O Complexo

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O Complexo z Paloma Ortega Dotto Escobar Autora da série “A Cadeia de Ilhas de Króton Bleeds”

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O Complexo

z

Paloma Ortega Dotto Escobar

Autora da série “A Cadeia de Ilhas de Króton Bleeds”

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Sinopse

Em outra realidade, onde o maior medo dos jovens é completar o décimo oitavo aniversário, um processo secreto se inicia, todos os anos, com a mesma finalidade. No entanto, essa informação ainda é desconhecida, pois todas as pessoas que saíram vivas do Complexo não estão autorizadas a contá-la. O governo controla toda a extensão da área secreta, onde os jovens serão testados até o último suspiro de suas vidas.

Mia é uma garota miúda, que mal aparenta estar completando dezoito anos, e mora em um lugar muito pobre, chamado de Aldeia Branca. Parece ser a única que não conhece a verdade sobre o que acontece depois de escolher a tatuagem obrigatória pelo governo, muito menos sobre a entrevista que pode arruiná-la ou libertá-la para sempre.

No Complexo, todas as semanas, um teste rigoroso é proposto pelos oficiais da liderança. Em um lugar com extensão inimaginável, com desafios arriscados, o que acontece quando alguém se recusa a ceder às vontades sádicas do governo?

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Passavam-se das sete horas quando Mia se levantou naquela manhã. Sua mãe a deixara dormir duas horas a mais, pois era uma ocasião especial. A jovem completava naquele dia seu décimo oitavo aniversário, e isso significava uma transição importante na vida dos cidadãos do novo mundo, chamado de Era da Luz.

Essa nova era, muito embora recebesse um belo nome, era repleta de trevas. As pessoas já não eram livres como o governo prometera uma década antes, muito menos possuíam a segurança, saúde e alimentação adequada, que seriam características de uma era de luz. Coisas ruins aconteciam com pessoas boas, enquanto a maioria dos maléficos saía impune.

Para Mia, que retardaria sua vida ao máximo só para não atingir a maturidade, aquele dia só podia significar uma coisa: nada, exceto o fato de acrescentar um número novo no registro do governo. Não era um dia especial, nem nada disso. Não importava o que sua mãe, Doreah, pudesse dizer, ela continuava detestando aniversários. Isso porque ela mesma teria de sair para negociar mais comida para a família, que já sofria com a falta de itens para suprir suas necessidades básicas. E ainda havia mais. Aos dezoito anos, todos os jovens passavam por uma iniciação, onde eram obrigados a tatuar o corpo. Logo ali, ao escolher que desenho estampar no corpo para sempre, eram avaliados pelo governo. Depois, como se não bastasse, tinham de passar por uma entrevista cruel.

Sua mãe cansara de repetir a mesma coisa, toda vez que seu aniversário se aproximava. “No seu décimo oitavo aniversário, você responderá a várias perguntas. O pessoal do governo virá interrogá-la, então quero que esteja preparada. Mas você vai conseguir, minha querida. É só parecer amável e inofensiva”. Mia não sabia ao certo o que responder todos os anos, então assentia com a cabeça ou reclamava um sonoro “De novo não, mãe!”.

Enquanto arrumava sua cama em seu quarto pobre e empoeirado, sua mãe cantarolava na cozinha. Não que ela desaprovasse a felicidade da mãe, só não conseguia entender de onde aquela alegria vinha. Mia não sabia o que aconteceria se falhasse na entrevista ou se fosse vista com maus olhos pelo governo, mas aquele era o dia em que conheceria toda a verdade.

– O que ainda está fazendo aí? – a mãe chamou. – Eu disse a você que não precisa arrumar o quarto hoje. É seu aniversário! – Ela apareceu com o rosto na entrada do quarto, onde deveria ter uma porta, sorrindo. – Eu sei que não temos muito e... não posso te dar uma roupa nova, ou um bolo decente, ou um presente deslumbrante quanto as que tem as crianças da Zilux...

