O Conceito de Derrotabilidade Normativa - Fernando Andreoni Vasconcellos

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FERNANDO ANDREONI VASCONCELLOS

O CONCEITO DE DERROTABILIDADE NORMATIVA

Dissertao apresentada ao Curso de PsGraduao em Direito, rea de Concentrao em Direito das Relaes Sociais, como parte das exigncias para obteno do ttulo de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Cesar Antonio Serbena.

CURITIBA 2009

FERNANDO ANDREONI VASCONCELLOS

O CONCEITO DE DERROTABILIDADE NORMATIVA

Dissertao apresentada ao Curso de PsGraduao em Direito, rea de Concentrao em Direito das Relaes Sociais, como parte das exigncias para obteno do ttulo de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Cesar Antonio Serbena.

CURITIBA 2009 2

TERMO DE APROVAO

FERNANDO ANDREONI VASCONCELLOS

O CONCEITO DE DERROTABILIDADE NORMATIVA

Dissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre no Curso de Ps-Graduao em Direito, Setor de Cincias Jurdicas, pela seguinte banca examinadora:

Orientador: Prof. Dr. Cesar Antonio Serbena Universidade Federal do Paran

Prof. Dr. Jos Roberto Vieira Universidade Federal do Paran

Prof. Dr. Eugenio Bulygin Universidade de Buenos Aires

Curitiba, fevereiro de 2009

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Professor CESAR ANTONIO SERBENA, pela inteligncia e humildade com as quais me mostrou caminhos para produzir um trabalho em Teoria Geral do Direito. Ao Professor JOS ROBERTO VIEIRA, mestre de todos ns, que soube ensinar a um estudante de Direito Tributrio o gosto pela Teoria Geral do Direito. Ao Professor JOS RENATO CELLA, que me incentiva e me motiva desde a Graduao aos estudos de Teoria Geral do Direito, e que hoje, alm de referncia terica, um grande amigo. Agradeo aos meus amigos MRCIO MANOEL MAIDAME e EDUARDO FORTUNATO BIM que, mesmo de longe, ajudaram durante todo o trabalho com observaes sbias e precisas. Tambm ajudando de longe, agradeo a JULIANO MARANHO, de quem muito aprendi a respeito do tema do presente trabalho. Ao Corpo Discente e ao Corpo Docente do Programa de Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal do Paran, especialmente os Professores LUIZ GUILHERME MARINONI, CLMERSON MERLIN CLVE, CELSO LUDWIG, MANOEL EDUARDO ALVES CAMARGO E GOMES, EGON BOCKMANN MOREIRA, SRGIO CRUZ ARENHART, BETINA GRUPENMACHER E LUIZ EDSON FACHIN. Agradeo a todos os membros do Escritrio Farfud, Schmitt, Vasconcellos e Kozikoski, sobretudo os meus scios, GONALO MARINS FARFUD, WALMOR SCHMITT NETO E ANTONIO CLAUDIO KOZIKOSKI JUNIOR. Por fim, os mais importantes, agradeo a Deus, aos meus pais, CLIO DONATO VASCONCELLOS e IRANITA ANDREONI VASCONCELLOS, e a CAMILE FIORESE CRUZETA, por serem fonte de amor, perseverana e apoio incondicional.

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RESUMOO presente trabalho tem por objeto a apresentao do conceito de derrotabilidade. Dentro desta proposta, analisou-se a evoluo da hermenutica no mbito jurdico, especialmente em termos lingsticos, a fim de demonstrar o seu panorama atual. So investigados os problemas enfrentados pelos juristas, em relao indeterminao decorrente do reconhecimento da fora normativa dos princpios, da aplicao direta da Constituio e da singularidade de cada caso concreto. So analisadas as aplicaes prticas dos instrumentos de subsuno e de ponderao, sobretudo quando direitos entram em coliso. Pretendeu-se defender a concluso de que, por mais que seja real a possibilidade de indeterminao, nem todos os casos jurdicos so difceis, existindo muitas situaes corriqueiras que permitem a aplicao do direito sem maiores dificuldades. Isso no significa que uma situao trivial no possa ser problematizada. A derrotabilidade surge como uma ferramenta capaz de tratar destes contextos problematizveis, baseada na crena de que a norma jurdica continua sendo uma norma mesmo se nela inserida uma clusula a menos que (Herbert Hart). O conceito de derrotabilidade reside na possibilidade de que a conseqncia da norma jurdica venha a ser derrotada, afastada, no-aplicada, em razo da existncia de um fato, interpretao ou circunstncia com ela incompatvel. So apontados os pressupostos tericos para a compreenso da teoria da derrotabilidade, como o reconhecimento de que o direito positivo apresenta apenas deveres prima facie, passveis de serem alterados aps o processo de interpretao, alm da exigncia de modificao da lgica aplicvel ao direito, substituindo-se a lgica clssica por uma lgica no-monotnica. Estas pressuposies provocam repercusses nas categorias jurdicas da incidncia e da aplicao, afetando principalmente a linha de raciocnio de Pontes de Miranda. A derrotabilidade demonstra que a proposta de uma incidncia automtica e infalvel, alheia a qualquer conduta humana, mostra-se invivel. So elencados os casos de derrotabilidade e os seus requisitos materiais e formais, destacando-se a coerncia e a fundamentao como exigncias indispensveis. A face processual da derrotabilidade o destino final do trabalho. Para estud-la, foram expostas as teorias de Giovanni Sartor e Neil MacCormick, pelas quais a derrotabilidade processual aproximada da distribuio do nus da prova e envolve o relacionamento entre fatos constitutivos e extintivos/impeditivos. No mbito jurisdicional, a alterao dos precedentes judiciais tambm foi analisada, assim como as medidas criadas pelo legislador para outorgar coerncia e vinculao s decises, e para preservar a boa-f daqueles que acreditaram no precedente derrotado. Palavras-chave: Derrotabilidade. Norma Jurdica. Teoria da Argumentao. Hermenutica. Lgica dontica. Conflitos entre regras e princpios. nus da prova.

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ABSTRACTThis work is subject to submission of the concept of defeasibility. Within this proposal analyzed the evolution of hermeneutics under law, particularly in language in order to demonstrate its actual situation. They investigated the problems faced by lawyers in relation to uncertainty arising from the recognition of the strength of normative principles, the direct application of the Constitution and the uniqueness of each case. It analyzes the practical applications of instruments of subsumption and balancing, especially when rights come into collision. We were asked to defend the conclusion that, whatever is the possibility of real uncertainty, not all legal cases are difficult (hard cases), and there are many situations that currently allow the application of law without major difficulties. That does not mean that a situation cannot be put in a doubt. The defeasibility comes as a tool capable of dealing with these contexts questionable, based on the belief that the law remains a standard even if it is inserted a clause unless (Herbert Hart). The concept of defeasibility is the possibility that the consequence of the law will be defeated, displaced, not applied, because there are a fact, interpretation or circumstance incompatible with it. They raised the theoretical assumptions in understanding the theory of defeasibility, as recognition of the positive law provides only prima facie duties, which can be changed after the process of interpretation, beyond the requirement of change of logic applies to law, replacing it is the classical logic by a non-monotonic logic. These assumptions lead to repercussions in the legal categories and the application of the law (incidence), affecting mainly the line of reasoning of Pontes de Miranda. The defeasibility shows that the proposal for an automatic focus and infallible, unrelated to any human conduct, it seems impossible. Were listed the cases of defeasibility and their formal and substantive requirements, especially the consistency and motivation as essential requirements. The procedural side of defeat is the final destination of work. To study it, were exposed to the theories Giovanni Sartor and Neil MacCormick, for which the procedural defeasibility is approximate distribution of burden of proof and facts surrounding the relationship between constituent and extinct/impeditive facts. Under court, the change in judicial precedent was also discussed, as well as measures imposed by the legislature to award consistency and linking the decisions, and to preserve the good faith of those who believed in the previous defeated. Keywords: Defeasibility. Legal norm. Reasoning theory. Deontic Hermeneutic. Conflict between rules and principles. Burden of proof. logic.

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SUMRIORESUMO ................................................................................................................. 5 ABSTRACT ............................................................................................................. 6 INTRODUO ........................................................................................................ 9 1 DIREITO POSITIVO E METODOLOGIA JURDICA .......................................... 111.1 DIREITO E LINGUAGEM ............................................................................................................ 11 1.1.1 Evoluo da interpretao do Direito luz da linguagem .................................................... 12 1.1.2 Interao entre os conceitos de interpretao e aplicao .................................................. 15 1.2 MTODOS JURDICOS NA APLICAO DO DIREITO ........................................................... 19 1.2.1. A desmetodizao da jurisprudncia ................................................................................ 20 1.2.1 A lgica aplicada ao direito: crticas e possibilidades .......................................................... 22 1.3 ARGUMENTAO JURDICA E JUSTIFICAO .................................................................... 27 1.3.1 Justificao interna ............................................................................................................... 28 1.3.2 Justificao externa .............................................................................................................. 30

2 CONSTITUCIONALISMO E CONCRETIZAO DE DIREITOS ....................... 332.1. CONSTITUCIONALIZAO DE DIREITOS.............................................................................. 33 2.1.1 Subsuno, ponderao e concretizao de direitos...........................................................35 2.1.2 Hard cases e easy cases ..................................................................................................... 38 2.2 CONCRETIZAO ENTRE REGRAS E PRINCPIOS .............................................................. 41 2.2.1 O problema da indeterminao do Direito ............................................................................ 42 2.2.2 Universalismo versus particularismo .................................................................................... 44

3 PRESSUPOSTOS TERICOS DA DERROTABILIDADE ................................. 473.1 REFERNCIAS TERICAS E PRESSUPOSTOS ..................................................................... 47 3.1.1 Histrico ................................................................................................................................ 47 3.1.2. Hipteses de derrotabilidade (nveis abstrato e concreto) .................................................. 49 3.2 FUNDAMENTOS TERICOS DA DERROTABILIDADE ........................................................... 52 3.2.1. Derrotabilidade do texto ou da norma jurdica? .................................................................. 52 3.2.2 Norma jurdica condicional-hipottica e soluo prima facie ............................................... 54 3.2.3 Requisitos ordinariamente necessrios e presumidamente suficientes da norma jurdica. Anlise crtica da teoria ponteana da juridicizao ....................................................................... 57

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3.3 A LGICA DA DERROTABILIDADE ......................................................................................... 60 3.3.1 Lgica derrotvel (no-monotnica) ..................................................................................... 61 3.3.2 Utilizao da lgica clssica no tratamento da derrotabilidade ........................................... 64 3.3.3 Viso crtica da lgica aplicada derrotabilidade ................................................................ 67

