O colono preto como fator da civilização brasileira, de Manuel Querino

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Uma das obras mais importantes do pesquisador afro-brasileiro Manuel Querino, publicado pela primeira vez em 1918. Para mais informações, visite: mrquerino.blogspot.com

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O COLONO PRETO COMO FATOR DA CIVILIZAO BRASILEIRAManuel QuerinoO texto a seguir foi publicado pela primeira vez na cidade de Salvador em 1918, pela Imprensa Official do Estado. Contm referncias que continuam sendo relevantes e atuais para o estudo do africano e do afrodescendente no Brasil, entre elas a histria dos quilombolas e o Quilombo de Palmares. Segundo o brasilianista e historiador E. Bradford Burns, autor de um ensaio bibliogrfico sobre Querino que incluiu a traduo das ltimas pginas de O colono preto, com o ttulo The African Contribution to Brazil: Este ensaio continha abundantes insights, muitos dos quais foram adotados e expandidos por outros estudiosos tanto que, hoje em dia, difcil apreciar a originalidade demonstrada por Querino quando os sugeriu pela primeira vez. Por exemplo, outros estudiosos tm enfatizado que a frica forneceu a mo-de-obra qualificada e no-qualificada que construiu o Brasil. Entretanto este ensaio apresenta outras contribuies significantes por parte dos negros que os historiadores ainda no ponderaram.2 Burns fornece como exemplo o destaque que o estudioso afro-brasileiro deu para o papel principal do negro na defesa do Brasil e a manuteno da integridade nacional durante seu tempo no Exrcito, Querino teve uma posio privilegiada para testemunhar as contribuies dos negros, inclusive capoeiras, Zuavos Baianos e outros Voluntrios da Ptria, durante a Guerra da Trplice Aliana. Alm de fazer uma contribuio valiosa Histria das Artes da Bahia, Querino tambm contribuiu significantemente com o esforo que est sendo realizado at hoje para destacar o papel do negro na Histria do Brasil, recentemente respaldado pela Lei 10.639/03, que torna obrigatrio o ensino da Histria da frica e dos personagens afrodescendentes.1

1 Publicado pela primeira vez em 1918. Encontra-se no livro Costumes Africanos no Brasil (P.

129-161) e tambm foi republicado na revista Afro-sia, n. 13, P. 143-158. 1980. 2 BURNS, E. Bradford. Manuel Querinos Interpretation of the African Contribution to Brazil. The Journal of Negro History, LIX (1), p.78-86, jan. 1974.).

CAPTULO I PORTUGAL NO MEADO DO SCULO XVI Perdidas as pretenses de domnio, por infrutferas que foram as resolues audaciosas de altos cometimentos, no Oriente, as vistas da metrpole se voltaram, esperanosas, para a Amrica Portuguesa. Escreveu eminente publicista lusitano, tratando da colonizao do Brasil: Legislamos, como se foram os portugueses de alm-mar os prias da metrpole. Governamos, como se o Brasil fosse apenas uma herdade onde trouxssemos agages3 obscuros e opressos jornaleiros. Defendemos-lhe a comunicao, e o trato de gentes peregrinas. Reduzimos a estanco e monoplio grande parte das suas mais valiosas produes. Proibimos-lhe que erigisse um tear, uma forja, uma oficina. Declaramos por atentado que um s prelo difundisse timidamente a sua luz naquelas regies escurecidas. Condenamos, por subversivas, as sociedades literrias. Receamos que a mnima ilustrao do pensamento nos roubasse a colnia emancipada. E ajuntava o mesmo escritor: O que nos sobra em glria de ousados e venturosos navegantes, mngua-nos em fama de enrgicos e previdentes colonizadores. Conquistamos a ndia para que estranhos a lograssem. Devassamos a China, para que utilizassem depois os seus comrcios. Levamos ao Japo o nosso nome para que outros mais felizes implantassem naquela terra singular os primeiros rudimentos da Civilizao Ocidental. Lustramos a frica para que alheios povos, tachando-nos de inertes e remissos, nos disputssemos o que no soubemos aproveitar. Dos infindos territrios que a nosso poderio avassalamos, resta-nos apenas no Oriente quanto de terra era sobeja para cravar como histrica tradio, a bandeira3 Seguidores, possivelmente derivado do verbo agajar seguir ou acompanhar por obrigao, segundo o Dicionrio Houaiss (Nota da Editora).

