O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à...

32
O cinema de experimentação em Florianópolis nas décadas de 1960 e 1970: contrapontos à mercantilização da cultura local Henrique Luiz Pereira Oliveira * Entre os anos de 1968 e 1976 o cinema catarinense vivenciou um produtivo momento de experimentação. Neste período foram realizados três filmes de curta-metragem, as ficções Novelo (1968) e A Via Crucis (1972) e o documentário Olaria (1976), todos filmados em 16 mm, preto e branco e produzidos em Florianópolis por jovens amadores. Embora sejam essas produções os primeiros curtas-metragens 1 que se tem conhecimento em Santa Catarina, há no meio acadêmico e cinematográfico um silêncio em torno deles, permanecendo pouco conhecidos até mesmo pelos estudiosos do cinema estadual. Os filmes Novelo e A Via Crucis foram rodados em Florianópolis e ambos são ricos em cenas externas, utilizando diversos pontos da ilha e do continente como locação. Mesmo mostrando praias, ruas e edificações conhecidas, não há nos filmes a preocupação de exaltar a beleza da paisagem local ou de contribuir para a construção de uma identidade para a cidade. Tanto Novelo como A Via Crucis * Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutorado em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Coordenador do Laboratório de Pesquisa em Imagem e Som - LAPIS. 1 Não estamos considerando nem os cinejornais nem os filmes de família, como os recém-descobertos filmes em 16mm de Edla von Wangenheim, realizados em Florianópolis nas décadas de 1930-40.

description

Entre os anos de 1968 e 1976 o cinema catarinense vivenciou um produtivo momento de experimentação. Neste período foram realizados três filmes de curta-metragem, as ficções Novelo (1968) e A Via Crucis (1972) e o documentário Olaria (1976), todos filmados em 16 mm, preto e branco e produzidos em Florianópolis por jovens amadores.

Transcript of O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à...

Page 1: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

O cinema de experimentação em Florianópolis nas décadas de 1960 e 1970:

contrapontos à mercantilização da cultura local

Henrique Luiz Pereira Oliveira*

Entre os anos de 1968 e 1976 o cinema catarinense vivenciou um produtivo

momento de experimentação. Neste período foram realizados três filmes de curta-

metragem, as ficções Novelo (1968) e A Via Crucis (1972) e o documentário Olaria

(1976), todos filmados em 16 mm, preto e branco e produzidos em Florianópolis por

jovens amadores. Embora sejam essas produções os primeiros curtas-metragens1 que se

tem conhecimento em Santa Catarina, há no meio acadêmico e cinematográfico um

silêncio em torno deles, permanecendo pouco conhecidos até mesmo pelos estudiosos

do cinema estadual.

Os filmes Novelo e A Via Crucis foram rodados em Florianópolis e ambos são

ricos em cenas externas, utilizando diversos pontos da ilha e do continente como

locação. Mesmo mostrando praias, ruas e edificações conhecidas, não há nos filmes a

preocupação de exaltar a beleza da paisagem local ou de contribuir para a construção de

uma identidade para a cidade. Tanto Novelo como A Via Crucis contêm imagens da

cidade, e se tornaram um importante registro visual do passado. Mas nos filmes a

presença da cidade se dá apenas como cenário onde as tramas se desenrolam. O

documentário Olaria, por sua vez, foi rodado em São José (município vizinho de

Florianópolis), no bairro da Ponta de Baixo, local onde já existiram diversas olarias.

Neste filme, ao mostrar o trabalho do oleiro, a sua oficina e as peças de cerâmica, não se

trata de celebrar os traços típicos da tradição cultural local.

Cultura regional e mercado

Os pontos mais característicos da cidade e da paisagem, os aspectos que

reportam à cultura e à tradição açoriana têm comparecido de forma recorrente na

produção audiovisual, em película e em vídeo, a partir da década de 1990. Diversos

curtas-metragens privilegiaram o local, as particularidades da “nossa cultura” e os

* Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutorado em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Coordenador do Laboratório de Pesquisa em Imagem e Som - LAPIS.1 Não estamos considerando nem os cinejornais nem os filmes de família, como os recém-descobertos filmes em 16mm de Edla von Wangenheim, realizados em Florianópolis nas décadas de 1930-40.

Page 2: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

resquícios da tradição açoriana2, aspectos que se tornaram o próprio motivo da criação

audiovisual. Assim, por vezes o elemento regional ganhou status de personagem,

tornando-se fundamental à trama. É importante destacar que a constituição desta

tendência na produção audiovisual coincidiu com o incremento da indústria do turismo

e com uma série de políticas públicas visando transformar a cultura em atrativo

turístico. Assim, uma parte significativa da produção audiovisual realizada em

Florianópolis nas últimas décadas acabou muitas vezes por ratificar a agenda cultural

pautada pela mídia e pelo Estado, assumindo um caráter quase institucional. Isto porque

as agências de fomento vêm incitando a determinadas temáticas e abordagens, e,

sobretudo, porque se estabeleceu um acordo tácito sobre aquilo que é relevante para

história e para a cultura da região e sobre qual deve ser a função do audiovisual na sua

preservação e divulgação.3

As análises sobre os filmes Novelo, A Via Crucis e Olaria, sintetizadas no

presente artigo, foram realizadas como parte de um projeto de pesquisa que teve por

objetivo investigar o modo como a história e o patrimônio cultural de Florianópolis vêm

sendo apropriados para a construção de uma determinada percepção sobre o município,

delimitando parâmetros para pautar a sua gestão e projetar o seu futuro.4 Nas últimas

décadas, Florianópolis vem passando por uma acelerada transformação sócio-espacial

que tem sido, em grande parte, condicionada por uma forma particular de associação

entre empreendimentos turísticos e empreendimentos imobiliários. Esta junção de

interesses vem pautando as ações da iniciativa privada e definindo as políticas públicas

em relação à gestão do espaço da cidade e em relação aos seus habitantes.

As produções de Novelo, A Via Crucis e Olaria ocorreram em um período

intermediário entre a fase de “descoberta” da história e da cultura local, cujo marco foi a

2 Com relação à presença açoriana no litoral de Santa Catarina, e especificamente em Florianópolis, é preciso distinguir dois processos. Um primeiro foi o processo de transferência de um contingente populacional do arquipélago dos Açores entre os anos de 1748 a 1756. Um segundo momento foi o conjunto de motivações que levaram ao estudo da história da migração açoriana, cujo marco é Primeiro Congresso de História Catarinense, realizado em 1948. A partir deste marco é preciso considerar as diferentes formas de apropriação e de utilização da história e da cultura dos açorianos e de seus descendentes no litoral de Santa Catarina. Esta hipótese de trabalho norteou o projeto de pesquisa mencionado na nota 4.3 Ao mesmo tempo, atribuindo ao audiovisual a função de preservar e divulgar a história e a cultura de Santa Catarina, os produtores buscam legitimidade para reivindicar programas de financiamento por parte dos órgãos públicos.4 O projeto de pesquisa "Protótipo de uma série de vídeos: Produção cultural e transformações urbanas em Florianópolis na segunda metade do século XX", financiado pelo FUNPESQUISA, foi executado nos anos de 2004 e 2005, no Laboratório de Pesquisa em Imagem e Som – LAPIS – pertencente ao Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina. O projeto envolveu alunos e professores do Curso de Graduação em História, mestrandos e pesquisadores sem vínculo institucional, e resultou na produção de diversos trabalhos de conclusão de curso.

