado conforme progrediam em seu galopar

pelo sertão. Ela não era formada pelos bons-homens que compunham a sociedade, mas,

sim, por aqueles que estavam fora da margem das excelências, das aptidões e das

atitudes grandiosas. O patrão viu nessa gente o que ninguém mais via: um séquito

pronto para servir a um senhor. O agir louco irrompe em construir um mundo segundo o

desmedido vigorar do pensar diante de uma linha limítrofe, estagnada e asfixiante.

Desse modo, é narrado, a seguir, a aglutinação de cavaleiros sob o comando de

Tarantão:

Assim a gente, o velho à frente tiplóco.. t’plóco... t’plóco... já

era cavalaria. Mais um, ainda, sem cujo nem quem: o vagabundo

“Corta-Pau”; o sem-que-faezr, por influências. A gente, com Deus:

onze! Ao adiante tira-que-tira num sossego revoltoso. Eu via o

velho, meu Patrão: de louvada memória maluca, torre alta. Num

córrego, ele estipulou: “Os cavalos bebem. A gente, n o. A gente

n o tenha sede Por áspera moderação, penitência de ferozes. O

119

ROSA, Op. cit., p. 217

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Patrão, pescoço comprido, o grande gogó, respeitável. O rei!

guerreiro. Posso furtar de suar; mas aquilo tinha para grandezas.

“Mato sujos e safados o velho. Os cavalos, cavaleiros,

Galopada. A gente: treze... e quatorze. A mais um outro moço, o

“ obo”, e a menos um “João-Paulino”. Aí, o chamado “Rapa-pé”, e

um amigo nosso por nome anônimo; e, por gostar muito de folguedos,

o preto de Gorro-Pintado. Todos vindos, entes, contentes, por algum

calor de amor a esse velho. A gente retumbava, avantes, a gente queria

façanhas, na espraiança, nós assoprados. A gente queria seguir o

velho, por cima de quaisquer idéias. Era um desembaraçamento o de

se prezar, haja sol ou chuva. E gritos de chegar ao ponto: “Mato

mortos e enterrados o velho se pronunciava.

Ao que o velho sendo o que era por-todos, o que era no fechar o

teatro. “Vou ao demo bramava. “Mato o Magrinho, é hoje, mato

e mato, mato, mato de se sobrinho doutor, iroso não se olvidava.

S spe-te que eu não era um porqueira; e quem não entende dessas

seriedades? Aí o trupitar cavalos bons! que quem visse se

perturbasse: não era para entender nem fazer parar. Fechamos nos

ferros. “Vigie-se, quem vive espandongue-se. Não era. Num

galope, ventos, flores. Me passei para o lado do velho, junto ...

tapatr o, tapatr o... tarant o... tarant o... e ele me disse: nada. Seus

olhos, o outro grosso azul, certeiros, esses muito se mexiam. Me viu

mil. “Vagalume só, só, cá me entendo, só de se relancear o

olhar. “Jo o é Jo o, meu Patr o... Aí: e patrapão, tampantrão,

tarantão... cá me entendo. Tarantão, então... em nome em honra,

que se assumiu, já se vê. Bravos! Que na cidade já se ia chegar,

maiormente, à estrúpida dos nossos cavalos, desbestada.

Agora, o que é que ia haver? nem pensei; e o velho: “Eu

mato Eu mato Ia já alta a altura. “Às portas e janelas, todos

trintintim, no desbaralhado. E eu ali no meio. O um Vagalume,

Dosmeuspés, o Sem-Medo, Curucutu, Felpudo, Cheira-Céu, Jiló, Pé-

de-Moleque, arriga-Cheia, Corta-Pau, Rapa-pé, o obo, o Gorro-

Pintado; e o sem-nome nosso amigo. O Velho, servo do demo só

bandeiras despregadas. O espírito de pernas-para-o-ar, pelos cornos da

diabrura. E estávamos afinal-de-contas, para cima de outros degraus,

os palhaços destemidos. Estávamos, sem até que a final. Ah, já era a

rua.120

O percurso chegara ao seu fim. O longo percurso de recrutamento para o time de

Tarantão chegou às cercanias de onde mora o seu sobrinho médico. Foram convocados

seus cavaleiros não pela bravura, mas, sim, pelo deixar ser com que o patrão vigora para

o vir a ser de um no fabuloso regime formado. São homens recrutados não pela

virtuosidade e grandeza, mas, sim, por pertencer à estirpe dos reclusos do sertão, os

renegados e que renegam a orientação vigente compartilhada por todos, com a adoção

120

ROSA, Op. cit., pp. 220 - 221

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imediata para seguir o líder Tarantão, que, em sua loucura, conseguir unir e trazer para a

plenitude quem estava à margem. Os arregimentados se juntaram ao Tarantão, o único,

de acordo com a narração, que os fez assumir uma posição de destaque na sociedade

sertaneja, mesmo que fosse, um exército formado por maltrapilhos.

O patrão, em seu ser de presentificação inaugural, incessante e desmedida,

ofereceu ao seu séquito a possibilidade de que cada um fosse e exercesse um outro

papel social, não estabelecido pela ordem vigente até o momento oportuno em que

Tarantão convoca a cada um a seguir a grande viagem com ele. Mais do que exercer um

papel social, a inaugurabilidade de cada um, a ser mais do que um pobre, maltrapilho e

renegado, é o que desperta a maior atenção em um exército formado pelos excluídos do

convívio social. Após o longo percurso, que não é tão longo assim, Tarantão e seu

exército chegam à casa do doutor. A narrativa apresenta essa passagem da seguinte

maneira:

Lá fomos, chegamos. A grande, bela casa. O meu em glórias

Patrão, que saudoso. Ao chegar a este momento, tenho os olhos

embaciados. Como foi, crente, como foi, que ele tinha adivinhado?

Pois, no dia, na hora justa, ali uma festa e dava. A casa, cheia de

gente, chiquetichique, para um batizado: o de filha do Magrinho,

doutor! Sem temer leis, nem flauteio, por ali entramos, de rajada. Nem

ninguém para o impedimento criados, pessoas, mordomado. Com

honra. Se festava!

Com surpresas! A família, à reunida, se assombrava

gravemente, de ver o Velho rompendo em formas de mal-

ressuscitado; e nós, atrás, nesse estado. Aquela gente, a assemblança,

no estatelo, no entremunho. Demais. O que haviam: de agora, certos

sustos em remorsos. E nós, empregando os olhos, por eles. O instante,

em tento. A outra instantaneação. Mas, então, foi que de repente, no

fechar do aberto, descomunal. O velho nosso, sozinho, alto, nos

silêncios, bramou dlão! ergueu os grandes braços:

“Eu pido a palavra...

E vai. Que o de bem se crer? Deveras, que era um pasmar.

Todos, em roda de em grande roda, aparvoados mais, consentiram, já

se vê. Ah, e o Velho, meu Patrão para sempre, primeiro tossiu:

bruba! e se saiu, foi por aí embora a fora, sincero de nada se

entender, mas a voz portentosamente, sem paradas nem definhezas, no

ror e rolar das pedras. Era de se suspender a cabeça. Me dava os fortes

vigores, de chorar. Tive mais lágrimas. Todos, também; eu acho. Mais

sentidos, mais caldos. O Velho, fogoso, falava e falava. Diz-se que, o

que falou, eram baboseiras, nada, idéias já dissolvidas. O Velho só se

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crescia. Supremo sendo, as barbas secas, os históricos dessa voz: e a

cra daquele homem, que eu conhecia, que desconhecia.

Até que parou, porque quis. os parentes se abraçavam.

Festejavam o recorte do velho, às quantas, já se vê. E nós, que atrás,

que servidos, de abre-tragos, desempoeirados. porque o Velho fez

questão: só comia com todos os dele em volta, numa mesa, que esses

seus cavaleiros éramos, de doida escolta, já se vê, de garfo e faca.

Mampamos. E se bebeu, já se vê. Também o Velho de tudo provou,

tomou, manjou, manducou de seus próprios queixos. Sorria definido

para a gente, aprontando longes. Com alegrias. Não houve demo. Não

houve mortes.

Depois, ele parou em suspensão, sozinho em si, apartado

mesmo de nós, parece‟ que. Assaz assim encolhido, em pequenino e

tão em claro: quieto como um copo vazio. O caseiro Sõ Vicêncio não

o ia ver, nunca mais, à doidiva, nos escuros da fazenda. Aquele meu

esmarte Patrão, com seu trato excelentriste Iô João-de-Barros-Diniz-

Robertes. Agora, podendo daqui para sempre se ir, com direito a seu

inteiro sossego. Dei um soluço, cortado. Tarantão então... Tarantão....

Aquilo é que era.121

Tarantão cumpriu a sua missão de chegar à casa do sobrinho doutor. Não o

matou fisicamente, mas, matou toda a sua família ao entrar com sua trupe na festa que

acontecido do batizado da filha do médico, e fazer-se persente. Pode-se presumir que

não fora convidado e chegou de sopetão, adentrando-se no recinto. Tarantão deixou por,

um longo movimento, sua vida no aberto, em suspensão do dia-a-dia que pode estagnar

alguém que queira vivenciar ou tenha que vivenciar o sertão com outros olhos que não

estejam submetidos à ordem vigente.

Na abertura do sertão, o Patrão inaugurou-se plenamente com seu séquito até a

culminância do seu silêncio ao final da estória. Alheio aos olhares de reprovação e pena,

vivenciou e experienciou o sertão de maneira singular, sem ter-se atido aos desejos,

vontades e proibições que lhes foram impostas pelos familiares e conhecidos. Desse

modo, os seus cavaleiros foram de uma bravura tremenda ao decidirem acompanhá-lo

em sua viagem. Dignos de honra. Tiveram o despendimento de ir de encontro ao aberto,

no diálogo instaurado entre o cavaleiro principal e protagonista com os seus subalternos.

121

ROSA, Op. cit., pp. 222- 223

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193

Foram além das presas do cotidiano, rendendo-se às plurais vigências do real e do sertão

narrados na estória. Loucura maior seria se o Tarantão se reclusasse em um cômodo da

casa da fazenda e abdicasse de ir mostrar-se e mostrar sua plenitude na unidade do seu

vigorar incessante e desmedido perante seu agir no sertão.

O desmedido operacionaliza a narrativa com o operar sem margens, do tecido

sinuoso do sertão, curtido pelo agir intempestivo. Desse modo, o conto “Um moço

muito branco”, inicia-se do seguinte modo:

Na noite de 11 de novembro de 1872, na comarca do Serro Frio,

em Minas Gerais, deram-se fatos de pavoroso suceder, referidos nas

folhas da época e exarados nas Efemérides. Dito que um fenômeno

luminoso se projetou no espaço, seguido de estrondos, e a terra se

abalou, num terremoto que sacudiu os altos, quebrou e entulhou casas,

remexeu vales, matou gente sem conta; caiu outrossim medonho

temporal, com assombrosa e jamais vista inundação, subindo as águas

dos rios e córregos a sessenta palmos da plana. Após os cataclismos,

confirmou-se que o terreno, em raio de légua, mudara de feições: só

escombros de morros, grotas escancaradas, riachos longe

transportados, matos revirados pelas raízes, solevados novos montes e

rochedos, fazendas sovertidas sem resto rolamentos de pedra e lama

tapando o estado do chão. Mesma a distância do astroso arredor, a

muita criatura e criação pereceu, soterradas ou afogadas. Outros

vagavam ao deus-dar, nem sabendo mais, no avesso, os caminhos de

outrora.122

O sertão é possibilidades e não pode ser entendido como um espaço circunscrito

e mediado por regimentos lineares e conclusivos. A narrativa é apresentada na abertura

do viger do sertão. São as possiblidades do real incontáveis e o surgimento do objeto

não identificado e os cataclismos mostram a irremediável extremidade humana em seu

operar no real, no sertão. O acontecimento de mediados de novembro irrompe sem

explicações plausíveis e sem soluções remediadas, acometendo a vida dos muitos

sertanejos, bem como, as suas posses, indicando a pequenez humana e sertaneja diante

do sertão e do real que opera, se mostra, vela, revela e desvela.

122

ROSA, Op. cit., p. 149-150

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194

Na estória, após o acontecimento cataclísmico, um moço aparece na Fazenda do

Casco, de Hilário Cordeiro, de forma misteriosa, sorrateiro, e, depois, parte, do mesmo

modo. Enquanto o moço, muito branco, esteve na fazenda houve prosperidade vultuosa

para os negócios do fazendeiro, que o acolhera. A aparição do jovem alvo é narrada:

Donde, no termo de semana, dia de São Félix, confessor, o caso de

vir ao pátio da Fazenda do Casco, de Hilário Cordeiro, com sede

quase dentro da rua do Arraial do Oratório, um coitado fugitivo

desses, decerto persuadido da fome: o moço, pasmo. O que foi quando

subitamente, e era moço de distintas formas, mas em lástima de

condições, sem o restante de trapos com que se compor, pelo que

enrolado em pano, espécie de manta de cobrir cavalos, achada não se

supõe onde; e, assim em acanho, foi ele avistado, de muito manhã,

aparecendo e se escondendo por detrás do cercado das vacas. Tão

branco; mas não branquicelo, senão que de um branco leve,

semidourado de luz: figurando ter por dentro da pele uma segunda

claridade. Sobremodo se assemelhava a esses estrangeiros que a gente

não depara nem nunca viu; fazia para si outra raça. Seja que da

maneira ainda hoje se conta, mas transtornado incerto, pelo decorrer

do tempo, porquanto narrado por filhos ou netos dos que eram

rapazes, quer ver que meninos, quando em boa hora o conheceram.123

Ninguém soubera a proveniência do jovem, mas, mesmo assim, acolheram-no.