nacional.4 A respeito da ao civilizadora dos portugueses no Oriente escreveu ainda notvel historiador patrcio: Os portugueses foram, sem dvida, bons soldados e bons marinheiros empreendedores, valentes e denodados, porm nunca foram conhecidos seno como conquistadores. Conquistaram grande parte da frica e da sia, e de suas conquistas s sabemos que tantos mil mouros ou ndios se tinham deixado degolar impunemente por tantos centos de portugueses, em tal ou qual parte. Das regies mais distantes apenas conhecamos as riquezas que serviam de estmulo cobia dos novos argonautas; nada sabamos, que pudesse interessar s cincias e s artes, at que outros povos participassem igualmente de seus despojos: foi ento, que pudemos conhecer as produes da natureza naqueles variados climas. Leiam-se as crnicas daqueles tempos, consultem-se os historiadores mais fiis e se ver a longa srie de faanhas ao lado de uma descrio pomposa de um rei prisioneiro ou convertido f nela espada de um aventureiro. Runas e sepulcros foram os monumentos que deixaram na ndia os portugueses: muita glria, se queremos, e nada mais.5 Decidiu-se, pois, a metrpole portuguesa a recuperar no Brasil o que perdera no Levante, e aqui os recursos de toda a ordem poderiam satisfazer s necessidades do momento, e, bem assim, assegurar-lhe prspero futuro. Nessa faina, porm, de dobrar cabos e desbravar territrios infindos, em proveito alheio, esterilizou-se toda a febre de grandezas e poderio da nao portuguesa, muito embora nas signas das suas caravelas se envolvessem a cupidez, ganncia, fome de ouro, sede de conquista.6 Iniciada a colonizao com os piores elementos da metrpole, o ndio insubmisso revoltou-se contra a tirania e injustia de que fora vtima, com a explorao da sua atividade nos trabalhos da lavoura. Comearam ento as lutas para a submisso dos silvcolas, as quais nem os4 Latino Coelho Elogio Histrico de Jos Bonifcio Lisboa, 1877. 5 General Abreu e Lima Esboo Histrico, Poltico e Literrio do Brasil. 6 Guerra Junqueiro Discurso Republicano.

prprios jesutas conseguiram obstar ou atenuar. O que a Companhia de Jesus conseguia com brandura persistente, com sua palavra repassada de carinho e de meiguice, o colonizador portugus ia destruindo pelo terror e pelo domnio da fora. De um lado, o afago e o desejo de uma aliana fraternal e durvel; do outro, o castigo, as torturas, as sevcias, os tormentos inconcebveis. O regimento dado a Tom de Sousa, primeiro governador, determinava: Mais entretanto que negociar as pazes, faa o governador por colher s mos alguns dos principais que tiverem sido cabeas dos levantamentos, e os mande enforcar por justia nas suas prprias aldeias . Com semelhante modo de colonizar, preferiram, pois, os pobres ncolas americanos refugiar-se entre os animais bravios, onde a liberdade fosse o mais valioso apangio da sua vida errante. O parasitismo alou o colo, deu combate em campo raso com o apoio do governo, que participava dos lucros auferidos. Por isso, o colono branco vinha com o esprito atormentado pela ganncia, repetindo o estribilho da me-ptria: Toda a prata que fascina Todo o marfim africano Todas as sedas da China. Com ansiedade devastadora atirou-se empresa, confiante no resultado imediato. Em todas as colnias espanholas e portuguesas, um subsolo riqussimo em minerais movia as ambies do imigrante. S vinha para a Amrica o homem tangido de esperanas e preocupaes de fortuna rpida e fcil. Nenhum sentimento superior o animava: nem mesmo o sentimento da liberdade. O prprio despotismo era aceitvel se se conciliava com o interesse do momento.7 Mal sucedido com o indgena que abandonara o litoral para embrenhar-se na floresta virgem, a metrpole mudou de rumo, e, a exemplo de outras naes da Europa, e, de parceria com o rabe, firmou o seu detestvel predomnio no celeiro inesgotvel, que fora o Continente negro, arrancou dali o7 Rocha Pombo Histria do Brasil.

brao possante do africano para impulsionar e intensificar a produo de cereais e da cana-de-acar e desentranhar do seio da terra o diamante e metais preciosos.