Page 3: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

realização do Congresso de História Catarinense em 1948, e a fase de apropriação da

história e da cultura pela mídia e pelos empreendimentos turísticos e imobiliários. Os

filmes foram realizados em um momento em que se acentuava a transformação e

descaracterização da cidade, consubstanciada na verticalização das edificações da parte

central, na derrubada do casario antigo e no afastamento do centro histórico em relação

ao mar, com a construção de um aterro para distribuir o fluxo de veículos em direção à

nova ponte.

A positivação do passado e a construção do “mito da origem açoriana”

Para explicitar a singularidade dos três curtas-metragens realizados em

Florianópolis entre 1968 e 1976 em relação a uma tendência da produção audiovisual

das décadas recentes, é necessário acompanhar, sumariamente, o modo como a cultura

local se tornou objeto de conhecimento no século passado. Da segunda metade do

século XIX até meados do século XX os agentes que se propunham a civilizar ou

modernizar a cidade de Desterro/Florianópolis recorriam ao conceito de cultura como

um valor universal, conceito que não pretendia dar conta dos particularismos locais.

Neste sentido o conceito de cultura não abarcava nem a valorização dos resquícios do

passado local nem as práticas populares, que na época eram associadas ao atraso.

Excluídas do espaço urbano pelas reformas sanitaristas da Primeira República, as

tradições viriam a se tornar objeto de interesse dos intelectuais apenas algumas décadas

mais tarde.

Uma reelaboração no conceito de cultura e nas formas de abordar as práticas da

população não integrada à modernização urbana ocorreu ao final da década de 1940,

com a realização do Primeiro Congresso Catarinense de História, comemorando o bi-

centenário de colonização açoriana em Santa Catarina. Além de atualizar as concepções

de história e de cultura no âmbito da produção regional, uma das conseqüências do

Congresso de História foi conferir historicidade e visibilidade aos setores da população

que ficavam a margem do processo de modernização urbana, sobretudo os pescadores

artesanais. Na medida em que lhes era atribuído um fundamento histórico, uma origem -

a transferência dos açorianos em meados do século XVIII - foi possível construir uma

percepção positiva da tradição.5 Como desdobramento, passou-se a repertoriar os

diversos elementos da existência material e subjetiva que guardavam traços dos modos 5 Sobre o tema ver FLORES, Maria Bernadete Ramos. “A autoridade do passado”, in: Teatros da vida, cenários da história: a farra do boi e outras festas da Ilha de Santa Catarina – leitura e interpretação . São Paulo, PUC, 1991. Tese de Doutorado em História.

Page 4: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

de vida trazidos pelos colonizadores: artesanato, formas de convívio, crenças etc.

Décadas mais tarde (1980-90), o tema da “açorianidade” tornou-se um importante

produto cultural e passou a ser enfatizado pela mídia e pelas campanhas turísticas.

Paralelamente a realização do Primeiro Congresso de História Catarinense,

constituiu-se em Florianópolis o Círculo de Arte Moderna – CAM – com a proposta de

acompanhar as reflexões e inquietações contemporâneas no campo da filosofia, da

ciência e da cultura. Este movimento de renovação do referencial estético e filosófico

teve como principal veículo de propagação a Revista Sul, que alcançou trinta edições

entre os anos de 1948 a 1957. A revista foi também o elemento de articulação do

movimento, que ficou conhecido como Grupo Sul, o qual além da produção literária,

montou peças de teatro, organizou exposições de artes plásticas, criou um clube de

cinema e produziu um filme.6

Um ponto forte na intervenção do Círculo de Arte Moderna foi a insistência no

vínculo necessário entre a Arte e as transformações que ocorriam no mundo. A

produção literária do Grupo Sul, ao mesmo tempo em que impôs como exigência ao

homem moderno – e à arte – uma atenção “a maravilhosa complexidade e as reais

transformações da vida que o rodeia”7, expressou um desencanto com a existência,

sobretudo um desencanto com a ordem social. Simultaneamente, uma via de atualização

em relação ao presente e uma via de reflexão crítica sobre condição do homem

moderno, a intervenção do Grupo Sul implicava no combate ao provincianismo e à

estagnação do pensamento local, mas também expressava o desconforto próprio ao

homem integrado aos novos tempos. Diversos textos do Grupo Sul remetem à

experiência da angústia, ao desencanto ante a existência. Um desencanto que clama por

um mundo novo. Era necessário um sujeito de ação que recriasse o mundo, mas na

produção literária do Grupo Sul a ação quase nunca era concretizada, permanecendo em

uma dimensão inacessível.

Embora a discussão da tradição não tenha tido um peso relevante na Revista Sul,

o romance Rede, de Salim Miguel, publicado pelas Edições Sul em 1955, tematizou

uma face do confronto entre tradição e modernização. O romance descreve, em tons

realistas, as precárias condições de vida dos pescadores da comunidade de Ganchos, que

atualmente pertence ao município de Governador Celso Ramos. Ao mesmo tempo

desvela a lógica do capitalismo, cuja expansão passou a ameaçar a já frágil existência 6 SABINO, Lina Leal, Grupo Sul: modernismo em Santa Catarina, Florianópolis, Fundação Catarinense de Cultura, 1981.7 PIRES, Aníbal Nunes. Sul, Revista do Círculo de Arte Moderna. Ano I, nº 1, Florianópolis, jan. de 1948.

Page 5: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

dos pescadores, com a chegada na região de grandes barcos pesqueiros provenientes de

Santos. Movidos a motor e dotados de equipamentos modernos, estes barcos

estabeleciam uma competição desigual com a pesca artesanal praticada na localidade.

Os pescadores viram-se pressionados pelo avanço tecnológico, que os ameaçava de

fora, e pelos patrões dos barcos que, no interior das relações de trabalho, se apropriavam

da maior parte do que era obtido na pesca. Há, portanto, em Rede, também uma crise,

um desencantamento com a ordem vigente. Sintomaticamente, ao contrário de grande

parte da produção literária do Grupo Sul, em Rede a crise desencadeia uma trajetória de

transformações. A crise gera uma consciência política entre os integrantes da

comunidade, consciência que implica na ultrapassagem dos interesses e das ações

individuais. Através da união, os pescadores descobriram que “pode existir uma outra

vida que não aquela só de miséria, uma vida de luta e decisão, mas uma vida de

esperança”.8 O inusitado é que este ser coletivo, capaz de ultrapassar a crise e se

constituir como força ativa frente àquilo que o ameaça, tenha sido justamente uma

comunidade de pescadores, que teve a coragem de destruir as redes dos grandes barcos

e de fazer uma greve contra os patrões. Poder-se-ia minimizar estes feitos, alegando que

Rede segue a vertente do chamado romance de 30.9 Ainda assim, é significativo que

