O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo...

23
595 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000 DEBATE DEBATE O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação histórica e epistemológica The concept of space in epidemiology: a historical and epistemological interpretation 1 Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, 8 o andar, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil. [email protected] [email protected] Dina Czeresnia 1 Adriana Maria Ribeiro 1 Abstract This study provides an interpretation of the concept of space in epidemiology. The au- thors highlight that the epistemological orientation of the space concept in epidemiology is the theory of disease, emphasizing the importance of the concept of specific etiologic agents and their transmission as the central structure for grasping the relationship between space and the body. Characterization of the space for circulation of etiologic agents was the epistemological base shaping the use of various theoretical developments in geography, allowing for the con- struction of different explanatory watersheds in the concept of space. The article specifically an- alyzes the Latin American watershed, reviewing the main authors orienting these studies, like Pavlovsky, Max Sorre, and Samuel Pessoa. The authors highlight Milton Santos’ thinking as a fundamental reference in recent research on the social organization of space and disease emer- gence or prevalence. The authors also approach contemporary changes in the understanding of space as they are reflected in epidemiological studies. Key words Medical Geography; Geographical Space; Spatial Analysis; Epidemiology Resumo Este trabalho apresenta uma interpretação a respeito da utilização do conceito de es- paço em epidemiologia. Destaca que o que orienta epistemologicamente a concepção do espaço em epidemiologia é a teoria da doença, assinalando a importância do conceito de transmissão de agentes específicos como estrutura nuclear da apreensão da relação entre espaço e corpo. A caracterização do espaço de circulação de agentes etiológicos das doenças foi a base epistemoló- gica que configurou a utilização de sucessivos desenvolvimentos teóricos da geografia, possibili- tando a construção das diferentes vertentes explicativas do conceito de espaço. O artigo analisa especificamente a produção da vertente latino-americana, revisando os principais autores que orientam esses estudos, como Pavlovsky, Max Sorre e Samuel Pessoa. Ressalta o pensamento de Milton Santos como referência fundamental das pesquisas mais recentes acerca da organização social do espaço e emergência ou prevalência de doenças. Aborda, ainda, transformações con- temporâneas na apreensão do espaço e seus reflexos nos estudos epidemiológicos. Palavras-chave Geografia Médica; Espaço Geográfico; Análise Espacial; Epidemiologia

Transcript of O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo...

Page 1: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

595

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

DEBATE DEBATE

O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação histórica e epistemológica

The concept of space in epidemiology: a historical and epistemological interpretation

1 Departamento de Epidemiologia e MétodosQuantitativos em Saúde,Escola Nacional de SaúdePública, Fundação Oswaldo Cruz.Rua Leopoldo Bulhões 1480,8o andar, Rio de Janeiro, RJ21041-210, [email protected]@mailbr.com.br

Dina Czeresnia 1

Adriana Maria Ribeiro 1

Abstract This study provides an interpretation of the concept of space in epidemiology. The au-thors highlight that the epistemological orientation of the space concept in epidemiology is thetheory of disease, emphasizing the importance of the concept of specific etiologic agents andtheir transmission as the central structure for grasping the relationship between space and thebody. Characterization of the space for circulation of etiologic agents was the epistemologicalbase shaping the use of various theoretical developments in geography, allowing for the con-struction of different explanatory watersheds in the concept of space. The article specifically an-alyzes the Latin American watershed, reviewing the main authors orienting these studies, likePavlovsky, Max Sorre, and Samuel Pessoa. The authors highlight Milton Santos’ thinking as afundamental reference in recent research on the social organization of space and disease emer-gence or prevalence. The authors also approach contemporary changes in the understanding ofspace as they are reflected in epidemiological studies.Key words Medical Geography; Geographical Space; Spatial Analysis; Epidemiology

Resumo Este trabalho apresenta uma interpretação a respeito da utilização do conceito de es-paço em epidemiologia. Destaca que o que orienta epistemologicamente a concepção do espaçoem epidemiologia é a teoria da doença, assinalando a importância do conceito de transmissãode agentes específicos como estrutura nuclear da apreensão da relação entre espaço e corpo. Acaracterização do espaço de circulação de agentes etiológicos das doenças foi a base epistemoló-gica que configurou a utilização de sucessivos desenvolvimentos teóricos da geografia, possibili-tando a construção das diferentes vertentes explicativas do conceito de espaço. O artigo analisaespecificamente a produção da vertente latino-americana, revisando os principais autores queorientam esses estudos, como Pavlovsky, Max Sorre e Samuel Pessoa. Ressalta o pensamento deMilton Santos como referência fundamental das pesquisas mais recentes acerca da organizaçãosocial do espaço e emergência ou prevalência de doenças. Aborda, ainda, transformações con-temporâneas na apreensão do espaço e seus reflexos nos estudos epidemiológicos.Palavras-chave Geografia Médica; Espaço Geográfico; Análise Espacial; Epidemiologia

Page 2: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

Introdução

Este trabalho apresenta uma interpretação arespeito da utilização do conceito de espaçoem epidemiologia. Revisa especificamente aprodução da vertente que enfatiza o estudo dasrelações entre espaço e doença na América La-tina, analisando as principais referências queorientam esses estudos.

Espaço é um conceito básico em epidemio-logia. Os estudos epidemiológicos tradicionaisabordam a categoria “lugar”, que, diferenciadodas características “tempo” e “pessoas”, consti-tui um dos seus principais elementos de análi-se. Reconhecem que o estudo da distribuiçãogeográfica da enfermidade é importante paraa “formulação de hipóteses etiológicas, alémde ser útil para propósitos administrativos”(MacMahon & Pugh, 1978). O espaço é com-preendido, separado do tempo e das pessoas,como o lugar geográfico que predispõe a ocor-rência de doenças. No contexto da clássica tría-de ecológica de Leavell & Clarck (1976), o meioé percebido como um recipiente que facilita ounão o contato entre pessoas, ou hospedeiros, eagentes etiológicos.

Contudo, o espaço não é, a priori, cindidodo tempo e das pessoas. O lugar pode ser com-preendido como topos em que se dá um acon-tecimento. Nessa perspectiva, o espaço consti-tui-se e distingue-se dos corpos no momentoda vivência concreta dos fenômenos, atravésde uma interface que se configura no decorrerda própria experiência.

O vínculo entre corpo e espaço não se apre-senta claramente, pois o processo de emergên-cia das ciências foi também o de fragmentaçãodo modo de pensar o homem e as suas rela-ções. No contexto da elaboração dos conceitoscientíficos, o espaço foi concebido, segundo osmais diferentes pontos de vista, como algo an-terior, que existe independente da constituiçãodos seres que o habitam. A compreensão docorpo separado e situado em um espaço e tem-po concebidos como previamente existentes,construiu representações que cindiram o eloentre corpo e suas circunstâncias.

A epidemiologia define-se como estudo dadistribuição e dos determinantes das doençasem populações humanas. Considerando-seque a doença ocorre em uma interface em quecorpo e espaço constituem-se e distinguem-seno decorrer da própria experiência, pode-se di-zer que o pensamento científico cindiu o elo dainterface em que ocorre a doença. A doença épensada tendo como referência não o corpo eo espaço concretos, mas as distintas represen-tações de corpo e espaço que, através de lin-

CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.596

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

guagens estranhas, entre si fragmentaram ohomem e as suas relações.