– Mãe, por favor – interrompeu a garota. – Esta roupa está boa, não preciso de bolo nenhum. Nós não temos muito, imagino como seria se não tivéssemos nada. Por favor.

– Meu presente para você – prosseguiu Doreah – é uma folga das tarefas de casa. A única coisa que não posso fazer é ir ao mercado. Sabe que não tenho seu dom para convencer as pessoas.

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Todas as manhãs, muito cedo, Mia acordava e ajudava a mãe a limpar toda a casa. Não era grande, mas como era muito antiga e miserável, tinham um grande trabalho todos os dias. Os cupins festejavam todos os dias sobre as mobílias, principalmente em sua cama, e os insetos tornaram-se não muito amigáveis durante os últimos anos.

O governo disponibilizava, todos os meses, uma caixa de remédios, uma cesta de alimentos e duas mudas de roupas para cada família. Mia morava com a mãe e o irmão, Ethan, que jamais saía do quarto graças a uma doença fatal, chamada Ênsenis. O garoto tinha apenas seis anos e já via seus sonhos desaparecerem, uma vida que parecia durar muito pouco. Os remédios doados pelo governo não adiantavam para a Ênsenis, que só podia ser curada com um soro muito caro.

– Obrigada, mãe. Como está Ethan?

– Ah – ela suspirou –, como sempre. Não sei mais o que fazer, ele não para de tossir. Mas ele disse que quer vê-la, te abraçar por causa do seu aniversário. Se for até lá, pode, por favor, levar a sopa?

– Mas é claro que eu vou até lá! – protestou, franzindo a testa. Mia passou pela mãe, atravessando o corredor até a sala cinzenta, onde havia um pequeno fogão e uma pia no canto. Apanhou o prato de sopa com as duas mãos e caminhou até o segundo quarto, onde a mãe e o irmão dormiam.

Ethan era um garotinho bonito, apesar de a doença tê-lo deixado com os olhos fundos e tristes. No entanto, parecia aceitar o que lhe ocorria, e sorria com facilidade. Seus cabelos eram mais claros do que os de Mia, mas não possuía os famosos olhos azuis da irmã. O garoto estava deitado no colchão, perto da prateleira onde suas roupas ficavam.

– Vem aqui – ele chamou. Sua voz estava fraca, Mia notou, e ele parecia estar piorando a cada dia. Tossia em intervalos menores, transpirava muito e produzia muito catarro. – Você parece bem. Não está tão magra.

Era verdade. Mia puxara o pai, tanto nos olhos coloridos quanto nas pernas fortes.

– E você está mais magro. – Mia sentou-se no colchão, próxima ao irmão, segurando sua mão gelada. – Se eu pudesse escolher um presente de aniversário, eu pediria alguns quilos a mais para você.

– Bem – ele lamentou –, eu não tenho isso, mas posso te dar um abraço.

Mia tinha lágrimas nos olhos quando o abraçou, desejando não precisar prender a respiração ao chegar tão perto do irmão. A Ênsenis podia ser contagiosa, mas era uma doença nova, então não era totalmente reconhecida.

– Eu vou ao mercado buscar nosso almoço – disse, olhando para a sopa pobre e escassa no chão ao lado deles. – Você deveria experimentar a sopa. Eu sei que você não gosta, e não tem nada nela, mas você realmente precisa ficar melhor.

– Eu vou ficar melhor, não vou, Mia?

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Desta vez, a garota não conseguiu conter uma lágrima, que secou com as costas da mão.

– Você vai – ela prometeu. – Eu vou salvar você, Ethan.

≈≈≈≈

O Mercado do Vigário, como era chamado, estava apinhado de pessoas que transitavam para lá e para cá. O sol iluminava os cabelos longos e castanho-claros de Mia, sem vida, mas que se moviam como se estivessem dançando a cada passo. Ela sabia que seus olhos azuis ficavam ainda mais vivos e brilhantes à luz do dia, o que representava uma vantagem durante as trocas no mercado.