CAPTULO II CHEGADA DO AFRICANO NO BRASIL, SUAS HABILITAES A histria nos afirma que, muito antes da era crist, os rabes se haviam introduzido nos sertes do Continente negro, e com maior atividade no sculo VII. Missionrios muulmanos internaram-se em alguns pontos da frica, semeando os germens da civilizao, abolindo a antropofagia e a abominvel prtica dos sacrifcios humanos. Levando-se em conta o grau de cultura atingindo por esses invasores, com tais predicados, no resta a menor dvida de que foram eles os introdutores dos conhecimentos indispensveis ao modo de viver do africano nas florestas, nas plancies, nas matas, nas montanhas, vigiando os rebanhos, cultivando os campos, satisfazendo assim as necessidades mais rudimentares da vida. Acrescente-se a essa circunstncia, a fundao de feitorias portuguesas em diversos pontos do Continente, e, chegar-se- concluso de que o colono preto, ao ser transportado para a Amrica, estava j aparelhado para o trabalho que o esperava aqui, como bom caador, marinheiro, criador, extrator do sal, abundante em algumas regies, minerador de ferro, pastor, agricultor, mercador de marfim, etc. Ao tempo do trfico, j o africano conhecia o trabalho da minerao, pois l abundava o ouro, a prata, o chumbo, o diamante e o ferro. E como prova de que ele de longa data conhecia diversas aplicaes materiais do trabalho veja-se o que diversos exploradores do Continente negro dizem de referncia ao que sobre o objeto encontraram. Em Vuane Kirumbe vimos uma forja indgena, onde trabalhavam cerca de uma dzia de homens. O ferro que se empregava era muito puro e com ele fabricavam os grandes ferros para as lanas de Urega meridional, 8 facas de uma polegada e meia de extenso, at ao pesado cutelo em forma de gldio romano. A arte de ferreiro muito apreciada nestas florestas onde, em conseqncia do seu isolamento, as aldeias so obrigadas a fazerem tudo. Cada gerao aprende por sua vez os processos tradicionais, que so numerosos, e mostram que o8 Hoje na Repblica Democrtica do Congo, na provncia de Kivu Sul (Nota da Editora).

prprio homem das solides um animal progressivo e perfectvel.9 Conhecem tambm os processos necessrios para o fabrico de ao, pela combinao do ferro com o carbono e a tmpera.10 Para a explorao das minas na frica precedia consulta aos deuses do feiticismo. Satisfeita esta pela afirmativa, iniciavam as obrigaes, com danas, feitura de ebs, matana de aves e animais para o melhor xito da empresa. s vezes, no faltavam tambm os sacrifcios humanos. Em meio do seu regozijo exclamavam: Devemos cavar a terra para enriquecer. No contentes com escravizar o ndio brasileiro, destruindo-lhe tribos e naes inteiras, como se deu no Maranho e no Par, como se fez no Guair, na zona do sul, no sculo XVII, e porque o escravo indgena era mui inconstante e menos seguro, sobre ser uma propriedade muito controvertida entre os colonos e as autoridades, voltaram os colonizadores do Brasil vistas cobiosas para as terras da frica e da retiraram a mais rica mercadoria que Ihes no forneciam os silvcolas americanos. Os portugueses sados de uma zona temperada para se estabelecerem em um clima ardente, diverso do da metrpole, seriam incapazes de resistir ao rigor dos trpicos, de desbravar florestas e arrotear as terras sem o concurso de um brao mais afeito luta nessas regies esbraseadas e combatidas pelo impaludismo devastador. Ao reinol, pois, que trazia o propsito de enriquecer com menos trabalho, fcil lhe foi encontrar nisto razo e justificativa para se utilizar do colono negro, adquirido na frica. Sem isso, difcil seno impossvel era pegar no Pas a colonizao com elemento europeu, tanto mais quanto ao iniciar-se esta, afora os serventurios da alta administrao, as primeiras levas eram de degredados, de indivduos viciosos e soldados de presdio. Foi, portanto, mister importar desde cedo, o africano e dentro em pouco tempo os navios negreiros despejavam na metrpole da Amrica Portuguesa e em outros pontos centenas e centenas de africanos, destinados aos trabalhos da agricultura e a todos os outros misteres. As prprias expedies bandeirantes no lhe9 Stanley Atravs do Continente Negro Vol. 2, pg. 362. 10 Capello e Ivens De Benguela s Terras de Yacca Vol. 1, pg. 105.