4 A DERROTABILIDADE DAS NORMAS JURDICAS ........................................ 704.1 QUAIS NORMAS JURDICAS SO DERROTVEIS? .............................................................. 70 4.1.1 Todas as normas jurdicas so derrotveis? ........................................................................ 70 4.1.2 Casos de Derrotabilidade ..................................................................................................... 73 4.1.2.1 Problemas de pertinncia .............................................................................................. 74 4.1.2.2 Problemas de interpretao........................................................................................... 76 4.1.2.3 Problemas de prova....................................................................................................... 78 4.1.2.4 Problemas de qualificao ............................................................................................ 79 4.2 CONDIES DE DERROTABILIDADE ..................................................................................... 81 4.2.1 Requisitos materiais ............................................................................................................. 82 4.2.1 Requisitos procedimentais ................................................................................................... 85 4.3 INCIDNCIA E DERROTABILIDADE ........................................................................................ 87 4.3.1 Incidncia automtica e infalvel ........................................................................................... 88 4.3.2 Incidncia mediante a linguagem competente do aplicador ................................................ 89 4.3.3 A incidncia segundo a derrotabilidade................................................................................ 91

5 A DERROTABILIDADE PROCESSUAL ............................................................ 955.1 INTRODUO DERROTABILIDADE PROCESSUAL ........................................................... 95 5.1.1 Teoria de Giovanni Sartor..................................................................................................... 96 5.1.2 Teoria de Neil MacCormick ................................................................................................ 101 5.2 NUS DA PROVA E NORMAS JURDICAS ........................................................................... 104 5.2.1 Os conceitos de fatos constitutivos, impeditivos, extintivos e modificativos ...................... 106 5.2.2 Princpio dispositivo versus princpio inquisitivo ................................................................. 108 5.2.3 O fracasso de seguir a norma no caso individual no a destri. Porm a inabilidade genrica de segui-la a sua destruio ...................................................................................... 110 5.3 MUTAES JURISPRUDENCIAIS E DERROTABILIDADE .................................................. 112 5.3.1 A importncia dos precedentes judiciais ............................................................................ 112 5.3.2 A mudana de um precedente e a derrotabilidade ............................................................ 115 5.3.3 Segurana jurdica e derrotabilidade: medidas para resguardar a boa-f daquele que confiou no precedente derrotado ................................................................................................. 119

CONCLUSO ..................................................................................................... 121 REFERNCIAS BIBILIOGRFICAS .................................................................. 124

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INTRODUO

A inteno original do presente trabalho consistia em aplicar a teoria da derrotabilidade (defeasibility) ao Direito Tributrio, a fim de contrastar os problemas jurdicos decorrentes da concretizao da norma tributria com os valores da segurana jurdica e certeza do direito. Como ponto de partida da investigao, e apresentao do assunto, elaborou-se um artigo no ano de 2007 dedicado questo.1 A profundidade da matria e os seus desdobramentos nas diversas reas do Direito, entretanto, imps uma mudana de planos. O nmero pequeno de referncias acerca do assunto, no direito brasileiro, apresentou-se como uma oportunidade para a produo de um trabalho especfico sobre o tema. Na literatura estrangeira, so ricos os debates acerca do contedo e alcance da derrotabilidade, entre autores como NEIL MACCORMICK, ROBERT ALEXY, EUGENIO BULYGIN, CARLOS ALCHOURRN, HENRY PRAKKEN, JAAP HAGE, MANUEL ATIENZA e ALEXANDER PECZENICK. Pode-se dizer que este interesse existe porque a anlise da derrotabilidade na argumentao um dos ramos mais excitantes da teoria da argumentao.2 O presente estudo procurou ser introdutrio e nele no foram aprofundadas as celeumas lgicas que envolvem a matria. Entendeu-se por bem, apenas, apresentar conceitos, pressupostos tericos, aplicaes prticas, hipteses e requisitos. Ainda, foram enfrentados assuntos que no so tratados por autores estrangeiros, como a incidncia, matria que no Brasil foi muito desenvolvida a partir da obra de PONTES DE MIRANDA. A derrotabilidade um problema jurdico eminentemente interpretativo. No se relaciona, diretamente, a temas atinentes revogao ou derrogao, mas trata de problemas relativos aplicao do direito em diferentes contextos fticos1

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VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. A derrotabilidade da norma tributria. Revista Tributria e de Finanas Pblicas. n. 77. So Paulo: RT, 2007. p. 121-150. The analysis of defeasibility in argumentation is one of the most exciting branches of argumentation theory (...). (ALEXY, Robert. Review: Henry Prakken. Argumentation. v. 14. n. 1. Amsterdam: Springer Netherlands, 2000. p. 70).

e jurdicos. Ao contrrio do que pode parecer a quem no conhece o assunto, a derrotabilidade no significa a defesa de algum relativismo ou subjetivismo. Dentro da dogmtica jurdica hodierna, presencia-se certo flerte com propostas tericas que desconsideram facilmente as previses do direito positivo e propugnam por solues apegadas a um decisionismo subjetivista. Essa passividade com que se tem tratado a desconsiderao do direito positivo motivou o estudo da derrotabilidade, exatamente por ser uma teoria que se prope a representar seriamente a no-aplicao da mensagem literal do direito positivo, ainda que presentes os requisitos necessrios e suficientes para aplicao. O tema instigante porque aparece juntamente com a preocupao de afirmar a existncia de uma resposta normativa inserida no direito positivo, pois se algo ser derrotado, antes disso, ele h de ser potencialmente aplicvel. Embora o trabalho no se aprofunde na teoria da democracia, os valores da segurana jurdica e do princpio democrtico esto presentes, de forma explcita ou implcita, em todo o raciocnio desenvolvido.

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1 DIREITO POSITIVO E METODOLOGIA JURDICA

1.1 DIREITO E LINGUAGEM O Direito produzido e aplicado a partir da linguagem. A lio kelseniana de que o Direito cria suas prprias realidades deve ser entendida como uma criao mediante o uso da linguagem, sem a qual os destinatrios dos comandos normativos ficariam desorientados e o propsito maior do Direito - regular as condutas intersubjetivas - estaria prejudicado. Desde os debates polticos que originam o material legislado, da Assemblia Constituinte at a votao de uma simples Lei ordinria, sempre haver a presena da linguagem para intermediar toda e qualquer comunicao jurdica. Aps a positivao do Direito, ao aplicador caber a misso de interpretlo, sem embargo dos problemas que podem exsurgir nessa atividade, tais como a vagueza e ambigidade do texto, assim como outros fatores lingsticos, imiscudos na pr-compreenso do intrprete, na forma de convices pessoais sobre o ordenamento jurdico e acerca do caso concreto. O direito positivo no criado a partir do nada, ex nihilo, mas decorre da linguagem, que transformada em nova linguagem mediante uma cadeia de sucessivas transformaes, promovidas em leis, sentenas, acrdos, portarias etc. Essa viso do Direito como linguagem franqueia aos juristas uma srie de mecanismos capazes de auxiliar a investigao do fenmeno jurdico em seus pormenores, em virtude das subdivises existentes em sua estrutura.

Tradicionalmente se distinguem trs planos da linguagem: o plano da sintaxe (sinttico), cujo objeto constitui o estudo da estrutura formal da linguagem por meio de anlises lgico-lingsticas; o plano da semntica, que tem por objeto averiguar o sentido das proposies; e o plano da pragmtica, cuja finalidade investigar o uso das preferncias lingsticas.3

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Cfr. ROBLES, Gregorio. Las reglas del Derecho y las reglas de los juegos. 2. ed. Mxico: UNAM, 1988. p. 271. Veja-se, tambm: KALINOWSKI, Georges. Introduccin a la lgica

Esta escolha metodolgica, baseada no reconhecimento da relao umbilical entre Direito e linguagem, tornar possvel a utilizao dos instrumentos ofertados pela lingstica (semitica) no desenrolar de todo o estudo. Em se tratando de interpretao do direito positivo, a linguagem pode, ento, ser vista como incio e limite, meio para um fim no qual a sua intermediao se torna indispensvel, como se ver adiante.

1.1.1 Evoluo da interpretao do Direito luz da linguagem Alm da percepo da linguagem como constitutiva do Direito, possvel us-la (e os seus planos) para demonstrar a evoluo da interpretao na seara jurdica. Foi o que MARCELO NEVES fez, ao elaborar um panorama histricosemitico sobre a interpretao do direito positivo nos ltimos dois sculo, mediante um raciocnio que ser exposto a seguir.4 Segundo a sua anlise, no sculo XIX a Escola da Exegese e a Jurisprudncia dos Conceitos destacaram-se por construir um modelo que se pode chamar, semioticamente, de sintticosemntico, ao enfatizar as conexes sintticas entre termos, expresses ou enunciados normativo-jurdicos, pressupondo a sua univocidade (semntica). Na Escola da Exegese essa concepo resultou em um culto ao texto da lei, por meio da expresso inteno do legislador; por outro lado, a Jurisprudncia dosjurdica. Trad. Juan A. Casaubon. Buenos Aires: Eudeba, 1973. p. 51; WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris Editor, 1995. p. 38 e ss.; NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. So Paulo: Saraiva, 1988. p. 127 e ss; VILA, Humberto. O direito como linguagem. Opinio Jure. n. 4. Canoas: ed. Ulbra, 1995. p. 04-22; FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Direito, retrica e comunicao: subsdios para. uma pragmtica do discurso jurdico. So Paulo: Saraiva: 1997. passim. So significativas as palavras de Paulo de Barros Carvalho acerca do assunto: Ali onde houver direito, haver normas jurdicas (Kelsen). A que poderamos acrescentar: e onde houver normas jurdicas haver, certamente, uma linguagem em que tais normas se manifestem. (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributrio: Fundamentos Jurdicos da Incidncia. 6. ed. So Paulo: Saraiva, 2008. p. 17). No mesmo sentido, Inocncio Mrtires Coelho: (...) de se destacar o carter lingustico de qualquer interpretao, a exigir que os interlocutores falem a mesma linguagem, como condio de possibilidade de sua mtua compreenso, at porque, adverte Gadamer, quem fala uma linguagem que mais ningum fala, em realidade no fala`. (COELHO, Inocncio Mrtires. Racionalidade Hermenutica: acertos e equvocos. In: As vertentes do Direito Constitucional Contemporneo. So Paulo: Amrica Jurdica, 2002. p. 367). NEVES, Marcelo. A interpretao jurdica no Estado Democrtico de Direito. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (coord.). Direito Constitucional. Estudos em Homenagem a Paulo Bonavides. So Paulo: Malheiros, 2003. p. 356-364.