Sua aparição é um acontecimento. Sua estória é passada de geração para geração,

mantendo-se intacta e, ao mesmo tempo, diferente. A diferença retira as conclusões da

área de conforto, tirando os fatos do imediatismo do cotidiano, do funcionalismo do dia

a dia. A chegada do moço na fazenda foi repentina. Não se tratava da chegada de um

familiar distante ou de um amigo dileto de outras fazendas e outros lugarejos. Em

frangalhos, trajando trapos, resquícios de vestimentas, o jovem não impressiona pela

distinção no vestir, mas por ser diferente, com a pele que resplandece claridade. A

alvura, decerto, não está nas roupas bem trajadas, mas no mostrar-se e figurar-se de

cada um. Ele se mostra alvo, com a pureza que não aparece no seu modo de vestir, na

forma como se apresentou trajado. A narrativa explicita o acolhimento do fazendeiro:

123

ROSA, Op. cit., pp. 149-150

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195

Hilário Cordeiro, sendo homem cordial para os pobres, temente e bom, e

mais ainda nesse pós-tempo de calamidade, em que parentes dele mesmo

tinham sofrido morte e arrasos totais, não duvidou em lhe deferir

hospedamento, cuidando de adequar-lhe roupa e botinas, desde lhe dar o de

comer. E o que era mister de benemerência, porquanto o moço, com os

sustos e baques, passara por desgraça extraordinária: perdida a completa

memória de si, sua pessoa, além do uso da fala. Esse moço, pois para ele

sendo igual matéria o futuro que o passado? Nada ouvindo, não respondia,

nem que não, nem que sim; o que era coisa de compaixão e lamentosa. Nem

fizesse por entender, isto é, entendia, às vezes ao contrário, os gestos. Dado

que uma graça já devia de ter, não se lhe podia pôr outro nome, não

adivinhado; nem se soubesse de que geração fosse o filho de nenhum

homem.124

A benevolência e a solidariedade do fazendeiro mostram a propriedade dele que

não pode ser medida somente pelas posses e pelos bens. Como bom sertanejo, abre as

portas de sua casa para o forasteiro que não tem ou não pode pagar com dinheiro a

hospitalidade. O moço chega sem nada, maltrapilho, necessitando de ajuda e cuidados.

Considerou-se que ele havia perdido a memória, assim como, a fala. Não ouvia o que

era falado, de modo que não podia responder a ninguém. Não se sabia o seu nome e

tampouco poderiam nomeá-lo novamente, mantendo intacta a nominação desconhecida

inaugural. Desagarrado pela fazenda, ele instaurou-se graças ao recolhimento através

das atitudes bondosas e filantrópicas do fazendeiro, que, com compaixão, deu-lhe

sapatos, roupas e moradia, diante do infortúnio que avassalava Serro Frio. O lugar

friamente devastado é aquecido com a presença do moço tão alvo, que alumiava o

lugarejo.

A retribuição do moço, ou melhor, os acontecimentos extraordinários emanados

pelo moço para os demais da região são narrados:

E, todavia, de seu zelo, mais para diante, Hilário Cordeiro iria ter

melhor razão, eis que tudo lhe passou a dar sorte, quer na sa de e paz,

124

ROSA, Op. cit., pp. 150-151

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196

em sua casa, seja no assaz prosperar dos negócios, cabedais e haveres.

E não que o moço lhe facultasse ajuda, na sujeição de serviço ou no

vagar a algum ofício, em que, de feito, nem pudesse das descargo de

si com as mãos não calejadas, alvas e finas, de homem-de-palácio.

Ele andava muito na lua, passeava por todo o lugar e alhonde,

praticando aquela liberdade vaporosa e o espírito de solidão; parecesse

alquebrado de um feitiço, segundo os dizeres do povo. Não

embargando que grandes partes tivesse, para o que fosse de funções de

engenhos, ferramentas e máquinas, ao que se prestava, fazendo muitas

invenções e desembaraçando as ocasiões, ladino, cuidoso e acordado.

De estranha memória, só, pois, a de olhar ele sempre para cima, o

mesmo para o dia que para a noite espiador de estrelas. Que vezes,

porém, mais lhe prouvesse o divertamento de acender fogos, sendo de

reparo o quanto se influiu, pelo São João, nas tantas e tamanhas

fogueiras de festa.

Do que adveio, justo, o caso da moça Viviana, sempre mal contado. O

que foi quando ele apareceu, acompanhado do preto José Kakende, e

deu com a moça, mui bonita, mas que não se divertia ao igual das

outras: e ele se chegou muito a ela, gentil e espantoso, lhe pôs e palma

da mão no seio, delicadamente. Ora, assim a moça Viviana a mais

formosa, tinha-se para admirar que a beleza do feitio lhe não servisse

para transformar, no interior, a própria e vagarosa tristeza. Mas,

Duarte Dias, o pai, e que a isso assistia, prorrompeu em pleiteantes

brados de: “Tem que casar! Agora, tem de casar!” com inst ncia.

Afirmava que o moço era homem, e um, e ainda mancebo, e lhe

infamara a filha, devendo-lhe de a tomar por consorte e arcar com o

estado de casado. O moço ouviu, de boa concórdia, e nem por isso.

Mas a grita de Duarte Dias só teve termo, quando o padre Bayão, e

outros dos mais velhos, lhe rejeitaram tão descabidas fúrias e

insensatez. Também a moça Viviana, com radiosos sorrisos, o

serenava. Ela, que, a partir dessa hora, despertou em si um enfim de

alegria, para todo o restante de sua vida, donde um dom. Apenas que,

Duarte Dias o que não se entende ia produzir ainda outros lances de

estupefacção, eis-aqui.

De tal guisa que, para o alvoroço de todos, no dia da missa da

Dedicação de Nossa Senhora das Neves e vigília da Transfiguração, 5

de agosto, ele veio à Fazenda do Casco, requerendo falar com Hilário

Cordeiro. Também o moço lá estava. Outrovisto, e nunca desairoso a

gente espiava, e pensava num logo luar. Então, Duarte Dias declarou:

suplicava deixassem-no levar o moço, para sua casa. Que queria

assim, e necessitava, muito, não por ambicioneiro ou impostor, nem

por interesses somenos, mas por a ele ter cobrado, com contrições de

escrúpulo, a fortíssima estima de afeição! Dizia, e desgovernava as

palavras, alterado, enquanto que dos olhos lhe corriam lágrimas. Ora,

não se compreendendo o descabelo de passo tão contrariado: o de um

homem que, para manifestar o amor, ainda não dispunha mais que dos

arrebatados meios e modos de violência. Mas, o moço, claro como o

olho do sol, o pegou da mão, e, com o preto José Kakende, o foi

conduzindo pelos campos depois se soube que a terras dele mesmo,

Duarte, aonde à tapera de uma olaria. E lá indicou que mandasse

cavar: com o que se achou, ali, uma grupiara de diamantes; ou um

panelão de dinheiro, segundo diversa tradição. Por arte de qual

prodígio, Duarte Dias pensou que ia virar riquíssimo, e mudado de

fato esteve, da data por diante, em homem sucinto, virtuoso e

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197

bondoso, suspendentemente, consoante o asseverar sobremaravilhado

dos coevos.125

Os três parágrafos narram prodígios distintos emanados do moço com alvura,

pertencentes ao desmedido real. Ele fez prosperar Hilário Cordeiro, Viviana e Duarte

Dias. Não se trata somente da prosperidade financeira, mas a fortuna da existência,

principalmente, no caso da Viviane e de eu pai. Ambos eram pessoas enfadadas e

tristes, restringidas às tristezas e consternações da vida. O moço doa-lhes alegria e

compaixão. Viviane torna-se uma moça de sorrisos radiantes e Duarte Dias torna-se um

homem bondoso e cheio de virtudes. Hilário Cordeiro viu a prosperidade da sua casa.

Malgrado as vontades dos sertanejos, o moço partiu, repentinamente, do mesmo modo,

que havia chegado a Serro Frio. Mais antes de sua partida, pôde incandescer a vida dos

sertanejos da região, doando-lhes luminosidade para as vivificações e as experiências do

sertão, do real, e de si próprio, retirando-lhes as amarras amargas e sofríveis,

proporcionando o advento do novo e do inaugural.

O sertão é inaugural. É o real vigorando-se. Viger no real é lançar-se à abertura

do sertão movente. É o que diz a narrativa “A benfazeja”. Nela, Mula-Marmela matou

seu esposo, que era temido e, após conviver somente com o filho dele, Retrupé, que

ficara cego dos dois olhos, mata-o um dia após ele tentar matá-la. Mula-Marmela,

considerada fora dos padrões predominantes do belo semblante e da beleza descomunal,

peregrina em sua vida dejeta. A estória inicia-se ao deferir-lhe ponderações:

Sei que não atentaram na mulher; nem fosse possível. Vive-se

perto demais, num lugarejo, às sombras frouxas, a gente se afaz ao

devagar das pessoas. A gente não revê os que não valem a pena.

Acham ainda que não valia a pena? Se, pois, se. No que nem

pensaram; e não se indagou, a muita coisa. Para quê? A mulher

malandraja, a malacafar, suja de si, misericordiada, tão em velha e

feia, feita tonta, no crime não arrependida e guia de um cego. Vocês

125

ROSA, Op. cit., pp. 153-155

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todos nunca suspeitaram que ela pudesse arcar-se no mais fechado

extremo, nos domínios do demasiado?

Soubessem-lhe ao menos o nome. Não; pergunto, e ninguém o intéira.

Chamavam-na de a “Mula-Marmela”, somente, a abominada. A que

tinha dores nas cadeiras: andava meio se agachando; com os joelhos

para diante. Vivesse embrenhada, mesmo quando ao claro, na rua.

Qualquer ponto em que passasse, parecia apertado. Viam-lhe vocês a

mesmez furibunda de magra, de esticado esqueleto, e o se sumir de

sanguexuga, fugidos os olhos, lobunos cabelos, a cara ; as sombras

carecem de qualquer conta ou relevo. Sabe-se se assustava-os seu ser:

as fauces de jejuadora, os modos, contidos, de ensalmeira? Às vezes,

tinha o esqueleto trêmulo. Apanhem-lhe o andar em ponta, em sestro

de égua solitária; e a selvagem compostura. Seja-se exato.126

Paragrafando Mula-Marmela, depreende-se que a mulher vige-se pelo

antagônico das formosas mulheres roseanas. Há uma coisificação da mulher de tão

modo que não a conhecem pelo nome próprio. É narrada com a incompletude

plenamente obscura concernente a ela. Deambula pelas sombras, sombria, margeada

pela escuridão da existência, vivificada pelo tortuoso. Constrói-se uma mulher turva e

esquelética, atrofiada. Tampouco as atitudes e as ações feminizam Mula-Marmela,

levando-a a parecer mais um animal, devido a sua postura animalesca, do que uma

senhora com fineza no agir. Desprovida de beleza complacente e de atitudes

magnânimas, sua existência se dá fora da margem da escala estipulada pelas

adjetivações positivas. Isoladamente, desbrava o sertão que se abre cotidianamente a

ela, sem esperar por favores, retribuições ou compaixões. E, sobre o plano de seu agir,

Mula-Marmela é apresentada:

E nem desconfiavam, hem, de que poderiam estar em tudo e por

tudo enganados? Não diziam, também, que ela ocultava dinheiro,

rapinicado às tantas esmolas que o cego costumava arrecadar? Rica,

outromodo, sim, pelo que do destino, o terrível. Nem fosse reles

feiosa, isto vocês poderiam notar, se capazes de desencobrir-lhe as

feições, de sob o sórdido desarrumo, do sarro e crasso; e desfixar-lhe

os rugamentos, que não de idade, senão de crispa expressão.

Lembrem-se bem, façam um esforço. Compesem-lhe as palavras

parcas, os gestos, uns atos, e tereis que ela se desvendava antes ladina,

atilada em exacerbo. Seu antigo crime? Mas sempre escutei que o

126

ROSA, Op. cit., p. 176-177

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assassinado por ela era um hediondo, o cão de homem, calamidade

horribilíssima, perigo e castigo para os habitantes deste lugar. Do que

ouvi, a vocês mesmo, entendo que, por aquilo, todos lhe estariam em

grande dívida, se bem que de tanto não tomando tento, nem essa

gratidão externassem. Tudo se compensa. Por que, então, invocar,

contra as mãos de alguém, as sombras de outrora coisas?127

O agir da personagem ocorre pela via tortuosa do sair dos limites, das maneiras

limítrofes da existência. Mula-Marmela vai além do tangível e do retilíneo, instaurando-

se no real, eclodindo-se em possibilidades múltiplas que se vigem fora do plausível,

dotando-se do produzir-se a si e não se dar por simulacros nem por representações. O

tecido formado apresenta vazios que não são preenchidos pelo diálogo com o outro, ou

melhor, pelo ver do outro.

