O Clichê Como Artifício Nas Artes e Na Cultura Midiática Contemporânea

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7/25/2019 O Clichê Como Artifício Nas Artes e Na Cultura Midiática Contemporânea http://slidepdf.com/reader/full/o-cliche-como-artificio-nas-artes-e-na-cultura-midiatica-contemporanea 1/14 O clichê como artifício nas artes e na cultura midiática contemporânea Cliché as artifice in the arts and in contemporary media culture     R     E     V     I     S     T     A     E     C     O      P      Ó     S     |     I     S     S     N      2     1     7     5   -     8     6     8     9     |     A     S     F     O     R     M     A     S     D     O     A     R     T     Í     F     I     C     I     O     |     V  .     1     8     |     N  .     3     |     2     0     1     5     |     D     O     S     S     I      Ê Neste artigo, propomos encaminhar uma discussão sobre o clichê que se afasta das leituras que o associam unicamente a uma perda de potência das imagens. Para tanto, buscamos recuperar as dis- tinções entre os clichês e as imagens, a fim de demarcar as interseções e a própria permeabilidade entre tais conceitos. Nosso argumento é o de que os clichês podem operar como uma das formas possíveis do artifício nas artes e na cultura midiática, constituindo um importante recurso para o engajamento afetivo do espectador com as imagens. Ao longo da argumentação, as obras de Andy Warhol e Chantal Akerman emergem como dois pontos possíveis de intensificação do clichê como recurso estético. PALAVRAS-CHAVE: Imagem; clichê; Artifício; Afeto. In this article we seek to address some remarks on the notion of cliché that avoid its association with a necessary decrease in the powers of images. In order to develop this approach, we reassess the op- position between images and clichés to highlight the intersections and the permeability between those two competing notions. Our argument is that clichés may function as a form of artifice in arts and media culture, thus providing an important resource for the spectator’s affective engagement with images. In our analysis, the works of Andy Warhol and Chantal Akerman are presented as two examples for the intensification of clichés as an aesthetic procedure. KEYWORDS: Image; cliché; artífice; affect. RESUMO ABSTRACT O CLICHÊ COMO ARTIFÍCIO NAS ARTES E NA CULTURA MIDIÁTICA CONTEMPORÂNEA FÁBIO RAMALHO www.pos.eco.ufrj.br DOSSIÊ 75 SUBMETIDO EM: 10/10/2015 ACEITO EM: 28/10/2015 Fábio Ramalho Professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Doutor em Comunicação (2014) pela Universidade Federal de Pernambuco, com tese sobre a apropriação e o deslocamento de repertórios audiovisuais como modos de engajamento afetivo. Concluiu seu mestrado em Comunica- ção (2009) na mesma instituição, com pesquisa sobre cinema latino-americano contemporâneo. E-mail: [email protected]  

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Clicheacute as artifice in the arts and incontemporary media culture

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Neste artigo propomos encaminhar uma discussatildeo sobre o clichecirc que se afasta das leituras que oassociam unicamente a uma perda de potecircncia das imagens Para tanto buscamos recuperar as dis-tinccedilotildees entre os clichecircs e as imagens a fim de demarcar as interseccedilotildees e a proacutepria permeabilidadeentre tais conceitos Nosso argumento eacute o de que os clichecircs podem operar como uma das formaspossiacuteveis do artifiacutecio nas artes e na cultura midiaacutetica constituindo um importante recurso para oengajamento afetivo do espectador com as imagens Ao longo da argumentaccedilatildeo as obras de AndyWarhol e Chantal Akerman emergem como dois pontos possiacuteveis de intensificaccedilatildeo do clichecirc comorecurso esteacuteticoPALAVRAS-CHAVE Imagem clichecirc Artifiacutecio Afeto

In this article we seek to address some remarks on the notion of clicheacute that avoid its association witha necessary decrease in the powers of images In order to develop this approach we reassess the op-position between images and clicheacutes to highlight the intersections and the permeability betweenthose two competing notions Our argument is that clicheacutes may function as a form of artifice in artsand media culture thus providing an important resource for the spectatorrsquos affective engagementwith images In our analysis the works of Andy Warhol and Chantal Akerman are presented as twoexamples for the intensification of clicheacutes as an aesthetic procedureKEYWORDS Image clicheacute artiacutefice affect

RESUMO

ABSTRACT

O CLICHEcirc COMO ARTIFIacuteCIO NAS ARTES E NA CULTURA MIDIAacuteTICA CONTEMPORAcircNEA 983085 FAacuteBIO RAMALHO | wwwposecoufrjbr

DOSSIEcirc

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SUBMETIDO EM 10102015ACEITO EM 28102015

Faacutebio RamalhoProfessor da Universidade Federal da Integraccedilatildeo Latino-Americana (UNILA)Doutor em Comunicaccedilatildeo (2014) pela Universidade Federal de Pernambucocom tese sobre a apropriaccedilatildeo e o deslocamento de repertoacuterios audiovisuais

como modos de engajamento afetivo Concluiu seu mestrado em Comunica-ccedilatildeo (2009) na mesma instituiccedilatildeo com pesquisa sobre cinema latino-americanocontemporacircneoE-mail fabioallanmgmailcom

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No centro dos debates sobre a cultura contemporacircnea encontramos a reiteraccedilatildeode discursos acerca da saturaccedilatildeo do campo do visiacutevel ocasionada pela multi-plicaccedilatildeo dos fluxos de produccedilatildeo e de circulaccedilatildeo audiovisual Tal diagnoacutestico

pressupotildee um encadeamento muitas vezes formulado de maneira pouco rigorosa

entre proliferaccedilatildeo excesso e esvaziamento das imagens em uma rede de viacutenculoscuja dinacircmica conjuga o reconhecimento da supremacia do olhar com o seu reversoqual seja a constataccedilatildeo de uma crescente debilidade do olhar

Natildeo seria este aliaacutes o uacutenico paradoxo da ldquocivilizaccedilatildeo da imagemrdquo Martine Joly (2004)observa numa obra que busca introduzir didaticamente algumas abordagens para aanaacutelise das imagens que a busca de um meacutetodo capaz de orientar o olhar se justificapela recorrecircncia de duas noccedilotildees muito difundidas Segundo a autora ldquopor um ladolemos as imagens de uma maneira que nos parece totalmente lsquonaturalrsquo que aparente-mente natildeo exige qualquer aprendizadordquo poreacutem ao mesmo tempo haacute uma suspeitadisseminada de que as imagens trariam sempre um teor velado impliacutecito e seriamagenciadas por um grupo de ldquoiniciados que conseguem nos lsquomanipularrsquo afogando-nos com imagens em coacutedigos secretos que zombam de nossa ingenuidaderdquo (Joly2004 p10)

Para Joly

Este ldquoprogramardquo de formaccedilatildeo se torna ainda mais importante uma vez que a crenccedila noato de olhar como algo natural eacute reforccedilada por grande parte dos discursos audiovi-suais hegemocircnicos que tecircm nessa suposta imediaticidade de apreensatildeo das imagensum elemento fundamental para a construccedilatildeo dos seus discursos

O que a conjunccedilatildeo entre excesso e esgotamento que permeia tais formulaccedilotildees buscaenfatizar eacute a hipoacutetese de que a vastidatildeo quantitativa da nossa produccedilatildeo simboacutelica esensorial guardaria como sua contraface menos evidente a tendecircncia a um empo-brecimento qualitativo na medida em que a reiteraccedilatildeo de padrotildees elementos tiacutepicos

e regimes de codificaccedilatildeo das imagens nos garantem o conforto do reconhecimentoe da reiteraccedilatildeo em meio a um universo midiaacutetico exuberante que toma de assalto osnossos sentidos

A questatildeo do olhar passaria portanto pelo desafio de como ver em um mundo queno fim das contas encontra-se marcado pelo predomiacutenio do jaacute visto A esse respeitopoderiacuteamos recorrer por exemplo a uma conferecircncia proferida por Nelson BrissacPeixoto nos anos 1980 periacuteodo marcado pelo auge do debate poacutes-modernista a res-peito dos entrelaccedilamentos entre espetaacuteculo simulacro e consumo no cerne da cul-tura ocidental

uma iniciaccedilatildeo miacutenima agrave anaacutelise da imagem deveria precisamente ajudar-nos aescapar dessa impressatildeo de passividade e ateacute de lsquointoxicaccedilatildeorsquo e permitir-nos aocontraacuterio perceber tudo o que essa leitura lsquonaturalrsquo da imagem ativa em noacutes emtermos de convenccedilotildees de histoacuteria e de cultura mais ou menos interiorizadas(Joly 2004 p10)

1 Imagens e clichecircs na contemporaneidade

nunca a questatildeo do olhar esteve tatildeo no centro do debate da cultura e das socie-dades contemporacircneas Um mundo onde tudo eacute produzido para ser visto ondetudo se mostra ao olhar coloca necessariamente o ver como um problema Aqui

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Trata-se menos aqui de tomar um texto de intervenccedilatildeo e fazecirc-lo passar por siacutenteseda perspectiva de seu autor ndash gesto que implicaria trair o caraacuteter efecircmero que marca

sua proacutepria natureza contingente uma vez que consiste num argumento produzidopara ser lido numa conferecircncia ndash do que encontrar nele o marcador de um diagnoacutesti-co que marcou uma eacutepoca e que ainda hoje se mostra tatildeo difuso quanto pervasivo

Discorrendo sobre a televisatildeo um dos focos desta criacutetica da redundacircncia midiaacuteticaBeatriz Sarlo escreve tambeacutem no contexto da discussatildeo sobre o poacutes-moderno que ldquoaimagem perdeu toda a intensidaderdquo (Sarlo 2004 p53) e faz seguir agrave sua formulaccedilatildeocategoacuterica uma seacuterie de consideraccedilotildees sobre as propriedades e mecanismos de fun-cionamento do meio televisivo Esse meio estaria marcado pela predominacircncia de ldquoi-magens de preenchimentordquo uma espeacutecie de ldquomareacute gelatinosa onde flutuam afundame emergem os signos reconheciacuteveis que necessitam dessa massa moacutebil de imagens justamente para poder diferenciar-se dela despertar surpresa e circular com rapidezrdquo(Sarlo 2004 p62)

Em seu limite tal diagnoacutestico de eacutepoca se configura como sentimento de perda em

relaccedilatildeo a uma poliacutetica preacutevia das imagens que operava segundo uma loacutegica da escas-sez garantia de que se alcanccedilasse uma potecircncia naquilo que se apresentava ao olharem contraponto agrave ldquodesencarnaccedilatildeordquo do mundo resultante do excesso de imagens

Ao argumento da banalizaccedilatildeo e da proliferaccedilatildeo como perdas de potecircncia das ima-gens alguns pensadores responderam com uma delimitaccedilatildeo mais estrita da proacutepriaimagem como conceito lanccedilando matildeo de distinccedilotildees que em uacuteltima instacircncia busca-ram apartaacute-la de seu excedente banal saturado esvaziado Tomemos a esse respeitoa ceacutelebre resposta dada por Gilles Deleuze aos intentos de caracterizar o contemporacirc-neo como uma era da imagem ldquocivilizaccedilatildeo da imagem Na verdade uma civilizaccedilatildeodo clichecirc na qual todos os poderes tecircm interesse em nos encobrir as imagens natildeoforccedilosamente em nos encobrir a mesma coisa mas em encobrir alguma coisa na ima-gemrdquo (Deleuze 2007 p32)

Temos nesta afirmaccedilatildeo um duplo movimento ao mesmo tempo em que o filoacutesofobusca diferenciar a imagem de sua imobilizaccedilatildeo da paralisia dos seus efeitos ele natildeodeixa de endossar tambeacutem de certo modo o diagnoacutestico do tempo presente comoaquele que eacute marcado pela perda de potecircncia nas formas que permeiam os artefatos

natildeo existem mais veacuteus nem misteacuterios Vivemos no universo da sobreexposiccedilatildeoe da obscenidade saturado de clichecircs onde a banalizaccedilatildeo e a descartabilidadedas coisas e imagens foi levada ao extremo Como olhar quando tudo ficou in-distinguiacutevel quando tudo parece a mesma coisa (Peixoto 1988 p 361)

com esta proliferaccedilatildeo das imagens entramos na era da produccedilatildeo do real Aquiloque era pressuposto do olhar eacute agora o seu resultado Natildeo haacute mais distinccedilatildeo en-tre realidade e artifiacutecio entre experiecircncia e ficccedilatildeo entre histoacuteria e estoacuterias Nossaidentidade e lugar satildeo constituiacutedos a partir de um imaginaacuterio e uma iconografiacriados pela induacutestria cultural Este mediascape eacute a realidade onde os indiviacuteduoshoje vivem (Peixoto 1988 p362)

isto eacute o que aprendemos da modernidade que a forccedila vem da subtraccedilatildeo queda ausecircncia nasce a potecircncia Natildeo paramos de acumular de adicionar de do-brar a aposta E por natildeo sermos jaacute capazes de confrontar o domiacutenio simboacutelicoda ausecircncia submergimo-nos hoje na ilusatildeo contraacuteria ilusatildeo desencantada daprofusatildeo ilusatildeo moderna de telas e imagens que proliferam (Baudrillard 2006p17 traduccedilatildeo nossa)

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culturais em circulaccedilatildeo incluindo-se aiacute o cinema a muacutesica a literatura Eacute interessantenotar ainda que segundo esta perspectiva a imagem estaria desde sempre imbuiacutedade uma qualidade positiva tudo aquilo que investe nos haacutebitos da percepccedilatildeo e anes-tesia os sentidos tudo aquilo que se encontra esvaziado de sua potecircncia de nos a-fetar de desencadear as forccedilas do pensamento e de potencializar a experimentaccedilatildeosensiacutevel do mundo suscitando reflexatildeo estranhamento admiraccedilatildeo e criacutetica recairia

numa zona aqueacutem ou aleacutem dos domiacutenios daquilo que seria definido como imagemDito de outro modo o banal a repeticcedilatildeo a saturaccedilatildeo seriam qualidades relegadas aooutro polo de uma distinccedilatildeo entre civilizaccedilatildeo da imagem e civilizaccedilatildeo do clichecirc comomodalidades concorrentes na caracterizaccedilatildeo dos rumos das sociedades ocidentais

Natildeo por acaso entatildeo Gilles Deleuze e Feacutelix Guattari (1992) reivindicam para o campoda arte a funccedilatildeo de criar afetos Os afetos sem nome satildeo o desdobramento de umtrabalho que investe naquilo que natildeo estaacute ainda formado e nesse sentido precedeo processo de cristalizaccedilatildeo que viria barrar o fluxo criativo Assim por exemplo se-gundo os autores ldquoquando Emily Bronteacute traccedila o liame que une Heathcliff e Catherineela inventa um afeto violento (que sobretudo natildeo deve ser confundido com o amor)algo como uma fraternidade entre dois lobosrdquo (Deleuze Guattari 1992 p226-7) Esseldquonatildeo dever ser confundido comrdquo essa criaccedilatildeo de um mundo sem precedentes quecomo tal natildeo se adeacutequa a qualquer modelo em que porventura se pretenda sub-sumi-lo eacute sem duacutevida uma bela potencialidade da arte ainda mais porque permiteconstituir um mundo que eacute marcado por sua singularidade e como tal nos move nocaso mencionado um forte viacutenculo de cumplicidade se conjuga com certa disposiccedilatildeoanimalesca para demarcar a qualidade de uma relaccedilatildeo a partir de uma composiccedilatildeonotavelmente eloquente expressiva

Se o clichecirc eacute aquilo que imobiliza o pensamento o desafio da nossa sociedade se-

ria portanto o de investir na potecircncia da imagem ou seja catalisar aquilo que elatem de desestabilizante de imprevisto de revelador Evitar com isso que ela atue demaneira meramente ratificadora suscitando pelo contraacuterio experiecircncias de realidadeque permitam explorar potencialidades do corpo modos de experiecircncia e linhas depensamento a serem traccediladas Detendo-se nesse ponto Rodrigo Gueroacuten (2011) bus-cou deslindar a diferenciaccedilatildeo entre imagem e clichecirc com vistas a traccedilar os movimen-tos que levam de um a outro Um aspecto interessante de sua abordagem eacute portantotornar expliacutecita a compreensatildeo de que tais noccedilotildees natildeo funcionam como categoriasestanques ou modelos para tipificaccedilatildeo elas constituem posiccedilotildees moacuteveis de maneiratal que imagens natildeo cessam de se converter em clichecircs e vice-versa

O clichecirc seria o operador de esquemas que instauram e buscam preservar uma or-dem de causalidades atuando assim como agente de uma contraforccedila que interceptaldquotodas as possibilidades produtivas atraveacutes das quais a vida se manteacutem e se reinventardquo(Gueroacuten 2011 p64) No que poderiacuteamos apontar como uma das hipoacuteteses centraisde seu trabalho Gueroacuten busca estabelecer uma aproximaccedilatildeo entre o clichecirc e o quechama de imagem-lei ou imagem-moral dado que esse fechamento ao qual alude opesquisador traccedila uma correspondecircncia entre por um lado ldquoa moral como disciplinapara o corpordquo (Gueroacuten 2011 p137) instauradora de valores e veiacuteculo que busca orga-nizar a histoacuteria em torno de uma lei e por sua vez o clichecirc como ldquoesquema redutor epadronizador dos afetosrdquo (Gueroacuten 2011 p245)

Temos com isso a ideia de que o clichecirc se inscreve no corpo operando uma espeacuteciede anestesia ou paralisaccedilatildeo A amplitude de uma experiecircncia sensiacutevel eacute restringida na

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medida em que provecirc os modelos que permitem assimilar as propriedades sensoacuteriase os efeitos possiacuteveis de uma imagem dentro de um horizonte de sentido preacute-deter-minado

Falar em clichecirc implica sempre portanto falar num passado das imagens que eacute citadorepetido e que nos concede os marcos para enquadrar acomodar e segundo decorredas consideraccedilotildees anteriormente elencadas amortecer uma nova experiecircncia per-ceptiva Caberia no entanto perguntar quem partilha este passado Podemos afinalfalar em um marco uacutenico amparado num histoacuterico comum ou a nossa relaccedilatildeo comas imagens natildeo estaria pelo contraacuterio desde sempre amparada em percursos e ex-periecircncias natildeo tatildeo homogecircneos nem facilmente intercambiaacuteveis Um componentesensiacutevel ou elemento significante se encontra por assim dizer necessariamente ldquocon-denadordquo ao esvaziamento ou sua adequaccedilatildeo a uma rede de causalidades pode serfrustrada tornando a cadeia de associaccedilotildees inefetiva Jaacute vemos abrir-se uma brechapara a problematizaccedilatildeo do clichecirc o passado que o funda eacute incerto bem como o fu-turo de sua atualizaccedilatildeo assinala uma possiacutevel abertura para novas potencialidades

Uma criacutetica do clichecirc precisa considerar mais detidamente a possibilidade de que des-pontem apropriaccedilotildees inventivas deslocamentos e reversotildees do jaacute visto Nesse pontoeacute importante retomar o trabalho de Rodrigo Gueroacuten pois o seu estudo permite natildeoapenas como dito anteriormente enfatizar que a separaccedilatildeo entre imagem e clichecirc eacutepermeaacutevel A certa altura sua argumentaccedilatildeo se abre para uma faceta particularmente

relevante para nossa perspectiva a ideia de um ldquoclichecirc fora do tempordquo como um es-quema que eacute ldquoimpedido de se realizarrdquo (Gueroacuten 2011 p117) O que temos em casoscomo esse eacute a situaccedilatildeo em que uma ldquoimagem ndash o objeto-imagem portanto ndash perdesua funccedilatildeo pragmaacutetica de revelar uma situaccedilatildeo que tenderia a se desdobrar numaaccedilatildeo e a percepccedilatildeo como que retorna se concentra e insiste sobre esta imagemrdquo(Gueroacuten 2011 p117)

Por sua vez eacute importante lembrar que na rejeiccedilatildeo mais apaixonada ao clichecirc podedespontar um conjunto de procedimentos mediante os quais ao final de sua plenarealizaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo esteacutetica reside nada menos que a conformaccedilatildeo de um novo

clichecirc Deleuze natildeo perdeu de vista este risco tornando expliacutecito o problema

No mais vale observar que a noccedilatildeo de clichecirc constitui o paroxismo de uma instacircnciamuito mais ampla de constituiccedilatildeo e apreensatildeo das imagens que eacute a de sua codifica-

o clichecirc constroacutei o seu sentido ou se constroacutei enquanto sentido na medida emque evoca um passado que soacute pode lhe garantir seguranccedila O passado aiacute justi-fica e fecha absolutamente a compreensatildeo do que se percebe da experiecircncia

sensoacuterio-motora presente do real colocando-a na loacutegica de um sentido de umprocesso de uma espeacutecie de destino final (Gueroacuten 2011 p160)

o difiacutecil eacute saber em que uma imagem oacutetica e sonora natildeo eacute ela proacutepria um clichecircquando muito uma foto Natildeo pensamos apenas na maneira pela qual essas ima-gens tornam a produzir um clichecirc a partir do momento em que satildeo retomadaspor autores que delas se servem como foacutermulas Mas os proacuteprios criadores natildeotecircm agraves vezes a ideia de que a nova imagem deva rivalizar com o clichecirc emseu proacuteprio terreno somar algo ao cartatildeo-postal juntar-lhe alguma coisa pa-rodiaacute-lo para melhor se livrar dele (Robbe-Grillet Daniel Schmid) Os criadoresinventam enquadramentos obsedantes espaccedilos vazios ou desconectados ateacutemesmo naturezas-mortas de certo modo eles param o movimento redesco-brem a forccedila do plano fixo mas natildeo seria isso ressuscitar o clichecirc que queriamcombater (Deleuze 2007 p33)

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ccedilatildeo de seu alinhamento a formas e regimes que privilegiam a fixaccedilatildeo e a condensa-ccedilatildeo de uma determinada gama de sentidos de esquemas de percepccedilatildeo e de inteligi-bilidade A saturaccedilatildeo das imagens e a exaustiva colocaccedilatildeo em cena de alguns motivosrecorrentes que como tais apontam certas ordens privilegiadas de encadeamentosprecisam ser postas em questatildeo para que seja possiacutevel perguntar pela sua mobili-dade pela potencialidade que elas apesar de tudo guardariam Daiacute a importacircncia

de discutir obras cujas esteacuteticas que se mostram atravessadas por toda uma gamade hibridaccedilotildees cruzamentos reapropriaccedilotildees e flertes com signos nomeaacuteveis discur-sos saturados imagens e afetos que natildeo cessam de se entremear com as formas quepresidem a sua codificaccedilatildeo ndash e portanto com os movimentos de uma histoacuteria culturalque os elabora e significa

2 O lugar do clichecirc nas emoccedilotildees poacutes-modernas

Em certo ponto de seu estudo sobre o cinema de Chantal Akerman Ivone Margu-lies define muito sucintamente o clichecirc como uma imagem que eacute ldquoconhecida antes

mesmo de ser vistardquo (Margulies 1996 p203) Essa afirmaccedilatildeo natildeo obstante o caraacuteteraparentemente evidente daquilo que enuncia resulta bastante efetiva uma vez quepermite enfatizar aspectos relevantes para uma discussatildeo sobre o clichecirc Dessa sinteacute-tica formulaccedilatildeo podemos extrair algumas ideias Primeiramente o clichecirc nos enredaem uma cadeia de expectativas na qual ele se ampara e que em uacuteltima instacircnciapoderiacuteamos dizer que condiciona sua efetividade Em segundo lugar daiacute decorre queesta acepccedilatildeo do clichecirc se constitui em consonacircncia com a noccedilatildeo de repertoacuterio suadefiniccedilatildeo se refere diretamente agraves imagens conhecidas que em certa medida nos for-mam e que ao mesmo tempo estabelecem marcos para lidar com novas ocorrecircn-cias e novos estiacutemulos Por isso mesmo entatildeo embora seja razoaacutevel estabelecer umabase comum de referecircncia a partir da qual concebemos o que eacute predominantementedo acircmbito do clichecirc a noccedilatildeo se apresenta ela mesma dependente desse repertoacuteriocomo marco variaacutevel Como toda relaccedilatildeo esta tambeacutem estaacute sujeita a variabilidadese contingecircncias e responde a diferentes contextos disposiccedilotildees e modos de engaja-mento

Nas circunstacircncias em que se daacute uma confirmaccedilatildeo daquilo que jaacute conhecemos ou sejaquando a imagem que um filme nos concede atende aos traccedilos formais sensiacuteveis enarrativos que antecipamos parece certo afirmar que aquilo que se encontra diminuiacute-do eacute a potecircncia que essa imagem traria de suscitar uma apreensatildeo inabitual e comisso inventar novas relaccedilotildees suscitar novas experiecircncias sensoriais e de pensamento

No entanto o que muitas vezes fica de fora dessa convicccedilatildeo eacute o prazer da repeticcedilatildeoe da atitude de cotejar as variaccedilotildees possiacuteveis traccedilar recorrecircncias estabelecer redesde correspondecircncias e ressonacircncias A serialidade das imagens remete a toda umagama de disposiccedilotildees culturais bem como a sensibilidades e temporalidades as maisdiversas de modo que eacute plausiacutevel considerar sua ocorrecircncia um fenocircmeno culturale midiaacutetico relevante a ser discutido para aleacutem de uma rejeiccedilatildeo fundada na posturaque qualifica a repeticcedilatildeo como veiacuteculo para a manifestaccedilatildeo de uma redundacircncia va-zia Ainda segundo Margulies

a sobreposiccedilatildeo de repeticcedilatildeo e atualidade invocada por um clichecirc indica seu al-cance social um clichecirc estaacute inevitavelmente envolto nas ressonacircncias prece-dentes de uma dada forma ou representaccedilatildeo O fato de que uma frase ou modoespeciacutefico pode ainda comunicar atraveacutes e apesar de tal redundacircncia nos fala daforccedila do clichecirc Sua potencial efetividade em um filme reside no reconhecimen-

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A questatildeo que se coloca eacute entatildeo como fazer da repeticcedilatildeo da apropriaccedilatildeo do des-locamento de repertoacuterios e de certas composiccedilotildees jaacute conhecidas o motor de umarelaccedilatildeo produtiva com as imagens O universo esteacutetico e midiaacutetico configura tropos

que se tornam familiares reconheciacuteveis e que como tais permitem assimilar umaimagem a esquemas de inteligibilidade ao mesmo tempo em que se imbuem de todauma cadeia de expectativas que podem ser confirmadas ou frustradas O problema deescapar ao clichecirc natildeo eacute simplesmente o de suprimir essa necessidade ou expectativamas o de lograr uma imagem que contorne a sua proacutepria assimilaccedilatildeo de forma raacutepida

Seguindo essa linha de anaacutelise Marion Schmid (2010 p70) sublinha que o cinemade Akerman opera nos campos do deacutejagrave vu e do deacutejagrave entendu A pesquisadora es-creve esse comentaacuterio a propoacutesito de Les Anneacutees 80 (1983) filme de processo quedocumenta o trabalho com atrizes e atores e precede a realizaccedilatildeo do que viria a ser omusical Golden Eighties (1986) Sua observaccedilatildeo poreacutem aplica-se a muitos dos pro-cedimentos que permeiam a filmografia da realizadora e em especial nos filmes desseperiacuteodo De fato tanto Margulies quanto Schmid assinalam a propoacutesito da carreira deAkerman um ponto de inflexatildeo que talvez natildeo casualmente coincide com o iniacuteciodos anos 1980 deacutecada marcada pelo auge das ideias e esteacuteticas poacutes-modernistas Osdesdobramentos da filmografia da realizadora levam-na a experimentar alternativas agravemestria1 ao ascetismo e ao caraacuteter estrutural que marcaram sua produccedilatildeo preceden-te buscando pelo contraacuterio exacerbar em sua esteacutetica a partir de entatildeo um caraacuteterimpuro

Ao falar em impureza recorremos ao termo proposto por Guy Scarpetta (1985) para

pensar parte da produccedilatildeo artiacutestica deste mesmo periacuteodo Embora natildeo analise espe-cificamente o cinema de Akerman a descriccedilatildeo que o autor faz dos impasses aos quaisa arte mais inventiva dessa eacutepoca buscou responder guarda estreitas correspondecircn-cias com as questotildees agraves quais os filmes da diretora naqueles anos se vincularam Scar-petta escreve o diagnoacutestico (alegoacuterico) de uma cultura que se encontra presa em umimpasse no cruzamento entre duas tendecircncias uma tradiccedilatildeo que natildeo eacute capaz de serenovar ndash ldquoum passado sem porvirrdquo ndash e uma arte experimental cheia de promessas defuturo mas que fez taacutebula rasa de seu passado e jaacute enfrenta a crise de como sustentaro imperativo do novo ndash ldquoum porvir sem passadordquo (Scarpetta 1985 p8)

O que vale sublinhar especialmente eacute como a noccedilatildeo de impureza busca dar contade obras e artistas que justamente exploram uma via de criaccedilatildeo que contorna tantoa regressatildeo ao academicismo a condenaccedilatildeo do moderno e ldquoa repeticcedilatildeo morna dopassadordquo quanto a redundacircncia de parte da cultura de massa (Scarpetta 1985 p9)Embora sem duacutevida esquemaacutetico esse panorama aponta para uma proposiccedilatildeo re-levante nos termos daquilo que permite formular uma vertente esteacutetica que tratariao passado da arte e o kitsch massivo ldquoem segundo grau sem inocecircncia por desviossobrecodificaccedilotildees corrupccedilatildeo desnaturalizaccedilatildeordquo (Scarpetta 1985 p9) Em suma umaesteacutetica da impureza Natildeo precisamos enfim seguir a dualidade traccedilada pelo autorque contrapotildee de um lado ldquocriteacuterios demasiado estritos linhas valores obrigadosnormas terroristasrdquo e do outro ldquoa ausecircncia de todo criteacuterio a profusatildeo heteroacuteclita deesteacuteticas a confusatildeo dos valoresrdquo para situar aiacute uma fase de suspensatildeo irresolutaquando os artistas se debateriam entre esses dois polos (Scarpetta 1985 p18-9)

1 Veja a esse respeito a entrevista que a diretora concedeu a Alain Philippon nos Cahiers du cineacutema (1982)

to da diferenccedila que o clichecirc pode ainda significativamente sugerir (Margulies1996 p84 traduccedilatildeo nossa)

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Steven Shaviro (2007) tambeacutem discute o jaacute mencionado musical Golden eighties Natildeoobstante em sua anaacutelise a ecircnfase recai sobre os afetos e como eles afastam qualquerpretensatildeo de autenticidade na medida em que se tornam manifestos na obra a partirdo clichecirc Shaviro chama a atenccedilatildeo em seu artigo sobre o filme para a ldquoqualidadegeneacutericardquo que se estabelece como recurso para a constituiccedilatildeo de determinadas cenasna medida em que elas se fundam sobre uma seacuterie de elementos tiacutepicos a muacutesica

sobretudo mas tambeacutem os gestos e expressotildees faciais que tornam as emoccedilotildees mobi-lizadas pela peliacutecula imediatamente legiacuteveis

Conforme Shaviro se empenha tambeacutem em argumentar haacute pontos de contato quepermitem traccedilar correspondecircncias entre a arte modernista e a cultura de massa sendoo gecircnero musical uma forma privilegiada para discutir tal aproximaccedilatildeo Para ele tantoo projeto modernista quanto o projeto da MGM ldquodesfazem o dualismo que situaria asrepresentaccedilotildees em um lado de uma divisatildeo intransponiacutevel e as coisas que estatildeo sendorepresentadas no outrordquo (Shaviro 2007 p13) Ainda segundo o autor

Temos aqui uma perspectiva ainda mais incisiva que aquela de Guy Scarpetta umavez que ela natildeo situa o entrecruzamento de tais projetos em um momento posteriorde rearticulaccedilatildeo ndash que aleacutem do mais eacute localizado sobretudo na produccedilatildeo de diretoresem maior ou menor grau legitimados como autores ndash mas no cerne mesmo de cadauma das vertentes de criaccedilatildeo

O trabalho de elaboraccedilatildeo formal presente em artefatos culturais massivos apresentacaracteriacutesticas que Shaviro argutamente conecta agraves teorias do afeto a ausecircncia deprofundidade a inadequaccedilatildeo de qualquer noccedilatildeo de autenticidade e a potecircncia dacitaccedilatildeo como recurso para suscitar um engajamento afetivo De fato satildeo os termosdessa polarizaccedilatildeo autecircntico-falso que o autor trata de romper Daiacute porque pode serespecialmente produtivo seguir os argumentos do autor acerca da relevacircncia dos cli-checircs estereoacutetipos e citaccedilotildees para o entendimento das maneiras pelas quais a culturado espetaacuteculo investe sobre nossos afetos e emoccedilotildees2

Se as imagens podem mobilizar o afeto na direccedilatildeo de uma ruptura eacute verdade ainda

que elas frequentemente lidam com questotildees de inteligibilidade e de transmissibili-dade Natildeo conveacutem simplesmente deplorar tais processos como agentes de vulgar-izaccedilatildeo ou de reduccedilatildeo das potencialidades da imagem mas pelo contraacuterio discutirem que medida eles podem ser valiosos para discutir as passagens mediante as quaisos afetos se inscrevem no corpo e se traduzem em gestos performativos e signos cul-turais compartilhados Eacute exatamente esse aspecto que Shaviro enfatiza quando ob-serva que satildeo em grande medida os clichecircs que tornam o sentimento legiacutevel para noacutesnatildeo apenas na posiccedilatildeo de espectadores mas tambeacutem quando lidamos com aquelesmais supostamente autecircnticos os nossos proacuteprios

Segundo o autor ldquoa natureza convencional dos signos que indicam e comunicamsentimentosrdquo eacute aquilo que os torna compreensiacuteveis ldquonatildeo apenas para os outros mastambeacutem (e mesmo talvez mais crucialmente) para noacutes mesmosrdquo (Shaviro 2007 p15)

2 Em sua argumentaccedilatildeo Shaviro recorre ao afeto e agrave emoccedilatildeo como noccedilotildees correlatas e em certa medida intercambiaacuteveis

Akerman descobre o ponto preciso onde MGM e modernismo satildeo indiscerniacuteveis

Ela recapitula o ideal esteacutetico moderno da unidade de forma e conteuacutedo masseu insight poacutes-modernista consiste em reconhecer que esta unidade eacute jaacute elamesma uma construccedilatildeo das forccedilas do entretenimento da moda e do comeacutercio(Shaviro 2007 p13 traduccedilatildeo nossa)

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Aqui ele parece se esforccedilar para deixar claro que os signos convencionais natildeo atuamapenas no processo da elaboraccedilatildeo cultural de formas que significam e expressam osafetos mas que a citacionalidade3 eacute inseparaacutevel da maneira como estes se manifes-tam corporalmente O teoacuterico eacute incisivo em relaccedilatildeo a esse aspecto ldquoEu gostaria desugerir que haacute um sentido em que o afeto soacute eacute lsquoverdadeirorsquo quando eacute uma citaccedilatildeo umlsquocomo sersquordquo (Shaviro 2007 p16)

Posicionamento semelhante jaacute havia sido elaborado em texto anterior no qual o au-tor busca definir os contornos daquilo que poderia ser entendido como uma ldquoemoccedilatildeopoacutes-modernardquo especialmente quando consideramos artefatos culturais que jaacute seencontram intensamente imbricados na loacutegica da mercadoria Acionando a figurade Andy Warhol Shaviro (2004) traz para primeiro plano uma gama de manifesta-ccedilotildees corporais artiacutesticas e performativas que jogam com o artifiacutecio para realccedilar umaemoccedilatildeo que natildeo pode ser expressa senatildeo por meio da ironia da auto-reflexividade eda teatralizaccedilatildeo enfim de um exacerbado esteticismo

Lugar de destaque neste processo cabe agrave televisatildeo ndash que com sua assemblage deformas e conteuacutedos diversos termina por criar as condiccedilotildees para uma espectatori-alidade desprovida de interesse ou de forte engajamento ndash e tambeacutem ao cinema noqual o artifiacutecio pelo contraacuterio suscitaria uma espeacutecie de intensificaccedilatildeo dos afetos soba forma de uma qualidade de resposta maior que aquela vivenciada nas circunstacircn-cias supostamente mais ldquoreaisrdquo do que nos acontece fora da tela

Natildeo se trata apenas do fato de que as emoccedilotildees no cinema sejam mais claramentevisiacuteveis O que a declaraccedilatildeo de Warhol citada por Shaviro sugere eacute a constituiccedilatildeo decondiccedilotildees tais que a emoccedilatildeo pode repercutir corporalmente de maneira exacerbadaWarhol assim natildeo deixa de descrever uma postura de acordo com a qual a indife-renccedila agravequilo que acontece agrave sua volta e por outro lado a paixatildeo por certas formas es-teacuteticas satildeo as duas facetas daquilo que viria constituir uma espeacutecie de neodandismoNesta forma peculiar de self-fashioning os novos meios da eacutepoca ocupam portantoposiccedilatildeo especial como operadores de uma pedagogia O ponto de inflexatildeo que de-marca a constituiccedilatildeo das jaacute mencionadas dobras sobre as emoccedilotildees ndash auto-reflexivi-

dade ironia teatralizaccedilatildeo ndash e que seriam impossiacuteveis de serem desvencilhadas dosmodos pelos quais tais emoccedilotildees satildeo elaboradas visivelmente seria portanto a novacultura midiaacutetica que segundo Warhol teria ldquomatadordquo suas emoccedilotildees

Shaviro retoma o modo como Warhol ldquofabrica uma sensibilidade e um estilordquo (Shaviro2004 p125) para pensar como as emoccedilotildees se pareceriam no contexto cultural queveio a ser chamado de poacutes-moderno Neste ponto eacute a figura de Marilyn Monroe ndash elamesma convertida num clichecirc mediante as ceacutelebres silkscreens que reproduzem eserializam o seu rosto ndash que retorna para sintetizar essa nova sensibilidade

3 Assim como se diz que o gesto de um corpo se constitui sendo passiacutevel de remeter a outros gestos ndash ideia que o conceito de per-formatividade nos permite formular ndash e assim como um discurso em certa medida cita e replica outros a partir dos termos mesmosem que eacute enunciado ndash citacionalidade iterabilidade ndash poderiacuteamos dizer que uma cena cita e desdobra outras cenas num acuacutemuloque o repertoacuterio do cinema e de outros meios torna possiacutevel Sobre os conceitos de performatividade citacionalidade e iterabili-dade ver Loxley (2007) Sobre citacionalidade e iterabilidade no cinema ver Wills (1998)

Embora Warhol amasse os filmes tanto quanto ele amava a TV ele natildeo diz queos filmes ajudaram a acabar com sua vida emocional De fato eacute bem o contraacuterioldquoos filmes fazem as emoccedilotildees parecerem tatildeo fortes e reais ao passo que quandoas coisas acontecem para vocecirc eacute como ver televisatildeo ndash vocecirc natildeo sente nadardquo(Shaviro 2004 p127 traduccedilatildeo nossa)

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em suma os retratos de Marilyn feitos por Warhol satildeo assustadoramente sem a-feto [affectless ] desprovidos de qualquer resposta emocional para a sua mortePelo contraacuterio eles demonstram a impossibilidade de tal resposta Pois a mortede Marilyn eacute a morte da emoccedilatildeo elas constituem um e o mesmo evento (Sha-viro 2004 p135 traduccedilatildeo nossa)

O que eacute curioso no modo como Shaviro recorre agraves declaraccedilotildees de Warhol sobre a

televisatildeo e o gravador ou mesmo sobre a relaccedilatildeo com a morte nesse contexto eacute queao endossaacute-las o teoacuterico vincula essa suposta morte das emoccedilotildees agrave ideia de umaperda de intensidade afetiva operada pela superficialidade e pela desdiferenciaccedilatildeodos meios Trata-se de uma proposiccedilatildeo estranha na medida em que no conceito deafeto ndash com o qual Shaviro faz alternar em seu texto a emoccedilatildeo e por vezes ateacute o sen-timento ndash a noccedilatildeo de profundidade quando formulada tomando o ponto de vista deum sujeito que o experienciaria eacute desde sempre afastada ou pelo menos colocadasob suspeita

Ao mesmo tempo eacute como se Shaviro tomasse a ironia e o distanciamento de que sereveste a ideia de uma ldquomorte das emoccedilotildeesrdquo pelo seu valor de face passando ao largodo artifiacutecio que eacute justamente aquilo que caracterizaria essa forma de esteticismo ouseja ignorando no artifiacutecio aquilo que ele deixa entrever somente a partir de umasofisticada elaboraccedilatildeo Tal questionamento eacute relevante especialmente porque con-forme o proacuteprio Shaviro faz notar a resistecircncia de Warhol em lidar com a questatildeo damorte longe de denotar indiferenccedila expressa uma dificuldade de processar o caraacuteterexcessivo inassimilaacutevel e traumaacutetico desse acontecimento Warhol segundo Shaviro(2004 p135) ficaria sem palavras diante da morte assumindo uma posiccedilatildeo de ca-tegoacuterica recusa quanto agrave sua elaboraccedilatildeo

Para ser mais preciso eacute como se a argumentaccedilatildeo de Shaviro nesse texto oscilasse

entre a convicccedilatildeo de que a autenticidade natildeo exerce funccedilatildeo alguma nesse debatenatildeo devendo assim sequer ser levantada como valor relevante ao mesmo tempo emque persiste a sugestatildeo de que haacute algo que se perdeu em relaccedilatildeo a algum momentoanterior Eacute sintomaacutetico portanto que o artigo de Shaviro recorra a uma intrincada enem sempre muito clara oscilaccedilatildeo entre proposiccedilotildees tais como ldquomorte da emoccedilatildeordquoldquoemoccedilatildeo poacutes-modernardquo ldquoemoccedilatildeo esvaziada de afetordquo e emoccedilatildeo revestida de artifiacutecioque eacute aquela agrave qual ele clama ao final de sua argumentaccedilatildeo Tudo leva a crer que Sha-viro se esforccedila afinal para avanccedilar em direccedilatildeo a uma proposiccedilatildeo que investe sobreos afetos naquilo que eles tecircm de impessoais no modo como operam na superfiacuteciepelas sensaccedilotildees e inclusive mediante contaacutegio a fim de elaborar esteticamente tais

qualidades pela via do artifiacutecio4

Dentre outros aspectos o que esta produtiva discussatildeo levantada por Shaviro expli-cita eacute a compreensatildeo de que se existe um estatuto especiacutefico do afeto e das emoccedilotildeesno poacutes-moderno isso se daacute menos pela perda da ancoragem em subjetividades decontornos bem definidos algo que natildeo eacute caracteriacutestico apenas de uma eacutepoca ou estaacute-gio da cultura e mais pela potencializaccedilatildeo de aspectos tais como a transpessoalidadee a superficialidade alcanccedilada pela via de uma exacerbaccedilatildeo do jogo com as formasda pose e tambeacutem da indiferenccedila aos limites entre o falso e o autecircntico Nestes ter-mos o artifiacutecio natildeo seria o recurso pelo qual se expressam emoccedilotildees desprovidas deafeto mas a ocasiatildeo em que a emoccedilatildeo se expressa intensamente como afetaccedilatildeo Soacuteassim seria possiacutevel reivindicar ldquosentimentos que satildeo irreverentes perversos excecircntri-cos perdulaacuterios fuacuteteis extravagantes disfuncionais e ridiacuteculosrdquo (Shaviro 2004 p140)

4 Suas menccedilotildees ao camp agraves drag queens e agrave noccedilatildeo warholiana da ldquoperformance ruimrdquo embasam este entendimento

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Temos desse modo uma espeacutecie de dobra que investe nos afetos justamente parasobrecodificaacute-los replicaacute-los explorar seus efeitos e derivaccedilotildees e na qual o clichecirc as-sumiria um papel central recolocando a pergunta pela relaccedilatildeo que travamos com asimagens e o tipo de resposta que elas suscitam

3 Entre o prazer e o distanciamento o artifiacutecio

Como dito anteriormente os debates em torno do clichecirc giram em grande medidaem torno da capacidade ndash sempre variaacutevel ndash que uma imagem teria de apresentar-secomo nova ou pelo contraacuterio de mostrar-se jaacute exaurida na sua capacidade de desper-tar uma reaccedilatildeo vivaz no espectador Susan Sontag dedicou-se a discutir essa capaci-dade de reaccedilatildeo principalmente por duas vias a contemplaccedilatildeo (pela beleza) ou o es-panto (pelo choque pela crueza ou pela violecircncia) Em seu ensaio Sobre a fotografia Sontag observa tomando um exemplo que pode soar ainda mais familiar em temposde popularizaccedilatildeo de dispositivos de captaccedilatildeo digital e de muacuteltiplas plataformas deexibiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de imagens

Vale a pena chamar a atenccedilatildeo aqui mais uma vez para a compreensatildeo de que o es-gotamento de um tema natildeo deixa de estar em certa medida condicionado ao proacutepriohistoacuterico das relaccedilotildees travadas entre a pessoa que olha e as imagens Em outras pa-lavras o efeito de desgaste varia segundo os repertoacuterios adquiridos Para o amadorum fenocircmeno da natureza ou paisagem pode despertar o entusiasmo que falta aos jaacute

excessivamente familiarizados com o mundo da fotografia Aparecer como novo oudesgastado ser digno de admiraccedilatildeo ou relegado ao acircmbito do banal satildeo atributosque natildeo se resolvem unicamente numa apreciaccedilatildeo intriacutenseca da imagem mas quepelo contraacuterio apelam agrave instacircncia daquele que vecirc

Em Diante da dor dos outros Sontag formula em outros termos o problema ao depa-rar-se com questotildees semelhantes agraves jaacute inventariadas no iniacutecio deste artigo a saber odiagnoacutestico de um excesso de imagens impulsionado pela cultura do espetaacuteculo e orisco bem assinalado por Deleuze de que a fuga do clichecirc termine por desembocarna produccedilatildeo de um novo padratildeo

De fato eacute possiacutevel argumentar que tanto a demanda incessante pelo novo quanto oprazer encontrado na redundacircncia do clichecirc satildeo partes integrantes de certa modali-dade de apreensatildeo do real dada a centralidade desses dois regimes complementaresndash a novidade e a redundacircncia ndash para o universo da cultura do espetaacuteculo Daiacute porquea mobilizaccedilatildeo do clichecirc como artifiacutecio natildeo implica um afastamento do real mas uma

as fotos criam o belo e ndash ao longo de geraccedilotildees de fotoacutegrafos o esgotam Certasgloacuterias da natureza por exemplo foram simplesmente entregues agrave infatigaacutevelatenccedilatildeo de amadores aficionados da cacircmera Pessoas saturadas de imagens

tendem a achar piegas os pores-do-sol agora infelizmente eles se parecem de-mais com fotos (Sontag 2004 pp101-2 grifo nosso)

ldquoa beleza seraacute convulsiva ou natildeo seraacuterdquo proclamou Andreacute Breton Ele chamouesse ideal esteacutetico de ldquosurrealistardquo mas numa cultura radicalmente renovadapela ascendecircncia de valores mercantis pedir que as imagens abalem clamemdespertem parece antes um realismo elementar aleacutem de bom senso para negoacute-cios De que outro modo se pode obter atenccedilatildeo para um produto ou uma obrade arte De que outro modo deixar uma marca mais funda quando existe umaincessante exposiccedilatildeo a imagens vistas e revistas muitas vezes A imagem comochoque e a imagem como clichecirc satildeo dois aspectos da mesma presenccedila (Sontag2003 p24)

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apreciaccedilatildeo de segunda ordem como via de acesso natildeo-ingecircnuo agraves complexidades deum presente imerso nos fluxos incessantes de imagens na era do capitalismo tardio

Neste ponto podemos retomar as consideraccedilotildees sobre a inadequaccedilatildeo da noccedilatildeo deautenticidade para pensar as emoccedilotildees que satildeo acionadas mediante o clichecirc ndash ou in-versamente a adequaccedilatildeo do clichecirc para catalisar emoccedilotildees suscitadas e expressas no

seio do espetaacuteculo A cultura de mercado investe na estreita cumplicidade entre onovo e o jaacute visto entre o banal e o extraordinaacuterio entre a ilusatildeo do autecircntico e apotecircncia do falso E nisso a arte de Andy Warhol como bem assinalou Steven Shaviropermanece uma via privilegiada para acessar tais questionamentos por sua mobiliza-ccedilatildeo irocircnica dos clichecircs e tambeacutem sobretudo por sua ambivalecircncia quanto aos efeitosdessa loacutegica de mercado sobre os domiacutenios da arte

Para Jean Baudrillard (2006) a potecircncia das intervenccedilotildees de Warhol se existe estaacute emlevar a loacutegica do significante ao paroxismo da proliferaccedilatildeo e da exaustatildeo e com issoalccedilar as imagens ao seu maacuteximo grau de artificialismo Essa exacerbaccedilatildeo do artifiacutecioconfere outro estatuto para o clichecirc na medida em que radicaliza o seu esvaziamento

Eacute uma via distinta a trilhada por Chantal Akerman mas que guarda em comum essadimensatildeo do clichecirc como potente artifiacutecio Natildeo se trata de distanciar-se do clichecirc

para alcanccedilar um desvelamento daquilo que estaria encoberto por ele Ivone Mar-gulies observa a respeito dos musicais da realizadora que ldquoa ambiccedilatildeo desses filmeseacute algo distinto do anti-ilusionismo o que importa eacute que todo o peso da banalidadeseja reexperienciado por meio do clichecirc ndash que a banalidade recupere sua intensidaderepetitiva ou que ela exiba sua composiccedilatildeo claustrofoacutebicardquo (Margulies 1996 p188)Nesse aspecto especificamente encontramos um ponto de articulaccedilatildeo entre Warhole Akerman ainda que ambos alcancem efeitos tatildeo distintos no conjunto de sua obraTrata-se antes de colocar em movimento procedimentos que permitam escapar doimpasse entre o novo e o redundante entre o banal e o extraordinaacuterio entre o choquee a complacecircncia entre o estranhamento e o reconhecimento

Ainda segundo Margulies (Idem p212) se o clichecirc tem uma ldquohistoacuteria semacircnticardquo queo espectador eventualmente conhece seu histoacuterico pode natildeo obstante ser ldquobloquea-dordquo Tal bloqueio ocorreria em grande medida por meio da constituiccedilatildeo de uma seri-alidade De modo semelhante Darlene Pursley afirma que eacute a repeticcedilatildeo que ocasionanos filmes da realizadora ldquoa perda de todo sentidordquo cabendo ao espectador dotar oclichecirc por assim dizer de sua proacutepria ldquosingularidaderdquo e ldquocoloraccedilatildeo especialrdquo (Pursley2005 p1198)

Em casos como estes natildeo parece completamente adequado o contraponto que criacuteti-cas da cultura como aquelas propostas por Beatriz Sarlo alccedilam como resposta agrave pro-liferaccedilatildeo de regimes audiovisuais massivos Natildeo se trata aqui de fazer contrapor aldquodensidade semacircnticardquo de uma imagem (Sarlo 2004 p59) agrave repeticcedilatildeo veloz e seri-alizada de estiacutemulos audiovisuais que caracteriza por exemplo a televisatildeo De fato

as imagens de Warhol natildeo satildeo de modo algum banais pelo fato de constituiacuteremo reflexo de um mundo banal mas porque resultam da ausecircncia no sujeito detoda pretensatildeo de interpretaacute-lo resultam da elevaccedilatildeo da imagem agrave figuraccedilatildeopura sem a menor transfiguraccedilatildeo Assim portanto jaacute natildeo se trata de uma trans-cendecircncia mas do ganho de potecircncia do signo que perdendo toda significa-ccedilatildeo natural resplandece no vazio com toda sua luz artificial (Baudrillard 2006p38 traduccedilatildeo nossa)

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se ainda hoje algumas de suas observaccedilotildees demonstram relevacircncia e despertam in-teresse ndash chama-nos a atenccedilatildeo especialmente o fato de que para Sarlo as imagenslembradas seriam as que manifestam a capacidade de ldquofixar-se com o peso do icocircnicordquo(Sarlo 2004 62) ndash a forccedila de leituras criacuteticas como as que vecircm sendo propostas porSteven Shaviro Ivone Margulies e outros eacute justamente pensar a potecircncia das imagenssem recorrer a todo um encadeamento de paracircmetros como peso substacircncia densi-

dade profundidade

Para Warhol assim como para Akerman especialmente em suas comeacutedias musicaisda deacutecada de 1980 ndash e para persistirmos nos dois projetos esteacuteticos que guiaram al-gumas das reflexotildees aqui articuladas ndash a iconicidade das imagens se realiza em seuproacuteprio valor de superfiacutecie e assumindo o caraacuteter de segunda ordem das obras en-quanto partiacutecipes de um universo sensiacutevel disperso e multifacetado Aqui voltamosa insistir na potecircncia que adveacutem dessa possibilidade de acionar os repertoacuterios dosespectadores como mateacuteria a partir da qual a potecircncia criativa investe seus esforccedilosNo reconhecimento desse caraacuteter sobrecodificado da cultura natildeo estamos eacute verdademuito distantes das palavras de Nelson Brissac Peixoto