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Conceitos caracterizou-se pela compreenso do Direito como um sistema marcado pela conexo lgica dos conceitos e a racionalidade dos fins, em uma teoria exegtica que se pode chamar objetiva, de acordo com a qual o fim da interpretao jurdica seria esclarecer o significado da lei como um todo objetivo de sentido.5 A Teoria do Direito, na primeira metade do sculo XX, procurou enfatizar o aspecto semntico da interpretao, sem olvidar da dimenso sinttica, naquilo que MARCELO NEVES chamou de modelo semntico-sinttico, caracterizado na Teoria Pura do Direito de HANS KELSEN. Nela j se reconhece o problema da ambigidade e vagueza dos termos e expresses jurdicas, no que caberia ao intrprete determinar o quadro semntico das aplicaes juridicamente corretas, mediante operaes lgico-sintticas, em um ato subjetivo e voluntrio, envolvendo uma questo de poltica do Direito, no terico-jurdica.6 Na segunda metade do sculo XX, a Teoria do Direito comeou a considerar a interpretao do Direito como um problema de determinao semntica do sentido de textos jurdicos, condicionada pragmaticamente, em uma proposta chamada de semntico-pragmtica. As operaes sintticas serviriam delimitao estrutural dos contornos lgico-sistmicos da interpretao, entretanto a tnica do processo hermenutico recairia na busca do sentido normativo de textos jurdicos em contextos histricos especficos. Com base nessa5

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Cfr. NEVES, Marcelo. A interpretao jurdica..., op. cit., p. 356-360. Marcelo Neves explica o seu pensamento: verdade que, conforme ambas as correntes, ao intrprete do Direito caberia descobrir o nico sentido juridicamente possvel dos signos legais. Entretanto, tal operao semntica seria secundria e pouco complexa, eis que se partia da preciso denotativa e conotativa da linguagem legal. Os problemas semnticos estariam subordinados aos sintticos, na medida em que a articulao lgica e sistemtica entre signos legais ou conceitos normativos possibilitaria a subsuno do caso hiptese legal pr-delineada. O ponto crucial do processo interpretativo residiria na concatenao horizontal e vertical entre termos e proposies legais (Escola da Exegese) ou entre conceitos tecnicamente precisos (Jurisprudncia dos Conceitos), para que se definisse a nica soluo correta do caso respectivo. A essas concepes sinttico-semnticas da interpretao jurdica subjazia uma viso realista da linguagem, de tal maneira que a operao sinttica apresentava-se como o meio de chegar-se metodologicamente ao sentido essencial dos termos e expresses jurdicas, possibilitando a aplicao correta do Direito. (Ibidem, p. 358). Em tal concepo, o aspecto pragmtico de um sujeito emprico` posto em segundo plano ou entre parnteses, tendo em vista que a ela subjaz uma concepo de sujeito cognoscente transcendental, infenso aos voluntarismos da escolha entre as variveis possveis de aplicao. (Ibidem, p. 359).

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corrente, afirma CLAUS-WILHEM CANARIS, toda interpretao tem que comear com a deciso do intrprete de ajustar-se obra e de no introduzir nada no texto, mas apenas revelar o que no texto se contm.7 O elemento semntico, diz MARCELO NEVES, est presente na considerao da variao do sentido dos textos em face do seu campo de denotao concreta (o caso dado); por outro lado, o aspecto pragmtico apresenta-se na noo de pr-compreenso ou pr-conceito do intrprete a respeito da lei e do caso concreto. Para MARCELO NEVES, entretanto, essa hermenutica no considera suficientemente a relevncia da dimenso pragmtica no processo de interpretao do Direito, desconhecendo ou, no mnimo, subestimando a funo construtiva do intrprete em face dos textos positivados.8 O envolvimento da teoria jurdica com a pragmtica (camada de linguagem) aproxima-a do pragmatismo, assim entendido conforme o conceito peirceano de que uma coisa significa simplesmente os hbitos que a envolvem.9 Essa noo o cerne do pragmatismo, proposta terica desenvolvida em torno da anlise dos modos de significar, usos ou funes da linguagem, partindo da idia de que fatores intencionais dos usurios provocam alteraes na relao designativo-denotativa dos significados das palavras ou expresses, em razo da alterao do contexto comunicacional, por conta do uso concreto.10 Os fatores pragmticos na administrao da justia, lembra ALF ROSS, so consideraes7

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Ms bien sigue siendo tambin, y precisamente segn HEIDEGGER, la tarea primera, constante y ltima (de la interpretacin) no dejarse imponer nunca, por ocorrencias proprias y por conceptos populares, la posicin (Vorhabe), la previsin (Vorsicht) y la anticipacin (Vorgriff), sino asegurar el tema cientfico, mediante la elaboracin de tales elementos (posicin, previsin y anticipacin) desde las cosas mismas`; por consiguiente, este pre-suponer (Voraus-setzen) tiene solo el carcter de un proyecto de comprensin, de manera que la interpretacin preparada por tal comprensin permite precisamente tomar la palabra, en primer lugar, a aquello mismo que hay que interpretar...`. La precomprension` tiene, por tanto, solamente el carcter de una anticipacin provisional de una expectativa de sentido, que tiene que poderse rectificar cuando el texto lo exija` y que est expuesta al riesgo de fracaso una forma de pensamiento que puede parangornarse con el procedimiento de POPPER de trial and error`. (CANARIS, Claus-Wilhem. Funcin, estructura y falsacin de las teorias jurdicas. Trad. Daniela Brckner e Jos Luis de Castro. Madri: Civitas, 1995. p. 114-6). NEVES, Marcelo. A interpretao jurdica..., op. cit., p. 358. () for what a thing means is simply what habits it involves. (PEIRCE, Charles Sanders. How to make our ideas clear. In: Collected Papers. Cambridge: Harvard University Press. p. 82). WARAT, Luis Alberto. O direito..., op. cit., p. 46.

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baseadas numa valorao da razoabilidade prtica do resultado apreciado em relao a certas valoraes fundamentais pressupostas, diante das quais podem existir vrias interpretaes possveis de um significado lingstico natural do texto.11 O desenvolvimento da pragmtica na interpretao jurdica nasce em razo da constatao bem sintetizada por CHAIM PERELMAN: a idia de nica interpretao no contrria misso dos juzes em nosso sistema jurdico?12 Essa adeso ao pragmatismo significou para o Direito a elevao da importncia do caso concreto e do papel do intrprete no processo de interpretao, duas caractersticas marcantes nas teorias hermenuticas modernas. Com efeito, essa nova viso provoca a mudana no prprio conceito de interpretao, cujo ncleo semntico aproximado da noo de aplicao. Os reflexos deste novo panorama devem ser, portanto, analisados e sopesados.

1.1.2 Interao entre os conceitos de interpretao e aplicao CASTANHEIRA NEVES alude a um paradigma da aplicao, dentro do qual o pensamento jurdico caracterizado como pensamento intencionalmente referido a normas e com o objetivo na sua aplicao, onde o caso jurdico o prius metodolgico.13 Esta concepo desloca o centro das atenes dos juristas para o momento da aplicao do direito positivo, de maneira a concentrar as preocupaes em como os direitos sero concretizados, por quem e de que forma.14

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ROSS, Alf. Direito e justia. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 2000. p. 175-181. (...) lide mme dinterprtation unique nest-elle pas contraire la mission du juge dans notre systme juridique? (PERELMAN, Chaim. Les antinomies en droit. Les antinomies en droit: Etudes Publiees par Chaim Perelman. Bruxelles: Ed. Bruylant, 1965. p. 404). Giorgio Agamben, no mesmo sentido, destaca o motivo pelo qual se comeou a pensar assim a interpretao do Direito: (...) a aplicao de uma norma no est de modo algum contida nela e nem pode ser dela deduzida, pois, de outro modo, no haveria necessidade de se criar o imponente edifcio do direito processual. (AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceo. Trad. Iraci Poleti. So Paulo: Boitempo, 2004. p. 62-63). NEVES, Castanheira. Metodologia jurdica. Coimbra: Coimbra Editora, 1993. p. 142 e ss. e 286. A respeito da concretizao de direitos perante o caso concreto, Friedrich Mller foi quem melhor escreveu: Conceitos jurdicos em textos de normas no possuem significado`, enunciados no possuem sentido` segundo a concepo de um dado orientador acabado

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Se a norma jurdica s adquire verdadeira normatividade quando transformada em norma de deciso, i.e., quando soluciona um caso concreto, como defende CANOTILHO, conclui-se que cumpre ao agente ou agentes do processo de concretizao um papel fundamental, porque so eles que colocam a norma em contacto com a realidade e demonstram a sua real potencialidade.15 EROS ROBERTO GRAU defende a mesma linha de raciocnio ao afirmar que o intrprete discerne o sentido do texto a partir e em virtude de um determinado caso dado; a interpretao do direito consiste em concretar a lei em cada caso, isto , na sua aplicao [GADAMER]. Assim, existe uma equao entre interpretao e aplicao: no estamos, aqui, diante de dois momentos distintos, porm frente a uma s operao [MAR].16 A partir de FRIEDRICH MLLER comeou-se a falar em concretizao de direitos, e no somente na aplicao ou interpretao, em virtude da constatao de que o direito encontra a sua normatividade apenas quando regula questes jurdicas concretas (reais ou fictcias).17 A valorizao do caso concreto e a integrao dos aspectos fticos no processo exegtico so as marcas desta nova hermenutica jurdica, situao que na tica de PAULO BONAVIDES leva impossibilidade de se (...) isolar a norma da realidade`, pois esta, ao ser afetada pelo texto legislativo, transforma-se no elemento material constitutivo da prpria

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[eines abgeschlossen Vorgegebenen]. Muito pelo contrrio, o olhar se dirige ao trabalho concretizador ativo do destinatrio` e com isso distribuio funcional dos papis que, graas ordem [Anordnung] jurdico-positiva do ordenamento jurdico e constitucional, foi instituda para a tarefa da concretizao da constituio e do direito. (MLLER, Friedrich. Mtodos de trabalho do direito constitucional. 2. ed. Trad. Peter Naumann. So Paulo: Max Limonad, 2000. p. 56). CANOTILHO. J. J. Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. p. 223. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretao/aplicao do Direito. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 2003. p. IX. (...) a concretizao por uma srie de razes no pode ser um procedimento meramente cognitivo. A normatividade comprova-se apenas na regulamentao de questes jurdicas concretas. Ela exigida somente no processo de tais regulamentaes e s com isso adquire eficcia. Normas jurdicas no so dependentes do caso, mas referidas a ele, sendo que no constitui problema prioritrio se se trata de um caso efetivamente pendente ou de um caso fictcio. Uma norma no (apenas) carente de interpretao porque medida que ela no unvoca`, evidente`, porque medida que ela destituda de clareza` mas sobretudo porque ela deve ser aplicada a um caso (real ou fictcio). (MLLER, Friedrich. Mtodo..., op. cit., p. 61-62).