Há uma desarmonia que impede o fomento do diálogo e o entrecruzar da

experiência. A narrativa se tece pelo narrar que diz, experiência e mostra. O que as

demais personagens não podem ver é narrado pelas estórias rosianas. Se o caos Mula-

Marmela se dá solitariamente no enredo, a estória compartilha-o no experienciar da

narrativa. É a doação do real, em linguagem. A reunião cósmica é possibilidade de

junção aos caos, não de modo antagônico, mas como diálogo instaurador do sertão e do

real. As palavras, os gestos e os atos de Mula-Marmela poderiam restringi-la em um

molde, se não fosse a construção cósmica de sua existência, sinalizando a sua

humanidade na narrativa. O ser humano é lançado para além de si, voltando-se para si,

assim como a existência da flor é ser flor.

A relação estabelecida entre Retrupé e Mula-Marmela apresenta nuances que são

ditas pelo narrar, conforme diz a estória:

Ao Retrupé, com seu encanzinar-se, blasfemífero, e prepotente

esmolar, ninguém demorava para dar dinheiro, comida, o que ele

quisesse, o pão-por-deus. “Ele é um tranca!” o cínico e canalha,

127

ROSA, Op. cit., p. 177

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vilão. Mas só, às vezes, alguém, depois e longe, se desabafava. O

homem maligno, com cara de matador de gente. Sobre os trapos,

trazia um facão, pendente. Estendia, imperioso, sua mão de tamanho.

E gritava, com sua voz de cão, superlativa. Se alguém falasse, ou

risse, ele parava, esperava o silêncio. Escutava muito, ao redor de si.

Mas nunca ouvia tudo; não sabia nem podia.

Tinha medo, também; disso vocês nunca desconfiaram. Temia-

a, a ela, à mulher que o guiava. A Mula-Marmela chamava-o, com

simples sílaba, entre dentes, quase esguinchado um “ei ou “h e o

Retrupé se movia de lá, agora apalpante, pisando com ajuda;

balançava o facão, a bainha presa a um barbante, na cintura. Sei que

ele, leve, breve, se sacudira. Desciam a rua, dobraram o beco,

acompanharam-se por lá, os dois, em sobrossoso séqüito. Rezam-se

ódio. Lé e cré, pelas ora voltas, que qual, que tal, loba e cão. Como era

que ficavam nesse acordo de incomunhão, malquerentes, parando

entre eles um frio figadal? O cego Retrupé era filho do finado marido

dela, o “Mumbungo , que a Mula-Marmela assassinara.128

O cego Retrupé deambula pelos meios, pelas metades e pelas margens. Sua

alcunha é conseguir esmolas, ajudado por Mula-Marmela, estabelecendo-se assim uma

relação de dependência. Retrupé necessita ser ajudado por Mula-Marmela, tornando-se

incompleto. O diálogo desigual coloca as duas personagens em diferentes instâncias: o

dependente e a ajudadora. Por ajudar o cego, Mula-Marmela apresenta-se no real pela

experiência, que é ilimitada, já que está para além das margens, ou seja, além daquilo

que é posto. A estória diz a personagem em vivificação reveladora, desvelada e

instauradora.

Enquanto Retrupé apresenta-se incompleto, Mula-Marmela é completude plena.

Não por vigorar consumadamente, mas, sim, por viger no Real no embate caótico e

cósmico do experienciar. Temida por uns, e venerada pela narrativa. A personagem

transita pelo real, construindo-se, descontruindo-se e sendo construída pelo enredo (pelo

ver das demais personagens) e pela estória (pelo dizer da narrativa). Mula-Marmela é

pluralidade existencial, sem firmar-se em um polo experienciável limitador, transitando

pelo vigorar que une e dialoga e pelo vigorar que separa e incide na unidade. Retrupé

anda no limite, toca aquilo que é tangível e corriqueiro, fala o que já conhece e lhe é

128

ROSA, Op. cit., p. 178

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próximo. Em contrapartida, Mula-Marmela se dá no sertão na abertura do real, na

dispersão e no ajuntamento sertanejo. Assim, esta personagem cerceia a outra, segundo

a narrativa:

O cego Retrupé é grande, forte. Surge, de lá, trazido pela Mula-

Marmela; agora se conduz firme, não vacila. Dizem que bebe? Vejam

vocês mesmo, porém, como essas petas escondem a coisa singular.

Todos sabem que ele não bebia, nunca, porque a Mula-Marmela não

deixava. Nem carecia de falar-lhe a paz da proibição: dava-lhe,

apenas, em silêncio, terrível. E ele cumpria, tinha a marca da coleira.

Curtia afogados desejos, indecifrava-os. Aspirava, à porta dos

botequins, febril, o espírito das cachaças. Segui, enfim, perfidiado e

remisso, mal-agradecido, raivoso, os dentes do rato rangiam-no.

Porque, ele mesmo, não sabendo que não havia de beber, o que não

fosse ah, se! o sangue das pessoas. Porque sua sede e embriaguez

eram fatais, medonhas outras, para lá do ponto. Seria ele, realmente

uma alma de Deus, hão certeza? Ah, nem sabem. Podia também ser de

outra essência a mandada, manchada, malfadada. Dizem-se, estórias.

Assim mesmo, no tredo estado em que tacteia, privo, mal-existente, o

que é, cabidamente, é o filho tal-pai-tal; o “cão”, também na prática

verdade.129

Por ser limitado, Retrupé precisa da Mula-Marmela para ir além. Sua cegueira

limita-o, também. No entanto, a limitação visceral se dá com a presença vivificante de

Mula-Marmela que, além de auxiliá-lo, cuida-lhe para que não sucumba de maneira

desgraçada. Retrupé atende aos desígnios da mulher e não bebe bebida alcóolica, apesar

do desejo inerente. Tenta-se podar o desvario destrutivo, revelando não só o poderio

exercido por Mula-Marmela, mas, sim, a argúcia dela em amenizar a força tempestiva,

desumana e destrutiva dele. A humanidade de Mula-Marmela é narrada na estória, de

modo que o seu agir é plena experiência harmonizadora, conforme mostra o parágrafo a

seguir:

E outra vez vejo que vêm, pela indiferente rua, e passam, em

esmolambos, os dois, tão fora da vida exemplar de todos, dos que são

os moradores deste sereno nosso lugar. O cego Retrupé avança,

fingindo-se de seguro, não dá a Mula-Marmela a ponta do bordão para

129

ROSA, Op. cit., p. 179

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segurar, ela o guia apenas com sua dianteira presença, ele segue- a

pelo jeito, pelo se deslocar do ar como em transvôo se vão os

pássaros; ou o que ele percebe à sua frente é a essência vivaz da

mulher, sua sombra-da-alma, fareja-lhe o odor, o lobum? Notem que o

cego Retrupé mantém sempre muito levantada a cabeça, por

inexplicado orgulho: que ele provém de um reino de orgulho, sua

maligna índole, o poder de mandar, que estarrece. E ele traz um

chapéu chato, nem branco nem preto. Viram como esse chapéu lhe cai

muitas vezes da cabeça, principalmente quando ele mais se exalta,

gestilongado abarbarado e maldoso, reclamando com urgência suas

esmolas do povo. Mas, notaram como é que a Mula-Marmela lhe

apanha do chão o chapéu, e procura limpá-lo com seus dedos, antes de

lho entregar, o chapéu que ele mesmo nunca tira, por não respeitar

ninguém? Sei que vocês não se interessam nulo por ela, não reparam

como essa mulher anda, e sente, e vive e faz. Repararam como olha

para as casas com olhos simples, livres do amaldiçoamento de

pedidor? E não põe, no olhas as crianças, o soturno de cativeiro que

destinaria aos adultos. Ela olha para tudo com singeleza de admiração.

Mas vocês não podem gostar dela, nem sequer sua proximidade

tolerem, porque não sabem que uma sina forçosa demais apartou-a de

todos, soltou-a. Apara, em seu de-cor de dever, o ódio que deveria ir

só para os dois homens. Dizem-na maldita: será; e? Porém, isto, nunca

mais repitam, não me digam: do lobo, a pele; e olhe lá! Há sobrepesos,

que se levam, outros, e são a vida.130

Mula-Marmela vai além de qualquer parâmetro pré-estabelecido. Sua

humanidade ultrapassa qualquer ideia preconcebida colocada pelo enredo e caminha no

experienciável do narrar no sertão, no real. Segundo Emmanuel Carneiro Leão, “a

originalidade do ser humano é aquela em que o que ele é não é tudo que ele pode. Para

ser um ser humano, ele tem de poder ser mais do que o que ele é”.131

Desse modo,

compreende-se que Mula-Marmela vai além daquilo que lhe é atribuído pelas

personagens de acordo com o enredo. Na estória, é narrada a originalidade presente do

ser humano, pois a personagem vai além das instâncias estabelecidas pelo enredo. A

visão mostrada pela narrativa é abertura da linguagem dialogando com o humano aberto

ao real. Mula-Marmela não é uma mera acompanhante de cegos. Ela vivifica o sertão,

sendo mais do que poderia ser pelos olhares do enredo.

130

ROSA, Op. cit., pp. 181-182 131

Leão: Humano, 2. . In: CASTRO, Manuel Antônio de. Dicionário de Poética e Pensamento. Internet.

Disponível em: http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Humano

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O fim da relação entre enteado e madrasta acaba com a morte de Retrupé,

quando este já estava avançado em idade. É narrado o seguinte:

Sim, os dois, ficaram, até ao anoitecer, e pela noite entrada,

naquela solidão próxima, numa beira de cerca. Alguém os acudiu?

Diz-se que ele padecia uma dor terrivelmente, de demasiado castigo, e

uma sufocação medonha de ar, conforme nem por uma esperança

ainda nem não agoniava. Só estrebuchava. Não viram, na madrugada,

quando ele lançou o último mau suspiro. Sim, mas o que vocês crêem

saber, isto seriamente afirmam: que ela, a Mula-Marmela, no decorrer

das trevas, foi quem esganou estrangulamente o pobre-diabo, que

parou de sofrer, pelos pescoços; no cujo, no corpo defunto, após, se

viram marcas de suas unhas e dedos, craváveis. Só não a acusaram e

prenderam, porque maior era o alívio de a ver partir, para nunca, daí

que, silenciosa toda, como era sempre, no cemitério, acompanhou o

cego Retrupé às consolações. Vocês, distantemente, ainda a

odiavam?132

Mula-Marmela acompanhou Retrupé no último caminhar do corpo dele até o

cemitério. Como fiel acompanhante, acolheu o enteado até os últimos momentos. Foi

mais do que poderia ser para ele do que os personagens conterrâneos poderiam

acreditar. O enredo está aquém do Real que eclode na narrativa. Aloucada Mula-

Marmela deambula fora dos parâmetros imediatistas, conclusivos e fechados. A sua

existência é para além dos limites, libertando-se das amarras da realização. A frase da

estória “Se ninguém entende ninguém; e ninguém entenderá nada, jamais; esta é a

prática verdade.” confirma o deambular do humano no sertão e no Real. A err ncia, a

procura, o vigorar e a cura de existir. Entende-se que resta para todos a saída do limiar,

plenificando o humano de cada um.

132

ROSA, Op. cit., p. 186

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CAPÍTULO 6:

O VIGORAR EXTRAORDINÁRIO E A MORTE

Para além de qualquer limite, o extraordinário vigora no seu agir ilimitado e

incessante. Sem paradigmas, atribuições, formas, conceitos, conteúdos, limites, margens

e respostas prontas, ele vige em fazer-se sempre começo e fim, antes e depois, primeiro

e último, sem ater-se à dicotomia dos opostos, mas, sim, dizendo-se no agir pleno que

plenifica o mundo e as palavras. O que acontece está longe de ser resumido, relacionado

e realizado por proposições, pressuposições, idealizações, imposições ou reações. Trata-

se do vigorar extraordinário operador que se mundifica e se mostra a partir do silêncio e

do dizer na linguagem, na narrativa e na estória.

A lógica não cerceia o pulsar, nem pode cercear, e o produzir do extraordinário.

Não há lógica, não há ordem e nem sequência em seu agir. Ao afastar-se do viés lógico,

o extraordinário não vigora por explicação ou ponderações em torno de uma razão, de

um tema ou de um conceito. Seu vigor insurge do agir desmedido que se plenifica para

além de qualquer mensuração ou consideração. De fato, o vigorar extraordinário não

explica o seu agir nem serve como parâmetros dos fatos, mas, sim, vigora

independentemente do dizer ser auscultado, já que é incessante e o não dito insurge

nele, de modo que o não dito perdura e culmina plenamente.

Não se trata da consumação de um evento, de um desejo, de uma orquestração.

Trata-se do advento extraordinário presentificar-se sem apresentar um motivo, uma

finalidade e um objetivo. Não cabe a ninguém e a nenhuma personagem escolher sobre

a presentificação, a mundividência, a instauração do evento extraordinário, ao longo da

vida ou ao longo da narrativa. Como a palavra comporta o próprio sentido, o

extraordinário é vigor longe de uma ordem estabelecida e de uma vontade outorgada.

Resta vivenciar aquilo que se põe sem procurar alguma explicação ou causa.

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205

O extraordinário nas estórias rosianas é amplitude. A narrativa não se encerra no

enredo, mas se abre ao extraordinário que insurge nas estórias, possibilitando o advento

da clareira e escamoteando o trivial. O que se abre se mostra na narrativa e em cada

estória como possibilidade de ser e não como explicação ou consequência. É o advento

singular que não encontra parâmetros nem medidas, muito menos meios, para que

ocorra ou para que vigore. O aflorar do extraordinário é o florescer imutável, incessante

e inominável. Ele vigora sem estabelecer relações de qualquer natureza e sem a

existência de consentimentos e de asserções.