Nosso argumento eacute que conforme o percurso que vimos esboccedilando o esvaziamentodo significado pela via da repeticcedilatildeo natildeo constitui algo necessariamente negativo Se-gundo as leituras de Shaviro Margulies Schmid Gueroacuten e mesmo em certos aspec-tos Baudrillard a repeticcedilatildeo e os efeitos de superfiacutecie podem ser tambeacutem afirmativos

engendram relaccedilotildees e modos possiacuteveis de intervenccedilatildeo no real Por essa via embara-lham-se as categorias numa imagem-clichecirc que retorna convencional poreacutem atraves-sada por muacuteltiplos desvios reconheciacutevel poreacutem distorcida superficialmente legiacutevelporeacutem destituiacuteda de quaisquer sentidos estaacuteveis Vaga sensaccedilatildeo de jaacute visto nuncacompletamente jaacute assimilado posto que a proacutepria expectativa de entendimento pres-supotildee a existecircncia de um sentido que poderia ou natildeo ser captado mas que aqui girasobre si mesmo e se desfaz Compreender e processar um significado preexistenteimplicaria uma verticalizaccedilatildeo e um adensamento que satildeo frustrados pela proacutepria radi-cal superficialidade do artifiacutecio

Natildeo se trata de dizer que os clichecircs satildeo infinitamente remodelaacuteveis nem de redefini-los como paradoxalmente inexauriacuteveis A esse respeito eacute certeira a observaccedilatildeo deSarlo ldquoao elitismo das posiccedilotildees mais criacuteticas natildeo deveria opor-se uma inversatildeo simeacute-trica sob a forma de um neopopulismo seduzido pelos encantos da induacutestria culturalrdquo(Sarlo 2004 p65) Natildeo obstante para Sarlo a ldquorepeticcedilatildeo eacute uma maacutequina de produziruma suave felicidaderdquo (Sarlo 2004 p63) um deleite alcanccedilado pela via do apazigua-mento Caberia insistir no entanto e em favor mesmo das ressalvas colocadas dianteda dupla rejeiccedilatildeo ao ldquoelitismordquo e ao ldquoneopopulismo de mercadordquo que o prazer oriundoda relaccedilatildeo com a imagerie que marca nossa experiecircncia do contemporacircneo estaacutelonge de reduzir-se a uma suspensatildeo dos conflitos De fato um dos ganhos trazidospelas discussotildees sobre as formas do artifiacutecio na cultura e nas artes decorre justamenteda problematizaccedilatildeo de noccedilotildees demasiadamente unilaterais tais como o ldquoescapismordquoe a ldquofuga do realrdquo

nesse mundo de cenaacuterios e personagens tudo eacute imagerie Tem a consistecircnciade mito e imagem A cultura contemporacircnea eacute de segunda geraccedilatildeo onde ahistoacuteria a experiecircncia e os anseios de cada um satildeo moldados pela literaturaos quadrinhos o cinema e a TV Vidas em segundo grau Todas essas histoacuterias jaacuteforam vistas todos estes lugares visitados (Peixoto 1988 p362)

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O prazer do artifiacutecio natildeo consiste num suave apaziguamento mas em instalar-se namobilidade entre o reconhecimento e a frustraccedilatildeo dos modos estabelecidos de apre-ensatildeo sensiacutevel e dos esquemas de inteligibilidade Um modo de ler o mundo e umaconstante incerteza em relaccedilatildeo agravequilo que lemos Uma pergunta pelo que haacute de ile-giacutevel no que eacute supostamente oacutebvio bem como uma salutar suspeita diante das pre-tensotildees de ruptura quando esta arrisca tornar-se demasiadamente auto-importante

Talvez do artifiacutecio decorra um prazer hesitante certamente haacute nele um prazer que sealimenta da duacutevida

Referecircncias bibliograacutecas

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SARLO Beatriz Cenas da vida poacutes-moderna intelectuais arte e videocultura na Argentina Riode Janeiro Editora UFRJ 2004SCARPETTA Guy Lrsquoimpureteacute Paris Bernard Grasset 1985SCHMID Marion Chantal Akerman (French Film Directors) Manchester and New York ManchesterUniversity Press 2010SHAVIRO Steven Clicheacutes of identity Chantal Akermanrsquos musicals Quarterly review of film andvideo 241 2007 p 11-17______ The life after death of postmodern emotions Criticism volume 46 number 1 Winter2004 p125-141SONTAG Susan Sobre fotograa Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004______ Diante da dor dos outros Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003WILLS David ldquoThe french remark Breathless and cinematic citationalityrdquo In HORTON AndrewMcDOUGAL Stuart Y (eds) Play it again Sam retakes on remakes Berkeley University of California

Press 1998 p147-161

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No centro dos debates sobre a cultura contemporacircnea encontramos a reiteraccedilatildeode discursos acerca da saturaccedilatildeo do campo do visiacutevel ocasionada pela multi-plicaccedilatildeo dos fluxos de produccedilatildeo e de circulaccedilatildeo audiovisual Tal diagnoacutestico

pressupotildee um encadeamento muitas vezes formulado de maneira pouco rigorosa

entre proliferaccedilatildeo excesso e esvaziamento das imagens em uma rede de viacutenculoscuja dinacircmica conjuga o reconhecimento da supremacia do olhar com o seu reversoqual seja a constataccedilatildeo de uma crescente debilidade do olhar

Natildeo seria este aliaacutes o uacutenico paradoxo da ldquocivilizaccedilatildeo da imagemrdquo Martine Joly (2004)observa numa obra que busca introduzir didaticamente algumas abordagens para aanaacutelise das imagens que a busca de um meacutetodo capaz de orientar o olhar se justificapela recorrecircncia de duas noccedilotildees muito difundidas Segundo a autora ldquopor um ladolemos as imagens de uma maneira que nos parece totalmente lsquonaturalrsquo que aparente-mente natildeo exige qualquer aprendizadordquo poreacutem ao mesmo tempo haacute uma suspeitadisseminada de que as imagens trariam sempre um teor velado impliacutecito e seriamagenciadas por um grupo de ldquoiniciados que conseguem nos lsquomanipularrsquo afogando-nos com imagens em coacutedigos secretos que zombam de nossa ingenuidaderdquo (Joly2004 p10)

Para Joly

Este ldquoprogramardquo de formaccedilatildeo se torna ainda mais importante uma vez que a crenccedila noato de olhar como algo natural eacute reforccedilada por grande parte dos discursos audiovi-suais hegemocircnicos que tecircm nessa suposta imediaticidade de apreensatildeo das imagensum elemento fundamental para a construccedilatildeo dos seus discursos

O que a conjunccedilatildeo entre excesso e esgotamento que permeia tais formulaccedilotildees buscaenfatizar eacute a hipoacutetese de que a vastidatildeo quantitativa da nossa produccedilatildeo simboacutelica esensorial guardaria como sua contraface menos evidente a tendecircncia a um empo-brecimento qualitativo na medida em que a reiteraccedilatildeo de padrotildees elementos tiacutepicos

e regimes de codificaccedilatildeo das imagens nos garantem o conforto do reconhecimentoe da reiteraccedilatildeo em meio a um universo midiaacutetico exuberante que toma de assalto osnossos sentidos

A questatildeo do olhar passaria portanto pelo desafio de como ver em um mundo queno fim das contas encontra-se marcado pelo predomiacutenio do jaacute visto A esse respeitopoderiacuteamos recorrer por exemplo a uma conferecircncia proferida por Nelson BrissacPeixoto nos anos 1980 periacuteodo marcado pelo auge do debate poacutes-modernista a res-peito dos entrelaccedilamentos entre espetaacuteculo simulacro e consumo no cerne da cul-tura ocidental

uma iniciaccedilatildeo miacutenima agrave anaacutelise da imagem deveria precisamente ajudar-nos aescapar dessa impressatildeo de passividade e ateacute de lsquointoxicaccedilatildeorsquo e permitir-nos aocontraacuterio perceber tudo o que essa leitura lsquonaturalrsquo da imagem ativa em noacutes emtermos de convenccedilotildees de histoacuteria e de cultura mais ou menos interiorizadas(Joly 2004 p10)

1 Imagens e clichecircs na contemporaneidade

nunca a questatildeo do olhar esteve tatildeo no centro do debate da cultura e das socie-dades contemporacircneas Um mundo onde tudo eacute produzido para ser visto ondetudo se mostra ao olhar coloca necessariamente o ver como um problema Aqui

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Trata-se menos aqui de tomar um texto de intervenccedilatildeo e fazecirc-lo passar por siacutenteseda perspectiva de seu autor ndash gesto que implicaria trair o caraacuteter efecircmero que marca

sua proacutepria natureza contingente uma vez que consiste num argumento produzidopara ser lido numa conferecircncia ndash do que encontrar nele o marcador de um diagnoacutesti-co que marcou uma eacutepoca e que ainda hoje se mostra tatildeo difuso quanto pervasivo

Discorrendo sobre a televisatildeo um dos focos desta criacutetica da redundacircncia midiaacuteticaBeatriz Sarlo escreve tambeacutem no contexto da discussatildeo sobre o poacutes-moderno que ldquoaimagem perdeu toda a intensidaderdquo (Sarlo 2004 p53) e faz seguir agrave sua formulaccedilatildeocategoacuterica uma seacuterie de consideraccedilotildees sobre as propriedades e mecanismos de fun-cionamento do meio televisivo Esse meio estaria marcado pela predominacircncia de ldquoi-magens de preenchimentordquo uma espeacutecie de ldquomareacute gelatinosa onde flutuam afundame emergem os signos reconheciacuteveis que necessitam dessa massa moacutebil de imagens justamente para poder diferenciar-se dela despertar surpresa e circular com rapidezrdquo(Sarlo 2004 p62)

Em seu limite tal diagnoacutestico de eacutepoca se configura como sentimento de perda em

relaccedilatildeo a uma poliacutetica preacutevia das imagens que operava segundo uma loacutegica da escas-sez garantia de que se alcanccedilasse uma potecircncia naquilo que se apresentava ao olharem contraponto agrave ldquodesencarnaccedilatildeordquo do mundo resultante do excesso de imagens

Ao argumento da banalizaccedilatildeo e da proliferaccedilatildeo como perdas de potecircncia das ima-gens alguns pensadores responderam com uma delimitaccedilatildeo mais estrita da proacutepriaimagem como conceito lanccedilando matildeo de distinccedilotildees que em uacuteltima instacircncia busca-ram apartaacute-la de seu excedente banal saturado esvaziado Tomemos a esse respeitoa ceacutelebre resposta dada por Gilles Deleuze aos intentos de caracterizar o contemporacirc-neo como uma era da imagem ldquocivilizaccedilatildeo da imagem Na verdade uma civilizaccedilatildeodo clichecirc na qual todos os poderes tecircm interesse em nos encobrir as imagens natildeoforccedilosamente em nos encobrir a mesma coisa mas em encobrir alguma coisa na ima-gemrdquo (Deleuze 2007 p32)

Temos nesta afirmaccedilatildeo um duplo movimento ao mesmo tempo em que o filoacutesofobusca diferenciar a imagem de sua imobilizaccedilatildeo da paralisia dos seus efeitos ele natildeodeixa de endossar tambeacutem de certo modo o diagnoacutestico do tempo presente comoaquele que eacute marcado pela perda de potecircncia nas formas que permeiam os artefatos

natildeo existem mais veacuteus nem misteacuterios Vivemos no universo da sobreexposiccedilatildeoe da obscenidade saturado de clichecircs onde a banalizaccedilatildeo e a descartabilidadedas coisas e imagens foi levada ao extremo Como olhar quando tudo ficou in-distinguiacutevel quando tudo parece a mesma coisa (Peixoto 1988 p 361)

com esta proliferaccedilatildeo das imagens entramos na era da produccedilatildeo do real Aquiloque era pressuposto do olhar eacute agora o seu resultado Natildeo haacute mais distinccedilatildeo en-tre realidade e artifiacutecio entre experiecircncia e ficccedilatildeo entre histoacuteria e estoacuterias Nossaidentidade e lugar satildeo constituiacutedos a partir de um imaginaacuterio e uma iconografiacriados pela induacutestria cultural Este mediascape eacute a realidade onde os indiviacuteduoshoje vivem (Peixoto 1988 p362)

isto eacute o que aprendemos da modernidade que a forccedila vem da subtraccedilatildeo queda ausecircncia nasce a potecircncia Natildeo paramos de acumular de adicionar de do-brar a aposta E por natildeo sermos jaacute capazes de confrontar o domiacutenio simboacutelicoda ausecircncia submergimo-nos hoje na ilusatildeo contraacuteria ilusatildeo desencantada daprofusatildeo ilusatildeo moderna de telas e imagens que proliferam (Baudrillard 2006p17 traduccedilatildeo nossa)

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culturais em circulaccedilatildeo incluindo-se aiacute o cinema a muacutesica a literatura Eacute interessantenotar ainda que segundo esta perspectiva a imagem estaria desde sempre imbuiacutedade uma qualidade positiva tudo aquilo que investe nos haacutebitos da percepccedilatildeo e anes-tesia os sentidos tudo aquilo que se encontra esvaziado de sua potecircncia de nos a-fetar de desencadear as forccedilas do pensamento e de potencializar a experimentaccedilatildeosensiacutevel do mundo suscitando reflexatildeo estranhamento admiraccedilatildeo e criacutetica recairia

numa zona aqueacutem ou aleacutem dos domiacutenios daquilo que seria definido como imagemDito de outro modo o banal a repeticcedilatildeo a saturaccedilatildeo seriam qualidades relegadas aooutro polo de uma distinccedilatildeo entre civilizaccedilatildeo da imagem e civilizaccedilatildeo do clichecirc comomodalidades concorrentes na caracterizaccedilatildeo dos rumos das sociedades ocidentais

Natildeo por acaso entatildeo Gilles Deleuze e Feacutelix Guattari (1992) reivindicam para o campoda arte a funccedilatildeo de criar afetos Os afetos sem nome satildeo o desdobramento de umtrabalho que investe naquilo que natildeo estaacute ainda formado e nesse sentido precedeo processo de cristalizaccedilatildeo que viria barrar o fluxo criativo Assim por exemplo se-gundo os autores ldquoquando Emily Bronteacute traccedila o liame que une Heathcliff e Catherineela inventa um afeto violento (que sobretudo natildeo deve ser confundido com o amor)algo como uma fraternidade entre dois lobosrdquo (Deleuze Guattari 1992 p226-7) Esseldquonatildeo dever ser confundido comrdquo essa criaccedilatildeo de um mundo sem precedentes quecomo tal natildeo se adeacutequa a qualquer modelo em que porventura se pretenda sub-sumi-lo eacute sem duacutevida uma bela potencialidade da arte ainda mais porque permiteconstituir um mundo que eacute marcado por sua singularidade e como tal nos move nocaso mencionado um forte viacutenculo de cumplicidade se conjuga com certa disposiccedilatildeoanimalesca para demarcar a qualidade de uma relaccedilatildeo a partir de uma composiccedilatildeonotavelmente eloquente expressiva

Se o clichecirc eacute aquilo que imobiliza o pensamento o desafio da nossa sociedade se-

ria portanto o de investir na potecircncia da imagem ou seja catalisar aquilo que elatem de desestabilizante de imprevisto de revelador Evitar com isso que ela atue demaneira meramente ratificadora suscitando pelo contraacuterio experiecircncias de realidadeque permitam explorar potencialidades do corpo modos de experiecircncia e linhas depensamento a serem traccediladas Detendo-se nesse ponto Rodrigo Gueroacuten (2011) bus-cou deslindar a diferenciaccedilatildeo entre imagem e clichecirc com vistas a traccedilar os movimen-tos que levam de um a outro Um aspecto interessante de sua abordagem eacute portantotornar expliacutecita a compreensatildeo de que tais noccedilotildees natildeo funcionam como categoriasestanques ou modelos para tipificaccedilatildeo elas constituem posiccedilotildees moacuteveis de maneiratal que imagens natildeo cessam de se converter em clichecircs e vice-versa

O clichecirc seria o operador de esquemas que instauram e buscam preservar uma or-dem de causalidades atuando assim como agente de uma contraforccedila que interceptaldquotodas as possibilidades produtivas atraveacutes das quais a vida se manteacutem e se reinventardquo(Gueroacuten 2011 p64) No que poderiacuteamos apontar como uma das hipoacuteteses centraisde seu trabalho Gueroacuten busca estabelecer uma aproximaccedilatildeo entre o clichecirc e o quechama de imagem-lei ou imagem-moral dado que esse fechamento ao qual alude opesquisador traccedila uma correspondecircncia entre por um lado ldquoa moral como disciplinapara o corpordquo (Gueroacuten 2011 p137) instauradora de valores e veiacuteculo que busca orga-nizar a histoacuteria em torno de uma lei e por sua vez o clichecirc como ldquoesquema redutor epadronizador dos afetosrdquo (Gueroacuten 2011 p245)

Temos com isso a ideia de que o clichecirc se inscreve no corpo operando uma espeacuteciede anestesia ou paralisaccedilatildeo A amplitude de uma experiecircncia sensiacutevel eacute restringida na

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medida em que provecirc os modelos que permitem assimilar as propriedades sensoacuteriase os efeitos possiacuteveis de uma imagem dentro de um horizonte de sentido preacute-deter-minado

Falar em clichecirc implica sempre portanto falar num passado das imagens que eacute citadorepetido e que nos concede os marcos para enquadrar acomodar e segundo decorredas consideraccedilotildees anteriormente elencadas amortecer uma nova experiecircncia per-ceptiva Caberia no entanto perguntar quem partilha este passado Podemos afinalfalar em um marco uacutenico amparado num histoacuterico comum ou a nossa relaccedilatildeo comas imagens natildeo estaria pelo contraacuterio desde sempre amparada em percursos e ex-periecircncias natildeo tatildeo homogecircneos nem facilmente intercambiaacuteveis Um componentesensiacutevel ou elemento significante se encontra por assim dizer necessariamente ldquocon-denadordquo ao esvaziamento ou sua adequaccedilatildeo a uma rede de causalidades pode serfrustrada tornando a cadeia de associaccedilotildees inefetiva Jaacute vemos abrir-se uma brechapara a problematizaccedilatildeo do clichecirc o passado que o funda eacute incerto bem como o fu-turo de sua atualizaccedilatildeo assinala uma possiacutevel abertura para novas potencialidades

Uma criacutetica do clichecirc precisa considerar mais detidamente a possibilidade de que des-pontem apropriaccedilotildees inventivas deslocamentos e reversotildees do jaacute visto Nesse pontoeacute importante retomar o trabalho de Rodrigo Gueroacuten pois o seu estudo permite natildeoapenas como dito anteriormente enfatizar que a separaccedilatildeo entre imagem e clichecirc eacutepermeaacutevel A certa altura sua argumentaccedilatildeo se abre para uma faceta particularmente

relevante para nossa perspectiva a ideia de um ldquoclichecirc fora do tempordquo como um es-quema que eacute ldquoimpedido de se realizarrdquo (Gueroacuten 2011 p117) O que temos em casoscomo esse eacute a situaccedilatildeo em que uma ldquoimagem ndash o objeto-imagem portanto ndash perdesua funccedilatildeo pragmaacutetica de revelar uma situaccedilatildeo que tenderia a se desdobrar numaaccedilatildeo e a percepccedilatildeo como que retorna se concentra e insiste sobre esta imagemrdquo(Gueroacuten 2011 p117)

Por sua vez eacute importante lembrar que na rejeiccedilatildeo mais apaixonada ao clichecirc podedespontar um conjunto de procedimentos mediante os quais ao final de sua plenarealizaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo esteacutetica reside nada menos que a conformaccedilatildeo de um novo

clichecirc Deleuze natildeo perdeu de vista este risco tornando expliacutecito o problema

No mais vale observar que a noccedilatildeo de clichecirc constitui o paroxismo de uma instacircnciamuito mais ampla de constituiccedilatildeo e apreensatildeo das imagens que eacute a de sua codifica-

o clichecirc constroacutei o seu sentido ou se constroacutei enquanto sentido na medida emque evoca um passado que soacute pode lhe garantir seguranccedila O passado aiacute justi-fica e fecha absolutamente a compreensatildeo do que se percebe da experiecircncia

sensoacuterio-motora presente do real colocando-a na loacutegica de um sentido de umprocesso de uma espeacutecie de destino final (Gueroacuten 2011 p160)

o difiacutecil eacute saber em que uma imagem oacutetica e sonora natildeo eacute ela proacutepria um clichecircquando muito uma foto Natildeo pensamos apenas na maneira pela qual essas ima-gens tornam a produzir um clichecirc a partir do momento em que satildeo retomadaspor autores que delas se servem como foacutermulas Mas os proacuteprios criadores natildeotecircm agraves vezes a ideia de que a nova imagem deva rivalizar com o clichecirc emseu proacuteprio terreno somar algo ao cartatildeo-postal juntar-lhe alguma coisa pa-rodiaacute-lo para melhor se livrar dele (Robbe-Grillet Daniel Schmid) Os criadoresinventam enquadramentos obsedantes espaccedilos vazios ou desconectados ateacutemesmo naturezas-mortas de certo modo eles param o movimento redesco-brem a forccedila do plano fixo mas natildeo seria isso ressuscitar o clichecirc que queriamcombater (Deleuze 2007 p33)

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ccedilatildeo de seu alinhamento a formas e regimes que privilegiam a fixaccedilatildeo e a condensa-ccedilatildeo de uma determinada gama de sentidos de esquemas de percepccedilatildeo e de inteligi-bilidade A saturaccedilatildeo das imagens e a exaustiva colocaccedilatildeo em cena de alguns motivosrecorrentes que como tais apontam certas ordens privilegiadas de encadeamentosprecisam ser postas em questatildeo para que seja possiacutevel perguntar pela sua mobili-dade pela potencialidade que elas apesar de tudo guardariam Daiacute a importacircncia

de discutir obras cujas esteacuteticas que se mostram atravessadas por toda uma gamade hibridaccedilotildees cruzamentos reapropriaccedilotildees e flertes com signos nomeaacuteveis discur-sos saturados imagens e afetos que natildeo cessam de se entremear com as formas quepresidem a sua codificaccedilatildeo ndash e portanto com os movimentos de uma histoacuteria culturalque os elabora e significa

2 O lugar do clichecirc nas emoccedilotildees poacutes-modernas

Em certo ponto de seu estudo sobre o cinema de Chantal Akerman Ivone Margu-lies define muito sucintamente o clichecirc como uma imagem que eacute ldquoconhecida antes

mesmo de ser vistardquo (Margulies 1996 p203) Essa afirmaccedilatildeo natildeo obstante o caraacuteteraparentemente evidente daquilo que enuncia resulta bastante efetiva uma vez quepermite enfatizar aspectos relevantes para uma discussatildeo sobre o clichecirc Dessa sinteacute-tica formulaccedilatildeo podemos extrair algumas ideias Primeiramente o clichecirc nos enredaem uma cadeia de expectativas na qual ele se ampara e que em uacuteltima instacircnciapoderiacuteamos dizer que condiciona sua efetividade Em segundo lugar daiacute decorre queesta acepccedilatildeo do clichecirc se constitui em consonacircncia com a noccedilatildeo de repertoacuterio suadefiniccedilatildeo se refere diretamente agraves imagens conhecidas que em certa medida nos for-mam e que ao mesmo tempo estabelecem marcos para lidar com novas ocorrecircn-cias e novos estiacutemulos Por isso mesmo entatildeo embora seja razoaacutevel estabelecer umabase comum de referecircncia a partir da qual concebemos o que eacute predominantementedo acircmbito do clichecirc a noccedilatildeo se apresenta ela mesma dependente desse repertoacuteriocomo marco variaacutevel Como toda relaccedilatildeo esta tambeacutem estaacute sujeita a variabilidadese contingecircncias e responde a diferentes contextos disposiccedilotildees e modos de engaja-mento

Nas circunstacircncias em que se daacute uma confirmaccedilatildeo daquilo que jaacute conhecemos ou sejaquando a imagem que um filme nos concede atende aos traccedilos formais sensiacuteveis enarrativos que antecipamos parece certo afirmar que aquilo que se encontra diminuiacute-do eacute a potecircncia que essa imagem traria de suscitar uma apreensatildeo inabitual e comisso inventar novas relaccedilotildees suscitar novas experiecircncias sensoriais e de pensamento

No entanto o que muitas vezes fica de fora dessa convicccedilatildeo eacute o prazer da repeticcedilatildeoe da atitude de cotejar as variaccedilotildees possiacuteveis traccedilar recorrecircncias estabelecer redesde correspondecircncias e ressonacircncias A serialidade das imagens remete a toda umagama de disposiccedilotildees culturais bem como a sensibilidades e temporalidades as maisdiversas de modo que eacute plausiacutevel considerar sua ocorrecircncia um fenocircmeno culturale midiaacutetico relevante a ser discutido para aleacutem de uma rejeiccedilatildeo fundada na posturaque qualifica a repeticcedilatildeo como veiacuteculo para a manifestaccedilatildeo de uma redundacircncia va-zia Ainda segundo Margulies

a sobreposiccedilatildeo de repeticcedilatildeo e atualidade invocada por um clichecirc indica seu al-cance social um clichecirc estaacute inevitavelmente envolto nas ressonacircncias prece-dentes de uma dada forma ou representaccedilatildeo O fato de que uma frase ou modoespeciacutefico pode ainda comunicar atraveacutes e apesar de tal redundacircncia nos fala daforccedila do clichecirc Sua potencial efetividade em um filme reside no reconhecimen-

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A questatildeo que se coloca eacute entatildeo como fazer da repeticcedilatildeo da apropriaccedilatildeo do des-locamento de repertoacuterios e de certas composiccedilotildees jaacute conhecidas o motor de umarelaccedilatildeo produtiva com as imagens O universo esteacutetico e midiaacutetico configura tropos

que se tornam familiares reconheciacuteveis e que como tais permitem assimilar umaimagem a esquemas de inteligibilidade ao mesmo tempo em que se imbuem de todauma cadeia de expectativas que podem ser confirmadas ou frustradas O problema deescapar ao clichecirc natildeo eacute simplesmente o de suprimir essa necessidade ou expectativamas o de lograr uma imagem que contorne a sua proacutepria assimilaccedilatildeo de forma raacutepida

Seguindo essa linha de anaacutelise Marion Schmid (2010 p70) sublinha que o cinemade Akerman opera nos campos do deacutejagrave vu e do deacutejagrave entendu A pesquisadora es-creve esse comentaacuterio a propoacutesito de Les Anneacutees 80 (1983) filme de processo quedocumenta o trabalho com atrizes e atores e precede a realizaccedilatildeo do que viria a ser omusical Golden Eighties (1986) Sua observaccedilatildeo poreacutem aplica-se a muitos dos pro-cedimentos que permeiam a filmografia da realizadora e em especial nos filmes desseperiacuteodo De fato tanto Margulies quanto Schmid assinalam a propoacutesito da carreira deAkerman um ponto de inflexatildeo que talvez natildeo casualmente coincide com o iniacuteciodos anos 1980 deacutecada marcada pelo auge das ideias e esteacuteticas poacutes-modernistas Osdesdobramentos da filmografia da realizadora levam-na a experimentar alternativas agravemestria1 ao ascetismo e ao caraacuteter estrutural que marcaram sua produccedilatildeo preceden-te buscando pelo contraacuterio exacerbar em sua esteacutetica a partir de entatildeo um caraacuteterimpuro

Ao falar em impureza recorremos ao termo proposto por Guy Scarpetta (1985) para

pensar parte da produccedilatildeo artiacutestica deste mesmo periacuteodo Embora natildeo analise espe-cificamente o cinema de Akerman a descriccedilatildeo que o autor faz dos impasses aos quaisa arte mais inventiva dessa eacutepoca buscou responder guarda estreitas correspondecircn-cias com as questotildees agraves quais os filmes da diretora naqueles anos se vincularam Scar-petta escreve o diagnoacutestico (alegoacuterico) de uma cultura que se encontra presa em umimpasse no cruzamento entre duas tendecircncias uma tradiccedilatildeo que natildeo eacute capaz de serenovar ndash ldquoum passado sem porvirrdquo ndash e uma arte experimental cheia de promessas defuturo mas que fez taacutebula rasa de seu passado e jaacute enfrenta a crise de como sustentaro imperativo do novo ndash ldquoum porvir sem passadordquo (Scarpetta 1985 p8)

O que vale sublinhar especialmente eacute como a noccedilatildeo de impureza busca dar contade obras e artistas que justamente exploram uma via de criaccedilatildeo que contorna tantoa regressatildeo ao academicismo a condenaccedilatildeo do moderno e ldquoa repeticcedilatildeo morna dopassadordquo quanto a redundacircncia de parte da cultura de massa (Scarpetta 1985 p9)Embora sem duacutevida esquemaacutetico esse panorama aponta para uma proposiccedilatildeo re-levante nos termos daquilo que permite formular uma vertente esteacutetica que tratariao passado da arte e o kitsch massivo ldquoem segundo grau sem inocecircncia por desviossobrecodificaccedilotildees corrupccedilatildeo desnaturalizaccedilatildeordquo (Scarpetta 1985 p9) Em suma umaesteacutetica da impureza Natildeo precisamos enfim seguir a dualidade traccedilada pelo autorque contrapotildee de um lado ldquocriteacuterios demasiado estritos linhas valores obrigadosnormas terroristasrdquo e do outro ldquoa ausecircncia de todo criteacuterio a profusatildeo heteroacuteclita deesteacuteticas a confusatildeo dos valoresrdquo para situar aiacute uma fase de suspensatildeo irresolutaquando os artistas se debateriam entre esses dois polos (Scarpetta 1985 p18-9)

1 Veja a esse respeito a entrevista que a diretora concedeu a Alain Philippon nos Cahiers du cineacutema (1982)

to da diferenccedila que o clichecirc pode ainda significativamente sugerir (Margulies1996 p84 traduccedilatildeo nossa)

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Steven Shaviro (2007) tambeacutem discute o jaacute mencionado musical Golden eighties Natildeoobstante em sua anaacutelise a ecircnfase recai sobre os afetos e como eles afastam qualquerpretensatildeo de autenticidade na medida em que se tornam manifestos na obra a partirdo clichecirc Shaviro chama a atenccedilatildeo em seu artigo sobre o filme para a ldquoqualidadegeneacutericardquo que se estabelece como recurso para a constituiccedilatildeo de determinadas cenasna medida em que elas se fundam sobre uma seacuterie de elementos tiacutepicos a muacutesica

sobretudo mas tambeacutem os gestos e expressotildees faciais que tornam as emoccedilotildees mobi-lizadas pela peliacutecula imediatamente legiacuteveis

Conforme Shaviro se empenha tambeacutem em argumentar haacute pontos de contato quepermitem traccedilar correspondecircncias entre a arte modernista e a cultura de massa sendoo gecircnero musical uma forma privilegiada para discutir tal aproximaccedilatildeo Para ele tantoo projeto modernista quanto o projeto da MGM ldquodesfazem o dualismo que situaria asrepresentaccedilotildees em um lado de uma divisatildeo intransponiacutevel e as coisas que estatildeo sendorepresentadas no outrordquo (Shaviro 2007 p13) Ainda segundo o autor

Temos aqui uma perspectiva ainda mais incisiva que aquela de Guy Scarpetta umavez que ela natildeo situa o entrecruzamento de tais projetos em um momento posteriorde rearticulaccedilatildeo ndash que aleacutem do mais eacute localizado sobretudo na produccedilatildeo de diretoresem maior ou menor grau legitimados como autores ndash mas no cerne mesmo de cadauma das vertentes de criaccedilatildeo

O trabalho de elaboraccedilatildeo formal presente em artefatos culturais massivos apresentacaracteriacutesticas que Shaviro argutamente conecta agraves teorias do afeto a ausecircncia deprofundidade a inadequaccedilatildeo de qualquer noccedilatildeo de autenticidade e a potecircncia dacitaccedilatildeo como recurso para suscitar um engajamento afetivo De fato satildeo os termosdessa polarizaccedilatildeo autecircntico-falso que o autor trata de romper Daiacute porque pode serespecialmente produtivo seguir os argumentos do autor acerca da relevacircncia dos cli-checircs estereoacutetipos e citaccedilotildees para o entendimento das maneiras pelas quais a culturado espetaacuteculo investe sobre nossos afetos e emoccedilotildees2

Se as imagens podem mobilizar o afeto na direccedilatildeo de uma ruptura eacute verdade ainda

que elas frequentemente lidam com questotildees de inteligibilidade e de transmissibili-dade Natildeo conveacutem simplesmente deplorar tais processos como agentes de vulgar-izaccedilatildeo ou de reduccedilatildeo das potencialidades da imagem mas pelo contraacuterio discutirem que medida eles podem ser valiosos para discutir as passagens mediante as quaisos afetos se inscrevem no corpo e se traduzem em gestos performativos e signos cul-turais compartilhados Eacute exatamente esse aspecto que Shaviro enfatiza quando ob-serva que satildeo em grande medida os clichecircs que tornam o sentimento legiacutevel para noacutesnatildeo apenas na posiccedilatildeo de espectadores mas tambeacutem quando lidamos com aquelesmais supostamente autecircnticos os nossos proacuteprios

Segundo o autor ldquoa natureza convencional dos signos que indicam e comunicamsentimentosrdquo eacute aquilo que os torna compreensiacuteveis ldquonatildeo apenas para os outros mastambeacutem (e mesmo talvez mais crucialmente) para noacutes mesmosrdquo (Shaviro 2007 p15)

2 Em sua argumentaccedilatildeo Shaviro recorre ao afeto e agrave emoccedilatildeo como noccedilotildees correlatas e em certa medida intercambiaacuteveis

Akerman descobre o ponto preciso onde MGM e modernismo satildeo indiscerniacuteveis

Ela recapitula o ideal esteacutetico moderno da unidade de forma e conteuacutedo masseu insight poacutes-modernista consiste em reconhecer que esta unidade eacute jaacute elamesma uma construccedilatildeo das forccedilas do entretenimento da moda e do comeacutercio(Shaviro 2007 p13 traduccedilatildeo nossa)

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Aqui ele parece se esforccedilar para deixar claro que os signos convencionais natildeo atuamapenas no processo da elaboraccedilatildeo cultural de formas que significam e expressam osafetos mas que a citacionalidade3 eacute inseparaacutevel da maneira como estes se manifes-tam corporalmente O teoacuterico eacute incisivo em relaccedilatildeo a esse aspecto ldquoEu gostaria desugerir que haacute um sentido em que o afeto soacute eacute lsquoverdadeirorsquo quando eacute uma citaccedilatildeo umlsquocomo sersquordquo (Shaviro 2007 p16)

Posicionamento semelhante jaacute havia sido elaborado em texto anterior no qual o au-tor busca definir os contornos daquilo que poderia ser entendido como uma ldquoemoccedilatildeopoacutes-modernardquo especialmente quando consideramos artefatos culturais que jaacute seencontram intensamente imbricados na loacutegica da mercadoria Acionando a figurade Andy Warhol Shaviro (2004) traz para primeiro plano uma gama de manifesta-ccedilotildees corporais artiacutesticas e performativas que jogam com o artifiacutecio para realccedilar umaemoccedilatildeo que natildeo pode ser expressa senatildeo por meio da ironia da auto-reflexividade eda teatralizaccedilatildeo enfim de um exacerbado esteticismo

Lugar de destaque neste processo cabe agrave televisatildeo ndash que com sua assemblage deformas e conteuacutedos diversos termina por criar as condiccedilotildees para uma espectatori-alidade desprovida de interesse ou de forte engajamento ndash e tambeacutem ao cinema noqual o artifiacutecio pelo contraacuterio suscitaria uma espeacutecie de intensificaccedilatildeo dos afetos soba forma de uma qualidade de resposta maior que aquela vivenciada nas circunstacircn-cias supostamente mais ldquoreaisrdquo do que nos acontece fora da tela

Natildeo se trata apenas do fato de que as emoccedilotildees no cinema sejam mais claramentevisiacuteveis O que a declaraccedilatildeo de Warhol citada por Shaviro sugere eacute a constituiccedilatildeo decondiccedilotildees tais que a emoccedilatildeo pode repercutir corporalmente de maneira exacerbadaWarhol assim natildeo deixa de descrever uma postura de acordo com a qual a indife-renccedila agravequilo que acontece agrave sua volta e por outro lado a paixatildeo por certas formas es-teacuteticas satildeo as duas facetas daquilo que viria constituir uma espeacutecie de neodandismoNesta forma peculiar de self-fashioning os novos meios da eacutepoca ocupam portantoposiccedilatildeo especial como operadores de uma pedagogia O ponto de inflexatildeo que de-marca a constituiccedilatildeo das jaacute mencionadas dobras sobre as emoccedilotildees ndash auto-reflexivi-

dade ironia teatralizaccedilatildeo ndash e que seriam impossiacuteveis de serem desvencilhadas dosmodos pelos quais tais emoccedilotildees satildeo elaboradas visivelmente seria portanto a novacultura midiaacutetica que segundo Warhol teria ldquomatadordquo suas emoccedilotildees

Shaviro retoma o modo como Warhol ldquofabrica uma sensibilidade e um estilordquo (Shaviro2004 p125) para pensar como as emoccedilotildees se pareceriam no contexto cultural queveio a ser chamado de poacutes-moderno Neste ponto eacute a figura de Marilyn Monroe ndash elamesma convertida num clichecirc mediante as ceacutelebres silkscreens que reproduzem eserializam o seu rosto ndash que retorna para sintetizar essa nova sensibilidade

3 Assim como se diz que o gesto de um corpo se constitui sendo passiacutevel de remeter a outros gestos ndash ideia que o conceito de per-formatividade nos permite formular ndash e assim como um discurso em certa medida cita e replica outros a partir dos termos mesmosem que eacute enunciado ndash citacionalidade iterabilidade ndash poderiacuteamos dizer que uma cena cita e desdobra outras cenas num acuacutemuloque o repertoacuterio do cinema e de outros meios torna possiacutevel Sobre os conceitos de performatividade citacionalidade e iterabili-dade ver Loxley (2007) Sobre citacionalidade e iterabilidade no cinema ver Wills (1998)

Embora Warhol amasse os filmes tanto quanto ele amava a TV ele natildeo diz queos filmes ajudaram a acabar com sua vida emocional De fato eacute bem o contraacuterioldquoos filmes fazem as emoccedilotildees parecerem tatildeo fortes e reais ao passo que quandoas coisas acontecem para vocecirc eacute como ver televisatildeo ndash vocecirc natildeo sente nadardquo(Shaviro 2004 p127 traduccedilatildeo nossa)

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em suma os retratos de Marilyn feitos por Warhol satildeo assustadoramente sem a-feto [affectless ] desprovidos de qualquer resposta emocional para a sua mortePelo contraacuterio eles demonstram a impossibilidade de tal resposta Pois a mortede Marilyn eacute a morte da emoccedilatildeo elas constituem um e o mesmo evento (Sha-viro 2004 p135 traduccedilatildeo nossa)

O que eacute curioso no modo como Shaviro recorre agraves declaraccedilotildees de Warhol sobre a

televisatildeo e o gravador ou mesmo sobre a relaccedilatildeo com a morte nesse contexto eacute queao endossaacute-las o teoacuterico vincula essa suposta morte das emoccedilotildees agrave ideia de umaperda de intensidade afetiva operada pela superficialidade e pela desdiferenciaccedilatildeodos meios Trata-se de uma proposiccedilatildeo estranha na medida em que no conceito deafeto ndash com o qual Shaviro faz alternar em seu texto a emoccedilatildeo e por vezes ateacute o sen-timento ndash a noccedilatildeo de profundidade quando formulada tomando o ponto de vista deum sujeito que o experienciaria eacute desde sempre afastada ou pelo menos colocadasob suspeita

Ao mesmo tempo eacute como se Shaviro tomasse a ironia e o distanciamento de que sereveste a ideia de uma ldquomorte das emoccedilotildeesrdquo pelo seu valor de face passando ao largodo artifiacutecio que eacute justamente aquilo que caracterizaria essa forma de esteticismo ouseja ignorando no artifiacutecio aquilo que ele deixa entrever somente a partir de umasofisticada elaboraccedilatildeo Tal questionamento eacute relevante especialmente porque con-forme o proacuteprio Shaviro faz notar a resistecircncia de Warhol em lidar com a questatildeo damorte longe de denotar indiferenccedila expressa uma dificuldade de processar o caraacuteterexcessivo inassimilaacutevel e traumaacutetico desse acontecimento Warhol segundo Shaviro(2004 p135) ficaria sem palavras diante da morte assumindo uma posiccedilatildeo de ca-tegoacuterica recusa quanto agrave sua elaboraccedilatildeo

Para ser mais preciso eacute como se a argumentaccedilatildeo de Shaviro nesse texto oscilasse

entre a convicccedilatildeo de que a autenticidade natildeo exerce funccedilatildeo alguma nesse debatenatildeo devendo assim sequer ser levantada como valor relevante ao mesmo tempo emque persiste a sugestatildeo de que haacute algo que se perdeu em relaccedilatildeo a algum momentoanterior Eacute sintomaacutetico portanto que o artigo de Shaviro recorra a uma intrincada enem sempre muito clara oscilaccedilatildeo entre proposiccedilotildees tais como ldquomorte da emoccedilatildeordquoldquoemoccedilatildeo poacutes-modernardquo ldquoemoccedilatildeo esvaziada de afetordquo e emoccedilatildeo revestida de artifiacutecioque eacute aquela agrave qual ele clama ao final de sua argumentaccedilatildeo Tudo leva a crer que Sha-viro se esforccedila afinal para avanccedilar em direccedilatildeo a uma proposiccedilatildeo que investe sobreos afetos naquilo que eles tecircm de impessoais no modo como operam na superfiacuteciepelas sensaccedilotildees e inclusive mediante contaacutegio a fim de elaborar esteticamente tais

qualidades pela via do artifiacutecio4

Dentre outros aspectos o que esta produtiva discussatildeo levantada por Shaviro expli-cita eacute a compreensatildeo de que se existe um estatuto especiacutefico do afeto e das emoccedilotildeesno poacutes-moderno isso se daacute menos pela perda da ancoragem em subjetividades decontornos bem definidos algo que natildeo eacute caracteriacutestico apenas de uma eacutepoca ou estaacute-gio da cultura e mais pela potencializaccedilatildeo de aspectos tais como a transpessoalidadee a superficialidade alcanccedilada pela via de uma exacerbaccedilatildeo do jogo com as formasda pose e tambeacutem da indiferenccedila aos limites entre o falso e o autecircntico Nestes ter-mos o artifiacutecio natildeo seria o recurso pelo qual se expressam emoccedilotildees desprovidas deafeto mas a ocasiatildeo em que a emoccedilatildeo se expressa intensamente como afetaccedilatildeo Soacuteassim seria possiacutevel reivindicar ldquosentimentos que satildeo irreverentes perversos excecircntri-cos perdulaacuterios fuacuteteis extravagantes disfuncionais e ridiacuteculosrdquo (Shaviro 2004 p140)

4 Suas menccedilotildees ao camp agraves drag queens e agrave noccedilatildeo warholiana da ldquoperformance ruimrdquo embasam este entendimento

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Temos desse modo uma espeacutecie de dobra que investe nos afetos justamente parasobrecodificaacute-los replicaacute-los explorar seus efeitos e derivaccedilotildees e na qual o clichecirc as-sumiria um papel central recolocando a pergunta pela relaccedilatildeo que travamos com asimagens e o tipo de resposta que elas suscitam

3 Entre o prazer e o distanciamento o artifiacutecio

Como dito anteriormente os debates em torno do clichecirc giram em grande medidaem torno da capacidade ndash sempre variaacutevel ndash que uma imagem teria de apresentar-secomo nova ou pelo contraacuterio de mostrar-se jaacute exaurida na sua capacidade de desper-tar uma reaccedilatildeo vivaz no espectador Susan Sontag dedicou-se a discutir essa capaci-dade de reaccedilatildeo principalmente por duas vias a contemplaccedilatildeo (pela beleza) ou o es-panto (pelo choque pela crueza ou pela violecircncia) Em seu ensaio Sobre a fotografia Sontag observa tomando um exemplo que pode soar ainda mais familiar em temposde popularizaccedilatildeo de dispositivos de captaccedilatildeo digital e de muacuteltiplas plataformas deexibiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de imagens

Vale a pena chamar a atenccedilatildeo aqui mais uma vez para a compreensatildeo de que o es-gotamento de um tema natildeo deixa de estar em certa medida condicionado ao proacutepriohistoacuterico das relaccedilotildees travadas entre a pessoa que olha e as imagens Em outras pa-lavras o efeito de desgaste varia segundo os repertoacuterios adquiridos Para o amadorum fenocircmeno da natureza ou paisagem pode despertar o entusiasmo que falta aos jaacute

excessivamente familiarizados com o mundo da fotografia Aparecer como novo oudesgastado ser digno de admiraccedilatildeo ou relegado ao acircmbito do banal satildeo atributosque natildeo se resolvem unicamente numa apreciaccedilatildeo intriacutenseca da imagem mas quepelo contraacuterio apelam agrave instacircncia daquele que vecirc

Em Diante da dor dos outros Sontag formula em outros termos o problema ao depa-rar-se com questotildees semelhantes agraves jaacute inventariadas no iniacutecio deste artigo a saber odiagnoacutestico de um excesso de imagens impulsionado pela cultura do espetaacuteculo e orisco bem assinalado por Deleuze de que a fuga do clichecirc termine por desembocarna produccedilatildeo de um novo padratildeo

De fato eacute possiacutevel argumentar que tanto a demanda incessante pelo novo quanto oprazer encontrado na redundacircncia do clichecirc satildeo partes integrantes de certa modali-dade de apreensatildeo do real dada a centralidade desses dois regimes complementaresndash a novidade e a redundacircncia ndash para o universo da cultura do espetaacuteculo Daiacute porquea mobilizaccedilatildeo do clichecirc como artifiacutecio natildeo implica um afastamento do real mas uma

as fotos criam o belo e ndash ao longo de geraccedilotildees de fotoacutegrafos o esgotam Certasgloacuterias da natureza por exemplo foram simplesmente entregues agrave infatigaacutevelatenccedilatildeo de amadores aficionados da cacircmera Pessoas saturadas de imagens

tendem a achar piegas os pores-do-sol agora infelizmente eles se parecem de-mais com fotos (Sontag 2004 pp101-2 grifo nosso)

ldquoa beleza seraacute convulsiva ou natildeo seraacuterdquo proclamou Andreacute Breton Ele chamouesse ideal esteacutetico de ldquosurrealistardquo mas numa cultura radicalmente renovadapela ascendecircncia de valores mercantis pedir que as imagens abalem clamemdespertem parece antes um realismo elementar aleacutem de bom senso para negoacute-cios De que outro modo se pode obter atenccedilatildeo para um produto ou uma obrade arte De que outro modo deixar uma marca mais funda quando existe umaincessante exposiccedilatildeo a imagens vistas e revistas muitas vezes A imagem comochoque e a imagem como clichecirc satildeo dois aspectos da mesma presenccedila (Sontag2003 p24)

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apreciaccedilatildeo de segunda ordem como via de acesso natildeo-ingecircnuo agraves complexidades deum presente imerso nos fluxos incessantes de imagens na era do capitalismo tardio

Neste ponto podemos retomar as consideraccedilotildees sobre a inadequaccedilatildeo da noccedilatildeo deautenticidade para pensar as emoccedilotildees que satildeo acionadas mediante o clichecirc ndash ou in-versamente a adequaccedilatildeo do clichecirc para catalisar emoccedilotildees suscitadas e expressas no

seio do espetaacuteculo A cultura de mercado investe na estreita cumplicidade entre onovo e o jaacute visto entre o banal e o extraordinaacuterio entre a ilusatildeo do autecircntico e apotecircncia do falso E nisso a arte de Andy Warhol como bem assinalou Steven Shaviropermanece uma via privilegiada para acessar tais questionamentos por sua mobiliza-ccedilatildeo irocircnica dos clichecircs e tambeacutem sobretudo por sua ambivalecircncia quanto aos efeitosdessa loacutegica de mercado sobre os domiacutenios da arte

Para Jean Baudrillard (2006) a potecircncia das intervenccedilotildees de Warhol se existe estaacute emlevar a loacutegica do significante ao paroxismo da proliferaccedilatildeo e da exaustatildeo e com issoalccedilar as imagens ao seu maacuteximo grau de artificialismo Essa exacerbaccedilatildeo do artifiacutecioconfere outro estatuto para o clichecirc na medida em que radicaliza o seu esvaziamento

Eacute uma via distinta a trilhada por Chantal Akerman mas que guarda em comum essadimensatildeo do clichecirc como potente artifiacutecio Natildeo se trata de distanciar-se do clichecirc

para alcanccedilar um desvelamento daquilo que estaria encoberto por ele Ivone Mar-gulies observa a respeito dos musicais da realizadora que ldquoa ambiccedilatildeo desses filmeseacute algo distinto do anti-ilusionismo o que importa eacute que todo o peso da banalidadeseja reexperienciado por meio do clichecirc ndash que a banalidade recupere sua intensidaderepetitiva ou que ela exiba sua composiccedilatildeo claustrofoacutebicardquo (Margulies 1996 p188)Nesse aspecto especificamente encontramos um ponto de articulaccedilatildeo entre Warhole Akerman ainda que ambos alcancem efeitos tatildeo distintos no conjunto de sua obraTrata-se antes de colocar em movimento procedimentos que permitam escapar doimpasse entre o novo e o redundante entre o banal e o extraordinaacuterio entre o choquee a complacecircncia entre o estranhamento e o reconhecimento

Ainda segundo Margulies (Idem p212) se o clichecirc tem uma ldquohistoacuteria semacircnticardquo queo espectador eventualmente conhece seu histoacuterico pode natildeo obstante ser ldquobloquea-dordquo Tal bloqueio ocorreria em grande medida por meio da constituiccedilatildeo de uma seri-alidade De modo semelhante Darlene Pursley afirma que eacute a repeticcedilatildeo que ocasionanos filmes da realizadora ldquoa perda de todo sentidordquo cabendo ao espectador dotar oclichecirc por assim dizer de sua proacutepria ldquosingularidaderdquo e ldquocoloraccedilatildeo especialrdquo (Pursley2005 p1198)

Em casos como estes natildeo parece completamente adequado o contraponto que criacuteti-cas da cultura como aquelas propostas por Beatriz Sarlo alccedilam como resposta agrave pro-liferaccedilatildeo de regimes audiovisuais massivos Natildeo se trata aqui de fazer contrapor aldquodensidade semacircnticardquo de uma imagem (Sarlo 2004 p59) agrave repeticcedilatildeo veloz e seri-alizada de estiacutemulos audiovisuais que caracteriza por exemplo a televisatildeo De fato

as imagens de Warhol natildeo satildeo de modo algum banais pelo fato de constituiacuteremo reflexo de um mundo banal mas porque resultam da ausecircncia no sujeito detoda pretensatildeo de interpretaacute-lo resultam da elevaccedilatildeo da imagem agrave figuraccedilatildeopura sem a menor transfiguraccedilatildeo Assim portanto jaacute natildeo se trata de uma trans-cendecircncia mas do ganho de potecircncia do signo que perdendo toda significa-ccedilatildeo natural resplandece no vazio com toda sua luz artificial (Baudrillard 2006p38 traduccedilatildeo nossa)

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se ainda hoje algumas de suas observaccedilotildees demonstram relevacircncia e despertam in-teresse ndash chama-nos a atenccedilatildeo especialmente o fato de que para Sarlo as imagenslembradas seriam as que manifestam a capacidade de ldquofixar-se com o peso do icocircnicordquo(Sarlo 2004 62) ndash a forccedila de leituras criacuteticas como as que vecircm sendo propostas porSteven Shaviro Ivone Margulies e outros eacute justamente pensar a potecircncia das imagenssem recorrer a todo um encadeamento de paracircmetros como peso substacircncia densi-

dade profundidade

Para Warhol assim como para Akerman especialmente em suas comeacutedias musicaisda deacutecada de 1980 ndash e para persistirmos nos dois projetos esteacuteticos que guiaram al-gumas das reflexotildees aqui articuladas ndash a iconicidade das imagens se realiza em seuproacuteprio valor de superfiacutecie e assumindo o caraacuteter de segunda ordem das obras en-quanto partiacutecipes de um universo sensiacutevel disperso e multifacetado Aqui voltamosa insistir na potecircncia que adveacutem dessa possibilidade de acionar os repertoacuterios dosespectadores como mateacuteria a partir da qual a potecircncia criativa investe seus esforccedilosNo reconhecimento desse caraacuteter sobrecodificado da cultura natildeo estamos eacute verdademuito distantes das palavras de Nelson Brissac Peixoto