Seu pai costumava dizer que somente as pessoas verdadeiramente corajosas nasciam com olhos tão belos, para representar a beleza da vida quando a esperança parece distante. Mas seu pai estava morto, e todo o resto não importava. Embora fosse a mais forte da família, não podia deixar de lamentar o incidente. David, seu pai, era quem alimentava a casa. Quando ele era vivo, seis meses antes, Ethan não estava doente, não faltava almoço todos os dias, a casa era mais decente e sorrisos enchiam a mesa em todos os cafés-da-manhã.

Mia era uma garota bonita, embora castigada pelo azar de nascer em uma família muito pobre. Tinha as pernas fortes, não era tão magra como a mãe e o irmão. Não que comesse mais que os outros, ela apenas herdara muito da aparência bonita e sadia do pai. Era miúda, para sua idade, mas isso às vezes lhe era muito útil. Outras, porém, faziam dela o principal alvo na escola do governo, onde estudara gratuitamente. Terminara os estudos há um ano, mas ainda podia ouvir as risadas ecoando naquele corredor escuro.

Seu vestido esfarrapado balançava enquanto saltitava entre as tendas de frutas pelo caminho.

– Olá, Elia! – acenou para uma senhora rechonchuda.

– Mia, bom dia! – A senhora apanhou uma maçã e jogou para a garota, que a pegou no ar.

Mia abocanhou a maçã, diminuindo os passos e retendo os saltos suaves. Passou perto de uma tenda de roupas, onde uma mulher rabugenta da vizinhança apontava seu dedo longo e fino para o vendedor, reclamando em voz alta. Rapazes anunciavam as promoções no mercado, desde as frutas até calçados, gritando seus preços baixos. Infelizmente, para Mia, todos aqueles preços pareciam altíssimos.

Uma garota muito pequena, com aproximadamente sete anos, mendigava perto de uma tenda, implorando por algum alimento. A menina tinha um ninho de rato na cabeça, ou pelo menos era aquilo com que seus cabelos se pareciam. Tinha quase a idade de seu irmão, mas não estava doente no leito de um quarto imundo; mendigava por um pedaço miserável de pão, sujeita a diversas doenças na rua.

Ela poderia ser Ethan em outra realidade, Mia pensou, em outro lugar qualquer.

Aproximou-se da garota, puxando-a delicadamente pelo braço, colocando-a em pé.

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– Não adianta pedir para os comerciantes – sussurrou, estendendo a metade que sobrara da maçã. – Eles não se importam, menina.

– Obrigada – a menina murmurou com os olhos brilhando, excitados. – Obrigada, obrigada, obrigada,...

Mia sorriu e a garota se foi, correndo entre as pessoas carregando cestas, feliz em morder sua maçã.

A algumas tendas dali, um amigo muito antigo de seu pai vendia bolos, frutas e peixes. Chamava-se Nestor, e nunca se negava a ajudar sua família, negociando o necessário para que tivessem o que comer. O comerciante estava gritando a plenos pulmões, anunciando ele mesmo suas promoções do dia.

– Atum baratinho, cem gramas por três moedas de prata! Eu disse apenas três moedas de

prata! – Nestor erguia um peixe com uma mão, balançando-o até o pobre animal perder a cabeça. – Atum sem cabeça, apenas duas moedas de prata e uma de bronze! Isso mesmo! Duas de prata e

uma de bronze por um atum sem cabeça!

– Nestor! – Mia acenou, indo na sua direção. – Oi!

– Sardinha em conserva! – gritou, sussurrando e gritando quando era preciso. – Como vai, Mia? Uma moeda de prata!Nunca esteve tão barato! O que você quer hoje? Freguesa, freguês! Aproximem-

se! Como está sua mãe? E Ethan? Somente uma moeda de prata pela sardinha!