Em seu vigorar, o extraordinário não necessita efetivamente de ser visível aos

olhos, nem coercitivamente de indicar um significado. Ele se dá independentemente

daquilo que as personagens podem ver, perceber e compreender e sem servir como uma

admoestação ou como um preceito a ser seguido. Desse modo, o extraordinário não

insurge como um objetivo que possui a advertência em sua embalagem ou como um

produto pronto a ser usado. É insubordinável e tampouco é aceitável ou reprovável, já

que não depende de vontades, apreciações ou transparências quanto à sua instauração na

narrativa e, assim, nas estórias.

Em seu vigorar, nem sempre o extraordinário é visível aos olhos nus, ou melhor,

nem sempre ele tende a desocultar-se, a revelar-se, a desvelar-se e a desencobrir-se.

Heráclito diz que “A harmonia invisível é mais forte do que a visível.”133

De fato, o

extraordinário insurge com a força maior no invisível quando não há nomes, não há

conceitos e explicações para si. É quando qualquer força do visível depara-se com um

espelho ou um muro a ser desbravado para que a imagem ou o outro lado da parede seja

visto. A harmonia invisível encadeia-se sem que qualquer um possa vê-la em seu

florescer. No entanto, o extraordinário também vigora em cada ser vivo e também em

133

HERÁCLITO, Op. cit., p. 73

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206

cada uma das personagens rosianas, de modo que há quem ausculte e veja o que o

extraordinário diz e o que o extraordinário mostra, ou seja, há quem esteja em harmonia

mundificadora, mas, nada, nem ninguém, tem poder sobre o aflorar e florescer do

extraordinário. Exercer ou não uma ação é uma das possibilidades inerentes ao plano do

real e não está especificamente ligado ao vigorar do extraordinário.

O eclodir extraordinário se dá por sua mundificação e não por ações, ou fatos,

que acontecem e são desencadeados ou se desencadeiam em um processo. Ele não

possui por exegese começo, meio ou fim, nem pode ser estruturado pelo binômio causa

e consequência, tampouco pode ser depreendido por uma sequência. Ele se mundifica

em plenitude. Presentifica-se plenamente, seja pelo vigorar do visível, seja pelo pulsar

do invisível. Mundifica-se pelo eclodir pleno, sem interesses e sem porquês, não

ocorrendo através de atribuições de significados nem de conceituações explicativas

pontuais ou reticentes. O eclodir extraordinário apresenta-se no pulsar do real, tão como

as estórias rosianas apresentam-se no pulsar do narrar, no eclodir das estórias.

A morte é o vigor pleno. É o acontecimento do pulsar da vida. Não se trata de

prerrogativa negativa. A morte não tem duração. Tampouco ela possui um início, um

meio e um fim. Não se apresenta temporalmente em um passado, um presente e um

futuro. Não se coloca através de um espaço, mesmo que a matéria desfalecida indique o

corpo caveiroso por vezes remetido ao símbolo da morte. Ela deambula no ilimitado, no

desmedido da realidade, onde ninguém pode chegar com os próprios pés e voltar pelo

mesmo caminho, pela mesma passagem, pela mesma margem, pelas mesmas palavras

ou pelos mesmos sentidos.

O ir e o vir, o partir e o chegar tornam-se verbos da dúvida, representados de

modo incontinente para o agir da morte, já que não podem transpor o percurso pelo qual

a mundividência da morte se dá. Nada e nem ninguém pode mediar a morte em toda

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207

sua plenitude e amplitude. Nem para além da vida, nem de modo aquém da vida, ela

eclode. A chegada hora não pode ser contabilizada milimetricamente nem apreendida

por milésimos. É o acontecer que não cria pontes, não cria relações, não cria sentidos de

nenhuma espécie. A morte é o vigorar pleno. Mundifica-se em amplitude e não deixa

rastros ou saídas. Não é o labirinto, fastidioso e exasperante, onde a ação de encontrar a

saída é a contrária à ação de morrer, mas é o desmedido, pois não pode ser apreendido

por nada e ninguém pelo viés racional e lógico, pois não é correspondente à forma e ao

conteúdo.

O fragmento 27 de Heráclito, “Na morte advém aos homens o que não esperam

nem imaginam.”134

, eclode o desmedido da existência humana com a morte. A abertura

causada pela questão da morte não se dá pelas explicações, pelas instruções, pelas

atribuições e pelas concessões. Ela age e ninguém pode detê-la. Tampouco há quem

possa desvencilhar-se dela e renegá-la perpetuamente. Do mesmo modo, as personagens

rosianas também apresentam a morte como questão na narrativa. A estória rosiana lança

as personagens na manifestação humana. E a consumação também se dá com a morte de

personagens doada pelo narrar com o dizer inaugural fomentado pela linguagem da

narrativa.

Por mais que se tente delimitar a linguagem, ela faz-se presente como instância

inaugural. E nenhum sistema dará conta daquilo que a linguagem é, linguagem. Assim,

o tempo cronológico e tripartido não dá conta da instauração da linguagem, da phisis,

do real, pois não se trata de sucessão temporal ou espacial, e sim, do tempo do ser.

A linguagem é o mostrar que diz. Nas narrativas rosianas, a linguagem diz e diz-

se. Não se pode resumi-la ao código somente. A linguagem é doação da physis. O sertão

é a physis. O sertão rosiano é. Assim como, cada conto de Primeiras estórias é, ser.

134

ROSA, Op. cit., p. 65

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208

A ética é morada do ser. Muitas vezes relacionada ao comportamento e ao modo,

a ética é limitada aos bons modos, ou exemplo a ser seguido. No entanto, a ética é a

vigência do ser na physis. A ética, portanto, não se apresenta exteriormente, ela é o

próprio ser em doação da physis.

O amor é procura, é cura. Amar é busca pelo/do ser. E no real, o amor se

plenifica quando, com as diferenças, há diálogo. O amar não é sinônimo de anular. O

silêncio que diz e silencia. O amor é caminho para ser.

O real está para além do lugar comum, pois este é fatual, e o real não. O real não

pode ser representado, pois, ele é o agir incessante, que vela e desvela. E a loucura,

como real, não se apresenta fora do ser. Ela é doação de real e é linguagem.

A obra Primeiras estórias apresenta o narrar como instância inaugural e

instauradora. Cada conto apresenta-se com a grandiosidade da linguagem. Adentrar-se

nas veredas do livro é ser.

A relação dialógica instauradora não se dá somente entre os sertanejos, mas,

também, entre os sertanejos e os animais, bem como, a morte de um animal pode ser tão

sentida na abertura do mundo, do sertão, quanto é sentida a morte de um ente querido

por uma pessoa. A presentificação do peru, vivo, mostrando-se no terreno da casa para

onde o Menino havia viajado com os tios, no conto “As margens da Alegria”, de

maneira esplendorosa, traz a insígnia da beleza da vida, como o demonstra o seguinte

parágrafo do texto:

Senhor! Quando avistou o peru, no centro do terreiro, entre a

casa e as árvores da mata. O peru, imperial, dava-lhe as costas, para

receber sua admiração. Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o

rapar das asas no chão brusco, rijo, se proclamara. Grugulejou,

sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras; e a cabeça possuía

laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e, ele, completo,

torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes

metais em azul-e-preto o peru para sempre. elo, belo! Tinha

qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. Sua ríspida

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grandeza tonitruante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os olhos, era de

se tanger trombeta. Colérico, encachiado, andando, gruziou outro

gluglo. O Menino riu, com todo o coraã. Mas só bis-viu. Já o

chamavam, para passeio.135

O surgimento da ave frente à criança é o culminar do esplêndido, do

extraordinário que é viver. O peru se apresenta em sua inaugurabilidade, em sua

suntuosidade ao mostrar-se na physis, e, como o operar da própria physis, no terreno

fora da casa. A vida é esplendor sem medida, assim como, a morte também é sem

quaisquer margens. A beleza da physis não se restringe ao sertão, mas ao amplo do real,

ao operar incessante que move a vida e a dota de plenitude. O peru faz parte da physis,

bem como, o nada, a morte que é tudo.

Após o grande encontro entre o peru e o menino, o menino presencia a florescer

da physis, quando vai passear de jipe com os tios. Inaugura nele a proeminência da

natureza, operando em seu agir incessante nos animais, vegetais, flores e árvores, que de

estranhos se tornam unidade juntamente com o menino, em profusão de cores múltiplas

e formas bastante variadas. É vista a extraordinária abundância da natureza, da physis

que se faz presente e ausente ante os olhos humanos. É o que demonstra o parágrafo a

seguir:

Iam de jeep, iam aonde ia ser um sítio do Ipê. O Menino

repetia-se em íntimo o nome de cada coisa. A poeira, alvissareira. A

malva-do-campo, os lentiscos. O velame-branco, de pelúcia. A cobra-

verde, atravessando a estrada. A arnica: em candelabros pálidos. A

aparição angélica dos papagaios. As pitangas e seu pingar. O veado

campeiro: o rabo branco. As flores em pompa arroxeadas da canela-

de-ema. O que o Tio falava: que ali havia “imundície de perdizes”. A

tropa de seriemas, além, fugindo, em fila, índio-a-índio. O par de

garças. Essa paisagem e de muita largura, que o grande sol alagava. O

buriti, á beira do Corguinho, onde, por um momento atolaram. Todas

as coisas, surgidas do opaco. Sustentava-se delas sua incessante

alegria, sob espécie sonhosa, bebida, em novos aumentos de amor. E

em sua memória ficavam, no perfeito puro, castelos já armados. Tudo,

135

ROSA, Op. cit., p. 51

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para a seu tempo ser dadamente descoberto, fizera-se primeiro

estranho e desconhecido: Ele estava nos ares.

Pensava no peru, quando voltavam. Só um pouco, para não

gastar fora de hora o quente daquela lembrança, do mais importante,

que estava guardado para ele, no terreirinho das árvores bravas. Só

pudera tê-lo um instante, ligeiro, grande, demoroso. Haveria um,

assim, em cada casa, e de pessoa?136

O menino viu a natureza, a physis, em toda a sua grandiosidade, que se mostrou

à sua frente, ou melhor, sempre esteve ali, mas ele a viu em toda sua plenitude e oferta,

de modo inaugural, original e singular. Alegre e com “novos aumentos de amor‟, abriu-

se à natureza que floresceu, pela primeira vez, plenamente, e encheu os olhos e o

coração do menino. No entanto, a lembrança fez o menino sentir falta de algo: da

presença do peru à sua frente. Ele tem que lidar com a falta que o peru lhe faz, ou, ao

menos, com o que lhe desperta a presença extraordinária da ave.

Contudo, assim como, a lembrança não pede licença para vir à tona, a morte

também não pede licença para viger. De ter lembrança e sentir a falta da ave, o menino

fica na expectativa de vê-la mais uma vez a fim de vivenciar mais uma vez um

momento encantado, no qual, o peru se apresenta em toda a sua plenitude e doação da

physis. O peru não só faz parte da natureza como é a própria natureza em doação na

unidade plena e incessante. O que o menino mais esperava era rever a ave ante sua

presentificação. No entanto, entre querer vê-la e estar bem próxima dela há uma ponte

que foi quebrada, segundo narra a estória do seguinte modo:

Tinham fome, servido o almoço, tomava-se cerveja. O Tio, a

Tia, os engenheiros. Da sala, não se escutava o galhardo ralhar dele,

seu grugulejo? Esta grande cidade ia ser a mais levantada no mundo.

Ele abria leque, impante, explodido, se enfunava... Mal comeu dos

doces, a marmelada, da terra, que se cortava bonita, o perfume em

açúcar e carne de flor. Saiu, sôfrego de o rever.

Não viu: imediatamente. A mata é que era tão feia de altura. E

onde? Só umas penas, restos no chão. “Ué, se matou. Amanh n o

136

ROSA, Op. cit., pp. 51-52

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211

é o dia-de-anos do doutor? Tudo perdia a eternidade e a certeza;

num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam.

Como podiam? Por que tão de repente? Soubesse que ia acontecer

assim, ao menos teria olhado mais o peru aquele. O peru seu

desaparecer no espaço. Só no grão nulo de um minuto, o Menino

recebia em si um miligrama da morte. Já o buscavam: “Vamos

aonde a grande cidade vai ser, o lago... 137

A ausência do peru lhe infunde tristeza. O motivo para que houvesse a morte da

ave é a comemoração do aniversário do doutor. O que o menino não entende é como se

festeja a vida tendo que sacrificar a ave, matando-a, já que preenchia a vida e o mundo

de beleza e de plenitude para quem a visse em seu grugulejar. A oposição entre a vida e

a morte é posta em questão, ocorrendo uma cisão entre a vida comemorada e a morte

desprezada. Do peru, sobraram algumas penas e o seu vazio no terreno além da casa dos

tios. O menino já não pode ver mais o peru exibindo-se, do mesmo modo que a physis

se exibe para quem pode auscultá-la e vê-la. Esse acontecimento nunca mais será

possível. A morte da ave mostra o fim da criatura, apresenta uma ruptura, mas, não,

pode ser entendida como o fim da experiência e da vivência pelas quais passou o

menino.