Nosso argumento eacute que conforme o percurso que vimos esboccedilando o esvaziamentodo significado pela via da repeticcedilatildeo natildeo constitui algo necessariamente negativo Se-gundo as leituras de Shaviro Margulies Schmid Gueroacuten e mesmo em certos aspec-tos Baudrillard a repeticcedilatildeo e os efeitos de superfiacutecie podem ser tambeacutem afirmativos

engendram relaccedilotildees e modos possiacuteveis de intervenccedilatildeo no real Por essa via embara-lham-se as categorias numa imagem-clichecirc que retorna convencional poreacutem atraves-sada por muacuteltiplos desvios reconheciacutevel poreacutem distorcida superficialmente legiacutevelporeacutem destituiacuteda de quaisquer sentidos estaacuteveis Vaga sensaccedilatildeo de jaacute visto nuncacompletamente jaacute assimilado posto que a proacutepria expectativa de entendimento pres-supotildee a existecircncia de um sentido que poderia ou natildeo ser captado mas que aqui girasobre si mesmo e se desfaz Compreender e processar um significado preexistenteimplicaria uma verticalizaccedilatildeo e um adensamento que satildeo frustrados pela proacutepria radi-cal superficialidade do artifiacutecio

Natildeo se trata de dizer que os clichecircs satildeo infinitamente remodelaacuteveis nem de redefini-los como paradoxalmente inexauriacuteveis A esse respeito eacute certeira a observaccedilatildeo deSarlo ldquoao elitismo das posiccedilotildees mais criacuteticas natildeo deveria opor-se uma inversatildeo simeacute-trica sob a forma de um neopopulismo seduzido pelos encantos da induacutestria culturalrdquo(Sarlo 2004 p65) Natildeo obstante para Sarlo a ldquorepeticcedilatildeo eacute uma maacutequina de produziruma suave felicidaderdquo (Sarlo 2004 p63) um deleite alcanccedilado pela via do apazigua-mento Caberia insistir no entanto e em favor mesmo das ressalvas colocadas dianteda dupla rejeiccedilatildeo ao ldquoelitismordquo e ao ldquoneopopulismo de mercadordquo que o prazer oriundoda relaccedilatildeo com a imagerie que marca nossa experiecircncia do contemporacircneo estaacutelonge de reduzir-se a uma suspensatildeo dos conflitos De fato um dos ganhos trazidospelas discussotildees sobre as formas do artifiacutecio na cultura e nas artes decorre justamenteda problematizaccedilatildeo de noccedilotildees demasiadamente unilaterais tais como o ldquoescapismordquoe a ldquofuga do realrdquo

nesse mundo de cenaacuterios e personagens tudo eacute imagerie Tem a consistecircnciade mito e imagem A cultura contemporacircnea eacute de segunda geraccedilatildeo onde ahistoacuteria a experiecircncia e os anseios de cada um satildeo moldados pela literaturaos quadrinhos o cinema e a TV Vidas em segundo grau Todas essas histoacuterias jaacuteforam vistas todos estes lugares visitados (Peixoto 1988 p362)

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O prazer do artifiacutecio natildeo consiste num suave apaziguamento mas em instalar-se namobilidade entre o reconhecimento e a frustraccedilatildeo dos modos estabelecidos de apre-ensatildeo sensiacutevel e dos esquemas de inteligibilidade Um modo de ler o mundo e umaconstante incerteza em relaccedilatildeo agravequilo que lemos Uma pergunta pelo que haacute de ile-giacutevel no que eacute supostamente oacutebvio bem como uma salutar suspeita diante das pre-tensotildees de ruptura quando esta arrisca tornar-se demasiadamente auto-importante

Talvez do artifiacutecio decorra um prazer hesitante certamente haacute nele um prazer que sealimenta da duacutevida

Referecircncias bibliograacutecas

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JAMESON Fredric Poacutes-modernismo a loacutegica cultural do capitalismo tardio Satildeo Paulo EditoraAacutetica 2ordf ed 2007JOLY Martine Introduccedilatildeo agrave anaacutelise das imagens Campinas SP Papirus Editora 2004LOXLEY James Performativity London and New York Routledge New Critical Idiom 2007MARGULIES Ivone Nothing happens Chantal Akermanrsquos Hyperrealist Everyday Duke UniversityPress Durham and London 1996PEIXOTO Nelson Brissac ldquoO olhar do estrangeirordquo In NOVAES Adauto (org) O olhar Satildeo PauloCompanhia das Letras 1988 p361-365PHILIPPON Alain Fragments bruxelois entretien avec Chantal Akerman Cahiers du cineacutema 3411982 p 19-23PURSLEY Darlene Moving in time Chantal Akermanrsquos Toute une nuit MLN Volume 120 Number5 December 2005 (Comparative Literature Issue) p 1192-1205

SARLO Beatriz Cenas da vida poacutes-moderna intelectuais arte e videocultura na Argentina Riode Janeiro Editora UFRJ 2004SCARPETTA Guy Lrsquoimpureteacute Paris Bernard Grasset 1985SCHMID Marion Chantal Akerman (French Film Directors) Manchester and New York ManchesterUniversity Press 2010SHAVIRO Steven Clicheacutes of identity Chantal Akermanrsquos musicals Quarterly review of film andvideo 241 2007 p 11-17______ The life after death of postmodern emotions Criticism volume 46 number 1 Winter2004 p125-141SONTAG Susan Sobre fotograa Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004______ Diante da dor dos outros Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003WILLS David ldquoThe french remark Breathless and cinematic citationalityrdquo In HORTON AndrewMcDOUGAL Stuart Y (eds) Play it again Sam retakes on remakes Berkeley University of California

Press 1998 p147-161

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Trata-se menos aqui de tomar um texto de intervenccedilatildeo e fazecirc-lo passar por siacutenteseda perspectiva de seu autor ndash gesto que implicaria trair o caraacuteter efecircmero que marca

sua proacutepria natureza contingente uma vez que consiste num argumento produzidopara ser lido numa conferecircncia ndash do que encontrar nele o marcador de um diagnoacutesti-co que marcou uma eacutepoca e que ainda hoje se mostra tatildeo difuso quanto pervasivo

Discorrendo sobre a televisatildeo um dos focos desta criacutetica da redundacircncia midiaacuteticaBeatriz Sarlo escreve tambeacutem no contexto da discussatildeo sobre o poacutes-moderno que ldquoaimagem perdeu toda a intensidaderdquo (Sarlo 2004 p53) e faz seguir agrave sua formulaccedilatildeocategoacuterica uma seacuterie de consideraccedilotildees sobre as propriedades e mecanismos de fun-cionamento do meio televisivo Esse meio estaria marcado pela predominacircncia de ldquoi-magens de preenchimentordquo uma espeacutecie de ldquomareacute gelatinosa onde flutuam afundame emergem os signos reconheciacuteveis que necessitam dessa massa moacutebil de imagens justamente para poder diferenciar-se dela despertar surpresa e circular com rapidezrdquo(Sarlo 2004 p62)

Em seu limite tal diagnoacutestico de eacutepoca se configura como sentimento de perda em

relaccedilatildeo a uma poliacutetica preacutevia das imagens que operava segundo uma loacutegica da escas-sez garantia de que se alcanccedilasse uma potecircncia naquilo que se apresentava ao olharem contraponto agrave ldquodesencarnaccedilatildeordquo do mundo resultante do excesso de imagens

Ao argumento da banalizaccedilatildeo e da proliferaccedilatildeo como perdas de potecircncia das ima-gens alguns pensadores responderam com uma delimitaccedilatildeo mais estrita da proacutepriaimagem como conceito lanccedilando matildeo de distinccedilotildees que em uacuteltima instacircncia busca-ram apartaacute-la de seu excedente banal saturado esvaziado Tomemos a esse respeitoa ceacutelebre resposta dada por Gilles Deleuze aos intentos de caracterizar o contemporacirc-neo como uma era da imagem ldquocivilizaccedilatildeo da imagem Na verdade uma civilizaccedilatildeodo clichecirc na qual todos os poderes tecircm interesse em nos encobrir as imagens natildeoforccedilosamente em nos encobrir a mesma coisa mas em encobrir alguma coisa na ima-gemrdquo (Deleuze 2007 p32)

Temos nesta afirmaccedilatildeo um duplo movimento ao mesmo tempo em que o filoacutesofobusca diferenciar a imagem de sua imobilizaccedilatildeo da paralisia dos seus efeitos ele natildeodeixa de endossar tambeacutem de certo modo o diagnoacutestico do tempo presente comoaquele que eacute marcado pela perda de potecircncia nas formas que permeiam os artefatos

natildeo existem mais veacuteus nem misteacuterios Vivemos no universo da sobreexposiccedilatildeoe da obscenidade saturado de clichecircs onde a banalizaccedilatildeo e a descartabilidadedas coisas e imagens foi levada ao extremo Como olhar quando tudo ficou in-distinguiacutevel quando tudo parece a mesma coisa (Peixoto 1988 p 361)

com esta proliferaccedilatildeo das imagens entramos na era da produccedilatildeo do real Aquiloque era pressuposto do olhar eacute agora o seu resultado Natildeo haacute mais distinccedilatildeo en-tre realidade e artifiacutecio entre experiecircncia e ficccedilatildeo entre histoacuteria e estoacuterias Nossaidentidade e lugar satildeo constituiacutedos a partir de um imaginaacuterio e uma iconografiacriados pela induacutestria cultural Este mediascape eacute a realidade onde os indiviacuteduoshoje vivem (Peixoto 1988 p362)

isto eacute o que aprendemos da modernidade que a forccedila vem da subtraccedilatildeo queda ausecircncia nasce a potecircncia Natildeo paramos de acumular de adicionar de do-brar a aposta E por natildeo sermos jaacute capazes de confrontar o domiacutenio simboacutelicoda ausecircncia submergimo-nos hoje na ilusatildeo contraacuteria ilusatildeo desencantada daprofusatildeo ilusatildeo moderna de telas e imagens que proliferam (Baudrillard 2006p17 traduccedilatildeo nossa)

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culturais em circulaccedilatildeo incluindo-se aiacute o cinema a muacutesica a literatura Eacute interessantenotar ainda que segundo esta perspectiva a imagem estaria desde sempre imbuiacutedade uma qualidade positiva tudo aquilo que investe nos haacutebitos da percepccedilatildeo e anes-tesia os sentidos tudo aquilo que se encontra esvaziado de sua potecircncia de nos a-fetar de desencadear as forccedilas do pensamento e de potencializar a experimentaccedilatildeosensiacutevel do mundo suscitando reflexatildeo estranhamento admiraccedilatildeo e criacutetica recairia

numa zona aqueacutem ou aleacutem dos domiacutenios daquilo que seria definido como imagemDito de outro modo o banal a repeticcedilatildeo a saturaccedilatildeo seriam qualidades relegadas aooutro polo de uma distinccedilatildeo entre civilizaccedilatildeo da imagem e civilizaccedilatildeo do clichecirc comomodalidades concorrentes na caracterizaccedilatildeo dos rumos das sociedades ocidentais

Natildeo por acaso entatildeo Gilles Deleuze e Feacutelix Guattari (1992) reivindicam para o campoda arte a funccedilatildeo de criar afetos Os afetos sem nome satildeo o desdobramento de umtrabalho que investe naquilo que natildeo estaacute ainda formado e nesse sentido precedeo processo de cristalizaccedilatildeo que viria barrar o fluxo criativo Assim por exemplo se-gundo os autores ldquoquando Emily Bronteacute traccedila o liame que une Heathcliff e Catherineela inventa um afeto violento (que sobretudo natildeo deve ser confundido com o amor)algo como uma fraternidade entre dois lobosrdquo (Deleuze Guattari 1992 p226-7) Esseldquonatildeo dever ser confundido comrdquo essa criaccedilatildeo de um mundo sem precedentes quecomo tal natildeo se adeacutequa a qualquer modelo em que porventura se pretenda sub-sumi-lo eacute sem duacutevida uma bela potencialidade da arte ainda mais porque permiteconstituir um mundo que eacute marcado por sua singularidade e como tal nos move nocaso mencionado um forte viacutenculo de cumplicidade se conjuga com certa disposiccedilatildeoanimalesca para demarcar a qualidade de uma relaccedilatildeo a partir de uma composiccedilatildeonotavelmente eloquente expressiva

Se o clichecirc eacute aquilo que imobiliza o pensamento o desafio da nossa sociedade se-

ria portanto o de investir na potecircncia da imagem ou seja catalisar aquilo que elatem de desestabilizante de imprevisto de revelador Evitar com isso que ela atue demaneira meramente ratificadora suscitando pelo contraacuterio experiecircncias de realidadeque permitam explorar potencialidades do corpo modos de experiecircncia e linhas depensamento a serem traccediladas Detendo-se nesse ponto Rodrigo Gueroacuten (2011) bus-cou deslindar a diferenciaccedilatildeo entre imagem e clichecirc com vistas a traccedilar os movimen-tos que levam de um a outro Um aspecto interessante de sua abordagem eacute portantotornar expliacutecita a compreensatildeo de que tais noccedilotildees natildeo funcionam como categoriasestanques ou modelos para tipificaccedilatildeo elas constituem posiccedilotildees moacuteveis de maneiratal que imagens natildeo cessam de se converter em clichecircs e vice-versa

O clichecirc seria o operador de esquemas que instauram e buscam preservar uma or-dem de causalidades atuando assim como agente de uma contraforccedila que interceptaldquotodas as possibilidades produtivas atraveacutes das quais a vida se manteacutem e se reinventardquo(Gueroacuten 2011 p64) No que poderiacuteamos apontar como uma das hipoacuteteses centraisde seu trabalho Gueroacuten busca estabelecer uma aproximaccedilatildeo entre o clichecirc e o quechama de imagem-lei ou imagem-moral dado que esse fechamento ao qual alude opesquisador traccedila uma correspondecircncia entre por um lado ldquoa moral como disciplinapara o corpordquo (Gueroacuten 2011 p137) instauradora de valores e veiacuteculo que busca orga-nizar a histoacuteria em torno de uma lei e por sua vez o clichecirc como ldquoesquema redutor epadronizador dos afetosrdquo (Gueroacuten 2011 p245)

Temos com isso a ideia de que o clichecirc se inscreve no corpo operando uma espeacuteciede anestesia ou paralisaccedilatildeo A amplitude de uma experiecircncia sensiacutevel eacute restringida na

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medida em que provecirc os modelos que permitem assimilar as propriedades sensoacuteriase os efeitos possiacuteveis de uma imagem dentro de um horizonte de sentido preacute-deter-minado

Falar em clichecirc implica sempre portanto falar num passado das imagens que eacute citadorepetido e que nos concede os marcos para enquadrar acomodar e segundo decorredas consideraccedilotildees anteriormente elencadas amortecer uma nova experiecircncia per-ceptiva Caberia no entanto perguntar quem partilha este passado Podemos afinalfalar em um marco uacutenico amparado num histoacuterico comum ou a nossa relaccedilatildeo comas imagens natildeo estaria pelo contraacuterio desde sempre amparada em percursos e ex-periecircncias natildeo tatildeo homogecircneos nem facilmente intercambiaacuteveis Um componentesensiacutevel ou elemento significante se encontra por assim dizer necessariamente ldquocon-denadordquo ao esvaziamento ou sua adequaccedilatildeo a uma rede de causalidades pode serfrustrada tornando a cadeia de associaccedilotildees inefetiva Jaacute vemos abrir-se uma brechapara a problematizaccedilatildeo do clichecirc o passado que o funda eacute incerto bem como o fu-turo de sua atualizaccedilatildeo assinala uma possiacutevel abertura para novas potencialidades

Uma criacutetica do clichecirc precisa considerar mais detidamente a possibilidade de que des-pontem apropriaccedilotildees inventivas deslocamentos e reversotildees do jaacute visto Nesse pontoeacute importante retomar o trabalho de Rodrigo Gueroacuten pois o seu estudo permite natildeoapenas como dito anteriormente enfatizar que a separaccedilatildeo entre imagem e clichecirc eacutepermeaacutevel A certa altura sua argumentaccedilatildeo se abre para uma faceta particularmente

relevante para nossa perspectiva a ideia de um ldquoclichecirc fora do tempordquo como um es-quema que eacute ldquoimpedido de se realizarrdquo (Gueroacuten 2011 p117) O que temos em casoscomo esse eacute a situaccedilatildeo em que uma ldquoimagem ndash o objeto-imagem portanto ndash perdesua funccedilatildeo pragmaacutetica de revelar uma situaccedilatildeo que tenderia a se desdobrar numaaccedilatildeo e a percepccedilatildeo como que retorna se concentra e insiste sobre esta imagemrdquo(Gueroacuten 2011 p117)

Por sua vez eacute importante lembrar que na rejeiccedilatildeo mais apaixonada ao clichecirc podedespontar um conjunto de procedimentos mediante os quais ao final de sua plenarealizaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo esteacutetica reside nada menos que a conformaccedilatildeo de um novo

clichecirc Deleuze natildeo perdeu de vista este risco tornando expliacutecito o problema

No mais vale observar que a noccedilatildeo de clichecirc constitui o paroxismo de uma instacircnciamuito mais ampla de constituiccedilatildeo e apreensatildeo das imagens que eacute a de sua codifica-

o clichecirc constroacutei o seu sentido ou se constroacutei enquanto sentido na medida emque evoca um passado que soacute pode lhe garantir seguranccedila O passado aiacute justi-fica e fecha absolutamente a compreensatildeo do que se percebe da experiecircncia

sensoacuterio-motora presente do real colocando-a na loacutegica de um sentido de umprocesso de uma espeacutecie de destino final (Gueroacuten 2011 p160)

o difiacutecil eacute saber em que uma imagem oacutetica e sonora natildeo eacute ela proacutepria um clichecircquando muito uma foto Natildeo pensamos apenas na maneira pela qual essas ima-gens tornam a produzir um clichecirc a partir do momento em que satildeo retomadaspor autores que delas se servem como foacutermulas Mas os proacuteprios criadores natildeotecircm agraves vezes a ideia de que a nova imagem deva rivalizar com o clichecirc emseu proacuteprio terreno somar algo ao cartatildeo-postal juntar-lhe alguma coisa pa-rodiaacute-lo para melhor se livrar dele (Robbe-Grillet Daniel Schmid) Os criadoresinventam enquadramentos obsedantes espaccedilos vazios ou desconectados ateacutemesmo naturezas-mortas de certo modo eles param o movimento redesco-brem a forccedila do plano fixo mas natildeo seria isso ressuscitar o clichecirc que queriamcombater (Deleuze 2007 p33)

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ccedilatildeo de seu alinhamento a formas e regimes que privilegiam a fixaccedilatildeo e a condensa-ccedilatildeo de uma determinada gama de sentidos de esquemas de percepccedilatildeo e de inteligi-bilidade A saturaccedilatildeo das imagens e a exaustiva colocaccedilatildeo em cena de alguns motivosrecorrentes que como tais apontam certas ordens privilegiadas de encadeamentosprecisam ser postas em questatildeo para que seja possiacutevel perguntar pela sua mobili-dade pela potencialidade que elas apesar de tudo guardariam Daiacute a importacircncia

de discutir obras cujas esteacuteticas que se mostram atravessadas por toda uma gamade hibridaccedilotildees cruzamentos reapropriaccedilotildees e flertes com signos nomeaacuteveis discur-sos saturados imagens e afetos que natildeo cessam de se entremear com as formas quepresidem a sua codificaccedilatildeo ndash e portanto com os movimentos de uma histoacuteria culturalque os elabora e significa

2 O lugar do clichecirc nas emoccedilotildees poacutes-modernas

Em certo ponto de seu estudo sobre o cinema de Chantal Akerman Ivone Margu-lies define muito sucintamente o clichecirc como uma imagem que eacute ldquoconhecida antes

mesmo de ser vistardquo (Margulies 1996 p203) Essa afirmaccedilatildeo natildeo obstante o caraacuteteraparentemente evidente daquilo que enuncia resulta bastante efetiva uma vez quepermite enfatizar aspectos relevantes para uma discussatildeo sobre o clichecirc Dessa sinteacute-tica formulaccedilatildeo podemos extrair algumas ideias Primeiramente o clichecirc nos enredaem uma cadeia de expectativas na qual ele se ampara e que em uacuteltima instacircnciapoderiacuteamos dizer que condiciona sua efetividade Em segundo lugar daiacute decorre queesta acepccedilatildeo do clichecirc se constitui em consonacircncia com a noccedilatildeo de repertoacuterio suadefiniccedilatildeo se refere diretamente agraves imagens conhecidas que em certa medida nos for-mam e que ao mesmo tempo estabelecem marcos para lidar com novas ocorrecircn-cias e novos estiacutemulos Por isso mesmo entatildeo embora seja razoaacutevel estabelecer umabase comum de referecircncia a partir da qual concebemos o que eacute predominantementedo acircmbito do clichecirc a noccedilatildeo se apresenta ela mesma dependente desse repertoacuteriocomo marco variaacutevel Como toda relaccedilatildeo esta tambeacutem estaacute sujeita a variabilidadese contingecircncias e responde a diferentes contextos disposiccedilotildees e modos de engaja-mento

Nas circunstacircncias em que se daacute uma confirmaccedilatildeo daquilo que jaacute conhecemos ou sejaquando a imagem que um filme nos concede atende aos traccedilos formais sensiacuteveis enarrativos que antecipamos parece certo afirmar que aquilo que se encontra diminuiacute-do eacute a potecircncia que essa imagem traria de suscitar uma apreensatildeo inabitual e comisso inventar novas relaccedilotildees suscitar novas experiecircncias sensoriais e de pensamento

No entanto o que muitas vezes fica de fora dessa convicccedilatildeo eacute o prazer da repeticcedilatildeoe da atitude de cotejar as variaccedilotildees possiacuteveis traccedilar recorrecircncias estabelecer redesde correspondecircncias e ressonacircncias A serialidade das imagens remete a toda umagama de disposiccedilotildees culturais bem como a sensibilidades e temporalidades as maisdiversas de modo que eacute plausiacutevel considerar sua ocorrecircncia um fenocircmeno culturale midiaacutetico relevante a ser discutido para aleacutem de uma rejeiccedilatildeo fundada na posturaque qualifica a repeticcedilatildeo como veiacuteculo para a manifestaccedilatildeo de uma redundacircncia va-zia Ainda segundo Margulies

a sobreposiccedilatildeo de repeticcedilatildeo e atualidade invocada por um clichecirc indica seu al-cance social um clichecirc estaacute inevitavelmente envolto nas ressonacircncias prece-dentes de uma dada forma ou representaccedilatildeo O fato de que uma frase ou modoespeciacutefico pode ainda comunicar atraveacutes e apesar de tal redundacircncia nos fala daforccedila do clichecirc Sua potencial efetividade em um filme reside no reconhecimen-

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A questatildeo que se coloca eacute entatildeo como fazer da repeticcedilatildeo da apropriaccedilatildeo do des-locamento de repertoacuterios e de certas composiccedilotildees jaacute conhecidas o motor de umarelaccedilatildeo produtiva com as imagens O universo esteacutetico e midiaacutetico configura tropos

que se tornam familiares reconheciacuteveis e que como tais permitem assimilar umaimagem a esquemas de inteligibilidade ao mesmo tempo em que se imbuem de todauma cadeia de expectativas que podem ser confirmadas ou frustradas O problema deescapar ao clichecirc natildeo eacute simplesmente o de suprimir essa necessidade ou expectativamas o de lograr uma imagem que contorne a sua proacutepria assimilaccedilatildeo de forma raacutepida

Seguindo essa linha de anaacutelise Marion Schmid (2010 p70) sublinha que o cinemade Akerman opera nos campos do deacutejagrave vu e do deacutejagrave entendu A pesquisadora es-creve esse comentaacuterio a propoacutesito de Les Anneacutees 80 (1983) filme de processo quedocumenta o trabalho com atrizes e atores e precede a realizaccedilatildeo do que viria a ser omusical Golden Eighties (1986) Sua observaccedilatildeo poreacutem aplica-se a muitos dos pro-cedimentos que permeiam a filmografia da realizadora e em especial nos filmes desseperiacuteodo De fato tanto Margulies quanto Schmid assinalam a propoacutesito da carreira deAkerman um ponto de inflexatildeo que talvez natildeo casualmente coincide com o iniacuteciodos anos 1980 deacutecada marcada pelo auge das ideias e esteacuteticas poacutes-modernistas Osdesdobramentos da filmografia da realizadora levam-na a experimentar alternativas agravemestria1 ao ascetismo e ao caraacuteter estrutural que marcaram sua produccedilatildeo preceden-te buscando pelo contraacuterio exacerbar em sua esteacutetica a partir de entatildeo um caraacuteterimpuro

Ao falar em impureza recorremos ao termo proposto por Guy Scarpetta (1985) para

pensar parte da produccedilatildeo artiacutestica deste mesmo periacuteodo Embora natildeo analise espe-cificamente o cinema de Akerman a descriccedilatildeo que o autor faz dos impasses aos quaisa arte mais inventiva dessa eacutepoca buscou responder guarda estreitas correspondecircn-cias com as questotildees agraves quais os filmes da diretora naqueles anos se vincularam Scar-petta escreve o diagnoacutestico (alegoacuterico) de uma cultura que se encontra presa em umimpasse no cruzamento entre duas tendecircncias uma tradiccedilatildeo que natildeo eacute capaz de serenovar ndash ldquoum passado sem porvirrdquo ndash e uma arte experimental cheia de promessas defuturo mas que fez taacutebula rasa de seu passado e jaacute enfrenta a crise de como sustentaro imperativo do novo ndash ldquoum porvir sem passadordquo (Scarpetta 1985 p8)

O que vale sublinhar especialmente eacute como a noccedilatildeo de impureza busca dar contade obras e artistas que justamente exploram uma via de criaccedilatildeo que contorna tantoa regressatildeo ao academicismo a condenaccedilatildeo do moderno e ldquoa repeticcedilatildeo morna dopassadordquo quanto a redundacircncia de parte da cultura de massa (Scarpetta 1985 p9)Embora sem duacutevida esquemaacutetico esse panorama aponta para uma proposiccedilatildeo re-levante nos termos daquilo que permite formular uma vertente esteacutetica que tratariao passado da arte e o kitsch massivo ldquoem segundo grau sem inocecircncia por desviossobrecodificaccedilotildees corrupccedilatildeo desnaturalizaccedilatildeordquo (Scarpetta 1985 p9) Em suma umaesteacutetica da impureza Natildeo precisamos enfim seguir a dualidade traccedilada pelo autorque contrapotildee de um lado ldquocriteacuterios demasiado estritos linhas valores obrigadosnormas terroristasrdquo e do outro ldquoa ausecircncia de todo criteacuterio a profusatildeo heteroacuteclita deesteacuteticas a confusatildeo dos valoresrdquo para situar aiacute uma fase de suspensatildeo irresolutaquando os artistas se debateriam entre esses dois polos (Scarpetta 1985 p18-9)

1 Veja a esse respeito a entrevista que a diretora concedeu a Alain Philippon nos Cahiers du cineacutema (1982)

to da diferenccedila que o clichecirc pode ainda significativamente sugerir (Margulies1996 p84 traduccedilatildeo nossa)

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Steven Shaviro (2007) tambeacutem discute o jaacute mencionado musical Golden eighties Natildeoobstante em sua anaacutelise a ecircnfase recai sobre os afetos e como eles afastam qualquerpretensatildeo de autenticidade na medida em que se tornam manifestos na obra a partirdo clichecirc Shaviro chama a atenccedilatildeo em seu artigo sobre o filme para a ldquoqualidadegeneacutericardquo que se estabelece como recurso para a constituiccedilatildeo de determinadas cenasna medida em que elas se fundam sobre uma seacuterie de elementos tiacutepicos a muacutesica

sobretudo mas tambeacutem os gestos e expressotildees faciais que tornam as emoccedilotildees mobi-lizadas pela peliacutecula imediatamente legiacuteveis

Conforme Shaviro se empenha tambeacutem em argumentar haacute pontos de contato quepermitem traccedilar correspondecircncias entre a arte modernista e a cultura de massa sendoo gecircnero musical uma forma privilegiada para discutir tal aproximaccedilatildeo Para ele tantoo projeto modernista quanto o projeto da MGM ldquodesfazem o dualismo que situaria asrepresentaccedilotildees em um lado de uma divisatildeo intransponiacutevel e as coisas que estatildeo sendorepresentadas no outrordquo (Shaviro 2007 p13) Ainda segundo o autor

Temos aqui uma perspectiva ainda mais incisiva que aquela de Guy Scarpetta umavez que ela natildeo situa o entrecruzamento de tais projetos em um momento posteriorde rearticulaccedilatildeo ndash que aleacutem do mais eacute localizado sobretudo na produccedilatildeo de diretoresem maior ou menor grau legitimados como autores ndash mas no cerne mesmo de cadauma das vertentes de criaccedilatildeo

O trabalho de elaboraccedilatildeo formal presente em artefatos culturais massivos apresentacaracteriacutesticas que Shaviro argutamente conecta agraves teorias do afeto a ausecircncia deprofundidade a inadequaccedilatildeo de qualquer noccedilatildeo de autenticidade e a potecircncia dacitaccedilatildeo como recurso para suscitar um engajamento afetivo De fato satildeo os termosdessa polarizaccedilatildeo autecircntico-falso que o autor trata de romper Daiacute porque pode serespecialmente produtivo seguir os argumentos do autor acerca da relevacircncia dos cli-checircs estereoacutetipos e citaccedilotildees para o entendimento das maneiras pelas quais a culturado espetaacuteculo investe sobre nossos afetos e emoccedilotildees2

Se as imagens podem mobilizar o afeto na direccedilatildeo de uma ruptura eacute verdade ainda

que elas frequentemente lidam com questotildees de inteligibilidade e de transmissibili-dade Natildeo conveacutem simplesmente deplorar tais processos como agentes de vulgar-izaccedilatildeo ou de reduccedilatildeo das potencialidades da imagem mas pelo contraacuterio discutirem que medida eles podem ser valiosos para discutir as passagens mediante as quaisos afetos se inscrevem no corpo e se traduzem em gestos performativos e signos cul-turais compartilhados Eacute exatamente esse aspecto que Shaviro enfatiza quando ob-serva que satildeo em grande medida os clichecircs que tornam o sentimento legiacutevel para noacutesnatildeo apenas na posiccedilatildeo de espectadores mas tambeacutem quando lidamos com aquelesmais supostamente autecircnticos os nossos proacuteprios

Segundo o autor ldquoa natureza convencional dos signos que indicam e comunicamsentimentosrdquo eacute aquilo que os torna compreensiacuteveis ldquonatildeo apenas para os outros mastambeacutem (e mesmo talvez mais crucialmente) para noacutes mesmosrdquo (Shaviro 2007 p15)

2 Em sua argumentaccedilatildeo Shaviro recorre ao afeto e agrave emoccedilatildeo como noccedilotildees correlatas e em certa medida intercambiaacuteveis

Akerman descobre o ponto preciso onde MGM e modernismo satildeo indiscerniacuteveis

Ela recapitula o ideal esteacutetico moderno da unidade de forma e conteuacutedo masseu insight poacutes-modernista consiste em reconhecer que esta unidade eacute jaacute elamesma uma construccedilatildeo das forccedilas do entretenimento da moda e do comeacutercio(Shaviro 2007 p13 traduccedilatildeo nossa)

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Aqui ele parece se esforccedilar para deixar claro que os signos convencionais natildeo atuamapenas no processo da elaboraccedilatildeo cultural de formas que significam e expressam osafetos mas que a citacionalidade3 eacute inseparaacutevel da maneira como estes se manifes-tam corporalmente O teoacuterico eacute incisivo em relaccedilatildeo a esse aspecto ldquoEu gostaria desugerir que haacute um sentido em que o afeto soacute eacute lsquoverdadeirorsquo quando eacute uma citaccedilatildeo umlsquocomo sersquordquo (Shaviro 2007 p16)

Posicionamento semelhante jaacute havia sido elaborado em texto anterior no qual o au-tor busca definir os contornos daquilo que poderia ser entendido como uma ldquoemoccedilatildeopoacutes-modernardquo especialmente quando consideramos artefatos culturais que jaacute seencontram intensamente imbricados na loacutegica da mercadoria Acionando a figurade Andy Warhol Shaviro (2004) traz para primeiro plano uma gama de manifesta-ccedilotildees corporais artiacutesticas e performativas que jogam com o artifiacutecio para realccedilar umaemoccedilatildeo que natildeo pode ser expressa senatildeo por meio da ironia da auto-reflexividade eda teatralizaccedilatildeo enfim de um exacerbado esteticismo

Lugar de destaque neste processo cabe agrave televisatildeo ndash que com sua assemblage deformas e conteuacutedos diversos termina por criar as condiccedilotildees para uma espectatori-alidade desprovida de interesse ou de forte engajamento ndash e tambeacutem ao cinema noqual o artifiacutecio pelo contraacuterio suscitaria uma espeacutecie de intensificaccedilatildeo dos afetos soba forma de uma qualidade de resposta maior que aquela vivenciada nas circunstacircn-cias supostamente mais ldquoreaisrdquo do que nos acontece fora da tela

Natildeo se trata apenas do fato de que as emoccedilotildees no cinema sejam mais claramentevisiacuteveis O que a declaraccedilatildeo de Warhol citada por Shaviro sugere eacute a constituiccedilatildeo decondiccedilotildees tais que a emoccedilatildeo pode repercutir corporalmente de maneira exacerbadaWarhol assim natildeo deixa de descrever uma postura de acordo com a qual a indife-renccedila agravequilo que acontece agrave sua volta e por outro lado a paixatildeo por certas formas es-teacuteticas satildeo as duas facetas daquilo que viria constituir uma espeacutecie de neodandismoNesta forma peculiar de self-fashioning os novos meios da eacutepoca ocupam portantoposiccedilatildeo especial como operadores de uma pedagogia O ponto de inflexatildeo que de-marca a constituiccedilatildeo das jaacute mencionadas dobras sobre as emoccedilotildees ndash auto-reflexivi-

dade ironia teatralizaccedilatildeo ndash e que seriam impossiacuteveis de serem desvencilhadas dosmodos pelos quais tais emoccedilotildees satildeo elaboradas visivelmente seria portanto a novacultura midiaacutetica que segundo Warhol teria ldquomatadordquo suas emoccedilotildees

Shaviro retoma o modo como Warhol ldquofabrica uma sensibilidade e um estilordquo (Shaviro2004 p125) para pensar como as emoccedilotildees se pareceriam no contexto cultural queveio a ser chamado de poacutes-moderno Neste ponto eacute a figura de Marilyn Monroe ndash elamesma convertida num clichecirc mediante as ceacutelebres silkscreens que reproduzem eserializam o seu rosto ndash que retorna para sintetizar essa nova sensibilidade

3 Assim como se diz que o gesto de um corpo se constitui sendo passiacutevel de remeter a outros gestos ndash ideia que o conceito de per-formatividade nos permite formular ndash e assim como um discurso em certa medida cita e replica outros a partir dos termos mesmosem que eacute enunciado ndash citacionalidade iterabilidade ndash poderiacuteamos dizer que uma cena cita e desdobra outras cenas num acuacutemuloque o repertoacuterio do cinema e de outros meios torna possiacutevel Sobre os conceitos de performatividade citacionalidade e iterabili-dade ver Loxley (2007) Sobre citacionalidade e iterabilidade no cinema ver Wills (1998)

Embora Warhol amasse os filmes tanto quanto ele amava a TV ele natildeo diz queos filmes ajudaram a acabar com sua vida emocional De fato eacute bem o contraacuterioldquoos filmes fazem as emoccedilotildees parecerem tatildeo fortes e reais ao passo que quandoas coisas acontecem para vocecirc eacute como ver televisatildeo ndash vocecirc natildeo sente nadardquo(Shaviro 2004 p127 traduccedilatildeo nossa)

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em suma os retratos de Marilyn feitos por Warhol satildeo assustadoramente sem a-feto [affectless ] desprovidos de qualquer resposta emocional para a sua mortePelo contraacuterio eles demonstram a impossibilidade de tal resposta Pois a mortede Marilyn eacute a morte da emoccedilatildeo elas constituem um e o mesmo evento (Sha-viro 2004 p135 traduccedilatildeo nossa)

O que eacute curioso no modo como Shaviro recorre agraves declaraccedilotildees de Warhol sobre a

televisatildeo e o gravador ou mesmo sobre a relaccedilatildeo com a morte nesse contexto eacute queao endossaacute-las o teoacuterico vincula essa suposta morte das emoccedilotildees agrave ideia de umaperda de intensidade afetiva operada pela superficialidade e pela desdiferenciaccedilatildeodos meios Trata-se de uma proposiccedilatildeo estranha na medida em que no conceito deafeto ndash com o qual Shaviro faz alternar em seu texto a emoccedilatildeo e por vezes ateacute o sen-timento ndash a noccedilatildeo de profundidade quando formulada tomando o ponto de vista deum sujeito que o experienciaria eacute desde sempre afastada ou pelo menos colocadasob suspeita

Ao mesmo tempo eacute como se Shaviro tomasse a ironia e o distanciamento de que sereveste a ideia de uma ldquomorte das emoccedilotildeesrdquo pelo seu valor de face passando ao largodo artifiacutecio que eacute justamente aquilo que caracterizaria essa forma de esteticismo ouseja ignorando no artifiacutecio aquilo que ele deixa entrever somente a partir de umasofisticada elaboraccedilatildeo Tal questionamento eacute relevante especialmente porque con-forme o proacuteprio Shaviro faz notar a resistecircncia de Warhol em lidar com a questatildeo damorte longe de denotar indiferenccedila expressa uma dificuldade de processar o caraacuteterexcessivo inassimilaacutevel e traumaacutetico desse acontecimento Warhol segundo Shaviro(2004 p135) ficaria sem palavras diante da morte assumindo uma posiccedilatildeo de ca-tegoacuterica recusa quanto agrave sua elaboraccedilatildeo

Para ser mais preciso eacute como se a argumentaccedilatildeo de Shaviro nesse texto oscilasse

entre a convicccedilatildeo de que a autenticidade natildeo exerce funccedilatildeo alguma nesse debatenatildeo devendo assim sequer ser levantada como valor relevante ao mesmo tempo emque persiste a sugestatildeo de que haacute algo que se perdeu em relaccedilatildeo a algum momentoanterior Eacute sintomaacutetico portanto que o artigo de Shaviro recorra a uma intrincada enem sempre muito clara oscilaccedilatildeo entre proposiccedilotildees tais como ldquomorte da emoccedilatildeordquoldquoemoccedilatildeo poacutes-modernardquo ldquoemoccedilatildeo esvaziada de afetordquo e emoccedilatildeo revestida de artifiacutecioque eacute aquela agrave qual ele clama ao final de sua argumentaccedilatildeo Tudo leva a crer que Sha-viro se esforccedila afinal para avanccedilar em direccedilatildeo a uma proposiccedilatildeo que investe sobreos afetos naquilo que eles tecircm de impessoais no modo como operam na superfiacuteciepelas sensaccedilotildees e inclusive mediante contaacutegio a fim de elaborar esteticamente tais

qualidades pela via do artifiacutecio4

Dentre outros aspectos o que esta produtiva discussatildeo levantada por Shaviro expli-cita eacute a compreensatildeo de que se existe um estatuto especiacutefico do afeto e das emoccedilotildeesno poacutes-moderno isso se daacute menos pela perda da ancoragem em subjetividades decontornos bem definidos algo que natildeo eacute caracteriacutestico apenas de uma eacutepoca ou estaacute-gio da cultura e mais pela potencializaccedilatildeo de aspectos tais como a transpessoalidadee a superficialidade alcanccedilada pela via de uma exacerbaccedilatildeo do jogo com as formasda pose e tambeacutem da indiferenccedila aos limites entre o falso e o autecircntico Nestes ter-mos o artifiacutecio natildeo seria o recurso pelo qual se expressam emoccedilotildees desprovidas deafeto mas a ocasiatildeo em que a emoccedilatildeo se expressa intensamente como afetaccedilatildeo Soacuteassim seria possiacutevel reivindicar ldquosentimentos que satildeo irreverentes perversos excecircntri-cos perdulaacuterios fuacuteteis extravagantes disfuncionais e ridiacuteculosrdquo (Shaviro 2004 p140)

4 Suas menccedilotildees ao camp agraves drag queens e agrave noccedilatildeo warholiana da ldquoperformance ruimrdquo embasam este entendimento

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Temos desse modo uma espeacutecie de dobra que investe nos afetos justamente parasobrecodificaacute-los replicaacute-los explorar seus efeitos e derivaccedilotildees e na qual o clichecirc as-sumiria um papel central recolocando a pergunta pela relaccedilatildeo que travamos com asimagens e o tipo de resposta que elas suscitam

3 Entre o prazer e o distanciamento o artifiacutecio

Como dito anteriormente os debates em torno do clichecirc giram em grande medidaem torno da capacidade ndash sempre variaacutevel ndash que uma imagem teria de apresentar-secomo nova ou pelo contraacuterio de mostrar-se jaacute exaurida na sua capacidade de desper-tar uma reaccedilatildeo vivaz no espectador Susan Sontag dedicou-se a discutir essa capaci-dade de reaccedilatildeo principalmente por duas vias a contemplaccedilatildeo (pela beleza) ou o es-panto (pelo choque pela crueza ou pela violecircncia) Em seu ensaio Sobre a fotografia Sontag observa tomando um exemplo que pode soar ainda mais familiar em temposde popularizaccedilatildeo de dispositivos de captaccedilatildeo digital e de muacuteltiplas plataformas deexibiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de imagens

Vale a pena chamar a atenccedilatildeo aqui mais uma vez para a compreensatildeo de que o es-gotamento de um tema natildeo deixa de estar em certa medida condicionado ao proacutepriohistoacuterico das relaccedilotildees travadas entre a pessoa que olha e as imagens Em outras pa-lavras o efeito de desgaste varia segundo os repertoacuterios adquiridos Para o amadorum fenocircmeno da natureza ou paisagem pode despertar o entusiasmo que falta aos jaacute

excessivamente familiarizados com o mundo da fotografia Aparecer como novo oudesgastado ser digno de admiraccedilatildeo ou relegado ao acircmbito do banal satildeo atributosque natildeo se resolvem unicamente numa apreciaccedilatildeo intriacutenseca da imagem mas quepelo contraacuterio apelam agrave instacircncia daquele que vecirc

Em Diante da dor dos outros Sontag formula em outros termos o problema ao depa-rar-se com questotildees semelhantes agraves jaacute inventariadas no iniacutecio deste artigo a saber odiagnoacutestico de um excesso de imagens impulsionado pela cultura do espetaacuteculo e orisco bem assinalado por Deleuze de que a fuga do clichecirc termine por desembocarna produccedilatildeo de um novo padratildeo

De fato eacute possiacutevel argumentar que tanto a demanda incessante pelo novo quanto oprazer encontrado na redundacircncia do clichecirc satildeo partes integrantes de certa modali-dade de apreensatildeo do real dada a centralidade desses dois regimes complementaresndash a novidade e a redundacircncia ndash para o universo da cultura do espetaacuteculo Daiacute porquea mobilizaccedilatildeo do clichecirc como artifiacutecio natildeo implica um afastamento do real mas uma

as fotos criam o belo e ndash ao longo de geraccedilotildees de fotoacutegrafos o esgotam Certasgloacuterias da natureza por exemplo foram simplesmente entregues agrave infatigaacutevelatenccedilatildeo de amadores aficionados da cacircmera Pessoas saturadas de imagens

tendem a achar piegas os pores-do-sol agora infelizmente eles se parecem de-mais com fotos (Sontag 2004 pp101-2 grifo nosso)

ldquoa beleza seraacute convulsiva ou natildeo seraacuterdquo proclamou Andreacute Breton Ele chamouesse ideal esteacutetico de ldquosurrealistardquo mas numa cultura radicalmente renovadapela ascendecircncia de valores mercantis pedir que as imagens abalem clamemdespertem parece antes um realismo elementar aleacutem de bom senso para negoacute-cios De que outro modo se pode obter atenccedilatildeo para um produto ou uma obrade arte De que outro modo deixar uma marca mais funda quando existe umaincessante exposiccedilatildeo a imagens vistas e revistas muitas vezes A imagem comochoque e a imagem como clichecirc satildeo dois aspectos da mesma presenccedila (Sontag2003 p24)

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apreciaccedilatildeo de segunda ordem como via de acesso natildeo-ingecircnuo agraves complexidades deum presente imerso nos fluxos incessantes de imagens na era do capitalismo tardio

Neste ponto podemos retomar as consideraccedilotildees sobre a inadequaccedilatildeo da noccedilatildeo deautenticidade para pensar as emoccedilotildees que satildeo acionadas mediante o clichecirc ndash ou in-versamente a adequaccedilatildeo do clichecirc para catalisar emoccedilotildees suscitadas e expressas no

seio do espetaacuteculo A cultura de mercado investe na estreita cumplicidade entre onovo e o jaacute visto entre o banal e o extraordinaacuterio entre a ilusatildeo do autecircntico e apotecircncia do falso E nisso a arte de Andy Warhol como bem assinalou Steven Shaviropermanece uma via privilegiada para acessar tais questionamentos por sua mobiliza-ccedilatildeo irocircnica dos clichecircs e tambeacutem sobretudo por sua ambivalecircncia quanto aos efeitosdessa loacutegica de mercado sobre os domiacutenios da arte

Para Jean Baudrillard (2006) a potecircncia das intervenccedilotildees de Warhol se existe estaacute emlevar a loacutegica do significante ao paroxismo da proliferaccedilatildeo e da exaustatildeo e com issoalccedilar as imagens ao seu maacuteximo grau de artificialismo Essa exacerbaccedilatildeo do artifiacutecioconfere outro estatuto para o clichecirc na medida em que radicaliza o seu esvaziamento

Eacute uma via distinta a trilhada por Chantal Akerman mas que guarda em comum essadimensatildeo do clichecirc como potente artifiacutecio Natildeo se trata de distanciar-se do clichecirc

para alcanccedilar um desvelamento daquilo que estaria encoberto por ele Ivone Mar-gulies observa a respeito dos musicais da realizadora que ldquoa ambiccedilatildeo desses filmeseacute algo distinto do anti-ilusionismo o que importa eacute que todo o peso da banalidadeseja reexperienciado por meio do clichecirc ndash que a banalidade recupere sua intensidaderepetitiva ou que ela exiba sua composiccedilatildeo claustrofoacutebicardquo (Margulies 1996 p188)Nesse aspecto especificamente encontramos um ponto de articulaccedilatildeo entre Warhole Akerman ainda que ambos alcancem efeitos tatildeo distintos no conjunto de sua obraTrata-se antes de colocar em movimento procedimentos que permitam escapar doimpasse entre o novo e o redundante entre o banal e o extraordinaacuterio entre o choquee a complacecircncia entre o estranhamento e o reconhecimento

Ainda segundo Margulies (Idem p212) se o clichecirc tem uma ldquohistoacuteria semacircnticardquo queo espectador eventualmente conhece seu histoacuterico pode natildeo obstante ser ldquobloquea-dordquo Tal bloqueio ocorreria em grande medida por meio da constituiccedilatildeo de uma seri-alidade De modo semelhante Darlene Pursley afirma que eacute a repeticcedilatildeo que ocasionanos filmes da realizadora ldquoa perda de todo sentidordquo cabendo ao espectador dotar oclichecirc por assim dizer de sua proacutepria ldquosingularidaderdquo e ldquocoloraccedilatildeo especialrdquo (Pursley2005 p1198)

Em casos como estes natildeo parece completamente adequado o contraponto que criacuteti-cas da cultura como aquelas propostas por Beatriz Sarlo alccedilam como resposta agrave pro-liferaccedilatildeo de regimes audiovisuais massivos Natildeo se trata aqui de fazer contrapor aldquodensidade semacircnticardquo de uma imagem (Sarlo 2004 p59) agrave repeticcedilatildeo veloz e seri-alizada de estiacutemulos audiovisuais que caracteriza por exemplo a televisatildeo De fato

as imagens de Warhol natildeo satildeo de modo algum banais pelo fato de constituiacuteremo reflexo de um mundo banal mas porque resultam da ausecircncia no sujeito detoda pretensatildeo de interpretaacute-lo resultam da elevaccedilatildeo da imagem agrave figuraccedilatildeopura sem a menor transfiguraccedilatildeo Assim portanto jaacute natildeo se trata de uma trans-cendecircncia mas do ganho de potecircncia do signo que perdendo toda significa-ccedilatildeo natural resplandece no vazio com toda sua luz artificial (Baudrillard 2006p38 traduccedilatildeo nossa)

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se ainda hoje algumas de suas observaccedilotildees demonstram relevacircncia e despertam in-teresse ndash chama-nos a atenccedilatildeo especialmente o fato de que para Sarlo as imagenslembradas seriam as que manifestam a capacidade de ldquofixar-se com o peso do icocircnicordquo(Sarlo 2004 62) ndash a forccedila de leituras criacuteticas como as que vecircm sendo propostas porSteven Shaviro Ivone Margulies e outros eacute justamente pensar a potecircncia das imagenssem recorrer a todo um encadeamento de paracircmetros como peso substacircncia densi-

dade profundidade

Para Warhol assim como para Akerman especialmente em suas comeacutedias musicaisda deacutecada de 1980 ndash e para persistirmos nos dois projetos esteacuteticos que guiaram al-gumas das reflexotildees aqui articuladas ndash a iconicidade das imagens se realiza em seuproacuteprio valor de superfiacutecie e assumindo o caraacuteter de segunda ordem das obras en-quanto partiacutecipes de um universo sensiacutevel disperso e multifacetado Aqui voltamosa insistir na potecircncia que adveacutem dessa possibilidade de acionar os repertoacuterios dosespectadores como mateacuteria a partir da qual a potecircncia criativa investe seus esforccedilosNo reconhecimento desse caraacuteter sobrecodificado da cultura natildeo estamos eacute verdademuito distantes das palavras de Nelson Brissac Peixoto

Nosso argumento eacute que conforme o percurso que vimos esboccedilando o esvaziamentodo significado pela via da repeticcedilatildeo natildeo constitui algo necessariamente negativo Se-gundo as leituras de Shaviro Margulies Schmid Gueroacuten e mesmo em certos aspec-tos Baudrillard a repeticcedilatildeo e os efeitos de superfiacutecie podem ser tambeacutem afirmativos

engendram relaccedilotildees e modos possiacuteveis de intervenccedilatildeo no real Por essa via embara-lham-se as categorias numa imagem-clichecirc que retorna convencional poreacutem atraves-sada por muacuteltiplos desvios reconheciacutevel poreacutem distorcida superficialmente legiacutevelporeacutem destituiacuteda de quaisquer sentidos estaacuteveis Vaga sensaccedilatildeo de jaacute visto nuncacompletamente jaacute assimilado posto que a proacutepria expectativa de entendimento pres-supotildee a existecircncia de um sentido que poderia ou natildeo ser captado mas que aqui girasobre si mesmo e se desfaz Compreender e processar um significado preexistenteimplicaria uma verticalizaccedilatildeo e um adensamento que satildeo frustrados pela proacutepria radi-cal superficialidade do artifiacutecio

Natildeo se trata de dizer que os clichecircs satildeo infinitamente remodelaacuteveis nem de redefini-los como paradoxalmente inexauriacuteveis A esse respeito eacute certeira a observaccedilatildeo deSarlo ldquoao elitismo das posiccedilotildees mais criacuteticas natildeo deveria opor-se uma inversatildeo simeacute-trica sob a forma de um neopopulismo seduzido pelos encantos da induacutestria culturalrdquo(Sarlo 2004 p65) Natildeo obstante para Sarlo a ldquorepeticcedilatildeo eacute uma maacutequina de produziruma suave felicidaderdquo (Sarlo 2004 p63) um deleite alcanccedilado pela via do apazigua-mento Caberia insistir no entanto e em favor mesmo das ressalvas colocadas dianteda dupla rejeiccedilatildeo ao ldquoelitismordquo e ao ldquoneopopulismo de mercadordquo que o prazer oriundoda relaccedilatildeo com a imagerie que marca nossa experiecircncia do contemporacircneo estaacutelonge de reduzir-se a uma suspensatildeo dos conflitos De fato um dos ganhos trazidospelas discussotildees sobre as formas do artifiacutecio na cultura e nas artes decorre justamenteda problematizaccedilatildeo de noccedilotildees demasiadamente unilaterais tais como o ldquoescapismordquoe a ldquofuga do realrdquo

nesse mundo de cenaacuterios e personagens tudo eacute imagerie Tem a consistecircnciade mito e imagem A cultura contemporacircnea eacute de segunda geraccedilatildeo onde ahistoacuteria a experiecircncia e os anseios de cada um satildeo moldados pela literaturaos quadrinhos o cinema e a TV Vidas em segundo grau Todas essas histoacuterias jaacuteforam vistas todos estes lugares visitados (Peixoto 1988 p362)