– Minha mãe está legal, legal demais até. Ethan está piorando, não sabemos o que fazer – respondeu, quando Nestor parou com sua gritaria. – Eu poderia fazer isso para você, sabe. Sair gritando por aí, falando de peixes.

– Oh, não, eu não preciso – disse gentilmente. – Obrigado pela preocupação. Por que é que sua mãe está tão feliz?

– Na verdade, não sei se aquela alegria toda é cem por cento verdadeira – admitiu, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha e suspirando alto. – Ela parece querer mostrar que meu aniversário é uma coisa muito legal. Mas não é assim que eu sinto.

– Veio comprar um bolo, então? – perguntou, seus olhos brilhando. Mia conhecia aquele olhar. Olhos de ouro, dizia meu pai. Esses são olhos de ganância.

– Eu vim negociar com você, Nestor. – O comerciante franziu o cenho em desagrado, uma expressão que ela nunca vira antes. Mas, de acordo com seu pai, ela apenas precisaria piscar os olhos azuis para convencer as pessoas. – Eu sei que os bolos são caros, mas...

– Não vou negociar bolos com você! – ele exclamou, contrariado. – Custam cinco moedas de bronze e uma de prata!

– Eu sei, eu sei – tentou se explicar, mas o homem apenas ergueu a mão. – Por favor, Nestor... É pela minha mãe. Eu não dou a mínima se estou completando dezoito anos ou não.

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– Você disse dezoito anos? – Nestor arregalou os olhos, espantado. – Oh... ah, é mesmo? Bem, parabéns...

Ele não parecia contente com a notícia, como se ter dezoito anos fosse algo ruim. Parecia querer dizer “Meus pêsames”, mas mudou de ideia. Era como se essa idade fosse amaldiçoada, algo que chamasse o azar para perto. Mas Mia nunca pensara naquilo. Quando comentara sobre o seu aniversário com a mãe ou Elia, dias antes, elas pareciam preocupadas. Aterrorizadas até. Mas nunca disseram nada comprometedor. Tudo que Mia queria agora era voltar para casa e perguntar à mãe a verdade escondida durante todo esse tempo. O que acontece realmente quando se completa

dezoito anos?

Mia precisava saber, porém, não sairia do Mercado do Vigário sem um bolo em mãos.

Avistou, não muito longe dali, o Sr. Jones. Um velho magricela, sempre bronzeado pelo sol. Sua barba grisalha crescia até a metade do pescoço e possuía os olhos grandes e arredondados. Ele não vendia uma variedade grande de bolos, mas suas tortas eram deliciosas. Ele é mais difícil,

mas talvez eu possa convencê-lo. Para que tenho esses olhos azuis, se não isso?

O velho estava batendo nos ombros de um rapaz, encorajando-o a gritar as promoções da tenda. O jovem não era nada bonito, com seu nariz de batata e as sobrancelhas grossas. Ele, no entanto, parecia esquecer as falas enquanto Mia se aproximava. Esse garoto tem uma taturana na

testa... mas não seria difícil convencê-lo.

Quando Mia saltitou até a tenda, que emanava um aroma delicioso de suas loções de banho, o Sr. Jones ordenou que o rapaz se retirasse. Provavelmente a garota não era a primeira ameaça de problemas que aparecera por ali.

– Sr. Jones – ela cumprimentou com um aceno de cabeça.

– Mia Brooks – ele respondeu indiferente.

A jovem apoiou uma mão na estaca de madeira que sustentava a tenda, enfiando a cabeça entre as cortinas.

– Acho que tenho algo que o senhor gostaria. – O velho era impaciente, precisava ficar ciente do assunto a ser tratado o mais rápido possível. Era sua segunda e última chance no mercado, qualquer outro não negociaria nada por menos que um casamento.

– Terá de ser algo muito bom, Brooks – disse, olhando-a com seus olhos enormes. – Eu não tenho tempo para te ouvir blefar.