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norma.18 Para FRIEDRICH MLLER, na concretizao do direito, o texto apenas a ponta do iceberg.19 Como corolrio desta proposta terica, surge a distino entre texto de norma e norma jurdica, ensinamento til para divisar-se o texto positivado enquanto criao do legislador e a norma jurdica, como produto da interpretao/concretizao do direito.20 Contudo, esta diferenciao no

representa a perda de fora imperativa do direito positivo, de maneira a tornar crvel a criao de uma norma conforme o simples talante do intrprete. FRIEDRICH MLLER destaca que o texto da norma dirige e limita as possibilidades legtimas e legais da concretizao materialmente determinada do direito no mbito do seu quadro21, ou seja, o teor literal demarca as fronteiras extremas das possveis variantes de sentido, i., funcionalmente defensveis e constitucionalmente admissveis.22 RICCARDO GUASTINI lembra que a interpretao deve ser distinguida da criao de novas regras, pois uma previso legal [legal sentence] admite tipicamente um nmero de interpretaes, entretanto, no admite qualquer interpretao. Segundo GUASTINI, somente em um cepticismo extremo [hard scepticism] na interpretao legal, qualquer coisa caberia, vale dizer, os intrpretes poderiam atribuir a todo texto legal qualquer significado, tornando

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21 22

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 16. ed. So Paulo: Malheiros, 2005. p. 505. Le texte de norme, dans une codification, nest que la partie merge de liceberg (...). (MLLER, Friedrich. Discours de la mthode juridique. Trad. LAlleemand par Olivier Jouanjan. Paris: Presses Universitaires de France, 1996. p. 168). A respeito da no-identidade entre texto de norma e norma jurdica, v.: MLLER, Friedrich. Discours..., op. cit., p. 168 e ss.; MLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violncia: Elementos de uma teoria constitucional. Trad. Peter Naumann. Porto Alegre: Fabris Editor, 1995, p. 41 e ss.; MLLER, Friedrich. Mtodo..., op. cit., p. 51-108; CANOTILHO. J. J. Gomes. Direito..., op. cit., p. 216-226; ALEXY, Robert. Teora de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzn Valds. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. p. 48-73; NEVES, Castanheira. Metodologia..., op. cit., p. 83-154; BONAVIDES, Paulo. Curso..., op. cit., p. 488-507; NEVES, Marcelo. A interpretao..., op. cit., p. 356-376; GRAU, Eros Roberto. Ensaio..., op. cit., p. 28 e ss; VILA, Humberto. Teoria dos princpios. 8. ed. So Paulo: Malheiros, 2008. p. 30-31; CLVE, Clmerson Merlin. A fiscalizao abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. So Paulo: RT, 1995. p. 24-25; VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. A derrotabilidade..., op. cit., p. 125-127. MLLER, Friedrich. Mtodo..., op. cit., p. 56. Ibidem, p. 75.

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impossvel separar a interpretao genuna (i.e., a escolha de um significado definitivo dentro de uma estrutura de significados admissveis) e a criao de novas regras.23 O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de se manifestar acerca da alegao de usurpao de competncia legislativa na atividade jurisdicional que outorgou sentido ao direito positivo. Em diversos julgamentos, o STF decidiu que o procedimento hermenutico do rgo jurisdicional que ao examinar o quadro normativo positivado pelo Estado, dele extrai a interpretao dos diversos diplomas legais que o compem, para, em razo da inteligncia e do sentido exegtico que lhes der, obter os elementos necessrios exata composio da lide - no transgride, diretamente, o princpio da legalidade.24 O STF, nesses julgados, procurou diferenciar os conceitos de

interpretao e de produo, para ento ressaltar que a interpretao, qualquer que seja o mtodo hermenutico utilizado, tem por objetivo definir o sentido e esclarecer o alcance de determinado preceito inscrito no ordenamento positivo do Estado, no se confundindo, no entendimento do Supremo, com o ato estatal de produo normativa, no importando em usurpao das atribuies normativas dos demais Poderes da Repblica. EUGENIO BULYGIN ressalta que as normas jurdicas criadas pelo Poder Legislativo so obrigatrias para todos e, em especial, para todos os Juzes, ao passo que as normas gerais mediante as quais o Juiz justifica a sua deciso, em um caso de lacuna normativa, no obrigam, em princpio, aos outros juzes. No entanto, uma norma geral criada por um Juiz em um caso determinado constitui23

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A legal sentence typically admits of a number of interpretations but it does not admit any interpretation whatsoever. (...) According to hard scepticism, in the game of legal interpretation anything goes`: interpreters, namely supreme courts judges, can ascribe to any legal text any meaning whatsoever, making it impossible to distinguish between genuine interpretation (i.e., the choice of one definite meaning within a framework of admissible meanings) and the creation of new rules. (GUASTINI, Riccardo. A Sceptical View on Legal Interpretation. In: COMANDUCCI, Paolo; GUASTINI, Riccardo (coord.). Analisi e diritto. Ricerche di Giurisprudenza Analitica. Turim: Giappichelli, 2005. p. 142 STF, Agravo Regimental no Recurso Extraordinrio n. 269579, rel. Min. Celso de Mello, DJU 07/12/2000; STF, Agravo Regimental no Recurso Extraordinrio n. 256911, rel. Min. Celso de Mello, DJU 15/12/2000; STF, Recurso Extraordinrio n. 250279 rel. Min. Celso de Mello, DJU 07/12/2000.

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um precedente, de sorte que se outros Juzes seguem o caminho traado, ter-se- uma jurisprudncia uniforme. A norma geral criada pelos Juzes adquire por meio do precedente um carter obrigatrio, todavia, pode ocorrer que outro Juiz resolva de outra maneira um caso anlogo, gerando assim normas gerais incompatveis.25 No caminho do presente trabalho seremos guiados pela defesa da preservao da dignidade do texto positivado, reconhecendo-se o direito positivo como incio e limite de toda e qualquer atividade interpretativa, sem, todavia, menoscabar o potencial da interpretao e o papel do intrprete no processo de concretizao. Frise-se, por fim, que a norma jurdica criada a partir do texto positivado, ao ser invocada no mbito da aplicao do Direito, ser dotada de prescritividade de condutas, e no somente descrever mensagens legisladas como se procedesse no nvel da cincia do direito, dentro da clssica diviso kelseniana entre camadas do direito positivo e cincia do direito. Pensar que a norma jurdica, enquanto interpretao, equivale ao produto da cincia do direito, aproximar a atividade do Juiz do jurista, i.e., sem nenhuma imperatividade ou qualquer obrigao de ser seguida.26

1.2 MTODOS JURDICOS NA APLICAO DO DIREITO A criao de mtodos uma tarefa constante na dogmtica jurdica. Dentro dessa atividade, a lgica muitas vezes invocada na qualidade de instrumento apto a ser utilizado, metodologicamente, no auxlio do ato de aplicao. Levando em conta a correlao entre o desenvolvimento de mtodos e o uso da lgica, pretende-se sopesar importncia deste relacionamento para o aperfeioamento do estudo do Direito.

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BULYGIN, Eugenio, Los jueces crean derecho?. Isonoma: Revista de Teora y Filosofa del Derecho. n. 18, 2003. p. 25). Essa observao importante em razo das palavras de Souto Maior Borges acerca da distino entre enunciado e norma na doutrina de Robert Alexy: O que ele denomina simplesmente norma`, no sem impropriedade, configura um enunciado descritivo do preceito formalizado e coloca-se em diverso nvel de linguagem (linguagem doutrinria, metalingstica). (BORGES, Jos Souto Maior. Curso de direito comunitrio. So Paulo: Saraiva, 2005. p. 41).

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1.2.1. A desmetodizao da jurisprudncia Para CANOTILHO, basta ler os acrdos mais recentes de vrios tribunais constitucionais para se concluir imediatamente que: (1) se rejeita decididamente o amparo maiutico de grandes teorias` (discurso racional`, razo pblica`, agir comunicativo`) quer na ratio decidendi quer nas sentenas propriamente ditas; (2) se evitam abordagens expressas relativamente a problemas metdicometodolgicas de interpretao-concretizao das normas constitucionais.27 Se no h teoria nem mtodo ento o que que h? CANOTILHO levanta este questionamento e o responde com a seguinte expresso: positivismo jurisprudencial. Instalou-se, na sua tica, um precedentismo metodolgico jurisdicionalmente fechado que leva pergunta acerca de qual mtodo de concretizao de regras e princpios constitucionais merece aplicao atualmente? Parece responder-se: juiz, no h mtodo; este faz-se aplicando as normas aos casos quotidianamente sujeitos jurisdictio dos Tribunais.28 Essa desmetodizao da jurisprudncia corolria da crtica empreendida ao formalismo jurdico, a partir da segunda metade do sculo XX, em razo do desenvolvimento do chamado ps-positivismo no mbito jurdico. O ataque ao positivismo legalista e a valorizao dos princpios culminaram no desprestgio dos mtodos jurdicos, entendidos como frmulas que engessariam a interpretao do direito e prejudicariam a exegese do intrprete. O experimentalismo e a cultura relativstica, decorrentes de um apego irrestrito ao pragmatismo desamparado de mtodos, afirma CANOTILHO, libertariam a jurisprudncia do peso teoricizante, em uma prudentia sem scientia, que o faz perguntar novamente: qual a utilidade para a praxis jurisprudencial da imensa literatura sobre interpretao e mtodo de investigao de normas constitucionais?29

27

28 29

CANOTILHO, JJ. Gomes. Jurisdio constitucional e novas intranqilidades discursivas: do melhor mtodo melhor teoria. In: Fundamentos: cuadernos monogrficos de teoria del Estado, Derecho Pblico e Historia Constitucional. n. 4, Oviedo: 2006. p. 428. Ibidem, p. 428. Ibidem, p. 428.

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A aproximao ao pragmatismo no pode significar a proposta de uma fora normativa do ftico e tampouco uma autorizao para que se possa passar ao largo da literalidade do direito positivo, especialmente em respeito ao esprito democrtico. A interao entre os planos sinttico, semntico e pragmtico se faz indispensvel no processo de cognio do direito, no entanto, isso no pode culminar no abandono de iniciativas doutrinrias que pretendam desenvolver mtodos para auxiliar o momento da deciso. Como lembra CASTANHEIRA NEVES, o problema metodolgico se tornou uma dimenso fundamental do repensar do prprio problema do direito30, razo pela qual a pretenso de se criar mtodos para a organizao, aplicao e tratamento de conflitos normativos no pode ser olvidada. A singela desmetodizao ou descientifizio da jurisprudncia materializa o ceticismo profundo em relao interpretao do direito, deixando um campo aberto para o decisionismo desprovido de qualquer critrio para a anlise dos argumentos envolvidos na exegese. A experincia mostra que os mtodos jurdicos so superados com o desenvolvimento de novas teorias e em razo da mudana no panorama histrico-poltico vivido pela sociedade. Uma crena que est justificada em momento dado, baseada na melhor teoria ento disponvel, pode aparecer injustificada em um momento posterior, porque j no parte da melhor teoria ento disponvel.31 Essa espcie de perenidade das teorias (e das crenas), entretanto, no significa a desnecessidade de criao de novos mtodos e o aperfeioamento daqueles existentes. KARL POPPER sustenta que as teorias so redes, lanadas para capturar aquilo que denominamos o mundo`: para racionaliz-lo, explic-lo, domin-lo.32 Em ltima anlise, para o Direito, todo e qualquer mtodo criado para outorgar coerncia e consistncia no fornecimento de respostas s celeumas

30 31

32

NEVES, Castanheira. Metodologia..., op. cit., p. 25. Cfr. HAGE, Jaap; PECZENIK, Aleksander. Conocimiento jurdico sobre qu?. Doxa: Cuadernos de filosofa del derecho, n. 22, 1999, p. 42; republicado em ingls: Legal knowledge about what? Ratio Juris. v. 13, n. 3, 2000. 325-344. POPPER, Karl R. A lgica da pesquisa cientfica. Trad. Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. 16. ed. So Paulo: Cultrix, 2008. p. 61.