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O prazer do artifiacutecio natildeo consiste num suave apaziguamento mas em instalar-se namobilidade entre o reconhecimento e a frustraccedilatildeo dos modos estabelecidos de apre-ensatildeo sensiacutevel e dos esquemas de inteligibilidade Um modo de ler o mundo e umaconstante incerteza em relaccedilatildeo agravequilo que lemos Uma pergunta pelo que haacute de ile-giacutevel no que eacute supostamente oacutebvio bem como uma salutar suspeita diante das pre-tensotildees de ruptura quando esta arrisca tornar-se demasiadamente auto-importante

Talvez do artifiacutecio decorra um prazer hesitante certamente haacute nele um prazer que sealimenta da duacutevida

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culturais em circulaccedilatildeo incluindo-se aiacute o cinema a muacutesica a literatura Eacute interessantenotar ainda que segundo esta perspectiva a imagem estaria desde sempre imbuiacutedade uma qualidade positiva tudo aquilo que investe nos haacutebitos da percepccedilatildeo e anes-tesia os sentidos tudo aquilo que se encontra esvaziado de sua potecircncia de nos a-fetar de desencadear as forccedilas do pensamento e de potencializar a experimentaccedilatildeosensiacutevel do mundo suscitando reflexatildeo estranhamento admiraccedilatildeo e criacutetica recairia

numa zona aqueacutem ou aleacutem dos domiacutenios daquilo que seria definido como imagemDito de outro modo o banal a repeticcedilatildeo a saturaccedilatildeo seriam qualidades relegadas aooutro polo de uma distinccedilatildeo entre civilizaccedilatildeo da imagem e civilizaccedilatildeo do clichecirc comomodalidades concorrentes na caracterizaccedilatildeo dos rumos das sociedades ocidentais

Natildeo por acaso entatildeo Gilles Deleuze e Feacutelix Guattari (1992) reivindicam para o campoda arte a funccedilatildeo de criar afetos Os afetos sem nome satildeo o desdobramento de umtrabalho que investe naquilo que natildeo estaacute ainda formado e nesse sentido precedeo processo de cristalizaccedilatildeo que viria barrar o fluxo criativo Assim por exemplo se-gundo os autores ldquoquando Emily Bronteacute traccedila o liame que une Heathcliff e Catherineela inventa um afeto violento (que sobretudo natildeo deve ser confundido com o amor)algo como uma fraternidade entre dois lobosrdquo (Deleuze Guattari 1992 p226-7) Esseldquonatildeo dever ser confundido comrdquo essa criaccedilatildeo de um mundo sem precedentes quecomo tal natildeo se adeacutequa a qualquer modelo em que porventura se pretenda sub-sumi-lo eacute sem duacutevida uma bela potencialidade da arte ainda mais porque permiteconstituir um mundo que eacute marcado por sua singularidade e como tal nos move nocaso mencionado um forte viacutenculo de cumplicidade se conjuga com certa disposiccedilatildeoanimalesca para demarcar a qualidade de uma relaccedilatildeo a partir de uma composiccedilatildeonotavelmente eloquente expressiva

Se o clichecirc eacute aquilo que imobiliza o pensamento o desafio da nossa sociedade se-

ria portanto o de investir na potecircncia da imagem ou seja catalisar aquilo que elatem de desestabilizante de imprevisto de revelador Evitar com isso que ela atue demaneira meramente ratificadora suscitando pelo contraacuterio experiecircncias de realidadeque permitam explorar potencialidades do corpo modos de experiecircncia e linhas depensamento a serem traccediladas Detendo-se nesse ponto Rodrigo Gueroacuten (2011) bus-cou deslindar a diferenciaccedilatildeo entre imagem e clichecirc com vistas a traccedilar os movimen-tos que levam de um a outro Um aspecto interessante de sua abordagem eacute portantotornar expliacutecita a compreensatildeo de que tais noccedilotildees natildeo funcionam como categoriasestanques ou modelos para tipificaccedilatildeo elas constituem posiccedilotildees moacuteveis de maneiratal que imagens natildeo cessam de se converter em clichecircs e vice-versa

O clichecirc seria o operador de esquemas que instauram e buscam preservar uma or-dem de causalidades atuando assim como agente de uma contraforccedila que interceptaldquotodas as possibilidades produtivas atraveacutes das quais a vida se manteacutem e se reinventardquo(Gueroacuten 2011 p64) No que poderiacuteamos apontar como uma das hipoacuteteses centraisde seu trabalho Gueroacuten busca estabelecer uma aproximaccedilatildeo entre o clichecirc e o quechama de imagem-lei ou imagem-moral dado que esse fechamento ao qual alude opesquisador traccedila uma correspondecircncia entre por um lado ldquoa moral como disciplinapara o corpordquo (Gueroacuten 2011 p137) instauradora de valores e veiacuteculo que busca orga-nizar a histoacuteria em torno de uma lei e por sua vez o clichecirc como ldquoesquema redutor epadronizador dos afetosrdquo (Gueroacuten 2011 p245)

Temos com isso a ideia de que o clichecirc se inscreve no corpo operando uma espeacuteciede anestesia ou paralisaccedilatildeo A amplitude de uma experiecircncia sensiacutevel eacute restringida na

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medida em que provecirc os modelos que permitem assimilar as propriedades sensoacuteriase os efeitos possiacuteveis de uma imagem dentro de um horizonte de sentido preacute-deter-minado

Falar em clichecirc implica sempre portanto falar num passado das imagens que eacute citadorepetido e que nos concede os marcos para enquadrar acomodar e segundo decorredas consideraccedilotildees anteriormente elencadas amortecer uma nova experiecircncia per-ceptiva Caberia no entanto perguntar quem partilha este passado Podemos afinalfalar em um marco uacutenico amparado num histoacuterico comum ou a nossa relaccedilatildeo comas imagens natildeo estaria pelo contraacuterio desde sempre amparada em percursos e ex-periecircncias natildeo tatildeo homogecircneos nem facilmente intercambiaacuteveis Um componentesensiacutevel ou elemento significante se encontra por assim dizer necessariamente ldquocon-denadordquo ao esvaziamento ou sua adequaccedilatildeo a uma rede de causalidades pode serfrustrada tornando a cadeia de associaccedilotildees inefetiva Jaacute vemos abrir-se uma brechapara a problematizaccedilatildeo do clichecirc o passado que o funda eacute incerto bem como o fu-turo de sua atualizaccedilatildeo assinala uma possiacutevel abertura para novas potencialidades

Uma criacutetica do clichecirc precisa considerar mais detidamente a possibilidade de que des-pontem apropriaccedilotildees inventivas deslocamentos e reversotildees do jaacute visto Nesse pontoeacute importante retomar o trabalho de Rodrigo Gueroacuten pois o seu estudo permite natildeoapenas como dito anteriormente enfatizar que a separaccedilatildeo entre imagem e clichecirc eacutepermeaacutevel A certa altura sua argumentaccedilatildeo se abre para uma faceta particularmente

relevante para nossa perspectiva a ideia de um ldquoclichecirc fora do tempordquo como um es-quema que eacute ldquoimpedido de se realizarrdquo (Gueroacuten 2011 p117) O que temos em casoscomo esse eacute a situaccedilatildeo em que uma ldquoimagem ndash o objeto-imagem portanto ndash perdesua funccedilatildeo pragmaacutetica de revelar uma situaccedilatildeo que tenderia a se desdobrar numaaccedilatildeo e a percepccedilatildeo como que retorna se concentra e insiste sobre esta imagemrdquo(Gueroacuten 2011 p117)

Por sua vez eacute importante lembrar que na rejeiccedilatildeo mais apaixonada ao clichecirc podedespontar um conjunto de procedimentos mediante os quais ao final de sua plenarealizaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo esteacutetica reside nada menos que a conformaccedilatildeo de um novo

clichecirc Deleuze natildeo perdeu de vista este risco tornando expliacutecito o problema

No mais vale observar que a noccedilatildeo de clichecirc constitui o paroxismo de uma instacircnciamuito mais ampla de constituiccedilatildeo e apreensatildeo das imagens que eacute a de sua codifica-

o clichecirc constroacutei o seu sentido ou se constroacutei enquanto sentido na medida emque evoca um passado que soacute pode lhe garantir seguranccedila O passado aiacute justi-fica e fecha absolutamente a compreensatildeo do que se percebe da experiecircncia

sensoacuterio-motora presente do real colocando-a na loacutegica de um sentido de umprocesso de uma espeacutecie de destino final (Gueroacuten 2011 p160)

o difiacutecil eacute saber em que uma imagem oacutetica e sonora natildeo eacute ela proacutepria um clichecircquando muito uma foto Natildeo pensamos apenas na maneira pela qual essas ima-gens tornam a produzir um clichecirc a partir do momento em que satildeo retomadaspor autores que delas se servem como foacutermulas Mas os proacuteprios criadores natildeotecircm agraves vezes a ideia de que a nova imagem deva rivalizar com o clichecirc emseu proacuteprio terreno somar algo ao cartatildeo-postal juntar-lhe alguma coisa pa-rodiaacute-lo para melhor se livrar dele (Robbe-Grillet Daniel Schmid) Os criadoresinventam enquadramentos obsedantes espaccedilos vazios ou desconectados ateacutemesmo naturezas-mortas de certo modo eles param o movimento redesco-brem a forccedila do plano fixo mas natildeo seria isso ressuscitar o clichecirc que queriamcombater (Deleuze 2007 p33)

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ccedilatildeo de seu alinhamento a formas e regimes que privilegiam a fixaccedilatildeo e a condensa-ccedilatildeo de uma determinada gama de sentidos de esquemas de percepccedilatildeo e de inteligi-bilidade A saturaccedilatildeo das imagens e a exaustiva colocaccedilatildeo em cena de alguns motivosrecorrentes que como tais apontam certas ordens privilegiadas de encadeamentosprecisam ser postas em questatildeo para que seja possiacutevel perguntar pela sua mobili-dade pela potencialidade que elas apesar de tudo guardariam Daiacute a importacircncia

de discutir obras cujas esteacuteticas que se mostram atravessadas por toda uma gamade hibridaccedilotildees cruzamentos reapropriaccedilotildees e flertes com signos nomeaacuteveis discur-sos saturados imagens e afetos que natildeo cessam de se entremear com as formas quepresidem a sua codificaccedilatildeo ndash e portanto com os movimentos de uma histoacuteria culturalque os elabora e significa

2 O lugar do clichecirc nas emoccedilotildees poacutes-modernas

Em certo ponto de seu estudo sobre o cinema de Chantal Akerman Ivone Margu-lies define muito sucintamente o clichecirc como uma imagem que eacute ldquoconhecida antes

mesmo de ser vistardquo (Margulies 1996 p203) Essa afirmaccedilatildeo natildeo obstante o caraacuteteraparentemente evidente daquilo que enuncia resulta bastante efetiva uma vez quepermite enfatizar aspectos relevantes para uma discussatildeo sobre o clichecirc Dessa sinteacute-tica formulaccedilatildeo podemos extrair algumas ideias Primeiramente o clichecirc nos enredaem uma cadeia de expectativas na qual ele se ampara e que em uacuteltima instacircnciapoderiacuteamos dizer que condiciona sua efetividade Em segundo lugar daiacute decorre queesta acepccedilatildeo do clichecirc se constitui em consonacircncia com a noccedilatildeo de repertoacuterio suadefiniccedilatildeo se refere diretamente agraves imagens conhecidas que em certa medida nos for-mam e que ao mesmo tempo estabelecem marcos para lidar com novas ocorrecircn-cias e novos estiacutemulos Por isso mesmo entatildeo embora seja razoaacutevel estabelecer umabase comum de referecircncia a partir da qual concebemos o que eacute predominantementedo acircmbito do clichecirc a noccedilatildeo se apresenta ela mesma dependente desse repertoacuteriocomo marco variaacutevel Como toda relaccedilatildeo esta tambeacutem estaacute sujeita a variabilidadese contingecircncias e responde a diferentes contextos disposiccedilotildees e modos de engaja-mento

Nas circunstacircncias em que se daacute uma confirmaccedilatildeo daquilo que jaacute conhecemos ou sejaquando a imagem que um filme nos concede atende aos traccedilos formais sensiacuteveis enarrativos que antecipamos parece certo afirmar que aquilo que se encontra diminuiacute-do eacute a potecircncia que essa imagem traria de suscitar uma apreensatildeo inabitual e comisso inventar novas relaccedilotildees suscitar novas experiecircncias sensoriais e de pensamento

No entanto o que muitas vezes fica de fora dessa convicccedilatildeo eacute o prazer da repeticcedilatildeoe da atitude de cotejar as variaccedilotildees possiacuteveis traccedilar recorrecircncias estabelecer redesde correspondecircncias e ressonacircncias A serialidade das imagens remete a toda umagama de disposiccedilotildees culturais bem como a sensibilidades e temporalidades as maisdiversas de modo que eacute plausiacutevel considerar sua ocorrecircncia um fenocircmeno culturale midiaacutetico relevante a ser discutido para aleacutem de uma rejeiccedilatildeo fundada na posturaque qualifica a repeticcedilatildeo como veiacuteculo para a manifestaccedilatildeo de uma redundacircncia va-zia Ainda segundo Margulies

a sobreposiccedilatildeo de repeticcedilatildeo e atualidade invocada por um clichecirc indica seu al-cance social um clichecirc estaacute inevitavelmente envolto nas ressonacircncias prece-dentes de uma dada forma ou representaccedilatildeo O fato de que uma frase ou modoespeciacutefico pode ainda comunicar atraveacutes e apesar de tal redundacircncia nos fala daforccedila do clichecirc Sua potencial efetividade em um filme reside no reconhecimen-

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A questatildeo que se coloca eacute entatildeo como fazer da repeticcedilatildeo da apropriaccedilatildeo do des-locamento de repertoacuterios e de certas composiccedilotildees jaacute conhecidas o motor de umarelaccedilatildeo produtiva com as imagens O universo esteacutetico e midiaacutetico configura tropos

que se tornam familiares reconheciacuteveis e que como tais permitem assimilar umaimagem a esquemas de inteligibilidade ao mesmo tempo em que se imbuem de todauma cadeia de expectativas que podem ser confirmadas ou frustradas O problema deescapar ao clichecirc natildeo eacute simplesmente o de suprimir essa necessidade ou expectativamas o de lograr uma imagem que contorne a sua proacutepria assimilaccedilatildeo de forma raacutepida

Seguindo essa linha de anaacutelise Marion Schmid (2010 p70) sublinha que o cinemade Akerman opera nos campos do deacutejagrave vu e do deacutejagrave entendu A pesquisadora es-creve esse comentaacuterio a propoacutesito de Les Anneacutees 80 (1983) filme de processo quedocumenta o trabalho com atrizes e atores e precede a realizaccedilatildeo do que viria a ser omusical Golden Eighties (1986) Sua observaccedilatildeo poreacutem aplica-se a muitos dos pro-cedimentos que permeiam a filmografia da realizadora e em especial nos filmes desseperiacuteodo De fato tanto Margulies quanto Schmid assinalam a propoacutesito da carreira deAkerman um ponto de inflexatildeo que talvez natildeo casualmente coincide com o iniacuteciodos anos 1980 deacutecada marcada pelo auge das ideias e esteacuteticas poacutes-modernistas Osdesdobramentos da filmografia da realizadora levam-na a experimentar alternativas agravemestria1 ao ascetismo e ao caraacuteter estrutural que marcaram sua produccedilatildeo preceden-te buscando pelo contraacuterio exacerbar em sua esteacutetica a partir de entatildeo um caraacuteterimpuro

Ao falar em impureza recorremos ao termo proposto por Guy Scarpetta (1985) para

pensar parte da produccedilatildeo artiacutestica deste mesmo periacuteodo Embora natildeo analise espe-cificamente o cinema de Akerman a descriccedilatildeo que o autor faz dos impasses aos quaisa arte mais inventiva dessa eacutepoca buscou responder guarda estreitas correspondecircn-cias com as questotildees agraves quais os filmes da diretora naqueles anos se vincularam Scar-petta escreve o diagnoacutestico (alegoacuterico) de uma cultura que se encontra presa em umimpasse no cruzamento entre duas tendecircncias uma tradiccedilatildeo que natildeo eacute capaz de serenovar ndash ldquoum passado sem porvirrdquo ndash e uma arte experimental cheia de promessas defuturo mas que fez taacutebula rasa de seu passado e jaacute enfrenta a crise de como sustentaro imperativo do novo ndash ldquoum porvir sem passadordquo (Scarpetta 1985 p8)

O que vale sublinhar especialmente eacute como a noccedilatildeo de impureza busca dar contade obras e artistas que justamente exploram uma via de criaccedilatildeo que contorna tantoa regressatildeo ao academicismo a condenaccedilatildeo do moderno e ldquoa repeticcedilatildeo morna dopassadordquo quanto a redundacircncia de parte da cultura de massa (Scarpetta 1985 p9)Embora sem duacutevida esquemaacutetico esse panorama aponta para uma proposiccedilatildeo re-levante nos termos daquilo que permite formular uma vertente esteacutetica que tratariao passado da arte e o kitsch massivo ldquoem segundo grau sem inocecircncia por desviossobrecodificaccedilotildees corrupccedilatildeo desnaturalizaccedilatildeordquo (Scarpetta 1985 p9) Em suma umaesteacutetica da impureza Natildeo precisamos enfim seguir a dualidade traccedilada pelo autorque contrapotildee de um lado ldquocriteacuterios demasiado estritos linhas valores obrigadosnormas terroristasrdquo e do outro ldquoa ausecircncia de todo criteacuterio a profusatildeo heteroacuteclita deesteacuteticas a confusatildeo dos valoresrdquo para situar aiacute uma fase de suspensatildeo irresolutaquando os artistas se debateriam entre esses dois polos (Scarpetta 1985 p18-9)

1 Veja a esse respeito a entrevista que a diretora concedeu a Alain Philippon nos Cahiers du cineacutema (1982)

to da diferenccedila que o clichecirc pode ainda significativamente sugerir (Margulies1996 p84 traduccedilatildeo nossa)

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Steven Shaviro (2007) tambeacutem discute o jaacute mencionado musical Golden eighties Natildeoobstante em sua anaacutelise a ecircnfase recai sobre os afetos e como eles afastam qualquerpretensatildeo de autenticidade na medida em que se tornam manifestos na obra a partirdo clichecirc Shaviro chama a atenccedilatildeo em seu artigo sobre o filme para a ldquoqualidadegeneacutericardquo que se estabelece como recurso para a constituiccedilatildeo de determinadas cenasna medida em que elas se fundam sobre uma seacuterie de elementos tiacutepicos a muacutesica

sobretudo mas tambeacutem os gestos e expressotildees faciais que tornam as emoccedilotildees mobi-lizadas pela peliacutecula imediatamente legiacuteveis

Conforme Shaviro se empenha tambeacutem em argumentar haacute pontos de contato quepermitem traccedilar correspondecircncias entre a arte modernista e a cultura de massa sendoo gecircnero musical uma forma privilegiada para discutir tal aproximaccedilatildeo Para ele tantoo projeto modernista quanto o projeto da MGM ldquodesfazem o dualismo que situaria asrepresentaccedilotildees em um lado de uma divisatildeo intransponiacutevel e as coisas que estatildeo sendorepresentadas no outrordquo (Shaviro 2007 p13) Ainda segundo o autor

Temos aqui uma perspectiva ainda mais incisiva que aquela de Guy Scarpetta umavez que ela natildeo situa o entrecruzamento de tais projetos em um momento posteriorde rearticulaccedilatildeo ndash que aleacutem do mais eacute localizado sobretudo na produccedilatildeo de diretoresem maior ou menor grau legitimados como autores ndash mas no cerne mesmo de cadauma das vertentes de criaccedilatildeo

O trabalho de elaboraccedilatildeo formal presente em artefatos culturais massivos apresentacaracteriacutesticas que Shaviro argutamente conecta agraves teorias do afeto a ausecircncia deprofundidade a inadequaccedilatildeo de qualquer noccedilatildeo de autenticidade e a potecircncia dacitaccedilatildeo como recurso para suscitar um engajamento afetivo De fato satildeo os termosdessa polarizaccedilatildeo autecircntico-falso que o autor trata de romper Daiacute porque pode serespecialmente produtivo seguir os argumentos do autor acerca da relevacircncia dos cli-checircs estereoacutetipos e citaccedilotildees para o entendimento das maneiras pelas quais a culturado espetaacuteculo investe sobre nossos afetos e emoccedilotildees2

Se as imagens podem mobilizar o afeto na direccedilatildeo de uma ruptura eacute verdade ainda

que elas frequentemente lidam com questotildees de inteligibilidade e de transmissibili-dade Natildeo conveacutem simplesmente deplorar tais processos como agentes de vulgar-izaccedilatildeo ou de reduccedilatildeo das potencialidades da imagem mas pelo contraacuterio discutirem que medida eles podem ser valiosos para discutir as passagens mediante as quaisos afetos se inscrevem no corpo e se traduzem em gestos performativos e signos cul-turais compartilhados Eacute exatamente esse aspecto que Shaviro enfatiza quando ob-serva que satildeo em grande medida os clichecircs que tornam o sentimento legiacutevel para noacutesnatildeo apenas na posiccedilatildeo de espectadores mas tambeacutem quando lidamos com aquelesmais supostamente autecircnticos os nossos proacuteprios

Segundo o autor ldquoa natureza convencional dos signos que indicam e comunicamsentimentosrdquo eacute aquilo que os torna compreensiacuteveis ldquonatildeo apenas para os outros mastambeacutem (e mesmo talvez mais crucialmente) para noacutes mesmosrdquo (Shaviro 2007 p15)

2 Em sua argumentaccedilatildeo Shaviro recorre ao afeto e agrave emoccedilatildeo como noccedilotildees correlatas e em certa medida intercambiaacuteveis

Akerman descobre o ponto preciso onde MGM e modernismo satildeo indiscerniacuteveis

Ela recapitula o ideal esteacutetico moderno da unidade de forma e conteuacutedo masseu insight poacutes-modernista consiste em reconhecer que esta unidade eacute jaacute elamesma uma construccedilatildeo das forccedilas do entretenimento da moda e do comeacutercio(Shaviro 2007 p13 traduccedilatildeo nossa)

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Aqui ele parece se esforccedilar para deixar claro que os signos convencionais natildeo atuamapenas no processo da elaboraccedilatildeo cultural de formas que significam e expressam osafetos mas que a citacionalidade3 eacute inseparaacutevel da maneira como estes se manifes-tam corporalmente O teoacuterico eacute incisivo em relaccedilatildeo a esse aspecto ldquoEu gostaria desugerir que haacute um sentido em que o afeto soacute eacute lsquoverdadeirorsquo quando eacute uma citaccedilatildeo umlsquocomo sersquordquo (Shaviro 2007 p16)

Posicionamento semelhante jaacute havia sido elaborado em texto anterior no qual o au-tor busca definir os contornos daquilo que poderia ser entendido como uma ldquoemoccedilatildeopoacutes-modernardquo especialmente quando consideramos artefatos culturais que jaacute seencontram intensamente imbricados na loacutegica da mercadoria Acionando a figurade Andy Warhol Shaviro (2004) traz para primeiro plano uma gama de manifesta-ccedilotildees corporais artiacutesticas e performativas que jogam com o artifiacutecio para realccedilar umaemoccedilatildeo que natildeo pode ser expressa senatildeo por meio da ironia da auto-reflexividade eda teatralizaccedilatildeo enfim de um exacerbado esteticismo

Lugar de destaque neste processo cabe agrave televisatildeo ndash que com sua assemblage deformas e conteuacutedos diversos termina por criar as condiccedilotildees para uma espectatori-alidade desprovida de interesse ou de forte engajamento ndash e tambeacutem ao cinema noqual o artifiacutecio pelo contraacuterio suscitaria uma espeacutecie de intensificaccedilatildeo dos afetos soba forma de uma qualidade de resposta maior que aquela vivenciada nas circunstacircn-cias supostamente mais ldquoreaisrdquo do que nos acontece fora da tela

Natildeo se trata apenas do fato de que as emoccedilotildees no cinema sejam mais claramentevisiacuteveis O que a declaraccedilatildeo de Warhol citada por Shaviro sugere eacute a constituiccedilatildeo decondiccedilotildees tais que a emoccedilatildeo pode repercutir corporalmente de maneira exacerbadaWarhol assim natildeo deixa de descrever uma postura de acordo com a qual a indife-renccedila agravequilo que acontece agrave sua volta e por outro lado a paixatildeo por certas formas es-teacuteticas satildeo as duas facetas daquilo que viria constituir uma espeacutecie de neodandismoNesta forma peculiar de self-fashioning os novos meios da eacutepoca ocupam portantoposiccedilatildeo especial como operadores de uma pedagogia O ponto de inflexatildeo que de-marca a constituiccedilatildeo das jaacute mencionadas dobras sobre as emoccedilotildees ndash auto-reflexivi-

dade ironia teatralizaccedilatildeo ndash e que seriam impossiacuteveis de serem desvencilhadas dosmodos pelos quais tais emoccedilotildees satildeo elaboradas visivelmente seria portanto a novacultura midiaacutetica que segundo Warhol teria ldquomatadordquo suas emoccedilotildees

Shaviro retoma o modo como Warhol ldquofabrica uma sensibilidade e um estilordquo (Shaviro2004 p125) para pensar como as emoccedilotildees se pareceriam no contexto cultural queveio a ser chamado de poacutes-moderno Neste ponto eacute a figura de Marilyn Monroe ndash elamesma convertida num clichecirc mediante as ceacutelebres silkscreens que reproduzem eserializam o seu rosto ndash que retorna para sintetizar essa nova sensibilidade

3 Assim como se diz que o gesto de um corpo se constitui sendo passiacutevel de remeter a outros gestos ndash ideia que o conceito de per-formatividade nos permite formular ndash e assim como um discurso em certa medida cita e replica outros a partir dos termos mesmosem que eacute enunciado ndash citacionalidade iterabilidade ndash poderiacuteamos dizer que uma cena cita e desdobra outras cenas num acuacutemuloque o repertoacuterio do cinema e de outros meios torna possiacutevel Sobre os conceitos de performatividade citacionalidade e iterabili-dade ver Loxley (2007) Sobre citacionalidade e iterabilidade no cinema ver Wills (1998)

Embora Warhol amasse os filmes tanto quanto ele amava a TV ele natildeo diz queos filmes ajudaram a acabar com sua vida emocional De fato eacute bem o contraacuterioldquoos filmes fazem as emoccedilotildees parecerem tatildeo fortes e reais ao passo que quandoas coisas acontecem para vocecirc eacute como ver televisatildeo ndash vocecirc natildeo sente nadardquo(Shaviro 2004 p127 traduccedilatildeo nossa)

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em suma os retratos de Marilyn feitos por Warhol satildeo assustadoramente sem a-feto [affectless ] desprovidos de qualquer resposta emocional para a sua mortePelo contraacuterio eles demonstram a impossibilidade de tal resposta Pois a mortede Marilyn eacute a morte da emoccedilatildeo elas constituem um e o mesmo evento (Sha-viro 2004 p135 traduccedilatildeo nossa)

O que eacute curioso no modo como Shaviro recorre agraves declaraccedilotildees de Warhol sobre a

televisatildeo e o gravador ou mesmo sobre a relaccedilatildeo com a morte nesse contexto eacute queao endossaacute-las o teoacuterico vincula essa suposta morte das emoccedilotildees agrave ideia de umaperda de intensidade afetiva operada pela superficialidade e pela desdiferenciaccedilatildeodos meios Trata-se de uma proposiccedilatildeo estranha na medida em que no conceito deafeto ndash com o qual Shaviro faz alternar em seu texto a emoccedilatildeo e por vezes ateacute o sen-timento ndash a noccedilatildeo de profundidade quando formulada tomando o ponto de vista deum sujeito que o experienciaria eacute desde sempre afastada ou pelo menos colocadasob suspeita

Ao mesmo tempo eacute como se Shaviro tomasse a ironia e o distanciamento de que sereveste a ideia de uma ldquomorte das emoccedilotildeesrdquo pelo seu valor de face passando ao largodo artifiacutecio que eacute justamente aquilo que caracterizaria essa forma de esteticismo ouseja ignorando no artifiacutecio aquilo que ele deixa entrever somente a partir de umasofisticada elaboraccedilatildeo Tal questionamento eacute relevante especialmente porque con-forme o proacuteprio Shaviro faz notar a resistecircncia de Warhol em lidar com a questatildeo damorte longe de denotar indiferenccedila expressa uma dificuldade de processar o caraacuteterexcessivo inassimilaacutevel e traumaacutetico desse acontecimento Warhol segundo Shaviro(2004 p135) ficaria sem palavras diante da morte assumindo uma posiccedilatildeo de ca-tegoacuterica recusa quanto agrave sua elaboraccedilatildeo

Para ser mais preciso eacute como se a argumentaccedilatildeo de Shaviro nesse texto oscilasse

entre a convicccedilatildeo de que a autenticidade natildeo exerce funccedilatildeo alguma nesse debatenatildeo devendo assim sequer ser levantada como valor relevante ao mesmo tempo emque persiste a sugestatildeo de que haacute algo que se perdeu em relaccedilatildeo a algum momentoanterior Eacute sintomaacutetico portanto que o artigo de Shaviro recorra a uma intrincada enem sempre muito clara oscilaccedilatildeo entre proposiccedilotildees tais como ldquomorte da emoccedilatildeordquoldquoemoccedilatildeo poacutes-modernardquo ldquoemoccedilatildeo esvaziada de afetordquo e emoccedilatildeo revestida de artifiacutecioque eacute aquela agrave qual ele clama ao final de sua argumentaccedilatildeo Tudo leva a crer que Sha-viro se esforccedila afinal para avanccedilar em direccedilatildeo a uma proposiccedilatildeo que investe sobreos afetos naquilo que eles tecircm de impessoais no modo como operam na superfiacuteciepelas sensaccedilotildees e inclusive mediante contaacutegio a fim de elaborar esteticamente tais

qualidades pela via do artifiacutecio4

Dentre outros aspectos o que esta produtiva discussatildeo levantada por Shaviro expli-cita eacute a compreensatildeo de que se existe um estatuto especiacutefico do afeto e das emoccedilotildeesno poacutes-moderno isso se daacute menos pela perda da ancoragem em subjetividades decontornos bem definidos algo que natildeo eacute caracteriacutestico apenas de uma eacutepoca ou estaacute-gio da cultura e mais pela potencializaccedilatildeo de aspectos tais como a transpessoalidadee a superficialidade alcanccedilada pela via de uma exacerbaccedilatildeo do jogo com as formasda pose e tambeacutem da indiferenccedila aos limites entre o falso e o autecircntico Nestes ter-mos o artifiacutecio natildeo seria o recurso pelo qual se expressam emoccedilotildees desprovidas deafeto mas a ocasiatildeo em que a emoccedilatildeo se expressa intensamente como afetaccedilatildeo Soacuteassim seria possiacutevel reivindicar ldquosentimentos que satildeo irreverentes perversos excecircntri-cos perdulaacuterios fuacuteteis extravagantes disfuncionais e ridiacuteculosrdquo (Shaviro 2004 p140)

4 Suas menccedilotildees ao camp agraves drag queens e agrave noccedilatildeo warholiana da ldquoperformance ruimrdquo embasam este entendimento

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Temos desse modo uma espeacutecie de dobra que investe nos afetos justamente parasobrecodificaacute-los replicaacute-los explorar seus efeitos e derivaccedilotildees e na qual o clichecirc as-sumiria um papel central recolocando a pergunta pela relaccedilatildeo que travamos com asimagens e o tipo de resposta que elas suscitam

3 Entre o prazer e o distanciamento o artifiacutecio

Como dito anteriormente os debates em torno do clichecirc giram em grande medidaem torno da capacidade ndash sempre variaacutevel ndash que uma imagem teria de apresentar-secomo nova ou pelo contraacuterio de mostrar-se jaacute exaurida na sua capacidade de desper-tar uma reaccedilatildeo vivaz no espectador Susan Sontag dedicou-se a discutir essa capaci-dade de reaccedilatildeo principalmente por duas vias a contemplaccedilatildeo (pela beleza) ou o es-panto (pelo choque pela crueza ou pela violecircncia) Em seu ensaio Sobre a fotografia Sontag observa tomando um exemplo que pode soar ainda mais familiar em temposde popularizaccedilatildeo de dispositivos de captaccedilatildeo digital e de muacuteltiplas plataformas deexibiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de imagens

Vale a pena chamar a atenccedilatildeo aqui mais uma vez para a compreensatildeo de que o es-gotamento de um tema natildeo deixa de estar em certa medida condicionado ao proacutepriohistoacuterico das relaccedilotildees travadas entre a pessoa que olha e as imagens Em outras pa-lavras o efeito de desgaste varia segundo os repertoacuterios adquiridos Para o amadorum fenocircmeno da natureza ou paisagem pode despertar o entusiasmo que falta aos jaacute

excessivamente familiarizados com o mundo da fotografia Aparecer como novo oudesgastado ser digno de admiraccedilatildeo ou relegado ao acircmbito do banal satildeo atributosque natildeo se resolvem unicamente numa apreciaccedilatildeo intriacutenseca da imagem mas quepelo contraacuterio apelam agrave instacircncia daquele que vecirc

Em Diante da dor dos outros Sontag formula em outros termos o problema ao depa-rar-se com questotildees semelhantes agraves jaacute inventariadas no iniacutecio deste artigo a saber odiagnoacutestico de um excesso de imagens impulsionado pela cultura do espetaacuteculo e orisco bem assinalado por Deleuze de que a fuga do clichecirc termine por desembocarna produccedilatildeo de um novo padratildeo

De fato eacute possiacutevel argumentar que tanto a demanda incessante pelo novo quanto oprazer encontrado na redundacircncia do clichecirc satildeo partes integrantes de certa modali-dade de apreensatildeo do real dada a centralidade desses dois regimes complementaresndash a novidade e a redundacircncia ndash para o universo da cultura do espetaacuteculo Daiacute porquea mobilizaccedilatildeo do clichecirc como artifiacutecio natildeo implica um afastamento do real mas uma

as fotos criam o belo e ndash ao longo de geraccedilotildees de fotoacutegrafos o esgotam Certasgloacuterias da natureza por exemplo foram simplesmente entregues agrave infatigaacutevelatenccedilatildeo de amadores aficionados da cacircmera Pessoas saturadas de imagens

tendem a achar piegas os pores-do-sol agora infelizmente eles se parecem de-mais com fotos (Sontag 2004 pp101-2 grifo nosso)

ldquoa beleza seraacute convulsiva ou natildeo seraacuterdquo proclamou Andreacute Breton Ele chamouesse ideal esteacutetico de ldquosurrealistardquo mas numa cultura radicalmente renovadapela ascendecircncia de valores mercantis pedir que as imagens abalem clamemdespertem parece antes um realismo elementar aleacutem de bom senso para negoacute-cios De que outro modo se pode obter atenccedilatildeo para um produto ou uma obrade arte De que outro modo deixar uma marca mais funda quando existe umaincessante exposiccedilatildeo a imagens vistas e revistas muitas vezes A imagem comochoque e a imagem como clichecirc satildeo dois aspectos da mesma presenccedila (Sontag2003 p24)

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apreciaccedilatildeo de segunda ordem como via de acesso natildeo-ingecircnuo agraves complexidades deum presente imerso nos fluxos incessantes de imagens na era do capitalismo tardio

Neste ponto podemos retomar as consideraccedilotildees sobre a inadequaccedilatildeo da noccedilatildeo deautenticidade para pensar as emoccedilotildees que satildeo acionadas mediante o clichecirc ndash ou in-versamente a adequaccedilatildeo do clichecirc para catalisar emoccedilotildees suscitadas e expressas no

seio do espetaacuteculo A cultura de mercado investe na estreita cumplicidade entre onovo e o jaacute visto entre o banal e o extraordinaacuterio entre a ilusatildeo do autecircntico e apotecircncia do falso E nisso a arte de Andy Warhol como bem assinalou Steven Shaviropermanece uma via privilegiada para acessar tais questionamentos por sua mobiliza-ccedilatildeo irocircnica dos clichecircs e tambeacutem sobretudo por sua ambivalecircncia quanto aos efeitosdessa loacutegica de mercado sobre os domiacutenios da arte

Para Jean Baudrillard (2006) a potecircncia das intervenccedilotildees de Warhol se existe estaacute emlevar a loacutegica do significante ao paroxismo da proliferaccedilatildeo e da exaustatildeo e com issoalccedilar as imagens ao seu maacuteximo grau de artificialismo Essa exacerbaccedilatildeo do artifiacutecioconfere outro estatuto para o clichecirc na medida em que radicaliza o seu esvaziamento

Eacute uma via distinta a trilhada por Chantal Akerman mas que guarda em comum essadimensatildeo do clichecirc como potente artifiacutecio Natildeo se trata de distanciar-se do clichecirc

para alcanccedilar um desvelamento daquilo que estaria encoberto por ele Ivone Mar-gulies observa a respeito dos musicais da realizadora que ldquoa ambiccedilatildeo desses filmeseacute algo distinto do anti-ilusionismo o que importa eacute que todo o peso da banalidadeseja reexperienciado por meio do clichecirc ndash que a banalidade recupere sua intensidaderepetitiva ou que ela exiba sua composiccedilatildeo claustrofoacutebicardquo (Margulies 1996 p188)Nesse aspecto especificamente encontramos um ponto de articulaccedilatildeo entre Warhole Akerman ainda que ambos alcancem efeitos tatildeo distintos no conjunto de sua obraTrata-se antes de colocar em movimento procedimentos que permitam escapar doimpasse entre o novo e o redundante entre o banal e o extraordinaacuterio entre o choquee a complacecircncia entre o estranhamento e o reconhecimento

Ainda segundo Margulies (Idem p212) se o clichecirc tem uma ldquohistoacuteria semacircnticardquo queo espectador eventualmente conhece seu histoacuterico pode natildeo obstante ser ldquobloquea-dordquo Tal bloqueio ocorreria em grande medida por meio da constituiccedilatildeo de uma seri-alidade De modo semelhante Darlene Pursley afirma que eacute a repeticcedilatildeo que ocasionanos filmes da realizadora ldquoa perda de todo sentidordquo cabendo ao espectador dotar oclichecirc por assim dizer de sua proacutepria ldquosingularidaderdquo e ldquocoloraccedilatildeo especialrdquo (Pursley2005 p1198)

Em casos como estes natildeo parece completamente adequado o contraponto que criacuteti-cas da cultura como aquelas propostas por Beatriz Sarlo alccedilam como resposta agrave pro-liferaccedilatildeo de regimes audiovisuais massivos Natildeo se trata aqui de fazer contrapor aldquodensidade semacircnticardquo de uma imagem (Sarlo 2004 p59) agrave repeticcedilatildeo veloz e seri-alizada de estiacutemulos audiovisuais que caracteriza por exemplo a televisatildeo De fato

as imagens de Warhol natildeo satildeo de modo algum banais pelo fato de constituiacuteremo reflexo de um mundo banal mas porque resultam da ausecircncia no sujeito detoda pretensatildeo de interpretaacute-lo resultam da elevaccedilatildeo da imagem agrave figuraccedilatildeopura sem a menor transfiguraccedilatildeo Assim portanto jaacute natildeo se trata de uma trans-cendecircncia mas do ganho de potecircncia do signo que perdendo toda significa-ccedilatildeo natural resplandece no vazio com toda sua luz artificial (Baudrillard 2006p38 traduccedilatildeo nossa)

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se ainda hoje algumas de suas observaccedilotildees demonstram relevacircncia e despertam in-teresse ndash chama-nos a atenccedilatildeo especialmente o fato de que para Sarlo as imagenslembradas seriam as que manifestam a capacidade de ldquofixar-se com o peso do icocircnicordquo(Sarlo 2004 62) ndash a forccedila de leituras criacuteticas como as que vecircm sendo propostas porSteven Shaviro Ivone Margulies e outros eacute justamente pensar a potecircncia das imagenssem recorrer a todo um encadeamento de paracircmetros como peso substacircncia densi-

dade profundidade

Para Warhol assim como para Akerman especialmente em suas comeacutedias musicaisda deacutecada de 1980 ndash e para persistirmos nos dois projetos esteacuteticos que guiaram al-gumas das reflexotildees aqui articuladas ndash a iconicidade das imagens se realiza em seuproacuteprio valor de superfiacutecie e assumindo o caraacuteter de segunda ordem das obras en-quanto partiacutecipes de um universo sensiacutevel disperso e multifacetado Aqui voltamosa insistir na potecircncia que adveacutem dessa possibilidade de acionar os repertoacuterios dosespectadores como mateacuteria a partir da qual a potecircncia criativa investe seus esforccedilosNo reconhecimento desse caraacuteter sobrecodificado da cultura natildeo estamos eacute verdademuito distantes das palavras de Nelson Brissac Peixoto

Nosso argumento eacute que conforme o percurso que vimos esboccedilando o esvaziamentodo significado pela via da repeticcedilatildeo natildeo constitui algo necessariamente negativo Se-gundo as leituras de Shaviro Margulies Schmid Gueroacuten e mesmo em certos aspec-tos Baudrillard a repeticcedilatildeo e os efeitos de superfiacutecie podem ser tambeacutem afirmativos

engendram relaccedilotildees e modos possiacuteveis de intervenccedilatildeo no real Por essa via embara-lham-se as categorias numa imagem-clichecirc que retorna convencional poreacutem atraves-sada por muacuteltiplos desvios reconheciacutevel poreacutem distorcida superficialmente legiacutevelporeacutem destituiacuteda de quaisquer sentidos estaacuteveis Vaga sensaccedilatildeo de jaacute visto nuncacompletamente jaacute assimilado posto que a proacutepria expectativa de entendimento pres-supotildee a existecircncia de um sentido que poderia ou natildeo ser captado mas que aqui girasobre si mesmo e se desfaz Compreender e processar um significado preexistenteimplicaria uma verticalizaccedilatildeo e um adensamento que satildeo frustrados pela proacutepria radi-cal superficialidade do artifiacutecio

Natildeo se trata de dizer que os clichecircs satildeo infinitamente remodelaacuteveis nem de redefini-los como paradoxalmente inexauriacuteveis A esse respeito eacute certeira a observaccedilatildeo deSarlo ldquoao elitismo das posiccedilotildees mais criacuteticas natildeo deveria opor-se uma inversatildeo simeacute-trica sob a forma de um neopopulismo seduzido pelos encantos da induacutestria culturalrdquo(Sarlo 2004 p65) Natildeo obstante para Sarlo a ldquorepeticcedilatildeo eacute uma maacutequina de produziruma suave felicidaderdquo (Sarlo 2004 p63) um deleite alcanccedilado pela via do apazigua-mento Caberia insistir no entanto e em favor mesmo das ressalvas colocadas dianteda dupla rejeiccedilatildeo ao ldquoelitismordquo e ao ldquoneopopulismo de mercadordquo que o prazer oriundoda relaccedilatildeo com a imagerie que marca nossa experiecircncia do contemporacircneo estaacutelonge de reduzir-se a uma suspensatildeo dos conflitos De fato um dos ganhos trazidospelas discussotildees sobre as formas do artifiacutecio na cultura e nas artes decorre justamenteda problematizaccedilatildeo de noccedilotildees demasiadamente unilaterais tais como o ldquoescapismordquoe a ldquofuga do realrdquo

nesse mundo de cenaacuterios e personagens tudo eacute imagerie Tem a consistecircnciade mito e imagem A cultura contemporacircnea eacute de segunda geraccedilatildeo onde ahistoacuteria a experiecircncia e os anseios de cada um satildeo moldados pela literaturaos quadrinhos o cinema e a TV Vidas em segundo grau Todas essas histoacuterias jaacuteforam vistas todos estes lugares visitados (Peixoto 1988 p362)

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O prazer do artifiacutecio natildeo consiste num suave apaziguamento mas em instalar-se namobilidade entre o reconhecimento e a frustraccedilatildeo dos modos estabelecidos de apre-ensatildeo sensiacutevel e dos esquemas de inteligibilidade Um modo de ler o mundo e umaconstante incerteza em relaccedilatildeo agravequilo que lemos Uma pergunta pelo que haacute de ile-giacutevel no que eacute supostamente oacutebvio bem como uma salutar suspeita diante das pre-tensotildees de ruptura quando esta arrisca tornar-se demasiadamente auto-importante

Talvez do artifiacutecio decorra um prazer hesitante certamente haacute nele um prazer que sealimenta da duacutevida

Referecircncias bibliograacutecas

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medida em que provecirc os modelos que permitem assimilar as propriedades sensoacuteriase os efeitos possiacuteveis de uma imagem dentro de um horizonte de sentido preacute-deter-minado

Falar em clichecirc implica sempre portanto falar num passado das imagens que eacute citadorepetido e que nos concede os marcos para enquadrar acomodar e segundo decorredas consideraccedilotildees anteriormente elencadas amortecer uma nova experiecircncia per-ceptiva Caberia no entanto perguntar quem partilha este passado Podemos afinalfalar em um marco uacutenico amparado num histoacuterico comum ou a nossa relaccedilatildeo comas imagens natildeo estaria pelo contraacuterio desde sempre amparada em percursos e ex-periecircncias natildeo tatildeo homogecircneos nem facilmente intercambiaacuteveis Um componentesensiacutevel ou elemento significante se encontra por assim dizer necessariamente ldquocon-denadordquo ao esvaziamento ou sua adequaccedilatildeo a uma rede de causalidades pode serfrustrada tornando a cadeia de associaccedilotildees inefetiva Jaacute vemos abrir-se uma brechapara a problematizaccedilatildeo do clichecirc o passado que o funda eacute incerto bem como o fu-turo de sua atualizaccedilatildeo assinala uma possiacutevel abertura para novas potencialidades

Uma criacutetica do clichecirc precisa considerar mais detidamente a possibilidade de que des-pontem apropriaccedilotildees inventivas deslocamentos e reversotildees do jaacute visto Nesse pontoeacute importante retomar o trabalho de Rodrigo Gueroacuten pois o seu estudo permite natildeoapenas como dito anteriormente enfatizar que a separaccedilatildeo entre imagem e clichecirc eacutepermeaacutevel A certa altura sua argumentaccedilatildeo se abre para uma faceta particularmente

relevante para nossa perspectiva a ideia de um ldquoclichecirc fora do tempordquo como um es-quema que eacute ldquoimpedido de se realizarrdquo (Gueroacuten 2011 p117) O que temos em casoscomo esse eacute a situaccedilatildeo em que uma ldquoimagem ndash o objeto-imagem portanto ndash perdesua funccedilatildeo pragmaacutetica de revelar uma situaccedilatildeo que tenderia a se desdobrar numaaccedilatildeo e a percepccedilatildeo como que retorna se concentra e insiste sobre esta imagemrdquo(Gueroacuten 2011 p117)

Por sua vez eacute importante lembrar que na rejeiccedilatildeo mais apaixonada ao clichecirc podedespontar um conjunto de procedimentos mediante os quais ao final de sua plenarealizaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo esteacutetica reside nada menos que a conformaccedilatildeo de um novo

clichecirc Deleuze natildeo perdeu de vista este risco tornando expliacutecito o problema

No mais vale observar que a noccedilatildeo de clichecirc constitui o paroxismo de uma instacircnciamuito mais ampla de constituiccedilatildeo e apreensatildeo das imagens que eacute a de sua codifica-

o clichecirc constroacutei o seu sentido ou se constroacutei enquanto sentido na medida emque evoca um passado que soacute pode lhe garantir seguranccedila O passado aiacute justi-fica e fecha absolutamente a compreensatildeo do que se percebe da experiecircncia

sensoacuterio-motora presente do real colocando-a na loacutegica de um sentido de umprocesso de uma espeacutecie de destino final (Gueroacuten 2011 p160)

o difiacutecil eacute saber em que uma imagem oacutetica e sonora natildeo eacute ela proacutepria um clichecircquando muito uma foto Natildeo pensamos apenas na maneira pela qual essas ima-gens tornam a produzir um clichecirc a partir do momento em que satildeo retomadaspor autores que delas se servem como foacutermulas Mas os proacuteprios criadores natildeotecircm agraves vezes a ideia de que a nova imagem deva rivalizar com o clichecirc emseu proacuteprio terreno somar algo ao cartatildeo-postal juntar-lhe alguma coisa pa-rodiaacute-lo para melhor se livrar dele (Robbe-Grillet Daniel Schmid) Os criadoresinventam enquadramentos obsedantes espaccedilos vazios ou desconectados ateacutemesmo naturezas-mortas de certo modo eles param o movimento redesco-brem a forccedila do plano fixo mas natildeo seria isso ressuscitar o clichecirc que queriamcombater (Deleuze 2007 p33)

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ccedilatildeo de seu alinhamento a formas e regimes que privilegiam a fixaccedilatildeo e a condensa-ccedilatildeo de uma determinada gama de sentidos de esquemas de percepccedilatildeo e de inteligi-bilidade A saturaccedilatildeo das imagens e a exaustiva colocaccedilatildeo em cena de alguns motivosrecorrentes que como tais apontam certas ordens privilegiadas de encadeamentosprecisam ser postas em questatildeo para que seja possiacutevel perguntar pela sua mobili-dade pela potencialidade que elas apesar de tudo guardariam Daiacute a importacircncia

de discutir obras cujas esteacuteticas que se mostram atravessadas por toda uma gamade hibridaccedilotildees cruzamentos reapropriaccedilotildees e flertes com signos nomeaacuteveis discur-sos saturados imagens e afetos que natildeo cessam de se entremear com as formas quepresidem a sua codificaccedilatildeo ndash e portanto com os movimentos de uma histoacuteria culturalque os elabora e significa

2 O lugar do clichecirc nas emoccedilotildees poacutes-modernas

Em certo ponto de seu estudo sobre o cinema de Chantal Akerman Ivone Margu-lies define muito sucintamente o clichecirc como uma imagem que eacute ldquoconhecida antes

mesmo de ser vistardquo (Margulies 1996 p203) Essa afirmaccedilatildeo natildeo obstante o caraacuteteraparentemente evidente daquilo que enuncia resulta bastante efetiva uma vez quepermite enfatizar aspectos relevantes para uma discussatildeo sobre o clichecirc Dessa sinteacute-tica formulaccedilatildeo podemos extrair algumas ideias Primeiramente o clichecirc nos enredaem uma cadeia de expectativas na qual ele se ampara e que em uacuteltima instacircnciapoderiacuteamos dizer que condiciona sua efetividade Em segundo lugar daiacute decorre queesta acepccedilatildeo do clichecirc se constitui em consonacircncia com a noccedilatildeo de repertoacuterio suadefiniccedilatildeo se refere diretamente agraves imagens conhecidas que em certa medida nos for-mam e que ao mesmo tempo estabelecem marcos para lidar com novas ocorrecircn-cias e novos estiacutemulos Por isso mesmo entatildeo embora seja razoaacutevel estabelecer umabase comum de referecircncia a partir da qual concebemos o que eacute predominantementedo acircmbito do clichecirc a noccedilatildeo se apresenta ela mesma dependente desse repertoacuteriocomo marco variaacutevel Como toda relaccedilatildeo esta tambeacutem estaacute sujeita a variabilidadese contingecircncias e responde a diferentes contextos disposiccedilotildees e modos de engaja-mento

Nas circunstacircncias em que se daacute uma confirmaccedilatildeo daquilo que jaacute conhecemos ou sejaquando a imagem que um filme nos concede atende aos traccedilos formais sensiacuteveis enarrativos que antecipamos parece certo afirmar que aquilo que se encontra diminuiacute-do eacute a potecircncia que essa imagem traria de suscitar uma apreensatildeo inabitual e comisso inventar novas relaccedilotildees suscitar novas experiecircncias sensoriais e de pensamento

No entanto o que muitas vezes fica de fora dessa convicccedilatildeo eacute o prazer da repeticcedilatildeoe da atitude de cotejar as variaccedilotildees possiacuteveis traccedilar recorrecircncias estabelecer redesde correspondecircncias e ressonacircncias A serialidade das imagens remete a toda umagama de disposiccedilotildees culturais bem como a sensibilidades e temporalidades as maisdiversas de modo que eacute plausiacutevel considerar sua ocorrecircncia um fenocircmeno culturale midiaacutetico relevante a ser discutido para aleacutem de uma rejeiccedilatildeo fundada na posturaque qualifica a repeticcedilatildeo como veiacuteculo para a manifestaccedilatildeo de uma redundacircncia va-zia Ainda segundo Margulies

a sobreposiccedilatildeo de repeticcedilatildeo e atualidade invocada por um clichecirc indica seu al-cance social um clichecirc estaacute inevitavelmente envolto nas ressonacircncias prece-dentes de uma dada forma ou representaccedilatildeo O fato de que uma frase ou modoespeciacutefico pode ainda comunicar atraveacutes e apesar de tal redundacircncia nos fala daforccedila do clichecirc Sua potencial efetividade em um filme reside no reconhecimen-