O ponto de vista central deste trabalho é queo núcleo epistemológico que orienta a apreen-são do espaço em epidemiologia é a teoria dadoença. Os elementos do espaço que são in-corporados na explicação epidemiológica inte-gram-se aos que explicam como a doença ocor-re no corpo.

A epidemiologia estruturou-se como disci-plina científica mediante o conceito de trans-missão de agentes específicos de doenças, de-finindo a explicação da propagação das epide-mias através de uma determinada compreen-são da relação entre corpo e meio. O termotransmissão refere-se à concepção de corpoenquanto organismo, conceito biológico defi-nido no século XIX como unidade morfológicacomposta de partes que realizam, de formacoordenada, diferentes funções.

A compreensão do ser vivo como articula-ção entre estrutura, função e meio estruturou,na época, uma nova representação dos seresvivos no espaço (Jacob, 1983). O espaço internoao corpo correspondeu a estruturas anatômi-cas e funções fisiológicas, e o espaço externo aocorpo, aos elementos que constituem o própriocorpo (Foucault, 1995). O meio foi concebidocomo os fluidos, o ar ou a água em que o orga-nismo está imerso, constituído de condiçõesde calor, luz, umidade, pressão, presença decompostos químicos, teor de oxigênio e gás car-bônico (Jacob, 1983). Nesse contexto, os movi-mentos e as articulações do corpo com seu meioreduziram-se a fenômenos físico-químicos.

Em epidemiologia, o espaço foi inicialmen-te compreendido como resultado de uma inte-ração entre organismo e natureza bruta, com-preendida independente da ação e percepçãohumanas. Da mesma forma, na geografia clás-sica, o espaço foi entendido como substrato defenômenos naturais, como o clima, a hidrogra-fia, a topografia, a vegetação, etc. Porém, naorigem do desenvolvimento do objeto da epi-demiologia, assim como na da geografia, já semanifesta a tensão que interrogou a lógica des-se conhecimento que opôs natureza e cultura,natural e artificial, corpo e mente, subjetivo eobjetivo, entre outras dualidades clássicas quecaracterizaram a emergência das ciências. Ainadequação dessas dualidades à apreensãodos fenômenos que se propunham estudar ésinalizada no discurso dessas disciplinas, reve-lando polêmicas que acompanharam a históriadesde o seu nascimento.

Durante o desenvolvimento da higiene pú-blica, que floresceu em um período imediata-mente anterior ao surgimento das ciências bio-

Page 3: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 597

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

lógicas e humanas, predominava uma apreen-são dinâmica e integrada dos fenômenos epi-dêmicos. Ainda não havia amadurecido o pro-cesso que aprofundou a fragmentação e dico-tomias do conhecimento. A herança da Higie-ne Pública marcou a origem tanto da epidemio-logia como da geografia (Urteaga,1980). Vincu-lada à essa herança, velhas teorias, como a daconstituição epidêmica, inspirada no pensa-mento hipocrático, permaneceram represen-tando uma forma de pensar que portava valo-res a serem preservados. Mesmo valendo-se deuma linguagem anacrônica em relação ao dis-curso científico que se estrutura a partir do sécu-lo XIX, essa teoria foi significativamente resgata-da na construção de novos discursos sobre a rea-lidade da saúde e da doença (Czeresnia, 1997).

O estranhamento e a dificuldade em reco-nhecer seu objeto a partir das distinções dico-tômicas, que cindiram ciências naturais e ciên-cias sociais, repercutiram de maneira especialna geografia e também na epidemiologia. Astransformações contemporâneas no discursocientífico, ao questionar essas dicotomias, re-tomam contradições que se apresentaram des-de a origem e o desenvolvimento dessas disci-plinas (Santos, 1987), estreitamente vinculadasao contexto dos estudos sobre as relações entreespaço e doença.

Em epidemiologia, o uso do conceito de es-paço acompanhou o desenvolvimento teóricoda geografia, especialmente da vertente cha-mada geografia médica. Pensando a especifici-dade desses estudos, destaca-se, mais uma vez,a importância da teoria de transmissão de ger-mes como estrutura nuclear da apreensão darelação entre espaço e corpo, constituindo-setambém em limite epistemológico à intençãode compreender o espaço como uma totalida-de integrada. As tentativas de redefinir o con-ceito de espaço em epidemiologia, acompa-nhando o desenvolvimento teórico-conceitualda geografia, buscaram incluir na compreen-são do processo da doença, dimensões sociais,culturais e simbólicas. Porém, todas essas re-definições esbarraram no limite imposto pelateoria da doença. Pensar o homem como umaintegração biopsicossocial manifesta-se atravésda tentativa de superpor conceitos que não dia-logam com facilidade. Mesmo tentando pensaro espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos estruturados a par-tir de lógicas distintas e fragmentadas entre si.

Considerando esses limites, ressalta-se queo conceito de transmissão, mesmo assim, al-cança expressar melhor a articulação entre cor-po e meio do que o conceito de risco, desenvol-vido posteriormente. No contexto do estudo das

doenças transmissíveis, por exemplo, foi possí-vel construir modelos matemáticos que repre-sentam relações entre o indivíduo e o que é ex-terno a ele – agentes microbiológicos e o meio.Conceitos como suscetibilidade, resistência dohospedeiro, assim como o de virulência do ger-me e sua infecciosidade integram-se numeri-camente no modelo, construindo uma repre-sentação matemática que expressa o resultadode relações entre corpo e espaço. O conceito deimunidade de grupo expressa o resultado detais relações.

O conceito epidemiológico de risco tornouessa relação ainda mais abstrata. O cálculo dorisco traduz uma relação probabilista entreeventos. Não se integram no modelo do riscovariáveis que representam conceitos capazesde expressar um processo que ocorre entre cor-po e meio. Se o conceito de transmissão repre-senta a interface do corpo como interação en-tre orgânico e extra-orgânico, o de risco pres-cinde dessa relação (Ayres, 1997), aprofundan-do o nível de fragmentação e rarefação do ob-jeto da epidemiologia. A concepção expressapelo conceito de risco é a de um corpo virtual.O homem é representado como receptor vigi-lante de causas que podem lhe trazer danos ouproteção. O espaço torna-se percebido comocomplexo de estímulos irradiados e exterioresao corpo, que se impõe centralmente a todos(Teixeira, 1993). O contato entre os homens e anatureza tendeu a ser progressivamente repre-sentado como vínculo indireto, mediado porimagens cada vez mais abstratas, tanto do cor-po, como do espaço, deixando de ser simboli-zado como vínculo direto e concreto.

É em decorrência desse processo em que oespaço, ao ser abstraído como multiplicidadede causas, perde tanto materialidade quantosubjetividade, que a apropriação dessa catego-ria em epidemiologia desenvolveu-se preferen-cialmente no contexto do estudo das doençastransmissíveis. Mais especificamente, foi atra-vés do estudo das doenças transmitidas por ve-tores que a abordagem espacial pôde ser maisobjetiva, explicitando elos capazes de integrarmaior número de elementos e alcançando, as-sim, maior materialidade na compreensão darelação entre espaço e ocorrência de doenças.

A idéia de circulação de agentes específicosno espaço é fundamental a esse desenvolvi-mento conceitual. É buscando caracterizar deforma mais elaborada o espaço de circulaçãode agentes que, utilizando os sucessivos desen-volvimentos teóricos da geografia, construí-ram-se as diferentes vertentes explicativas des-se conceito em epidemiologia, como veremosa seguir.