Salim Miguel tenha escolhido a figura do pescador para atuar como agente

transformador, já que durante a primeira metade do século XX os habitantes do litoral

foram muitas vezes referenciados pelos intelectuais e jornalistas como “matutos”,

“caboclos” ou “amarelos do litoral”, em textos que ressaltavam a sua debilidade física e

os seus hábitos atrasados e incompatíveis com a civilização.10

Se em Rede os pescadores foram retratados como transformadores das condições

a que estavam sujeitos, bem diversa foi a percepção que Othon D’Eça11 construiu dos

mesmos em Homens e Algas. Iniciado em 1938 e só publicado em 1957, o livro Homens

e Algas retrata os pescadores como seres condenados à fatalidade, condição que decorre

do próprio modo como eles sentem e são afetados pela existência.12 O que está implícito

8 MIGUEL, Salim. Rede. Florianópolis, Edições Sul, 1955, p. 290.9 HOHLFELDT. “Entre a aparência e a realidade, a essência na fragmentação”. In: SOARES, Iaponan (org.). Salim Miguel: literatura e coerência. Florianópolis, Lunardelli, 1991, p. 10.10 ARAÚJO, Hermetes Reis de. A invenção do litoral: reformas urbanas e reajustamento social em Florianópolis na Primeira República. São Paulo: PUC, 1989. Dissertação de Mestrado em História.11 Escritor que pertencia à chamada “geração da academia”, cujas proposições estéticas foram contestadas pelos integrantes do Grupo Sul.12 Segundo o próprio D’Eça, seu livro não é uma ficção, mas é um retrato realista do viver dos pescadores e jornaleiros que ele presenciou nas praias de Coqueiros, Abraão, Bom Abrigo e Canasvieiras, quando estas ainda não eram praias de veraneio. D’EÇA, Othon. Homens e Algas, Florianópolis: FCC: Fundação Banco do Brasil : Editora da UFSC, 1992.

Page 6: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

é que o pescador é diferente do tipo humano que habita os espaços urbanos

modernizados, pois este último governa sua conduta através de escolhas desvinculadas

dos velhos costumes, das superstições e do temor ao sagrado. Para compreender a

“indolência” que era atribuída ao homem do litoral e a sua resistência à modernização,

D’Eça procurou conhecer “sua alma”, ou seja, a constituição subjetiva dos pescadores,

explicando-os como sujeitos resignados ante a fatalidade da existência e, portanto,

dotados de uma percepção trágica.13

O conflito entre a experiência moderna e a tradição também foi objeto de

atenção no filme de longa-metragem O Preço da Ilusão. Inspirado na estética neo-

realista e engajado na proposta de “criação de um estilo cinematográfico de conteúdo e

formas nacionais”, O Preço da Ilusão foi realizado entre 1957 e 58 por iniciativa dos

integrantes do Grupo Sul.14 De um lado da trama há um menino pobre vinculado ao

modo de vida tradicional. É Maninho, engraxate, filho de uma rendeira e de um pai que

lida com brigas de canário. Sua família reside em Coqueiros, localidade

tradicionalmente habitada por pescadores e jornaleiros, que no decorrer dos anos 50

passou a ser freqüentada por veranistas e transformada com a construção de casas de

praia. O menino tem como sonho montar um boi-de-mamão. A outra face da trama trata

de uma moça que quer ampliar seu acesso ao mundo moderno. É Maria da Graça, que

apesar da oposição do seu namorado, aceita participar de um concurso para escolher a

“Rainha do Verão” e sai vitoriosa. Após vencer o concurso ela acabou cedendo ao

desejo sexual do seu patrocinador, Dr. Castro, que influenciou a escolha do júri do

concurso de beleza através da compra de votos. A partir daí a moça entra em crise.

Ouve repetidas vezes a voz do Dr. Castro enfatizando: “Seu mundo agora é outro”. Nas

cenas finais, no carro, Maria das Graças chorando é interpelada por Dr. Castro: “Mas

que história é essa de medo do futuro?”. Não há retorno, mas o novo é incerto.

Em outro plano, Maninho pega o dinheiro que arrecadara para montar o boi de

mamão e sai na noite, em direção a ponte Hercílio Luz, para comprar remédio para a

mãe doente. Nesse momento as duas histórias se entrecruzam na ponte. A moça e Dr.

Castro discutem, enquanto atravessam a ponte Hercílio Luz de carro em alta velocidade.

13 É verdade que este intento de compreensão da subjetividade do pescador serviu também para legitimar a intervenção do Estado, sua tutela sobre este segmento populacional.

14 O Argumento foi criado pelos escritores catarinenses, Salim Miguel e Egle Malheiros, que juntamente com E. M. Santos produziram o roteiro. Armando Carreirão (também membro do Grupo Sul) ficou responsável pela produção. Para mais informações sobre o filme ver DEPIZZOLATTI, Norberto Verani (org), O cinema em Santa Catarina, Florianópolis, Editora da UFSC, 1987 e SABINO, op. cit.

Page 7: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

O carro perde o rumo e cai da ponte. O único a ver esta queda foi Maninho, cujo

dinheiro, levado pelo vento, também caiu da ponte.

O conflito narrado no filme contrapõe a sedução do sucesso moderno - e às

rupturas que isto implica - ao apego à tradição. Os valores e as práticas do mundo

tradicional estão em crise, mas quem procurou forçar uma passagem para a

modernidade caiu da ponte - ironicamente, os meios para manter a tradição ou para

salvar os antepassados (a mãe doente) também caíram (o dinheiro). A divulgação do

filme foi patrocinada pela empresa de Transportes Aéreos Catarinenses (TAC), cujos

publicitários enfatizavam: “o turismo é caminho natural sobre o qual se baseará o

progresso da cidade”15. O filme privilegiou planos e cenas que mostrassem “costumes,

usos, tipos pitorescos, bares, cafés, ruas, praças, praias. As cenas mais significativas

desenvolvem-se à sombra da ponte Hercílio Luz, compondo um ambiente

característico.”16 A realização de O Preço da Ilusão foi marcada por uma ambigüidade:

de um lado o sentido de reflexão crítica sobre a mercantilização das relações (todo o

esquema que envolve o concurso de beleza) e de outro os compromissos estabelecidos

para obter apoio financeiro para a produção do filme. A própria divulgação do filme na

imprensa local associava o empreendimento à divulgação da cidade:

“Muita gente ouviu falar na cidade menina-moça, porém não a conhece. Canasvieiras, Praia das Saudades, Ponte Hercílio Luz, a casa de Vítor Meirelles, as famosas rendeiras que enfeitam suas praças, a simpatia esplendida pelo homem de suas ruas, o pitoresco de suas praias, o sotaque característico e todo 'enchanteur' dos barriga-verdes, a pele tanada dos brotinhos da Lagoa da Conceição; tudo isso será o motivo principal para uma bela cinta em nosso Brasil. E, pensando assim, que o Clube de Cinema de Florianópolis e outros elementos artísticos da tranqüila cidade catarinense, conceberam a idéia para a feitura de uma película em longa metragem que dignificasse e engrandecesse o cenário artístico de nossa terra”.17