– Eu não estou blefando – prometeu, piscando os cílios longos. Pedia intimamente para que seus olhos estivessem claros e brilhantes naquela manhã. – Tenho...

– Ah, por favor, Mia! – O homem fez uma carranca, afastando-a da tenda. – Talvez esse seu joguinho funcionasse quando você era mais jovem, mas você não engana ninguém agora. Eu já não me importo se seus olhos são bonitos ou não. Mantenha-se longe da minha tenda!

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– Sr. Jones, por favor... Hoje é o meu aniversário. Quero apenas um bolo pequeno. Se não fizer por mim, faça pelo meu pai.

– Seu pai está morto – o velho replicou –, assim como a minha amizade com ele. E você, sua garotinha miúda, não vai se aproveitar mais da minha bondade. Quero que não volte mais aqui, a não ser que aceite ter um anel de noivado em seu dedo.

– Nunca me casaria com você! – Mia cuspiu e foi embora, seus olhos pegando fogo. Piscou até que as lágrimas abandonassem seus olhos, andando e tropeçando nas pessoas ao seu redor. Suas bochechas estavam tão quentes que o rosto pálido ficara corado.

Eu preciso ser forte, ordenou para si mesma. Não vou chorar.

Caminhou entre os compradores insaciáveis, desejando ter ao menos algo de suas cestas. Um pão, talvez, seria o suficiente para colocar um sorriso no rosto da mãe. Nunca antes voltara de mãos vazias para casa, desde que seu pai lhe ensinara como negociar, e esta não seria a primeira vez. Deslizou entre os corpos espremidos em filas desordenadas, esgueirando-se pela bagunça. Talvez seus temores se confirmassem assim que chegasse em casa. Talvez seu décimo oitavo aniversário fosse mesmo amaldiçoado.

Havia uma tenda colorida, repleta de velas, frutas, bolos e tortas. Mia aproximou-se para conversar com o dono, mas o vendedor estava muito ocupado negociando com a multidão em frente. A garota observou um dos bolos, de chocolate com cerejas. Aquilo deveria ser caríssimo, ou ao menos caro o suficiente para que ela nunca pudesse comprá-lo. Ela sabia que ninguém prestava atenção a ela, sabia também que o que estava prestes a fazer era errado. Mas Mia não se importava. Ela voltaria com algo nas mãos, e muito provavelmente com os pés feridos.

Esperou que as pessoas próximas a ela se dissipassem, então manteve os olhos no bolo médio a sua frente. Mia agarrou-o com as duas mãos e virou-se de costas o mais rápido que pôde. E correu.

Seus cabelos estavam flutuando atrás dela, corria habilmente entre as pessoas, que não entendiam o que acontecia. Os pés de Mia foram feridos com cacos de vidro e outros objetos pontiagudos que estavam caídos pelo caminho. Ela estava descalça, mas não ligava de chegar com a pele ensanguentada em casa. Muitas vezes voltara ao lar nessa situação, sua mãe não desconfiaria de nada. Tinha o dom de mentir, do qual não se orgulhava. Roubar, porém, era a primeira vez.

Sorriu quando notou sua habilidade em atravessar o pátio do mercado, esgueirando-se entre os compradores, com os gritos atrás de si.

– Ei! Peguem-na! Ladrazinha cretina!

A voz do comerciante ficava cada vez mais distante, enquanto ela estava cada vez mais perto da saída.

Havia um beco próximo ao mercado, onde podia se esconder até que tudo se acalmasse. Depois era só andar algumas quadras até a travessa pobre onde morava. Não seria tão difícil. Mia sorria, olhando para o lindo bolo enfeitado em suas mãos, sentindo pela primeira vez a verdadeira

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adrenalina nas veias, da qual o pai tanto lhe falara. Se meu pai estivesse vivo, ela pensou, o que acharia

disso? O que minha mãe pensaria de mim se descobrisse?