Page 4: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.598

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

Pavlovsky e o conceito de foco naturaldas doenças

Uma das mais importantes elaborações teóri-cas do conceito de espaço geográfico vincula-do ao estudo de doenças transmissíveis foi fei-ta por Pavlovsky na década de 30. O conceitode foco natural expressa uma apreensão espa-cial que integra o conhecimento das doençastransmissíveis com a geografia e a ecologia.

“Um foco natural de doença existe quandohá um clima, vegetação, solo específicos e mi-cro-clima favorável nos lugares onde vivem ve-tores, doadores e recipientes de infecção. Em ou-tras palavras, um foco natural de doenças é re-lacionado a uma paisagem geográfica específi-ca, tais como a taiga com uma certa composi-ção botânica, um quente deserto de areia, umaestepe, etc., isto é, uma biogeocoenosis.

O homem torna-se vítima de uma doençaanimal com foco natural somente quando per-manece no território destes focos naturais emuma estação do ano definida e é atacado comouma presa por vetores que lhe sugam o sangue”(Pavlovsky, s/d:19).

O conceito de foco natural é, portanto, apli-cado a ambientes que apresentam condiçõesfavoráveis à circulação de agentes, indepen-dentemente da presença e da ação humanas.Pode ocorrer em paisagens geográficas varia-das, desde que haja uma interação entre bióti-pos específicos. A definição de foco natural cir-cunscreve-se a doenças transmitidas atravésde vetores, não se referindo ao estudo de doen-ças que, mesmo apresentando um agente etio-lógico definido, propagam-se através do conta-to direto ou mesmo pela inalação de ar conta-minado, como difteria, sarampo, escarlatina edoenças respiratórias.

“A existência de qualquer doença transmis-sível depende do trânsito contínuo de seu agen-te causal, do corpo do animal doador (animaldoente, portador assintomático, hospedeiro doparasita) para o corpo do vetor. Essa transmis-são geralmente ocorre quando o vetor suga osangue do doador e subseqüentemente transmi-te o agente causal para o receptor animal, fre-qüentemente, quando suga seu sangue também;o receptor infectado pode por sua vez, tornar-seum doador para outro grupo de vetores, etc.Desta maneira, ocorre, como dizemos, a circula-ção” (grifo meu) (Pavlovsky, s/d:18).

O conceito de foco antropúrgico, tambémdesenvolvido por Pavlovsky, introduziu a idéiada transformação do espaço de circulação deagentes de doença pela ação humana. Porém,dá conta apenas da transformação inicial dosfocos naturais não apresentando elementos

suficientes para o estudo das doenças trans-missíveis em situações onde a dinâmica demodificação do espaço pelo homem ocorreude forma mais ampliada e acelerada.

Posteriormente, realizaram-se estudos que,partindo da teoria dos focos naturais de Pa-vlovsky, dedicaram mais atenção à influência(milenar) humana na transformação das paisa-gens geográficas onde se desenvolvem doençasassociadas a focos naturais. Rosicky (1967:114)ressaltou como, desde a origem da sociedadehumana baseada na agricultura e domesticaçãode animais, um foco natural manifesta-se sob ainfluência indireta de atividades humanas. Du-rante a construção de trabalhos técnicos de ca-ráter industrial e agrícola, as condições de exis-tência de certos vetores e reservatórios animaispodem ser erradicadas ou acentuadas.

Sinnecker (1971) propôs o conceito de ter-ritório nosogênico, articulando aspectos eco-lógicos e sociais. As condições naturais de umaregião integram esses aspectos, condicionandoa saúde dos homens e dos animais. As doençastêm diferentes distribuições nos distintos terri-tórios, e a atividade das populações transformaas condições de desenvolvimento das doenças.As transformações podem remover as pré-con-dições para uma doença e, ao mesmo tempo,criar condições para o surgimento de outras. Oautor ressalta ainda que a grande concentraçãodas pessoas nas cidades gera novas condiçõesecológicas e sociais, propiciando a emergênciade doenças vinculadas aos processos de urba-nização.

Max Sorre e o conceito de complexopatogênico

Max Sorre foi além da abordagem de Pavlovskyao trabalhar a importância da ação humana naformação e dinâmica de complexos patogêni-cos. O conceito de complexo patogênico am-pliou o poder analítico e explicativo de umaconcepção antes praticamente restrita à des-crição do meio físico (Ferreira, 1991). Ao assu-mir a ecologia como eixo central, o conceito deespaço que Sorre utiliza é, por um lado, o mes-mo que se formula através da biologia: as rela-ções entre um meio externo que varia e ummeio interno que necessita adaptar-se paramanter suas constantes fisiológicas. Por outrolado, o autor explicita que, ao se tratar de sereshumanos, o conceito de meio deve enriquecer-se e incluir também o ambiente produzido pe-lo homem. Refere-se, assim, ao conceito de gê-nero de vida que considera o conjunto da orga-nização social humana em seus aspectos ma-

Page 5: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 599

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

teriais e espirituais. É compreendido comocombinação de técnicas, cujo uso e desenvol-vimento adaptam-se às diferentes condiçõesgeográficas onde se inserem grupos humanos.Transforma-se com as necessidades e ativida-des dos grupos, assegurando sua sobrevivência(Sorre, 1984).

A constituição do gênero de vida de gruposhumanos, além de influenciar a formação psi-cológica dos indivíduos, pode modelar a pró-pria aparência física destes. O gênero de vidatambém se expressa através de variantes decomportamento nas situações cotidianas, co-mo alimentação e grau de atividade física. Es-sas vivências, como aponta Sorre, são peculia-res a cada grupo, e as ações e costumes prati-cados na esfera individual, na verdade, consti-tuem a formação étnica e cultural de um povo.

A riqueza do conceito gênero de vida, con-tudo, não se expressa totalmente no conceitode complexo patogênico, que também buscaintegrar as dimensões física, química, biológi-ca, econômica, social e cultural. O conceito decomplexo patogênico tem como objetivo expli-citar uma compreensão sintética (Gadelha,1995). Como a idéia de constituição epidêmi-ca, esse conceito trabalha com uma perspecti-va dinâmica, referindo-se ao conjunto de cir-cunstâncias que predispõem um lugar, em de-terminado período, ao surgimento de doenças.Porém, apesar dessa intenção sintética, Sorreestuda os complexos patogênicos, classifican-do-os de acordo com agentes microbiológicosque definem doenças específicas, e coloca seutrabalho sob uma perspectiva analítica:

“... A interdependência dos organismos pos-tos em jogo na produção de uma mesma doençainfecciosa permite inferir uma unidade biológi-ca de ordem superior: o complexo patogênico.Compreende, além do homem e do agente cau-sal da doença, seus vetores e todos os seres quecondicionam ou comprometem a sua existên-cia...” (Sorre, 1951, apud Ferreira, 1991:306).

A estrutura nuclear do conhecimento dadoença mediante a idéia de causa, que se impôsatravés da teoria dos germes, como foi afirmadoanteriormente, tornou-se um limite epistemo-lógico à intenção sintética de todos os autoresposteriores à elaboração da teoria dos germes.