A vida de Tio Man‟Antônio também se deu no extraordinário no conto “ Nada e

a nossa condição”. O enredo se apresenta, resumidamente, na estória, com o fato de que

o fazendeiro Tio Man‟Antônio morre. No entanto, a sua morte tornou-o pleno, já que ao

longo de seu percurso, procurou por viver no extraordinário do sertão, com o

ensinamento de “faz de conta” para lidar com as intempéries, os descalabros e os

infortúnios que se dão na vida. Logo, no início do conto, é indicada a personagem que

vigora no desmedido do sertão, seus trejeitos, bem como, a sua morada e sua relação

137

ROSA, Op. cit., pp. 51-52

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com seus familiares, antes dos eventos posteriormente narrados, de acordo com a

seguinte narração:

Na minha família, em minha terra, ninguém conheceu uma vez

um homem, de mais excelência que presença, que podia ter sido o

velho rei ou o príncipe mais moço, nas futuras estórias de fadas. Era

fazendeiro e chamava-se Tio Man‟Antônio.

Sua fazenda, cuja sede distava de qualquer outra talvez mesmo

dez léguas, dobrava-se na montanha, em muito erguido ponto e de

onde o ar num máximo raio se afinava translúcido: ali as manhãs

dando de plano e, de tarde, os tintos roso e rosa no poente não dizendo

de bom nem mau tempo. Essa fazenda, Tio Man‟Antonio tivera-a

menos por herança que por compra; e tão apartado em si se conduzia

ele, individido e esquivo na conversa, que jamais quase a referisse

pelo nome, mas, raro e apenas, sobmaneira: “...Lá em casa... Vou

para casa...”

À que assobrada, alicerçada fundo, de tetos altos, longa, e com

quantos sem uso corredores e quartos, cheirando a fruta, flor, couro,

madeiras, fubá fresco e excremento de vaca fazia face para o norte,

entre o quintal de limoeiros e os currais, que eram um ornato; e, à

frente, escada de pau de quarenta degraus em dois lanços levava ao

espaço da varanda, onde, de um caibro, a um canto, pendia ainda a

corda do sino de outrora comandar os escravos assenzalados.

Tio Man‟Antônio, esperava-o a mulher, Tia Liduína, de árdua e

imemorial cordura, certa para o nunca e sempre. E rodeavam-no as

filhas, singelas, sérias, cuidosas, como supridamente sentiam que o

amavam. Salvaram-no, com invariável sus’Jesus, desde bem antes da

primeira cancela, diversidade de servos, gente indígena, que por

alhures e além estaciavam. Mas, ele, de cada vez. Se curvava, de um

jeito, para entrar, como se a elevada porta fosse acanhada e alheia,

convidadamente, aos bons abrigos. Vivia, feito tenção. Assim, a

respeito dele, muita real coisa ninguém sabia.

Só se de longe. Senão quando vinha, constante, serra acima, a

retornar viagem, galgando caminhos fragosos, à beira de

despenhadeiros e crevassas grotas em tremenda altura. Da varanda,

dado o dia diáfano, já ainda a distância de tanto e légua avistavam-no,

pontuando o claro do ar, em certas voltas de estrada, a aproximar-se e

desaproximar-se, sequer seqüente. Insistindo, à cavalga no burro

forçoso e manso, aos poucos avançava, Tio Man‟Antônio, em rigoroso

traje, ainda que a ordinária roupa de brim de cor de barro, pois que

sempre em grau de reles libré; e sem polainas nem botas, quiçá nem

esporas. A tento, amiúde, distinguir-se-iam mesmo seus omissos

gestos principais: o de, vez em vez, fazer que afastava, devagar, de si,

quaisquer coisas; o de alisar com os dedos a testa, enquanto pensava o

que não pensava, propenso a tudo, afetando um cochilo. Nem olhasse

mais a paisagem?138

138

ROSA, Op. cit., pp. 129-130

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213

A narrativa mostra a morada e ao Tio Man‟Antônio pela singularidade deles. A

personagem é apresentada pelo extraordinário de ser aquilo que ela é, e de habitar a

morada que o torno singular, pela singularidade em que o extraordinário vigora nela, no

agir da physis em relação com o habitar humano. Sua fazenda nunca era enunciada

através de um nome particular pelo Tio Man‟Antônio, mas ele se referia à ela como

casa, dito de modo simples, mas, que comporta toda a poeticidade que a palavra carrega

quando remetida ao habitar do tio no sertão.

Tio Man‟Antônio vigora no florescer do sertão, com toda a sua singularidade de

vivenciar e experienciar o sertão e a si mesmo, como sertanejo que é. Ao vigorar, em

consonância o seu interior e o exterior que o envolve, o tio tem na sua própria casa o elo

entre si e o redor, criando uma unidade plena, que terá culminância com a sua morte,

com o incêndio de sua casa. Sua família, sua mulher Liduína e suas três filhas, lhe apraz

demasiado, e, de modo recíproco, mulher e filhas também o amavam muito, segundo a

narrativa. Mas, sua mulher o deixa, antes dele deixá-la, conforme o que é narrado a

seguir:

Sim, se os cimos onde a montanha abre asas e as infernas grotas, abismáticas, profundíssimas. Tanto contemplava-as, feito se, a

elas, algo, algum modo, de si, votivo, o melhor, ofertasse: esperança e

expiação, sacrifícios, esforços à flor. Seria, por isso, um dia topasse,

ao favorável, pelo tributo gratos, o Rei-dos-Montes ou o Rei-das-

Grotas que de tudo há e tudo a gente encontra? De si para si, quem

sabe, só o que inútil, novo e necessário, segredasse; ele consigo

mesmo muito se calava. Pois era assim que era, se; só estamos

vivendo os futuros antanho. Demais não se ressentisse, também, de

sequidão, solidão, calor ou frio, nem do quotidiano desconforto tirava

queixa. Mas debruçado, leva a cabecear, e com cerrada boca,

expirando ligeiro ofego. Debilitada a vista, nos tempos agora. Por essa

época, porém, sim; por uso. Olhava, com a seu nem ciente amor,

distantemente, fundos e cumes. Seduzível conheceu-se, ele, de encarar

sempre o tudo? Chegava, após íngremes horas e encostas.

Sua mulher, Tia Linduína, então morreu, quase de repente, no

entrecorte de um suspiro sem ai e uma ave-maria interrupta. Tio

ManAntônio, com nenhum titubeio, mandou abrir, par em par, portas

e janelas, a longa, longa casa. Entre que as filhas, orfanadas, se

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214

abraçavam, e revestia-se a amada morta, incôngruo visitou ele, além

ali, um pós um, quarto e quarto, cômodo e cômodo.

(...)

Enfim, tornou para junto delas, de sua Liduína imovelmente

ao século, como a quisessem: num amontôo de flores. Suspensas, as

filhas, de todo a o não entender, mas adivinhar, dele o crédito vago

esperassem, para o comum da dor, qualquer socorro. Ele, por detrás de

si mesmo, pondo-se de parte, em ambíguos e momentos, como se a

vida fosse ocultável; não o conheceriam através de figuras. Sendo que

refez sua maciez; e era uma outra espécie, decorosa, de pessoa, de

olhos empalidecidamente azuis. Mas fino, inenganador, o rosto,

cinzento moreno.139

A mulher do tio morre, mas ele não perde o seu vigorar no extraordinário. A

morte foi sentida e, apesar de não ser consentida, foi aceita, no sentido de que

Man‟Antônio vivenciou a perda abrandando-se com ternura, mas, sentindo na pele a

dor da separação. Seu agir colocava em evidência o intento de prosseguir a habitar a

casa, juntamente com as filhas, apesar da dor da perda. O vigorar de Man‟Antônio se

dava pelo mostrar e ocultar que é próprio da physis. No jogo de ocultamento e mostra de

si, insurgia como um enigma a ser decifrado e que, doando-se no real, mostra-se a si e

se oculta a si também. A fragilidade e a grandiosidade do homem são marcadas no

seguinte parágrafo:

(...) como se fosse ela viva e presente, o dia de Tia Liduína,

propôs uma festa, e para enganar os fados.

Que deu, as filhas concordando. Elas estavam crescidas e

esclarecidas. Vieram moços, primos, esses tinham belas imaginações.

Tio Man‟Antônio recebendo-os e vendo-os, a beneplácito. E as filhas,

formosas, três, cada uma incomparável, noivaram e se casaram, em

breve os desposórios. Vai, foram-se, de lá, para longes diversos, com

os genros de tio Man‟Antônio. Ele, permaneceu, de outroraa hoje-em-

dia, ficou, que. Ali, em sua velha e erma casa, sob azuis, picos

píncaros e desmedidas escarpas, sobre precipícios de paredões,

grotões e alcantis abismosos feita uma mansão suspensa no pérvio.

Três, as filhas, que por amor ele tinha visto renovarem a

descoberta de alegria e alma só de ser, viver e crescer, como, ora, se

139

ROSA, Op. cit., pp. 131-132

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dá formavam sentida falta ao seu querer de ternura experiente? Suas

filhas, que já indivisas partes de uma canção.140

Tio Man‟Antônio também se viu privado da convivência com as filhas quando

se casaram e foram morar em outra paragem mais distante. O convívio familiar diário se

acabou, restando ao tio continuar sua vida experienciando e vivenciando o sertão a seu

modo singular, peculiar e solitário. Com a partida da esposa, tio Man‟Antônio quis

festejá-la em seu aniversário, mesmo sem a presença dela. A festa serviu como um

momento de convívio e fraternidade, no qual, as filhas do tio tiveram contatos com

rapazes, culminando no casamento delas posteriormente.

O fato de Tio Man‟Antônio não ter mais uma cônjuge não o azedou, mas, sim,

com sua doçura peculiar providenciou a festa, casando as três filhas, a partir dos

encontros delas que aconteceram na festa destinada a comemorar o aniversário da mãe

morta, como celebração da vida e da morte. E, ao final do conto, concretiza-se a morte

de tio Man‟Antônio, em uma plenitude culminante, incendiando a si e a casa que foi sua

morada por tantos anos, mostrando que a morte é a condição humana e que o sertanejo é

o nada mais pleno, por ser vigorar e findar na physis incessantemente, como um

círculo, como demonstra a narrativa a seguir:

Tio Man‟Antônio, rumo a tudo, à senha do secreto, se afastava

dele a ele e nele. Nada interrogava mais horizonte e enfim de cume

a cume. Pelo que vivia, tempo aguentado, ele fazia, alta e serena,

fortemente, o não-fazer-nada, acertando-se ao vazio, à

redesimportância; e pensava o que pensava. Se de nunca, se de

quando.

Em meio ao que, àquilo, deu-se. Deu o indesciso passo, o que

não se pode seguir em idéia. Morreu, como s epor um furo de agulha

um fio. Morreu; fez de conta. Neste ponto, acharam-no, na rede, no

quarto menor, sozinho de amigo ou amor transitoriador príncipe e

só, criatura do mundo.

140

ROSA, Op. cit., pp. 135-136

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Ai-de, ao horror de tanto, atontavam-se e calaram-se, todos, no

amedronto de que um homem desses, serafim, no leixamento pudesse

finar-se; e temessem, com sagrado espanto e quase de não de seu

ciente ódio, que, por viade tal falecer, enormidade de males e absurdos

e castigos vingassem a se desencadear, recairiam desabados sobre eles

e seus filhos.

Desde, porém, porque morreu, desviam reverenciá-lo,

honrando-o no usual corpo, humano e hereditário, menos que

trôpego. Acenderam-se em quadro as granes velas, ele num duro terno

de sarja cor de ameixa e em pretas botas achadas, colocado longo na

mesa, na maior sala da Casa, já requiescante. E tinham ainda de

expedir positivos e recados, para que mais gente viesse, toda, parentes

e ausentes, os possíveis, avizinhados e distantes. Chorou-se, também,

na varanda. Tocou-se o sino.

A obrigadação cumprida à justa, à noitinha incendiou-se de

repente a Casa, que desaparecia. Outros, também, à hora, por certo

que lá dentro deveriam de ter estado; mas porém ninguém.

Assim, a vermelha fogueira, tresenorme, que dias iria durar,

mor subia e rodava, no que estalava, spto a septo, coisa a coisa,

alentava, de plena evidência. Suas labaredas a cada usto agitando um

vento, alto sacudindo no ar as poeiras d estrume dos currais, que

também se queimavam, e assim a quadraginta escada, o quente jardim

dos limoeiros. Derramados, em raio de léguas, pelo ar, fogo, faúlhas e

restos, por pirambeiras, gargantas e cavernas, como se,

esplendidissimamente, tão vã e vagalhã, sobre asas, a montanha inteira

ardesse. O que era luzência, a clara, incôngrua claridade, seu tétrico

radiar, o qual traspassava a noite.

Ante e perante, à distância, em roda, mulheres se ajoelhavam, e

homens que pulando gritavam, sebestos, diabruros, aos miasmas,

indivíduos. De cara no chão se prostravam, pedindo algo e nada,

precisados de paz.

Até que, ele, defunto, consumiu-se a cinzas e, por elas, após,

ainda encaminhou-se, senhor, para a terra, gleba tumular, só; como as

consequências de mil atos, continuadamente.

Ele que como que no Destinado se convertera Man‟Antônio,

meu Tio.141

Tio Man‟Antônio não morreu acompanhado. Assim como o percurso da vida é

em solitário, o da morte também é. Por mais que se possa acompanhar alguém ao longo

da vida, não se fica ao lado de ninguém em todos os minutos e em todos os espaços que

são transitados, vivenciados e experienciados. A personagem não quis prender ninguém

à sua morte.