dispensavam o concurso, pois que de quanto podia servir o negro nada se perdia. A primeira folheta de ouro encontrada na margem do Rio Funil, em Ouro Preto, coube a um preto bandeirante; bem como a descoberta do diamante Estrela do Sul. Laborioso como era, muito embora com o corpo seviciado pelos aoites do feitor, estava sempre o escravo negro, obediente s suas determinaes, com verdadeiro estoicismo. No fim do sculo XVII comeou a explorao das minas. O trfico africano aumentou de intensidade, e as entradas do colono preto, no Pas, foram muito maiores. Cresceu, portanto, a cobia e o parasitismo tomou o aspecto de uma instituio social, com todo o cortejo de vcios e maldades. No domnio espanhol, a plebe que na terra natal grunhia na mais negra misria, buscando no furto e na mendicidade diverso e remdio s torturas da fome, mas, julgando sempre o trabalho abaixo da sua dignidade, igualmente assumia propores arrogantes de nobreza e valimento . A idia de riqueza fcil banira da mente do aventureiro faminto o amor do trabalho, que era considerado uma funo degradante. Por mais respeitvel que fosse a ocupao era ela desprezada pelos reinis de pretenses afidalgadas. Esta circunstncia, porm, favoreceu aos homens de cor nas aplicaes mecnicas, e mesmo algumas liberais, cuja aprendizagem valia como um castigo infligido aos humildes, como se fora ocupao infamante. S a estes era dado trabalhar. Foi sobre o negro, importado em escala prodigiosa, que o colono especialmente se apoiou para o arrotear dos vastos territrios conquistados no Continente sulamericano. Robusto, obediente, devotado ao servio, o africano tornou-se um colaborador precioso do portugus nos engenhos do Norte, nas fazendas do Sul e nas minas do Interior. Com esse elemento, o reinol ambicioso e traficante viu crescer a febre da descoberta dos diamantes e do ouro. Luxava-se por ingnua vaidade, por exagerada ostentao, por vanglria de enricados, por tdio, sobretudo. Uma testemunha da poca escreveu: Vestem-se as mulheres e filhos, de toda a sorte de veludos, damascos e outras sedas; e nisto tm grandes excessos. So sobretudo dados a banquetes, e bebem cada ano dez mil cruzados de vinho

de Portugal e alguns anos houve que beberam oitenta mil cruzados dados em rol. Banquetes de extraordinrias iguarias...e agasalham em leitos de damasco carmesim, franjado de ouro e ricas colchas da ndia.11 Sem esquecimento, j se v dos servios de prata, palanquins, cavalos de preo com os respectivos guies e selas de ouro, tudo adquirido pelo esforo do heri do trabalho que era o africano escravo, dcil e laborioso; pois o reinol acostumara-se a gozar o fruto do trabalho sem sentir-lhe o peso.

11 Oliveira Lima Aspectos da Literatura Colonial Brasileira.

CAPITULO III PRIMEIRAS IDIAS DE LIBERDADE, O SUICDIO E A ELIMINAO VIOLENTA DOS SENHORIOS O castigo nos engenhos e fazendas, se no requintava, em geral, em malvadez e perversidade, era no raro severo, e por vezes cruel. Mas, apontavam-se com repulsa social, os senhores que disso abusavam. Ora era o escravizado preso, conduzido pelo capito-do-mato, que o obrigava a acompanhar os passos da cavalgadura; ora eram dois possantes escravizados de azorrague em punho a aoitarem a um parceiro, cortando-lhe as carnes, at expirar, na presena do algoz, que assistia, satisfeito, quela cena de canibalismo, vaidoso da sua incontida prepotncia. Ali, um escravizado preso ao tronco e s vezes pelo pescoo, sob a ao do suplcio da fome e da sede, sem conseguir alcanar o alimento ou o vaso de gua colocados propositadamente fora do alcance das mos, enquanto os roedores mordiam-lhe os ps. Depois, uma vtima que esteve no vira-mundo, amarrada ao costado de um animal e mandada atirar longe do povoado, para sucumbir mngua de qualquer recurso. A nostalgia apoderou-se dos infelizes; e o filho do deserto adusto, recordando a impetuosidade do vento, o murmrio brando da cascata, o eco adormecido das florestas do torro natal, angustiado pelo rigor da escravido cruel, mortificado de pesares, uma nica idia lhe perpassava na mente, um pensamento nico lhe assaltava o esprito: a idia sacrossanta da liberdade que ele tinha gravada no ntimo de sua alma. E houve quem se apiedasse do seu infortnio consagrando-lhe estes consoladores versos: Nas minhas carnes rasgadas, Nas faces ensangentadas Sinto as torturas de c; Deste corpo desgraado Meu esprito soltado