Samuel Pessoa e a geografia médica no Brasil

Sorre e Pavlovsky forneceram uma importantebase conceitual em geografia médica, que fun-damentou o desenvolvimento dos trabalhosposteriores que buscaram uma perspectiva in-

terdisciplinar. A linha de investigação construí-da por Samuel Pessoa inspirou-se nessas duascontribuições, especialmente nos trabalhos dePavlovsky. Ele criou uma escola de estudos emgeografia médica no Brasil, no contexto dachamada medicina tropical. Estudou as ende-mias prevalentes no Brasil, também, e espe-cialmente, as transmitidas através de vetores,como esquistossomose, doença de Chagas, fi-lariose, malária, etc.

“O meio geográfico cria, indiscutivelmente,condições constantes e necessárias para a inci-dência e propagação de inúmeras moléstias rei-nantes nos trópicos e, principalmente, em rela-ção às doenças metaxênicas, isto é, àquelas queexigem para sua transmissão vetores biológicos,como por exemplo, a malária, a febre amare-la, as filarioses transmitidas por mosquitos, aesquistossomoses por moluscos. O desenvolvi-mento dos vetores bem como a multiplicação doagente patogênico nestes hospedeiros estão es-tritamente ligados ao meio geográfico e espe-cialmente às condições climáticas” (Pessoa,1978:151).

Pessoa (1978) afirmou a necessidade de re-cuperar “a velha tradição hipocrática”. A ênfa-se na bacteriologia relegou a um segundo pla-no o estudo acerca da influência do ambientesobre a ocorrência das doenças. Ressalta que oambiente refere-se ao conjunto de causas queatuam sobre o homem e não apenas ao meio fí-sico. Mesmo assim, é evidente, também no dis-curso formulado por este autor, que o elemen-to que se mantém como eixo da apreensão darelação entre homem e meio na explicação dadoença é a sua causa microbiológica específica.

“Os fatores que intervêm na incidência epropagação das doenças infecciosas e parasitá-rias em uma região, são numerosos e complexos.Atribuí-los somente às condições geográficas eclimáticas é tão errôneo como incriminar so-mente a presença do germe. É claro que, porexemplo, sem o bacilo ‘virgula’ da cólera não po-de existir esta grave enfermidade, porém nin-guém nega a existência de uma geografia da có-lera. Não se deve limitar, todavia, o termo ‘geo-grafia’ de uma doença, no sentido estrito que seentende por esta ciência. Se se pode, em um ma-pa, delimitar as áreas de endemicidade ou epi-demicidade da cólera, da peste, da malária, dasleishmanioses, etc., é que pelo termo geografiadeve-se considerar não só a geografia física, oclima e os demais fenômenos meteorológicos,que caracterizam geograficamente a região, masainda as geografias humana, social, política eeconômica. E os fatores que mais intervêm navariação e propagação das doenças, são justa-mente os humanos” (Pessoa, 1978:153).

Page 6: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.600

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

Milton Santos e os estudos epidemiológicos sobre organização do espaço e doença

Os conceitos geográficos propostos por MiltonSantos constituem uma das referências maisimportantes para as análises da relação entreespaço e doença, especialmente as produzidasno Brasil. Esse autor conceitua espaço como“um conjunto indissociável de sistemas de obje-tos e sistemas de ações” (Santos, 1996:18); “umconjunto de fixos e fluxos que interagem” (San-tos, 1996:50). O espaço é aquilo que resulta darelação entre a materialidade das coisas e a vi-da que as animam e transformam. A configura-ção territorial é uma produção histórica resul-tante dessas relações. As ações provêm das ne-cessidades humanas: materiais, espirituais,econômicas, sociais, culturais, morais, afetivas.Sistemas de objetos e de ações interligam-se.Não há como separar natural e artificial: “o es-paço é hoje um sistema de objetos cada vez maisartificiais, povoado de sistemas de ações igual-mente imbuídos de artificialidade (...) De umlado, os sistemas de objetos condicionam a for-ma como se dão as ações e, de outro lado, o sis-tema de ações leva à criação de objetos novos ouse realiza sobre objetos preexistentes. É assimque o espaço encontra sua dinâmica e se trans-forma” (Santos, 1996:51-52).

A técnica é um elemento fundamental paracompreender o processo de organização espa-cial. É a técnica que intermedeia a interaçãohomem–natureza. Através dela, cria-se uma na-tureza humanizada. Não se adiciona técnica aum pretenso meio natural. A técnica produz umespaço que é “um misto, um híbrido, um com-posto de formas conteúdo” (Santos, 1996:35).

Milton Santos caracteriza o espaço do mun-do contemporâneo (após a segunda guerramundial) como meio técnico-científico-infor-macional, quando as idéias de tecnologia, deciência e de mercado globais são encaradas co-mo um conjunto. A partir desse período, os ob-jetos técnicos são ao mesmo tempo informa-cionais. A base e o substrato da produção, utili-zação e funcionamento do espaço são a ciên-cia, a técnica e a informação. É por essa lógicaque os espaços são requalificados e incorpora-dos às novas correntes mundiais. “O meio téc-nico-científico-informacional é a cara geográfi-ca da globalização” (Santos, 1996:191).

O conceito de rede torna-se indissociávelao de espaço. Definidas como conjunto de cen-tros funcionalmente articulados, as redes inte-gram os espaços configurando-se basicamenteem dois aspectos: o material e o social. As re-des atravessam contextos materiais e sócio-

culturais diversificados e podem ser compreen-didas como constituindo espaços de circulaçãoe difusão de agentes de doenças.

Foi também nos estudos a respeito das do-enças endêmicas e epidêmicas que a elabora-ção teórica de Milton Santos a respeito do es-paço foi mais utilizada. Buscou-se estudar asua distribuição como resultado da organiza-ção social do espaço. As sociedades humanasproduziram uma segunda natureza por meiodas transformações ambientais oriundas doprocesso de trabalho. O conceito de meio am-biente, do ponto de vista ecológico, envolve oespaço de reprodução das espécies e a fonte derecursos para essa reprodução. Considerando-se grupos humanos, o conceito é substituídopelo espaço socialmente organizado, ou seja,“o espaço onde se realizam processos econômi-cos e sociais” (Sabroza & Leal, 1992:53).

Utilizando essa abordagem, o trabalho deLuiz Jacintho da Silva Organização do Espaço eDoença (Silva, 1985a) conseguiu encontrar umelo explicativo entre a dimensão biológica e asocial, na história da doença de chagas em SãoPaulo. O autor analisa como as transformaçõesdas atividades produtivas ligadas à economiacafeeira condicionaram mudanças físicas ebiológicas que configuraram as condições ma-teriais de distribuição da endemia. A estruturaepidemiológica da doença se modificou com atransformação do espaço. Com base na teoriade foco natural e antropúrgico de Pavlovsky, eleestudou os elementos da paisagem geográficapropícios ao surgimento, circulação e trans-missão do vetor, como clima, vegetação e solo.Por meio do conceito de espaço socialmenteorganizado, conseguiu integrar esses elemen-tos em uma compreensão mais complexa: o es-paço foi organizado no contexto da história daocupação econômica, e esta forma de organi-zação criou um sistema de relações que trans-formaram as condições físicas do meio. As con-dições necessárias para o crescimento e declínioda endemia de chagas surgiram historicamen-te através da superposição de paisagens geo-gráficas, que se construíram no processo de de-senvolvimento econômico da região estudada.

