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Anais do VIII Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616 “O COMPOSITOR PLANEJA, A MÚSICA RI"... REFLEXÕES SOBRE INTUIÇÃO E RAZÃO NA CRIAÇÃO MUSICAL Felipe de Almeida Ribeiro 1 [email protected] Resumo: Este artigo retrabalha o capítulo introdutório de minha tese de Doutorado em Composição Musical (Ph.D.) pela State University of New York at Buffalo (Estados-Unidos). Apresentarei reflexões poéticas a respeito de criatividade, intuição e razão na composição musical, trabalhando com ideias e conceitos poéticos encontrados na obra musical e reflexões filosóficas de Cage, Boulez, Feldman e Stockhausen. Utilizarei como exemplos obras de minha autoria com diferentes formações instrumentais. Palavras-chave: Poética musical; Intuição; Criatividade. Abstract: This article results from the first chapter of my Ph.D. thesis, earned at the State University of New York at Buffalo. In resonance with the poetic ideas found in Cage, Boulez, Feldman, and Stockhausen's writings, I will expose thoughts on creativity, intuition, and reason in musical composition. As a means of illustration, I will use my works written for different instrumental forces. Keywords: Musical poetics; Intuition; Creativity. INTRODUÇÃO “O compositor planeja, a música ri”, ou no original em inglês “the composer makes plans, music laughs, é uma célebre frase do compositor norte-americano Morton Feldman (FELDMAN, p. 111). Essa crítica ataca, essencialmente, o excesso de confiança depositada por muitos compositores no planejamento pré-composicional de uma obra musical. Ela aponta, também, mesmo que indiretamente, à necessidade de o compositor buscar um equilíbrio na relação intuição-razão dentro do processo criativo musical. Hoje, na academia musical, fala-se muito em harmonia, orquestração, regência, contraponto, escalas etc., mas pouco daquilo que escapa dos modelos científicos e que justamente diferencia as artes das ciências duras. É difícil encontrar alguma disciplina na grade curricular de cursos de graduação em música que aborde temas subjetivos ou mesmo com 1 Ph.D. State University of New York at Buffalo.

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Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616

“O COMPOSITOR PLANEJA, A MÚSICA RI"... REFLEXÕES SOBRE INTUIÇÃO E RAZÃO NA CRIAÇÃO MUSICAL

Felipe de Almeida Ribeiro1 [email protected]

Resumo: Este artigo retrabalha o capítulo introdutório de minha tese de Doutorado em Composição Musical (Ph.D.) pela State University of New York at Buffalo (Estados-Unidos). Apresentarei reflexões poéticas a respeito de criatividade, intuição e razão na composição musical, trabalhando com ideias e conceitos poéticos encontrados na obra musical e reflexões filosóficas de Cage, Boulez, Feldman e Stockhausen. Utilizarei como exemplos obras de minha autoria com diferentes formações instrumentais. Palavras-chave: Poética musical; Intuição; Criatividade. Abstract: This article results from the first chapter of my Ph.D. thesis, earned at the State University of New York at Buffalo. In resonance with the poetic ideas found in Cage, Boulez, Feldman, and Stockhausen's writings, I will expose thoughts on creativity, intuition, and reason in musical composition. As a means of illustration, I will use my works written for different instrumental forces. Keywords: Musical poetics; Intuition; Creativity.

INTRODUÇÃO

“O compositor planeja, a música ri”, ou no original em inglês “the composer makes

plans, music laughs”, é uma célebre frase do compositor norte-americano Morton Feldman

(FELDMAN, p. 111). Essa crítica ataca, essencialmente, o excesso de confiança depositada por

muitos compositores no planejamento pré-composicional de uma obra musical. Ela aponta,

também, mesmo que indiretamente, à necessidade de o compositor buscar um equilíbrio na

relação intuição-razão dentro do processo criativo musical.

Hoje, na academia musical, fala-se muito em harmonia, orquestração, regência,

contraponto, escalas etc., mas pouco daquilo que escapa dos modelos científicos e que

justamente diferencia as artes das ciências duras. É difícil encontrar alguma disciplina na grade

curricular de cursos de graduação em música que aborde temas subjetivos ou mesmo com

1 Ph.D. State University of New York at Buffalo.

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Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616 explicações em aberto. Para Stockhausen, entretanto, a criatividade [artística] entende o

‘novo’ e justamente o ‘desconhecido’ como elementos catalisadores essenciais para sua

construção: “Uma pessoa criativa fica sempre estimulada quando acontece algo que não

consegue explicar” (STOCKHAUSEN p. 36). Podemos complementar dizendo que a criatividade

depende também do mutualismo entre intuição e razão.