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A questatildeo que se coloca eacute entatildeo como fazer da repeticcedilatildeo da apropriaccedilatildeo do des-locamento de repertoacuterios e de certas composiccedilotildees jaacute conhecidas o motor de umarelaccedilatildeo produtiva com as imagens O universo esteacutetico e midiaacutetico configura tropos

que se tornam familiares reconheciacuteveis e que como tais permitem assimilar umaimagem a esquemas de inteligibilidade ao mesmo tempo em que se imbuem de todauma cadeia de expectativas que podem ser confirmadas ou frustradas O problema deescapar ao clichecirc natildeo eacute simplesmente o de suprimir essa necessidade ou expectativamas o de lograr uma imagem que contorne a sua proacutepria assimilaccedilatildeo de forma raacutepida

Seguindo essa linha de anaacutelise Marion Schmid (2010 p70) sublinha que o cinemade Akerman opera nos campos do deacutejagrave vu e do deacutejagrave entendu A pesquisadora es-creve esse comentaacuterio a propoacutesito de Les Anneacutees 80 (1983) filme de processo quedocumenta o trabalho com atrizes e atores e precede a realizaccedilatildeo do que viria a ser omusical Golden Eighties (1986) Sua observaccedilatildeo poreacutem aplica-se a muitos dos pro-cedimentos que permeiam a filmografia da realizadora e em especial nos filmes desseperiacuteodo De fato tanto Margulies quanto Schmid assinalam a propoacutesito da carreira deAkerman um ponto de inflexatildeo que talvez natildeo casualmente coincide com o iniacuteciodos anos 1980 deacutecada marcada pelo auge das ideias e esteacuteticas poacutes-modernistas Osdesdobramentos da filmografia da realizadora levam-na a experimentar alternativas agravemestria1 ao ascetismo e ao caraacuteter estrutural que marcaram sua produccedilatildeo preceden-te buscando pelo contraacuterio exacerbar em sua esteacutetica a partir de entatildeo um caraacuteterimpuro

Ao falar em impureza recorremos ao termo proposto por Guy Scarpetta (1985) para

pensar parte da produccedilatildeo artiacutestica deste mesmo periacuteodo Embora natildeo analise espe-cificamente o cinema de Akerman a descriccedilatildeo que o autor faz dos impasses aos quaisa arte mais inventiva dessa eacutepoca buscou responder guarda estreitas correspondecircn-cias com as questotildees agraves quais os filmes da diretora naqueles anos se vincularam Scar-petta escreve o diagnoacutestico (alegoacuterico) de uma cultura que se encontra presa em umimpasse no cruzamento entre duas tendecircncias uma tradiccedilatildeo que natildeo eacute capaz de serenovar ndash ldquoum passado sem porvirrdquo ndash e uma arte experimental cheia de promessas defuturo mas que fez taacutebula rasa de seu passado e jaacute enfrenta a crise de como sustentaro imperativo do novo ndash ldquoum porvir sem passadordquo (Scarpetta 1985 p8)

O que vale sublinhar especialmente eacute como a noccedilatildeo de impureza busca dar contade obras e artistas que justamente exploram uma via de criaccedilatildeo que contorna tantoa regressatildeo ao academicismo a condenaccedilatildeo do moderno e ldquoa repeticcedilatildeo morna dopassadordquo quanto a redundacircncia de parte da cultura de massa (Scarpetta 1985 p9)Embora sem duacutevida esquemaacutetico esse panorama aponta para uma proposiccedilatildeo re-levante nos termos daquilo que permite formular uma vertente esteacutetica que tratariao passado da arte e o kitsch massivo ldquoem segundo grau sem inocecircncia por desviossobrecodificaccedilotildees corrupccedilatildeo desnaturalizaccedilatildeordquo (Scarpetta 1985 p9) Em suma umaesteacutetica da impureza Natildeo precisamos enfim seguir a dualidade traccedilada pelo autorque contrapotildee de um lado ldquocriteacuterios demasiado estritos linhas valores obrigadosnormas terroristasrdquo e do outro ldquoa ausecircncia de todo criteacuterio a profusatildeo heteroacuteclita deesteacuteticas a confusatildeo dos valoresrdquo para situar aiacute uma fase de suspensatildeo irresolutaquando os artistas se debateriam entre esses dois polos (Scarpetta 1985 p18-9)

1 Veja a esse respeito a entrevista que a diretora concedeu a Alain Philippon nos Cahiers du cineacutema (1982)

to da diferenccedila que o clichecirc pode ainda significativamente sugerir (Margulies1996 p84 traduccedilatildeo nossa)

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Steven Shaviro (2007) tambeacutem discute o jaacute mencionado musical Golden eighties Natildeoobstante em sua anaacutelise a ecircnfase recai sobre os afetos e como eles afastam qualquerpretensatildeo de autenticidade na medida em que se tornam manifestos na obra a partirdo clichecirc Shaviro chama a atenccedilatildeo em seu artigo sobre o filme para a ldquoqualidadegeneacutericardquo que se estabelece como recurso para a constituiccedilatildeo de determinadas cenasna medida em que elas se fundam sobre uma seacuterie de elementos tiacutepicos a muacutesica

sobretudo mas tambeacutem os gestos e expressotildees faciais que tornam as emoccedilotildees mobi-lizadas pela peliacutecula imediatamente legiacuteveis

Conforme Shaviro se empenha tambeacutem em argumentar haacute pontos de contato quepermitem traccedilar correspondecircncias entre a arte modernista e a cultura de massa sendoo gecircnero musical uma forma privilegiada para discutir tal aproximaccedilatildeo Para ele tantoo projeto modernista quanto o projeto da MGM ldquodesfazem o dualismo que situaria asrepresentaccedilotildees em um lado de uma divisatildeo intransponiacutevel e as coisas que estatildeo sendorepresentadas no outrordquo (Shaviro 2007 p13) Ainda segundo o autor

Temos aqui uma perspectiva ainda mais incisiva que aquela de Guy Scarpetta umavez que ela natildeo situa o entrecruzamento de tais projetos em um momento posteriorde rearticulaccedilatildeo ndash que aleacutem do mais eacute localizado sobretudo na produccedilatildeo de diretoresem maior ou menor grau legitimados como autores ndash mas no cerne mesmo de cadauma das vertentes de criaccedilatildeo

O trabalho de elaboraccedilatildeo formal presente em artefatos culturais massivos apresentacaracteriacutesticas que Shaviro argutamente conecta agraves teorias do afeto a ausecircncia deprofundidade a inadequaccedilatildeo de qualquer noccedilatildeo de autenticidade e a potecircncia dacitaccedilatildeo como recurso para suscitar um engajamento afetivo De fato satildeo os termosdessa polarizaccedilatildeo autecircntico-falso que o autor trata de romper Daiacute porque pode serespecialmente produtivo seguir os argumentos do autor acerca da relevacircncia dos cli-checircs estereoacutetipos e citaccedilotildees para o entendimento das maneiras pelas quais a culturado espetaacuteculo investe sobre nossos afetos e emoccedilotildees2

Se as imagens podem mobilizar o afeto na direccedilatildeo de uma ruptura eacute verdade ainda

que elas frequentemente lidam com questotildees de inteligibilidade e de transmissibili-dade Natildeo conveacutem simplesmente deplorar tais processos como agentes de vulgar-izaccedilatildeo ou de reduccedilatildeo das potencialidades da imagem mas pelo contraacuterio discutirem que medida eles podem ser valiosos para discutir as passagens mediante as quaisos afetos se inscrevem no corpo e se traduzem em gestos performativos e signos cul-turais compartilhados Eacute exatamente esse aspecto que Shaviro enfatiza quando ob-serva que satildeo em grande medida os clichecircs que tornam o sentimento legiacutevel para noacutesnatildeo apenas na posiccedilatildeo de espectadores mas tambeacutem quando lidamos com aquelesmais supostamente autecircnticos os nossos proacuteprios

Segundo o autor ldquoa natureza convencional dos signos que indicam e comunicamsentimentosrdquo eacute aquilo que os torna compreensiacuteveis ldquonatildeo apenas para os outros mastambeacutem (e mesmo talvez mais crucialmente) para noacutes mesmosrdquo (Shaviro 2007 p15)

2 Em sua argumentaccedilatildeo Shaviro recorre ao afeto e agrave emoccedilatildeo como noccedilotildees correlatas e em certa medida intercambiaacuteveis

Akerman descobre o ponto preciso onde MGM e modernismo satildeo indiscerniacuteveis

Ela recapitula o ideal esteacutetico moderno da unidade de forma e conteuacutedo masseu insight poacutes-modernista consiste em reconhecer que esta unidade eacute jaacute elamesma uma construccedilatildeo das forccedilas do entretenimento da moda e do comeacutercio(Shaviro 2007 p13 traduccedilatildeo nossa)

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Aqui ele parece se esforccedilar para deixar claro que os signos convencionais natildeo atuamapenas no processo da elaboraccedilatildeo cultural de formas que significam e expressam osafetos mas que a citacionalidade3 eacute inseparaacutevel da maneira como estes se manifes-tam corporalmente O teoacuterico eacute incisivo em relaccedilatildeo a esse aspecto ldquoEu gostaria desugerir que haacute um sentido em que o afeto soacute eacute lsquoverdadeirorsquo quando eacute uma citaccedilatildeo umlsquocomo sersquordquo (Shaviro 2007 p16)

Posicionamento semelhante jaacute havia sido elaborado em texto anterior no qual o au-tor busca definir os contornos daquilo que poderia ser entendido como uma ldquoemoccedilatildeopoacutes-modernardquo especialmente quando consideramos artefatos culturais que jaacute seencontram intensamente imbricados na loacutegica da mercadoria Acionando a figurade Andy Warhol Shaviro (2004) traz para primeiro plano uma gama de manifesta-ccedilotildees corporais artiacutesticas e performativas que jogam com o artifiacutecio para realccedilar umaemoccedilatildeo que natildeo pode ser expressa senatildeo por meio da ironia da auto-reflexividade eda teatralizaccedilatildeo enfim de um exacerbado esteticismo

Lugar de destaque neste processo cabe agrave televisatildeo ndash que com sua assemblage deformas e conteuacutedos diversos termina por criar as condiccedilotildees para uma espectatori-alidade desprovida de interesse ou de forte engajamento ndash e tambeacutem ao cinema noqual o artifiacutecio pelo contraacuterio suscitaria uma espeacutecie de intensificaccedilatildeo dos afetos soba forma de uma qualidade de resposta maior que aquela vivenciada nas circunstacircn-cias supostamente mais ldquoreaisrdquo do que nos acontece fora da tela

Natildeo se trata apenas do fato de que as emoccedilotildees no cinema sejam mais claramentevisiacuteveis O que a declaraccedilatildeo de Warhol citada por Shaviro sugere eacute a constituiccedilatildeo decondiccedilotildees tais que a emoccedilatildeo pode repercutir corporalmente de maneira exacerbadaWarhol assim natildeo deixa de descrever uma postura de acordo com a qual a indife-renccedila agravequilo que acontece agrave sua volta e por outro lado a paixatildeo por certas formas es-teacuteticas satildeo as duas facetas daquilo que viria constituir uma espeacutecie de neodandismoNesta forma peculiar de self-fashioning os novos meios da eacutepoca ocupam portantoposiccedilatildeo especial como operadores de uma pedagogia O ponto de inflexatildeo que de-marca a constituiccedilatildeo das jaacute mencionadas dobras sobre as emoccedilotildees ndash auto-reflexivi-

dade ironia teatralizaccedilatildeo ndash e que seriam impossiacuteveis de serem desvencilhadas dosmodos pelos quais tais emoccedilotildees satildeo elaboradas visivelmente seria portanto a novacultura midiaacutetica que segundo Warhol teria ldquomatadordquo suas emoccedilotildees

Shaviro retoma o modo como Warhol ldquofabrica uma sensibilidade e um estilordquo (Shaviro2004 p125) para pensar como as emoccedilotildees se pareceriam no contexto cultural queveio a ser chamado de poacutes-moderno Neste ponto eacute a figura de Marilyn Monroe ndash elamesma convertida num clichecirc mediante as ceacutelebres silkscreens que reproduzem eserializam o seu rosto ndash que retorna para sintetizar essa nova sensibilidade

3 Assim como se diz que o gesto de um corpo se constitui sendo passiacutevel de remeter a outros gestos ndash ideia que o conceito de per-formatividade nos permite formular ndash e assim como um discurso em certa medida cita e replica outros a partir dos termos mesmosem que eacute enunciado ndash citacionalidade iterabilidade ndash poderiacuteamos dizer que uma cena cita e desdobra outras cenas num acuacutemuloque o repertoacuterio do cinema e de outros meios torna possiacutevel Sobre os conceitos de performatividade citacionalidade e iterabili-dade ver Loxley (2007) Sobre citacionalidade e iterabilidade no cinema ver Wills (1998)

Embora Warhol amasse os filmes tanto quanto ele amava a TV ele natildeo diz queos filmes ajudaram a acabar com sua vida emocional De fato eacute bem o contraacuterioldquoos filmes fazem as emoccedilotildees parecerem tatildeo fortes e reais ao passo que quandoas coisas acontecem para vocecirc eacute como ver televisatildeo ndash vocecirc natildeo sente nadardquo(Shaviro 2004 p127 traduccedilatildeo nossa)

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em suma os retratos de Marilyn feitos por Warhol satildeo assustadoramente sem a-feto [affectless ] desprovidos de qualquer resposta emocional para a sua mortePelo contraacuterio eles demonstram a impossibilidade de tal resposta Pois a mortede Marilyn eacute a morte da emoccedilatildeo elas constituem um e o mesmo evento (Sha-viro 2004 p135 traduccedilatildeo nossa)

O que eacute curioso no modo como Shaviro recorre agraves declaraccedilotildees de Warhol sobre a

televisatildeo e o gravador ou mesmo sobre a relaccedilatildeo com a morte nesse contexto eacute queao endossaacute-las o teoacuterico vincula essa suposta morte das emoccedilotildees agrave ideia de umaperda de intensidade afetiva operada pela superficialidade e pela desdiferenciaccedilatildeodos meios Trata-se de uma proposiccedilatildeo estranha na medida em que no conceito deafeto ndash com o qual Shaviro faz alternar em seu texto a emoccedilatildeo e por vezes ateacute o sen-timento ndash a noccedilatildeo de profundidade quando formulada tomando o ponto de vista deum sujeito que o experienciaria eacute desde sempre afastada ou pelo menos colocadasob suspeita

Ao mesmo tempo eacute como se Shaviro tomasse a ironia e o distanciamento de que sereveste a ideia de uma ldquomorte das emoccedilotildeesrdquo pelo seu valor de face passando ao largodo artifiacutecio que eacute justamente aquilo que caracterizaria essa forma de esteticismo ouseja ignorando no artifiacutecio aquilo que ele deixa entrever somente a partir de umasofisticada elaboraccedilatildeo Tal questionamento eacute relevante especialmente porque con-forme o proacuteprio Shaviro faz notar a resistecircncia de Warhol em lidar com a questatildeo damorte longe de denotar indiferenccedila expressa uma dificuldade de processar o caraacuteterexcessivo inassimilaacutevel e traumaacutetico desse acontecimento Warhol segundo Shaviro(2004 p135) ficaria sem palavras diante da morte assumindo uma posiccedilatildeo de ca-tegoacuterica recusa quanto agrave sua elaboraccedilatildeo

Para ser mais preciso eacute como se a argumentaccedilatildeo de Shaviro nesse texto oscilasse

entre a convicccedilatildeo de que a autenticidade natildeo exerce funccedilatildeo alguma nesse debatenatildeo devendo assim sequer ser levantada como valor relevante ao mesmo tempo emque persiste a sugestatildeo de que haacute algo que se perdeu em relaccedilatildeo a algum momentoanterior Eacute sintomaacutetico portanto que o artigo de Shaviro recorra a uma intrincada enem sempre muito clara oscilaccedilatildeo entre proposiccedilotildees tais como ldquomorte da emoccedilatildeordquoldquoemoccedilatildeo poacutes-modernardquo ldquoemoccedilatildeo esvaziada de afetordquo e emoccedilatildeo revestida de artifiacutecioque eacute aquela agrave qual ele clama ao final de sua argumentaccedilatildeo Tudo leva a crer que Sha-viro se esforccedila afinal para avanccedilar em direccedilatildeo a uma proposiccedilatildeo que investe sobreos afetos naquilo que eles tecircm de impessoais no modo como operam na superfiacuteciepelas sensaccedilotildees e inclusive mediante contaacutegio a fim de elaborar esteticamente tais

qualidades pela via do artifiacutecio4

Dentre outros aspectos o que esta produtiva discussatildeo levantada por Shaviro expli-cita eacute a compreensatildeo de que se existe um estatuto especiacutefico do afeto e das emoccedilotildeesno poacutes-moderno isso se daacute menos pela perda da ancoragem em subjetividades decontornos bem definidos algo que natildeo eacute caracteriacutestico apenas de uma eacutepoca ou estaacute-gio da cultura e mais pela potencializaccedilatildeo de aspectos tais como a transpessoalidadee a superficialidade alcanccedilada pela via de uma exacerbaccedilatildeo do jogo com as formasda pose e tambeacutem da indiferenccedila aos limites entre o falso e o autecircntico Nestes ter-mos o artifiacutecio natildeo seria o recurso pelo qual se expressam emoccedilotildees desprovidas deafeto mas a ocasiatildeo em que a emoccedilatildeo se expressa intensamente como afetaccedilatildeo Soacuteassim seria possiacutevel reivindicar ldquosentimentos que satildeo irreverentes perversos excecircntri-cos perdulaacuterios fuacuteteis extravagantes disfuncionais e ridiacuteculosrdquo (Shaviro 2004 p140)

4 Suas menccedilotildees ao camp agraves drag queens e agrave noccedilatildeo warholiana da ldquoperformance ruimrdquo embasam este entendimento

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Temos desse modo uma espeacutecie de dobra que investe nos afetos justamente parasobrecodificaacute-los replicaacute-los explorar seus efeitos e derivaccedilotildees e na qual o clichecirc as-sumiria um papel central recolocando a pergunta pela relaccedilatildeo que travamos com asimagens e o tipo de resposta que elas suscitam

3 Entre o prazer e o distanciamento o artifiacutecio

Como dito anteriormente os debates em torno do clichecirc giram em grande medidaem torno da capacidade ndash sempre variaacutevel ndash que uma imagem teria de apresentar-secomo nova ou pelo contraacuterio de mostrar-se jaacute exaurida na sua capacidade de desper-tar uma reaccedilatildeo vivaz no espectador Susan Sontag dedicou-se a discutir essa capaci-dade de reaccedilatildeo principalmente por duas vias a contemplaccedilatildeo (pela beleza) ou o es-panto (pelo choque pela crueza ou pela violecircncia) Em seu ensaio Sobre a fotografia Sontag observa tomando um exemplo que pode soar ainda mais familiar em temposde popularizaccedilatildeo de dispositivos de captaccedilatildeo digital e de muacuteltiplas plataformas deexibiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de imagens

Vale a pena chamar a atenccedilatildeo aqui mais uma vez para a compreensatildeo de que o es-gotamento de um tema natildeo deixa de estar em certa medida condicionado ao proacutepriohistoacuterico das relaccedilotildees travadas entre a pessoa que olha e as imagens Em outras pa-lavras o efeito de desgaste varia segundo os repertoacuterios adquiridos Para o amadorum fenocircmeno da natureza ou paisagem pode despertar o entusiasmo que falta aos jaacute

excessivamente familiarizados com o mundo da fotografia Aparecer como novo oudesgastado ser digno de admiraccedilatildeo ou relegado ao acircmbito do banal satildeo atributosque natildeo se resolvem unicamente numa apreciaccedilatildeo intriacutenseca da imagem mas quepelo contraacuterio apelam agrave instacircncia daquele que vecirc

Em Diante da dor dos outros Sontag formula em outros termos o problema ao depa-rar-se com questotildees semelhantes agraves jaacute inventariadas no iniacutecio deste artigo a saber odiagnoacutestico de um excesso de imagens impulsionado pela cultura do espetaacuteculo e orisco bem assinalado por Deleuze de que a fuga do clichecirc termine por desembocarna produccedilatildeo de um novo padratildeo

De fato eacute possiacutevel argumentar que tanto a demanda incessante pelo novo quanto oprazer encontrado na redundacircncia do clichecirc satildeo partes integrantes de certa modali-dade de apreensatildeo do real dada a centralidade desses dois regimes complementaresndash a novidade e a redundacircncia ndash para o universo da cultura do espetaacuteculo Daiacute porquea mobilizaccedilatildeo do clichecirc como artifiacutecio natildeo implica um afastamento do real mas uma

as fotos criam o belo e ndash ao longo de geraccedilotildees de fotoacutegrafos o esgotam Certasgloacuterias da natureza por exemplo foram simplesmente entregues agrave infatigaacutevelatenccedilatildeo de amadores aficionados da cacircmera Pessoas saturadas de imagens

tendem a achar piegas os pores-do-sol agora infelizmente eles se parecem de-mais com fotos (Sontag 2004 pp101-2 grifo nosso)

ldquoa beleza seraacute convulsiva ou natildeo seraacuterdquo proclamou Andreacute Breton Ele chamouesse ideal esteacutetico de ldquosurrealistardquo mas numa cultura radicalmente renovadapela ascendecircncia de valores mercantis pedir que as imagens abalem clamemdespertem parece antes um realismo elementar aleacutem de bom senso para negoacute-cios De que outro modo se pode obter atenccedilatildeo para um produto ou uma obrade arte De que outro modo deixar uma marca mais funda quando existe umaincessante exposiccedilatildeo a imagens vistas e revistas muitas vezes A imagem comochoque e a imagem como clichecirc satildeo dois aspectos da mesma presenccedila (Sontag2003 p24)

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apreciaccedilatildeo de segunda ordem como via de acesso natildeo-ingecircnuo agraves complexidades deum presente imerso nos fluxos incessantes de imagens na era do capitalismo tardio

Neste ponto podemos retomar as consideraccedilotildees sobre a inadequaccedilatildeo da noccedilatildeo deautenticidade para pensar as emoccedilotildees que satildeo acionadas mediante o clichecirc ndash ou in-versamente a adequaccedilatildeo do clichecirc para catalisar emoccedilotildees suscitadas e expressas no

seio do espetaacuteculo A cultura de mercado investe na estreita cumplicidade entre onovo e o jaacute visto entre o banal e o extraordinaacuterio entre a ilusatildeo do autecircntico e apotecircncia do falso E nisso a arte de Andy Warhol como bem assinalou Steven Shaviropermanece uma via privilegiada para acessar tais questionamentos por sua mobiliza-ccedilatildeo irocircnica dos clichecircs e tambeacutem sobretudo por sua ambivalecircncia quanto aos efeitosdessa loacutegica de mercado sobre os domiacutenios da arte

Para Jean Baudrillard (2006) a potecircncia das intervenccedilotildees de Warhol se existe estaacute emlevar a loacutegica do significante ao paroxismo da proliferaccedilatildeo e da exaustatildeo e com issoalccedilar as imagens ao seu maacuteximo grau de artificialismo Essa exacerbaccedilatildeo do artifiacutecioconfere outro estatuto para o clichecirc na medida em que radicaliza o seu esvaziamento

Eacute uma via distinta a trilhada por Chantal Akerman mas que guarda em comum essadimensatildeo do clichecirc como potente artifiacutecio Natildeo se trata de distanciar-se do clichecirc

para alcanccedilar um desvelamento daquilo que estaria encoberto por ele Ivone Mar-gulies observa a respeito dos musicais da realizadora que ldquoa ambiccedilatildeo desses filmeseacute algo distinto do anti-ilusionismo o que importa eacute que todo o peso da banalidadeseja reexperienciado por meio do clichecirc ndash que a banalidade recupere sua intensidaderepetitiva ou que ela exiba sua composiccedilatildeo claustrofoacutebicardquo (Margulies 1996 p188)Nesse aspecto especificamente encontramos um ponto de articulaccedilatildeo entre Warhole Akerman ainda que ambos alcancem efeitos tatildeo distintos no conjunto de sua obraTrata-se antes de colocar em movimento procedimentos que permitam escapar doimpasse entre o novo e o redundante entre o banal e o extraordinaacuterio entre o choquee a complacecircncia entre o estranhamento e o reconhecimento

Ainda segundo Margulies (Idem p212) se o clichecirc tem uma ldquohistoacuteria semacircnticardquo queo espectador eventualmente conhece seu histoacuterico pode natildeo obstante ser ldquobloquea-dordquo Tal bloqueio ocorreria em grande medida por meio da constituiccedilatildeo de uma seri-alidade De modo semelhante Darlene Pursley afirma que eacute a repeticcedilatildeo que ocasionanos filmes da realizadora ldquoa perda de todo sentidordquo cabendo ao espectador dotar oclichecirc por assim dizer de sua proacutepria ldquosingularidaderdquo e ldquocoloraccedilatildeo especialrdquo (Pursley2005 p1198)

Em casos como estes natildeo parece completamente adequado o contraponto que criacuteti-cas da cultura como aquelas propostas por Beatriz Sarlo alccedilam como resposta agrave pro-liferaccedilatildeo de regimes audiovisuais massivos Natildeo se trata aqui de fazer contrapor aldquodensidade semacircnticardquo de uma imagem (Sarlo 2004 p59) agrave repeticcedilatildeo veloz e seri-alizada de estiacutemulos audiovisuais que caracteriza por exemplo a televisatildeo De fato

as imagens de Warhol natildeo satildeo de modo algum banais pelo fato de constituiacuteremo reflexo de um mundo banal mas porque resultam da ausecircncia no sujeito detoda pretensatildeo de interpretaacute-lo resultam da elevaccedilatildeo da imagem agrave figuraccedilatildeopura sem a menor transfiguraccedilatildeo Assim portanto jaacute natildeo se trata de uma trans-cendecircncia mas do ganho de potecircncia do signo que perdendo toda significa-ccedilatildeo natural resplandece no vazio com toda sua luz artificial (Baudrillard 2006p38 traduccedilatildeo nossa)

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se ainda hoje algumas de suas observaccedilotildees demonstram relevacircncia e despertam in-teresse ndash chama-nos a atenccedilatildeo especialmente o fato de que para Sarlo as imagenslembradas seriam as que manifestam a capacidade de ldquofixar-se com o peso do icocircnicordquo(Sarlo 2004 62) ndash a forccedila de leituras criacuteticas como as que vecircm sendo propostas porSteven Shaviro Ivone Margulies e outros eacute justamente pensar a potecircncia das imagenssem recorrer a todo um encadeamento de paracircmetros como peso substacircncia densi-

dade profundidade

Para Warhol assim como para Akerman especialmente em suas comeacutedias musicaisda deacutecada de 1980 ndash e para persistirmos nos dois projetos esteacuteticos que guiaram al-gumas das reflexotildees aqui articuladas ndash a iconicidade das imagens se realiza em seuproacuteprio valor de superfiacutecie e assumindo o caraacuteter de segunda ordem das obras en-quanto partiacutecipes de um universo sensiacutevel disperso e multifacetado Aqui voltamosa insistir na potecircncia que adveacutem dessa possibilidade de acionar os repertoacuterios dosespectadores como mateacuteria a partir da qual a potecircncia criativa investe seus esforccedilosNo reconhecimento desse caraacuteter sobrecodificado da cultura natildeo estamos eacute verdademuito distantes das palavras de Nelson Brissac Peixoto

Nosso argumento eacute que conforme o percurso que vimos esboccedilando o esvaziamentodo significado pela via da repeticcedilatildeo natildeo constitui algo necessariamente negativo Se-gundo as leituras de Shaviro Margulies Schmid Gueroacuten e mesmo em certos aspec-tos Baudrillard a repeticcedilatildeo e os efeitos de superfiacutecie podem ser tambeacutem afirmativos

engendram relaccedilotildees e modos possiacuteveis de intervenccedilatildeo no real Por essa via embara-lham-se as categorias numa imagem-clichecirc que retorna convencional poreacutem atraves-sada por muacuteltiplos desvios reconheciacutevel poreacutem distorcida superficialmente legiacutevelporeacutem destituiacuteda de quaisquer sentidos estaacuteveis Vaga sensaccedilatildeo de jaacute visto nuncacompletamente jaacute assimilado posto que a proacutepria expectativa de entendimento pres-supotildee a existecircncia de um sentido que poderia ou natildeo ser captado mas que aqui girasobre si mesmo e se desfaz Compreender e processar um significado preexistenteimplicaria uma verticalizaccedilatildeo e um adensamento que satildeo frustrados pela proacutepria radi-cal superficialidade do artifiacutecio

Natildeo se trata de dizer que os clichecircs satildeo infinitamente remodelaacuteveis nem de redefini-los como paradoxalmente inexauriacuteveis A esse respeito eacute certeira a observaccedilatildeo deSarlo ldquoao elitismo das posiccedilotildees mais criacuteticas natildeo deveria opor-se uma inversatildeo simeacute-trica sob a forma de um neopopulismo seduzido pelos encantos da induacutestria culturalrdquo(Sarlo 2004 p65) Natildeo obstante para Sarlo a ldquorepeticcedilatildeo eacute uma maacutequina de produziruma suave felicidaderdquo (Sarlo 2004 p63) um deleite alcanccedilado pela via do apazigua-mento Caberia insistir no entanto e em favor mesmo das ressalvas colocadas dianteda dupla rejeiccedilatildeo ao ldquoelitismordquo e ao ldquoneopopulismo de mercadordquo que o prazer oriundoda relaccedilatildeo com a imagerie que marca nossa experiecircncia do contemporacircneo estaacutelonge de reduzir-se a uma suspensatildeo dos conflitos De fato um dos ganhos trazidospelas discussotildees sobre as formas do artifiacutecio na cultura e nas artes decorre justamenteda problematizaccedilatildeo de noccedilotildees demasiadamente unilaterais tais como o ldquoescapismordquoe a ldquofuga do realrdquo

nesse mundo de cenaacuterios e personagens tudo eacute imagerie Tem a consistecircnciade mito e imagem A cultura contemporacircnea eacute de segunda geraccedilatildeo onde ahistoacuteria a experiecircncia e os anseios de cada um satildeo moldados pela literaturaos quadrinhos o cinema e a TV Vidas em segundo grau Todas essas histoacuterias jaacuteforam vistas todos estes lugares visitados (Peixoto 1988 p362)

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O prazer do artifiacutecio natildeo consiste num suave apaziguamento mas em instalar-se namobilidade entre o reconhecimento e a frustraccedilatildeo dos modos estabelecidos de apre-ensatildeo sensiacutevel e dos esquemas de inteligibilidade Um modo de ler o mundo e umaconstante incerteza em relaccedilatildeo agravequilo que lemos Uma pergunta pelo que haacute de ile-giacutevel no que eacute supostamente oacutebvio bem como uma salutar suspeita diante das pre-tensotildees de ruptura quando esta arrisca tornar-se demasiadamente auto-importante

Talvez do artifiacutecio decorra um prazer hesitante certamente haacute nele um prazer que sealimenta da duacutevida

Referecircncias bibliograacutecas

BAUDRILLARD Jean El complot del arte ilusioacuten y desilusioacuten esteacuteticas Buenos Aires Madrid Amor-rortu Editores 2006DELEUZE Gilles A imagem-tempo Traduccedilatildeo de Eloisa de Arauacutejo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007DELEUZE Gilles GUATTARI Feacutelix ldquoPercepto afecto e conceitordquo In O que eacute a filosofia Rio de JaneiroEd 34 Coleccedilatildeo Trans 1992 p 211-255GUEROacuteN Rodrigo Da imagem ao clichecirc do clichecirc agrave imagem Deleuze cinema e pensamento Riode Janeiro NAU Editora 2011

JAMESON Fredric Poacutes-modernismo a loacutegica cultural do capitalismo tardio Satildeo Paulo EditoraAacutetica 2ordf ed 2007JOLY Martine Introduccedilatildeo agrave anaacutelise das imagens Campinas SP Papirus Editora 2004LOXLEY James Performativity London and New York Routledge New Critical Idiom 2007MARGULIES Ivone Nothing happens Chantal Akermanrsquos Hyperrealist Everyday Duke UniversityPress Durham and London 1996PEIXOTO Nelson Brissac ldquoO olhar do estrangeirordquo In NOVAES Adauto (org) O olhar Satildeo PauloCompanhia das Letras 1988 p361-365PHILIPPON Alain Fragments bruxelois entretien avec Chantal Akerman Cahiers du cineacutema 3411982 p 19-23PURSLEY Darlene Moving in time Chantal Akermanrsquos Toute une nuit MLN Volume 120 Number5 December 2005 (Comparative Literature Issue) p 1192-1205

SARLO Beatriz Cenas da vida poacutes-moderna intelectuais arte e videocultura na Argentina Riode Janeiro Editora UFRJ 2004SCARPETTA Guy Lrsquoimpureteacute Paris Bernard Grasset 1985SCHMID Marion Chantal Akerman (French Film Directors) Manchester and New York ManchesterUniversity Press 2010SHAVIRO Steven Clicheacutes of identity Chantal Akermanrsquos musicals Quarterly review of film andvideo 241 2007 p 11-17______ The life after death of postmodern emotions Criticism volume 46 number 1 Winter2004 p125-141SONTAG Susan Sobre fotograa Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004______ Diante da dor dos outros Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003WILLS David ldquoThe french remark Breathless and cinematic citationalityrdquo In HORTON AndrewMcDOUGAL Stuart Y (eds) Play it again Sam retakes on remakes Berkeley University of California

Press 1998 p147-161

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ccedilatildeo de seu alinhamento a formas e regimes que privilegiam a fixaccedilatildeo e a condensa-ccedilatildeo de uma determinada gama de sentidos de esquemas de percepccedilatildeo e de inteligi-bilidade A saturaccedilatildeo das imagens e a exaustiva colocaccedilatildeo em cena de alguns motivosrecorrentes que como tais apontam certas ordens privilegiadas de encadeamentosprecisam ser postas em questatildeo para que seja possiacutevel perguntar pela sua mobili-dade pela potencialidade que elas apesar de tudo guardariam Daiacute a importacircncia

de discutir obras cujas esteacuteticas que se mostram atravessadas por toda uma gamade hibridaccedilotildees cruzamentos reapropriaccedilotildees e flertes com signos nomeaacuteveis discur-sos saturados imagens e afetos que natildeo cessam de se entremear com as formas quepresidem a sua codificaccedilatildeo ndash e portanto com os movimentos de uma histoacuteria culturalque os elabora e significa

2 O lugar do clichecirc nas emoccedilotildees poacutes-modernas

Em certo ponto de seu estudo sobre o cinema de Chantal Akerman Ivone Margu-lies define muito sucintamente o clichecirc como uma imagem que eacute ldquoconhecida antes

mesmo de ser vistardquo (Margulies 1996 p203) Essa afirmaccedilatildeo natildeo obstante o caraacuteteraparentemente evidente daquilo que enuncia resulta bastante efetiva uma vez quepermite enfatizar aspectos relevantes para uma discussatildeo sobre o clichecirc Dessa sinteacute-tica formulaccedilatildeo podemos extrair algumas ideias Primeiramente o clichecirc nos enredaem uma cadeia de expectativas na qual ele se ampara e que em uacuteltima instacircnciapoderiacuteamos dizer que condiciona sua efetividade Em segundo lugar daiacute decorre queesta acepccedilatildeo do clichecirc se constitui em consonacircncia com a noccedilatildeo de repertoacuterio suadefiniccedilatildeo se refere diretamente agraves imagens conhecidas que em certa medida nos for-mam e que ao mesmo tempo estabelecem marcos para lidar com novas ocorrecircn-cias e novos estiacutemulos Por isso mesmo entatildeo embora seja razoaacutevel estabelecer umabase comum de referecircncia a partir da qual concebemos o que eacute predominantementedo acircmbito do clichecirc a noccedilatildeo se apresenta ela mesma dependente desse repertoacuteriocomo marco variaacutevel Como toda relaccedilatildeo esta tambeacutem estaacute sujeita a variabilidadese contingecircncias e responde a diferentes contextos disposiccedilotildees e modos de engaja-mento

Nas circunstacircncias em que se daacute uma confirmaccedilatildeo daquilo que jaacute conhecemos ou sejaquando a imagem que um filme nos concede atende aos traccedilos formais sensiacuteveis enarrativos que antecipamos parece certo afirmar que aquilo que se encontra diminuiacute-do eacute a potecircncia que essa imagem traria de suscitar uma apreensatildeo inabitual e comisso inventar novas relaccedilotildees suscitar novas experiecircncias sensoriais e de pensamento

No entanto o que muitas vezes fica de fora dessa convicccedilatildeo eacute o prazer da repeticcedilatildeoe da atitude de cotejar as variaccedilotildees possiacuteveis traccedilar recorrecircncias estabelecer redesde correspondecircncias e ressonacircncias A serialidade das imagens remete a toda umagama de disposiccedilotildees culturais bem como a sensibilidades e temporalidades as maisdiversas de modo que eacute plausiacutevel considerar sua ocorrecircncia um fenocircmeno culturale midiaacutetico relevante a ser discutido para aleacutem de uma rejeiccedilatildeo fundada na posturaque qualifica a repeticcedilatildeo como veiacuteculo para a manifestaccedilatildeo de uma redundacircncia va-zia Ainda segundo Margulies

a sobreposiccedilatildeo de repeticcedilatildeo e atualidade invocada por um clichecirc indica seu al-cance social um clichecirc estaacute inevitavelmente envolto nas ressonacircncias prece-dentes de uma dada forma ou representaccedilatildeo O fato de que uma frase ou modoespeciacutefico pode ainda comunicar atraveacutes e apesar de tal redundacircncia nos fala daforccedila do clichecirc Sua potencial efetividade em um filme reside no reconhecimen-

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A questatildeo que se coloca eacute entatildeo como fazer da repeticcedilatildeo da apropriaccedilatildeo do des-locamento de repertoacuterios e de certas composiccedilotildees jaacute conhecidas o motor de umarelaccedilatildeo produtiva com as imagens O universo esteacutetico e midiaacutetico configura tropos

que se tornam familiares reconheciacuteveis e que como tais permitem assimilar umaimagem a esquemas de inteligibilidade ao mesmo tempo em que se imbuem de todauma cadeia de expectativas que podem ser confirmadas ou frustradas O problema deescapar ao clichecirc natildeo eacute simplesmente o de suprimir essa necessidade ou expectativamas o de lograr uma imagem que contorne a sua proacutepria assimilaccedilatildeo de forma raacutepida

Seguindo essa linha de anaacutelise Marion Schmid (2010 p70) sublinha que o cinemade Akerman opera nos campos do deacutejagrave vu e do deacutejagrave entendu A pesquisadora es-creve esse comentaacuterio a propoacutesito de Les Anneacutees 80 (1983) filme de processo quedocumenta o trabalho com atrizes e atores e precede a realizaccedilatildeo do que viria a ser omusical Golden Eighties (1986) Sua observaccedilatildeo poreacutem aplica-se a muitos dos pro-cedimentos que permeiam a filmografia da realizadora e em especial nos filmes desseperiacuteodo De fato tanto Margulies quanto Schmid assinalam a propoacutesito da carreira deAkerman um ponto de inflexatildeo que talvez natildeo casualmente coincide com o iniacuteciodos anos 1980 deacutecada marcada pelo auge das ideias e esteacuteticas poacutes-modernistas Osdesdobramentos da filmografia da realizadora levam-na a experimentar alternativas agravemestria1 ao ascetismo e ao caraacuteter estrutural que marcaram sua produccedilatildeo preceden-te buscando pelo contraacuterio exacerbar em sua esteacutetica a partir de entatildeo um caraacuteterimpuro

Ao falar em impureza recorremos ao termo proposto por Guy Scarpetta (1985) para

pensar parte da produccedilatildeo artiacutestica deste mesmo periacuteodo Embora natildeo analise espe-cificamente o cinema de Akerman a descriccedilatildeo que o autor faz dos impasses aos quaisa arte mais inventiva dessa eacutepoca buscou responder guarda estreitas correspondecircn-cias com as questotildees agraves quais os filmes da diretora naqueles anos se vincularam Scar-petta escreve o diagnoacutestico (alegoacuterico) de uma cultura que se encontra presa em umimpasse no cruzamento entre duas tendecircncias uma tradiccedilatildeo que natildeo eacute capaz de serenovar ndash ldquoum passado sem porvirrdquo ndash e uma arte experimental cheia de promessas defuturo mas que fez taacutebula rasa de seu passado e jaacute enfrenta a crise de como sustentaro imperativo do novo ndash ldquoum porvir sem passadordquo (Scarpetta 1985 p8)

O que vale sublinhar especialmente eacute como a noccedilatildeo de impureza busca dar contade obras e artistas que justamente exploram uma via de criaccedilatildeo que contorna tantoa regressatildeo ao academicismo a condenaccedilatildeo do moderno e ldquoa repeticcedilatildeo morna dopassadordquo quanto a redundacircncia de parte da cultura de massa (Scarpetta 1985 p9)Embora sem duacutevida esquemaacutetico esse panorama aponta para uma proposiccedilatildeo re-levante nos termos daquilo que permite formular uma vertente esteacutetica que tratariao passado da arte e o kitsch massivo ldquoem segundo grau sem inocecircncia por desviossobrecodificaccedilotildees corrupccedilatildeo desnaturalizaccedilatildeordquo (Scarpetta 1985 p9) Em suma umaesteacutetica da impureza Natildeo precisamos enfim seguir a dualidade traccedilada pelo autorque contrapotildee de um lado ldquocriteacuterios demasiado estritos linhas valores obrigadosnormas terroristasrdquo e do outro ldquoa ausecircncia de todo criteacuterio a profusatildeo heteroacuteclita deesteacuteticas a confusatildeo dos valoresrdquo para situar aiacute uma fase de suspensatildeo irresolutaquando os artistas se debateriam entre esses dois polos (Scarpetta 1985 p18-9)

1 Veja a esse respeito a entrevista que a diretora concedeu a Alain Philippon nos Cahiers du cineacutema (1982)

to da diferenccedila que o clichecirc pode ainda significativamente sugerir (Margulies1996 p84 traduccedilatildeo nossa)

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Steven Shaviro (2007) tambeacutem discute o jaacute mencionado musical Golden eighties Natildeoobstante em sua anaacutelise a ecircnfase recai sobre os afetos e como eles afastam qualquerpretensatildeo de autenticidade na medida em que se tornam manifestos na obra a partirdo clichecirc Shaviro chama a atenccedilatildeo em seu artigo sobre o filme para a ldquoqualidadegeneacutericardquo que se estabelece como recurso para a constituiccedilatildeo de determinadas cenasna medida em que elas se fundam sobre uma seacuterie de elementos tiacutepicos a muacutesica

sobretudo mas tambeacutem os gestos e expressotildees faciais que tornam as emoccedilotildees mobi-lizadas pela peliacutecula imediatamente legiacuteveis

Conforme Shaviro se empenha tambeacutem em argumentar haacute pontos de contato quepermitem traccedilar correspondecircncias entre a arte modernista e a cultura de massa sendoo gecircnero musical uma forma privilegiada para discutir tal aproximaccedilatildeo Para ele tantoo projeto modernista quanto o projeto da MGM ldquodesfazem o dualismo que situaria asrepresentaccedilotildees em um lado de uma divisatildeo intransponiacutevel e as coisas que estatildeo sendorepresentadas no outrordquo (Shaviro 2007 p13) Ainda segundo o autor

Temos aqui uma perspectiva ainda mais incisiva que aquela de Guy Scarpetta umavez que ela natildeo situa o entrecruzamento de tais projetos em um momento posteriorde rearticulaccedilatildeo ndash que aleacutem do mais eacute localizado sobretudo na produccedilatildeo de diretoresem maior ou menor grau legitimados como autores ndash mas no cerne mesmo de cadauma das vertentes de criaccedilatildeo

O trabalho de elaboraccedilatildeo formal presente em artefatos culturais massivos apresentacaracteriacutesticas que Shaviro argutamente conecta agraves teorias do afeto a ausecircncia deprofundidade a inadequaccedilatildeo de qualquer noccedilatildeo de autenticidade e a potecircncia dacitaccedilatildeo como recurso para suscitar um engajamento afetivo De fato satildeo os termosdessa polarizaccedilatildeo autecircntico-falso que o autor trata de romper Daiacute porque pode serespecialmente produtivo seguir os argumentos do autor acerca da relevacircncia dos cli-checircs estereoacutetipos e citaccedilotildees para o entendimento das maneiras pelas quais a culturado espetaacuteculo investe sobre nossos afetos e emoccedilotildees2

Se as imagens podem mobilizar o afeto na direccedilatildeo de uma ruptura eacute verdade ainda

que elas frequentemente lidam com questotildees de inteligibilidade e de transmissibili-dade Natildeo conveacutem simplesmente deplorar tais processos como agentes de vulgar-izaccedilatildeo ou de reduccedilatildeo das potencialidades da imagem mas pelo contraacuterio discutirem que medida eles podem ser valiosos para discutir as passagens mediante as quaisos afetos se inscrevem no corpo e se traduzem em gestos performativos e signos cul-turais compartilhados Eacute exatamente esse aspecto que Shaviro enfatiza quando ob-serva que satildeo em grande medida os clichecircs que tornam o sentimento legiacutevel para noacutesnatildeo apenas na posiccedilatildeo de espectadores mas tambeacutem quando lidamos com aquelesmais supostamente autecircnticos os nossos proacuteprios

Segundo o autor ldquoa natureza convencional dos signos que indicam e comunicamsentimentosrdquo eacute aquilo que os torna compreensiacuteveis ldquonatildeo apenas para os outros mastambeacutem (e mesmo talvez mais crucialmente) para noacutes mesmosrdquo (Shaviro 2007 p15)

2 Em sua argumentaccedilatildeo Shaviro recorre ao afeto e agrave emoccedilatildeo como noccedilotildees correlatas e em certa medida intercambiaacuteveis

Akerman descobre o ponto preciso onde MGM e modernismo satildeo indiscerniacuteveis

Ela recapitula o ideal esteacutetico moderno da unidade de forma e conteuacutedo masseu insight poacutes-modernista consiste em reconhecer que esta unidade eacute jaacute elamesma uma construccedilatildeo das forccedilas do entretenimento da moda e do comeacutercio(Shaviro 2007 p13 traduccedilatildeo nossa)

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Aqui ele parece se esforccedilar para deixar claro que os signos convencionais natildeo atuamapenas no processo da elaboraccedilatildeo cultural de formas que significam e expressam osafetos mas que a citacionalidade3 eacute inseparaacutevel da maneira como estes se manifes-tam corporalmente O teoacuterico eacute incisivo em relaccedilatildeo a esse aspecto ldquoEu gostaria desugerir que haacute um sentido em que o afeto soacute eacute lsquoverdadeirorsquo quando eacute uma citaccedilatildeo umlsquocomo sersquordquo (Shaviro 2007 p16)

Posicionamento semelhante jaacute havia sido elaborado em texto anterior no qual o au-tor busca definir os contornos daquilo que poderia ser entendido como uma ldquoemoccedilatildeopoacutes-modernardquo especialmente quando consideramos artefatos culturais que jaacute seencontram intensamente imbricados na loacutegica da mercadoria Acionando a figurade Andy Warhol Shaviro (2004) traz para primeiro plano uma gama de manifesta-ccedilotildees corporais artiacutesticas e performativas que jogam com o artifiacutecio para realccedilar umaemoccedilatildeo que natildeo pode ser expressa senatildeo por meio da ironia da auto-reflexividade eda teatralizaccedilatildeo enfim de um exacerbado esteticismo

Lugar de destaque neste processo cabe agrave televisatildeo ndash que com sua assemblage deformas e conteuacutedos diversos termina por criar as condiccedilotildees para uma espectatori-alidade desprovida de interesse ou de forte engajamento ndash e tambeacutem ao cinema noqual o artifiacutecio pelo contraacuterio suscitaria uma espeacutecie de intensificaccedilatildeo dos afetos soba forma de uma qualidade de resposta maior que aquela vivenciada nas circunstacircn-cias supostamente mais ldquoreaisrdquo do que nos acontece fora da tela

Natildeo se trata apenas do fato de que as emoccedilotildees no cinema sejam mais claramentevisiacuteveis O que a declaraccedilatildeo de Warhol citada por Shaviro sugere eacute a constituiccedilatildeo decondiccedilotildees tais que a emoccedilatildeo pode repercutir corporalmente de maneira exacerbadaWarhol assim natildeo deixa de descrever uma postura de acordo com a qual a indife-renccedila agravequilo que acontece agrave sua volta e por outro lado a paixatildeo por certas formas es-teacuteticas satildeo as duas facetas daquilo que viria constituir uma espeacutecie de neodandismoNesta forma peculiar de self-fashioning os novos meios da eacutepoca ocupam portantoposiccedilatildeo especial como operadores de uma pedagogia O ponto de inflexatildeo que de-marca a constituiccedilatildeo das jaacute mencionadas dobras sobre as emoccedilotildees ndash auto-reflexivi-

dade ironia teatralizaccedilatildeo ndash e que seriam impossiacuteveis de serem desvencilhadas dosmodos pelos quais tais emoccedilotildees satildeo elaboradas visivelmente seria portanto a novacultura midiaacutetica que segundo Warhol teria ldquomatadordquo suas emoccedilotildees

Shaviro retoma o modo como Warhol ldquofabrica uma sensibilidade e um estilordquo (Shaviro2004 p125) para pensar como as emoccedilotildees se pareceriam no contexto cultural queveio a ser chamado de poacutes-moderno Neste ponto eacute a figura de Marilyn Monroe ndash elamesma convertida num clichecirc mediante as ceacutelebres silkscreens que reproduzem eserializam o seu rosto ndash que retorna para sintetizar essa nova sensibilidade

3 Assim como se diz que o gesto de um corpo se constitui sendo passiacutevel de remeter a outros gestos ndash ideia que o conceito de per-formatividade nos permite formular ndash e assim como um discurso em certa medida cita e replica outros a partir dos termos mesmosem que eacute enunciado ndash citacionalidade iterabilidade ndash poderiacuteamos dizer que uma cena cita e desdobra outras cenas num acuacutemuloque o repertoacuterio do cinema e de outros meios torna possiacutevel Sobre os conceitos de performatividade citacionalidade e iterabili-dade ver Loxley (2007) Sobre citacionalidade e iterabilidade no cinema ver Wills (1998)

Embora Warhol amasse os filmes tanto quanto ele amava a TV ele natildeo diz queos filmes ajudaram a acabar com sua vida emocional De fato eacute bem o contraacuterioldquoos filmes fazem as emoccedilotildees parecerem tatildeo fortes e reais ao passo que quandoas coisas acontecem para vocecirc eacute como ver televisatildeo ndash vocecirc natildeo sente nadardquo(Shaviro 2004 p127 traduccedilatildeo nossa)

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em suma os retratos de Marilyn feitos por Warhol satildeo assustadoramente sem a-feto [affectless ] desprovidos de qualquer resposta emocional para a sua mortePelo contraacuterio eles demonstram a impossibilidade de tal resposta Pois a mortede Marilyn eacute a morte da emoccedilatildeo elas constituem um e o mesmo evento (Sha-viro 2004 p135 traduccedilatildeo nossa)

O que eacute curioso no modo como Shaviro recorre agraves declaraccedilotildees de Warhol sobre a

televisatildeo e o gravador ou mesmo sobre a relaccedilatildeo com a morte nesse contexto eacute queao endossaacute-las o teoacuterico vincula essa suposta morte das emoccedilotildees agrave ideia de umaperda de intensidade afetiva operada pela superficialidade e pela desdiferenciaccedilatildeodos meios Trata-se de uma proposiccedilatildeo estranha na medida em que no conceito deafeto ndash com o qual Shaviro faz alternar em seu texto a emoccedilatildeo e por vezes ateacute o sen-timento ndash a noccedilatildeo de profundidade quando formulada tomando o ponto de vista deum sujeito que o experienciaria eacute desde sempre afastada ou pelo menos colocadasob suspeita

Ao mesmo tempo eacute como se Shaviro tomasse a ironia e o distanciamento de que sereveste a ideia de uma ldquomorte das emoccedilotildeesrdquo pelo seu valor de face passando ao largodo artifiacutecio que eacute justamente aquilo que caracterizaria essa forma de esteticismo ouseja ignorando no artifiacutecio aquilo que ele deixa entrever somente a partir de umasofisticada elaboraccedilatildeo Tal questionamento eacute relevante especialmente porque con-forme o proacuteprio Shaviro faz notar a resistecircncia de Warhol em lidar com a questatildeo damorte longe de denotar indiferenccedila expressa uma dificuldade de processar o caraacuteterexcessivo inassimilaacutevel e traumaacutetico desse acontecimento Warhol segundo Shaviro(2004 p135) ficaria sem palavras diante da morte assumindo uma posiccedilatildeo de ca-tegoacuterica recusa quanto agrave sua elaboraccedilatildeo