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jurdicas, i.e., para conceder racionalidade s formas com as quais os problemas jurdicos so resolvidos. A derrotabilidade encontra-se inserida neste conceito de mtodo e, como tal, foi desenvolvida pela doutrina para promover a racionalizao do momento jurdico em que muitos diriam residir o decisionismo, o subjetivismo, ou mesmo, a desmetodizao. O raciocnio empreendido em todo o trabalho est imbudo da vontade de racionalizar, explicar e dominar o ato de aplicao do direito positivo, sobretudo quando o fenmeno da derrotabilidade entra em jogo.

1.2.1 A lgica aplicada ao direito: crticas e possibilidades Desde a poca de JHERING, afirma ROBERT ALEXY, a anlise lgica dos conceitos jurdicos tem sido alvo de muitas crticas, tornando-se a objeo mais importante aquela fundamentada na impossibilidade de obter nova concluso normativa usando-se somente os mtodos da anlise lgica e da inferncia lgica. Trata-se de um questionamento quilo que JHERING chamou de culto da lgica que visa transformar a jurisprudncia em matemtica da lei.33 JULIANO MARANHO, partindo de uma viso histrica, sustenta que a lgica e o sistema que passaram a ser termos correntes nos ttulos de obras jurdicas clssicas de interpretao, desde SAVIGNY, decorriam de uma importao no-refletida do paradigma de sistematizao e axiomatizao das cincias naturais, principalmente da fsica, no passando de um esforo de identificao de premissas normativas substantivas, nas quais seriam baseados os juzos. A lgica e o formalismo foram severamente atacados, mas o

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ALEXY, Robert. Teoria da argumentao jurdica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. So Paulo: Landy Editora, 2001. p. 243. Como j se disse, em tempos ps-positivistas, com a doutrina em voga pregando o desapego literalidade do direito positivo, falar em lgica aplicvel ao direito ser, no mnimo, visto com desconfiana. (VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. Uma viso lgica da coliso entre direitos fundamentais. In: A advocacia iniciante e os novos rumos do direito: Estudo aplicado. v.2. Curitiba: Editora da OAB/PR, 2006. p. 206).

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dedutivismo ingnuo presente nas pioneiras aluses lgica, muito pouco ou nada tinha de lgica formal.34 Esse preconceito gerou uma voz forte contra os estudos lgicos, uma crtica fcil e que tem se perpetrado em um discurso muitas vezes repetido, mas pouco refletido. Fala-se da lgica como se o pensamento lgico ainda estivesse atrelado ao que ARISTTELES escreveu ou como se nada de novo ou significativo tivesse sido escrito. A lgica evolui, mas muitas ressalvas contra ela ainda so antiquadas e anacrnicas.35 Essa evoluo, entretanto, teve um lado ruim, como lembram

ALCHOURRN e BULYGIN: no houve tempo para sua difuso entre os noespecialistas e, conseqentemente, a lgica no foi devidamente assimilada pela34

35

Cfr. MARANHO, Juliano. As lgicas do direito e os direitos da lgica. obra indita. p. 03. Acerca da evoluo da lgica no sculo XX, Juliano Maranho asseverou: No sculo seguinte, aps o salto dado pela lgica moderna de veia lingstica, pelas mos de Frege e Russell, o positivismo jurdico, principalmente de Alf Ross e Hans Kelsen, rompe tal circunscrio da lgica jurdica metodologia hermenutica, esta ltima considerada pelos positivistas uma atividade retrica, desprovida de valor cientfico (Kelsen, 1934, 36-39; Ross, 1958, itens XXIX a XXXI). Ross, inicialmente ctico com uma lgica de normas, atravs de seu famoso paradoxo (Ross, 1941), posteriormente passou a admitir a lgica dentica como um conjunto de postulados que definem o discurso diretivo, isto , estabelecem as condies que esse deve satisfazer para que possa cumprir sua funo de dirigir a conduta humana (Ross, 1971, p. 164). Kelsen, por sua vez, exigia a consistncia como pressuposto para o conhecimento de normas jurdicas (Kelsen, 1934) e mais tarde clamou por uma lgica especfica para o raciocnio de imputao normativa, uma lgica de proposies normativas da cincia jurdica, distinta daquele aplicvel s cincias causais (categoria na qual inclua as demais cincias sociais e as cincias naturais) (Kelsen, 1960, em especial 21,22 e 34, d` e e`). Nesse contexto, h meio sculo, a recepo do primeiro sistema moderno de lgica dentica foi bastante (e talvez excessivamente) calorosa pela filosofia do direito. Com efeito, aps a publicao de Deontic Logic, por von Wright (von Wright, 1951), e o (re)surgimento da lgica dentica criou-se uma grande expectativa entre importantes filsofos do direito acerca da possibilidade de sua aplicao na soluo de antigos problemas ou confirmao de teses filosficas. Entre os entusiastas estava Kelsen, talvez o jurista mais influente do sculo passado, que parecia ter encontrado um trunfo para a pureza da cincia normativa. A interdefinibilidade entre obrigao e proibio (o que no est proibido est permitido) e o princpio de no contradio entre normas, ambos presentes no sistema de von Wright, aparentemente comprovavam` as teses kelsenianas de completude e consistncia necessrias dos ordenamentos jurdicos, a ponto de Kelsen, de maneira egocntrica, como conta von Wright (von Wright, 1985), atribuir a descoberta da lgica dentica prpria Teoria Pura do Direito. (Ibidem, p. 3-5). Como noticia Newton da Costa, a lgica constitui uma das cincias que mais evoluram e se transformaram no sculo XX, deixando de englobar, apenas, a teoria da argumentao vlida, encontrando variadas aplicaes, inclusive na seara terica, especialmente na filosofia, em particular, em filosofia da cincia, alm de avanar em reas referentes inteligncia artificial (com nfase na robtica), engenharia de produo e informtica em geral. (DA COSTA, Newton. Prlogo. In: MORTARI, Cezar A. Introduo lgica. So Paulo: Editora UNESP, 2001).

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cultura geral de nossa poca. Houve um alto desenvolvimento tcnico que no foi acompanhado em grau suficiente pelas obras de divulgao, de modo que a lgica se converteu em algo totalmente inacessvel para os no especialistas e o pblico culto em geral tem dela uma idia muito vaga.36 Os estudos lgicos, cada vez mais sofisticados, encontraram na Inteligncia Artificial e no desenvolvimento de sistemas jurdicos

computacionais, uma aplicabilidade prtica nunca antes experimentada pelos juristas. Esse desiderato, no entanto, tambm encontrou severas crticas. Segundo THORNE MCCARTY, os conceitos legais mais importantes possuem textura aberta: eles no so nunca lgicos e exatos, mas amorfos e pobremente definidos. Como devemos representar esta estrutura em um sistema de Inteligncia Artificial? Ao final completa: os mais importantes conceitos legais no so estticos, mas dinmicos: eles so tipicamente construdos e modificados assim como so aplicados a um determinado conjunto de fatos. Como devemos modelar este processo?37 A base desse ceticismo encontra-se no argumento segundo o qual a lgica no consegue representar o problema central do raciocnio jurdico: a interpretao, o seu contedo e alcance e as formas com as quais as divergncias podem ser solucionadas. ROBERT ALEXY, buscando as possibilidades lgicas do discurso jurdico, declara que o fato de que a lei subjetivamente vlida para a anlise lgica no seja suficiente, em si e por si mesma, para justificar normas e decises, de modo algum vincula que a aplicao de argumentos conceituaissistmicos seja desnecessria, ou at mesmo nociva, para a argumentao jurdica. No seu entender, muito mais provvel que a aplicao dos argumentos

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37

Cfr. ALCHOURRN, Carlos; BULYGIN, Eugenio. Prlogo. In: ECHAVE, Delia Tereza; URQUIJO; Mara Eugenia; GUIBOURG, Ricardo. Lgica, proposicin y norma. Buenos Aires: Astrea, 1995. p. 10-11. The most important legal concepts are open-textured: they are never logical and precise, but amorphous and poorly defined. How should we represent this structure in an AI system? Legal concepts are not static, but dynamic: they are typically constructed and modified as they are applied to a particular set of facts. How should we model this process? (MCCARTY, L.Thorne. Some Arguments about Legal Arguments. In: Proceedings of the Sixth International Conference on Artificial Intelligence and Law. New York:ACM, 1997. p. 221.

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conceituais-sistmicos seja necessria e racional, em conjunto com outros argumentos, em particular aqueles da argumentao prtica geral.38 Dentro dessa linha de raciocnio, o aparato lgico ganha espao na argumentao jurdica na medida em que franqueia aos operadores do Direito instrumentos indispensveis para toda e qualquer teoria que busque, em sua essncia, resguardar a coerncia e a segurana jurdica. Se o Direito no deve ser desmetodizado, a lgica jamais perder lugar na argumentao jurdica. Com efeito, a resposta de um lgico dentico s crticas dirigidas ao formalismo ou logicismo (e que no raro tambm lhes so lanadas) deve ser: se algo saiu errado com a concluso, ento culpem-se as premissas normativas, no a lgica (HENRY PRAKKEN).39 JULIANO MARANHO cita a classificao de PEIRCE entre as trs formas bsicas (e independentes) de inferncia que podem auxiliar (e de fato auxiliam) o itinerrio de argumentao no Direito:40

Deduo Regra: Todo A que B C

Induo

Abduo

Premissa

Concluso

Premissa

Caso: A B

Premissa

Premissa

Concluso

Resultado: A C

Concluso

Premissa

Premissa

PEIRCE ressalta que a Deduo prova, que algo deve ser; a Induo mostra que alguma coisa realmente operativa; a Abduo simplesmente sugere

38 39 40

ALEXY, Robert. Teoria..., op. cit., p. 243. Cfr. MARANHO, Juliano. As lgicas..., op. cit., 12. Ibidem, p. 12.