Nos próximos parágrafos, desenvolvo reflexões de cunho poético sobre temas como

intuição, razão, criatividade e verdade em arte, buscando contribuir para uma abertura nessa

área tão volátil e abstrata no âmbito da composição musical. Na segunda parte, ilustrarei esses

pensamentos com exemplos extraídos de minhas obras musicais.

INTUIÇÃO E RAZÃO

Como compositor, estou constantemente buscando um diálogo inteligente entre

intuição e razão, um entendimento maleável que reconsidere persistentemente suas

interconexões. Portanto, acredito que o processo de criação artístico centrado apenas em

intuição ou razão tende ao fracasso. Obras baseadas puramente em um desses dois polos são

praticamente inexistentes: as composições sempre apresentam essas duas características em

diferentes níveis e proporções. O que à primeira vista parecem ser dois conceitos opostos, são

na verdade forças complementares.

Geralmente, ao se referirem popularmente a ‘mestres’ ou ‘clássicos’ da música, as

pessoas fazem alusão, mesmo que inconscientemente, à dicotomia intuição-razão. Por

exemplo: para muitos, Karlheinz Stockhausen (1928-2007), Ludwig van Beethoven (1770-1827)

ou Heitor Villa-Lobos (1887-1959), são marcos na história da música. Podemos pensar neles

como indivíduos que buscaram desenvolver essa tensão entre intuição e razão dentro de suas

próprias linguagens musicais. É, portanto, um engano identificá-los como ícones na história da

música apenas porque utilizaram em determinadas peças a série Fibonacci, um jet-whistle ou

uma fuga dupla. Eles foram compositores únicos porque alcançaram um grau de autenticidade

no entendimento das técnicas em geral, por meio de suas próprias impressões, des leurs

propres timbres. Parece-me que muitos no meio artístico os reconhecem mais pelas suas

conquistas técnicas do que pelas suas capacidades espirituais e intelectuais.

Na academia musical, estudantes são apresentados a algumas dessas técnicas como

modelo: técnicas de execução e produção sonora, formas musicais, escalas sintéticas, estilos

contrapontísticos etc. Em um determinado estágio faz parte de seus processos de aprendizado

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Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616 sintetizar ou até quebrar com os paradigmas, para então desenvolverem uma perspectiva

nova. É nesse momento que o indivíduo cria o seu próprio entendimento diante de

determinadas técnicas, sua própria impressão, seu estilo. É necessário enfatizar a importância

da mediação dessas duas forças, pois é difícil imaginar algum processo criativo baseado

exclusivamente em intuição ou razão apenas.

Analisemos um grupo de jazz, como exemplo. Mesmo que o repertório escolhido dê

abertura à improvisação, em vários momentos os instrumentistas fazem uso de

procedimentos metodológicos: forma, instrumentação, digitação, escalas, técnicas de

respiração etc. Imaginemos agora uma situação oposta: solicitar a alguém, sem treinamento

musical, compor um concerto grosso barroco. Este indivíduo não terá, provavelmente, as

habilidades técnicas e intelectuais para completar esta tarefa, porém isso não quer dizer que

essa pessoa não seja criativa, ou mais especificamente, que não possua pensamentos musicais

intuitivos.

Inversamente, reforço a ideia de que música puramente baseada em razão é

inexistente. Em algum estágio, alguém deverá tomar decisões baseadas em algum tipo de

arbitrariedade ou procedimento aleatório – isso não define necessariamente intuição. Lejaren

Hiller (1924-1994), por exemplo, "compôs" (ou "lançou") em 1956 a Illiac Suite, a primeira

peça musical composta por um computador por meio de procedimentos de inteligência

artificial. Por mais lógicas que sejam as decisões composicionais tomadas pela máquina

(sistema binário), há uma série de diretrizes criadas pelo compositor/programador que revela

uma determinada estética, seja ela minimalista, serialista, roqueira ou outra qualquer.

Esse conflito de conceitos (intuição e razão) é necessário para o processo de criação

artística. Historicamente falando, Jean-Jacques Nattiez (1945) conclui que mesmo dois

compositores tidos como radicais em determinados períodos de suas carreiras, como Cage no

acaso em música (intuição) e Boulez no serialismo integral (razão), devem parcialmente um ao

outro o mérito de suas criações.