Para ser mais preciso eacute como se a argumentaccedilatildeo de Shaviro nesse texto oscilasse

entre a convicccedilatildeo de que a autenticidade natildeo exerce funccedilatildeo alguma nesse debatenatildeo devendo assim sequer ser levantada como valor relevante ao mesmo tempo emque persiste a sugestatildeo de que haacute algo que se perdeu em relaccedilatildeo a algum momentoanterior Eacute sintomaacutetico portanto que o artigo de Shaviro recorra a uma intrincada enem sempre muito clara oscilaccedilatildeo entre proposiccedilotildees tais como ldquomorte da emoccedilatildeordquoldquoemoccedilatildeo poacutes-modernardquo ldquoemoccedilatildeo esvaziada de afetordquo e emoccedilatildeo revestida de artifiacutecioque eacute aquela agrave qual ele clama ao final de sua argumentaccedilatildeo Tudo leva a crer que Sha-viro se esforccedila afinal para avanccedilar em direccedilatildeo a uma proposiccedilatildeo que investe sobreos afetos naquilo que eles tecircm de impessoais no modo como operam na superfiacuteciepelas sensaccedilotildees e inclusive mediante contaacutegio a fim de elaborar esteticamente tais

qualidades pela via do artifiacutecio4

Dentre outros aspectos o que esta produtiva discussatildeo levantada por Shaviro expli-cita eacute a compreensatildeo de que se existe um estatuto especiacutefico do afeto e das emoccedilotildeesno poacutes-moderno isso se daacute menos pela perda da ancoragem em subjetividades decontornos bem definidos algo que natildeo eacute caracteriacutestico apenas de uma eacutepoca ou estaacute-gio da cultura e mais pela potencializaccedilatildeo de aspectos tais como a transpessoalidadee a superficialidade alcanccedilada pela via de uma exacerbaccedilatildeo do jogo com as formasda pose e tambeacutem da indiferenccedila aos limites entre o falso e o autecircntico Nestes ter-mos o artifiacutecio natildeo seria o recurso pelo qual se expressam emoccedilotildees desprovidas deafeto mas a ocasiatildeo em que a emoccedilatildeo se expressa intensamente como afetaccedilatildeo Soacuteassim seria possiacutevel reivindicar ldquosentimentos que satildeo irreverentes perversos excecircntri-cos perdulaacuterios fuacuteteis extravagantes disfuncionais e ridiacuteculosrdquo (Shaviro 2004 p140)

4 Suas menccedilotildees ao camp agraves drag queens e agrave noccedilatildeo warholiana da ldquoperformance ruimrdquo embasam este entendimento

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Temos desse modo uma espeacutecie de dobra que investe nos afetos justamente parasobrecodificaacute-los replicaacute-los explorar seus efeitos e derivaccedilotildees e na qual o clichecirc as-sumiria um papel central recolocando a pergunta pela relaccedilatildeo que travamos com asimagens e o tipo de resposta que elas suscitam

3 Entre o prazer e o distanciamento o artifiacutecio

Como dito anteriormente os debates em torno do clichecirc giram em grande medidaem torno da capacidade ndash sempre variaacutevel ndash que uma imagem teria de apresentar-secomo nova ou pelo contraacuterio de mostrar-se jaacute exaurida na sua capacidade de desper-tar uma reaccedilatildeo vivaz no espectador Susan Sontag dedicou-se a discutir essa capaci-dade de reaccedilatildeo principalmente por duas vias a contemplaccedilatildeo (pela beleza) ou o es-panto (pelo choque pela crueza ou pela violecircncia) Em seu ensaio Sobre a fotografia Sontag observa tomando um exemplo que pode soar ainda mais familiar em temposde popularizaccedilatildeo de dispositivos de captaccedilatildeo digital e de muacuteltiplas plataformas deexibiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de imagens

Vale a pena chamar a atenccedilatildeo aqui mais uma vez para a compreensatildeo de que o es-gotamento de um tema natildeo deixa de estar em certa medida condicionado ao proacutepriohistoacuterico das relaccedilotildees travadas entre a pessoa que olha e as imagens Em outras pa-lavras o efeito de desgaste varia segundo os repertoacuterios adquiridos Para o amadorum fenocircmeno da natureza ou paisagem pode despertar o entusiasmo que falta aos jaacute

excessivamente familiarizados com o mundo da fotografia Aparecer como novo oudesgastado ser digno de admiraccedilatildeo ou relegado ao acircmbito do banal satildeo atributosque natildeo se resolvem unicamente numa apreciaccedilatildeo intriacutenseca da imagem mas quepelo contraacuterio apelam agrave instacircncia daquele que vecirc

Em Diante da dor dos outros Sontag formula em outros termos o problema ao depa-rar-se com questotildees semelhantes agraves jaacute inventariadas no iniacutecio deste artigo a saber odiagnoacutestico de um excesso de imagens impulsionado pela cultura do espetaacuteculo e orisco bem assinalado por Deleuze de que a fuga do clichecirc termine por desembocarna produccedilatildeo de um novo padratildeo

De fato eacute possiacutevel argumentar que tanto a demanda incessante pelo novo quanto oprazer encontrado na redundacircncia do clichecirc satildeo partes integrantes de certa modali-dade de apreensatildeo do real dada a centralidade desses dois regimes complementaresndash a novidade e a redundacircncia ndash para o universo da cultura do espetaacuteculo Daiacute porquea mobilizaccedilatildeo do clichecirc como artifiacutecio natildeo implica um afastamento do real mas uma

as fotos criam o belo e ndash ao longo de geraccedilotildees de fotoacutegrafos o esgotam Certasgloacuterias da natureza por exemplo foram simplesmente entregues agrave infatigaacutevelatenccedilatildeo de amadores aficionados da cacircmera Pessoas saturadas de imagens

tendem a achar piegas os pores-do-sol agora infelizmente eles se parecem de-mais com fotos (Sontag 2004 pp101-2 grifo nosso)

ldquoa beleza seraacute convulsiva ou natildeo seraacuterdquo proclamou Andreacute Breton Ele chamouesse ideal esteacutetico de ldquosurrealistardquo mas numa cultura radicalmente renovadapela ascendecircncia de valores mercantis pedir que as imagens abalem clamemdespertem parece antes um realismo elementar aleacutem de bom senso para negoacute-cios De que outro modo se pode obter atenccedilatildeo para um produto ou uma obrade arte De que outro modo deixar uma marca mais funda quando existe umaincessante exposiccedilatildeo a imagens vistas e revistas muitas vezes A imagem comochoque e a imagem como clichecirc satildeo dois aspectos da mesma presenccedila (Sontag2003 p24)

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apreciaccedilatildeo de segunda ordem como via de acesso natildeo-ingecircnuo agraves complexidades deum presente imerso nos fluxos incessantes de imagens na era do capitalismo tardio

Neste ponto podemos retomar as consideraccedilotildees sobre a inadequaccedilatildeo da noccedilatildeo deautenticidade para pensar as emoccedilotildees que satildeo acionadas mediante o clichecirc ndash ou in-versamente a adequaccedilatildeo do clichecirc para catalisar emoccedilotildees suscitadas e expressas no

seio do espetaacuteculo A cultura de mercado investe na estreita cumplicidade entre onovo e o jaacute visto entre o banal e o extraordinaacuterio entre a ilusatildeo do autecircntico e apotecircncia do falso E nisso a arte de Andy Warhol como bem assinalou Steven Shaviropermanece uma via privilegiada para acessar tais questionamentos por sua mobiliza-ccedilatildeo irocircnica dos clichecircs e tambeacutem sobretudo por sua ambivalecircncia quanto aos efeitosdessa loacutegica de mercado sobre os domiacutenios da arte

Para Jean Baudrillard (2006) a potecircncia das intervenccedilotildees de Warhol se existe estaacute emlevar a loacutegica do significante ao paroxismo da proliferaccedilatildeo e da exaustatildeo e com issoalccedilar as imagens ao seu maacuteximo grau de artificialismo Essa exacerbaccedilatildeo do artifiacutecioconfere outro estatuto para o clichecirc na medida em que radicaliza o seu esvaziamento

Eacute uma via distinta a trilhada por Chantal Akerman mas que guarda em comum essadimensatildeo do clichecirc como potente artifiacutecio Natildeo se trata de distanciar-se do clichecirc

para alcanccedilar um desvelamento daquilo que estaria encoberto por ele Ivone Mar-gulies observa a respeito dos musicais da realizadora que ldquoa ambiccedilatildeo desses filmeseacute algo distinto do anti-ilusionismo o que importa eacute que todo o peso da banalidadeseja reexperienciado por meio do clichecirc ndash que a banalidade recupere sua intensidaderepetitiva ou que ela exiba sua composiccedilatildeo claustrofoacutebicardquo (Margulies 1996 p188)Nesse aspecto especificamente encontramos um ponto de articulaccedilatildeo entre Warhole Akerman ainda que ambos alcancem efeitos tatildeo distintos no conjunto de sua obraTrata-se antes de colocar em movimento procedimentos que permitam escapar doimpasse entre o novo e o redundante entre o banal e o extraordinaacuterio entre o choquee a complacecircncia entre o estranhamento e o reconhecimento

Ainda segundo Margulies (Idem p212) se o clichecirc tem uma ldquohistoacuteria semacircnticardquo queo espectador eventualmente conhece seu histoacuterico pode natildeo obstante ser ldquobloquea-dordquo Tal bloqueio ocorreria em grande medida por meio da constituiccedilatildeo de uma seri-alidade De modo semelhante Darlene Pursley afirma que eacute a repeticcedilatildeo que ocasionanos filmes da realizadora ldquoa perda de todo sentidordquo cabendo ao espectador dotar oclichecirc por assim dizer de sua proacutepria ldquosingularidaderdquo e ldquocoloraccedilatildeo especialrdquo (Pursley2005 p1198)

Em casos como estes natildeo parece completamente adequado o contraponto que criacuteti-cas da cultura como aquelas propostas por Beatriz Sarlo alccedilam como resposta agrave pro-liferaccedilatildeo de regimes audiovisuais massivos Natildeo se trata aqui de fazer contrapor aldquodensidade semacircnticardquo de uma imagem (Sarlo 2004 p59) agrave repeticcedilatildeo veloz e seri-alizada de estiacutemulos audiovisuais que caracteriza por exemplo a televisatildeo De fato

as imagens de Warhol natildeo satildeo de modo algum banais pelo fato de constituiacuteremo reflexo de um mundo banal mas porque resultam da ausecircncia no sujeito detoda pretensatildeo de interpretaacute-lo resultam da elevaccedilatildeo da imagem agrave figuraccedilatildeopura sem a menor transfiguraccedilatildeo Assim portanto jaacute natildeo se trata de uma trans-cendecircncia mas do ganho de potecircncia do signo que perdendo toda significa-ccedilatildeo natural resplandece no vazio com toda sua luz artificial (Baudrillard 2006p38 traduccedilatildeo nossa)

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se ainda hoje algumas de suas observaccedilotildees demonstram relevacircncia e despertam in-teresse ndash chama-nos a atenccedilatildeo especialmente o fato de que para Sarlo as imagenslembradas seriam as que manifestam a capacidade de ldquofixar-se com o peso do icocircnicordquo(Sarlo 2004 62) ndash a forccedila de leituras criacuteticas como as que vecircm sendo propostas porSteven Shaviro Ivone Margulies e outros eacute justamente pensar a potecircncia das imagenssem recorrer a todo um encadeamento de paracircmetros como peso substacircncia densi-

dade profundidade

Para Warhol assim como para Akerman especialmente em suas comeacutedias musicaisda deacutecada de 1980 ndash e para persistirmos nos dois projetos esteacuteticos que guiaram al-gumas das reflexotildees aqui articuladas ndash a iconicidade das imagens se realiza em seuproacuteprio valor de superfiacutecie e assumindo o caraacuteter de segunda ordem das obras en-quanto partiacutecipes de um universo sensiacutevel disperso e multifacetado Aqui voltamosa insistir na potecircncia que adveacutem dessa possibilidade de acionar os repertoacuterios dosespectadores como mateacuteria a partir da qual a potecircncia criativa investe seus esforccedilosNo reconhecimento desse caraacuteter sobrecodificado da cultura natildeo estamos eacute verdademuito distantes das palavras de Nelson Brissac Peixoto

Nosso argumento eacute que conforme o percurso que vimos esboccedilando o esvaziamentodo significado pela via da repeticcedilatildeo natildeo constitui algo necessariamente negativo Se-gundo as leituras de Shaviro Margulies Schmid Gueroacuten e mesmo em certos aspec-tos Baudrillard a repeticcedilatildeo e os efeitos de superfiacutecie podem ser tambeacutem afirmativos

engendram relaccedilotildees e modos possiacuteveis de intervenccedilatildeo no real Por essa via embara-lham-se as categorias numa imagem-clichecirc que retorna convencional poreacutem atraves-sada por muacuteltiplos desvios reconheciacutevel poreacutem distorcida superficialmente legiacutevelporeacutem destituiacuteda de quaisquer sentidos estaacuteveis Vaga sensaccedilatildeo de jaacute visto nuncacompletamente jaacute assimilado posto que a proacutepria expectativa de entendimento pres-supotildee a existecircncia de um sentido que poderia ou natildeo ser captado mas que aqui girasobre si mesmo e se desfaz Compreender e processar um significado preexistenteimplicaria uma verticalizaccedilatildeo e um adensamento que satildeo frustrados pela proacutepria radi-cal superficialidade do artifiacutecio

Natildeo se trata de dizer que os clichecircs satildeo infinitamente remodelaacuteveis nem de redefini-los como paradoxalmente inexauriacuteveis A esse respeito eacute certeira a observaccedilatildeo deSarlo ldquoao elitismo das posiccedilotildees mais criacuteticas natildeo deveria opor-se uma inversatildeo simeacute-trica sob a forma de um neopopulismo seduzido pelos encantos da induacutestria culturalrdquo(Sarlo 2004 p65) Natildeo obstante para Sarlo a ldquorepeticcedilatildeo eacute uma maacutequina de produziruma suave felicidaderdquo (Sarlo 2004 p63) um deleite alcanccedilado pela via do apazigua-mento Caberia insistir no entanto e em favor mesmo das ressalvas colocadas dianteda dupla rejeiccedilatildeo ao ldquoelitismordquo e ao ldquoneopopulismo de mercadordquo que o prazer oriundoda relaccedilatildeo com a imagerie que marca nossa experiecircncia do contemporacircneo estaacutelonge de reduzir-se a uma suspensatildeo dos conflitos De fato um dos ganhos trazidospelas discussotildees sobre as formas do artifiacutecio na cultura e nas artes decorre justamenteda problematizaccedilatildeo de noccedilotildees demasiadamente unilaterais tais como o ldquoescapismordquoe a ldquofuga do realrdquo

nesse mundo de cenaacuterios e personagens tudo eacute imagerie Tem a consistecircnciade mito e imagem A cultura contemporacircnea eacute de segunda geraccedilatildeo onde ahistoacuteria a experiecircncia e os anseios de cada um satildeo moldados pela literaturaos quadrinhos o cinema e a TV Vidas em segundo grau Todas essas histoacuterias jaacuteforam vistas todos estes lugares visitados (Peixoto 1988 p362)

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O prazer do artifiacutecio natildeo consiste num suave apaziguamento mas em instalar-se namobilidade entre o reconhecimento e a frustraccedilatildeo dos modos estabelecidos de apre-ensatildeo sensiacutevel e dos esquemas de inteligibilidade Um modo de ler o mundo e umaconstante incerteza em relaccedilatildeo agravequilo que lemos Uma pergunta pelo que haacute de ile-giacutevel no que eacute supostamente oacutebvio bem como uma salutar suspeita diante das pre-tensotildees de ruptura quando esta arrisca tornar-se demasiadamente auto-importante

Talvez do artifiacutecio decorra um prazer hesitante certamente haacute nele um prazer que sealimenta da duacutevida

Referecircncias bibliograacutecas

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A questatildeo que se coloca eacute entatildeo como fazer da repeticcedilatildeo da apropriaccedilatildeo do des-locamento de repertoacuterios e de certas composiccedilotildees jaacute conhecidas o motor de umarelaccedilatildeo produtiva com as imagens O universo esteacutetico e midiaacutetico configura tropos

que se tornam familiares reconheciacuteveis e que como tais permitem assimilar umaimagem a esquemas de inteligibilidade ao mesmo tempo em que se imbuem de todauma cadeia de expectativas que podem ser confirmadas ou frustradas O problema deescapar ao clichecirc natildeo eacute simplesmente o de suprimir essa necessidade ou expectativamas o de lograr uma imagem que contorne a sua proacutepria assimilaccedilatildeo de forma raacutepida

Seguindo essa linha de anaacutelise Marion Schmid (2010 p70) sublinha que o cinemade Akerman opera nos campos do deacutejagrave vu e do deacutejagrave entendu A pesquisadora es-creve esse comentaacuterio a propoacutesito de Les Anneacutees 80 (1983) filme de processo quedocumenta o trabalho com atrizes e atores e precede a realizaccedilatildeo do que viria a ser omusical Golden Eighties (1986) Sua observaccedilatildeo poreacutem aplica-se a muitos dos pro-cedimentos que permeiam a filmografia da realizadora e em especial nos filmes desseperiacuteodo De fato tanto Margulies quanto Schmid assinalam a propoacutesito da carreira deAkerman um ponto de inflexatildeo que talvez natildeo casualmente coincide com o iniacuteciodos anos 1980 deacutecada marcada pelo auge das ideias e esteacuteticas poacutes-modernistas Osdesdobramentos da filmografia da realizadora levam-na a experimentar alternativas agravemestria1 ao ascetismo e ao caraacuteter estrutural que marcaram sua produccedilatildeo preceden-te buscando pelo contraacuterio exacerbar em sua esteacutetica a partir de entatildeo um caraacuteterimpuro

Ao falar em impureza recorremos ao termo proposto por Guy Scarpetta (1985) para

pensar parte da produccedilatildeo artiacutestica deste mesmo periacuteodo Embora natildeo analise espe-cificamente o cinema de Akerman a descriccedilatildeo que o autor faz dos impasses aos quaisa arte mais inventiva dessa eacutepoca buscou responder guarda estreitas correspondecircn-cias com as questotildees agraves quais os filmes da diretora naqueles anos se vincularam Scar-petta escreve o diagnoacutestico (alegoacuterico) de uma cultura que se encontra presa em umimpasse no cruzamento entre duas tendecircncias uma tradiccedilatildeo que natildeo eacute capaz de serenovar ndash ldquoum passado sem porvirrdquo ndash e uma arte experimental cheia de promessas defuturo mas que fez taacutebula rasa de seu passado e jaacute enfrenta a crise de como sustentaro imperativo do novo ndash ldquoum porvir sem passadordquo (Scarpetta 1985 p8)

O que vale sublinhar especialmente eacute como a noccedilatildeo de impureza busca dar contade obras e artistas que justamente exploram uma via de criaccedilatildeo que contorna tantoa regressatildeo ao academicismo a condenaccedilatildeo do moderno e ldquoa repeticcedilatildeo morna dopassadordquo quanto a redundacircncia de parte da cultura de massa (Scarpetta 1985 p9)Embora sem duacutevida esquemaacutetico esse panorama aponta para uma proposiccedilatildeo re-levante nos termos daquilo que permite formular uma vertente esteacutetica que tratariao passado da arte e o kitsch massivo ldquoem segundo grau sem inocecircncia por desviossobrecodificaccedilotildees corrupccedilatildeo desnaturalizaccedilatildeordquo (Scarpetta 1985 p9) Em suma umaesteacutetica da impureza Natildeo precisamos enfim seguir a dualidade traccedilada pelo autorque contrapotildee de um lado ldquocriteacuterios demasiado estritos linhas valores obrigadosnormas terroristasrdquo e do outro ldquoa ausecircncia de todo criteacuterio a profusatildeo heteroacuteclita deesteacuteticas a confusatildeo dos valoresrdquo para situar aiacute uma fase de suspensatildeo irresolutaquando os artistas se debateriam entre esses dois polos (Scarpetta 1985 p18-9)

1 Veja a esse respeito a entrevista que a diretora concedeu a Alain Philippon nos Cahiers du cineacutema (1982)

to da diferenccedila que o clichecirc pode ainda significativamente sugerir (Margulies1996 p84 traduccedilatildeo nossa)

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Steven Shaviro (2007) tambeacutem discute o jaacute mencionado musical Golden eighties Natildeoobstante em sua anaacutelise a ecircnfase recai sobre os afetos e como eles afastam qualquerpretensatildeo de autenticidade na medida em que se tornam manifestos na obra a partirdo clichecirc Shaviro chama a atenccedilatildeo em seu artigo sobre o filme para a ldquoqualidadegeneacutericardquo que se estabelece como recurso para a constituiccedilatildeo de determinadas cenasna medida em que elas se fundam sobre uma seacuterie de elementos tiacutepicos a muacutesica

sobretudo mas tambeacutem os gestos e expressotildees faciais que tornam as emoccedilotildees mobi-lizadas pela peliacutecula imediatamente legiacuteveis

Conforme Shaviro se empenha tambeacutem em argumentar haacute pontos de contato quepermitem traccedilar correspondecircncias entre a arte modernista e a cultura de massa sendoo gecircnero musical uma forma privilegiada para discutir tal aproximaccedilatildeo Para ele tantoo projeto modernista quanto o projeto da MGM ldquodesfazem o dualismo que situaria asrepresentaccedilotildees em um lado de uma divisatildeo intransponiacutevel e as coisas que estatildeo sendorepresentadas no outrordquo (Shaviro 2007 p13) Ainda segundo o autor

Temos aqui uma perspectiva ainda mais incisiva que aquela de Guy Scarpetta umavez que ela natildeo situa o entrecruzamento de tais projetos em um momento posteriorde rearticulaccedilatildeo ndash que aleacutem do mais eacute localizado sobretudo na produccedilatildeo de diretoresem maior ou menor grau legitimados como autores ndash mas no cerne mesmo de cadauma das vertentes de criaccedilatildeo

O trabalho de elaboraccedilatildeo formal presente em artefatos culturais massivos apresentacaracteriacutesticas que Shaviro argutamente conecta agraves teorias do afeto a ausecircncia deprofundidade a inadequaccedilatildeo de qualquer noccedilatildeo de autenticidade e a potecircncia dacitaccedilatildeo como recurso para suscitar um engajamento afetivo De fato satildeo os termosdessa polarizaccedilatildeo autecircntico-falso que o autor trata de romper Daiacute porque pode serespecialmente produtivo seguir os argumentos do autor acerca da relevacircncia dos cli-checircs estereoacutetipos e citaccedilotildees para o entendimento das maneiras pelas quais a culturado espetaacuteculo investe sobre nossos afetos e emoccedilotildees2

Se as imagens podem mobilizar o afeto na direccedilatildeo de uma ruptura eacute verdade ainda

que elas frequentemente lidam com questotildees de inteligibilidade e de transmissibili-dade Natildeo conveacutem simplesmente deplorar tais processos como agentes de vulgar-izaccedilatildeo ou de reduccedilatildeo das potencialidades da imagem mas pelo contraacuterio discutirem que medida eles podem ser valiosos para discutir as passagens mediante as quaisos afetos se inscrevem no corpo e se traduzem em gestos performativos e signos cul-turais compartilhados Eacute exatamente esse aspecto que Shaviro enfatiza quando ob-serva que satildeo em grande medida os clichecircs que tornam o sentimento legiacutevel para noacutesnatildeo apenas na posiccedilatildeo de espectadores mas tambeacutem quando lidamos com aquelesmais supostamente autecircnticos os nossos proacuteprios

Segundo o autor ldquoa natureza convencional dos signos que indicam e comunicamsentimentosrdquo eacute aquilo que os torna compreensiacuteveis ldquonatildeo apenas para os outros mastambeacutem (e mesmo talvez mais crucialmente) para noacutes mesmosrdquo (Shaviro 2007 p15)

2 Em sua argumentaccedilatildeo Shaviro recorre ao afeto e agrave emoccedilatildeo como noccedilotildees correlatas e em certa medida intercambiaacuteveis

Akerman descobre o ponto preciso onde MGM e modernismo satildeo indiscerniacuteveis

Ela recapitula o ideal esteacutetico moderno da unidade de forma e conteuacutedo masseu insight poacutes-modernista consiste em reconhecer que esta unidade eacute jaacute elamesma uma construccedilatildeo das forccedilas do entretenimento da moda e do comeacutercio(Shaviro 2007 p13 traduccedilatildeo nossa)

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Aqui ele parece se esforccedilar para deixar claro que os signos convencionais natildeo atuamapenas no processo da elaboraccedilatildeo cultural de formas que significam e expressam osafetos mas que a citacionalidade3 eacute inseparaacutevel da maneira como estes se manifes-tam corporalmente O teoacuterico eacute incisivo em relaccedilatildeo a esse aspecto ldquoEu gostaria desugerir que haacute um sentido em que o afeto soacute eacute lsquoverdadeirorsquo quando eacute uma citaccedilatildeo umlsquocomo sersquordquo (Shaviro 2007 p16)

Posicionamento semelhante jaacute havia sido elaborado em texto anterior no qual o au-tor busca definir os contornos daquilo que poderia ser entendido como uma ldquoemoccedilatildeopoacutes-modernardquo especialmente quando consideramos artefatos culturais que jaacute seencontram intensamente imbricados na loacutegica da mercadoria Acionando a figurade Andy Warhol Shaviro (2004) traz para primeiro plano uma gama de manifesta-ccedilotildees corporais artiacutesticas e performativas que jogam com o artifiacutecio para realccedilar umaemoccedilatildeo que natildeo pode ser expressa senatildeo por meio da ironia da auto-reflexividade eda teatralizaccedilatildeo enfim de um exacerbado esteticismo

Lugar de destaque neste processo cabe agrave televisatildeo ndash que com sua assemblage deformas e conteuacutedos diversos termina por criar as condiccedilotildees para uma espectatori-alidade desprovida de interesse ou de forte engajamento ndash e tambeacutem ao cinema noqual o artifiacutecio pelo contraacuterio suscitaria uma espeacutecie de intensificaccedilatildeo dos afetos soba forma de uma qualidade de resposta maior que aquela vivenciada nas circunstacircn-cias supostamente mais ldquoreaisrdquo do que nos acontece fora da tela

Natildeo se trata apenas do fato de que as emoccedilotildees no cinema sejam mais claramentevisiacuteveis O que a declaraccedilatildeo de Warhol citada por Shaviro sugere eacute a constituiccedilatildeo decondiccedilotildees tais que a emoccedilatildeo pode repercutir corporalmente de maneira exacerbadaWarhol assim natildeo deixa de descrever uma postura de acordo com a qual a indife-renccedila agravequilo que acontece agrave sua volta e por outro lado a paixatildeo por certas formas es-teacuteticas satildeo as duas facetas daquilo que viria constituir uma espeacutecie de neodandismoNesta forma peculiar de self-fashioning os novos meios da eacutepoca ocupam portantoposiccedilatildeo especial como operadores de uma pedagogia O ponto de inflexatildeo que de-marca a constituiccedilatildeo das jaacute mencionadas dobras sobre as emoccedilotildees ndash auto-reflexivi-

dade ironia teatralizaccedilatildeo ndash e que seriam impossiacuteveis de serem desvencilhadas dosmodos pelos quais tais emoccedilotildees satildeo elaboradas visivelmente seria portanto a novacultura midiaacutetica que segundo Warhol teria ldquomatadordquo suas emoccedilotildees

Shaviro retoma o modo como Warhol ldquofabrica uma sensibilidade e um estilordquo (Shaviro2004 p125) para pensar como as emoccedilotildees se pareceriam no contexto cultural queveio a ser chamado de poacutes-moderno Neste ponto eacute a figura de Marilyn Monroe ndash elamesma convertida num clichecirc mediante as ceacutelebres silkscreens que reproduzem eserializam o seu rosto ndash que retorna para sintetizar essa nova sensibilidade

3 Assim como se diz que o gesto de um corpo se constitui sendo passiacutevel de remeter a outros gestos ndash ideia que o conceito de per-formatividade nos permite formular ndash e assim como um discurso em certa medida cita e replica outros a partir dos termos mesmosem que eacute enunciado ndash citacionalidade iterabilidade ndash poderiacuteamos dizer que uma cena cita e desdobra outras cenas num acuacutemuloque o repertoacuterio do cinema e de outros meios torna possiacutevel Sobre os conceitos de performatividade citacionalidade e iterabili-dade ver Loxley (2007) Sobre citacionalidade e iterabilidade no cinema ver Wills (1998)

Embora Warhol amasse os filmes tanto quanto ele amava a TV ele natildeo diz queos filmes ajudaram a acabar com sua vida emocional De fato eacute bem o contraacuterioldquoos filmes fazem as emoccedilotildees parecerem tatildeo fortes e reais ao passo que quandoas coisas acontecem para vocecirc eacute como ver televisatildeo ndash vocecirc natildeo sente nadardquo(Shaviro 2004 p127 traduccedilatildeo nossa)

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em suma os retratos de Marilyn feitos por Warhol satildeo assustadoramente sem a-feto [affectless ] desprovidos de qualquer resposta emocional para a sua mortePelo contraacuterio eles demonstram a impossibilidade de tal resposta Pois a mortede Marilyn eacute a morte da emoccedilatildeo elas constituem um e o mesmo evento (Sha-viro 2004 p135 traduccedilatildeo nossa)

O que eacute curioso no modo como Shaviro recorre agraves declaraccedilotildees de Warhol sobre a

televisatildeo e o gravador ou mesmo sobre a relaccedilatildeo com a morte nesse contexto eacute queao endossaacute-las o teoacuterico vincula essa suposta morte das emoccedilotildees agrave ideia de umaperda de intensidade afetiva operada pela superficialidade e pela desdiferenciaccedilatildeodos meios Trata-se de uma proposiccedilatildeo estranha na medida em que no conceito deafeto ndash com o qual Shaviro faz alternar em seu texto a emoccedilatildeo e por vezes ateacute o sen-timento ndash a noccedilatildeo de profundidade quando formulada tomando o ponto de vista deum sujeito que o experienciaria eacute desde sempre afastada ou pelo menos colocadasob suspeita

Ao mesmo tempo eacute como se Shaviro tomasse a ironia e o distanciamento de que sereveste a ideia de uma ldquomorte das emoccedilotildeesrdquo pelo seu valor de face passando ao largodo artifiacutecio que eacute justamente aquilo que caracterizaria essa forma de esteticismo ouseja ignorando no artifiacutecio aquilo que ele deixa entrever somente a partir de umasofisticada elaboraccedilatildeo Tal questionamento eacute relevante especialmente porque con-forme o proacuteprio Shaviro faz notar a resistecircncia de Warhol em lidar com a questatildeo damorte longe de denotar indiferenccedila expressa uma dificuldade de processar o caraacuteterexcessivo inassimilaacutevel e traumaacutetico desse acontecimento Warhol segundo Shaviro(2004 p135) ficaria sem palavras diante da morte assumindo uma posiccedilatildeo de ca-tegoacuterica recusa quanto agrave sua elaboraccedilatildeo

Para ser mais preciso eacute como se a argumentaccedilatildeo de Shaviro nesse texto oscilasse

entre a convicccedilatildeo de que a autenticidade natildeo exerce funccedilatildeo alguma nesse debatenatildeo devendo assim sequer ser levantada como valor relevante ao mesmo tempo emque persiste a sugestatildeo de que haacute algo que se perdeu em relaccedilatildeo a algum momentoanterior Eacute sintomaacutetico portanto que o artigo de Shaviro recorra a uma intrincada enem sempre muito clara oscilaccedilatildeo entre proposiccedilotildees tais como ldquomorte da emoccedilatildeordquoldquoemoccedilatildeo poacutes-modernardquo ldquoemoccedilatildeo esvaziada de afetordquo e emoccedilatildeo revestida de artifiacutecioque eacute aquela agrave qual ele clama ao final de sua argumentaccedilatildeo Tudo leva a crer que Sha-viro se esforccedila afinal para avanccedilar em direccedilatildeo a uma proposiccedilatildeo que investe sobreos afetos naquilo que eles tecircm de impessoais no modo como operam na superfiacuteciepelas sensaccedilotildees e inclusive mediante contaacutegio a fim de elaborar esteticamente tais

qualidades pela via do artifiacutecio4

Dentre outros aspectos o que esta produtiva discussatildeo levantada por Shaviro expli-cita eacute a compreensatildeo de que se existe um estatuto especiacutefico do afeto e das emoccedilotildeesno poacutes-moderno isso se daacute menos pela perda da ancoragem em subjetividades decontornos bem definidos algo que natildeo eacute caracteriacutestico apenas de uma eacutepoca ou estaacute-gio da cultura e mais pela potencializaccedilatildeo de aspectos tais como a transpessoalidadee a superficialidade alcanccedilada pela via de uma exacerbaccedilatildeo do jogo com as formasda pose e tambeacutem da indiferenccedila aos limites entre o falso e o autecircntico Nestes ter-mos o artifiacutecio natildeo seria o recurso pelo qual se expressam emoccedilotildees desprovidas deafeto mas a ocasiatildeo em que a emoccedilatildeo se expressa intensamente como afetaccedilatildeo Soacuteassim seria possiacutevel reivindicar ldquosentimentos que satildeo irreverentes perversos excecircntri-cos perdulaacuterios fuacuteteis extravagantes disfuncionais e ridiacuteculosrdquo (Shaviro 2004 p140)

4 Suas menccedilotildees ao camp agraves drag queens e agrave noccedilatildeo warholiana da ldquoperformance ruimrdquo embasam este entendimento

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Temos desse modo uma espeacutecie de dobra que investe nos afetos justamente parasobrecodificaacute-los replicaacute-los explorar seus efeitos e derivaccedilotildees e na qual o clichecirc as-sumiria um papel central recolocando a pergunta pela relaccedilatildeo que travamos com asimagens e o tipo de resposta que elas suscitam

3 Entre o prazer e o distanciamento o artifiacutecio

Como dito anteriormente os debates em torno do clichecirc giram em grande medidaem torno da capacidade ndash sempre variaacutevel ndash que uma imagem teria de apresentar-secomo nova ou pelo contraacuterio de mostrar-se jaacute exaurida na sua capacidade de desper-tar uma reaccedilatildeo vivaz no espectador Susan Sontag dedicou-se a discutir essa capaci-dade de reaccedilatildeo principalmente por duas vias a contemplaccedilatildeo (pela beleza) ou o es-panto (pelo choque pela crueza ou pela violecircncia) Em seu ensaio Sobre a fotografia Sontag observa tomando um exemplo que pode soar ainda mais familiar em temposde popularizaccedilatildeo de dispositivos de captaccedilatildeo digital e de muacuteltiplas plataformas deexibiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de imagens

Vale a pena chamar a atenccedilatildeo aqui mais uma vez para a compreensatildeo de que o es-gotamento de um tema natildeo deixa de estar em certa medida condicionado ao proacutepriohistoacuterico das relaccedilotildees travadas entre a pessoa que olha e as imagens Em outras pa-lavras o efeito de desgaste varia segundo os repertoacuterios adquiridos Para o amadorum fenocircmeno da natureza ou paisagem pode despertar o entusiasmo que falta aos jaacute

excessivamente familiarizados com o mundo da fotografia Aparecer como novo oudesgastado ser digno de admiraccedilatildeo ou relegado ao acircmbito do banal satildeo atributosque natildeo se resolvem unicamente numa apreciaccedilatildeo intriacutenseca da imagem mas quepelo contraacuterio apelam agrave instacircncia daquele que vecirc

Em Diante da dor dos outros Sontag formula em outros termos o problema ao depa-rar-se com questotildees semelhantes agraves jaacute inventariadas no iniacutecio deste artigo a saber odiagnoacutestico de um excesso de imagens impulsionado pela cultura do espetaacuteculo e orisco bem assinalado por Deleuze de que a fuga do clichecirc termine por desembocarna produccedilatildeo de um novo padratildeo

De fato eacute possiacutevel argumentar que tanto a demanda incessante pelo novo quanto oprazer encontrado na redundacircncia do clichecirc satildeo partes integrantes de certa modali-dade de apreensatildeo do real dada a centralidade desses dois regimes complementaresndash a novidade e a redundacircncia ndash para o universo da cultura do espetaacuteculo Daiacute porquea mobilizaccedilatildeo do clichecirc como artifiacutecio natildeo implica um afastamento do real mas uma

as fotos criam o belo e ndash ao longo de geraccedilotildees de fotoacutegrafos o esgotam Certasgloacuterias da natureza por exemplo foram simplesmente entregues agrave infatigaacutevelatenccedilatildeo de amadores aficionados da cacircmera Pessoas saturadas de imagens

tendem a achar piegas os pores-do-sol agora infelizmente eles se parecem de-mais com fotos (Sontag 2004 pp101-2 grifo nosso)

ldquoa beleza seraacute convulsiva ou natildeo seraacuterdquo proclamou Andreacute Breton Ele chamouesse ideal esteacutetico de ldquosurrealistardquo mas numa cultura radicalmente renovadapela ascendecircncia de valores mercantis pedir que as imagens abalem clamemdespertem parece antes um realismo elementar aleacutem de bom senso para negoacute-cios De que outro modo se pode obter atenccedilatildeo para um produto ou uma obrade arte De que outro modo deixar uma marca mais funda quando existe umaincessante exposiccedilatildeo a imagens vistas e revistas muitas vezes A imagem comochoque e a imagem como clichecirc satildeo dois aspectos da mesma presenccedila (Sontag2003 p24)

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apreciaccedilatildeo de segunda ordem como via de acesso natildeo-ingecircnuo agraves complexidades deum presente imerso nos fluxos incessantes de imagens na era do capitalismo tardio

Neste ponto podemos retomar as consideraccedilotildees sobre a inadequaccedilatildeo da noccedilatildeo deautenticidade para pensar as emoccedilotildees que satildeo acionadas mediante o clichecirc ndash ou in-versamente a adequaccedilatildeo do clichecirc para catalisar emoccedilotildees suscitadas e expressas no

seio do espetaacuteculo A cultura de mercado investe na estreita cumplicidade entre onovo e o jaacute visto entre o banal e o extraordinaacuterio entre a ilusatildeo do autecircntico e apotecircncia do falso E nisso a arte de Andy Warhol como bem assinalou Steven Shaviropermanece uma via privilegiada para acessar tais questionamentos por sua mobiliza-ccedilatildeo irocircnica dos clichecircs e tambeacutem sobretudo por sua ambivalecircncia quanto aos efeitosdessa loacutegica de mercado sobre os domiacutenios da arte

Para Jean Baudrillard (2006) a potecircncia das intervenccedilotildees de Warhol se existe estaacute emlevar a loacutegica do significante ao paroxismo da proliferaccedilatildeo e da exaustatildeo e com issoalccedilar as imagens ao seu maacuteximo grau de artificialismo Essa exacerbaccedilatildeo do artifiacutecioconfere outro estatuto para o clichecirc na medida em que radicaliza o seu esvaziamento

Eacute uma via distinta a trilhada por Chantal Akerman mas que guarda em comum essadimensatildeo do clichecirc como potente artifiacutecio Natildeo se trata de distanciar-se do clichecirc

para alcanccedilar um desvelamento daquilo que estaria encoberto por ele Ivone Mar-gulies observa a respeito dos musicais da realizadora que ldquoa ambiccedilatildeo desses filmeseacute algo distinto do anti-ilusionismo o que importa eacute que todo o peso da banalidadeseja reexperienciado por meio do clichecirc ndash que a banalidade recupere sua intensidaderepetitiva ou que ela exiba sua composiccedilatildeo claustrofoacutebicardquo (Margulies 1996 p188)Nesse aspecto especificamente encontramos um ponto de articulaccedilatildeo entre Warhole Akerman ainda que ambos alcancem efeitos tatildeo distintos no conjunto de sua obraTrata-se antes de colocar em movimento procedimentos que permitam escapar doimpasse entre o novo e o redundante entre o banal e o extraordinaacuterio entre o choquee a complacecircncia entre o estranhamento e o reconhecimento

Ainda segundo Margulies (Idem p212) se o clichecirc tem uma ldquohistoacuteria semacircnticardquo queo espectador eventualmente conhece seu histoacuterico pode natildeo obstante ser ldquobloquea-dordquo Tal bloqueio ocorreria em grande medida por meio da constituiccedilatildeo de uma seri-alidade De modo semelhante Darlene Pursley afirma que eacute a repeticcedilatildeo que ocasionanos filmes da realizadora ldquoa perda de todo sentidordquo cabendo ao espectador dotar oclichecirc por assim dizer de sua proacutepria ldquosingularidaderdquo e ldquocoloraccedilatildeo especialrdquo (Pursley2005 p1198)

Em casos como estes natildeo parece completamente adequado o contraponto que criacuteti-cas da cultura como aquelas propostas por Beatriz Sarlo alccedilam como resposta agrave pro-liferaccedilatildeo de regimes audiovisuais massivos Natildeo se trata aqui de fazer contrapor aldquodensidade semacircnticardquo de uma imagem (Sarlo 2004 p59) agrave repeticcedilatildeo veloz e seri-alizada de estiacutemulos audiovisuais que caracteriza por exemplo a televisatildeo De fato

as imagens de Warhol natildeo satildeo de modo algum banais pelo fato de constituiacuteremo reflexo de um mundo banal mas porque resultam da ausecircncia no sujeito detoda pretensatildeo de interpretaacute-lo resultam da elevaccedilatildeo da imagem agrave figuraccedilatildeopura sem a menor transfiguraccedilatildeo Assim portanto jaacute natildeo se trata de uma trans-cendecircncia mas do ganho de potecircncia do signo que perdendo toda significa-ccedilatildeo natural resplandece no vazio com toda sua luz artificial (Baudrillard 2006p38 traduccedilatildeo nossa)

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se ainda hoje algumas de suas observaccedilotildees demonstram relevacircncia e despertam in-teresse ndash chama-nos a atenccedilatildeo especialmente o fato de que para Sarlo as imagenslembradas seriam as que manifestam a capacidade de ldquofixar-se com o peso do icocircnicordquo(Sarlo 2004 62) ndash a forccedila de leituras criacuteticas como as que vecircm sendo propostas porSteven Shaviro Ivone Margulies e outros eacute justamente pensar a potecircncia das imagenssem recorrer a todo um encadeamento de paracircmetros como peso substacircncia densi-

dade profundidade

Para Warhol assim como para Akerman especialmente em suas comeacutedias musicaisda deacutecada de 1980 ndash e para persistirmos nos dois projetos esteacuteticos que guiaram al-gumas das reflexotildees aqui articuladas ndash a iconicidade das imagens se realiza em seuproacuteprio valor de superfiacutecie e assumindo o caraacuteter de segunda ordem das obras en-quanto partiacutecipes de um universo sensiacutevel disperso e multifacetado Aqui voltamosa insistir na potecircncia que adveacutem dessa possibilidade de acionar os repertoacuterios dosespectadores como mateacuteria a partir da qual a potecircncia criativa investe seus esforccedilosNo reconhecimento desse caraacuteter sobrecodificado da cultura natildeo estamos eacute verdademuito distantes das palavras de Nelson Brissac Peixoto

Nosso argumento eacute que conforme o percurso que vimos esboccedilando o esvaziamentodo significado pela via da repeticcedilatildeo natildeo constitui algo necessariamente negativo Se-gundo as leituras de Shaviro Margulies Schmid Gueroacuten e mesmo em certos aspec-tos Baudrillard a repeticcedilatildeo e os efeitos de superfiacutecie podem ser tambeacutem afirmativos

engendram relaccedilotildees e modos possiacuteveis de intervenccedilatildeo no real Por essa via embara-lham-se as categorias numa imagem-clichecirc que retorna convencional poreacutem atraves-sada por muacuteltiplos desvios reconheciacutevel poreacutem distorcida superficialmente legiacutevelporeacutem destituiacuteda de quaisquer sentidos estaacuteveis Vaga sensaccedilatildeo de jaacute visto nuncacompletamente jaacute assimilado posto que a proacutepria expectativa de entendimento pres-supotildee a existecircncia de um sentido que poderia ou natildeo ser captado mas que aqui girasobre si mesmo e se desfaz Compreender e processar um significado preexistenteimplicaria uma verticalizaccedilatildeo e um adensamento que satildeo frustrados pela proacutepria radi-cal superficialidade do artifiacutecio

Natildeo se trata de dizer que os clichecircs satildeo infinitamente remodelaacuteveis nem de redefini-los como paradoxalmente inexauriacuteveis A esse respeito eacute certeira a observaccedilatildeo deSarlo ldquoao elitismo das posiccedilotildees mais criacuteticas natildeo deveria opor-se uma inversatildeo simeacute-trica sob a forma de um neopopulismo seduzido pelos encantos da induacutestria culturalrdquo(Sarlo 2004 p65) Natildeo obstante para Sarlo a ldquorepeticcedilatildeo eacute uma maacutequina de produziruma suave felicidaderdquo (Sarlo 2004 p63) um deleite alcanccedilado pela via do apazigua-mento Caberia insistir no entanto e em favor mesmo das ressalvas colocadas dianteda dupla rejeiccedilatildeo ao ldquoelitismordquo e ao ldquoneopopulismo de mercadordquo que o prazer oriundoda relaccedilatildeo com a imagerie que marca nossa experiecircncia do contemporacircneo estaacutelonge de reduzir-se a uma suspensatildeo dos conflitos De fato um dos ganhos trazidospelas discussotildees sobre as formas do artifiacutecio na cultura e nas artes decorre justamenteda problematizaccedilatildeo de noccedilotildees demasiadamente unilaterais tais como o ldquoescapismordquoe a ldquofuga do realrdquo

nesse mundo de cenaacuterios e personagens tudo eacute imagerie Tem a consistecircnciade mito e imagem A cultura contemporacircnea eacute de segunda geraccedilatildeo onde ahistoacuteria a experiecircncia e os anseios de cada um satildeo moldados pela literaturaos quadrinhos o cinema e a TV Vidas em segundo grau Todas essas histoacuterias jaacuteforam vistas todos estes lugares visitados (Peixoto 1988 p362)

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O prazer do artifiacutecio natildeo consiste num suave apaziguamento mas em instalar-se namobilidade entre o reconhecimento e a frustraccedilatildeo dos modos estabelecidos de apre-ensatildeo sensiacutevel e dos esquemas de inteligibilidade Um modo de ler o mundo e umaconstante incerteza em relaccedilatildeo agravequilo que lemos Uma pergunta pelo que haacute de ile-giacutevel no que eacute supostamente oacutebvio bem como uma salutar suspeita diante das pre-tensotildees de ruptura quando esta arrisca tornar-se demasiadamente auto-importante

Talvez do artifiacutecio decorra um prazer hesitante certamente haacute nele um prazer que sealimenta da duacutevida

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Steven Shaviro (2007) tambeacutem discute o jaacute mencionado musical Golden eighties Natildeoobstante em sua anaacutelise a ecircnfase recai sobre os afetos e como eles afastam qualquerpretensatildeo de autenticidade na medida em que se tornam manifestos na obra a partirdo clichecirc Shaviro chama a atenccedilatildeo em seu artigo sobre o filme para a ldquoqualidadegeneacutericardquo que se estabelece como recurso para a constituiccedilatildeo de determinadas cenasna medida em que elas se fundam sobre uma seacuterie de elementos tiacutepicos a muacutesica

sobretudo mas tambeacutem os gestos e expressotildees faciais que tornam as emoccedilotildees mobi-lizadas pela peliacutecula imediatamente legiacuteveis

Conforme Shaviro se empenha tambeacutem em argumentar haacute pontos de contato quepermitem traccedilar correspondecircncias entre a arte modernista e a cultura de massa sendoo gecircnero musical uma forma privilegiada para discutir tal aproximaccedilatildeo Para ele tantoo projeto modernista quanto o projeto da MGM ldquodesfazem o dualismo que situaria asrepresentaccedilotildees em um lado de uma divisatildeo intransponiacutevel e as coisas que estatildeo sendorepresentadas no outrordquo (Shaviro 2007 p13) Ainda segundo o autor

Temos aqui uma perspectiva ainda mais incisiva que aquela de Guy Scarpetta umavez que ela natildeo situa o entrecruzamento de tais projetos em um momento posteriorde rearticulaccedilatildeo ndash que aleacutem do mais eacute localizado sobretudo na produccedilatildeo de diretoresem maior ou menor grau legitimados como autores ndash mas no cerne mesmo de cadauma das vertentes de criaccedilatildeo

O trabalho de elaboraccedilatildeo formal presente em artefatos culturais massivos apresentacaracteriacutesticas que Shaviro argutamente conecta agraves teorias do afeto a ausecircncia deprofundidade a inadequaccedilatildeo de qualquer noccedilatildeo de autenticidade e a potecircncia dacitaccedilatildeo como recurso para suscitar um engajamento afetivo De fato satildeo os termosdessa polarizaccedilatildeo autecircntico-falso que o autor trata de romper Daiacute porque pode serespecialmente produtivo seguir os argumentos do autor acerca da relevacircncia dos cli-checircs estereoacutetipos e citaccedilotildees para o entendimento das maneiras pelas quais a culturado espetaacuteculo investe sobre nossos afetos e emoccedilotildees2

Se as imagens podem mobilizar o afeto na direccedilatildeo de uma ruptura eacute verdade ainda

que elas frequentemente lidam com questotildees de inteligibilidade e de transmissibili-dade Natildeo conveacutem simplesmente deplorar tais processos como agentes de vulgar-izaccedilatildeo ou de reduccedilatildeo das potencialidades da imagem mas pelo contraacuterio discutirem que medida eles podem ser valiosos para discutir as passagens mediante as quaisos afetos se inscrevem no corpo e se traduzem em gestos performativos e signos cul-turais compartilhados Eacute exatamente esse aspecto que Shaviro enfatiza quando ob-serva que satildeo em grande medida os clichecircs que tornam o sentimento legiacutevel para noacutesnatildeo apenas na posiccedilatildeo de espectadores mas tambeacutem quando lidamos com aquelesmais supostamente autecircnticos os nossos proacuteprios

Segundo o autor ldquoa natureza convencional dos signos que indicam e comunicamsentimentosrdquo eacute aquilo que os torna compreensiacuteveis ldquonatildeo apenas para os outros mastambeacutem (e mesmo talvez mais crucialmente) para noacutes mesmosrdquo (Shaviro 2007 p15)

2 Em sua argumentaccedilatildeo Shaviro recorre ao afeto e agrave emoccedilatildeo como noccedilotildees correlatas e em certa medida intercambiaacuteveis

Akerman descobre o ponto preciso onde MGM e modernismo satildeo indiscerniacuteveis

Ela recapitula o ideal esteacutetico moderno da unidade de forma e conteuacutedo masseu insight poacutes-modernista consiste em reconhecer que esta unidade eacute jaacute elamesma uma construccedilatildeo das forccedilas do entretenimento da moda e do comeacutercio(Shaviro 2007 p13 traduccedilatildeo nossa)

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Aqui ele parece se esforccedilar para deixar claro que os signos convencionais natildeo atuamapenas no processo da elaboraccedilatildeo cultural de formas que significam e expressam osafetos mas que a citacionalidade3 eacute inseparaacutevel da maneira como estes se manifes-tam corporalmente O teoacuterico eacute incisivo em relaccedilatildeo a esse aspecto ldquoEu gostaria desugerir que haacute um sentido em que o afeto soacute eacute lsquoverdadeirorsquo quando eacute uma citaccedilatildeo umlsquocomo sersquordquo (Shaviro 2007 p16)

Posicionamento semelhante jaacute havia sido elaborado em texto anterior no qual o au-tor busca definir os contornos daquilo que poderia ser entendido como uma ldquoemoccedilatildeopoacutes-modernardquo especialmente quando consideramos artefatos culturais que jaacute seencontram intensamente imbricados na loacutegica da mercadoria Acionando a figurade Andy Warhol Shaviro (2004) traz para primeiro plano uma gama de manifesta-ccedilotildees corporais artiacutesticas e performativas que jogam com o artifiacutecio para realccedilar umaemoccedilatildeo que natildeo pode ser expressa senatildeo por meio da ironia da auto-reflexividade eda teatralizaccedilatildeo enfim de um exacerbado esteticismo

Lugar de destaque neste processo cabe agrave televisatildeo ndash que com sua assemblage deformas e conteuacutedos diversos termina por criar as condiccedilotildees para uma espectatori-alidade desprovida de interesse ou de forte engajamento ndash e tambeacutem ao cinema noqual o artifiacutecio pelo contraacuterio suscitaria uma espeacutecie de intensificaccedilatildeo dos afetos soba forma de uma qualidade de resposta maior que aquela vivenciada nas circunstacircn-cias supostamente mais ldquoreaisrdquo do que nos acontece fora da tela