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que alguma coisa pode ser.41 Deduo um argumento logicamente vlido: a concluso necessariamente verdadeira, dado que as premissas tambm o sejam.42 Noutro lado, a concluso de uma induo no vlida no mesmo sentido, mas as premissas fornecem-lhe algum grau de probabilidade, afirma JULIANO MARANHO, a quem esta inferncia pode ser representada por meio do seguinte exemplo: Com base na observao de que diferentes aves que voam, podemos concluir com determinado grau de probabilidade de que todas as aves voam.43 A abduo, a seu turno, no traz nem uma concluso necessria, nem uma ilao com suporte probabilstico, pois to-somente uma hiptese que possivelmente explica as premissas, vale dizer, a partir de uma observao ou resultado (ex: o cho est molhado) e uma regra ou teoria subjacente (ex: quando chove o cho se molha), levanta-se a hiptese mais ou menos plausvel (ex: choveu).44 Como se v, a lgica possui mecanismos plenamente aplicveis a diversas situaes jurdicas, podendo ser utilizada no auxlio de atividades judicantes e no aperfeioamento de investigaes doutrinrias. Entretanto, a

lgica no deve ser supervalorizada, como se fornecesse mtodos e, alm disso, concedesse solues sem a interveno do ser humano. Como diria EUGENIO BULYGIN, grandes expectativas s vezes levam a grandes decepes, e a lgica no pode ser considerada apta a fornecer respostas, pois estas so dadas por legisladores e juzes; tambm no pode ser subvalorizada, como se em nada auxiliasse na definio de conseqncias jurdicas ou na clarificao do caso concreto.45 SUSAN HAACK assevera que a lgica para o Direito algo, mas no

41

42 43 44 45

PEIRCE, Charles Sanders. Semitica. Trad. Jos Teixeira Coelho Neto. So Paulo: Perspectiva, 1990. p. 220. MARANHO, Juliano. As lgicas..., op. cit., p. 12. Ibidem, p. 12. Ibidem, p. 12. BULYGIN, Eugenio. What Can One Expect from Logic in the Law? (Not Everything, but More than Something: A Reply to Susan Haack). Ratio Juris. v. 21, 2008. p. 154.

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tudo.46 A busca por esse algo um dos objetivos mais instigantes da dogmtica jurdica atual.

1.3 ARGUMENTAO JURDICA E JUSTIFICAO A teoria da argumentao se relaciona com a lgica jurdica. Aps fazer esta afirmao, MANUEL ATIENZA aduz que a argumentao jurdica vai alm da lgica, porque os argumentos jurdicos podem ser estudados tambm em uma perspectiva que no a da lgica (p.ex., psicolgica, sociolgica ou raciocnio noformal); por outro lado, a lgica vai alm da argumentao, pois tem um objeto de estudo mais amplo, englobando a lgica do direito e a lgica dos juristas.47 PERELMAN, em sua nova retrica, pretendeu acrescentar lgica formal um campo de argumentao que, at aquele momento, havia escapado de qualquer esforo de racionalizao, isto , de argumentao prtica.48 O desiderato de preservar os rigores da lgica e, ao mesmo, permitir a comunicao entre os seus fundamentos e os argumentos prticos, moveu grande parte dos autores que se debruaram sobre a teoria da argumentao jurdica. Um caminho quase sempre percorrido, dentro dessa pretenso, consiste em dividir o raciocnio jurdico em dois planos. JERZY WRBLEWSKI chama de justificao interna o primeiro plano, referente atividade de justificar dedutivamente a passagem de uma premissa normativa e de uma premissa ftica, para uma concluso normativa, procedimento este aplicvel aos casos jurdicos simples, mediante processo de deduo. Nas situaes em que a justificao interna, unicamente dedutiva, no consegue resolver o problema jurdico, tornase necessrio o processo de justificao externa (segundo plano), quando entra

46 47

48

HAACK, Susan, On logic in the law: Something, but not all. Ratio Juris. v. 20, 2007. p. 03. ATIENZA, Manuel. As razes do direito: teorias da argumentao judicial. So Paulo: Landy, 2002. p. 51-55. Cfr. ALEXY, Robert. Teoria..., op. cit., p. 130.

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em jogo a teoria da argumentao e o questionamento acerca da escolha das premissas.49 Alguns poderiam entender a diviso do raciocnio em duas etapas (twostage conception) como artificial, desnecessria no terreno das decises substanciais, pois estas seriam resolvidas com base na justificao externa. ROBERT ALEXY rebate essa crtica e reconhece que a frmula da subsuno possui um poder racional que no pode ser subestimado, constituindo, em primeiro lugar, a exigncia mnima de racionalidade (minimal requirements of rationality) e, em segundo lugar, o ponto de partida para qualquer tentativa de realizao no contexto da justificao externa de algo a mais do que o nvel de racionalidade definido com essas exigncias mnimas.50

1.3.1 Justificao interna Como se adiantou, a justificao interna o caminho que vai da premissa normativa (premissa maior), dentro da qual deve ser subsumida a premissa ftica (premissa menor), at ser deduzida uma concluso vlida. Com base nessa constatao, JOS RENATO CELLA e CSAR SERBENA sustentam que quem aceita as premissas deve aceitar tambm a concluso, ou, dito de outro modo, para quem aceita as premissas a concluso delas decorrente est justificada. Nenhuma deciso jurdica pode prescindir desse tipo de justificao, todavia, essa justificao interna s suficiente quando nem a norma, nem a comprovao dos fatos suscitam dvidas.51 A justificao interna (ou justificao de primeira-ordem - first-order justification - no lxico de NEIL MACCORMICK), pode ser explicada da seguinte forma: (i) os rgos jurisdicionais promovem constataes de fatos e essas, sejam corretas ou no, para os efeitos legais, contam como se fossem

49 50 51

Cfr. ATIENZA, Manuel. As razes..., op. cit., p. 50-51. ALEXY, Robert. On Balancing, op. cit., p. 435. Cfr. SERBENA, Cesar; GRAZIERO CELLA, Jos Renato. A lgica dentica paraconsistente e os problemas jurdicos complexos. Verba Iuris. n. 2 Curitiba: 2000. p. 121-2.

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verdadeiras; (ii) reconhece-se que as normas legais podem ser expressas na forma se p, ento q; (iii) os fatos constatados devem ser exemplos inequvocos de p; (iv) torna-se assim possvel que, em determinadas circunstncias, uma concluso legal seja derivada de modo vlido, por lgica dedutiva, a partir da proposio do direito e da proposio dos fatos que tenham servido de premissas.52 A maior lio que se infere da proposta de justificao interna encontra-se no reconhecimento de que as solues jurdicas podem ser extradas dedutivamente, sendo que este caminho, por mais que no seja imune a questionamentos, pode servir de incio para qualquer empreitada argumentativa. A controvrsia, ento, deixa de residir na aceitao do silogismo (e da deduo) na representao de toda e qualquer soluo jurdica, para se situar na definio dos casos jurdicos que podem e os que no conseguem ser resolvidos por esse mecanismo. O norte para a indicao dos casos que podem ser solucionados mediante a simples deduo reside: (i) no nvel de complexidade probatria dos fatos que ensejam a aplicao da norma jurdica; (ii) na existncia de mais de uma conseqncia jurdica possvel para o caso concreto; (iii) na carga denotativa das previses legais, a permitir a existncia de mais de uma interpretao, em relao ao contedo e alcance do texto positivado. Apesar da dificuldade, ROBERT ALEXY frisa que o itinerrio de justificao interna no vo, pois com base nele possvel aferir quais premissas tm de ser extremamente justificadas, a fim de que seja possvel a anlise e a crtica de regras que se dispem como universais, facilitando-se assim a tomada de decises, de maneira a contribuir com a justia e a segurana jurdica.53

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Cfr. MACCORMICK, Neil. Argumentao jurdica e teoria do direito. Trad. Walda Barcellos. So Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 47. ALEXY, Robert. Teoria..., op. cit., p. 224.

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1.3.2 Justificao externa HUMBERTO VILA, discorrendo sobre a existncia de imunidade tributria nos livros eletrnicos, promove uma interpretao do artigo 150, VI, d da Constituio Federal, partindo da distino entre justificao interna e justificao externa.54 Segundo ele, uma parte da doutrina percorre o caminho dedutivo da justificao interna, das premissas at a concluso, em um processo que se pode reproduzir da seguinte forma: (a) os livros so protegidos pela imunidade; (b) todas as obras que veiculam idias e so dispostas em seqncia lgica so livros; (c) o chamado livro eletrnico` consiste numa obra que veicula idias e disposta em seqncia lgica; (d) o livro eletrnico` um livro; (e) o livro eletrnico` protegido pela imunidade dos livros, jornais e peridicos.55 Noutra banda, para defender o no-enquadramento dos livros eletrnicos` no mbito material da regra de imunidade, outros autores tambm se valem da justificao interna para concluir dedutivamente que: (a) os livros so protegidos pela imunidade; (b) todas as obras encadernadas e ordenadas em folhas de papel so livros; (c) o chamado livro eletrnico` no consiste numa obra encadernada e ordenada em folhas de papel; (d) o livro eletrnico` no um livro; (e) o livro eletrnico` no protegido pela imunidade dos livros, jornais e peridicos.56 HUMBERTO VILA defende que o processo dedutivo, sem embargo de ser dotado de racionalidade, no consiste numa fundamentao completa, na medida em que as premissas resolutivas nas duas hipteses apresentadas (premissas b), que decidem efetivamente sobre a interpretao restritiva ou extensiva do vocbulo livro, so meramente aplicadas na justificao interna. No so, porm, fundamentadas, vale dizer, tanto a premissa todas as obras que veiculam idias e so dispostas em seqncia lgica so livros, quanto a premissa todas as obras encadernadas e ordenadas em folhas de papel so livros, so aplicadas sem serem justificadas.

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VILA, Humberto. Argumentao jurdica e a imunidade do livro eletrnico. Revista de Direito Tributrio. n. 79. So Paulo: Malheiros, 2001. p. 163-165. Ibidem, p. 163. Ibidem, p. 163.

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No seu ponto de vista, a justificao depende de argumentos: os argumentos so elementos de justificao racional da interpretao jurdica, cuja tarefa , precisamente, fundamentar esse tipo de premissa. Entretanto, esse trabalho de fundamentao da premissa escolhida no ocorrer no nvel da justificao interna, mas sim, no plano da justificao externa, no momento em que so avaliados os argumentos empregados para decidir por uma interpretao em detrimento de outra(s).57 Esse raciocnio desenvolvido por HUMBERTO VILA sobremodo significativo para representar at que ponto a justificao interna pode ser usada, assim como a necessidade de um processo de justificao externa para os casos em que a deduo no consegue deslindar a controvrsia colocada em anlise. NEIL MACCORMICK chama de justificao de segunda ordem (second-order justification) a esse procedimento que, para ele, tem lugar quando se esgotam as normas jurdicas sem que seja esgotada a necessidade de decises jurdicas, nas hipteses em que as normas no so claras, ou ainda, quando a correta classificao dos fatos pertinentes questionvel, ou mesmo quando h controvrsia quanto a existncia de fundamento legal para alguma reivindicao ou deciso nos termos do direito positivo.58 Diante da analogia em relao s palavras JELLINEK, segundo as quais no se abatem pardais disparando canhes59, cumpre ressaltar que a justificao externa, assim como o itinerrio de ponderao, no precisam ser invocados em situaes triviais, cotidianas, em que a aplicao das normas jurdicas no encontra maiores dificuldades. Para esses casos, o procedimento de justificao interna o mais recomendvel. De qualquer modo, a dade justificao interna e justificao externa importante e ser usada no desenvolvimento da presente investigao, sobretudo

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Cfr. VILA, Humberto. Argumentao..., op. cit., p. 163. MACCORMICK, Neil. Argumentao..., op. cit., p. 127. Cfr. SOUZA NETO, Cludio Pereira de. Teoria constitucional e democracia deliberativa. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 17.