Novelo, A Via Crucis e Olaria: sem presente e sem saudade

Os filmes de curta-metragem Novelo, A Via Crucis e Olaria são expressões da

dissidência cultural na cidade de Florianópolis nos anos 60 e 70.18 Embora

15 O Estado. Florianópolis, 01/11/1955, n°. 12.314, ano XLII, p. 4. Apud LOHN, Reinaldo. Pontes para o Futuro: relações de poder e cultura urbana em Florianópolis, 1950 –1970 . Porto Alegre: UFRGS, 2002. Tese de doutorado em História, p. 266.16 SABINO, Lina Leal, op. cit., p. 61.17 Jornal Diário Comércio e Indústria – Florianópolis – 25/05/1957. Apud TOBAL Jr, Henrique. Cinema catarinense, identidades e políticas culturais: o regionalismo selecionado da produção cinematográfica local. Florianópolis, UFSC. Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em História, 2005, p. 51.18 Uma pesquisa sobre os filmes, cotejada com o contexto da época e com os depoimentos dos realizadores, foi empreendida por PEREIRA, Sissi Valente. Novelo, A Via Crucis e Olaria: experiências cinematográficas na Florianópolis das décadas de 1960 e 1970. Florianópolis, UFSC. Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em História, 2007.

Page 8: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

compartilhassem de algumas premissas divulgadas pelo Círculo de Arte Moderna,

correspondem a novas formas de radicalização da crítica às relações capitalistas de

produção e aos rumos da civilização ocidental. Os filmes tangem o problema da

individuação19 na sociedade capitalista e nos propõem uma questão: se a constituição

dos indivíduos se dá necessariamente em relação a um meio, o que acontece quando

uma individuação ocorre em defasagem com as relações que regem o meio? Uma

trajetória de individuação pode ser um processo de integração harmoniosa em um dado

campo relacional. Mas os filmes não tratam de experiências harmoniosas. Tratam de

experiências de descompasso, de disjunção ou da inserção brutal. As experiências de

dilaceração ganham o primeiro plano quando se passa a conceber que os processos de

individuação nas sociedades capitalistas não são caracterizados pela afirmação da

liberdade mas sim pela construção de modelos em série que enquadram e padronizam os

indivíduos, subjugando-os aos padrões pré-estabelecidos. Ocorre um profundo mal estar

quando se conclui que na sociedade industrial a individuação tornou-se uma fabricação

em série de corpos e de mentes programadas.

O filme Novelo propõe a trajetória de um indivíduo que se desinstala do campo

social. A experiência de descompasso entre o indivíduo e o meio leva a um radical e

voluntário desmanche de si. Os planos iniciais mostram o pré-formado ou o que está em

formação: espermatozóides, feto humano. São alusões à gênese de uma individuação.

Há uma elipse e aparece um personagem (uma individualidade já constituída) lendo.

Uma frase que está assinalada no livro20 - “os valores não são, eles valem” - desencadeia

a desorganização do campo semiótico e o personagem entra em uma crise existencial,

usando uma linguagem própria à época. Alguns elementos que suportam os valores

começam a desmoronar: os livros caem, a imagem da igreja deriva. O personagem

segue por um corredor (fluxo direcionado) e é interceptado pela visão de uma gilete

(corte do fluxo). A imagem da gilete materializa o plano subjetivo no quadro da tela e

interrompe a possibilidade do indivíduo seguir linearmente as rotas pré-estabelecidas.

Depois deste encontro insólito com a lâmina de barbear, ocorre um afastamento da ação.

O personagem “recua” para o seu quarto. Deitado e introspectivo, ele se recusa a agir e

acessa uma memória de gênese: a imagem de uma criatura sendo extraída do lodo. O

início de uma formação. Seu nascimento? No plano seguinte, da janela, ele contempla o 19 Utilizamos o conceito de individuação para marcar o aspecto processual da constituição de uma individualidade. Neste sentido ver GUATTARI, Félix. “Da produção de subjetividade”, in PARENTE, André (org). Imagem máquina: a era da tecnologia do virtual. São Paulo, Editora 34, 1993. p. 177-191; e DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. “Políticas” in: Diálogos, São Paulo, Escuta, 1998, p. 145-170.20 Trata-se da Introdução à metafísica, de Martin Heidegger.

Page 9: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

exterior. Subitamente tem um impulso de ação, de saída da letargia. De carro, atravessa

uma ponte congestionada21, deslocando-se até o centro da cidade (Florianópolis).

O centro da cidade é mostrado através de planos fechados, destacando corpos

que se deslocam solitários. Os automóveis interceptam a visibilidade dos corpos. As

pessoas não se relacionam, são existências fragmentadas. O personagem encontra um

conhecido que parece tentar persuadi-lo a aceitar as coisas como são, a se enquadrar. A

conversa intensifica a crise e ele cospe sinalizando sua recusa à proposta do outro (a

adaptação ao “sistema”). Busca uma rota de fuga e segue em direção à praia da

Armação. Já na praia, joga fora a chave do carro e caminha. Nos planos finais aparece

encolhido, nu, recostado em uma pedra junto ao mar. Nu, em posição fetal, misturado

com o mineral - a água e a pedra – regressa ao pré-humano. A possibilidade de

reinventar a existência implica em voltar a um estado anterior à cultura e à civilização.

Implica até mesmo em preceder a humanização e, talvez, em atingir uma condição

anterior à forma viva - o pré-orgânico.

O que está em jogo em Novelo não é apenas mostrar a aparição de uma crise no

processo de individuação. Trata-se de mostrar como um indivíduo se impôs um

exercício de ascese para despotencializar o regime semiótico dominante. Para

ultrapassar os modelos vigentes de individuação em série, o personagem traçou uma

rota de lavação das somatizações culturais (catarse). Impôs a si mesmo o devir de uma

condição pré-humana para assim realizar uma trajetória radical de descivilização.

A utopia da ação coletiva, indicada em Rede, de Salim Miguel, se ainda é

possível em Novelo, é sob a condição de invenção de novas rotas de individuação, que

liberem os condicionamentos da civilização. Um novelo não é igual a uma rede. A rede

é articulada e pode ser vista nas diversas linhas de extensão, revelando as relações entre

as partes. É este o sentido da expressão “rede social”. O novelo se enrola e se desenrola,

só é conhecido no movimento centrípeto ou centrífugo: o enrolamento a partir de um

centro ou o desenrolamento a partir da ponta externa do fio. A rede permita a visão

sinóptica de um real que se espraia ante os olhos para que se possa desvendá-lo. Na

perspectiva do novelo o desvelamento exige um mergulho para atravessar da ponta

externa do fio até a sua ponta interna. Um caminho até a gênese, até o estado fetal. Um

caminho que só se dá por aprofundamento. O indivíduo deve fazer o movimento reverso

ao seu “enrolamento”. Trata-se de uma des-individuação, de um desenrolamento.

21 O engarrafamento deve-se às obras de asfaltamento da ponte Hercílio Luz. Há um consenso entre os participantes do filme quanto à intenção documental dos planos que mostram a ponte engarrafada.