Quando Henry Cowell perguntou a Cage o que ele devia a Boulez, ele replicou com

palavras aparentemente surpreendentes: "Boulez me influenciou com seu conceito

de mobilidade". Assim, de certa forma, Boulez deve o serialismo integral a Cage, e

Cage o conceito de acaso a Boulez?! (NATTIEZ 1993, p. 15).

É importante esclarecer que Cage emprestou o conceito de mobile form das esculturas

de Alexander Calder (1898-1976), para explicar seus conceitos de mobilidade e, mais

especificamente, do acaso na organização formal musical. Boulez, por sua vez, mostra-se

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Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616 resistente à ideia de procedimentos aleatórios na música – apesar de fazer uso deste conceito

em peças como Domaines (1968-1969) e Piano Sonata III (1955-1957). Ele afirma que

procedimentos puramente movidos pelo acaso tendem a um afastamento da expressividade e

do controle humano. Boulez, que aparentemente se referia a John Cage, disse:

No momento, compositores contemporâneos parecem constantemente

preocupados, para não dizer obcecados, pelo acaso... A mais elementar forma de

transformação pelo acaso caminha junto com uma filosofia influenciada pelo

orientalismo, que aborda uma fraqueza básica das técnicas de composição... Esse

experimento com o acaso eu chamo de descuido (BOULEZ in NATTIEZ, 1990, p. 18).

Cage, por sua vez, ataca Boulez por este não reconhecer que, mesmo sendo um

vanguardista do serialismo, fez uso de procedimentos aleatórios em suas próprias

composições.

Após repetidamente ter dito que não se podia fazer aquilo que eu me propus a fazer,

Boulez descobriu aquele livro do Mallarmé. Era um procedimento de acaso até o

último detalhe. Comigo, o princípio tinha que ser rejeitado de imediato; com

Mallarmé tornou-se de repente aceitável para ele. Agora Boulez estava promovendo

o acaso, desde que fosse o seu tipo de acaso (CAGE in NATTIEZ, 1990, p. 18).

Com base nas correspondências acima entre Boulez e Cage, podemos perceber a

complexidade da arte e do processo de criatividade, especialmente se levarmos em conta sua

essência orgânica e flexível, quando se trata da interação entre intuição e razão. É um conceito

impossível de ser reduzido a uma fórmula só, pois justamente por ser flexível, aceita múltiplas

verdades: Verdi, Stockhausen, Beatles, Hermeto Pascal, apenas para citar alguns exemplos. E é

justamente esse ponto que cria um atrito entre uma prática estritamente acadêmica e o

processo das artes. Em arte, aceitamos tanto a coexistência temporal quanto a coexistência

estilística. Podemos apreciar Palestrina (1525-1594) e Steve Reich (1936) sem nenhum

empecilho evolutivo – são quase 350 anos que separam esses dois artistas. Adicionalmente,

podemos também apreciar a música dos contemporâneos Boulez e Cage sem restrições

estilísticas. Ao contrário de algumas áreas de conhecimento, não buscamos por uma evolução.

Trabalhamos sem a substituição: aceitamos Bach, Stockhausen, Cláudio Santoro etc.

É importante observar também como a música tem necessidade de beber em outras

águas: pintura, poesia, literatura, filosofia, astronomia, eletrônica, espiritualidade, enfim, na

vida. Como consequência, um conceito hoje muito utilizado pelos críticos é o de expansão das

categorias: escultura sonora, piano estendido etc. São maneiras de descrever objetos de

estudo que apresentam em sua essência os conceitos de expansão e abertura. As 'fórmulas' ou

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Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616 'conceitos' musicais, portanto, são limitadas apenas ao intelecto do artista. Em arte, podemos

buscar, como nas palavras de Fernando Pessoa, ser capazes de "saber pensar com as emoções

e sentir com o pensamento; não desejar muito senão com a imaginação" (PESSOA, 2006, p.

151).

CRIATIVIDADE E VERDADE EM ARTE

Por causa de sua natureza complexa, a criatividade não pode ser desconstruída em um

modelo único e imutável. Se analisarmos o repertório musical, perceberemos diferentes

compositores com diferentes tendências. Por exemplo, Boulez e Feldman podem ser vistos

como opostos se consideradas as perspectivas de intuição e razão. O próprio Morton Feldman

concorda com este posicionamento: “Boulez, que é tudo o que eu não quero que a arte seja…

Boulez, que uma vez disse em um artigo que ele não está interessado em como uma peça soa,

apenas como foi feita” (FELDMAN, 2000, p. 33).