141

ROSA, Op. cit., pp. 139-140

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217

A morte é presença inaugural. Sua inaugurabilidade se dá por ser questão

fundadora, ou seja, a morte se funda na eclosão do real, sem apresentar respostas e

conceituações, mas, vigorando incessantemente e vigorosamente na physis. A morte é

inaugural por tornar-se vigente como questão, como experienciação do real, na qual, a

personagem rosiana se lança, especificamente, no sertão.

Em “O cavalo que bebia cerveja”, um imigrante italiano, Giovânio, vive em sua

fazenda com seus cães e cavalos, um dos quais bebe cerveja. Dois homens da capital e o

subdelegado Priscílio querem saber informações sobre o italiano e, por isso, perguntam

a Reivalino Belarmino, com quem o italiano mantinha contato. Este, apesar de aceitar

dar informações em um primeiro momento, posteriormente desiste. Quando o italiano

falece, deixa sua fazenda para Reivalino Belarmino.

No conto, apresenta-se, no enredo, três mortes, que não possuem uma relação

causal entre si. O narrador e personagem Reivalino Belarmino, chamado, também,

Irivalíni, vivencia as três mortes ao longo da narrativa, não da mesma maneira. No

entanto, ele é tomado por cada morte apresentada, vivenciando-a singularmente, seja

pelos estreitos laços afetivos imbuídos próximos, seja pela simples ocorrência da morte,

ou melhor, pela presentificação da morte ante seus olhos. A personagem vivencia a

morte de personagens distintas de modo diferentes, dentro de sua singularidade.

A primeira morte apresentada no conto é a da mãe de Reivalino Belarmino. O

acometimento da doença é a causa apontada que, de tão grave, não pode ser remediada

com os remédios pagos pelo italiano imigrante e donos de terras, com quem Reivalino

estreitará os laços. É narrada a passagem da morte da mãe do personagem do seguinte

modo:

Isto é, minha mãe ele estimava, tratava com as benevolências.

Comigo, não adiantava não dispunha de minha ira. Nem quando

minha mãe adoeceu, e ele ofertou dinheiro, para os remédios. Aceitei;

quem é que vive de não? Mas não agradeci. Decerto ele tinha remorso,

de ser estrangeiro e rico. E, mesmo, não adiantou, a santa de minha

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mãe se foi para as escuridões, o danado do homem se dando a pagar o

enterro. Depois, indagou se eu queria trabalhar com ele. Sofismei, o

quê. Sabia que sou sem temor, em meus altos, e que enfrento uns e

outros, no lugar a gente pouco me encarava. Só se fosse para ter a

minha proteção, dia e noite, contra issos e vindiços. Tanto, que não me

deu nem meio serviço por cumprir, senão que eu era para burliquear

por lá, contanto que com as armas. Mas, as compras para ele, eu

fazia. “Cerveja, Irivalíni. É para o cavalo...” o que dizia, a sério,

naquela língua de bater ovos. Tomara ele me xingasse! Aquele

homem ainda havia de me ver.142

A mãe de Reivalino é marcada pela benevolência, do mesmo modo que o

italiano é marcado benevolentemente quando paga as despesas dos remédios da senhora

e o custo do enterro dela. Assim, Reivalino não necessita custear a doença e a morte da

sua mãe. A morte faz eclodir a benevolência não somente como sentimento, mas,

também, como agir no mundo. Ser benevolente não requer reconhecimento nem o

recebimento de retribuições. Essa consideração não está relacionada somente à mãe

morta, que já não está mais na realidade e não tem como dirigir-se a ninguém, nem pode

mostrar-se, mas também ao Reivalino que não se sente impelido a agradecer, reconhecer

e retribuir a ajuda tão fortuita do italiano.

A caridade está presente na mãe de Rivalino e está igualmente presente em

Giovânio. A morte faz vigorar a caridade, do corpo doado no real, povoando a physis, o

sertão aberto. Seu Giovânio traz a caridade consigo e age de acordo com a sua

singularidade, aparando o outro, estabelecido em diálogo, já que tanto o italiano quanto

a mãe de Reivalino possuía uma relação de proximidade com o outro. Ser próximo é ser

ouvinte e dizedor.

Neste conto, um imigrante italiano, Giovânio, vive em sua fazenda com seus

cães e cavalos, um dos quais bebe cerveja. Dois homens da capital e o subdelegado

Priscílio querem saber informações sobre o italiano e, por isso, perguntam a Reivalino

142

ROSA, Op. cit., pp. 142-143

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Belarmino, com quem mantinha contato. Este, apesar de aceitar dar informações em um

primeiro momento, desiste depois. Quando o italiano falece, deixa sua fazenda para

Reivalino Belarmino.

A morte do irmão do italiano aparece ante os olhos de Reivalino quando este já

estava trabalhando para o italiano. A narrativa apresenta essa passagem a seguir:

Sendo que foi de repente. Seo Giovânio abriu em par a casa. Me

chamou: na sala, no meio do chão, jazia um corpo de homem, debaixo

de lençol. Josepe, meu irmão”... ele me disse, embargado. Quis o

padre, quis o sino da igreja para badalar as vezes dos três dobres, para

o tristemente. Ninguém tinha sabido nunca o qual irmão, o que se

fechava escondido, em fuga da comunicação das pessoas. Aquele

enterro foi muito conceituado. Seo Giovânio pudesse se gabar, ante

todos. Só que, antes, seo Priscílio chegou, figuro que os de fora a ele

tinham prometido dinheiro; exigiu que se levantasse o lençol, para

examinar. Mas, aí, se viu o horror, de nós todos, com caridade de

olhos: o morto não tinha cara, a bem dizer só um buracão, enorme,

cicatrizado antigo, medonho, sem nariz, sem faces a gente devassava

alvos ossos, o começo da goela, gargomilhos, golas. “Que esta é a

guerra...” seu Giov nio explicou boca de bobo, que se esqueceu de

fechar, toda doçuras.143

O horror da presentificação da morte de Josepe, irmão de Giovânio, aterroriza as

personagens. Não se trata de uma situação de placidez encantadora. Esse agir mortífero

pode aterrorizar, pois, não tem forma, de modo que não pode ser depreendido. A morte

não tem cara, não tem feição. Josepe morreu. E essa passagem é o bastante para dizer

que a vida ganha um vazio com a chegada da morte. O aterrorizar da morte se dá com a

ausência de forma e fórmula que possa combater a sua presença. A morte é

transfigurada, sem ter uma figura esculpida. Seu vigorar é agir pleno incessante. Não há

caminho de volta para a morte. Uma vez partido para os seus desígnios, sabe-se que é

um caminho sem volta, sem forma, sem gozo.

143

ROSA, Op. cit., p. 147

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A última morte da estória sela a amizade. Trata-se da morte do italiano que

deixa, como herança, a sua fazenda para Reivalino. A passagem da estória se dá a

seguir:

Não avistei mais o meu Patrão. Soube que ele morreu, quando

em testamento deixou a chácara para mim. Mandei erguer sepulturas,

dizer as missas, por ele, pelo irmão, por minha mãe. Mandei vender o

lugar, mas, primeiro, cortarem abaixo as árvores, e enterrar no campo

o trem, que se achava, naquele referido quarto. Lá nunca voltei. Não,

que não me esqueço daquele dado dia o que foi uma compaixão. Nós

dois, e as muitas, muitas garrafas, na hora cismei que um outro ainda

vinha sobrevir, por detrás da gente, também, por sua parte: o alazão

façalvo; ou o branco enorme, de São Jorge; ou o irmão, infeliz

medonhamente. Ilusão, que foi, nenhum ali não estava. Eu, Reivalino

Belarmino, capisquei. Vim bebendo as garrafas todas, que restavam,

faço que fui eu que tomei consumida a cerveja toda daquela casa, para

fecho de engano.144

A morte de Giovânio pactuou a amizade entre o italino e o Reivalino. Apesar do

distanciamento entre os dois falado pelo enredo, houve uma aproximação entre os dois,

que culminou no testamento do italiano com o capiau como o único e incontestável

favorecido. As razões não são mostradas para a escolha do único herdeiro, mas, o

principal é a aproximação com que Reivalino tende ao ex-patrão, quebrando o antigo

distanciamento dito pela narrativa. A morte aproxima mais Reivalino ao Giovânio do

que pudera ter feito a vida.

Desse modo, a morte é união, que possibilita mostrar-se, dizer-se, de modo que

não pode ser vista somente como separação. A morte uniu os laços entre as duas

personagens, fomentando a mudança do capiau, que estava margeado com a desavença

para o italiano, sem dar espaço para qualquer aproximação ou qualquer manutenção de

vínculo afetivo, como, por exemplo, a amizade. Reivalino vende a chácara, mas não

vende a memória, com suas lembranças e recordações, que vitalizam e florescem o

144

ROSA, Op. cit., p. 148

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221

italiano com seu cavalo bebedor de cerveja. A morte do ex-patrão sela a amizade entre

eles.

Em “A terceira margem do rio”, o pai de família resolve fazer uma canoa e vai

morar sozinho no rio. A atitude considerada fora do padrão do lugar comum

compartilhado, pois ninguém pensaria em morar em uma canoa, rio vai e rio vem,

remete-se ao extraordinário do real, que é velar, revelar e vigorar daquilo que é.

Inicialmente, o narrador atenta para os preparativos da partida do pai, como é narrado a

seguir:

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim

desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas

sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo

me alembro, ele não figurava mais est rdio nem mais triste do que os

outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e

que ralhava no diário com a gente minha irmã, meu irmão e eu. Mas

se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático,

pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o

remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada

em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos.

Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes

não vadiava, se ia propor agora para pescarias e calçadas? Nosso pai

nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio,

obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo,

calado para sempre. Largo, de não poder ver a forma da outra beira. E

esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e

decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou

matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente

achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida,

mascou o beiço e bramou: “Cê vai, ocê fique, você nunca volte

Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me

acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe,

mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que

um propósito perguntei: “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua

canoa? Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com

gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota

do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo

remar. E a canoa saiu se indo a sombra dela por igual, feito um

jacaré, comprida longa.145

145

ROSA, Op. cit., pp. 79-80

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222

Os preparativos da partida do pai são a procura para o seu vigorar, são os

caminhos que devem ser realizados para a plenitude, a consumação da existência, da

vivificação. O sertanejo quer ir atrás do próprio, que condiz com o auscultar de cada

um de si mesmo. Ele quis desprender-se do lugar comum, quis matar a vida que levava,

para habitar o sertão, habitar-se a si, habitar o real. As escolhas de cada um nunca serão

as mesmas para todas as pessoas. É necessário que cada um saiba o seu caminho, para

produzir-se no real, revelando-se, velando-se e desvelando-se. Pairar nas águas do rio,

escamoteando as veredas da terra, é o caminho escolhido, é a vida aquosa, movente e

legítima de mostrar-se e dizer-se.

A família não foi favorável à escolha do pai, no entanto, ele permaneceu

irredutível em ir. Não há como fugir do que lhe é próprio e viver na errância de enganar-

se para satisfazer as vontades e os desejos dos outros, das demais personagens. Cada um

deve ser senhor de seu próprio caminho, deve procurar por si, deve ouvir-se, deve dizer-

se, deve mostrar-se e deve velar-se. O entendimento de si é maior do que o

entendimento dos outros, já que ninguém poderá entender com exatidão o outro, com as

entrelinhas, os ecos, os silêncios presentes e a linguagem. Entender-se a si, ou melhor,

procurar-se, é o real caminho para a plenificação da existência, para a consumação da

vida.

O filho não quis partir com o pai. E o pai não se desfez da canoa e tampouco

retornou para a casa. A narrativa narra sobre a permanência do pai no rio e os pareceres

sobre a atitude do pai:

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só

executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, do

meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar nunca mais.

A estranheza dessa verdade deu para estarrecer todo a gente. Aquilo

que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos,

se reuniram, tomaram juntamente conselho.

Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso,

todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar:

doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento

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de promessas; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar

com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina

de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se

dando pelas certas pessoas passadores, moradores das beiras, até do

asfalto da outra banda descrevendo que nosso pai nunca se surgia a

tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como

cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os

aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse,

ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava

s‟embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se

arrependia, por uma vez, para casa.

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele,

cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na

primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender

fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado deles, se

rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa

de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora,

tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado o fundo

da canoa, suspendia no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez

sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a

salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e

refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa

mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela

mesma deixava, facilitado, sobra de coisas para o meu conseguir.

Nossa mãe muito não se demonstrava.146

A realização do pai era incompreendida pela família, pelos parentes e pelos

conhecidos. Consideraram-no louco por ter partido para a realização daquilo que

fomentava o ser. A loucura considerada pelos parentes, ou melhor, a desconsideração do

tapume familiar, seria permanecer e agir de acordo com o que era imposto pelos

familiares, parentes e amigos, escamoteando o vigorar próprio que pertence a cada um.