Page 10: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

É possível encontrar no filme Novelo uma sintonia com formas de pensamento

que não supõem nem um sujeito nem uma realidade objetiva como dados a priori.

Percorrer um novelo não é esticar um fio, mas atravessá-lo em suas voltas; neste

percurso, as redes sociais só existiriam porque as individuações as atravessam. As redes

não seriam pré-existentes, seriam coexistentes. Se há um plano objetivo que afeta a

subjetivação, que a condiciona, seria sempre segundo um percurso singular que este

plano ganharia consistência para cada sujeito. É neste sentido que a utopia de Rede

encontraria limites. A possibilidade de um plano de realidade ser compartilhado por um

conjunto de sujeitos se tornaria mais problemática, justamente porque já não haveria

uma “rede” para estender, só haveria um fio de novelo para ser perseguido. Assim, não

se trataria de uma recusa da ação coletiva, se trataria de uma prospecção das formações

singulares. Mais do que descrever redes pré-existentes, Novelo trataria de acompanhar

uma des-individuação e os arranjos que ela decompõe.

A concepção e o resultado final do filme Novelo reuniu, de forma às vezes

contraditória e conflituosa, a personalidade, a formação, as experiências e habilidades

de cada um dos integrantes da produção.22 Ady Vieira Filho, estudante de contabilidade,

militante estudantil, destacava-se por sua habilidade de administrar e articular. Pedro

Bertolino, que na época já estudava o existencialismo de Jean-Paul Sartre e se

interessava pela teoria da informação, publicava críticas literárias em revistas e jornais,

e participou do movimento poema concreto em São Paulo e do movimento de poema

processo do Rio de Janeiro. Pedro Paulo Souza, estudante de administração, cinéfilo,

participava ativamente dos debates sobre música e cinema da Sociedade Oratória

Estreitense - SOE. Fernando José da Silva estudava administração e era interessado

pelas artes. Gilberto Gerlach estudava engenharia e implantou, no mesmo ano da

realização do Novelo, o Cineclube da Engenharia - que a partir de 1972 passou a ser

denominado Cineclube Nossa Senhora do Desterro.23 De todo o grupo, Orivaldo dos

Santos, intelectual autodidata, era o que tinha mais conhecimento sobre cinema e,

inclusive, inicialmente ficou responsável pela direção do filme.

22 Entre os anos de 2003 e 2005 o grupo de pesquisa que se reunia no LAPIS (ver nota 4) entrevistou cinco integrantes do grupo que realizou Novelo, só não foi entrevistado o ator Fernando José da Silva. Há muitas divergências entre os depoimentos, ainda assim eles são a principal fonte para recuperar detalhes do processo de concepção e de realização do filme.23 O cineclube utilizava um projetor de 16 mm proveniente de um lote de equipamentos recebidos pela Universidade Federal de Santa Catarina da Alemanha Oriental. GERLACH, Gilberto. “O curta metragem em Santa Catarina”. In Ô Catarina!, Florianópolis, jul/ago, 1998, nº 30, p. 6.

Page 11: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

A realização do Novelo foi motivada por uma notícia publicada no Jornal do

Brasil, informando sobre a inscrição de filmes para o IV Festival Brasileiro de Cinema

Amador de 1968, no Rio de Janeiro, que era patrocinado pelo Jornal do Brasil e pela

rede de lojas Mesbla. Orivaldo dos Santos, que leu a notícia, procurou Ady Viera

propondo que reunissem alguns companheiros da Sociedade Oratória Estreitense para

produzir um filme. O equipamento para filmagem, uma câmera Payllard Bolex 16mm,

foi obtida junto a Universidade Federal de Santa Catarina, que havia recebido diversas

câmeras e projetores da Alemanha Oriental. Ady Viera ficou responsável pela

coordenação do grupo, pela produção e obtenção dos recursos financeiros e também

atuou em uma cena. Para inscrever Novelo no festival, Ady criou o Grupo Universitário

de Cinema Amador – GUCA. O argumento do filme foi escrito por Pedro Bertolino; o

roteiro foi elaborado por Pedro Paulo Souza e Orivaldo dos Santos. O filme foi

protagonizado por Fernando José da Silva. Gilberto Gerlach ficou responsável pela

operação da câmera. A montagem final foi realizada por Pedro Paulo Souza, que

também selecionou a trilha sonora. Pedro Paulo e Gilberto dirigiram as filmagens. O

filme ganhou uma Menção Honrosa no IV Festival Brasileiro de Cinema Amador de

1968 e a quantia de 500 cruzeiros novos.24 Comentários simpáticos ao filme foram

publicados em artigos dos críticos de cinema Alex Viany e Maurício Gomes Leite.

Fazendo um balanço dos filmes apresentados no IV Festival JB/Mesbla, Alex

Viany observou que os participantes não pareciam mais interessados no preciosismo

formal nem na mensagem direta, “interessa-lhes acima de tudo relacionar seus temas e

personagens com os grandes problemas do mundo moderno”:

“A solidão das grandes cidades, a falta de comunicação entre os seres humanos, o crescente abismo entre as gerações e a permanência de velhos mitos e tabus tanto podem levar ao manequim de A Morte Branca, quanto ao homossexualismo de Um Clássico Dois em Casa Nenhum Jogo Fora, ao isolamento total de A Jaula, ou à volta à posição fetal de Novelo.”25

De diferentes maneiras, cada um dos participantes foi envolvido pela discussão

cinematográfica que passou a ter crescente importância em Florianópolis no decorrer da

década de 1960. Um primeiro marco, depois da experiência do Preço da Ilusão no fim

da década anterior, foi a realização da 1ª Semana do Cinema Novo Brasileiro, ocorrida

na cidade de 1º a 7 de setembro de 1962, evento que, segundo Paulo Emílio Salles

24 O júri foi composto por José Medeiros, Leon Hirszman, Walter Lima Junior, Marcos Farias, Alex Viany, Tati de Morais. “‘Um clássico, dois em casa’ ganha o primeiro prêmio do Festival do Cinema Amador”, Jornal do Brasil, 09/11/1968, 1º caderno, p. 9.25 VIANY, Alex. “Uma sociedade em negativo”, Jornal do Brasil, 16 de novembro de 1968.

Page 12: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

Gomes, teve a importância de estruturar uma comunidade em “torno da causa do cinema

nacional”.26 Na Sociedade Oratória Estreitense (SOE), criada em 1961, o cinema, a

música, a literatura e a filosofia estavam entre os diversos temas debatidos. Pedro

Bertolino, Pedro Paulo de Souza, Ady Vieira, Fernando José da Silva e Orivaldo dos

Santos participaram ativamente desta sociedade. Valmor Cardoso de Oliveira, que

integrara o Grupo Sul, foi uma das pessoas que fomentou/ a discussão sobre cinema na

SOE. Em 1966, Benito Batistotti criou o Cineclube Ilha. Nesta década, Darci Costa

escrevia críticas cinematográficas em jornais locais, promovia exibição de filmes,

debates e cursos sobre cinema. Além do Cineclube da Engenharia havia também o

Cineclube da FAFI (Faculdade de Filosofia). O expressionismo alemão, o cinema russo,

o cinema surrealista (particularmente Luis Buñuel), o cinema impressionista e realista

francês, o Neo-Realismo italiano, o cinema japonês de Yasujiro Ozu, o Cinema Novo

brasileiro e a Nouvelle Vague francesa foram as principais referências cinematográficas

mencionadas pelos realizadores de Novelo.