Então, quando diminuiu os passos e olhou para o lado, acabou esbarrando em um homem. Era alto e forte, nada típico daquela região. Era careca e possuía um nariz comprido e curvado, olhos escuros e uma sobrancelha carregada. Não era o tipo de pessoa com ar amigável. Quando Mia ia fugir pelo lado direito do homem, ele agarrou seu braço, dizendo energicamente:

– Para onde acha que vai?

– Não interessa – ela replicou.

– Eu sei o que você fez – disse, com sua voz grave. Os olhos do homem não deixavam os seus, a mão forte não soltava seu braço. – Você precisa devolver isso, garota. Venha comigo, vamos resolver esse assunto pendente.

Mia segurava o bolo com mais força na mão direita. Fora muito difícil resolver roubá-lo, ela não iria desistir agora.

– Me... solta! – ela reclamou. – Está me machucando!

– Não – ele cerrou os dentes –, não vou deixá-la ir. Não importa o que dizem das pessoas que possuem os olhos claros, vocês não são corajosos.

– Não venha me dizer o que é coragem – Mia encarou o homem –, você não me conhece.

– Isso é mesmo uma tentativa de me desafiar, garotinha? Uma pena que não consiga ver o quão ridícula você se parece. – O homem careca apertou seu braço com ainda mais força, encarando-a de volta. – Você vai pagar.

Mia chutou o careca entre as pernas, sem tirar seus olhos dos dele, e retirou seu braço quando ele vacilou. Voltou a segurar o bolo com as duas mãos e correu para o beco, ouvindo os guinchos do homem atrás de si.

≈≈≈≈

Doreah estava enchendo o tanque com baldes de água quando a filha chegou do mercado. Seu rosto brilhava, estava corada e radiante. Nunca vira Mia tão sorridente, seus cabelos deslizando sobre o ombro.

– Isso que você tem aí é um bolo? – perguntou.

– É! – A garota colocou-o em cima da mesa, que era uma placa em cima de uma caixa antiga de madeira. – Eu consegui com um vendedor novo, que precisava de um brinquedo para a filha. Eu achei um que não tínhamos visto...

– Onde? – A mãe insistiu desconfiada. Algum tempo atrás, quando faltara comida para os filhos, decidiram vender todos os brinquedos em troca de alimentos.

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– Estava caído entre as madeiras embaixo da cama, quase totalmente coberto pela sujeira – mentiu. – Eu o vi, então resolvi negociá-lo.

– Que brinquedo era?

Mia hesitou.

– Um daqueles bonecos que vem com uma carta de coleção – mentiu novamente. – A filha do comerciante colecionava, então consegui um belo bolo em troca.

– Bem – disse a mãe –, então o que estamos esperando para comemorar?

Mais tarde, enquanto comiam o bolo no quarto da mãe, Mia achou que era a hora de conhecer a verdade sobre o décimo oitavo aniversário. Estavam sentadas no chão de pernas cruzadas, próximas ao colchão do irmão doente, que lambia os dedos das mãos. Doreah concordou em contar a verdade na frente do filho, já que um dia ele viria a ter dezoito anos também.

Mia deslizou o dedo pela cobertura do bolo restante no prato, levando-o à boca. Era tão gostoso que derretia antes de descer pela garganta. As cerejas foram as primeiras a acabar. A garota deitou de barriga no piso frio, tamborilando os dedos na bochecha. Então, finalmente, sua mãe começou a falar.

– Como vocês já sabem, aos dezoito anos todos os adolescentes precisam escolher uma tatuagem para marcar o corpo. Ela é fixa, não sai nunca mais, e é obrigatória. Então, por favor, escolham com sabedoria. Vocês não vão gostar de ter um golfinho no ombro para sempre. E tem mais: apenas algumas partes do corpo são permitidas.