Como afirmado anteriormente, arte – diferentemente da ciência dura – não pode ser

lida como uma verdade apenas. Verdade em arte não é adequação. Ela aceita, por exemplo,

Mozart e Lachenmann, Cage e Boulez, Matisse e Mondrian. Hoje, por exemplo, ouvem-se em

Paris concertos que intercalam obras de Bach e Boulez. A arte transcende o tempo e aceita

múltiplas verdades, as verdades dentro de cada artista. É importante afirmar que não estamos

aqui em busca de um modelo ideal para as artes, e sim de uma libertação da ideia de modelo,

daquilo que muitas vezes é defendido em algumas academias. Cada obra possui seu próprio

mundo, seu próprio idioma, suas próprias regras. Ela respeita apenas as leis do artista, as leis

do indivíduo, as leis embutidas dentro de sua essência. Cada obra artística apresenta uma

perspectiva, uma verdade ou, nas palavras de Jean-Luc Godard, uma exceção:

Cultura é a regra. E arte a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador,

camisetas, TV, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção. Ela não é dita, é escrita:

Flaubert, Dostoyevski. É composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer.

É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida, e se torna a arte de viver: Srebenica, Mostar,

Sarajevo. A regra quer a morte da exceção (GODARD, 1993, Je vous salue, Sarajevo)

A verdade na arte deve ser vista como algo existente em cada obra de arte sozinha,

isto é, “cada obra deve ensinar o ouvinte como ouvi-la: o que interessa, o que não interessa, o

que está em jogo” (CZERNOWIN p. 3). Um som nunca está errado, mas uma música sim. Na

ciência, se desejo saber a massa de um objeto em gramas, existe uma resposta ideal para isto.

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Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616 Porém, tal procedimento não faz sentido em se tratando de poéticas artísticas. Não há ideal

universal a ser alcançado em arte, então não deveríamos ter expectativas do que a arte

deveria ou não ser. Há apenas o ideal do artista e o ideal da obra de arte. Aviso que não

estamos aqui tratando da questão da recepção da obra, ou seja, de que uma obra só é

realizada quando ouvida. Porém, podemos considerar o compositor durante o processo

criativo como o primeiro receptor da obra criada. Como é impossível separá-los, o próprio

conceito de recepção pode ser embutido no processo composicional.

REFLEXÕES SOBRE POÉTICA

Para ilustrar as reflexões da primeira parte deste texto, descreverei meus sentimentos

e pensamentos por meio de trechos selecionados de quatro obras musicais de minha autoria.

A análise a seguir é de cunho estético e visa ilustrar alguns pontos trabalhados anteriormente,

não buscando desenvolver uma análise musical formal e completa. As obras selecionadas são:

1) No desalinho triste de minhas emoções confusas (2011), para piano e live-electronics; 2) Das

ilusões que nunca nos enganam ao nos mentirem sempre (2010), para violoncelo e live-

electronics; 3) Pirilampeios (2008), para flauta, clarinete, piano, percussão, violino, viola e

violoncelo; 4) Quintanares (2007); para trio de saxofones (soprano/alto, soprano/tenor e

soprano/barítono).

NO DESALINHO TRISTE DE MINHAS EMOÇÕES CONFUSAS

Em minha recente peça para piano No desalinho triste de minhas emoções confusas

(2011), para piano e live-electronics, fiz, naturalmente, vários ensaios e revisões até obter a

versão definitiva. A partitura final mostra diversas mudanças em relação aos rascunhos iniciais,

como novos compassos, a exclusão de outros e, mais importante, a reorganização das ideias

musicais.

Um fator que me permitiu um olhar diferente para a composição foi a consciência da

complexidade sônica e psicológica na música. Ou seja, compor tornou-se um processo

"arqueológico" que pode transcender a realidade e as expectativas: o compositor pode

escavar e ir revelando aos poucos suas intenções, mas pode – e deve – criar o seu próprio

idioma, a sua própria rota. Assim, criamos a possibilidade da 'reciclagem de informações', pois

o artista pode sempre dilatar as referências cognitivas socialmente herdadas pelo ouvinte. Em

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Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616 outras palavras, em arte podemos sempre trabalhar com o novo. Assim, uma obra de arte,

uma vez criada, não precisa justificar-se. Pensando nisto, pus-me a compor.