No partiu ficou-me l! Naquelas quentes areias, Naquela terra de fogo, Onde livre de cadeias Eu corria em desafogo... L nos confins do horizonte... L nas plancies...no monte... L nas alturas do Cu... De sobre a mata florida Esta minha alma perdida No veio s parti eu. A liberdade que eu tive Por escravo no perdia-a; Minh'alma que l s vive Tornou-me a face sombria O zunir do fero aoite Por estas sombras da noite No chega, no, aos palmares L tenho terra e flores... Minha me...os meus amores... Nuvens e cus...os meu lares.12 E como conquistar a liberdade? Como adquiri-la ou reav-la? Os mais impacientes atiravam-se correnteza dos rios ou as guas revoltas do mar, atenazados por desespero sem nome, na incerteza de obter o bem perdido, sem a mais tnue miragem da esperana, sob a esmagadora persuaso de ressuscitarem na terra amada. Seis escravos cantavam, como se nunca tivessem sentido a sua abjeo, nem o peso do forcado que tinha no pescoo. Perguntei-lhes a causa da sua alegria: eles responderam-me que se regozijavam de vir depois da morte, atormentar e matar aqueles que os tinham vendido.13 Os estrangulamentos voluntrios, as bebidas txicas e suplcios outros foram os mais prontos recursos de que lanaram mo para extinguir uma existncia to penosa. Depois, entenderam os escravizados que o senhorio era quem deveria padecer12 Jos Bonifcio o moo. Saudades do Escravo. 13 David Livingstone Exploraes Africanas.

morte violenta, a que se entregavam os infortunados cativos. No vacilaram um instante e puseram em pratica os envenenamentos, as trucidaes brbaras do senhorio, dos feitores e suas famlias. Era a vingana a rugir-lhes na alma; era a repulsa provocada pelos desesperos que Ihes inspirava o horror da escravido. A perversidade de trato contra os escravizados torturava o paciente, e ao esprito lhe acudia a represlia mais extravagante. Reconhecida, porm, a ineficcia de todas essas violncias, o prprio africano recuou de horror, tomando por outro rumo. Recorreram ento fuga e resistncia coletiva, escondidos nas brenhas, onde organizaram verdadeiros ncleos de trabalho.

CAPTULO IV RESISTNCIA COLETIVA, PALMARES, LEVANTES PARCIAIS De quantos martrios aqui acabrunharam o corao da raa africana, teve esta, no entanto, um momento de expansivo desafogo, quando, desertando os engenhos e fazendas, os escravos constituram a confederao de Palmares, em defesa de sua liberdade. A Roma antiga, que tantos povos escravizou, viu um dia, estupefata e aterrada, um Espartacos testa de um exrcito de escravos. No Brasil a escravido tambm impeliu o africano a suas revoltas, e ao seu desforo. L foi a guerra servil com todos os seus horrores; em Palmares os elementos ai congregados no tiveram por alvo a vingana: bem ao contrrio, o seu objetivo foi escapar tirania e viver em liberdade, nas mais legtimas aspiraes do homem. Os escravos gregos eram instrudos tanto, nos jogos pblicos como na literatura, vantagens que o africano escravizado na Amrica no logrou possuir, pois o rigor do cativeiro que no consentia o menor preparo mental, embotava-lhe a inteligncia. Sem embargo, mostrou-se superior s angstias do sofrimento, e teve gestos memorveis de revolta, buscando organizar sociedade com governo independente. Conhecia as organizaes guerreiras e se predisps para a defesa de sua cidadela de Palmares, e para as incurses oportunas no territrio vizinho e inimigo. No desprezava as melodias selvagens adaptadas aos seus cantos de guerra. O escravo grego ou romano, abandonando o senhorio, no cogitava de se organizar em sociedade regular, em territrio de que porventura se apoderava; vivia errante ou em bandos entregues a pilhagem. A devastao, de que se fizeram pioneiros os escravos romanos, inspirava terror a todos os que tinham notcias de sua aproximao. Os fundadores de Palmares no procederam de igual modo; procuraram refgio no seio da natureza virgem e a assentaram as bases de uma sociedade, a imitao das que dominavam na frica, sua terra de origem, sociedade, alis, mais adiantada do que as