A visualidade do filme foi também decorrência das conexões que os integrantes

de Novelo estabeleciam com as artes plásticas. As imagens que aparecem no início do

filme foram criadas pelo artista plástico Hiedy de Assis Corrêa, o Hassis, que no final

da década de 50 participou da formação do Grupo de Artistas Plásticos de Florianópolis

(GAPF), movimento que difundiu as proposições modernistas na arte local. Gilberto

Gerlach freqüentava a casa do pintor Martinho de Haro, convivência que lhe propiciou

uma proximidade com as artes plásticas e com o meio cultural. Ady Vieira também se

relacionava com os artistas plásticos e no ano seguinte à realização de Novelo, em 1969,

criou uma galeria para comercialização da obra dos artistas locais, o Mini-Mercado das

Artes. Gerlach como fotógrafo e Ady como produtor e ator, participaram em 1969 do

filme No Elevador, dirigido pelo artista plástico Rodrigo de Haro.27 Bertolino dialogava

com o tapeceiro Pedro Paulo Vecchietti e com o artista plástico Jayro Schmidt, tendo

proposto a Jayro e a João Otávio Neves Filho (Janga) o desafio de realizar telas

concretistas. Jayro Schmidt, Janga e Max Moura, que expunham no Mini Mercado da

Arte, criaram o Grupo Nossa’Arte no ano de 1969, com a intenção de levar a arte aos

morros e escolas públicas, ultrapassando os espaço de exibição institucionalizados.28

26 Ver GOULART, Ricardo Fernando. “Cinema, modernidade e cultura”, in: O Catarina!, ano XIV, nº 63, 2005, p. 10-11. 27 O filme, com 90 segundos, atendia as novas regras do Festival Brasileiro de Cinema Amador JB-Mesbla.28 BORTOLIN, Nanci Therezinha. Indicador catarinense de artes plásticas. 2ª ed. Itajaí : Ed. UNIVALI; Florianópolis : Ed. UFSC, FCC, 2001, p. 391-2

Page 13: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

Além de No Elevador, mais dois filmes de curtíssima duração foram produzidos

em 1969 com as câmeras da UFSC e com a participação de alguns dos integrantes da

produção de Novelo, visando a participação no V Festival Brasileiro de Cinema

Amador, que naquele ano estipulou a duração máxima dos filmes em 90 segundos. A

vida é curta e... , com 60 segundos, foi dirigido por Pedro Paulo Souza, produzido por

Ady Vieira, fotografado por Nelson dos Santos Machado, com argumento de Pedro

Bertolino, e interpretado por Fernando da Silva e Alba Silva. Nau fantasma, com

duração de 90 segundos, foi concebido, dirigido e fotografado por Gilberto Gerlach,

sendo interpretado por Martim Afonso de Haro.

Novelo é um filme hermético, carregado de símbolos. Os planos utilizados não

são ingênuos, revelam um cuidado na escolha dos enquadramentos, no posicionamento

dos atores. A montagem final valorizou a junção dos elementos simbólicos e a

construção interna de cada um dos planos. A trilha sonora é forte. No filme não há

diálogos audíveis. Segundo Pedro Bertolino, na concepção do argumento ele estava

“interessado exatamente em mostrar como era possível passar uma história sem

palavras, só com imagens, por isso que o filme Novelo não tem diálogos”.29 Embora não

haja concordância dos demais participantes do filme em relação à motivação para a

ausência de falas, há sem dúvida já no argumento (que é bastante literário) uma

proposta de estrutura que aponta para a viabilidade de uma narrativa sustentada apenas

com imagens, sem o uso de diálogos, proposição que se manteve na filmagem dos

planos e na montagem final.

Se em Homens e Algas, Othon D’Eça descreveu a condição trágica dos

pescadores, a constituição dos indivíduos nas sociedades pré-modernas, Novelo discutiu

a tragédia das formas de individuação modernas. A questão não é mais, em Novelo, a

fragilidade da vontade frente ao meio, mas a condição de um sujeito que, frente ao meio

que o cerceia, opera um trabalho de reinvenção de si. É como se o personagem tivesse

consciência dos vínculos entre poder e somatização e por isto escolheu zerar em si as

marcas da civilização.

Mas as rotas de fuga são continuamente recapturadas. Até a crucificação, até a

imobilização nas coordenadas de horizontalidade espacial e de verticalidade temporal.

A recaptura das linhas de fuga é a trajetória de A Via Crucis, que descreve os

dispositivos que operam a modelização das individuações. A Via Crucis percorre as 29 Entrevista com Pedro Bertolino, realizada por Bárbara Vitória Zacher, Sissi Valente Pereira e Fernando Boppré, em agosto de 2003. Segundo outros participantes na realização do filme, a ausência de diálogos se deveu à limitações técnicas.

Page 14: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

estações dos enrolamentos seriados das individuações. Seis estações da Via Crucis são

listadas no cartão que aparece no início do filme: condenação, caminho da cruz, queda,

encontro, flagelação e morte.

Os planos iniciais de A Via Crucis mostram a borda da cidade, seu limite com o

mar, para depois entrar no núcleo urbano, com enquadramentos fechados, semelhantes

aos de Novelo, onde vultos passam apressados. Esta passagem da borda para o núcleo

precede a aparição de um personagem, cuja cabeça com longos cabelos está cercada por

dedos que a apontam. É a primeira estação, a condenação. Quatro planos se sucedem:

um filhote de ave, franzino; uma cobaia dentro de uma gaiola; crianças em um

parquinho vistas através de grades; uma seqüência de fisionomias “engaioladas” dentro

de um ônibus, visíveis através das pequenas molduras das janelas. Após este

enfileiramento de seres enquadrados, ocorre uma sucessão de corpos realizando

trabalhos braçais.

De pé, em um escritório, um indivíduo recebe uma negativa de alguém sentado

em uma mesa. Na saída do escritório ele entrega um papel para uma jovem e corre em

direção a uma grande porta que se fecha. A moça também corre, tentando abrir diversas

portas. O caminho da cruz parece ser o esforço de inserção de uma singularidade no

campo social. Um esforço que não encontra abertura. O corpo cai. A moça aparece

agachada em planos que se distanciam até ela se tornar uma pequena massa no canto da

tela cinza (vazia). Um carro se aproxima e uma porta se abre. A porta que se abre será a

porta desejada ou será a via de inclusão recusada?

A seqüência seguinte se passa em uma madeireira, com operários trabalhando.

Um operário vai ao encontro de duas mulheres e se ajoelha ante elas, secando a face no

vestido de uma delas. Outra seqüência de encontro: dois jovens no mar brincam e se dão

as mãos. A única cena de prazer e liberdade no filme. Logo o casal de jovens é cercado.