No processo de criação desta peça, dediquei meu tempo de trabalho para resolver

várias decisões, entre elas a duração ideal entre um pizzicato e um determinado trêmulo

(Figura 1). Tentei executar esta passagem (pgm#4) em diferentes dias, diferentes pianos e,

consequentemente, em diferentes salas de concerto, todas tentativas com diferentes

durações. Nunca alcancei uma decisão ideal, porém foi exatamente isso que me cativou. A

grande diferença destas tentativas, tecnicamente falando, foi o tempo de ressonância entre os

eventos, mas não considero esse parâmetro determinante o bastante para tornar-se a solução

ideal nas minhas decisões estéticas. A escolha final foi intuitiva, mas tendo a consciência de

que outras soluções eram possíveis.

Figura 1 - No desalinho triste de minhas emoções confusa. pgm#3 e pgm#4.

Verifica-se nos compassos anteriores (pgm#3) situações em que a decisão final

também foi intuitiva, que dependeu de certa arbitrariedade. É importante salientar que não

considero o processo intuitivo como aleatório, mas sim como um processo cognitivo de

assimilação de experiências previamente vivenciadas. Para tal trecho, uma questão que

explorei durante o processo criativo foi a quantidade de repetições do ré# e do fá#. No

primeiro, temos sete repetições e, no segundo, seis. Qual a gravidade, ou vantagem, de

alterarem-se os valores para sete e oito, por exemplo? Dentro do contexto desta peça em

específico, qual a diferença em se alterar o fá#, na clave de fá, para um sol natural? Claramente

seria uma peça diferente, mas teria ela sua validade anulada? Creio que não, até porque neste

caso a 'verdade' dentro desta peça está muito mais relacionada com outros elementos, como

timbre e gesto, do que com a escolha específica das notas.

Se considerarmos que nossa intuição é altamente baseada em experiências sensoriais

prévias, então criatividade – no sentido mais profundo – é limitada. Entendo a relação entre

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Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616 intuição e experiência como ponto crucial para o processo criativo artístico. Porém, o aspecto

mais perigoso da intuição, em minha música pelo menos, é a tendência a repetir ideias e

gestos por meio de permutações, sem ter a intenção de buscar uma repetição intrigada, como

na música de Salvatore Sciarrino (1947) ou Steve Reich. Ser repetitivo difere de trabalhar com

a repetição. Adicionalmente, intuição, como um 'curto circuito' de experiências vivenciadas, é

muitas vezes manifestada por meio da improvisação, ou seja, pelo ato de permutar as

experiências previamente adquiridas.

DAS ILUSÕES QUE NUNCA NOS ENGANAM AO NOS MENTIREM SEMPRE

Na maior parte da minha obra eu raramente trabalho com um fluxo diferente do

descrito, isto é, com um plano pré-composicional 'hermético'. O processo de composição

sempre gera outros métodos e planejamentos diferentes do rascunho inicial. Este é o caso da

peça Das ilusões que nunca nos enganam ao nos mentirem sempre (2010), para violoncelo e

live-electronics (Figura 2). Novamente, dei prioridade à improvisação e à intuição na criação da

ideia inicial, ao invés de partir de um modelo ou de uma fórmula abstrata. Esse motivo se

expandiu e gerou ideias similares no restante da peça.

Figura 2 - Das Ilusões que nunca nos enganam ao nos mentirem sempre, pgm#1.

O impulso inicial desta ideia musical levou-me a procedimentos de repetição. Porém, o

uso de repetição alternada, das notas sol e fá#, não bastou como material musical completo.

Precisei sair do impulso, do espontâneo, para fugir de um gesto puramente mecânico e poder

alcançar uma repetição mecânica natural. Para tal, realizei, por exemplo, experimentos sônicos

com performances em diferentes cordas, resultando naturalmente em timbres diferenciados.

Para este trecho, optei pelo som penetrante das cordas ré e lá do violoncelo. Optei, também,

por outros elementos que alteram o timbre, como o posicionamento do arco e a pressão

aplicada: molto sul ponticello e 1/2 pressed. Além disso, trabalhei com mudanças dinâmicas e

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Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616 com o uso de microtons. Essas decisões não foram baseadas em nenhum procedimento

científico, mas sim no desenvolvimento de uma estética. Esta verdade, este timbre, este som

gerado, despertou em mim a possibilidade e a vontade de traçar um caminho para esta peça,

uma perspectiva em que eu, enquanto compositor, poderia expressar algo. Neste caso, penso

nas técnicas como filtros para nossa expressividade. Elas contribuem para a concretização da

nossa imaginação.