O sertão rosiano fomenta a procura do próprio, a passagem e a culminância pertencente

ao vigorar sertanejo. Considera-se que o filho não quis seguir os rumos do pai, a meter-

se canoa acima, canoa abaixo. Seja por medo, por preguiça, por desânimo, ou por

conselhos, deixa-se cortar o fio do próprio, resultando um tecido rasgado, amputado,

destruído. Heráclito lança a questão: “Como alguém pode manter-se encoberto face ao

146

ROSA, Op. cit., pp. 80-81

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224

que nunca se deita?”147

Há de partir para o descobrir e o encobrir de si. Cada um é

incessantemente o que é e o que não é.

A vida constitui-se da procura e da cura, do velamento e do desvelamento, do

encoberto, e do descoberto, do vigorar e da morte. Ao dispor-se a permanecer no

próprio, na canoa ao longo do rio, o pai desvencilha-se das amarras impostas pelos

olhares, dizeres, desejos e opiniões dos outros, alheios ao que lhe é mais caro, para

mostrar-se, dizer-se e silenciar do próprio. Assim, navega pelo auscultar-se a si e ao

sertão, e a silenciar a si no sertão.

O caudaloso rio é o habitar do vigorar, do agir, do poético incessante florescer

do próprio. Ele representa o rito da passagem do terreno para o movente. É o agir

incessante assim como cada um é também. Fazer do rio a moradia, suplantado por uma

canoa, é deixar-se ao aberto do mundo, sem fincar-se na letargia. A quebra do homem

terreno pelo ser do homem aquático pode ser compreendido pela morte do fazer pronto,

intitulado pelas convenções sociais e partilhadas, pelo operar do aberto, pela procura de

si e pelo pulsar do próprio.

O afastamento do pai da família não fez com que ele fosse esquecido. A

narrativa diz que o filho realizou artimanhas para fazer povoar a lembrança do pai e

trazê-lo à presença. A esfinge acometeu o filho de tal maneira que este não pode

decifrá-la e vagou pela errância da vida, deixando-o na perplexidade da incompreensão

do vigorar de cada um e do experienciar da vida, do sertão, do real. Assim diz a

narrativa:

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta,

tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o

rio pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice esta vida era

só o desmoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo,

cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de

147

HERÁCLITO, Op. cit., p. 63

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padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do

vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na

levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no

tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o

coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do

que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse se as coisas

fossem outras. Eu fui tomando idéia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra

doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se

condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só

fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito

no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto.

Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas

vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a

voz: “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor

vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando

que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na

canoa ... E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais

certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n‟água, proava

para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes,

ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto o primeiro,

depois de tamanhos anos corridos! E eu não podia... Por favor,

arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento

desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E

estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube

mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o

que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar a vida, nos

rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte,

peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada,

nessa água, que não para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora,

rio a dentro o rio.148

Lançar-se ao sertão, à vida, requer a contingência de perigos, de obstáculos, de

empecilhos. A experienciação, a vivificação e a sabedoria dão o rumo para a canoa

aprumada. Não é necessário ir além da canoa no rio, nem expandir-se pelo tão largo

sertão para saber, vigorar-se e plenificar-se. O ir e o vir nunca são o mesmo. Cada

deslize no rio não é o mesmo. Todos têm a vez de procurar-se e achar-se. A ninguém é

dado o privilégio único de auscultar-se e ser o que é. Cada um tem a vez de sair em

busca de si e encontrar-se.

148

ROSA, Op. cit., pp. 84-85

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O existir, o viver, é a questão que matou a existência do filho. Ele não conseguiu

auscultá-la, respondê-la e indagá-la. Cerceou-se aquém da abertura do sertão, da vida,

do real. Enquanto que o pai morreu e se revificou, o filho permaneceu na sombria

morte, ruína, no espectro pesar e fim ainda em vida. O pai não se resignou, mas

plenificou-se ao eleger aquilo que lhe é próprio, primeiro, fundador. É preciso ter força

para assumir o seu caminho.

Navegar no rio é o rito de passagem. O filho tenta delegar aos outros aquilo que

é incumbência singular de cada um: procura e eleição de ser aquilo que emana de cada

um. A questão do rio é a quebra com as conformidades e adoções alheias ao que é

singular, plural e instaura a unidade dialógica de cada um. É necessário que se morra

para as concepções alheias à essência primordial para que se viva para a consumação da

existência, para a plenificação da vida, para a experienciação de si e do sertão que se

abre fora das margens do rio. Correr rio acima e rio abaixo diz que não se pode viver

nas margens do rio. É preciso deixar-se no aberto do fluir das águas que não podem

encarcerar, enclausurar a canoa em um ponto qualquer determinado, premeditado,

preconcebido e finalizado. A dialógica questão de “Navegar é preciso, e viver não é

preciso.”149

corrobora para a inaugural experiência de deixar-se ao aberto do mundo, a

fim de encontrar-se. O pai encontrou-se no navegar do rio, consumando-se, enquanto

que o filho resumiu-se à frustração de ter sido o que não era e o que não foi. Resignou-

se à vida pela margem.

A morte é o fim da vida para o seu começo. Na estória “O espelho”, um homem

quer ser, está à procura de ser. Quer reconhecer-se ao ser e ver-se. O agir originou-se

quando ele viu-se, ainda jovem, em um espelho e achou a própria imagem repulsiva. A

imagem refletida foi apagada para o surgimento de uma outra nova. A experiência

149

PESSOA, Fernando. In: “Navegar é preciso”. Disponível em http://www.fpessoa.com.ar/poesias.asp?Poesia=036

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correlata à imagem refletida condiz com a exatidão do ser, do que é revelado,

demonstrado, descoberto de cada um. No início da narrativa, é narrado o seguinte:

Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas

experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios

e intuições. Tomou-me tempo, des nimos, esforços. Dela me prezo,

sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à-parte de todos,

penetrando conhecimento que os outros ainda ignoram. O senhor, por

exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na

verdade um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que

se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo,

aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência

deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não

estamos vendo.150

Adentrar-se na imagem do espelho e reconhecer-se é o fim da busca para quem

procura por si mesmo. Esse encontro requer aprumo vivificador e o auscultar

experienciador. Requer também o ver do desencoberto que é encoberto e o velamento

do que é desvelado. Ao pulsar incessante da imagem refletida, o reconhecimento de si

indica um passo além do óbvio, do imediato, do simulacro e das relações instrumentais,

causais e finais.

Conhecer-se a si é o ponto de saída e de chegada. Não se pode requerer o que é

dado ao outro por singular unidade. A cada um cabe ler-se e ver-se como o fio que

emana do tecido. Na estória rosiana, cada personagem é singular e plural, experiencia de

modo próprio o sertão, sua abertura nele e se vivifica na unidade cósmica, buscando ser

o que é, vigendo o próprio no sertão, que incessantemente pulsa e produz o velamento e

desvelamento. Existir é estar em movimento. O sertão é movente. As personagens

rosianas mobilizam-se em ser a si, a procurar a si, a partir de si para chegar a si,

dialogando com o sertão que não é o mesmo, é unidade e é o primordial ciclo rosiano

que potencializa a experiência, a linguagem, a verdade, a memória e a passagem nas

estórias.

150

ROSA, Op. cit., p; 119

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Existir é transcender. É iluminar-se na clareia que desvela, desencobre,

descobre, não o sentido da vida, mas o sentido da existência de cada um, de cada

personagem. A passagem das sombras para a clareia faz com que o protelado acabe,

morra, a fim de que ressurja o adquirido, o ganhado, o escolhido, o procurado, o achado,

o miraculoso descobrimento de si, perante a abertura do sertão, do mundo, do real, que

agem sem parar e sem se reduzir às vontades, desejos, quereres, solicitações,

considerações, postulações de qualquer um. O milagre age incessantemente, estando

alguém a par dele ou não, auscultando-o, vendo-o, revelando-o ou não. Ele transcende a

linha tênue da vida e não necessita de explicações, formulações, causalidades e

categorizações.

Existir é presentificar o mistério da vida. Procurar-se e achar-se é um mistério,

no qual cabe a cada um ver-se, mostrar-se e dizer-se a própria existência, inseparável

em dicotomias e bifurcações entre corpo é espírito, entre interior e exterior, entre

pensamento e feição. A procura pelo transcendente é a procura de si, já que, na estória

rosiana, a personagem lança-se para além dos limites, das margens, das representações,

das ações e das matérias. O milagre da existência existe e pode não ser visto e nem

sempre será passível de ser visto, de modo que cabe a cada um procurar-se por si e

deambular na via do encontrar-se, perdendo-se, achando-se no sertão grandioso e no

real desmedido.

Sobre a visão e a procura de si da personagem, a narrativa diz o seguinte sobre o

acontecimento:

Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço,

comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei... Explico-lhe: dois

espelhos um de parede, e outro de porta lateral, aberta em ngulo

propício faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura,

perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão

hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto,

eriçamento, espavor. E era logo descobri... era eu, mesmo! O senhor

acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?

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229

Desde aí, comecei a procurar-me ao eu por detrás de mim à

tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu ume frio. Isso,

que se saiba, antes ninguém tentara. Quem se olha em espelho, o faz

partindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos falaz

pressuposto: ninguém se acha na verdade feio: quando muito, em

certos momentos, desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes

de um ideal estético já aceito. Sou claro? O que se busca, então, é

verificar, acertar, trabalhar um modelo subjetivo, preexistente; enfim,

ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão. Eu,

porém, era um perquiridor imparcial, neutro absolutamente. O caçador

de meu próprio aspecto formal, movido por curiosidade, quando não

impessoal, desinteressada; para não dizer o urgir científico. Levei

meses.

Sim, instrutivos. Operava com toda a sorte de astúcias: o

rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a longa obliqüidade

apurada, as contra-surpresas, a finta de pálpebras, a tocaia com a luz

de-repente acesa, os ângulos variados incessantemente. Sobretudo,

uma inembotável paciência. Mirava-me, também, em marcados

momentos de ira, medo, orgulho abatido ou dilatado, extrema alegria

ou tristeza. Sobreabriram-se-me enigmas. Se, por exemplo, em estado

de ódio, o senhor enfrenta objetivamente a sua imagem, o ódio reflui e

recrudesce, em tremendas multiplicativas: e o senhor vê, então, que,

de fato, só se odeia é a si mesmo. Olhos contra os olhos. Soube-o: os

olhos da gente não têm fim. Só eles paravam imutáveis, no centro do

segredo. Se é que de mim não zombassem, para lá de uma máscara.

Porque, o resto, o rosto, mudava permanentemente. O senhor, como os

demais, não vê que seu rosto é apenas um movimento deceptivo,

constante. Não vê, porque mal advertido, avezado; diria eu, ainda

adormecido, sem desenvolver sequer as necessárias novas percepções.

Não vê, como também não se vêem, no comum, os movimentos

translativo e rotatório desde planeta Terra, sobre que os seus e os

meus pés assentam. Se quiser, não me desculpe; mas o senhor me

compreende.

Sendo assim, necessitava eu de transverberar o embuço, a

travisagem daquela máscara, a fito de devassar o n cleo dessa

nebulosa a minha vera forma. Tinha de haver um jeito. Meditei-o.151

Encontrar-se requer desfazer-se das camadas imputadas pelos outros, pelo fazer,

pelas reações e pela superficialidade para operar o existir. A máscara formada vai além

da exterioridade, com a marca na face. Ela está incrustrada no corpo humano em todas

as reentrâncias vitais que dialogam com a existência. Para desfazer-se dela, há que

empreender um trabalho hercúleo para despojar-se de todas as amarras, as medidas, as

restrições impostas e aceitadas, com motivos ou sem motivos, que limitam a existência

151

ROSA, Op. cit., pp. 122-123

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230

humana, tornando-a vazia, no sentido de impetrar pela superficialidade, ao invés de

lançar-se ao recôndito de cada um, fazendo-o aflorar como uma flor que desabrocha,

adornada de encanto e vivificação.

A personagem, ainda moço, viu sua imagem nos espelhos e o que viu tombou-o.

Aquilo que foi descoberto de si desnorteou-o. Passou a mirar-se fortuitamente entre

vários ângulos e olhares a fim perpetrar o que havia visto. No entanto, o que eclode é o

produzir a mudança em si, de tal modo que ele se apazigue com a sua imagem vista nos

espelhos. Não resta somente querer mudar, tem que mudar de fato. Não resta querer

encontrar-se, tem que encontrar-se. A mudança e o encontro tornam a existência um

acontecimento, de tal modo que a estória “O espelho” narra a busca de si, da existência

pertencente a cada um, que deve ser a origem, o caminho e a chegada para plenificar a

vivificação no sertão e no mundo. A morte do superficial é a passagem para o advento

da existência, do saber-se a si, velando-se, desvelando-se e revelando-se. O sertão seria

a reunião do diálogo entre os singulares na unidade que diferencia e unifica os

sertanejos.

Desfazer-se é uma ação que solicita a cura. Descobrir-se requer a escolha de

buscar-se e despetalar cada camada que encobre a existência que pulsa em cada um. A

árdua empreitada é realizada pela personagem, a fim de que encontre a si mesmo e

possa dizer-se, mostrar-se a si mesmo, sem as tonalidades e as nuances impostas pela

vida, em seus distintos momentos, ações, desejos, atribuições e opiniões e pontos de

vista. Para achar-se, há uma larga viagem a ser realizada, quando a pessoa quer saber

quem ela é. Requer desprender-se das amarras das imposições e das sujeições e ser o

ator da própria vida, da existência que pulsa incessantemente em dizer-se, mostrar-se

para além da formação de um objeto pronto, formado e medido para todas as

personagens, para todos os sertanejos, para todos os humanos. A existência é singular e

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atende a cada um de modo distinto, já que ninguém é igual ao outro, assim como, são

narradas as personagens rosianas. Há que retirar o superficial para chegar-se ao âmago

da existência, ou seja, saber-se ao mostrar-se e ao dizer-se. Há que partir para o

encontro de si.