Barreto (1982) também ressaltou, em estu-do sobre a prevalência de esquistossomosemansônica em municípios do estado da Bahia,as características da organização social do es-paço rural na configuração da endemia. A es-quistossomose foi introduzida no Brasil com amigração africana de indivíduos infectados du-rante o período da escravidão. A intensidadedo processo endêmico e o desenvolvimento denovos focos, contudo, não puderam ser expli-cados apenas pela existência de condições eco-

Page 7: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 601

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

lógicas favoráveis. O autor analisou como a or-ganização das relações de produção e os deslo-camentos humanos mediados por estas rela-ções foram fundamentais para a retenção e pa-ra a disseminação espacial da endemia.

A disseminação das endemias não se res-tringiu aos ambientes rurais. A urbanizaçãodas fronteiras agrícolas e a migração e mobili-dade social cidade–campo possibilitaram quese criassem focos em área urbana. Um exem-plo disso foi a adaptação da esquistossomoseaos espaços da periferia da cidade de São Pau-lo (Silva, 1985b). Os migrantes representam umgrupo particularmente vulnerável, por sua pre-cária inserção social na cidade e pela ausênciade imunidade em relação a doenças existentesnos centros urbanos (Carvalheiro, 1986). A di-versidade das formas de inserção social refletea desigual distribuição territorial e, também,diferentes perfis epidemiológicos, nos quais apopulação de baixa renda é a que mais sofre oimpacto das epidemias e endemias.

A vertente da epidemiologia social, com ba-se em abordagem marxista, realizou estudosque alcançaram identificar origens e condicio-nantes sociais e econômicos dos processos epi-dêmicos. Considerou epidemia como um acon-tecimento social, e não apenas a soma de casosde uma mesma doença. Os autores enfatiza-ram a problemática do subdesenvolvimento e,principalmente, das desigualdades sociais co-mo seus principais condicionantes. A erradica-ção e o controle das epidemias não dependemapenas de diagnóstico e intervenção biológica,mas de todos os elementos que participam daorganização social do espaço.

A maior parte desses estudos associou aemergência de doenças ao espaço urbano. A ci-dade é a protagonista da configuração espacial:o crescimento, a superlotação, a precária redede infra-estrutura (em especial nas periferias),a intensa movimentação de pessoas, favore-cem a circulação de parasitas. Não só antigasdoenças coabitam com novas, como doençasanteriormente erradicadas ressurgem. As epi-demias de meningite, cólera, dengue, leptospi-rose são algumas das apontadas pelos autores.

Breilh et al. (1983), em estudo sobre a mor-talidade infantil em cidades latino-americanas,afirmaram que as principais causa mortis sãoas doenças infecto-contagiosas e a desnutri-ção, conseqüências do subdesenvolvimento la-tino-americano. Mesmo nos países de maiorcrescimento e modernização econômica, per-sistem graves desigualdades sociais, e parte dapopulação encontra-se em péssimas condiçõesde vida. Os autores criticam os estudos que seapóiam apenas em causas biológicas, negli-

genciando aspectos econômicos e sociais dasdoenças e mortes infantis.

Ao estudar a epidemia de doença meningo-cócica na cidade de São Paulo na década de 70,Barata (1988) apontou para o momento histó-rico em que o país vivia: o milagre econômico.Apesar do crescimento econômico, construí-ram-se condições sociais favoráveis ao apare-cimento e disseminação da epidemia, como apolítica salarial restritiva, sustentada com basena repressão política e os movimentos migra-tórios, que impuseram o crescimento acelera-do da periferia dos grandes centros urbanos.Dentro deste contexto, surgiram os elementosque interferiram no processo epidêmico: o des-gaste do trabalhador, e, indiretamente, de seusfamiliares, decorrentes dos baixos salários e daincorporação feminina na força de trabalho. Osdados analisados pela autora demonstraramclaramente que, apesar da epidemia atingirfortemente todas as áreas da cidade, as áreasmais pobres apresentaram riscos mais altoscomparados às áreas central e intermediária dacidade.

Nesse mesmo estudo, Barata (1988), combase em Foucault, introduz uma abordagem, arespeito da relação entre espaço e a epidemiameningocócica, não decorrente da explicaçãoestritamente epidemiológica. Ressalta como asrelações de poder, dominação e exclusão no es-paço hospitalar interferem na saúde e recupe-ração dos indivíduos. As relações de poder, queproduzem a exclusão da participação nas deci-sões, não ocorrem apenas no âmbito político esocial mais geral, mas também nas relações co-tidianas que se estabelecem, por exemplo, nohospital. Essas relações constituem-se espaçosnormativos e repressivos que acentuam os as-pectos de insegurança e carência afetiva carac-terísticos da situação de estar doente. Os fato-res ambientais que interferem no processo doadoecer individual e coletivo são físicos, so-ciais, como também mentais e afetivos.

Transformações recentes na abordagem do espaço e da relação entre espaço e doença

A complexidade das transformações, principal-mente nos centros urbanos, impôs novas for-mas de elaboração teórica acerca do espaço. Avelocidade da transformação das redes que in-tegram os espaços é uma das característicasmais marcantes da chamada condição pós-moderna. Essas mudanças interferem nas rela-ções sociais, nos valores, nos modos de agir, vi-ver e pensar. O seu ritmo cada vez mais acele-

Page 8: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.602

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

rado produziu uma crise na experiência do es-paço e do tempo, desafiando a nossa própriacapacidade perceptual de acompanhar. Osnossos hábitos de percepção espacial não seestruturaram para lidar com essa velocidade.Tornou-se ainda mais evidente que as idéias dosenso comum, aparentemente naturais, a res-peito do que é o espaço escondem ambigüida-des e conflitos. A experiência subjetiva conduza caminhos muito diferenciados de percepçãoe imaginação. Distintas culturas e grupos so-ciais possuem diferentes concepções acerca doespaço (Harvey, 1996).

A fragmentação e a individualização sãoum dos lados da característica paradoxal deum processo que manifesta simultaneamentea tendência à homogeneização e à multiplica-ção da expressão de heterogeneidades. A glo-balização, com a formação do mercado mun-dial, reduziu as barreiras espaciais. Facilitou-se o acesso aos mais diversificados produtosoriundos de diferentes regiões e aumentou-seo contato direto entre os povos. A lógica do li-vre mercado, porém, acentuou os espaços dedesigualdade e exclusão. Um exemplo é a cons-trução de espaços fechados e protegidos, comocondomínios e shopping-centers, para classesmédias e, ao mesmo tempo, a expulsão dos po-bres para “uma nova e bem tenebrosa paisagempós-moderna de falta de habitação” (Harvey,1996:79).

A distância entre ricos e pobres aumentoude forma desenfreada. Os pobres cada vez maisse convertem nos proscritos de uma sociedadeorganizada em torno de um mercado consumi-dor cada vez mais sofisticado. A exclusão socialde grupos populacionais crescentes, explosãodemográfica, mudança da estrutura etária daspopulações, intensificação das migrações, guer-ras tornaram mais complexos os aspectos hu-manos das condições globais (Bauman, 1998).Os sérios problemas epidêmicos urbanos ultra-passaram a esfera das doenças transmissíveis,neoplásicas e cardiovasculares. Manifestaram-se também como epidemia, violência, aciden-tes de trânsito, uso de drogas, doenças psicos-somáticas e comportamentos reativos.