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durante a discusso acerca da existncia de casos fceis e casos difceis (cfr. item 2.1.2, infra).

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2 CONSTITUCIONALISMO E CONCRETIZAO DE DIREITOS

2.1. CONSTITUCIONALIZAO DE DIREITOS A expresso constitucionalizao do ordenamento jurdico no de uso comum na linguagem dos juristas e a ela no se pode outorgar um significado unvoco e permanente, aponta RICCARDO GUASTINI, a quem a expresso pode referir-se, por exemplo, introduo de uma primeira Constituio escrita em um ordenamento. Entretanto, na sua tica, este conceito no proporcionaria interesse algum para a grande parte dos ordenamentos contemporneos.60 A idia de uma constitucionalizao pode, ainda, significar a insero de temas e questes consideradas tradicionalmente infraconstitucionais na Constituio (formal ou material), em uma perspectiva configurada no texto constitucional brasileiro de 1988, quando assuntos relativos a Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito do Trabalho, Direito da Famlia, Direito Tributrio, Direito Financeiro, entre outros, foram alados a nvel constitucional.61 Nada obstante, a face da constitucionalizao que aqui interessa aquela marcada pela impregnao de normas constitucionais em todo o ordenamento, mediante a existncia e considerao de uma Constituio que condiciona a legislao, a jurisprudncia, a doutrina e as relaes dos atores polticos.62 Esta constitucionalizao, gerada a partir do reconhecimento da fora normativa da Constituio, tem o condo de irradiar efeitos jurdicos,60

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GUASTINI, Riccardo. Estudios de Teora Constitucional. Trad. Miguel Carbonell. Mexico: UNAM, 2001. p. 153 e ss. Veja-se, a respeito: MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. t. I. 6. ed. Coimbra: Coimbra Editora,1997. p. 16-18; CANOTILHO. J. J. Gomes. Direito..., op. cit., p. 498-500. Ms bien, acogiendo una sugerencia de Louis Favoreu, por constitucionalizacin del ordenamiento jurdico` propongo entender un proceso de transformacin de un ordenamiento, al trmino del cual, el ordenamiento en cuestin resulta totalmente impregnado` por las normas constitucionales. Un ordenamiento jurdico constitucionalizado se caracteriza por una Constitucin extremadamente invasora, entrometida, capaz de condicionar tanto la legislacin como la jurisprudencia y el estilo doctrinal, la accin de los actores polticos as como las relaciones sociales. (GUASTINI, Riccardo. Estudios..., op. cit., p. 153.)

especialmente dos seus direitos fundamentais, sobre todo o ordenamento. Esta particularidade est associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo contedo material e axiolgico se expande por todo o ordenamento, levando os valores, os fins pblicos e os comportamentos contemplados nos princpios e regras da Constituio, a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional.63 Sem embargo de sua grande valia, essa empreitada possui efeitos colaterais. Institutos e categorias de direito privado passam a ser iluminados por valores constitucionais, perdendo, com isso, objetividade e clareza, pois podem ser interpretados a partir de princpios ou valores, de tal forma que se torna possvel alterar-lhes sentido e alcance.64 ROBERT ALEXY invoca o exemplo segundo o qual, se a Constituio garante direitos, ento muitas, ou at mesmo todas as decises que restringem o direito de liberdade, devem ser entendidas como interferncias em um direito constitucional, somente sendo admissveis, portanto, se forem justificadas, e somente o sero, se forem proporcionais.65 Essa situao ilustra bem a interferncia ocorrida no plano da infraconstitucionalidade quando direitos assegurados na Constituio so afetados, direta ou

indiretamente. A dvida reside na averiguao de quando essa leitura

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Cfr. BARROSO, Lus Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalizao do Direito. In: A Constitucionalizao do Direito: Fundamentos Tericos e Aplicaes Especficas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 215. As causas do fenmeno da constitucionalizao` esto intimamente relacionadas ao desenvolvimento da dogmtica dos direitos fundamentais no ps-guerra e autuao decisiva do TCF, no sentido de ampliar sua proteo. A constitucionalizao do ordenamento jurdico tem conseqncias imediatas para as relaes jurdicas privadas. O direito das obrigaes, por exemplo, ao sofrer a influncia (Ausstrahlungswirkung) dos critrios e parmetros constitucionais, acaba tendo que ser reinterpretado, justamente luz` da Constituio. Clusulas e institutos privados, como o da autonomia da vontade ou o princpio pacta sunt servanda` acabam sendo muito enfraquecidos, na medida em que o juiz, ao analisar o contrato, tem que avaliar a sua constitucionalidade, sob pena de, em no o fazendo, possivelmente violar direitos fundamentais. (MARTINS, Leonardo. Introduo jurisprudncia do Tribunal Constitucional Federal alemo. In: MARTINS, Leonardo. (org.). Cinqenta Anos de Jurisprudncia do Tribunal Constitucional Federal Alemo. Montevidu: Editora da Fundao Konrad Adenauer, 2005. p. 95-96). If the constitution guarantees constitucional rights, then many or even all legal decisions restricting the freedom of individuals have to be understood as interferences with constitucional rights. Interferences with constitucional rights are admissible, however, only if they are justified, and they are justified only if they are proportional. (ALEXY, Robert. On Balancing, op.cit., p. 436).

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constitucional de determinada previso legal cabvel e quando ela oportunista, criada apenas para distorcer o sentido de uma previso infraconstitucional. Com efeito, o aplicador do Direito possui a tarefa de divisar os casos nos quais a interferncia constitucional se mostra necessria, adequada e proporcional em sentido estrito (deve-se fazer o juzo de proporcionalidade), daqueles casos em que a soluo infraconstitucional no merece qualquer censura (constitucional) e, portanto, torna-se possvel aplic-la sem nenhuma interveno. Essa diferenciao pode ser tratada dentro da distino entre justificao interna e justificao externa, assim como tambm em razo dos conceitos de subsuno e ponderao, como se far a seguir:

2.1.1 Subsuno, ponderao e concretizao de direitos Afirma ROBERT ALEXY que h duas operaes bsicas na aplicao da lei: a subsuno e a ponderao. Enquanto a subsuno foi consideravelmente explicada nas ltimas dcadas, a ponderao ainda gera mais dvidas do que respostas, a principal delas, se se trata realmente de um procedimento racional. 66 Quer parecer, entretanto, que o sentido e alcance do procedimento de subsuno ainda precisa ser discutido e a ponderao no pode ser considerada carente de critrios metodolgicos, a ponto de ser chamada arbitrria. Entende-se por subsuno a insero de uma idia particular sob a hiptese de uma idia geral, procedimento que se vale do silogismo para permitir a derivao lgica de um imperativo concreto a partir de um imperativo abstracto, por exemplo, todo o assassino deve ser punido com priso perptua; M assassino; logo M deve ser punido com priso perptua.67 CESAR SERBENA destaca que do ponto de vista dos fundamentos metodolgicos da interpretao, a subsuno` no parece ser to simples como aparenta. A relao das palavras

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Cfr. ALEXY, Robert. On Balancing, op.cit., p. 433. ENGISCH, Karl. Introduo ao pensamento jurdico. Trad. Joo Baptista Machado, Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1988. p. 82-83.

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com as coisas um problema clssico da filosofia e, na expresso de RUSSEL, to antigo quanto ARISTTELES`.68 A operao de subsuno foi muito desgastada pela doutrina, por meio de questionamentos que tambm atacavam o formalismo no Direito e a logicizao da norma jurdica. A subsuno, para os crticos, no seria capaz de tratar da complexidade do fenmeno jurdico, mormente em um panorama normativo de relacionamento entre regras e princpios. Neste contexto, o reconhecimento de que os casos concretos no seriam necessariamente subsumveis a uma nica previso legal, pr-delineada, embasou o entendimento de que a subsuno no se prestaria para representar a inteleco jurdica. Nas palavras de ALEXY, fcil de ver que a aplicao do direito positivo no se exaure em uma deduo subsuntiva. Isto porque possvel a existncia de outra norma se mostrando aplicvel e requerendo outra soluo para o mesmo caso concreto. Por outro lado, freqentemente metarregras [meta-rules] como lex superior derogat legi inferiori, lex posterior derogat legi priori, ou lex specialis derogat legi generali so necessrias para interpretao/aplicao, oportunidade em que, para se chegar a uma soluo, deve-se fazer uma segunda subsuno sob o crivo destas metarregras, por meio de um procedimento que se poderia chamar metassubsuno [meta-subsumption].69 Conquanto esteja comprometida a proposta de uma subsuno que sempre encontra no direito positivo exatamente, e univocamente, a soluo normativa, em razo da evoluo do pensamento jurdico, certo que a utilizao da subsuno pode ser readequada a fim de que possa coexistir com outros mecanismos hermenuticos. ALEXY caminha nesse sentido e desenvolve uma teoria na qual os conflitos normativos podem ser resolvidos por metassubsuno (segundo nvel), sem prejuzo da permanncia da subsuno para as aplicaes jurdicas (primeiro nvel), importa dizer, muitos casos podem ser solucionados

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SERBENA, Cesar. Lgica e direito: elementos para uma reconstruo formal do raciocnio jurdico. Tese de Doutorado apresentada na Universidade Federal do Paran. Curitiba: 2002. p. 24. Cfr. ALEXY, Robert. On Balancing, op.cit., p. 434.