organizaes indgenas. No era uma conquista movida pelo dio, mas uma afirmao legtima do desejo de viver livre, e, assim, possuam os refugiados dos Palmares as suas leis severas contra o roubo, o homicdio, o adultrio, as quais, na sua vida interna observavam com rigor. No os dominava o dio contra o branco; perdoaram e esqueceram mgoas, pondo-se a salvo, pelo amor da liberdade, pois que toda a sua aspirao cifravase na alegria de viver livre. Na sociedade de Palmares no medravam os vagabundos e malfeitores; a vida de torturas das senzalas substitura-se pelo conforto natural e aparelhado. Quando o civilizado chegava at a entrar em dvida, se o africano ou o ndio tinha alma e os mais tolerantes mal a concediam somente depois de batizado, o filho do Continente negro dava provas de que a possua, revoltando-se com indignao contra a inqua opresso de que era vtima, e impondo fora a sua liberdade e independncia. De todos os protestos histricos do escravo, Palmares o mais belo, o mais herico. uma Tria negra, e sua histria uma Ilada.14 Palmares formam a pgina mais bela do herosmo africano e do grande amor da independncia que a raa deixou na Amrica.15 A derrota de Palmares estimulou o senhorio no jugo ferrenho em que trazia o escravizado; era a reao requintada pela previso do perigo. O escravo do Recncavo da Bahia, principalmente, era, no geral, mal alimentado e no raro, por vesturio, possua apenas a tanga de tnue pano de aniagem. Mas o africano escravo no descansava, mantinha firme a idia de conquistar a liberdade perdida, por qualquer meio. O governador Conde da Ponte, em 1807, ordenara medidas severas contra os quilombos, que se multiplicavam em desmedida. Tornaram-se os senhores ainda mais cruis, ao mesmo passo que aumentava o rancor e despertava a sede de vingana, nos infelizes. Prova-o a srie crescente de levantes, em toda a parte, qual mais, qual menos importante, seguidos de morticnios. A coragem dos revoltados, a servio da liberdade prpria, no media sacrifcios, no se conformava com o injusto sofrimento. Era preciso lutar, e lutar muito atendendo desigualdade de condies.14 Oliveira Martins Portugal e as Colnias. 15 Rocha Pombo Histria do Brasil vol. 2.

Incendiado o dio implacvel no peito desses mseros humanos, pelos brbaros castigos e maus tratos que Ihes infligiam os senhores, era natural que explodisse uma conspirao infernal. Em 28 de fevereiro de 1814, na Bahia, flagelados pela fome e desesperados pelo excesso de trabalho e pela habitual crueldade dos feitores, rebelaram e armados assaltaram as casas e senzalas das armaes, em Itapo. As tropas da Legio da Torre tiveram no mesmo dia vrios encontros com os rebeldes junto de Santo Amaro de Ipitanga. Os pretos investiam contra elas to desesperados e embravecidos que s cediam na luta quando as balas os prostravam em terra.16 A tropa, como de costume, procurava agir sem fazer mortandade no intuito de poupar aos senhores a perda dos seus escravos rebelados. Mas estes preferiam perder a vida, lutando pela sua liberdade, e batendo-se com denodo, desesperadamente. No foram poucos os Espartacos africanos que no Brasil preferiram a morte ao cativeiro.