Natildeo se trata apenas do fato de que as emoccedilotildees no cinema sejam mais claramentevisiacuteveis O que a declaraccedilatildeo de Warhol citada por Shaviro sugere eacute a constituiccedilatildeo decondiccedilotildees tais que a emoccedilatildeo pode repercutir corporalmente de maneira exacerbadaWarhol assim natildeo deixa de descrever uma postura de acordo com a qual a indife-renccedila agravequilo que acontece agrave sua volta e por outro lado a paixatildeo por certas formas es-teacuteticas satildeo as duas facetas daquilo que viria constituir uma espeacutecie de neodandismoNesta forma peculiar de self-fashioning os novos meios da eacutepoca ocupam portantoposiccedilatildeo especial como operadores de uma pedagogia O ponto de inflexatildeo que de-marca a constituiccedilatildeo das jaacute mencionadas dobras sobre as emoccedilotildees ndash auto-reflexivi-

dade ironia teatralizaccedilatildeo ndash e que seriam impossiacuteveis de serem desvencilhadas dosmodos pelos quais tais emoccedilotildees satildeo elaboradas visivelmente seria portanto a novacultura midiaacutetica que segundo Warhol teria ldquomatadordquo suas emoccedilotildees

Shaviro retoma o modo como Warhol ldquofabrica uma sensibilidade e um estilordquo (Shaviro2004 p125) para pensar como as emoccedilotildees se pareceriam no contexto cultural queveio a ser chamado de poacutes-moderno Neste ponto eacute a figura de Marilyn Monroe ndash elamesma convertida num clichecirc mediante as ceacutelebres silkscreens que reproduzem eserializam o seu rosto ndash que retorna para sintetizar essa nova sensibilidade

3 Assim como se diz que o gesto de um corpo se constitui sendo passiacutevel de remeter a outros gestos ndash ideia que o conceito de per-formatividade nos permite formular ndash e assim como um discurso em certa medida cita e replica outros a partir dos termos mesmosem que eacute enunciado ndash citacionalidade iterabilidade ndash poderiacuteamos dizer que uma cena cita e desdobra outras cenas num acuacutemuloque o repertoacuterio do cinema e de outros meios torna possiacutevel Sobre os conceitos de performatividade citacionalidade e iterabili-dade ver Loxley (2007) Sobre citacionalidade e iterabilidade no cinema ver Wills (1998)

Embora Warhol amasse os filmes tanto quanto ele amava a TV ele natildeo diz queos filmes ajudaram a acabar com sua vida emocional De fato eacute bem o contraacuterioldquoos filmes fazem as emoccedilotildees parecerem tatildeo fortes e reais ao passo que quandoas coisas acontecem para vocecirc eacute como ver televisatildeo ndash vocecirc natildeo sente nadardquo(Shaviro 2004 p127 traduccedilatildeo nossa)

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em suma os retratos de Marilyn feitos por Warhol satildeo assustadoramente sem a-feto [affectless ] desprovidos de qualquer resposta emocional para a sua mortePelo contraacuterio eles demonstram a impossibilidade de tal resposta Pois a mortede Marilyn eacute a morte da emoccedilatildeo elas constituem um e o mesmo evento (Sha-viro 2004 p135 traduccedilatildeo nossa)

O que eacute curioso no modo como Shaviro recorre agraves declaraccedilotildees de Warhol sobre a

televisatildeo e o gravador ou mesmo sobre a relaccedilatildeo com a morte nesse contexto eacute queao endossaacute-las o teoacuterico vincula essa suposta morte das emoccedilotildees agrave ideia de umaperda de intensidade afetiva operada pela superficialidade e pela desdiferenciaccedilatildeodos meios Trata-se de uma proposiccedilatildeo estranha na medida em que no conceito deafeto ndash com o qual Shaviro faz alternar em seu texto a emoccedilatildeo e por vezes ateacute o sen-timento ndash a noccedilatildeo de profundidade quando formulada tomando o ponto de vista deum sujeito que o experienciaria eacute desde sempre afastada ou pelo menos colocadasob suspeita

Ao mesmo tempo eacute como se Shaviro tomasse a ironia e o distanciamento de que sereveste a ideia de uma ldquomorte das emoccedilotildeesrdquo pelo seu valor de face passando ao largodo artifiacutecio que eacute justamente aquilo que caracterizaria essa forma de esteticismo ouseja ignorando no artifiacutecio aquilo que ele deixa entrever somente a partir de umasofisticada elaboraccedilatildeo Tal questionamento eacute relevante especialmente porque con-forme o proacuteprio Shaviro faz notar a resistecircncia de Warhol em lidar com a questatildeo damorte longe de denotar indiferenccedila expressa uma dificuldade de processar o caraacuteterexcessivo inassimilaacutevel e traumaacutetico desse acontecimento Warhol segundo Shaviro(2004 p135) ficaria sem palavras diante da morte assumindo uma posiccedilatildeo de ca-tegoacuterica recusa quanto agrave sua elaboraccedilatildeo

Para ser mais preciso eacute como se a argumentaccedilatildeo de Shaviro nesse texto oscilasse

entre a convicccedilatildeo de que a autenticidade natildeo exerce funccedilatildeo alguma nesse debatenatildeo devendo assim sequer ser levantada como valor relevante ao mesmo tempo emque persiste a sugestatildeo de que haacute algo que se perdeu em relaccedilatildeo a algum momentoanterior Eacute sintomaacutetico portanto que o artigo de Shaviro recorra a uma intrincada enem sempre muito clara oscilaccedilatildeo entre proposiccedilotildees tais como ldquomorte da emoccedilatildeordquoldquoemoccedilatildeo poacutes-modernardquo ldquoemoccedilatildeo esvaziada de afetordquo e emoccedilatildeo revestida de artifiacutecioque eacute aquela agrave qual ele clama ao final de sua argumentaccedilatildeo Tudo leva a crer que Sha-viro se esforccedila afinal para avanccedilar em direccedilatildeo a uma proposiccedilatildeo que investe sobreos afetos naquilo que eles tecircm de impessoais no modo como operam na superfiacuteciepelas sensaccedilotildees e inclusive mediante contaacutegio a fim de elaborar esteticamente tais

qualidades pela via do artifiacutecio4

Dentre outros aspectos o que esta produtiva discussatildeo levantada por Shaviro expli-cita eacute a compreensatildeo de que se existe um estatuto especiacutefico do afeto e das emoccedilotildeesno poacutes-moderno isso se daacute menos pela perda da ancoragem em subjetividades decontornos bem definidos algo que natildeo eacute caracteriacutestico apenas de uma eacutepoca ou estaacute-gio da cultura e mais pela potencializaccedilatildeo de aspectos tais como a transpessoalidadee a superficialidade alcanccedilada pela via de uma exacerbaccedilatildeo do jogo com as formasda pose e tambeacutem da indiferenccedila aos limites entre o falso e o autecircntico Nestes ter-mos o artifiacutecio natildeo seria o recurso pelo qual se expressam emoccedilotildees desprovidas deafeto mas a ocasiatildeo em que a emoccedilatildeo se expressa intensamente como afetaccedilatildeo Soacuteassim seria possiacutevel reivindicar ldquosentimentos que satildeo irreverentes perversos excecircntri-cos perdulaacuterios fuacuteteis extravagantes disfuncionais e ridiacuteculosrdquo (Shaviro 2004 p140)

4 Suas menccedilotildees ao camp agraves drag queens e agrave noccedilatildeo warholiana da ldquoperformance ruimrdquo embasam este entendimento

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Temos desse modo uma espeacutecie de dobra que investe nos afetos justamente parasobrecodificaacute-los replicaacute-los explorar seus efeitos e derivaccedilotildees e na qual o clichecirc as-sumiria um papel central recolocando a pergunta pela relaccedilatildeo que travamos com asimagens e o tipo de resposta que elas suscitam

3 Entre o prazer e o distanciamento o artifiacutecio

Como dito anteriormente os debates em torno do clichecirc giram em grande medidaem torno da capacidade ndash sempre variaacutevel ndash que uma imagem teria de apresentar-secomo nova ou pelo contraacuterio de mostrar-se jaacute exaurida na sua capacidade de desper-tar uma reaccedilatildeo vivaz no espectador Susan Sontag dedicou-se a discutir essa capaci-dade de reaccedilatildeo principalmente por duas vias a contemplaccedilatildeo (pela beleza) ou o es-panto (pelo choque pela crueza ou pela violecircncia) Em seu ensaio Sobre a fotografia Sontag observa tomando um exemplo que pode soar ainda mais familiar em temposde popularizaccedilatildeo de dispositivos de captaccedilatildeo digital e de muacuteltiplas plataformas deexibiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de imagens

Vale a pena chamar a atenccedilatildeo aqui mais uma vez para a compreensatildeo de que o es-gotamento de um tema natildeo deixa de estar em certa medida condicionado ao proacutepriohistoacuterico das relaccedilotildees travadas entre a pessoa que olha e as imagens Em outras pa-lavras o efeito de desgaste varia segundo os repertoacuterios adquiridos Para o amadorum fenocircmeno da natureza ou paisagem pode despertar o entusiasmo que falta aos jaacute

excessivamente familiarizados com o mundo da fotografia Aparecer como novo oudesgastado ser digno de admiraccedilatildeo ou relegado ao acircmbito do banal satildeo atributosque natildeo se resolvem unicamente numa apreciaccedilatildeo intriacutenseca da imagem mas quepelo contraacuterio apelam agrave instacircncia daquele que vecirc

Em Diante da dor dos outros Sontag formula em outros termos o problema ao depa-rar-se com questotildees semelhantes agraves jaacute inventariadas no iniacutecio deste artigo a saber odiagnoacutestico de um excesso de imagens impulsionado pela cultura do espetaacuteculo e orisco bem assinalado por Deleuze de que a fuga do clichecirc termine por desembocarna produccedilatildeo de um novo padratildeo

De fato eacute possiacutevel argumentar que tanto a demanda incessante pelo novo quanto oprazer encontrado na redundacircncia do clichecirc satildeo partes integrantes de certa modali-dade de apreensatildeo do real dada a centralidade desses dois regimes complementaresndash a novidade e a redundacircncia ndash para o universo da cultura do espetaacuteculo Daiacute porquea mobilizaccedilatildeo do clichecirc como artifiacutecio natildeo implica um afastamento do real mas uma

as fotos criam o belo e ndash ao longo de geraccedilotildees de fotoacutegrafos o esgotam Certasgloacuterias da natureza por exemplo foram simplesmente entregues agrave infatigaacutevelatenccedilatildeo de amadores aficionados da cacircmera Pessoas saturadas de imagens

tendem a achar piegas os pores-do-sol agora infelizmente eles se parecem de-mais com fotos (Sontag 2004 pp101-2 grifo nosso)

ldquoa beleza seraacute convulsiva ou natildeo seraacuterdquo proclamou Andreacute Breton Ele chamouesse ideal esteacutetico de ldquosurrealistardquo mas numa cultura radicalmente renovadapela ascendecircncia de valores mercantis pedir que as imagens abalem clamemdespertem parece antes um realismo elementar aleacutem de bom senso para negoacute-cios De que outro modo se pode obter atenccedilatildeo para um produto ou uma obrade arte De que outro modo deixar uma marca mais funda quando existe umaincessante exposiccedilatildeo a imagens vistas e revistas muitas vezes A imagem comochoque e a imagem como clichecirc satildeo dois aspectos da mesma presenccedila (Sontag2003 p24)

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apreciaccedilatildeo de segunda ordem como via de acesso natildeo-ingecircnuo agraves complexidades deum presente imerso nos fluxos incessantes de imagens na era do capitalismo tardio

Neste ponto podemos retomar as consideraccedilotildees sobre a inadequaccedilatildeo da noccedilatildeo deautenticidade para pensar as emoccedilotildees que satildeo acionadas mediante o clichecirc ndash ou in-versamente a adequaccedilatildeo do clichecirc para catalisar emoccedilotildees suscitadas e expressas no

seio do espetaacuteculo A cultura de mercado investe na estreita cumplicidade entre onovo e o jaacute visto entre o banal e o extraordinaacuterio entre a ilusatildeo do autecircntico e apotecircncia do falso E nisso a arte de Andy Warhol como bem assinalou Steven Shaviropermanece uma via privilegiada para acessar tais questionamentos por sua mobiliza-ccedilatildeo irocircnica dos clichecircs e tambeacutem sobretudo por sua ambivalecircncia quanto aos efeitosdessa loacutegica de mercado sobre os domiacutenios da arte

Para Jean Baudrillard (2006) a potecircncia das intervenccedilotildees de Warhol se existe estaacute emlevar a loacutegica do significante ao paroxismo da proliferaccedilatildeo e da exaustatildeo e com issoalccedilar as imagens ao seu maacuteximo grau de artificialismo Essa exacerbaccedilatildeo do artifiacutecioconfere outro estatuto para o clichecirc na medida em que radicaliza o seu esvaziamento

Eacute uma via distinta a trilhada por Chantal Akerman mas que guarda em comum essadimensatildeo do clichecirc como potente artifiacutecio Natildeo se trata de distanciar-se do clichecirc

para alcanccedilar um desvelamento daquilo que estaria encoberto por ele Ivone Mar-gulies observa a respeito dos musicais da realizadora que ldquoa ambiccedilatildeo desses filmeseacute algo distinto do anti-ilusionismo o que importa eacute que todo o peso da banalidadeseja reexperienciado por meio do clichecirc ndash que a banalidade recupere sua intensidaderepetitiva ou que ela exiba sua composiccedilatildeo claustrofoacutebicardquo (Margulies 1996 p188)Nesse aspecto especificamente encontramos um ponto de articulaccedilatildeo entre Warhole Akerman ainda que ambos alcancem efeitos tatildeo distintos no conjunto de sua obraTrata-se antes de colocar em movimento procedimentos que permitam escapar doimpasse entre o novo e o redundante entre o banal e o extraordinaacuterio entre o choquee a complacecircncia entre o estranhamento e o reconhecimento

Ainda segundo Margulies (Idem p212) se o clichecirc tem uma ldquohistoacuteria semacircnticardquo queo espectador eventualmente conhece seu histoacuterico pode natildeo obstante ser ldquobloquea-dordquo Tal bloqueio ocorreria em grande medida por meio da constituiccedilatildeo de uma seri-alidade De modo semelhante Darlene Pursley afirma que eacute a repeticcedilatildeo que ocasionanos filmes da realizadora ldquoa perda de todo sentidordquo cabendo ao espectador dotar oclichecirc por assim dizer de sua proacutepria ldquosingularidaderdquo e ldquocoloraccedilatildeo especialrdquo (Pursley2005 p1198)

Em casos como estes natildeo parece completamente adequado o contraponto que criacuteti-cas da cultura como aquelas propostas por Beatriz Sarlo alccedilam como resposta agrave pro-liferaccedilatildeo de regimes audiovisuais massivos Natildeo se trata aqui de fazer contrapor aldquodensidade semacircnticardquo de uma imagem (Sarlo 2004 p59) agrave repeticcedilatildeo veloz e seri-alizada de estiacutemulos audiovisuais que caracteriza por exemplo a televisatildeo De fato

as imagens de Warhol natildeo satildeo de modo algum banais pelo fato de constituiacuteremo reflexo de um mundo banal mas porque resultam da ausecircncia no sujeito detoda pretensatildeo de interpretaacute-lo resultam da elevaccedilatildeo da imagem agrave figuraccedilatildeopura sem a menor transfiguraccedilatildeo Assim portanto jaacute natildeo se trata de uma trans-cendecircncia mas do ganho de potecircncia do signo que perdendo toda significa-ccedilatildeo natural resplandece no vazio com toda sua luz artificial (Baudrillard 2006p38 traduccedilatildeo nossa)

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se ainda hoje algumas de suas observaccedilotildees demonstram relevacircncia e despertam in-teresse ndash chama-nos a atenccedilatildeo especialmente o fato de que para Sarlo as imagenslembradas seriam as que manifestam a capacidade de ldquofixar-se com o peso do icocircnicordquo(Sarlo 2004 62) ndash a forccedila de leituras criacuteticas como as que vecircm sendo propostas porSteven Shaviro Ivone Margulies e outros eacute justamente pensar a potecircncia das imagenssem recorrer a todo um encadeamento de paracircmetros como peso substacircncia densi-

dade profundidade

Para Warhol assim como para Akerman especialmente em suas comeacutedias musicaisda deacutecada de 1980 ndash e para persistirmos nos dois projetos esteacuteticos que guiaram al-gumas das reflexotildees aqui articuladas ndash a iconicidade das imagens se realiza em seuproacuteprio valor de superfiacutecie e assumindo o caraacuteter de segunda ordem das obras en-quanto partiacutecipes de um universo sensiacutevel disperso e multifacetado Aqui voltamosa insistir na potecircncia que adveacutem dessa possibilidade de acionar os repertoacuterios dosespectadores como mateacuteria a partir da qual a potecircncia criativa investe seus esforccedilosNo reconhecimento desse caraacuteter sobrecodificado da cultura natildeo estamos eacute verdademuito distantes das palavras de Nelson Brissac Peixoto

Nosso argumento eacute que conforme o percurso que vimos esboccedilando o esvaziamentodo significado pela via da repeticcedilatildeo natildeo constitui algo necessariamente negativo Se-gundo as leituras de Shaviro Margulies Schmid Gueroacuten e mesmo em certos aspec-tos Baudrillard a repeticcedilatildeo e os efeitos de superfiacutecie podem ser tambeacutem afirmativos

engendram relaccedilotildees e modos possiacuteveis de intervenccedilatildeo no real Por essa via embara-lham-se as categorias numa imagem-clichecirc que retorna convencional poreacutem atraves-sada por muacuteltiplos desvios reconheciacutevel poreacutem distorcida superficialmente legiacutevelporeacutem destituiacuteda de quaisquer sentidos estaacuteveis Vaga sensaccedilatildeo de jaacute visto nuncacompletamente jaacute assimilado posto que a proacutepria expectativa de entendimento pres-supotildee a existecircncia de um sentido que poderia ou natildeo ser captado mas que aqui girasobre si mesmo e se desfaz Compreender e processar um significado preexistenteimplicaria uma verticalizaccedilatildeo e um adensamento que satildeo frustrados pela proacutepria radi-cal superficialidade do artifiacutecio

Natildeo se trata de dizer que os clichecircs satildeo infinitamente remodelaacuteveis nem de redefini-los como paradoxalmente inexauriacuteveis A esse respeito eacute certeira a observaccedilatildeo deSarlo ldquoao elitismo das posiccedilotildees mais criacuteticas natildeo deveria opor-se uma inversatildeo simeacute-trica sob a forma de um neopopulismo seduzido pelos encantos da induacutestria culturalrdquo(Sarlo 2004 p65) Natildeo obstante para Sarlo a ldquorepeticcedilatildeo eacute uma maacutequina de produziruma suave felicidaderdquo (Sarlo 2004 p63) um deleite alcanccedilado pela via do apazigua-mento Caberia insistir no entanto e em favor mesmo das ressalvas colocadas dianteda dupla rejeiccedilatildeo ao ldquoelitismordquo e ao ldquoneopopulismo de mercadordquo que o prazer oriundoda relaccedilatildeo com a imagerie que marca nossa experiecircncia do contemporacircneo estaacutelonge de reduzir-se a uma suspensatildeo dos conflitos De fato um dos ganhos trazidospelas discussotildees sobre as formas do artifiacutecio na cultura e nas artes decorre justamenteda problematizaccedilatildeo de noccedilotildees demasiadamente unilaterais tais como o ldquoescapismordquoe a ldquofuga do realrdquo

nesse mundo de cenaacuterios e personagens tudo eacute imagerie Tem a consistecircnciade mito e imagem A cultura contemporacircnea eacute de segunda geraccedilatildeo onde ahistoacuteria a experiecircncia e os anseios de cada um satildeo moldados pela literaturaos quadrinhos o cinema e a TV Vidas em segundo grau Todas essas histoacuterias jaacuteforam vistas todos estes lugares visitados (Peixoto 1988 p362)

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O prazer do artifiacutecio natildeo consiste num suave apaziguamento mas em instalar-se namobilidade entre o reconhecimento e a frustraccedilatildeo dos modos estabelecidos de apre-ensatildeo sensiacutevel e dos esquemas de inteligibilidade Um modo de ler o mundo e umaconstante incerteza em relaccedilatildeo agravequilo que lemos Uma pergunta pelo que haacute de ile-giacutevel no que eacute supostamente oacutebvio bem como uma salutar suspeita diante das pre-tensotildees de ruptura quando esta arrisca tornar-se demasiadamente auto-importante

Talvez do artifiacutecio decorra um prazer hesitante certamente haacute nele um prazer que sealimenta da duacutevida

Referecircncias bibliograacutecas

BAUDRILLARD Jean El complot del arte ilusioacuten y desilusioacuten esteacuteticas Buenos Aires Madrid Amor-rortu Editores 2006DELEUZE Gilles A imagem-tempo Traduccedilatildeo de Eloisa de Arauacutejo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007DELEUZE Gilles GUATTARI Feacutelix ldquoPercepto afecto e conceitordquo In O que eacute a filosofia Rio de JaneiroEd 34 Coleccedilatildeo Trans 1992 p 211-255GUEROacuteN Rodrigo Da imagem ao clichecirc do clichecirc agrave imagem Deleuze cinema e pensamento Riode Janeiro NAU Editora 2011

JAMESON Fredric Poacutes-modernismo a loacutegica cultural do capitalismo tardio Satildeo Paulo EditoraAacutetica 2ordf ed 2007JOLY Martine Introduccedilatildeo agrave anaacutelise das imagens Campinas SP Papirus Editora 2004LOXLEY James Performativity London and New York Routledge New Critical Idiom 2007MARGULIES Ivone Nothing happens Chantal Akermanrsquos Hyperrealist Everyday Duke UniversityPress Durham and London 1996PEIXOTO Nelson Brissac ldquoO olhar do estrangeirordquo In NOVAES Adauto (org) O olhar Satildeo PauloCompanhia das Letras 1988 p361-365PHILIPPON Alain Fragments bruxelois entretien avec Chantal Akerman Cahiers du cineacutema 3411982 p 19-23PURSLEY Darlene Moving in time Chantal Akermanrsquos Toute une nuit MLN Volume 120 Number5 December 2005 (Comparative Literature Issue) p 1192-1205

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Press 1998 p147-161

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Aqui ele parece se esforccedilar para deixar claro que os signos convencionais natildeo atuamapenas no processo da elaboraccedilatildeo cultural de formas que significam e expressam osafetos mas que a citacionalidade3 eacute inseparaacutevel da maneira como estes se manifes-tam corporalmente O teoacuterico eacute incisivo em relaccedilatildeo a esse aspecto ldquoEu gostaria desugerir que haacute um sentido em que o afeto soacute eacute lsquoverdadeirorsquo quando eacute uma citaccedilatildeo umlsquocomo sersquordquo (Shaviro 2007 p16)

Posicionamento semelhante jaacute havia sido elaborado em texto anterior no qual o au-tor busca definir os contornos daquilo que poderia ser entendido como uma ldquoemoccedilatildeopoacutes-modernardquo especialmente quando consideramos artefatos culturais que jaacute seencontram intensamente imbricados na loacutegica da mercadoria Acionando a figurade Andy Warhol Shaviro (2004) traz para primeiro plano uma gama de manifesta-ccedilotildees corporais artiacutesticas e performativas que jogam com o artifiacutecio para realccedilar umaemoccedilatildeo que natildeo pode ser expressa senatildeo por meio da ironia da auto-reflexividade eda teatralizaccedilatildeo enfim de um exacerbado esteticismo

Lugar de destaque neste processo cabe agrave televisatildeo ndash que com sua assemblage deformas e conteuacutedos diversos termina por criar as condiccedilotildees para uma espectatori-alidade desprovida de interesse ou de forte engajamento ndash e tambeacutem ao cinema noqual o artifiacutecio pelo contraacuterio suscitaria uma espeacutecie de intensificaccedilatildeo dos afetos soba forma de uma qualidade de resposta maior que aquela vivenciada nas circunstacircn-cias supostamente mais ldquoreaisrdquo do que nos acontece fora da tela

Natildeo se trata apenas do fato de que as emoccedilotildees no cinema sejam mais claramentevisiacuteveis O que a declaraccedilatildeo de Warhol citada por Shaviro sugere eacute a constituiccedilatildeo decondiccedilotildees tais que a emoccedilatildeo pode repercutir corporalmente de maneira exacerbadaWarhol assim natildeo deixa de descrever uma postura de acordo com a qual a indife-renccedila agravequilo que acontece agrave sua volta e por outro lado a paixatildeo por certas formas es-teacuteticas satildeo as duas facetas daquilo que viria constituir uma espeacutecie de neodandismoNesta forma peculiar de self-fashioning os novos meios da eacutepoca ocupam portantoposiccedilatildeo especial como operadores de uma pedagogia O ponto de inflexatildeo que de-marca a constituiccedilatildeo das jaacute mencionadas dobras sobre as emoccedilotildees ndash auto-reflexivi-

dade ironia teatralizaccedilatildeo ndash e que seriam impossiacuteveis de serem desvencilhadas dosmodos pelos quais tais emoccedilotildees satildeo elaboradas visivelmente seria portanto a novacultura midiaacutetica que segundo Warhol teria ldquomatadordquo suas emoccedilotildees

Shaviro retoma o modo como Warhol ldquofabrica uma sensibilidade e um estilordquo (Shaviro2004 p125) para pensar como as emoccedilotildees se pareceriam no contexto cultural queveio a ser chamado de poacutes-moderno Neste ponto eacute a figura de Marilyn Monroe ndash elamesma convertida num clichecirc mediante as ceacutelebres silkscreens que reproduzem eserializam o seu rosto ndash que retorna para sintetizar essa nova sensibilidade

3 Assim como se diz que o gesto de um corpo se constitui sendo passiacutevel de remeter a outros gestos ndash ideia que o conceito de per-formatividade nos permite formular ndash e assim como um discurso em certa medida cita e replica outros a partir dos termos mesmosem que eacute enunciado ndash citacionalidade iterabilidade ndash poderiacuteamos dizer que uma cena cita e desdobra outras cenas num acuacutemuloque o repertoacuterio do cinema e de outros meios torna possiacutevel Sobre os conceitos de performatividade citacionalidade e iterabili-dade ver Loxley (2007) Sobre citacionalidade e iterabilidade no cinema ver Wills (1998)

Embora Warhol amasse os filmes tanto quanto ele amava a TV ele natildeo diz queos filmes ajudaram a acabar com sua vida emocional De fato eacute bem o contraacuterioldquoos filmes fazem as emoccedilotildees parecerem tatildeo fortes e reais ao passo que quandoas coisas acontecem para vocecirc eacute como ver televisatildeo ndash vocecirc natildeo sente nadardquo(Shaviro 2004 p127 traduccedilatildeo nossa)

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em suma os retratos de Marilyn feitos por Warhol satildeo assustadoramente sem a-feto [affectless ] desprovidos de qualquer resposta emocional para a sua mortePelo contraacuterio eles demonstram a impossibilidade de tal resposta Pois a mortede Marilyn eacute a morte da emoccedilatildeo elas constituem um e o mesmo evento (Sha-viro 2004 p135 traduccedilatildeo nossa)

O que eacute curioso no modo como Shaviro recorre agraves declaraccedilotildees de Warhol sobre a

televisatildeo e o gravador ou mesmo sobre a relaccedilatildeo com a morte nesse contexto eacute queao endossaacute-las o teoacuterico vincula essa suposta morte das emoccedilotildees agrave ideia de umaperda de intensidade afetiva operada pela superficialidade e pela desdiferenciaccedilatildeodos meios Trata-se de uma proposiccedilatildeo estranha na medida em que no conceito deafeto ndash com o qual Shaviro faz alternar em seu texto a emoccedilatildeo e por vezes ateacute o sen-timento ndash a noccedilatildeo de profundidade quando formulada tomando o ponto de vista deum sujeito que o experienciaria eacute desde sempre afastada ou pelo menos colocadasob suspeita

Ao mesmo tempo eacute como se Shaviro tomasse a ironia e o distanciamento de que sereveste a ideia de uma ldquomorte das emoccedilotildeesrdquo pelo seu valor de face passando ao largodo artifiacutecio que eacute justamente aquilo que caracterizaria essa forma de esteticismo ouseja ignorando no artifiacutecio aquilo que ele deixa entrever somente a partir de umasofisticada elaboraccedilatildeo Tal questionamento eacute relevante especialmente porque con-forme o proacuteprio Shaviro faz notar a resistecircncia de Warhol em lidar com a questatildeo damorte longe de denotar indiferenccedila expressa uma dificuldade de processar o caraacuteterexcessivo inassimilaacutevel e traumaacutetico desse acontecimento Warhol segundo Shaviro(2004 p135) ficaria sem palavras diante da morte assumindo uma posiccedilatildeo de ca-tegoacuterica recusa quanto agrave sua elaboraccedilatildeo

Para ser mais preciso eacute como se a argumentaccedilatildeo de Shaviro nesse texto oscilasse

entre a convicccedilatildeo de que a autenticidade natildeo exerce funccedilatildeo alguma nesse debatenatildeo devendo assim sequer ser levantada como valor relevante ao mesmo tempo emque persiste a sugestatildeo de que haacute algo que se perdeu em relaccedilatildeo a algum momentoanterior Eacute sintomaacutetico portanto que o artigo de Shaviro recorra a uma intrincada enem sempre muito clara oscilaccedilatildeo entre proposiccedilotildees tais como ldquomorte da emoccedilatildeordquoldquoemoccedilatildeo poacutes-modernardquo ldquoemoccedilatildeo esvaziada de afetordquo e emoccedilatildeo revestida de artifiacutecioque eacute aquela agrave qual ele clama ao final de sua argumentaccedilatildeo Tudo leva a crer que Sha-viro se esforccedila afinal para avanccedilar em direccedilatildeo a uma proposiccedilatildeo que investe sobreos afetos naquilo que eles tecircm de impessoais no modo como operam na superfiacuteciepelas sensaccedilotildees e inclusive mediante contaacutegio a fim de elaborar esteticamente tais

qualidades pela via do artifiacutecio4

Dentre outros aspectos o que esta produtiva discussatildeo levantada por Shaviro expli-cita eacute a compreensatildeo de que se existe um estatuto especiacutefico do afeto e das emoccedilotildeesno poacutes-moderno isso se daacute menos pela perda da ancoragem em subjetividades decontornos bem definidos algo que natildeo eacute caracteriacutestico apenas de uma eacutepoca ou estaacute-gio da cultura e mais pela potencializaccedilatildeo de aspectos tais como a transpessoalidadee a superficialidade alcanccedilada pela via de uma exacerbaccedilatildeo do jogo com as formasda pose e tambeacutem da indiferenccedila aos limites entre o falso e o autecircntico Nestes ter-mos o artifiacutecio natildeo seria o recurso pelo qual se expressam emoccedilotildees desprovidas deafeto mas a ocasiatildeo em que a emoccedilatildeo se expressa intensamente como afetaccedilatildeo Soacuteassim seria possiacutevel reivindicar ldquosentimentos que satildeo irreverentes perversos excecircntri-cos perdulaacuterios fuacuteteis extravagantes disfuncionais e ridiacuteculosrdquo (Shaviro 2004 p140)

4 Suas menccedilotildees ao camp agraves drag queens e agrave noccedilatildeo warholiana da ldquoperformance ruimrdquo embasam este entendimento

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Temos desse modo uma espeacutecie de dobra que investe nos afetos justamente parasobrecodificaacute-los replicaacute-los explorar seus efeitos e derivaccedilotildees e na qual o clichecirc as-sumiria um papel central recolocando a pergunta pela relaccedilatildeo que travamos com asimagens e o tipo de resposta que elas suscitam

3 Entre o prazer e o distanciamento o artifiacutecio

Como dito anteriormente os debates em torno do clichecirc giram em grande medidaem torno da capacidade ndash sempre variaacutevel ndash que uma imagem teria de apresentar-secomo nova ou pelo contraacuterio de mostrar-se jaacute exaurida na sua capacidade de desper-tar uma reaccedilatildeo vivaz no espectador Susan Sontag dedicou-se a discutir essa capaci-dade de reaccedilatildeo principalmente por duas vias a contemplaccedilatildeo (pela beleza) ou o es-panto (pelo choque pela crueza ou pela violecircncia) Em seu ensaio Sobre a fotografia Sontag observa tomando um exemplo que pode soar ainda mais familiar em temposde popularizaccedilatildeo de dispositivos de captaccedilatildeo digital e de muacuteltiplas plataformas deexibiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de imagens

Vale a pena chamar a atenccedilatildeo aqui mais uma vez para a compreensatildeo de que o es-gotamento de um tema natildeo deixa de estar em certa medida condicionado ao proacutepriohistoacuterico das relaccedilotildees travadas entre a pessoa que olha e as imagens Em outras pa-lavras o efeito de desgaste varia segundo os repertoacuterios adquiridos Para o amadorum fenocircmeno da natureza ou paisagem pode despertar o entusiasmo que falta aos jaacute

excessivamente familiarizados com o mundo da fotografia Aparecer como novo oudesgastado ser digno de admiraccedilatildeo ou relegado ao acircmbito do banal satildeo atributosque natildeo se resolvem unicamente numa apreciaccedilatildeo intriacutenseca da imagem mas quepelo contraacuterio apelam agrave instacircncia daquele que vecirc

Em Diante da dor dos outros Sontag formula em outros termos o problema ao depa-rar-se com questotildees semelhantes agraves jaacute inventariadas no iniacutecio deste artigo a saber odiagnoacutestico de um excesso de imagens impulsionado pela cultura do espetaacuteculo e orisco bem assinalado por Deleuze de que a fuga do clichecirc termine por desembocarna produccedilatildeo de um novo padratildeo

De fato eacute possiacutevel argumentar que tanto a demanda incessante pelo novo quanto oprazer encontrado na redundacircncia do clichecirc satildeo partes integrantes de certa modali-dade de apreensatildeo do real dada a centralidade desses dois regimes complementaresndash a novidade e a redundacircncia ndash para o universo da cultura do espetaacuteculo Daiacute porquea mobilizaccedilatildeo do clichecirc como artifiacutecio natildeo implica um afastamento do real mas uma

as fotos criam o belo e ndash ao longo de geraccedilotildees de fotoacutegrafos o esgotam Certasgloacuterias da natureza por exemplo foram simplesmente entregues agrave infatigaacutevelatenccedilatildeo de amadores aficionados da cacircmera Pessoas saturadas de imagens

tendem a achar piegas os pores-do-sol agora infelizmente eles se parecem de-mais com fotos (Sontag 2004 pp101-2 grifo nosso)

ldquoa beleza seraacute convulsiva ou natildeo seraacuterdquo proclamou Andreacute Breton Ele chamouesse ideal esteacutetico de ldquosurrealistardquo mas numa cultura radicalmente renovadapela ascendecircncia de valores mercantis pedir que as imagens abalem clamemdespertem parece antes um realismo elementar aleacutem de bom senso para negoacute-cios De que outro modo se pode obter atenccedilatildeo para um produto ou uma obrade arte De que outro modo deixar uma marca mais funda quando existe umaincessante exposiccedilatildeo a imagens vistas e revistas muitas vezes A imagem comochoque e a imagem como clichecirc satildeo dois aspectos da mesma presenccedila (Sontag2003 p24)

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apreciaccedilatildeo de segunda ordem como via de acesso natildeo-ingecircnuo agraves complexidades deum presente imerso nos fluxos incessantes de imagens na era do capitalismo tardio

Neste ponto podemos retomar as consideraccedilotildees sobre a inadequaccedilatildeo da noccedilatildeo deautenticidade para pensar as emoccedilotildees que satildeo acionadas mediante o clichecirc ndash ou in-versamente a adequaccedilatildeo do clichecirc para catalisar emoccedilotildees suscitadas e expressas no

seio do espetaacuteculo A cultura de mercado investe na estreita cumplicidade entre onovo e o jaacute visto entre o banal e o extraordinaacuterio entre a ilusatildeo do autecircntico e apotecircncia do falso E nisso a arte de Andy Warhol como bem assinalou Steven Shaviropermanece uma via privilegiada para acessar tais questionamentos por sua mobiliza-ccedilatildeo irocircnica dos clichecircs e tambeacutem sobretudo por sua ambivalecircncia quanto aos efeitosdessa loacutegica de mercado sobre os domiacutenios da arte

Para Jean Baudrillard (2006) a potecircncia das intervenccedilotildees de Warhol se existe estaacute emlevar a loacutegica do significante ao paroxismo da proliferaccedilatildeo e da exaustatildeo e com issoalccedilar as imagens ao seu maacuteximo grau de artificialismo Essa exacerbaccedilatildeo do artifiacutecioconfere outro estatuto para o clichecirc na medida em que radicaliza o seu esvaziamento

Eacute uma via distinta a trilhada por Chantal Akerman mas que guarda em comum essadimensatildeo do clichecirc como potente artifiacutecio Natildeo se trata de distanciar-se do clichecirc

para alcanccedilar um desvelamento daquilo que estaria encoberto por ele Ivone Mar-gulies observa a respeito dos musicais da realizadora que ldquoa ambiccedilatildeo desses filmeseacute algo distinto do anti-ilusionismo o que importa eacute que todo o peso da banalidadeseja reexperienciado por meio do clichecirc ndash que a banalidade recupere sua intensidaderepetitiva ou que ela exiba sua composiccedilatildeo claustrofoacutebicardquo (Margulies 1996 p188)Nesse aspecto especificamente encontramos um ponto de articulaccedilatildeo entre Warhole Akerman ainda que ambos alcancem efeitos tatildeo distintos no conjunto de sua obraTrata-se antes de colocar em movimento procedimentos que permitam escapar doimpasse entre o novo e o redundante entre o banal e o extraordinaacuterio entre o choquee a complacecircncia entre o estranhamento e o reconhecimento

Ainda segundo Margulies (Idem p212) se o clichecirc tem uma ldquohistoacuteria semacircnticardquo queo espectador eventualmente conhece seu histoacuterico pode natildeo obstante ser ldquobloquea-dordquo Tal bloqueio ocorreria em grande medida por meio da constituiccedilatildeo de uma seri-alidade De modo semelhante Darlene Pursley afirma que eacute a repeticcedilatildeo que ocasionanos filmes da realizadora ldquoa perda de todo sentidordquo cabendo ao espectador dotar oclichecirc por assim dizer de sua proacutepria ldquosingularidaderdquo e ldquocoloraccedilatildeo especialrdquo (Pursley2005 p1198)

Em casos como estes natildeo parece completamente adequado o contraponto que criacuteti-cas da cultura como aquelas propostas por Beatriz Sarlo alccedilam como resposta agrave pro-liferaccedilatildeo de regimes audiovisuais massivos Natildeo se trata aqui de fazer contrapor aldquodensidade semacircnticardquo de uma imagem (Sarlo 2004 p59) agrave repeticcedilatildeo veloz e seri-alizada de estiacutemulos audiovisuais que caracteriza por exemplo a televisatildeo De fato

as imagens de Warhol natildeo satildeo de modo algum banais pelo fato de constituiacuteremo reflexo de um mundo banal mas porque resultam da ausecircncia no sujeito detoda pretensatildeo de interpretaacute-lo resultam da elevaccedilatildeo da imagem agrave figuraccedilatildeopura sem a menor transfiguraccedilatildeo Assim portanto jaacute natildeo se trata de uma trans-cendecircncia mas do ganho de potecircncia do signo que perdendo toda significa-ccedilatildeo natural resplandece no vazio com toda sua luz artificial (Baudrillard 2006p38 traduccedilatildeo nossa)

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se ainda hoje algumas de suas observaccedilotildees demonstram relevacircncia e despertam in-teresse ndash chama-nos a atenccedilatildeo especialmente o fato de que para Sarlo as imagenslembradas seriam as que manifestam a capacidade de ldquofixar-se com o peso do icocircnicordquo(Sarlo 2004 62) ndash a forccedila de leituras criacuteticas como as que vecircm sendo propostas porSteven Shaviro Ivone Margulies e outros eacute justamente pensar a potecircncia das imagenssem recorrer a todo um encadeamento de paracircmetros como peso substacircncia densi-

dade profundidade

Para Warhol assim como para Akerman especialmente em suas comeacutedias musicaisda deacutecada de 1980 ndash e para persistirmos nos dois projetos esteacuteticos que guiaram al-gumas das reflexotildees aqui articuladas ndash a iconicidade das imagens se realiza em seuproacuteprio valor de superfiacutecie e assumindo o caraacuteter de segunda ordem das obras en-quanto partiacutecipes de um universo sensiacutevel disperso e multifacetado Aqui voltamosa insistir na potecircncia que adveacutem dessa possibilidade de acionar os repertoacuterios dosespectadores como mateacuteria a partir da qual a potecircncia criativa investe seus esforccedilosNo reconhecimento desse caraacuteter sobrecodificado da cultura natildeo estamos eacute verdademuito distantes das palavras de Nelson Brissac Peixoto

Nosso argumento eacute que conforme o percurso que vimos esboccedilando o esvaziamentodo significado pela via da repeticcedilatildeo natildeo constitui algo necessariamente negativo Se-gundo as leituras de Shaviro Margulies Schmid Gueroacuten e mesmo em certos aspec-tos Baudrillard a repeticcedilatildeo e os efeitos de superfiacutecie podem ser tambeacutem afirmativos

engendram relaccedilotildees e modos possiacuteveis de intervenccedilatildeo no real Por essa via embara-lham-se as categorias numa imagem-clichecirc que retorna convencional poreacutem atraves-sada por muacuteltiplos desvios reconheciacutevel poreacutem distorcida superficialmente legiacutevelporeacutem destituiacuteda de quaisquer sentidos estaacuteveis Vaga sensaccedilatildeo de jaacute visto nuncacompletamente jaacute assimilado posto que a proacutepria expectativa de entendimento pres-supotildee a existecircncia de um sentido que poderia ou natildeo ser captado mas que aqui girasobre si mesmo e se desfaz Compreender e processar um significado preexistenteimplicaria uma verticalizaccedilatildeo e um adensamento que satildeo frustrados pela proacutepria radi-cal superficialidade do artifiacutecio

Natildeo se trata de dizer que os clichecircs satildeo infinitamente remodelaacuteveis nem de redefini-los como paradoxalmente inexauriacuteveis A esse respeito eacute certeira a observaccedilatildeo deSarlo ldquoao elitismo das posiccedilotildees mais criacuteticas natildeo deveria opor-se uma inversatildeo simeacute-trica sob a forma de um neopopulismo seduzido pelos encantos da induacutestria culturalrdquo(Sarlo 2004 p65) Natildeo obstante para Sarlo a ldquorepeticcedilatildeo eacute uma maacutequina de produziruma suave felicidaderdquo (Sarlo 2004 p63) um deleite alcanccedilado pela via do apazigua-mento Caberia insistir no entanto e em favor mesmo das ressalvas colocadas dianteda dupla rejeiccedilatildeo ao ldquoelitismordquo e ao ldquoneopopulismo de mercadordquo que o prazer oriundoda relaccedilatildeo com a imagerie que marca nossa experiecircncia do contemporacircneo estaacutelonge de reduzir-se a uma suspensatildeo dos conflitos De fato um dos ganhos trazidospelas discussotildees sobre as formas do artifiacutecio na cultura e nas artes decorre justamenteda problematizaccedilatildeo de noccedilotildees demasiadamente unilaterais tais como o ldquoescapismordquoe a ldquofuga do realrdquo

nesse mundo de cenaacuterios e personagens tudo eacute imagerie Tem a consistecircnciade mito e imagem A cultura contemporacircnea eacute de segunda geraccedilatildeo onde ahistoacuteria a experiecircncia e os anseios de cada um satildeo moldados pela literaturaos quadrinhos o cinema e a TV Vidas em segundo grau Todas essas histoacuterias jaacuteforam vistas todos estes lugares visitados (Peixoto 1988 p362)

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O prazer do artifiacutecio natildeo consiste num suave apaziguamento mas em instalar-se namobilidade entre o reconhecimento e a frustraccedilatildeo dos modos estabelecidos de apre-ensatildeo sensiacutevel e dos esquemas de inteligibilidade Um modo de ler o mundo e umaconstante incerteza em relaccedilatildeo agravequilo que lemos Uma pergunta pelo que haacute de ile-giacutevel no que eacute supostamente oacutebvio bem como uma salutar suspeita diante das pre-tensotildees de ruptura quando esta arrisca tornar-se demasiadamente auto-importante

Talvez do artifiacutecio decorra um prazer hesitante certamente haacute nele um prazer que sealimenta da duacutevida

Referecircncias bibliograacutecas

BAUDRILLARD Jean El complot del arte ilusioacuten y desilusioacuten esteacuteticas Buenos Aires Madrid Amor-rortu Editores 2006DELEUZE Gilles A imagem-tempo Traduccedilatildeo de Eloisa de Arauacutejo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007DELEUZE Gilles GUATTARI Feacutelix ldquoPercepto afecto e conceitordquo In O que eacute a filosofia Rio de JaneiroEd 34 Coleccedilatildeo Trans 1992 p 211-255GUEROacuteN Rodrigo Da imagem ao clichecirc do clichecirc agrave imagem Deleuze cinema e pensamento Riode Janeiro NAU Editora 2011

JAMESON Fredric Poacutes-modernismo a loacutegica cultural do capitalismo tardio Satildeo Paulo EditoraAacutetica 2ordf ed 2007JOLY Martine Introduccedilatildeo agrave anaacutelise das imagens Campinas SP Papirus Editora 2004LOXLEY James Performativity London and New York Routledge New Critical Idiom 2007MARGULIES Ivone Nothing happens Chantal Akermanrsquos Hyperrealist Everyday Duke UniversityPress Durham and London 1996PEIXOTO Nelson Brissac ldquoO olhar do estrangeirordquo In NOVAES Adauto (org) O olhar Satildeo PauloCompanhia das Letras 1988 p361-365PHILIPPON Alain Fragments bruxelois entretien avec Chantal Akerman Cahiers du cineacutema 3411982 p 19-23PURSLEY Darlene Moving in time Chantal Akermanrsquos Toute une nuit MLN Volume 120 Number5 December 2005 (Comparative Literature Issue) p 1192-1205

SARLO Beatriz Cenas da vida poacutes-moderna intelectuais arte e videocultura na Argentina Riode Janeiro Editora UFRJ 2004SCARPETTA Guy Lrsquoimpureteacute Paris Bernard Grasset 1985SCHMID Marion Chantal Akerman (French Film Directors) Manchester and New York ManchesterUniversity Press 2010SHAVIRO Steven Clicheacutes of identity Chantal Akermanrsquos musicals Quarterly review of film andvideo 241 2007 p 11-17______ The life after death of postmodern emotions Criticism volume 46 number 1 Winter2004 p125-141SONTAG Susan Sobre fotograa Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004______ Diante da dor dos outros Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003WILLS David ldquoThe french remark Breathless and cinematic citationalityrdquo In HORTON AndrewMcDOUGAL Stuart Y (eds) Play it again Sam retakes on remakes Berkeley University of California

Press 1998 p147-161

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em suma os retratos de Marilyn feitos por Warhol satildeo assustadoramente sem a-feto [affectless ] desprovidos de qualquer resposta emocional para a sua mortePelo contraacuterio eles demonstram a impossibilidade de tal resposta Pois a mortede Marilyn eacute a morte da emoccedilatildeo elas constituem um e o mesmo evento (Sha-viro 2004 p135 traduccedilatildeo nossa)

O que eacute curioso no modo como Shaviro recorre agraves declaraccedilotildees de Warhol sobre a

televisatildeo e o gravador ou mesmo sobre a relaccedilatildeo com a morte nesse contexto eacute queao endossaacute-las o teoacuterico vincula essa suposta morte das emoccedilotildees agrave ideia de umaperda de intensidade afetiva operada pela superficialidade e pela desdiferenciaccedilatildeodos meios Trata-se de uma proposiccedilatildeo estranha na medida em que no conceito deafeto ndash com o qual Shaviro faz alternar em seu texto a emoccedilatildeo e por vezes ateacute o sen-timento ndash a noccedilatildeo de profundidade quando formulada tomando o ponto de vista deum sujeito que o experienciaria eacute desde sempre afastada ou pelo menos colocadasob suspeita

Ao mesmo tempo eacute como se Shaviro tomasse a ironia e o distanciamento de que sereveste a ideia de uma ldquomorte das emoccedilotildeesrdquo pelo seu valor de face passando ao largodo artifiacutecio que eacute justamente aquilo que caracterizaria essa forma de esteticismo ouseja ignorando no artifiacutecio aquilo que ele deixa entrever somente a partir de umasofisticada elaboraccedilatildeo Tal questionamento eacute relevante especialmente porque con-forme o proacuteprio Shaviro faz notar a resistecircncia de Warhol em lidar com a questatildeo damorte longe de denotar indiferenccedila expressa uma dificuldade de processar o caraacuteterexcessivo inassimilaacutevel e traumaacutetico desse acontecimento Warhol segundo Shaviro(2004 p135) ficaria sem palavras diante da morte assumindo uma posiccedilatildeo de ca-tegoacuterica recusa quanto agrave sua elaboraccedilatildeo

Para ser mais preciso eacute como se a argumentaccedilatildeo de Shaviro nesse texto oscilasse

entre a convicccedilatildeo de que a autenticidade natildeo exerce funccedilatildeo alguma nesse debatenatildeo devendo assim sequer ser levantada como valor relevante ao mesmo tempo emque persiste a sugestatildeo de que haacute algo que se perdeu em relaccedilatildeo a algum momentoanterior Eacute sintomaacutetico portanto que o artigo de Shaviro recorra a uma intrincada enem sempre muito clara oscilaccedilatildeo entre proposiccedilotildees tais como ldquomorte da emoccedilatildeordquoldquoemoccedilatildeo poacutes-modernardquo ldquoemoccedilatildeo esvaziada de afetordquo e emoccedilatildeo revestida de artifiacutecioque eacute aquela agrave qual ele clama ao final de sua argumentaccedilatildeo Tudo leva a crer que Sha-viro se esforccedila afinal para avanccedilar em direccedilatildeo a uma proposiccedilatildeo que investe sobreos afetos naquilo que eles tecircm de impessoais no modo como operam na superfiacuteciepelas sensaccedilotildees e inclusive mediante contaacutegio a fim de elaborar esteticamente tais

qualidades pela via do artifiacutecio4

Dentre outros aspectos o que esta produtiva discussatildeo levantada por Shaviro expli-cita eacute a compreensatildeo de que se existe um estatuto especiacutefico do afeto e das emoccedilotildeesno poacutes-moderno isso se daacute menos pela perda da ancoragem em subjetividades decontornos bem definidos algo que natildeo eacute caracteriacutestico apenas de uma eacutepoca ou estaacute-gio da cultura e mais pela potencializaccedilatildeo de aspectos tais como a transpessoalidadee a superficialidade alcanccedilada pela via de uma exacerbaccedilatildeo do jogo com as formasda pose e tambeacutem da indiferenccedila aos limites entre o falso e o autecircntico Nestes ter-mos o artifiacutecio natildeo seria o recurso pelo qual se expressam emoccedilotildees desprovidas deafeto mas a ocasiatildeo em que a emoccedilatildeo se expressa intensamente como afetaccedilatildeo Soacuteassim seria possiacutevel reivindicar ldquosentimentos que satildeo irreverentes perversos excecircntri-cos perdulaacuterios fuacuteteis extravagantes disfuncionais e ridiacuteculosrdquo (Shaviro 2004 p140)

4 Suas menccedilotildees ao camp agraves drag queens e agrave noccedilatildeo warholiana da ldquoperformance ruimrdquo embasam este entendimento

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Temos desse modo uma espeacutecie de dobra que investe nos afetos justamente parasobrecodificaacute-los replicaacute-los explorar seus efeitos e derivaccedilotildees e na qual o clichecirc as-sumiria um papel central recolocando a pergunta pela relaccedilatildeo que travamos com asimagens e o tipo de resposta que elas suscitam

3 Entre o prazer e o distanciamento o artifiacutecio

Como dito anteriormente os debates em torno do clichecirc giram em grande medidaem torno da capacidade ndash sempre variaacutevel ndash que uma imagem teria de apresentar-secomo nova ou pelo contraacuterio de mostrar-se jaacute exaurida na sua capacidade de desper-tar uma reaccedilatildeo vivaz no espectador Susan Sontag dedicou-se a discutir essa capaci-dade de reaccedilatildeo principalmente por duas vias a contemplaccedilatildeo (pela beleza) ou o es-panto (pelo choque pela crueza ou pela violecircncia) Em seu ensaio Sobre a fotografia Sontag observa tomando um exemplo que pode soar ainda mais familiar em temposde popularizaccedilatildeo de dispositivos de captaccedilatildeo digital e de muacuteltiplas plataformas deexibiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de imagens