Começa a flagelação. Os cabelos do rapaz são cortados, sua camisa é rasgada, uma unha

é extraída. As expressões de dor do corpo torturado ocupam a tela, sendo intercaladas,

em contra-plano, por imagens de chaminé, de automóveis, de mãos buzinando, de

fisionomias que observam (uma ri), de uma sirene. Por fim o corpo aparece estendido

no asfalto, na posição de crucificado. Nos planos finais a cidade reaparece.

A Via Crucis é um filme ainda mais hermético e fragmentado do que Novelo, o

que em parte se deve ao fato de ter sido produzido em 1972, período em que a repressão

política da ditadura militar no Brasil chegou ao auge, amparada pela implantação do Ato

Institucional nº5, em dezembro de 1968. Paralelo à supressão das liberdades individuais

Page 15: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

e à institucionalização da violência, promovia-se a euforia e o ufanismo associados ao

“milagre econômico”. O recurso ao simbolismo, à metáfora, tornou-se uma necessidade

para burlar a censura e ao mesmo tempo uma via de experimentação artística.

A Via Crucis tem dez minutos de duração e não inclui a ficha técnica. Foi

roteirizado, dirigido, fotografado e editado por Nelson dos Santos Machado e Deborah

Cardoso Duarte.30 O argumento inicial, bastante transformado posteriormente, foi escrito

por Pedro Bertolino. No elenco participaram José Henrique Moreira, Álvaro Reinaldo

de Souza, Ester Brattig, Marcus Brattig, Olinda Machado, Vera Collaço, Nei Gonçalves

e Yara Koneski Abreu. Nelson Machado havia feito o registro fotográfico e

acompanhado o processo de realização do Novelo, filme do qual inicialmente seria o

cinegrafista. Nelson, na época estudante de sociologia, desde a adolescência gostava de

desenhar e estudou pintura com Silvio Pléticos.31 Mais tarde misturou desenho artístico

com desenho técnico e trabalhou no setor de produção gráfica de uma empresa.

Promoveu mostras de cinema na Universidade Federal de Santa Catarina, para as quais

produzia os cartazes. Deborah Cardoso Duarte cursava medicina e realizava estudos

autodidatas sobre música, literatura e dança. Além das demais atribuições

compartilhadas com Nelson, ficou particularmente responsável pela coordenação da

produção e pela trilha sonora. A sonoplastia é fundamental na composição de A Via

Crucis:

A sonoplastia de A Via Crucis é um elemento determinante da linguagem. Além de já ser totalmente anti-linear, ela ainda foi manipulada de acordo com a velocidade das cenas, sendo atrasada juntamente com as imagens em câmera-lenta, ou cortada juntamente com os cortes dos planos, produzindo efeitos inusitados, quase sempre compostos por ruídos disformes. O efeito dos ruídos, dos sons disformes, entrecortados, contribuiu definitivamente para compor o clima sombrio e perturbador que envolve o filme.32

Nos filmes Novelo e A Via Crucis ocorrem dois processos inversos. Novelo, que

foi realizado primeiro, mostra o processo em que um ser desata os nós da costura social

que modelou a sua individualidade. O indivíduo nu, junto à pedra e ao mar realizou a

terapia última. Depois de se desvencilhar dos regimes sócio-técnicos de modelização,

lavou as marcas corporais (marcas psicossomáticas), o saldo afetivo da cultura. A pedra

(o inorgânico) é o bálsamo que completa o desenrolamento. Em A Via Crucis ocorre a

primeira parte do processo: o modo como o social (o poder) opera para modelar as

30 Foram realizadas duas entrevistas com Nelson dos Santos Machado sobre os filmes A Via Crucis e Olaria. Nenhum outro participante na produção destes dois filmes foi entrevistado.31 Silvio Pléticos, nascido na Itália, fixou residência em Florianópolis em 1967, onde teve papel importante na renovação do ensino de artes plásticas.32 PEREIRA, S. V., op. cit. p. 45

Page 16: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

individuações. Trata-se de um processo de inclusão social que se realiza pela negação

da singularidade. A posição de crucificado pode ser a metáfora da imobilização de uma

singularidade fixada nas coordenadas x/y de uma determinada ordem social. É o

“enrolamento do novelo”, a captura de uma individuação. Se recorremos à figura do

“novelo” (enrolamento e desenrolamento) para refletir sobre os dois filmes, é no sentido

de demarcar, a partir do final da década de 1960, a emergência de uma nova percepção

sobre o campo social e sobre os processos de constituição dos indivíduos.

O terceiro filme, Olaria, um documentário com dez minutos de duração,

realizado em 1976, opera um deslocamento espacial. Não trata do espaço urbano, nem

da Ilha de Santa Catarina. Olaria aborda a manufatura de objetos de cerâmica no

município de São José, uma atividade que estava em extinção devido ao avanço da

produção industrial. A narrativa visual mostra o processo de produção de artefatos de

argila, descrevendo a realidade objetiva das etapas de trabalho, desde a chegada do

barro até o objeto pronto. O plano sonoro faz um outro percurso. Através do

depoimento de dois oleiros (pai e filho), o filme dá voz à experiência subjetiva, à

singularidade do sujeito que fala. Embora o plano visual demonstre o processo de

trabalho naquilo que ele tem de genérico, o plano do áudio não é expressão de um oleiro

genérico. A obsolescência dos artefatos de cerâmica, que são substituídos por utensílios

produzidos pela indústria com novos materiais, é narrada pelos oleiros a partir da

experiência e da trajetória particular de cada um.

Olaria foi dirigido, fotografado e montado por Deborah Cardoso Duarte e

Nelson dos Santos Machado. A elaboração do roteiro contou também com a

participação de José Henrique Moreira e Iracema Moreira. Não há no filme a inclusão

da ficha técnica. Olaria foi exibido na V Jornada Brasileira de Curtas-metragens, em

1976, realizada em Salvador, patrocinada pela Universidade Federal da Bahia e pelo

Instituto Goethe de Salvador. Neste evento recebeu o Prêmio Cinemateca do Museu de

Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAN.