PIRILAMPEIOS

Um exemplo contrário ao que expus até então é a peça Pirilampeios (2008), para

septeto (Figura 3). Esta reclama planejamentos pré-composicionais (é importante adicionar

que processos intuitivos podem existir em planejamentos teóricos, mas retenho-me aqui à

aplicação própria que faço da intuição e razão). Planejar não significa necessariamente um

procedimento frio.

Figura 3 - Pirilampeios

O trecho analisado representa um posicionamento mais equilibrado que empreendi

entre os conceitos de intuição e razão. A sonoridade criada entre o clarinete e a flauta, por

exemplo, não foi previamente vivenciada auditivamente por mim – um procedimento raro

para muitos músicos. A escolha das notas está confinada a um espectro obtido pelos parciais

superiores de uma certa série harmônica. O simples fato de se obter essa série de notas não

aponta, a priori, um pensamento musical. Aponta um procedimento técnico.

O pensamento reinante foi o de textura rítmica – a possibilidade de criar uma textura

em que o soprano ora apresenta o clarinete, ora a flauta, confundindo propositalmente o

ouvinte. O meu objetivo foi o de criar um universo caótico e ao mesmo tempo controlado, em

que não se percebe com clareza duas linhas melódicas, mas sim uma textura. Esse

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Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616 procedimento envolve questões de orquestração não-tradicionais, pois busca justamente

evitar a clareza de percepção de cada voz. Essa é a verdade musical que escolhi trabalhar nesta

seção da peça: "manusear" a série de notas escolhidas dentro do formato da textura

imaginada. É por essas razões que ressalto a importância do equilíbrio entre intuição e razão.

QUINTANARES

Finalizo a análise com a quarta peça. Em 2007, realizei uma pesquisa a respeito dos

multifônicos produzidos pelo naipe dos saxofones. Foi um estudo técnico em que gravei

diversos multifônicos e transcrevi o espectro dessas sonoridades para o papel pautado. O

estudo gerou uma peça intitulada Quintanares, para trio de saxofones (Figura 4).

Figura 4 - Quintanares

Nesta seção da peça, orquestrei os sons parciais de cada multifônico para três

saxofones distintos. A duração dos sons e das pausas, porém, não foi definida por nenhuma

fórmula ou regra, mas sim por processos de decisões intuitivos: experimentei por meio de um

software vocoder de fase a possibilidade de ouvir cada arquivo de som com diferentes

durações sem modificar a altura das notas. Contudo, um pensamento diferenciado foi

necessário para desenvolver essa ideia no domínio artístico. Foi necessário o desenvolvimento

de uma verdade e isto extrapolava técnicas e formulações. Parti do entendimento geral de

consonância em música: se o som que gera tudo vem de um instrumento só, assumi que os

parciais desse som tinham o potencial para oferecerem relações e estruturas harmoniosas.

Orquestrei o trecho em questão em forma de texturas criadas por sons que surgem com seus

ataques mascarados pelos outros instrumentos, um procedimento oriundo da música

eletrônica. O resultado aponta que mesmo sons classificados como dissonantes pelas teorias

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Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616 de contraponto, soam como harmoniosos nesta peça – um erro que um compositor poderia

facilmente cometer em um plano pré-composicional teórico. Volto a repetir as palavras da

compositora israelense Chaya Czernowin (2008, p. 3): "cada obra deve ensinar o ouvinte como

ouvi-la".

CONCLUSÃO

Acredito que compor é, muitas vezes, sinônimo de autoconhecimento e considero

minhas composições mais coerentes quando eu respeito a cadeia de acontecimentos descrita

pelo texto acima. De maneira geral, eu passo mais tempo revisando o que compus do que com

o próprio ato de criação inicial. É um processo arqueológico, psicológico, de descoberta,

construção e desconstrução. Talvez, para mim, a essência genuína da criação artística seja

mais associada com o segundo rascunho. Como dizia Mário Quintana (2006): "É preciso

escrever um poema várias vezes para que dê a impressão de que foi escrito pela primeira vez".