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pelos simples sentidos da subsuno. Os casos difceis, todavia, so definidos pelo fato de que h razes tanto a favor como contra qualquer resoluo levada em considerao. Muitas dessas colises de razes devem ser resolvidas atravs da ponderao.70 A subsuno e a metassubsuno devem ser utilizadas para a interpretao de casos simples, ou para o deslinde de conflitos menos complexos, enquanto que a ponderao deve ser invocada para o desfecho de casos difceis [hard cases]. Abstraindo estes casos-limite, o teor literal do direito positivo no nem unvoco nem absolutamente vago, muito pelo contrrio, ele indica espaos de ao metodicamente dominveis, dentro dos quais o trabalho jurdico se deve legitimar e com base nos quais ele pode ser controlado e criticado.71 Permanecem as crticas contra a falta de racionalidade no processo de ponderao, ao argumento de que este instrumento serviria ao arbtrio, para a desconsiderao das previses legais do direito positivo.72 Dentro do arcabouo de valores colocados em choque na ponderao, aquele mais pesado significa o mais razovel [Weighing More = Being More Reasonable Than]73, i.e., a ponderao deve se aproximar da teoria da argumentao e da busca por um discurso racional na escolha de um princpio em detrimento de outro. Tratar da ponderao como parte da teoria da argumentao jurdica, e manter as possibilidades aplicativas da subsuno, constitui um caminho revestido de lgica

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The are, of course, many cases that can be solved simply by means of subsumption. Hard cases, however, are definied by the fact that there are reasons both for against any resolution under consideration. Most of these collisions of reasons have to be resolved by means of balancing. (ALEXY, Robert. On Balancing, op.cit., p. 435). Cfr. MLLER, Friedrich. Direito..., op. cit., p. 44. Na opinio de FRIEDRICH MLLER (Die Einheit der Verfassung, 1979, pg. 199), a prtica da ponderao de bens conduziria a juzos de valor subjectivos de uma justia do caso, a qual poderia ser, nos quadros do Estado de Direito, subsequentemente generalizada`. Ponderao` ofereceria um padro lingustico cmodo que, de modo excessivamente ligeiro, trata de passar por cima dos textos normativos em causa e dos dados lingusticos que os concretizam`, bem como da considerao dos domnios normativos em questo. (LARENZ, Karl. Metodologia da cincia do direito. Trad. Jos Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1997. p. 576. PECZENIK, Aleksander. Coherence Theory of Juristic Knowledge. In: On Coherence Theory of Law. Lund: Juristfoerlaget, 1998. p. 11.

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e coerncia, apto a tratar da complexidade jurdica, entre easy cases e hard cases.

2.1.2 Hard cases e easy cases Como aponta RONALD DWORKIN, a expresso hard case refere-se aos casos difceis para os quais no h uma regra clara, estabelecida de antemo por alguma instituio, que sirva de base para orientar a deciso.74 Por outro lado, os easy cases seriam os casos fceis, em que os termos gerais parecem no necessitar de interpretao e em que o reconhecimento dos casos de aplicao parece no ser problemtico ou ser automtico`, ou seja, so apenas os casos familiares que esto constantemente a surgir em contextos similares, em que h acordo geral nas decises quanto aplicabilidade dos termos classificatrios.75 A dicotomia hard case e easy case surgiu por ocasio do debate travado entre HART e DWORKIN acerca da existncia (ou no) de discricionariedade do julgador na soluo de casos difceis. Para DWORKIN, mesmo que no haja um precedente especfico ou uma lei aplicvel, o julgador no deve criar novos direitos por meio de um raciocnio discricionrio, pois baseado na figura do Juiz Hrcules, sempre existiria um caminho para se alcanar uma nica resposta correta para os casos difceis.76 HART, a seu turno, entende que ao Juiz outorgado um poder discricionrio para o julgamento de casos difceis, consoante o qual, ao decidir, a [sua] concluso constitui na verdade uma escolha, ainda que possa no ser arbitrria ou irracional.77 Existe uma tendncia atual na doutrina de se fazer aluso a hard cases para defender a reformulao de toda a teoria jurdica, justamente para tratar dessa nova categoria, para a qual as teorias tradicionais no dariam conta de

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DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a srio. Trad. Nelson Boeira. So Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 127 e ss. HART, Herbert. O conceito de Direito. Trad. A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1986. p. 137. Ibidem, p. 165-166. Ibidem, p. 140.

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compreend-la. Mas nos questionamos a respeito da quantidade de casos difceis, mesmo em se tratando de direitos afetados por previses constitucionais. Haveria a necessidade de uma reviravolta na teoria jurdica, passando ao largo da existncia de casos simples e olvidando do poder do silogismo jurdico? O prprio DWORKIN responde, ao sustentar que a Constituio direito e, como todo o direito, est fundada na histria, na prtica e na integridade. A maioria dos casos jurdicos (incluindo a maioria dos casos constitucionais) no so casos difceis.78 Em realidade, as regras ordinrias de experincia demonstram que no so to freqentes os dilemas morais nas discusses jurdicas e tampouco as controvrsias judiciais deixam de ser resolvidas unicamente por meio da aplicao dos mtodos tradicionais de soluo de antinomias. A pedra-de-toque dessa celeuma talvez se encontre no reconhecimento da existncia de casos problematizveis, de forma contingente, no-necessria. Todo o caso jurdico potencialmente problematizvel, questionvel no bojo da argumentao jurdica, porm o grau de dificuldade no desfecho desta possvel lide reside: (i) na interferncia ou no de direitos constitucionais; (ii) na existncia de dilemas morais79; (iii) na configurao dos fatos invocados para a aplicao da norma jurdica (fatos constitutivos); (iv) na eficincia e competncia dos participantes da argumentao jurdica na articulao dos pontos importantes para causa; (v) na complexidade das antinomias entre normas jurdicas aplicveis. Inexiste uma diferena qualitativa entre hard cases e easy cases, sobretudo porque geralmente no se pode distinguir a priori os casos fceis dos difceis. Uma situao concreta pode parecer prima facie fcil, mas a discusso travada em torno de seu contedo a torna difcil, ao passo que um caso, primo icto

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(...) nuestra constitucin es derecho y, como todo derecho, est anclada en la historia, la prctica y la integridad. La mayora de los casos jurdicos (incluso la mayora de los casos constitucionales) no son casos difciles. (DWORKIN, Ronald. La lectura moral y la premisa mayoritarista. In: KOH, Harold Hongju; SLYE, Ronald C. (coord.). Democracia Deliberativa y Derechos Humanos. Barcelona: Gedisa, 2004. p. 111). Acerca da relao entre direito e moral, v.: ALEXY, Robert; BULYGIN, Eugenio. La pretensin de correccin del derecho. La Polmica sobre la Relacin entre Derecho y Moral. Bogot: Universidad Externado de Colombia. 2001. passim.

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oculi, difcil (p.ex., um dilema moral), pode quedar-se facilitado a partir da formao de consensos interpretativos. possvel dizer que a insero de princpios na argumentao torna o caso mais difcil, na medida em que a soluo jurdica pode ser alterada por conta da fora normativa de seus contedos axiolgicos. Seria lcito, ademais, falar em problematizao do caso a partir dos intrpretes, e no somente da situao concreta em si. Os casos difceis, se fossemos situ-los, haveramos de apont-los preponderantemente no nvel das normas jurdicas, das

interpretaes/concretizaes, e no no direito positivo. Possivelmente por isso DWORKIN no tenha criado a figura do Legislador Hrcules, como aquele que poderia criar previses legais margem de qualquer divergncia, unvocas, amoldadas ao passado e com as intenes deixadas s claras. A dificuldade e o poder mtico capaz de san-la encontram-se nas mos daqueles que interpretam o direito positivo, no dos que o criam legislativamente.80

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Klaus Gnther faz referncia a uma norma perfeita, para definir os requisitos indispensveis um produto legislativo imune a crticas: Una norma estar pues fundamentada si cada individuo puede aprobarla con razones. Para que realmente slo la fuerza de las razones y ningn otro motivo logre validez, se tiene que poder suponer que se cumplen determinadas condiciones idealizadas de la argumentacin. A estas condiciones pertenecen, aparte de las reglas de consistencia semntica y lgica que valen para todos los tipos de fundamentaciones, as como ciertas reglas para ordenar las contribuciones de los interlocutores, la posibilidad de participacin libre e igual de todos los afectados. Slo bajo este presupuesto mencionado anteriormente ha de esperarse un consenso motivado racionalmente de modo no coactivo. Por medio de esta condicin se asegura la reciprocidad universal de la validez de la norma. Forma parte de estas condiciones ideales que los participantes puedan disponer de un saber ilimitado y de un tiempo infinito. Con estos presupuestos los participantes en el discurso deben poder prever las consecuencias y efectos laterales de un seguimiento general de la norma por cada cual en una posible situacin de aplicacin. El saber no estar limitado a algunos tipos de situaciones que podamos dominar en el momento actual, y que podemos utilizar de modo ilustrativo en el discurso para mostrar cules sern las consecuencias y efectos secundarios que probablemente van a surgir en caso de un seguimiento general de la norma. Ms bien debe hacerse presente toda posible situacin de aplicacin con todos sus posibles rasgos, esto es, una descripcin completa. Slo si se puede suponer que esta condicin se cumple, se encuentra cada participante individual en la situacin de juzgar en cada situacin particular los efectos de un seguimiento general de la norma para sus intereses particulares. No habra tampoco, pues, una situacin de aplicacin que fuera diferente de estas situaciones a las que se refiere un participante en un discurso de fundamentacin de una pretensin de validez; ambas magnitudes son coextensivas. Una norma fundamentada de tal manera sera perfect. (GNTHER, Klaus. Un concepto normativo de coherencia para uma teoria de la argumentacin

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2.2 CONCRETIZAO ENTRE REGRAS E PRINCPIOS PAOLO COMANDUCCI, em uma perspectiva conceitual, entende a interpretao dos enunciados jurdicos como um processo, uma atividade para alm de um simples ato singular, construda em diferentes etapas atravs da seguinte seqncia: (i) em uma primeira etapa, a interpretao estaria construda pela identificao do enunciado como entidade de uma linguagem, ou seja, seria uma identificao lingstica do enunciado; (ii) a segunda etapa seria constituda pela identificao do enunciado como uma norma, em virtude de seu carter prescritivo, mediante a sua identificao pragmtica; (iii) a terceira etapa seria configurada pela identificao da norma como princpio ou como regra; (iv) finalmente, a quarta etapa seria constituda pela identificao do sentido, ou como COMANDUCCI prefere, pela atribuio de sentido norma, seja ela princpio ou regra. Esta quarta etapa pode ser subdividida em subetapas, consistentes em eventuais mudanas de significados prvios dos enunciados (pela doutrina ou pelos rgos jurisdicionais), em razo de reinterpretaes sucessivas das figuras normativas luz do sentido atribudo a outras normas do ordenamento, que tambm concorrem para a regulao do caso concreto.81 Este caminho h de ser seguido porque permite o relacionamento entre a hermenutica jurdica e a teoria da argumentao, duas categorias jurdicas que se completam no processo de concretizao. Nada obstante, sem aprofundar a distino entre regras e princpios82, pretende-se investigar o papel da hermenutica e da teoria da argumentao diante da possvel indeterminao provocada pela utilizao de espcies normativas dotadas de grande vagueza e abstrao.

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jurdica. Trad. Juan Carlos Velosco Arroyo. Doxa. Cuadernos de Filosofa del Derecho. n. 1718, p. 278-279). Cfr. COMANDUCCI, Paolo. Principios jurdicos e indeterminacin del derecho Doxa. Cuadernos de Filosofa del Derecho. n. 21-II. 1998. p. 92. Sobre o tema, no direito brasileiro, v., especialmente: BONAVIDES, Paulo. Curso..