Ao mesmo tempo, reapareceram as amea-ças de grandes desastres naturais: poluição doar e da água, progressivo aquecimento global,buracos na camada de ozônio, chuva ácida, sa-linização e ressecamento do solo. As conse-qüências epidemiológicas desse intenso pro-cesso de transformações são radicais e impre-visíveis. A emergência de novas doenças, quepodem manifestar-se, também, como epide-mias fatais e devastadoras, não é uma possibi-lidade apenas ficcional.

Nesse contexto, novos temas apareceram eoutros se renovaram: orientação sexual e doen-ças sexualmente transmissíveis; gênero e doen-ça; violência; tráfico e adição de drogas; circui-tos espaciais urbanos de grupos específicos,como crianças e velhos; espaços desiguais edoença. O reconhecimento de uma multiplici-dade de formas de alteridade, como gênero, se-xualidade, raça, classe e outras configuraçõesde subjetividade e sensibilidade encontraramexpressão no desenvolvimento recente dos es-tudos epidemiológicos.

Retomou-se, além disso, o interesse a res-peito do estudo do clima como importantecausa de doença. Os surtos de doenças, como afebre hemorrágica causada pelo vírus Ebola,motivaram, mais uma vez, o interesse pelo es-tudo dos espaços pouco alterados pela açãohumana. A poluição ambiental, a quantidadede radiação ultravioleta ou intensidade decampo eletromagnético vêm sendo abordados,principalmente, no estudo das neoplasias (Sil-va, 1997).

É importante destacar que a teoria e práti-ca científica também constroem representa-ções simbólicas sobre o espaço e estruturamdistintas formas de apreensão e de ação sobrea realidade. A compreensão de que múltiplosaspectos materiais e imateriais configuram oespaço, engendrando praticamente todas asdimensões da existência humana, já está pre-sente, por exemplo, no conceito gênero de vidade Sorre. O conceito de complexo patogênico,contudo, não é suficiente para explicar a confi-guração de grande parte dos problemas de saú-de pública na sociedade contemporânea. Estesdemandam novos discursos e abordagens quealcancem aprofundar a perspectiva multi outransdisciplinar, incorporando dimensões doespaço não comumente utilizadas nos estudosepidemiológicos.

Uma tentativa recente de ampliar os usosda categoria espaço manifesta-se através doconceito de situação de saúde, que busca ex-pressar as condições específicas dos grupos so-ciais, objetiva e subjetivamente construídas earticuladas à forma como esses grupos se con-figuram e se inserem socialmente em determi-nado momento histórico e circunstâncias na-turais (Castellanos, 1990). Esse conceito possi-bilita a abordagem dos problemas de saúde edoença de um ponto de vista específico paracada grupo populacional e, ao mesmo tempo,de uma perspectiva interdisciplinar e interse-torial (Rojas, 1998).

Um dos mais importantes exemplos daspermanências e transformações nas formas depensar a relação entre espaço e doença pode

Page 9: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 603

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

ser evidenciado mediante os trabalhos sobre aepidemia de AIDS. O seu surgimento, há duasdécadas, provocou um processo acelerado deelaboração, mobilizando recursos cognitivos esubjetivos que acrescentaram muitos elemen-tos para a compreensão da relação entre espa-ço e epidemia. Essas abordagens não estiveramrestritas ao campo especifico da epidemiolo-gia, manifestando outras múltiplas possibili-dades de se pensar e intervir sobre o processoepidêmico, que se integram às explicações es-tritamente epidemiológicas.

As redes espaciais de difusão, interação (oucirculação) do vírus da AIDS são hoje percebi-das como de difícil delimitação. Elas não seconfiguram de acordo com as característicasgeográficas anteriormente estudadas no âmbi-to das doenças transmissíveis (Barcellos & Bas-tos, 1996). A relação entre transmissão da AIDSe sexualidade ou uso de drogas, expressa acomplexidade de dimensões que, embora con-formadas culturalmente, se situam na esferadas opções pessoais e individuais. As redes delimitação ou facilitação da transmissão sãocondicionadas por características macroestru-turais que configuram socialmente o acesso arecursos materiais e subjetivos, mas que se de-finem nos espaços da vida privada dos sujeitos.

Os centros urbanos concentram atividadesde troca e interação social. Barcellos & Bastos(1996) estudaram, por exemplo, as redes so-ciais que se articulam à transmissão da AIDSentre usuários de drogas. Os caminhos do nar-cotráfico percorrem espaços de maior vulnera-bilidade e incidência da infecção. Dessa forma,podem ser identificados pontos em que os flu-xos de difusão da epidemia são mais intensos.

As análises espaciais que, por meio de téc-nicas de geoprocessamento, visualizam o des-locamento da difusão dos agentes e dos even-tos epidêmicos evidenciam também a mudan-ça no perfil sócio-econômico da epidemia. De-tectou-se especificamente no Brasil a expansãoda epidemia para os segmentos de menor ren-da e escolaridade. Grangeiro (1994) estudou adistribuição dos casos da doença na cidade deSão Paulo. Nas áreas mais ricas, predominaramos casos de transmissão homossexual masculi-na, e apresentou-se uma maior razão de inci-dência entre homens e mulheres. Nas áreasmais pobres, ao contrário, houve maior núme-ro de casos de transmissão heterossexual e re-lacionada ao uso de drogas. A razão entre casosem homens e mulheres foi menor (Grangeiro,1994). O crescente processo de pauperizaçãoda epidemia de AIDS demonstra que a distri-buição espacial dos mais diversificados recur-sos materiais e imateriais que favorecem a pro-

teção contra as doenças inexoravelmente ten-dem a acompanhar a lógica mais geral da desi-gualdade e iniqüidade social.

Os trabalhos a respeito da AIDS, sem dúvi-da, expressam transformações discursivas re-centes sobre a relação entre espaço e produçãode doenças. Um exemplo pode ser sinalizadoatravés da construção dos modelos dinâmicosde transmissão da AIDS, que ganharam um no-vo destaque. O acelerado desenvolvimento dainformática e do conjunto das ciências permi-tiu o aperfeiçoamento das técnicas de simula-ção e a incorporação de inúmeras novas variá-veis, que manifestam as mudanças do discursocientífico contemporâneo. Mesmo mantendo amesma base lógica configurada no início doséculo, os modelos hoje integram informaçõesespaciais geográficas a dados sociais e indivi-duais, tanto comportamentais como genéticos,estabelecendo redes de transmissão extrema-mente complexas.

Conclusão

Como vimos, o núcleo epistemológico queorienta a apreensão do espaço do ponto de vis-ta epidemiológico é a teoria da doença. É ne-cessário à explicação epidemiológica alcançarexpressar, de alguma forma, o espaço em queocorre o processo do adoecer, ou seja, a interfa-ce entre corpo e espaço. Nesse sentido, a idéiade circulação de agentes específicos, especial-mente no contexto de doenças transmitidaspor vetores, foi fundamental à objetivação deum conjunto de elementos, capazes de dar ma-terialidade à relação entre espaço e produçãode doenças. Isto foi possível tanto no contextoda abordagem estritamente ecológica quantono da que considerou o espaço socialmente or-ganizado.