Tendo isto em mente, minhas revisões são praticamente processos de identificação,

classificação, modificação e muitas vezes de eliminação de elementos. Na verdade, elas são

similares a processos de reorganização, em que a dialética entre intuição e razão é sempre

ativa. Como previamente discutido, os objetivos da arte e da ciência não são os mesmos. Não

há uma verdade única em arte. Sendo assim, a arte aceita múltiplas verdades. Fernando

Pessoa fala sobre essa abertura, mas em um sentido mais aberto, como imperfeição:

"Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita [...]. Mas imperfeito é tudo, nem há

poente tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos dê sono que não pudesse

dar-nos um sono mais calmo ainda" (PESSOA, 2006, p. 41).

Por estar ciente desse aspecto de abertura em arte, acredito que cada composição

permita múltiplos caminhos para diferentes finalizações. Stockhausen falou certa vez sobre

criatividade em uma de suas experiências com Theodor Adorno na escola de Darmstadt. Essa

citação é muito importante por ilustrar bem a complexa simbiose entre intuição e razão, pois

mesmo um intelectual com muito treinamento musical, filosófico e estético como Adorno não

conseguiu aceitar certas verdades:

Na edição de 1951 do Darmstadt Summer School para música nova, [Karel]

Goeyvaerts e eu tocamos sua sonata para piano. [...] A peça foi violentamente

atacada por Theodor Adorno. [...] Ele criticou essa peça de Goeyvaerts, dizendo que

era absurda [...]. Adorno não a entendia de maneira alguma. Ele disse, não há

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trabalho motívico. Então eu levantei [...] e defendi esta peça [...]. Eu disse, mas

Professor, você está procurando por uma galinha em uma pintura abstrata. [...]

Mesmo Adorno tendo sido aluno de Alban Berg e tendo composto muito, e embora

quisesse ter sido conhecido como um compositor mais do que como filósofo,

basicamente ele não era uma pessoa criativa. Uma pessoa criativa está sempre

empolgada quando algo acontece que não possa explicar, algo misterioso ou

miraculoso (STOCKHAUSEN, 2000, p. 36).

Feldman, porém, acreditava em uma visão um pouco diferenciada. O seu conceito de

composição estava mais fadado ao conceito de consciência do que de abertura, recepção. Ele

acreditava que compor envolve saber "a nota certa no momento certo com o instrumento

certo" (FELDMAN, 2000, p. 160). Indo mais a fundo neste pensamento, Pauline Oliveros (1932)

completa: "Não basta apenas executar as notas certas no tempo certo da maneira certa;

devemos também ter a consciência certa" (OLIVEROS in LUCIER, 1995, p. 8). Nestes casos,

consciência é referente aos processos de transferência de ideias ao papel, da transferência de

fenômenos tridimensionais a planos bidimensionais. Essa consciência representa, talvez, uma

boa síntese das ideias até aqui colocadas. No entanto, consciência no fazer artístico aceita e é

alimentada pelas experiências, intuições, planejamentos, assim como pelos tropeços, acasos,

incertezas, detritos, resíduos, imperfeições …

REFERÊNCIAS

CZERNOWIN, Chaya. The other tiger. Search Journal for New Music and Culture. Summer 2008, Issue 2. Disponível em: <www.searchnewmusic.org/index2.html>.

FELDMAN, Morton. Give my regards to Eight Street - Collected writings of Morton Feldman. Cambridge: Exact Change, 2000.

GODARD, Jean-Luc. Je vous salue, Sarajevo. France: Périphéria, 1993.

NATTIEZ, Jean-Jacques. The Boulez-Cage Correspondence. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

OLIVEROS in LUCIER, Alvin. Reflections - interviews, scores, writings. Köln: MusikTexte, 1995.

PESSOA, Fernando. O livro do desassossego. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

QUINTANA, Mário. Caderno H. Editora Globo. 2006.

RIBEIRO, Felipe de Almeida. No desalinho triste de minhas emoções confusas. Tese de Doutorado em Composição (PhD) pela SUNY Buffalo. Buffalo NY, 2011. Disponível em: <http://proquest­.umi­.com­.gate­.lib­.buffalo­.edu/pqdweb­?did=2595844201­&sid=2­&Fmt=2­&clientId=39334­&RQT=309­&VName=PQD>. Acesso em: 8 maio 2012.

STOCKHAUSEN, Karlheinz. Stockhausen on Music. Compiled by Robin Maconie. Marion Boyars Publishers, 2000.