16 Dr. Caldas Britto Levantes de Pretos na Bahia.

CAPTULO V AS JUNTAS PARA AS ALFORRIAS Extenuado por uma srie de lutas constantes, cerceado por todos os meios, em suas aspiraes, mas, firme, resoluto, confiante em seu ideal, o africano escravo no se desiludiu, no desesperou; tentou outro recurso, na verdade, mais conforme com o esprito de conservao a confiana no trabalho prprio. Conta-nos o infortunado escritor Afonso Arinos, no excelente artigo Atalaia Bandeirante, que a igreja de Santa Ifignia, no Alto da Cruz, em Minas, guarda a lenda de um rei negro e toda a sua tribo, transportada para aquele Estado como escravos, e nivelados pelo mesmo infortnio soberano e vassalos, estes guardaram sempre ao rei a antiga f, o mesmo amor e obedincia. E acrescenta o mesmo escritor: A custa de um trabalho insano, feito nas curtas horas reservadas ao descanso, o escravo rei pagou a sua alforria. Forro, reservou o fruto do seu trabalho para comprar a liberdade de um dos da tribo; os dois trabalharam juntos para o terceiro; outros para o quarto, e assim, sucessivamente, libertou-se a tribo inteira. Ento, erigiram a capela de Santa Ifignia, princesa da Nbia. Ali, ao lado do culto padroeira, continuou o culto ao rei negro, que, pelos seus, foi honrado como soberano e legou s geraes de agora a lenda suave do ChicoRei. Praticavam aqui na Bahia, quase o mesmo, os africanos. Ainda no existiam as caixas econmicas, pois que a primeira fundada na Bahia data de 1834, no se cogitava ainda das caixas de emancipao e das sociedades abolicionistas, antes mesmo de se tornar to larga como depois se tornou a generosidade dos senhorios, concedendo cartas de alforria ao festejarem datas ntimas, e j havia as caixas de emprstimo, destinadas pelos africanos conquista de sua liberdade e de seus descendentes, caixas a que se denominavam Juntas. Com esse nobilssimo intuito reuniam-se sob a chefia de um deles, o de mais respeito e confiana, e, constituam a caixa de emprstimos. Tinha o encarregado

da guarda dos dinheiros um modo particular de notaes das quantias recebidas por amortizao e prmios. No havia escriturao alguma; mas, proporo que os tomadores realizavam as suas entradas, o prestamista ia assinalando o recebimento das quantias ou quotas combinadas, por meio de incises feitas num bastonete de madeira para cada um. Outro africano se encarregava da coleta das quantias para fazer entrega ao chefe, quando o devedor no ia levar, espontaneamente, ao prestamista a quota ajustada. De ordinrio, reuniam-se aos domingos para o recebimento e contagem das quantias arrecadadas, comumente em cobre, e tratarem de assuntos relativos aos emprstimos realizados. Se o associado precisava de qualquer importncia, assistia-lhe o direito de retirla, descontando-se-lhe, todavia, os juros correspondentes ao tempo. Se a retirada do capital era integral, neste caso, o gerente era logo embolsado de certa percentagem que lhe era devida, pela guarda dos dinheiros depositados. Como era natural, a falta de escriturao proporcionava enganos prejudiciais s partes. s vezes, o muturio retirava o dinheiro preciso para sua alforria, e, diante os clculos do gerente, o tomador pagava pelo dobro a quantia emprestada. No fim de cada ano, como acontece nas sociedades annimas ou de capital limitado, era certa a distribuio de dividendos. Discusses acaloradas surgiam nessa ocasio, sem que todavia os associados chegassem as vias de fato, tornando-se desnecessria e imprpria a interveno policial. E assim auxiliavam-se mutuamente, no interesse principal de obterem suas cartas de alforria, e dela usarem como se se encontrassem ainda nos sertes africanos. Resgatavam- se, pelo auxlio mtuo ao esforo paciente, esses heris do trabalho .

CAPITULO VI O AFRICANO NA FAMLIA, SEUS DESCENDENTES NOTVEISPercorrendo a histria, deixando iluminar-nos a fronte a luz amarelenta das crnicas, no sabemos ao certo quem maior influencia exerceu na formao nacional desta terra, se o portugus ou o negro. Chamado para juiz nesta causa, necessariamente o nosso voto no pertence ao primeiro. (Mello Moraes Filho).