A personagem não diz os métodos utilizados para o seu trabalho, mas menciona

sobre o modo da visão de “olhar não-vendo”, baseado em “sem ver o que, em „meu‟

rosto, não passava de reliquat bestial. Ia-o conseguindo?”152

Essa técnica não muda a

existência, mas cria simulacros para aquilo que se revela, desvela, desencobre, mostra-

se e diz-se. A busca por si da personagem, ou seja, o seu rito de passagem, é narrado a

seguir:

Saiba que eu perseguia uma realidade experimental, não uma

hipótese imaginária. E digo-lhe que nessa operação fazia reais

progressos. Pouco a pouco, no campo-de-vista do espelho, minha

figura reproduzia-se-me lacunar, com atenuadas, quase apagadas de

todo, aquelas partes excrescentes. Prossegui. Já aí, porém,

contingentes e ilusivas. Assim, o elemento hereditário as parecenças

com os pais e avós que são também, nos nossos rostos, um lastro

evolutivo residual. Ah, meu amigo, nem no ovo o pinto está intacto. E,

em seguida, o que se deveria ao contágio das paixões, manifestadas ou

latentes, o que ressaltava das desordenadas pressões psicológicas

transitórias. E, ainda, o que, em nossas caras, materializa idéias e

sugestões de outrem; e os efêmeros interesses, sem sequência nem

antecedência, sem conexões nem fundura. Carecíamos de dias, para

explicar-lhe. Prefiro que tome minhas afirmações por seu valor

nominal.

À medida que trabalhava com maior maestria, no excluir,

abstrair e abstrar, meu esquema perspectivo clivava-se, em forma

meândrica, a modos de couve-flor ou bucho de boi, e em mosaicos, e

francamente cavernoso, com uma esponja. E escurecia-se. Por aí, não

obstante os cuidados com a saúde, comecei a sofrer dores de cabeça.

Será que me acovardei, sem menos? Perdoe-me, o senhor, o

constrangimento, ao ter de mudar de tom para confidência tão

humana, em nota de franqueza inesperada e indigna. Lembre-se,

porém, de Terêncio. Sim, os antigos; acudiu-me que representavam

justamente com um espelho, rodeado de uma serpente, a Prudência,

como divindade alegórica. De golpe, abandonei a investigação.

Deixei, mesmo, por meses, de me olhar em qualquer espelho.

Mas, com o comum correr quotidiano, a gente se aquieta,

esquece-se de muito. O tempo, em longo trecho, é sempre tranquilo. E

pode ser, não menos, que encoberta curiosidade me picasse. Um dia...

Desculpe-me, não viso a efeitos de ficcionista, inflectindo de

152

ROSA, Op. cit., pp. 124-125

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232

propósito, em agudo, as situações. Simplesmente lhe digo que olhei

num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas,

aberto como o sol, água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente

tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o

invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era contemplador o

transparente contemplador?... Tirei-me. Aturdi-me, a ponto de me

deixar cair numa poltrona.

Com que, então, durante aqueles meses de repouso, a faculdade,

antes buscada, por si em mim, se exercitara! Para sempre? Voltei a

querer encarar-me: eu não via os meus olhos. No brilhante e polido

nada, não se me espelhavam nem eles.

Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente

simplificada, despojara-me, ao termo, até à total desfigura. E a terrível

conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal,

autônoma: Seria eu um... des-almado? Então, o que se me fingia de

um suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do animal, um

pouco de herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um

entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na impermanência se

indefine? Diziam-me isso aos raios luminosos e a face vazia do

espelho com rigorosa infidelidade. E, seria assim, com todos?

Seríamos não muito mais que as crianças o espírito do viver não

passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a

esperança e a memória.153

Entre as lacunas e o vazio abissal, a personagem deambula até chegar a desfazer-

se de si, perante a imagem refletida pelo espelho. Do “olhar- não vendo”, passa-se pelas

imagens espaçadas e chega-se à ausência total de sua imagem. Trata-se de um

despojamento fruto da busca por si. Antes de achar-se, o não ver o rosto no espelho faz

parte da culminância da plenitude, tão querida para a personagem, de ver-se,

reconhecer-se, saber-se, mostrar-se. As lacunas são as entrelinhas do tecido do qual

cada um é formado singularmente e originalmente. Das lacunas para o vazio, há um ver

além, pois o vazio é silêncio que pode potencializar a auscultação para aquilo que ainda

está adormecido e, pelo pulsar incessante, possibilitar a emersão ou propulsar, para a

personagem, o advento de si, da existência, do sertão.

Desfazer-se do que não é próprio de cada um é a vereda pela qual a personagem

deambula para achar-se a si. Ao despojar-se de qualquer traço característico a qualquer

153

ROSA, Op. cit., pp. 125-126

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outrem, a personagem atenta para lançar-se ao que lhe é próprio, enquanto unidade

singular e primeira. As lacunas mostraram que o caminho para a descoberta de si

demandaria empenho. O que seria perdido fomentaria um valor original com o que seria

conquistado. A pausa da personagem de ver-se nos espelhos não encerrou o mostrar-se,

o pulsar incessante do real, de modo que a sua procura por si foi crescendo até não

conseguir ver a face no espelho. De certa forma, já não via a imagem repulsiva de si

nem os espaços abissais.

A narrativa apresenta o tão valioso achado, a visão tão esperada, como indica o

trecho a seguir:

Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião de

sofrimentos grandes, de novo me defrontei não rosto a rosto. O

espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo tempo, nada enxerguei. Só

então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se

nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação, radiância. Seu

mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção?

Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá,

refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor mesmo.

São coisas que se não devem entrever; pelo menos, além de um

tanto. São outras coisas, conforme pude distinguir, muito mais tarde

por ltimo num espelho. Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava já

aprendendo, isto seja a conformidade e a alegria. E... Sim, vi, a mim

mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor

razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto quase delineado

apenas mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento

abissal... E era não mais que: rostinho de menino de menos-que-

menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?

Devia ou não devia contar-lhe, por motivos de talvez. Do que

digo, descubro deduzo. Será, se? Apalpo o evidente? Tresbusco. Será

este nosso desengonço e mundo o plano intersecção de planos onde

se completam de fazer as almas?

Se sim, a “vida” consiste em experiência extrema e séria; sua

técnica ou pelo menos parte exigindo o consciente alijamento, o

despojamento de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e

soterra? Depois, o “salto mortale ... digo-o, do jeito, não porque os

acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de toque e

timbre novos as comuns expressões, amortecidas... E o julgamento-

problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: “Você chegou

a existir?

Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção

de vivermos em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de

bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora, sua opinião, mesma,

do senhor, sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se digne dar-

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234

me, a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro no

amor da ciência, de seus transviados acertos e de seus esbarros

titubeados. Sim?154

Após uma longa caminhada iniciada há anos, abriu-se a clareia do

descobrimento. O que pairava encoberto desvelou-se. Viu-se. Não viu a face

propriamente dita, mas o clarear de sua existência. A visão tida corresponde à sua

existência, ao seu existir no mundo, fruto de muito empenho da sua autodescoberta.

Caiu o véu metafísico e a sua existência plenificou-se, floresceu dizendo, mostrando

aquilo que é tão caro à personagem. Esta se viu e se reconheceu sem a medição

temporal e a causal. Iluminou-se sua presença ao existir, descobrindo-se na imagem

vista, não tal qual a feição da face, mas, sim, pelo esplendor da existência mostrada ao

ver-se diante do espelho.

O dificultoso é ver-se em plenitude. É uma tarefa hercúlea, pois requer desfazer-

se das amarras metafísicas e separatistas para deixar vingar a unidade pertencente a cada

um de fazer-se presença no sertão, no mundo, no real. A existência é um pôr-se na

conjuntura cósmica e caótica da unidade sertaneja. A personagem lançou-se para além

de si para si, podendo ver o mostrar-se e o dizer-se que cabe a cada um auscultar e que

só é verdade quando é revelado, velado e desvelado por si mesmo a si mesmo, sem

contingências exteriorizadas e interiorizadas por outrem. Lapidar-se a si é o trabalho

que cabe a cada um realizá-lo, a fim de chegar à luminosidade concernente ao singular.

A vida não segue uma linha reta. O sertão não se dá da mesma maneira. Nem as

personagens rosianas são circunscritas a outras. A existência, assim, se dá fora da

margem. E existir diz mais do que praticar ações cotidianas e postular verberações a si e

aos outros. Há que procurar por si, saber de si, mostrar a si e dizer a si, de modo que

154

ROSA, Op. cit., pp. 127-128

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haja confluência para a unidade de si, que não está fora de si, nem presa a si, mas,

realiza a unidade integradora, que está fora das margens impostas pelo que é alheio a si.

O salto mortal é conhecer-se, ver-se, vigorar-se, saber-se, dizer-se, mostrar-se diante de

toda a demanda que a vida apresenta. Existir e conhecer-se. Existir e nada mais. Existir

e tudo o mais. Existir e ser. Existir é o que há de mais caro para o humano. A morte do

constructo permite o vigorar da existência. Cabe a cada um buscar-se e encontrar-se.

Finaliza-se com a frase rosiana tão ressoante: “a colheita é comum, mas o capinar é

sozinho...”155

155

ROSA, João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001i. p. 74

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236

CONCLUSÃO

Por mais que se tente delimitar a linguagem, ela faz-se presente como instância

inaugural. E nenhum sistema dará conta daquilo que a linguagem é, linguagem. Assim,

o tempo cronológico e tripartido não dá conta da instauração da linguagem, da phisis,

do real, pois não se trata de sucessão temporal ou espacial, e sim, do tempo do ser.

A ética é morada do ser. Muitas vezes relacionada ao comportamento e ao modo, a

ética é limitada aos bons modos, ou exemplo a ser seguido. No entanto, a ética é a

vigência do ser na physis. A ética, portanto, não se apresenta exteriormente, a ética é o

próprio ser em doação da physis.

O amor é procura, é cura. Amar é busca pelo/do ser. E no real, o amor se plenifica

quando, com as diferenças, há diálogo. O amar não é sinônimo de anular. O silêncio que

diz e silencia. O amor é caminho para ser.

O real está para além do lugar comum, pois este é fatual, e o real não. O real não

pode ser representado, pois, ele é o agir incessante, que vela e desvela. E a loucura,

como real, não se apresenta fora do ser. Ela é doação de real e é linguagem.

A morte é o vigorar incessante da physis. O extraordinário a habita na unidade

cíclica em que o sertanejo faz parte na plenitude em culminância do vigorar do sertão,

posto que, ao morrer, há voltasse a ele.

A obra Primeiras estórias apresenta o narrar como instância inaugural e

instauradora. Cada conto apresenta-se com a grandiosidade da linguagem. Adentrar-se

nas veredas do livro é ser.

Os contos, portanto, tornam presença questões fulcrais da/para a existência humana.

Adentrar-se nas estórias rosinhas é fomentar o diálogo com o próprio próprio e a

manifestação do plural sertão, com as personagens articuladoras do seu próprio,

dialogando entre si.

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237

A tarefa hercúlea é adentrar-se no dizer de cada narrativa e auscultar a

manifestação e a experienciação do sertão, com as personagens plurais, singulares e

compartidas pela unidade revigorante da plenitude da linguagem e do narrar. As

questões suscitadas não encerram nenhuma questão e são o operar primordial de

manifestação do humano permeado pelo sertão rosiano.

Para adentrar-se nas primeiras estórias é necessário ler as entrelinhas, auscultar o

que é dito e silenciar. Ensimesmar-se é auscultar-se, dizer-se, mostrar-se, conhecer-se e

narrar-se. A unidade estabelecida com as estórias fomenta o vigorar sertanejo

manifestado pelas estórias com acontecimentos condinzentes às personagens. O sertão é

pujança em seu dizer inaugural, proporcionando a vivificação do próprio de cada um e a

experienciação das questões pertencentes ao humano.

Nenhuma obra de arte pode ser esgotada por uma crítica. No entanto, a crítica da

obra literária pode fomentar a manifestação da obra de arte. A presente tese apresentou

como percurso proporcionar o advento de algumas questões fulcrais pertencentes às

estórias rosianas das Primeiras estórias: tempo e ser, ética, amor, loucura e morte.

Obviamente, não foi estagnada nenhuma questão, nem foram percorridas todas as

veredas (im) possíveis e fomentadas por todos os 21 contos do livro.

Primeiras estórias inauguram o sertão movente, do qual o objetivo não deve ser

capturá-lo, mas lançar-se à abertura do dizer do narrar que se manifesta além do enredo

de cada estória e torna presença a experiência e a vivificação do real. Os contos

formam parte da unidade da linguagem e vigenciam-se originalmente com a

manifestação do próprio de cada estória. As personagens são presentificações do sertão,

de modo que o dizem no agir dos acontecimentos, da mesma forma, que se dizem no

narrar. A harmonia do sertão se dá pelo diálogo em que a diferença não anula e a

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mesmice não existe. As estórias são plenificações inaugurais que fomentam o operar da

existência.

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