Doreah, a mãe de Mia, possuía uma tatuagem na base das costas. Os filhos nunca souberam do que se tratava o desenho, já que ela mantinha em segredo com suas roupas compridas.

– Além disso, tem a entrevista, que é muito importante. Para o bem de vocês, espero que não chamem atenção. Eu estive muito preocupada alguns dias atrás, por causa de Mia e seu aniversário. Eu sei que você é uma pessoa amável, mas também não consegue deter a raiva quando alguém atinge seu ponto fraco. Eu me preocupo com o que você possa dizer ou fazer.

“Isso porque certas coisas acontecem quando você chama a atenção dos oficiais”, ela suspirou. “Todo ano, secretamente, o governo escolhe cinquenta jovens do mundo todo. É um número pequeno se comparado aos numerosos Estados, mas considerando que a maioria dos Estados é livre e não está incluso nesse processo... Bem, eles testam você a cada minuto, em tudo que fazem e dizem. Em cada pequena ação que praticam. E isso começa na entrevista, onde eles avaliam você para esse processo. Os cinquenta jovens vão para um lugar imenso, o Complexo. Lá eles tem de sobreviver a muitas coisas, muitos testes”.

– E o que acontece lá? – perguntou Ethan.

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– Pessoas morrem – a mãe respondeu tristemente –, quase todas elas. Os oficiais procuram por algo sujo nas pessoas. Eles escolhem quem eles quiserem, não é sorteado. É preciso uma boa razão para ser escolhido entre tão poucas pessoas. Antes desse processo, a maioria delas pinta o cabelo de uma cor escandalosa, para chamar a atenção dos oficiais do governo. Acho que elas pensam que assim parecem mais corajosas. Bem, mas são apenas cinquenta pessoas, Mia. É claro que você não será escolhida.

– É claro que não – respondeu Mia, embora estivesse com um pressentimento ruim.

≈≈≈≈

Quando a noite chegou, Mia ficou pensando nas palavras da mãe. Doreah lhe contara sobre o Complexo, embora a garota sentisse que faltava muito para explicar. Agora ao menos sabia por que os adolescentes e as pessoas ao redor deles ficavam tão nervosos quando o décimo oitavo aniversário se aproximava. Embora fossem poucas pessoas, apenas cinco países participavam do processo seletivo, e alguns Estados não participavam.

Sua entrevista com os oficiais do governo estava marcada para as oito horas, na sala de sua casa. A mãe já prepara o chá, que era um sinal de que eles estavam para chegar. Mia estremeceu, entrelaçando os dedos nervosamente. Mordia os lábios sem parar. Era uma das coisas que fazia quando estava apreensiva.

As canecas velhas, coloridas e redondas foram postas à mesa no exato momento em que a campainha soou. A mãe foi atender a porta, enquanto Mia ouvia Ethan dizer que tudo iria dar certo. Ouviu o som dos passos pesados dos oficiais adentrando a residência e não pôde deixar de sentir o estômago dar um salto.

– Ah, sejam bem-vindos – a mãe cumprimentou. – Sentem-se. A minha filha já vem com o chá.

Esse era o sinal para que a filha entrasse na sala, levando consigo a única bandeja de vidro da casa. Nela estava uma garrafa térmica que fora de sua avó, de metal e borracha. Mia, então, abriu a porta cuidadosamente e avistou os três oficiais sentados à mesa pobre, que estava disfarçada com uma toalha limpa.

Quando um dos oficiais virou o pescoço para observar Mia, ela descuidou-se da bandeja e deixou-a cair no chão, quebrando o vidro e provocando um barulho agudo. Um dos oficiais era o homem careca do mercado, com seu nariz curvado e as sobrancelhas grossas, que estavam franzidas para a garota. Ele agora usava o uniforme do governo e sorria como se tivesse encontrado algo valioso.

Mia quase podia ouvi-lo sussurrar. Eu sei o que você fez. Ela engoliu em seco, novamente com aquele pressentimento ruim. Você vai pagar.

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