Essa configuração apresentou-se limitada,especialmente para o estudo das doenças cha-madas não-transmissíveis. Através do conceitoepidemiológico de risco, a interface entre cor-po e meio é abstraída, representada, de modovirtual, como uma multiplicidade de estímulosirradiados. O conceito de risco não explicita ar-ticulações entre elementos materiais e imate-riais que possam explicar o vínculo entre espa-ço (exposição) e corpo (evento de doença). Omodelo do risco constrói representações dasrelações entre causas e a probabilidade destasprovocarem doenças que produzem uma des-conexão radical dos elos entre os homens esuas circunstâncias.

A tradição crítica na epidemiologia, espe-cialmente na América Latina, buscou superar

Page 10: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.604

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

as limitações dos conceitos epidemiológicos,integrando contribuições da teoria social àsanálises dos processos coletivos de saúde edoença. Porém, os conceitos específicos da epi-demiologia foram pouco problematizados nasua referência à biologia. A corrente histórico-estrutural que fundamentou esse desenvolvi-mento tendeu a desvalorizar as dimensões bio-lógica e individual do adoecer. Ao buscar am-pliar a concepção de espaço, deixou-se de lado,caracterizada como atribuição da clínica, a con-cepção de corpo que o reduz ao biológico e indi-vidual. Sem repensar a concepção de corpo, res-tringem-se as possibilidades de encontrar elosque expliquem a relação entre espaço e doença.

Desenvolvimentos mais recentes questio-naram as abordagens que, por um lado, res-tringiam os processos à uma dimensão biolo-gicista e, por outro, a determinantes genéricose estruturais (Fleury, 1992). Buscou-se reinter-pretar o significado de individual e de biológi-co, através de conceitos como sujeito e nature-za (Costa & Costa, 1990). O reconhecimento daimportância de valores, como subjetividade,autonomia, diferença, apresentou-se no con-texto das transformações no discurso científi-co, que, há cerca de uma década, manifesta-ram-se mais claramente na saúde coletiva.

Essas transformações trouxeram novos ele-mentos para se pensar o espaço e, conseqüen-temente, a relação entre espaço e doença. Re-tomando a definição de Milton Santos (Santos,1996) do espaço enquanto sistema de objetos ede ações, um conjunto de fixos e fluxos, ressal-ta-se, no contexto dos fluxos, aspectos que fo-ram pouco trabalhados em estudos epidemio-lógicos. A dimensão da comunicação no meiotecno-científico-informacional produz-se tam-bém através da circulação de palavras, ima-gens, rumores, afetos. Os elementos simbóli-cos contribuem de modo significativo para aconfiguração territorial e, certamente, para oprocesso de adoecer, individual e coletivo. Su-blinhando-se a dimensão fluida do espaço, des-tacam-se aspectos que enriquecem e tornamainda mais complexa a sua natureza. Porém, aapropriação de teorias a respeito do espaço,produzidas em outros campos do conhecimen-to, ainda não conseguiu encontrar uma media-ção tão clara entre o espaço e o fenômeno doadoecer como a que é alcançada pela idéia decirculação de agentes específicos de doenças.

Sem dúvida, desde a formulação da teoriados germes, houve um enorme desenvolvimen-to das ciências, da visualização de estruturasbiológicas, da compreensão de processos so-ciais e simbólicos, o que acrescentou muitoselementos para pensar o espaço, o corpo e o

surgimento de doenças. Não há como negar queo desenvolvimento tecno-científico em grandeescala trouxe como conseqüência a construçãode representações da realidade cada vez maiscomplexas. O discurso da epidemiologia, assimcomo o da geografia, articulando-se ao de outrasáreas de conhecimento, diversifica e ampliasuas possibilidades. A complexidade crescentedos enfoques conceituais, contudo, dificulta aconstrução de métodos capazes de operaciona-lizá-los (Costa & Teixeira, 1999).

O esforço de integração entre diferentesabordagens é o outro lado da aceleração daprodução de múltiplas linguagens, que frag-mentam as dimensões em que o corpo e o es-paço são apreendidos. A construção de ima-gens e discursos sedutoramente retóricos podetrazer, ao em vez de saber, perplexidade e im-potência. Pode ofuscar, ao invés de esclarecer,os caminhos para a resolução de problemas.Nesse mundo em que se multiplicam e se frag-mentam exponencialmente imagens, informa-ções e representações da realidade, ressalta-secada vez mais a importância de reforçar os elosentre pensamento e sensibilidade. Estamos vi-vendo o paroxismo da tendência sinalizada hámuito tempo por filósofos e poetas: “o processode desmembramento e decomposição da natu-reza e do homem fez com que se perdesse a inte-gridade da referência em seu próprio sentido”(Goethe apud Cassirer, 1993:225); a visibilida-de de novas estruturas na natureza e na deter-minação dos seres implicou uma cegueira emrelação ao sentido do ser (Merleau-Ponty, 1992);a visualização progressiva de realidades ante-riormente inimagináveis tendeu a afastar o ho-mem de seu próprio referencial de medida(Arendt, 1987).

A experiência vivida nos acontecimentos é areferência básica a qualquer perspectiva sinté-tica. No caso da epidemiologia, é o sofrimentohumano que se manifesta através dos eventosepidêmicos, que mobiliza o pensamento a pro-duzir significados e encontrar, dentre as maisvariadas possibilidades, aquelas que melhorcorrespondem à necessidades. A crença na ver-dade científica torna-se cada vez mais relativa,colocando-se em primeiro plano a idéia da uti-lidade do conhecimento. O que importa não é adisputa entre métodos e sistemas de pensa-mento definidos a priori, mas a capacidade deresolver, da melhor forma possível, problemasconcretos. O uso do conceito de espaço em epi-demiologia tem uma abertura transdisciplinar,permite uma multiplicidade de significações,que devem ser mobilizadas, tendo como refe-rência situações de saúde definidas a partir deinteresses devidamente explicitados.

Page 11: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 605

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

Agradecimentos

Agradecemos as sugestões de Paulo Chagastelles Sa-broza.

Referências

ARENDT, H., 1987. A Condição Humana. Rio de Ja-neiro: Forense-Universitária.

AYRES, J. R. C. M., 1997. Sobre o Risco: Para Compre-ender a Epidemiologia. São Paulo: Editora Hu-citec/Rio de Janeiro: ABRASCO.

BARATA, R., 1988. Meningite: Uma Doença sob Cen-sura? São Paulo: Cortez.

BARCELLOS, C. & BASTOS, F. I., 1996. Redes sociais edifusão da AIDS no Brasil. Boletín de la OficinaSanitaria Panamericana, 121:11-24.

BARRETO, M. L., 1982. Esquistossomose Mansônica:Distribuição da Doença e Organização Social doEspaço. Dissertação de Mestrado, Salvador: Uni-versidade Federal da Bahia.

BAUMAN, Z., 1998. O Mal-Estar da Pós-Modernidade.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

BREILH, J.; GRANDA, E.; CAMPANA, A. & BETAN-COURT, O., 1983. Ciudad y Muerte Infantil. Quito:Ediciones CEAS.

CARVALHEIRO, J. R., 1986. Processo migratório e dis-seminação de doenças. Textos de Apoio: CiênciasSociais, 1:29-55.

CASSIRER, E., 1993. El Problema del Conocimiento enla Filosofía y en la Ciencia Modernas. Libro IV.México, D.F.: Fondo de Cultura Económica.

CASTELLANOS, P. L., 1990. Avances metodológicosen epidemiología. In: Anais do 1o Congresso Brasi-leiro de Epidemiologia, pp. 201-216, São Paulo:ABRASCO.