A abordagem de Olaria expressa uma atenção aos efeitos acarretados pela nova

fase de inserção do Brasil no quadro do capitalismo internacional, afetando de modo

cada vez mais ostensivo o cotidiano dos habitantes de uma cidade que até então se

mantivera relativamente periférica às grandes transformações vivenciadas nos centros

urbano-industriais. Atesta também uma aproximação a reflexões sobre a dinâmica

própria às sociedades tradicionais e sobre o impacto acarretado a estas sociedades pela

Page 17: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

expansão das relações capitalistas de produção. Para além destes aspectos, Nelson

Machado apontou uma motivação estética para a realização de Olaria:

Inicialmente, o ponto de partida era uma questão plástica, era um belo que estava sendo corrompido, fragmentado, diluído... na verdade era um vaso que estava se quebrando, pra usar a expressão da própria cerâmica... a gente ficou apavorada, meu Deus, vai sumir esse negócio! 33

Em um estudo sobre Novelo, A Via Crucis e Olaria, Sissi Valente Pereira

apontou diversas características formais que, em maior ou menor grau, estão presentes

nos filmes.34 Observou a predominância de planos fechados, que dificultam a

contextualização dos objetos e dos personagens, que aparecem quase sempre “cortados”

pelos limites da tela. Outra característica é a transição brusca de um plano ao outro,

causando uma sensação de rigidez na montagem e ao mesmo tempo favorecendo a

criação de uma multiplicidade de sentidos resultante da associação de planos que não

estão obviamente relacionados. A utilização de uma narrativa não-linear favorece a

produção de significados em cada cena isolada ou nas junções parciais; ao mesmo

tempo deixa fluida a relação das partes com o todo da montagem. As cenas gravadas em

contra-luz, de modo particular utilizadas em A Via Crucis, dificultando a observação da

fisionomia dos personagens, sugerem um apagamento da individualidade. Há um

cuidado grande com a escolha dos enquadramentos, com a construção de planos

esteticamente consistentes e semanticamente significativos. Com freqüência os planos

são preenchidos com elementos cuja relação com a narrativa não é óbvia e com uma

função simbólica algumas vezes obscura.35

O passado agrega valor ao presente

Estes três filmes, realizados entre os anos de 1968 e 1976, demarcam um

momento particular na produção artístico-cultural florianopolitana e são permeados por

referências filosóficas e ideológicas provenientes de Maio de 68, da contracultura, do

marxismo e dos diversos movimentos revolucionários na América Latina. Há nos filmes

uma leitura crítica da nova fase de inserção do Brasil no quadro das relações capitalistas

e um posicionamento frente à ditadura militar implantada no país em 1964.

33 Entrevista com Nelson dos Santos Machado, realizada por Sissi Valente e Gláucia Costa, em 05 de maio de 2005.34 PEREIRA, S. V., op. cit. p. 32-51.35 Para as análises desenvolvidas na pesquisa de Sissi Valente Pereira, realizada sob minha orientação, foram fundamentais os seguintes autores: XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência, Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1977 e BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo, Companhia das Letras: São Paulo, 2003

Page 18: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

Vimos que desde as décadas de 1940 e 1950 os particularismos locais, com seus

componentes arcaicos, ganharam um novo estatuto, sob o invólucro de “tradição”. Estas

práticas culturais, revestidas de historicidade (a colonização açoriana) e legitimadas na

sua diferença em relação à modernização (são remanescentes de uma outra época

histórica), passaram a ganhar um valor positivo como “tradição”. No entanto, se as

antigas práticas culturais gradualmente deixavam de ser percebidas de modo

depreciativo, permaneciam ocupando áreas na fronteira dos espaços urbanos

modernizados. A resignificação do “antigo” não garantia um estatuto de inviolabilidade

frente às demandas da urbanização: verticalização das edificações do centro histórico e

balnearização das praias. Nos anos 60 e 70 este processo se acentuou, bloqueando, por

assim dizer, o vetor de valorização da tradição. Foi apenas no decorrer dos anos 70 que

se difundiu no campo social a consciência de que a modernização acarretava na perda

de elementos materiais e imateriais do passado, o que não impediu a devastação do

patrimônio arquitetônico e a desagregação das comunidades “tradicionais”.

Através de diversos programas dos órgãos públicos municipais e estatuais, de

forma mais incisiva a partir do início da década de 1980, foi construída uma agenda

cultural que, apoiada pela mídia e tendo por objetivo o fomento do turismo, passou a

pautar também a criação artístico-cultural, na medida em os realizadores dependem dos

recursos financeiros do Estado e da iniciativa privada. Estas produções, às vezes

motivadas pelo desejo de preservar as tradições, com freqüência enaltecem um feliz

passado, mais tranqüilo, o tempo lento dos “açorianos” ou dos “manezinhos”.36 Todavia

acabam, paradoxalmente, propagando o mito do paraíso ilhéu - ilha das bruxas, ilha da

magia etc. - que tem servido para transformar a cultura local em chamariz para

empreendimentos turístico-imobiliários. Assim, sob o rótulo de “açorianidade” ou de

“manezinho”, elementos dos modos de vida e das práticas culturais tradicionais vêm

sendo valorizados, sob a condição de servirem de atrativos turísticos. A produção

artística e cultural, em particular a produção audiovisual, vem cumprindo uma função

estratégica nesta operação simbólica que possibilita a transformação da cultura e da

história em produtos aptos a agregar valor aos empreendimentos turístico-imobilários.

36 O termo “mané” ou “manezinho”, para designar aqueles que não estavam integrados ao meio urbano, deixou de ter um sentido pejorativo apenas nos anos 80. Um marco foi a criação do Troféu Manezinho da Ilha em 1987. Para uma reflexão sobre as transformações no termo “manezinho” ver: LIMA, Ronaldo e SOUZA, Ana Cláudia, “Flutuação de sentido: um estudo na ilha de Santa Catarina” in: Revista Philologus do Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos (CiFEFiL), Rio de Janeiro, 2005, ano 11, nº 33. http://www.filologia.org.br/revista/33/05.htm, consultado em 16/04/2008.

Page 19: O Cinema de Experimentação Em Florianópolis Nas Décadas de 1960 e 1970 - Contrapontos à Mercantilização Da Cultura Local

Concluindo este panorama das primeiras experiências cinematográficas em

Florianópolis, cabe chamar a atenção para o fato de estes três curtas-metragens

produzidos entre 1968 e 1976 não foram pautados nem pela descoberta da tradição nem

pela sua conversão em mercadoria turística. Novelo, A Via Crucis e Olaria ficaram

então à margem da produção cultural que tem sido divulgada pela mídia e apropriada

com fins de promoção turística de Florianópolis. Nos três filmes a experiência da

modernização implica em estados de crise. Novelo mostra o congestionamento da ponte

Hercílio Luz e também a congestão de um indivíduo que, como tratamento, constrói

uma rota de fuga se despojando das marcas da civilização. A Via Crucis pontua, através

de seis “estações”, as formas sociais de condicionamento das individuações, culminando

na crucificação, no aprisionamento nas coordenadas x/y. Os planos finais sugerem uma

cidade que prossegue talvez indiferente ou automatizada. Que estas duas histórias

transcorram em Florianópolis é mera decorrência do local em que os filmes foram

produzidos. Ainda que os filmes na atualidade sejam um precioso documento sobre

aspectos próprios a esta localidade, - por exemplo, o antigo convívio entre o urbano e o

mar, as obras de asfaltamento e os engarrafamentos na Ponte Hercílio Luz -, os

elementos que remetem a um cenário local estão a serviço de uma crítica à opressão e

aos valores dominantes. Não há uma glamorização dos particularismos locais. Esta é

também a abordagem de Olaria, que desloca o problema para a tensão entre as formas

tradicionais de existência e a expansão das relações capitalistas de produção. Ao invés

de uma apologia à cultura e à história regional, os filmes são pautados pelo exercício da

reflexão crítica. Não se trata de desamor ao local mas de atenção às implicações dos

processos que regem as relações entre a aldeia e o universo.