Vale a pena chamar a atenccedilatildeo aqui mais uma vez para a compreensatildeo de que o es-gotamento de um tema natildeo deixa de estar em certa medida condicionado ao proacutepriohistoacuterico das relaccedilotildees travadas entre a pessoa que olha e as imagens Em outras pa-lavras o efeito de desgaste varia segundo os repertoacuterios adquiridos Para o amadorum fenocircmeno da natureza ou paisagem pode despertar o entusiasmo que falta aos jaacute

excessivamente familiarizados com o mundo da fotografia Aparecer como novo oudesgastado ser digno de admiraccedilatildeo ou relegado ao acircmbito do banal satildeo atributosque natildeo se resolvem unicamente numa apreciaccedilatildeo intriacutenseca da imagem mas quepelo contraacuterio apelam agrave instacircncia daquele que vecirc

Em Diante da dor dos outros Sontag formula em outros termos o problema ao depa-rar-se com questotildees semelhantes agraves jaacute inventariadas no iniacutecio deste artigo a saber odiagnoacutestico de um excesso de imagens impulsionado pela cultura do espetaacuteculo e orisco bem assinalado por Deleuze de que a fuga do clichecirc termine por desembocarna produccedilatildeo de um novo padratildeo

De fato eacute possiacutevel argumentar que tanto a demanda incessante pelo novo quanto oprazer encontrado na redundacircncia do clichecirc satildeo partes integrantes de certa modali-dade de apreensatildeo do real dada a centralidade desses dois regimes complementaresndash a novidade e a redundacircncia ndash para o universo da cultura do espetaacuteculo Daiacute porquea mobilizaccedilatildeo do clichecirc como artifiacutecio natildeo implica um afastamento do real mas uma

as fotos criam o belo e ndash ao longo de geraccedilotildees de fotoacutegrafos o esgotam Certasgloacuterias da natureza por exemplo foram simplesmente entregues agrave infatigaacutevelatenccedilatildeo de amadores aficionados da cacircmera Pessoas saturadas de imagens

tendem a achar piegas os pores-do-sol agora infelizmente eles se parecem de-mais com fotos (Sontag 2004 pp101-2 grifo nosso)

ldquoa beleza seraacute convulsiva ou natildeo seraacuterdquo proclamou Andreacute Breton Ele chamouesse ideal esteacutetico de ldquosurrealistardquo mas numa cultura radicalmente renovadapela ascendecircncia de valores mercantis pedir que as imagens abalem clamemdespertem parece antes um realismo elementar aleacutem de bom senso para negoacute-cios De que outro modo se pode obter atenccedilatildeo para um produto ou uma obrade arte De que outro modo deixar uma marca mais funda quando existe umaincessante exposiccedilatildeo a imagens vistas e revistas muitas vezes A imagem comochoque e a imagem como clichecirc satildeo dois aspectos da mesma presenccedila (Sontag2003 p24)

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apreciaccedilatildeo de segunda ordem como via de acesso natildeo-ingecircnuo agraves complexidades deum presente imerso nos fluxos incessantes de imagens na era do capitalismo tardio

Neste ponto podemos retomar as consideraccedilotildees sobre a inadequaccedilatildeo da noccedilatildeo deautenticidade para pensar as emoccedilotildees que satildeo acionadas mediante o clichecirc ndash ou in-versamente a adequaccedilatildeo do clichecirc para catalisar emoccedilotildees suscitadas e expressas no

seio do espetaacuteculo A cultura de mercado investe na estreita cumplicidade entre onovo e o jaacute visto entre o banal e o extraordinaacuterio entre a ilusatildeo do autecircntico e apotecircncia do falso E nisso a arte de Andy Warhol como bem assinalou Steven Shaviropermanece uma via privilegiada para acessar tais questionamentos por sua mobiliza-ccedilatildeo irocircnica dos clichecircs e tambeacutem sobretudo por sua ambivalecircncia quanto aos efeitosdessa loacutegica de mercado sobre os domiacutenios da arte

Para Jean Baudrillard (2006) a potecircncia das intervenccedilotildees de Warhol se existe estaacute emlevar a loacutegica do significante ao paroxismo da proliferaccedilatildeo e da exaustatildeo e com issoalccedilar as imagens ao seu maacuteximo grau de artificialismo Essa exacerbaccedilatildeo do artifiacutecioconfere outro estatuto para o clichecirc na medida em que radicaliza o seu esvaziamento

Eacute uma via distinta a trilhada por Chantal Akerman mas que guarda em comum essadimensatildeo do clichecirc como potente artifiacutecio Natildeo se trata de distanciar-se do clichecirc

para alcanccedilar um desvelamento daquilo que estaria encoberto por ele Ivone Mar-gulies observa a respeito dos musicais da realizadora que ldquoa ambiccedilatildeo desses filmeseacute algo distinto do anti-ilusionismo o que importa eacute que todo o peso da banalidadeseja reexperienciado por meio do clichecirc ndash que a banalidade recupere sua intensidaderepetitiva ou que ela exiba sua composiccedilatildeo claustrofoacutebicardquo (Margulies 1996 p188)Nesse aspecto especificamente encontramos um ponto de articulaccedilatildeo entre Warhole Akerman ainda que ambos alcancem efeitos tatildeo distintos no conjunto de sua obraTrata-se antes de colocar em movimento procedimentos que permitam escapar doimpasse entre o novo e o redundante entre o banal e o extraordinaacuterio entre o choquee a complacecircncia entre o estranhamento e o reconhecimento

Ainda segundo Margulies (Idem p212) se o clichecirc tem uma ldquohistoacuteria semacircnticardquo queo espectador eventualmente conhece seu histoacuterico pode natildeo obstante ser ldquobloquea-dordquo Tal bloqueio ocorreria em grande medida por meio da constituiccedilatildeo de uma seri-alidade De modo semelhante Darlene Pursley afirma que eacute a repeticcedilatildeo que ocasionanos filmes da realizadora ldquoa perda de todo sentidordquo cabendo ao espectador dotar oclichecirc por assim dizer de sua proacutepria ldquosingularidaderdquo e ldquocoloraccedilatildeo especialrdquo (Pursley2005 p1198)

Em casos como estes natildeo parece completamente adequado o contraponto que criacuteti-cas da cultura como aquelas propostas por Beatriz Sarlo alccedilam como resposta agrave pro-liferaccedilatildeo de regimes audiovisuais massivos Natildeo se trata aqui de fazer contrapor aldquodensidade semacircnticardquo de uma imagem (Sarlo 2004 p59) agrave repeticcedilatildeo veloz e seri-alizada de estiacutemulos audiovisuais que caracteriza por exemplo a televisatildeo De fato

as imagens de Warhol natildeo satildeo de modo algum banais pelo fato de constituiacuteremo reflexo de um mundo banal mas porque resultam da ausecircncia no sujeito detoda pretensatildeo de interpretaacute-lo resultam da elevaccedilatildeo da imagem agrave figuraccedilatildeopura sem a menor transfiguraccedilatildeo Assim portanto jaacute natildeo se trata de uma trans-cendecircncia mas do ganho de potecircncia do signo que perdendo toda significa-ccedilatildeo natural resplandece no vazio com toda sua luz artificial (Baudrillard 2006p38 traduccedilatildeo nossa)

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se ainda hoje algumas de suas observaccedilotildees demonstram relevacircncia e despertam in-teresse ndash chama-nos a atenccedilatildeo especialmente o fato de que para Sarlo as imagenslembradas seriam as que manifestam a capacidade de ldquofixar-se com o peso do icocircnicordquo(Sarlo 2004 62) ndash a forccedila de leituras criacuteticas como as que vecircm sendo propostas porSteven Shaviro Ivone Margulies e outros eacute justamente pensar a potecircncia das imagenssem recorrer a todo um encadeamento de paracircmetros como peso substacircncia densi-

dade profundidade

Para Warhol assim como para Akerman especialmente em suas comeacutedias musicaisda deacutecada de 1980 ndash e para persistirmos nos dois projetos esteacuteticos que guiaram al-gumas das reflexotildees aqui articuladas ndash a iconicidade das imagens se realiza em seuproacuteprio valor de superfiacutecie e assumindo o caraacuteter de segunda ordem das obras en-quanto partiacutecipes de um universo sensiacutevel disperso e multifacetado Aqui voltamosa insistir na potecircncia que adveacutem dessa possibilidade de acionar os repertoacuterios dosespectadores como mateacuteria a partir da qual a potecircncia criativa investe seus esforccedilosNo reconhecimento desse caraacuteter sobrecodificado da cultura natildeo estamos eacute verdademuito distantes das palavras de Nelson Brissac Peixoto

Nosso argumento eacute que conforme o percurso que vimos esboccedilando o esvaziamentodo significado pela via da repeticcedilatildeo natildeo constitui algo necessariamente negativo Se-gundo as leituras de Shaviro Margulies Schmid Gueroacuten e mesmo em certos aspec-tos Baudrillard a repeticcedilatildeo e os efeitos de superfiacutecie podem ser tambeacutem afirmativos

engendram relaccedilotildees e modos possiacuteveis de intervenccedilatildeo no real Por essa via embara-lham-se as categorias numa imagem-clichecirc que retorna convencional poreacutem atraves-sada por muacuteltiplos desvios reconheciacutevel poreacutem distorcida superficialmente legiacutevelporeacutem destituiacuteda de quaisquer sentidos estaacuteveis Vaga sensaccedilatildeo de jaacute visto nuncacompletamente jaacute assimilado posto que a proacutepria expectativa de entendimento pres-supotildee a existecircncia de um sentido que poderia ou natildeo ser captado mas que aqui girasobre si mesmo e se desfaz Compreender e processar um significado preexistenteimplicaria uma verticalizaccedilatildeo e um adensamento que satildeo frustrados pela proacutepria radi-cal superficialidade do artifiacutecio

Natildeo se trata de dizer que os clichecircs satildeo infinitamente remodelaacuteveis nem de redefini-los como paradoxalmente inexauriacuteveis A esse respeito eacute certeira a observaccedilatildeo deSarlo ldquoao elitismo das posiccedilotildees mais criacuteticas natildeo deveria opor-se uma inversatildeo simeacute-trica sob a forma de um neopopulismo seduzido pelos encantos da induacutestria culturalrdquo(Sarlo 2004 p65) Natildeo obstante para Sarlo a ldquorepeticcedilatildeo eacute uma maacutequina de produziruma suave felicidaderdquo (Sarlo 2004 p63) um deleite alcanccedilado pela via do apazigua-mento Caberia insistir no entanto e em favor mesmo das ressalvas colocadas dianteda dupla rejeiccedilatildeo ao ldquoelitismordquo e ao ldquoneopopulismo de mercadordquo que o prazer oriundoda relaccedilatildeo com a imagerie que marca nossa experiecircncia do contemporacircneo estaacutelonge de reduzir-se a uma suspensatildeo dos conflitos De fato um dos ganhos trazidospelas discussotildees sobre as formas do artifiacutecio na cultura e nas artes decorre justamenteda problematizaccedilatildeo de noccedilotildees demasiadamente unilaterais tais como o ldquoescapismordquoe a ldquofuga do realrdquo

nesse mundo de cenaacuterios e personagens tudo eacute imagerie Tem a consistecircnciade mito e imagem A cultura contemporacircnea eacute de segunda geraccedilatildeo onde ahistoacuteria a experiecircncia e os anseios de cada um satildeo moldados pela literaturaos quadrinhos o cinema e a TV Vidas em segundo grau Todas essas histoacuterias jaacuteforam vistas todos estes lugares visitados (Peixoto 1988 p362)

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O prazer do artifiacutecio natildeo consiste num suave apaziguamento mas em instalar-se namobilidade entre o reconhecimento e a frustraccedilatildeo dos modos estabelecidos de apre-ensatildeo sensiacutevel e dos esquemas de inteligibilidade Um modo de ler o mundo e umaconstante incerteza em relaccedilatildeo agravequilo que lemos Uma pergunta pelo que haacute de ile-giacutevel no que eacute supostamente oacutebvio bem como uma salutar suspeita diante das pre-tensotildees de ruptura quando esta arrisca tornar-se demasiadamente auto-importante

Talvez do artifiacutecio decorra um prazer hesitante certamente haacute nele um prazer que sealimenta da duacutevida

Referecircncias bibliograacutecas

BAUDRILLARD Jean El complot del arte ilusioacuten y desilusioacuten esteacuteticas Buenos Aires Madrid Amor-rortu Editores 2006DELEUZE Gilles A imagem-tempo Traduccedilatildeo de Eloisa de Arauacutejo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007DELEUZE Gilles GUATTARI Feacutelix ldquoPercepto afecto e conceitordquo In O que eacute a filosofia Rio de JaneiroEd 34 Coleccedilatildeo Trans 1992 p 211-255GUEROacuteN Rodrigo Da imagem ao clichecirc do clichecirc agrave imagem Deleuze cinema e pensamento Riode Janeiro NAU Editora 2011

JAMESON Fredric Poacutes-modernismo a loacutegica cultural do capitalismo tardio Satildeo Paulo EditoraAacutetica 2ordf ed 2007JOLY Martine Introduccedilatildeo agrave anaacutelise das imagens Campinas SP Papirus Editora 2004LOXLEY James Performativity London and New York Routledge New Critical Idiom 2007MARGULIES Ivone Nothing happens Chantal Akermanrsquos Hyperrealist Everyday Duke UniversityPress Durham and London 1996PEIXOTO Nelson Brissac ldquoO olhar do estrangeirordquo In NOVAES Adauto (org) O olhar Satildeo PauloCompanhia das Letras 1988 p361-365PHILIPPON Alain Fragments bruxelois entretien avec Chantal Akerman Cahiers du cineacutema 3411982 p 19-23PURSLEY Darlene Moving in time Chantal Akermanrsquos Toute une nuit MLN Volume 120 Number5 December 2005 (Comparative Literature Issue) p 1192-1205

SARLO Beatriz Cenas da vida poacutes-moderna intelectuais arte e videocultura na Argentina Riode Janeiro Editora UFRJ 2004SCARPETTA Guy Lrsquoimpureteacute Paris Bernard Grasset 1985SCHMID Marion Chantal Akerman (French Film Directors) Manchester and New York ManchesterUniversity Press 2010SHAVIRO Steven Clicheacutes of identity Chantal Akermanrsquos musicals Quarterly review of film andvideo 241 2007 p 11-17______ The life after death of postmodern emotions Criticism volume 46 number 1 Winter2004 p125-141SONTAG Susan Sobre fotograa Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004______ Diante da dor dos outros Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003WILLS David ldquoThe french remark Breathless and cinematic citationalityrdquo In HORTON AndrewMcDOUGAL Stuart Y (eds) Play it again Sam retakes on remakes Berkeley University of California

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Temos desse modo uma espeacutecie de dobra que investe nos afetos justamente parasobrecodificaacute-los replicaacute-los explorar seus efeitos e derivaccedilotildees e na qual o clichecirc as-sumiria um papel central recolocando a pergunta pela relaccedilatildeo que travamos com asimagens e o tipo de resposta que elas suscitam

3 Entre o prazer e o distanciamento o artifiacutecio

Como dito anteriormente os debates em torno do clichecirc giram em grande medidaem torno da capacidade ndash sempre variaacutevel ndash que uma imagem teria de apresentar-secomo nova ou pelo contraacuterio de mostrar-se jaacute exaurida na sua capacidade de desper-tar uma reaccedilatildeo vivaz no espectador Susan Sontag dedicou-se a discutir essa capaci-dade de reaccedilatildeo principalmente por duas vias a contemplaccedilatildeo (pela beleza) ou o es-panto (pelo choque pela crueza ou pela violecircncia) Em seu ensaio Sobre a fotografia Sontag observa tomando um exemplo que pode soar ainda mais familiar em temposde popularizaccedilatildeo de dispositivos de captaccedilatildeo digital e de muacuteltiplas plataformas deexibiccedilatildeo e circulaccedilatildeo de imagens

Vale a pena chamar a atenccedilatildeo aqui mais uma vez para a compreensatildeo de que o es-gotamento de um tema natildeo deixa de estar em certa medida condicionado ao proacutepriohistoacuterico das relaccedilotildees travadas entre a pessoa que olha e as imagens Em outras pa-lavras o efeito de desgaste varia segundo os repertoacuterios adquiridos Para o amadorum fenocircmeno da natureza ou paisagem pode despertar o entusiasmo que falta aos jaacute

excessivamente familiarizados com o mundo da fotografia Aparecer como novo oudesgastado ser digno de admiraccedilatildeo ou relegado ao acircmbito do banal satildeo atributosque natildeo se resolvem unicamente numa apreciaccedilatildeo intriacutenseca da imagem mas quepelo contraacuterio apelam agrave instacircncia daquele que vecirc

Em Diante da dor dos outros Sontag formula em outros termos o problema ao depa-rar-se com questotildees semelhantes agraves jaacute inventariadas no iniacutecio deste artigo a saber odiagnoacutestico de um excesso de imagens impulsionado pela cultura do espetaacuteculo e orisco bem assinalado por Deleuze de que a fuga do clichecirc termine por desembocarna produccedilatildeo de um novo padratildeo

De fato eacute possiacutevel argumentar que tanto a demanda incessante pelo novo quanto oprazer encontrado na redundacircncia do clichecirc satildeo partes integrantes de certa modali-dade de apreensatildeo do real dada a centralidade desses dois regimes complementaresndash a novidade e a redundacircncia ndash para o universo da cultura do espetaacuteculo Daiacute porquea mobilizaccedilatildeo do clichecirc como artifiacutecio natildeo implica um afastamento do real mas uma

as fotos criam o belo e ndash ao longo de geraccedilotildees de fotoacutegrafos o esgotam Certasgloacuterias da natureza por exemplo foram simplesmente entregues agrave infatigaacutevelatenccedilatildeo de amadores aficionados da cacircmera Pessoas saturadas de imagens

tendem a achar piegas os pores-do-sol agora infelizmente eles se parecem de-mais com fotos (Sontag 2004 pp101-2 grifo nosso)

ldquoa beleza seraacute convulsiva ou natildeo seraacuterdquo proclamou Andreacute Breton Ele chamouesse ideal esteacutetico de ldquosurrealistardquo mas numa cultura radicalmente renovadapela ascendecircncia de valores mercantis pedir que as imagens abalem clamemdespertem parece antes um realismo elementar aleacutem de bom senso para negoacute-cios De que outro modo se pode obter atenccedilatildeo para um produto ou uma obrade arte De que outro modo deixar uma marca mais funda quando existe umaincessante exposiccedilatildeo a imagens vistas e revistas muitas vezes A imagem comochoque e a imagem como clichecirc satildeo dois aspectos da mesma presenccedila (Sontag2003 p24)

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apreciaccedilatildeo de segunda ordem como via de acesso natildeo-ingecircnuo agraves complexidades deum presente imerso nos fluxos incessantes de imagens na era do capitalismo tardio

Neste ponto podemos retomar as consideraccedilotildees sobre a inadequaccedilatildeo da noccedilatildeo deautenticidade para pensar as emoccedilotildees que satildeo acionadas mediante o clichecirc ndash ou in-versamente a adequaccedilatildeo do clichecirc para catalisar emoccedilotildees suscitadas e expressas no

seio do espetaacuteculo A cultura de mercado investe na estreita cumplicidade entre onovo e o jaacute visto entre o banal e o extraordinaacuterio entre a ilusatildeo do autecircntico e apotecircncia do falso E nisso a arte de Andy Warhol como bem assinalou Steven Shaviropermanece uma via privilegiada para acessar tais questionamentos por sua mobiliza-ccedilatildeo irocircnica dos clichecircs e tambeacutem sobretudo por sua ambivalecircncia quanto aos efeitosdessa loacutegica de mercado sobre os domiacutenios da arte

Para Jean Baudrillard (2006) a potecircncia das intervenccedilotildees de Warhol se existe estaacute emlevar a loacutegica do significante ao paroxismo da proliferaccedilatildeo e da exaustatildeo e com issoalccedilar as imagens ao seu maacuteximo grau de artificialismo Essa exacerbaccedilatildeo do artifiacutecioconfere outro estatuto para o clichecirc na medida em que radicaliza o seu esvaziamento

Eacute uma via distinta a trilhada por Chantal Akerman mas que guarda em comum essadimensatildeo do clichecirc como potente artifiacutecio Natildeo se trata de distanciar-se do clichecirc

para alcanccedilar um desvelamento daquilo que estaria encoberto por ele Ivone Mar-gulies observa a respeito dos musicais da realizadora que ldquoa ambiccedilatildeo desses filmeseacute algo distinto do anti-ilusionismo o que importa eacute que todo o peso da banalidadeseja reexperienciado por meio do clichecirc ndash que a banalidade recupere sua intensidaderepetitiva ou que ela exiba sua composiccedilatildeo claustrofoacutebicardquo (Margulies 1996 p188)Nesse aspecto especificamente encontramos um ponto de articulaccedilatildeo entre Warhole Akerman ainda que ambos alcancem efeitos tatildeo distintos no conjunto de sua obraTrata-se antes de colocar em movimento procedimentos que permitam escapar doimpasse entre o novo e o redundante entre o banal e o extraordinaacuterio entre o choquee a complacecircncia entre o estranhamento e o reconhecimento

Ainda segundo Margulies (Idem p212) se o clichecirc tem uma ldquohistoacuteria semacircnticardquo queo espectador eventualmente conhece seu histoacuterico pode natildeo obstante ser ldquobloquea-dordquo Tal bloqueio ocorreria em grande medida por meio da constituiccedilatildeo de uma seri-alidade De modo semelhante Darlene Pursley afirma que eacute a repeticcedilatildeo que ocasionanos filmes da realizadora ldquoa perda de todo sentidordquo cabendo ao espectador dotar oclichecirc por assim dizer de sua proacutepria ldquosingularidaderdquo e ldquocoloraccedilatildeo especialrdquo (Pursley2005 p1198)

Em casos como estes natildeo parece completamente adequado o contraponto que criacuteti-cas da cultura como aquelas propostas por Beatriz Sarlo alccedilam como resposta agrave pro-liferaccedilatildeo de regimes audiovisuais massivos Natildeo se trata aqui de fazer contrapor aldquodensidade semacircnticardquo de uma imagem (Sarlo 2004 p59) agrave repeticcedilatildeo veloz e seri-alizada de estiacutemulos audiovisuais que caracteriza por exemplo a televisatildeo De fato

as imagens de Warhol natildeo satildeo de modo algum banais pelo fato de constituiacuteremo reflexo de um mundo banal mas porque resultam da ausecircncia no sujeito detoda pretensatildeo de interpretaacute-lo resultam da elevaccedilatildeo da imagem agrave figuraccedilatildeopura sem a menor transfiguraccedilatildeo Assim portanto jaacute natildeo se trata de uma trans-cendecircncia mas do ganho de potecircncia do signo que perdendo toda significa-ccedilatildeo natural resplandece no vazio com toda sua luz artificial (Baudrillard 2006p38 traduccedilatildeo nossa)

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se ainda hoje algumas de suas observaccedilotildees demonstram relevacircncia e despertam in-teresse ndash chama-nos a atenccedilatildeo especialmente o fato de que para Sarlo as imagenslembradas seriam as que manifestam a capacidade de ldquofixar-se com o peso do icocircnicordquo(Sarlo 2004 62) ndash a forccedila de leituras criacuteticas como as que vecircm sendo propostas porSteven Shaviro Ivone Margulies e outros eacute justamente pensar a potecircncia das imagenssem recorrer a todo um encadeamento de paracircmetros como peso substacircncia densi-

dade profundidade

Para Warhol assim como para Akerman especialmente em suas comeacutedias musicaisda deacutecada de 1980 ndash e para persistirmos nos dois projetos esteacuteticos que guiaram al-gumas das reflexotildees aqui articuladas ndash a iconicidade das imagens se realiza em seuproacuteprio valor de superfiacutecie e assumindo o caraacuteter de segunda ordem das obras en-quanto partiacutecipes de um universo sensiacutevel disperso e multifacetado Aqui voltamosa insistir na potecircncia que adveacutem dessa possibilidade de acionar os repertoacuterios dosespectadores como mateacuteria a partir da qual a potecircncia criativa investe seus esforccedilosNo reconhecimento desse caraacuteter sobrecodificado da cultura natildeo estamos eacute verdademuito distantes das palavras de Nelson Brissac Peixoto

Nosso argumento eacute que conforme o percurso que vimos esboccedilando o esvaziamentodo significado pela via da repeticcedilatildeo natildeo constitui algo necessariamente negativo Se-gundo as leituras de Shaviro Margulies Schmid Gueroacuten e mesmo em certos aspec-tos Baudrillard a repeticcedilatildeo e os efeitos de superfiacutecie podem ser tambeacutem afirmativos

engendram relaccedilotildees e modos possiacuteveis de intervenccedilatildeo no real Por essa via embara-lham-se as categorias numa imagem-clichecirc que retorna convencional poreacutem atraves-sada por muacuteltiplos desvios reconheciacutevel poreacutem distorcida superficialmente legiacutevelporeacutem destituiacuteda de quaisquer sentidos estaacuteveis Vaga sensaccedilatildeo de jaacute visto nuncacompletamente jaacute assimilado posto que a proacutepria expectativa de entendimento pres-supotildee a existecircncia de um sentido que poderia ou natildeo ser captado mas que aqui girasobre si mesmo e se desfaz Compreender e processar um significado preexistenteimplicaria uma verticalizaccedilatildeo e um adensamento que satildeo frustrados pela proacutepria radi-cal superficialidade do artifiacutecio

Natildeo se trata de dizer que os clichecircs satildeo infinitamente remodelaacuteveis nem de redefini-los como paradoxalmente inexauriacuteveis A esse respeito eacute certeira a observaccedilatildeo deSarlo ldquoao elitismo das posiccedilotildees mais criacuteticas natildeo deveria opor-se uma inversatildeo simeacute-trica sob a forma de um neopopulismo seduzido pelos encantos da induacutestria culturalrdquo(Sarlo 2004 p65) Natildeo obstante para Sarlo a ldquorepeticcedilatildeo eacute uma maacutequina de produziruma suave felicidaderdquo (Sarlo 2004 p63) um deleite alcanccedilado pela via do apazigua-mento Caberia insistir no entanto e em favor mesmo das ressalvas colocadas dianteda dupla rejeiccedilatildeo ao ldquoelitismordquo e ao ldquoneopopulismo de mercadordquo que o prazer oriundoda relaccedilatildeo com a imagerie que marca nossa experiecircncia do contemporacircneo estaacutelonge de reduzir-se a uma suspensatildeo dos conflitos De fato um dos ganhos trazidospelas discussotildees sobre as formas do artifiacutecio na cultura e nas artes decorre justamenteda problematizaccedilatildeo de noccedilotildees demasiadamente unilaterais tais como o ldquoescapismordquoe a ldquofuga do realrdquo

nesse mundo de cenaacuterios e personagens tudo eacute imagerie Tem a consistecircnciade mito e imagem A cultura contemporacircnea eacute de segunda geraccedilatildeo onde ahistoacuteria a experiecircncia e os anseios de cada um satildeo moldados pela literaturaos quadrinhos o cinema e a TV Vidas em segundo grau Todas essas histoacuterias jaacuteforam vistas todos estes lugares visitados (Peixoto 1988 p362)

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O prazer do artifiacutecio natildeo consiste num suave apaziguamento mas em instalar-se namobilidade entre o reconhecimento e a frustraccedilatildeo dos modos estabelecidos de apre-ensatildeo sensiacutevel e dos esquemas de inteligibilidade Um modo de ler o mundo e umaconstante incerteza em relaccedilatildeo agravequilo que lemos Uma pergunta pelo que haacute de ile-giacutevel no que eacute supostamente oacutebvio bem como uma salutar suspeita diante das pre-tensotildees de ruptura quando esta arrisca tornar-se demasiadamente auto-importante

Talvez do artifiacutecio decorra um prazer hesitante certamente haacute nele um prazer que sealimenta da duacutevida

Referecircncias bibliograacutecas

BAUDRILLARD Jean El complot del arte ilusioacuten y desilusioacuten esteacuteticas Buenos Aires Madrid Amor-rortu Editores 2006DELEUZE Gilles A imagem-tempo Traduccedilatildeo de Eloisa de Arauacutejo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007DELEUZE Gilles GUATTARI Feacutelix ldquoPercepto afecto e conceitordquo In O que eacute a filosofia Rio de JaneiroEd 34 Coleccedilatildeo Trans 1992 p 211-255GUEROacuteN Rodrigo Da imagem ao clichecirc do clichecirc agrave imagem Deleuze cinema e pensamento Riode Janeiro NAU Editora 2011

JAMESON Fredric Poacutes-modernismo a loacutegica cultural do capitalismo tardio Satildeo Paulo EditoraAacutetica 2ordf ed 2007JOLY Martine Introduccedilatildeo agrave anaacutelise das imagens Campinas SP Papirus Editora 2004LOXLEY James Performativity London and New York Routledge New Critical Idiom 2007MARGULIES Ivone Nothing happens Chantal Akermanrsquos Hyperrealist Everyday Duke UniversityPress Durham and London 1996PEIXOTO Nelson Brissac ldquoO olhar do estrangeirordquo In NOVAES Adauto (org) O olhar Satildeo PauloCompanhia das Letras 1988 p361-365PHILIPPON Alain Fragments bruxelois entretien avec Chantal Akerman Cahiers du cineacutema 3411982 p 19-23PURSLEY Darlene Moving in time Chantal Akermanrsquos Toute une nuit MLN Volume 120 Number5 December 2005 (Comparative Literature Issue) p 1192-1205

SARLO Beatriz Cenas da vida poacutes-moderna intelectuais arte e videocultura na Argentina Riode Janeiro Editora UFRJ 2004SCARPETTA Guy Lrsquoimpureteacute Paris Bernard Grasset 1985SCHMID Marion Chantal Akerman (French Film Directors) Manchester and New York ManchesterUniversity Press 2010SHAVIRO Steven Clicheacutes of identity Chantal Akermanrsquos musicals Quarterly review of film andvideo 241 2007 p 11-17______ The life after death of postmodern emotions Criticism volume 46 number 1 Winter2004 p125-141SONTAG Susan Sobre fotograa Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004______ Diante da dor dos outros Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003WILLS David ldquoThe french remark Breathless and cinematic citationalityrdquo In HORTON AndrewMcDOUGAL Stuart Y (eds) Play it again Sam retakes on remakes Berkeley University of California

Press 1998 p147-161

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apreciaccedilatildeo de segunda ordem como via de acesso natildeo-ingecircnuo agraves complexidades deum presente imerso nos fluxos incessantes de imagens na era do capitalismo tardio

Neste ponto podemos retomar as consideraccedilotildees sobre a inadequaccedilatildeo da noccedilatildeo deautenticidade para pensar as emoccedilotildees que satildeo acionadas mediante o clichecirc ndash ou in-versamente a adequaccedilatildeo do clichecirc para catalisar emoccedilotildees suscitadas e expressas no

seio do espetaacuteculo A cultura de mercado investe na estreita cumplicidade entre onovo e o jaacute visto entre o banal e o extraordinaacuterio entre a ilusatildeo do autecircntico e apotecircncia do falso E nisso a arte de Andy Warhol como bem assinalou Steven Shaviropermanece uma via privilegiada para acessar tais questionamentos por sua mobiliza-ccedilatildeo irocircnica dos clichecircs e tambeacutem sobretudo por sua ambivalecircncia quanto aos efeitosdessa loacutegica de mercado sobre os domiacutenios da arte

Para Jean Baudrillard (2006) a potecircncia das intervenccedilotildees de Warhol se existe estaacute emlevar a loacutegica do significante ao paroxismo da proliferaccedilatildeo e da exaustatildeo e com issoalccedilar as imagens ao seu maacuteximo grau de artificialismo Essa exacerbaccedilatildeo do artifiacutecioconfere outro estatuto para o clichecirc na medida em que radicaliza o seu esvaziamento

Eacute uma via distinta a trilhada por Chantal Akerman mas que guarda em comum essadimensatildeo do clichecirc como potente artifiacutecio Natildeo se trata de distanciar-se do clichecirc

para alcanccedilar um desvelamento daquilo que estaria encoberto por ele Ivone Mar-gulies observa a respeito dos musicais da realizadora que ldquoa ambiccedilatildeo desses filmeseacute algo distinto do anti-ilusionismo o que importa eacute que todo o peso da banalidadeseja reexperienciado por meio do clichecirc ndash que a banalidade recupere sua intensidaderepetitiva ou que ela exiba sua composiccedilatildeo claustrofoacutebicardquo (Margulies 1996 p188)Nesse aspecto especificamente encontramos um ponto de articulaccedilatildeo entre Warhole Akerman ainda que ambos alcancem efeitos tatildeo distintos no conjunto de sua obraTrata-se antes de colocar em movimento procedimentos que permitam escapar doimpasse entre o novo e o redundante entre o banal e o extraordinaacuterio entre o choquee a complacecircncia entre o estranhamento e o reconhecimento

Ainda segundo Margulies (Idem p212) se o clichecirc tem uma ldquohistoacuteria semacircnticardquo queo espectador eventualmente conhece seu histoacuterico pode natildeo obstante ser ldquobloquea-dordquo Tal bloqueio ocorreria em grande medida por meio da constituiccedilatildeo de uma seri-alidade De modo semelhante Darlene Pursley afirma que eacute a repeticcedilatildeo que ocasionanos filmes da realizadora ldquoa perda de todo sentidordquo cabendo ao espectador dotar oclichecirc por assim dizer de sua proacutepria ldquosingularidaderdquo e ldquocoloraccedilatildeo especialrdquo (Pursley2005 p1198)

Em casos como estes natildeo parece completamente adequado o contraponto que criacuteti-cas da cultura como aquelas propostas por Beatriz Sarlo alccedilam como resposta agrave pro-liferaccedilatildeo de regimes audiovisuais massivos Natildeo se trata aqui de fazer contrapor aldquodensidade semacircnticardquo de uma imagem (Sarlo 2004 p59) agrave repeticcedilatildeo veloz e seri-alizada de estiacutemulos audiovisuais que caracteriza por exemplo a televisatildeo De fato

as imagens de Warhol natildeo satildeo de modo algum banais pelo fato de constituiacuteremo reflexo de um mundo banal mas porque resultam da ausecircncia no sujeito detoda pretensatildeo de interpretaacute-lo resultam da elevaccedilatildeo da imagem agrave figuraccedilatildeopura sem a menor transfiguraccedilatildeo Assim portanto jaacute natildeo se trata de uma trans-cendecircncia mas do ganho de potecircncia do signo que perdendo toda significa-ccedilatildeo natural resplandece no vazio com toda sua luz artificial (Baudrillard 2006p38 traduccedilatildeo nossa)

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se ainda hoje algumas de suas observaccedilotildees demonstram relevacircncia e despertam in-teresse ndash chama-nos a atenccedilatildeo especialmente o fato de que para Sarlo as imagenslembradas seriam as que manifestam a capacidade de ldquofixar-se com o peso do icocircnicordquo(Sarlo 2004 62) ndash a forccedila de leituras criacuteticas como as que vecircm sendo propostas porSteven Shaviro Ivone Margulies e outros eacute justamente pensar a potecircncia das imagenssem recorrer a todo um encadeamento de paracircmetros como peso substacircncia densi-

dade profundidade

Para Warhol assim como para Akerman especialmente em suas comeacutedias musicaisda deacutecada de 1980 ndash e para persistirmos nos dois projetos esteacuteticos que guiaram al-gumas das reflexotildees aqui articuladas ndash a iconicidade das imagens se realiza em seuproacuteprio valor de superfiacutecie e assumindo o caraacuteter de segunda ordem das obras en-quanto partiacutecipes de um universo sensiacutevel disperso e multifacetado Aqui voltamosa insistir na potecircncia que adveacutem dessa possibilidade de acionar os repertoacuterios dosespectadores como mateacuteria a partir da qual a potecircncia criativa investe seus esforccedilosNo reconhecimento desse caraacuteter sobrecodificado da cultura natildeo estamos eacute verdademuito distantes das palavras de Nelson Brissac Peixoto

Nosso argumento eacute que conforme o percurso que vimos esboccedilando o esvaziamentodo significado pela via da repeticcedilatildeo natildeo constitui algo necessariamente negativo Se-gundo as leituras de Shaviro Margulies Schmid Gueroacuten e mesmo em certos aspec-tos Baudrillard a repeticcedilatildeo e os efeitos de superfiacutecie podem ser tambeacutem afirmativos

engendram relaccedilotildees e modos possiacuteveis de intervenccedilatildeo no real Por essa via embara-lham-se as categorias numa imagem-clichecirc que retorna convencional poreacutem atraves-sada por muacuteltiplos desvios reconheciacutevel poreacutem distorcida superficialmente legiacutevelporeacutem destituiacuteda de quaisquer sentidos estaacuteveis Vaga sensaccedilatildeo de jaacute visto nuncacompletamente jaacute assimilado posto que a proacutepria expectativa de entendimento pres-supotildee a existecircncia de um sentido que poderia ou natildeo ser captado mas que aqui girasobre si mesmo e se desfaz Compreender e processar um significado preexistenteimplicaria uma verticalizaccedilatildeo e um adensamento que satildeo frustrados pela proacutepria radi-cal superficialidade do artifiacutecio

Natildeo se trata de dizer que os clichecircs satildeo infinitamente remodelaacuteveis nem de redefini-los como paradoxalmente inexauriacuteveis A esse respeito eacute certeira a observaccedilatildeo deSarlo ldquoao elitismo das posiccedilotildees mais criacuteticas natildeo deveria opor-se uma inversatildeo simeacute-trica sob a forma de um neopopulismo seduzido pelos encantos da induacutestria culturalrdquo(Sarlo 2004 p65) Natildeo obstante para Sarlo a ldquorepeticcedilatildeo eacute uma maacutequina de produziruma suave felicidaderdquo (Sarlo 2004 p63) um deleite alcanccedilado pela via do apazigua-mento Caberia insistir no entanto e em favor mesmo das ressalvas colocadas dianteda dupla rejeiccedilatildeo ao ldquoelitismordquo e ao ldquoneopopulismo de mercadordquo que o prazer oriundoda relaccedilatildeo com a imagerie que marca nossa experiecircncia do contemporacircneo estaacutelonge de reduzir-se a uma suspensatildeo dos conflitos De fato um dos ganhos trazidospelas discussotildees sobre as formas do artifiacutecio na cultura e nas artes decorre justamenteda problematizaccedilatildeo de noccedilotildees demasiadamente unilaterais tais como o ldquoescapismordquoe a ldquofuga do realrdquo

nesse mundo de cenaacuterios e personagens tudo eacute imagerie Tem a consistecircnciade mito e imagem A cultura contemporacircnea eacute de segunda geraccedilatildeo onde ahistoacuteria a experiecircncia e os anseios de cada um satildeo moldados pela literaturaos quadrinhos o cinema e a TV Vidas em segundo grau Todas essas histoacuterias jaacuteforam vistas todos estes lugares visitados (Peixoto 1988 p362)

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O prazer do artifiacutecio natildeo consiste num suave apaziguamento mas em instalar-se namobilidade entre o reconhecimento e a frustraccedilatildeo dos modos estabelecidos de apre-ensatildeo sensiacutevel e dos esquemas de inteligibilidade Um modo de ler o mundo e umaconstante incerteza em relaccedilatildeo agravequilo que lemos Uma pergunta pelo que haacute de ile-giacutevel no que eacute supostamente oacutebvio bem como uma salutar suspeita diante das pre-tensotildees de ruptura quando esta arrisca tornar-se demasiadamente auto-importante

Talvez do artifiacutecio decorra um prazer hesitante certamente haacute nele um prazer que sealimenta da duacutevida

Referecircncias bibliograacutecas

BAUDRILLARD Jean El complot del arte ilusioacuten y desilusioacuten esteacuteticas Buenos Aires Madrid Amor-rortu Editores 2006DELEUZE Gilles A imagem-tempo Traduccedilatildeo de Eloisa de Arauacutejo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007DELEUZE Gilles GUATTARI Feacutelix ldquoPercepto afecto e conceitordquo In O que eacute a filosofia Rio de JaneiroEd 34 Coleccedilatildeo Trans 1992 p 211-255GUEROacuteN Rodrigo Da imagem ao clichecirc do clichecirc agrave imagem Deleuze cinema e pensamento Riode Janeiro NAU Editora 2011

JAMESON Fredric Poacutes-modernismo a loacutegica cultural do capitalismo tardio Satildeo Paulo EditoraAacutetica 2ordf ed 2007JOLY Martine Introduccedilatildeo agrave anaacutelise das imagens Campinas SP Papirus Editora 2004LOXLEY James Performativity London and New York Routledge New Critical Idiom 2007MARGULIES Ivone Nothing happens Chantal Akermanrsquos Hyperrealist Everyday Duke UniversityPress Durham and London 1996PEIXOTO Nelson Brissac ldquoO olhar do estrangeirordquo In NOVAES Adauto (org) O olhar Satildeo PauloCompanhia das Letras 1988 p361-365PHILIPPON Alain Fragments bruxelois entretien avec Chantal Akerman Cahiers du cineacutema 3411982 p 19-23PURSLEY Darlene Moving in time Chantal Akermanrsquos Toute une nuit MLN Volume 120 Number5 December 2005 (Comparative Literature Issue) p 1192-1205

SARLO Beatriz Cenas da vida poacutes-moderna intelectuais arte e videocultura na Argentina Riode Janeiro Editora UFRJ 2004SCARPETTA Guy Lrsquoimpureteacute Paris Bernard Grasset 1985SCHMID Marion Chantal Akerman (French Film Directors) Manchester and New York ManchesterUniversity Press 2010SHAVIRO Steven Clicheacutes of identity Chantal Akermanrsquos musicals Quarterly review of film andvideo 241 2007 p 11-17______ The life after death of postmodern emotions Criticism volume 46 number 1 Winter2004 p125-141SONTAG Susan Sobre fotograa Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004______ Diante da dor dos outros Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003WILLS David ldquoThe french remark Breathless and cinematic citationalityrdquo In HORTON AndrewMcDOUGAL Stuart Y (eds) Play it again Sam retakes on remakes Berkeley University of California

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O CLICHEcirc COMO ARTIFIacuteCIO NAS ARTES E NA CULTURA MIDIAacuteTICA CONTEMPORAcircNEA 983085 FAacuteBIO RAMALHO | wwwposecoufrjbr 87

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se ainda hoje algumas de suas observaccedilotildees demonstram relevacircncia e despertam in-teresse ndash chama-nos a atenccedilatildeo especialmente o fato de que para Sarlo as imagenslembradas seriam as que manifestam a capacidade de ldquofixar-se com o peso do icocircnicordquo(Sarlo 2004 62) ndash a forccedila de leituras criacuteticas como as que vecircm sendo propostas porSteven Shaviro Ivone Margulies e outros eacute justamente pensar a potecircncia das imagenssem recorrer a todo um encadeamento de paracircmetros como peso substacircncia densi-

dade profundidade

Para Warhol assim como para Akerman especialmente em suas comeacutedias musicaisda deacutecada de 1980 ndash e para persistirmos nos dois projetos esteacuteticos que guiaram al-gumas das reflexotildees aqui articuladas ndash a iconicidade das imagens se realiza em seuproacuteprio valor de superfiacutecie e assumindo o caraacuteter de segunda ordem das obras en-quanto partiacutecipes de um universo sensiacutevel disperso e multifacetado Aqui voltamosa insistir na potecircncia que adveacutem dessa possibilidade de acionar os repertoacuterios dosespectadores como mateacuteria a partir da qual a potecircncia criativa investe seus esforccedilosNo reconhecimento desse caraacuteter sobrecodificado da cultura natildeo estamos eacute verdademuito distantes das palavras de Nelson Brissac Peixoto

Nosso argumento eacute que conforme o percurso que vimos esboccedilando o esvaziamentodo significado pela via da repeticcedilatildeo natildeo constitui algo necessariamente negativo Se-gundo as leituras de Shaviro Margulies Schmid Gueroacuten e mesmo em certos aspec-tos Baudrillard a repeticcedilatildeo e os efeitos de superfiacutecie podem ser tambeacutem afirmativos

engendram relaccedilotildees e modos possiacuteveis de intervenccedilatildeo no real Por essa via embara-lham-se as categorias numa imagem-clichecirc que retorna convencional poreacutem atraves-sada por muacuteltiplos desvios reconheciacutevel poreacutem distorcida superficialmente legiacutevelporeacutem destituiacuteda de quaisquer sentidos estaacuteveis Vaga sensaccedilatildeo de jaacute visto nuncacompletamente jaacute assimilado posto que a proacutepria expectativa de entendimento pres-supotildee a existecircncia de um sentido que poderia ou natildeo ser captado mas que aqui girasobre si mesmo e se desfaz Compreender e processar um significado preexistenteimplicaria uma verticalizaccedilatildeo e um adensamento que satildeo frustrados pela proacutepria radi-cal superficialidade do artifiacutecio

Natildeo se trata de dizer que os clichecircs satildeo infinitamente remodelaacuteveis nem de redefini-los como paradoxalmente inexauriacuteveis A esse respeito eacute certeira a observaccedilatildeo deSarlo ldquoao elitismo das posiccedilotildees mais criacuteticas natildeo deveria opor-se uma inversatildeo simeacute-trica sob a forma de um neopopulismo seduzido pelos encantos da induacutestria culturalrdquo(Sarlo 2004 p65) Natildeo obstante para Sarlo a ldquorepeticcedilatildeo eacute uma maacutequina de produziruma suave felicidaderdquo (Sarlo 2004 p63) um deleite alcanccedilado pela via do apazigua-mento Caberia insistir no entanto e em favor mesmo das ressalvas colocadas dianteda dupla rejeiccedilatildeo ao ldquoelitismordquo e ao ldquoneopopulismo de mercadordquo que o prazer oriundoda relaccedilatildeo com a imagerie que marca nossa experiecircncia do contemporacircneo estaacutelonge de reduzir-se a uma suspensatildeo dos conflitos De fato um dos ganhos trazidospelas discussotildees sobre as formas do artifiacutecio na cultura e nas artes decorre justamenteda problematizaccedilatildeo de noccedilotildees demasiadamente unilaterais tais como o ldquoescapismordquoe a ldquofuga do realrdquo

nesse mundo de cenaacuterios e personagens tudo eacute imagerie Tem a consistecircnciade mito e imagem A cultura contemporacircnea eacute de segunda geraccedilatildeo onde ahistoacuteria a experiecircncia e os anseios de cada um satildeo moldados pela literaturaos quadrinhos o cinema e a TV Vidas em segundo grau Todas essas histoacuterias jaacuteforam vistas todos estes lugares visitados (Peixoto 1988 p362)

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O prazer do artifiacutecio natildeo consiste num suave apaziguamento mas em instalar-se namobilidade entre o reconhecimento e a frustraccedilatildeo dos modos estabelecidos de apre-ensatildeo sensiacutevel e dos esquemas de inteligibilidade Um modo de ler o mundo e umaconstante incerteza em relaccedilatildeo agravequilo que lemos Uma pergunta pelo que haacute de ile-giacutevel no que eacute supostamente oacutebvio bem como uma salutar suspeita diante das pre-tensotildees de ruptura quando esta arrisca tornar-se demasiadamente auto-importante

Talvez do artifiacutecio decorra um prazer hesitante certamente haacute nele um prazer que sealimenta da duacutevida

Referecircncias bibliograacutecas

BAUDRILLARD Jean El complot del arte ilusioacuten y desilusioacuten esteacuteticas Buenos Aires Madrid Amor-rortu Editores 2006DELEUZE Gilles A imagem-tempo Traduccedilatildeo de Eloisa de Arauacutejo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007DELEUZE Gilles GUATTARI Feacutelix ldquoPercepto afecto e conceitordquo In O que eacute a filosofia Rio de JaneiroEd 34 Coleccedilatildeo Trans 1992 p 211-255GUEROacuteN Rodrigo Da imagem ao clichecirc do clichecirc agrave imagem Deleuze cinema e pensamento Riode Janeiro NAU Editora 2011

JAMESON Fredric Poacutes-modernismo a loacutegica cultural do capitalismo tardio Satildeo Paulo EditoraAacutetica 2ordf ed 2007JOLY Martine Introduccedilatildeo agrave anaacutelise das imagens Campinas SP Papirus Editora 2004LOXLEY James Performativity London and New York Routledge New Critical Idiom 2007MARGULIES Ivone Nothing happens Chantal Akermanrsquos Hyperrealist Everyday Duke UniversityPress Durham and London 1996PEIXOTO Nelson Brissac ldquoO olhar do estrangeirordquo In NOVAES Adauto (org) O olhar Satildeo PauloCompanhia das Letras 1988 p361-365PHILIPPON Alain Fragments bruxelois entretien avec Chantal Akerman Cahiers du cineacutema 3411982 p 19-23PURSLEY Darlene Moving in time Chantal Akermanrsquos Toute une nuit MLN Volume 120 Number5 December 2005 (Comparative Literature Issue) p 1192-1205

SARLO Beatriz Cenas da vida poacutes-moderna intelectuais arte e videocultura na Argentina Riode Janeiro Editora UFRJ 2004SCARPETTA Guy Lrsquoimpureteacute Paris Bernard Grasset 1985SCHMID Marion Chantal Akerman (French Film Directors) Manchester and New York ManchesterUniversity Press 2010SHAVIRO Steven Clicheacutes of identity Chantal Akermanrsquos musicals Quarterly review of film andvideo 241 2007 p 11-17______ The life after death of postmodern emotions Criticism volume 46 number 1 Winter2004 p125-141SONTAG Susan Sobre fotograa Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004______ Diante da dor dos outros Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003WILLS David ldquoThe french remark Breathless and cinematic citationalityrdquo In HORTON AndrewMcDOUGAL Stuart Y (eds) Play it again Sam retakes on remakes Berkeley University of California

Press 1998 p147-161

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O prazer do artifiacutecio natildeo consiste num suave apaziguamento mas em instalar-se namobilidade entre o reconhecimento e a frustraccedilatildeo dos modos estabelecidos de apre-ensatildeo sensiacutevel e dos esquemas de inteligibilidade Um modo de ler o mundo e umaconstante incerteza em relaccedilatildeo agravequilo que lemos Uma pergunta pelo que haacute de ile-giacutevel no que eacute supostamente oacutebvio bem como uma salutar suspeita diante das pre-tensotildees de ruptura quando esta arrisca tornar-se demasiadamente auto-importante

Talvez do artifiacutecio decorra um prazer hesitante certamente haacute nele um prazer que sealimenta da duacutevida

Referecircncias bibliograacutecas

BAUDRILLARD Jean El complot del arte ilusioacuten y desilusioacuten esteacuteticas Buenos Aires Madrid Amor-rortu Editores 2006DELEUZE Gilles A imagem-tempo Traduccedilatildeo de Eloisa de Arauacutejo Ribeiro Satildeo Paulo Brasiliense 2007DELEUZE Gilles GUATTARI Feacutelix ldquoPercepto afecto e conceitordquo In O que eacute a filosofia Rio de JaneiroEd 34 Coleccedilatildeo Trans 1992 p 211-255GUEROacuteN Rodrigo Da imagem ao clichecirc do clichecirc agrave imagem Deleuze cinema e pensamento Riode Janeiro NAU Editora 2011

JAMESON Fredric Poacutes-modernismo a loacutegica cultural do capitalismo tardio Satildeo Paulo EditoraAacutetica 2ordf ed 2007JOLY Martine Introduccedilatildeo agrave anaacutelise das imagens Campinas SP Papirus Editora 2004LOXLEY James Performativity London and New York Routledge New Critical Idiom 2007MARGULIES Ivone Nothing happens Chantal Akermanrsquos Hyperrealist Everyday Duke UniversityPress Durham and London 1996PEIXOTO Nelson Brissac ldquoO olhar do estrangeirordquo In NOVAES Adauto (org) O olhar Satildeo PauloCompanhia das Letras 1988 p361-365PHILIPPON Alain Fragments bruxelois entretien avec Chantal Akerman Cahiers du cineacutema 3411982 p 19-23PURSLEY Darlene Moving in time Chantal Akermanrsquos Toute une nuit MLN Volume 120 Number5 December 2005 (Comparative Literature Issue) p 1192-1205

SARLO Beatriz Cenas da vida poacutes-moderna intelectuais arte e videocultura na Argentina Riode Janeiro Editora UFRJ 2004SCARPETTA Guy Lrsquoimpureteacute Paris Bernard Grasset 1985SCHMID Marion Chantal Akerman (French Film Directors) Manchester and New York ManchesterUniversity Press 2010SHAVIRO Steven Clicheacutes of identity Chantal Akermanrsquos musicals Quarterly review of film andvideo 241 2007 p 11-17______ The life after death of postmodern emotions Criticism volume 46 number 1 Winter2004 p125-141SONTAG Susan Sobre fotograa Satildeo Paulo Companhia das Letras 2004______ Diante da dor dos outros Satildeo Paulo Companhia das Letras 2003WILLS David ldquoThe french remark Breathless and cinematic citationalityrdquo In HORTON AndrewMcDOUGAL Stuart Y (eds) Play it again Sam retakes on remakes Berkeley University of California

Press 1998 p147-161