A agricultura foi a fonte inicial e perene da riqueza do Pas. Orientada por processos acanhados, rotineiros e superficiais, nem por isso deixou de medrar e desenvolver-se sob a atividade e influxo do trabalho escravo. Todo o esforo fsico do africano caracterizava-se na idia de se aproveitar a maior soma de produo agrcola, donde os colonizadores pudessem colher farta messe de proventos, e s depois de delida a resistncia muscular do escravizado pelos rigores do eito e da cancula, e, sobretudo, pela idade, que se lhe permitia, em paga de tantas fadigas, entregar-se a outros misteres no interior dos lares, e isso quando a morte o no surpreendia em meio dos rudes labores dos campos. Uma vez removido para o lar domstico, o escravo negro, de natureza afetiva, e, no geral, de boa ndole e com a sua fidelidade toda a prova, a sua inteligncia, embora inculta, conquistava a estima dos seus senhores pelo sincero devotamento, e sua dedicao muitas vezes at ao sacrifcio. Foi no lar do senhorio que o negro expandiu os mais nobres sentimentos de sua alma, colaborando, com o amor dos pais, na criao da tenra descendncia dos seus amos e senhores, com o cultivo da obedincia, do acatamento, do respeito velhice e inspirando simpatia, e mesmo amor a todas as pessoas da famlia. As mes negras eram tesouro de ternura para os senhores moos no florescimento da famlia dos seus senhores. Desse convvio no lar, resultaram as diversas modalidades do servio mais ntimo, surgiram ento a mucama de confiana, o lacaio confidente, a ama de leite carinhosa, os pajens, os guarda-costas e criados de estima. Trabalhador, econmico e previdente, como era o africano escravo, qualidade que o descendente nem sempre conservou, no admitia a prole sem ocupao lcita e,

sempre que lhe foi permitido, no deixou jamais de dar a filhos e netos uma profisso qualquer. Foi o trabalho do negro que aqui sustentou por sculos e sem desfalecimento, a nobreza e a prosperidade do Brasil: foi com o produto do seu trabalho que tivemos as instituies cientficas, letras, artes, comrcio, indstria, etc., competindo-lhe, portanto, um lugar de destaque, como fator da civilizao brasileira. Quem quer que compulse a nossa histria certificar-se- do valor e da contribuio do negro na defesa do territrio nacional, na agricultura, na minerao, como bandeirante, no movimento da independncia, com as armas na mo, como elemento aprecivel na famlia, e como o heri do trabalho em todas as aplicaes teis e proveitosas. Fora o brao propulsor do desenvolvimento manifestado no estado social do pas, na cultura intelectual e nas grandes obras materiais, pois que, sem o dinheiro que tudo move, no haveria educadores nem educandos: feneceriam as aspiraes mais brilhantes, dissipar-se-iam as tentativas mais valiosas. Foi com o produto do seu labor que os ricos senhores puderam manter os filhos nas Universidades europias, e depois nas faculdades de ensino do Pas, instruindo-os, educando-os, donde saram venerveis sacerdotes, consumados polticos, notveis cientistas, emritos literatos, valorosos militares, e todos quantos, ao depois fizeram do Brasil colnia, o Brasil independente, nao culta, poderosa entre os povos civilizados. Do convvio e colaborao das raas na feitura deste Pas, procede esse elemento mestio de todos os matizes, donde essa pliade ilustre de homens de talento que, no geral, representaram o que h de mais seleto nas afirmaes do saber, verdadeiras glrias da nao. Sem nenhum esforo pudemos aqui citar o Visconde de Jequitinhonha, Caetano Lopes de Moura, Eunpio Deir, a privilegiada famlia dos Rebouas, Gonalves Dias, Machado de Assis, Cruz e Souza, Jos Agostinho, Visconde de Inhomirim, Saldanha Marinho, Padre Jos Maurcio, Tobias Barreto, Lino Coutinho, Francisco Glicrio, Natividade Saldanha, Jos do Patrocnio, Jos Tefilo de Jesus, Damio Barbosa, Chagas, o Cabra, Joo da Veiga Muric e muitos outros, s para falar dos mortos. Circunstncia essa que nos permite asseverar que o Brasil possui duas grandezas reais: a uberdade

do solo e o talento do mestio. Tratando-se da riqueza econmica, fonte da organizao nacional, ainda o colono preto a principal figura, o fator mximo. So esses os flores que cingem a fronte da raa perseguida e sofredora que, a extinguir-se, deixar imorredouras provas do seu valor incontestvel que a justia da histria h de respeitar e bem dizer, pelos inestimveis servios que nos prestou, no perodo de mais de trs sculos. Com justa razo disse um patriota: Quem quer que releia a histria Ver como se formou A nao, que s tem glria No africano que importou.