COSTA, D. C. & COSTA, N. R., 1990. Teoria do conhec-imento e epidemiologia. Um convite à leitura deJohn Snow. In: Epidemiologia. Teoria e Objeto (D.C. Costa, org.), pp. 167-202, São Paulo: EditoraHucitec/ABRASCO.

COSTA, M. C. N. & TEIXEIRA, M. G. L. C., 1999. A con-cepção de ‘espaço’ na investigação epidemiológi-ca. Cadernos de Saúde Pública, 15:271-279.

CZERESNIA, D., 1997. Do Contágio à Transmissão:Ciência e Cultura na Gênese do Conhecimento Epi-demiológico. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

FERREIRA, M. U., 1991. Epidemiologia, conceitos eusos: O complexo patogênico de Max Sorre. Ca-dernos de Saúde Pública, 7:301-309.

FLEURY, S., 1992. Saúde Coletiva? Questionando a Oni-potência do Social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.

FOUCAULT, M., 1995. As Palavras e as Coisas: UmaArqueologia das Ciências Humanas. São Paulo:Martins Fontes.

GADELHA, P., 1995. História de Doenças: Ponto de En-contros e de Dispersões. Tese de Doutoramento,Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública,Fundação Oswaldo Cruz.

GRANGEIRO, A., 1994. O perfil sócio-econômico doscasos de AIDS na cidade de São Paulo. In: A AIDSno Brasil (R. Parker, C. Bastos, J. Galvão & J. S. Pe-droza, org.), pp. 91-125, Rio de Janeiro: Associa-ção Brasileira Interdisciplinar de Aids/Instituto

de Medicina Social, Universidade do Estado doRio de Janeiro/ Relume-Dumará.

HARVEY, D., 1996. A Condição Pós-Moderna. SãoPaulo: Loyola.

JACOB, F., 1983. A Lógica da Vida: Uma História daHereditariedade. Rio de Janeiro: Graal.

LEAVELL, S. & CLARCK, E. G., 1976. Medicina Preven-tiva. São Paulo: McGraw-Hill.

MacMAHON, B. & PUGH,T. F., 1978. Principios eMétodos de Epidemiología. México, D.F.: La Pren-sa Médica Mexicana.

MERLEAU-PONTY, M., 1992. O Visível e o Invisível.São Paulo: Perspectiva.

PAVLOVSKY, Y. N., s/d. Natural Nidality of Transmis-sible Diseases. Moscow: Peace Publishers.

PESSOA, S. B., 1978. Ensaios Médico-Sociais. São Paulo:CEBES/Editora Hucitec.

ROSICKY, B., 1967. Natural foci of diseases. In: Infec-tious Diseases: Their Evolution and Erradication(T. A. Cockburn, org.), pp. 108-126, Springfield:Charles C. Thomas.

ROJAS, L. I., 1998. Geografia y salud: Temas y pers-pectivas en América Latina. Cadernos de SaúdePública, 14:701-711.

SABROZA, P. C. & LEAL, M. C., 1992. Saúde, ambientee desenvolvimento. Alguns conceitos fundamen-tais. In: Saúde, Ambiente e Desenvolvimento (M.Leal., P. Sabroza, R. Rodrigues & P. Buss, org.), pp.45-93, São Paulo: Editora Hucitec/Rio de Janeiro:ABRASCO.

SANTOS, B. S., 1987. Um Discurso sobre as Ciências.Porto: Edições Afrontamento.

SANTOS, M., 1996. A Natureza do Espaço – Técnica eTempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora Hu-citec.

SILVA, L. J., 1985a. Organização do espaço e doença.In: Textos de Apoio: Epidemiologia 1 (J. R. Carva-lheiro, org.), pp. 159-188, Rio de Janeiro: EscolaNacional de Saúde Pública/ABRASCO.

SILVA, L. J., 1985b. Crescimento urbano e doença: Es-quistossomose no Município de São Paulo (Bra-sil). Revista de Saúde Pública, 19:1-7.

SILVA, L. J, 1997. O conceito de espaço na epidemio-logia das doenças infecciosas. Cadernos de SaúdePública, 13:585-593.

SINNECKER, H., 1971. General Epidemiology. Lon-don: John Wiley & Sons.

SORRE, M., 1984. A noção de gênero de vida e suaevolução. In: Max Sorre: Geografia ( J. F. Megale,org.), pp. 99-123, Rio de Janeiro: Editora Ática.

TEIXEIRA, R. R., 1993. Epidemia e Cultura: AIDS e Mun-do Securitário. Dissertação de Mestrado, São Paulo:Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo.

URTEAGA, L., 1980. Miseria, miasmas y microbios.Las topografías médicas y el estudio del medioambiente en el siglo XIX. Cuadernos Críticos deGeografía Humana, 29:5-52.

Page 12: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.606

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

O artigo apresentado por Dina Czeresnia &Adriana Ribeiro nos instiga a pensar, de formaampliada, o processo saúde-doença e os deter-minantes subjetivos que permeiam suas rela-ções. As autoras propõem uma discussão con-ceitual e histórica, considerando diversas con-cepções e aplicação da categoria de análise “es-paço” em epidemiologia. O conteúdo aborda-do é de extrema importância nos dias atuaispara a saúde pública e, particularmente, para odesenvolvimento da epidemiologia, tendo emvista a possibilidade de apontar para horizon-tes explicativos das novas e velhas mazelas queafligem as diferentes sociedades, populações eindivíduos.

O uso do espaço enquanto categoria deanálise para a compreensão da ocorrência e dadistribuição das doenças nas coletividades sur-ge antes mesmo da consolidação da epidemio-logia como disciplina científica. De fato, a rela-ção do meio geográfico com o processo saú-de–doença e sua historicidade já são estudadasdesde, aproximadamente, 480 a.C. com o tra-balho de Hipócrates intitulado Ares, Águas eLugares (Pessoa, 1978), numa concepção am-bientalista, tendo uma aplicação concreta naepidemiologia a partir dos estudos de Snow(1990) sobre o modo de transmissão da cóleraem Londres, no início da Revolução Industriale Científica.

Certamente, concordamos com as autorasquando apontam que é a teoria da doença quetem guiado epistemologicamente a concepçãodo espaço em epidemiologia e verificamos queo artigo apresenta uma trajetória bastante per-tinente quando observa que, historicamente,se trabalha uma concepção de lugar centradano natural. Essa concepção é também umacontribuição de fundamental importância pa-ra a compreensão da epidemiologia das doen-ças infecciosas, particularmente as de trans-missão vetorial, como explicitado por Silva(1997). Talvez isso ocorra porque as doençasinfecciosas apresentam elos entre o espaço e ocorpo determinados externamente (vírus, bac-térias, fungos, etc.), transmitidos ou não porvetores, sendo mais visíveis para o conheci-mento científico adquirido pelo homem neste

Debate sobre o artigo de Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro

Debate on the paper by Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro

Departamento de Saúde Coletiva, Núcleo de Estudosem Saúde Coletiva, Centro dePesquisas Aggeu Magalhães,Fundação Oswaldo Cruz.Departamento de MedicinaSocial, Universidade Federalde Pernambuco.

Eduardo Maia Freesede Carvalho

século, fundamentado no paradigma biologi-cista. Em contrapartida, em relação às doençascrônico-degenerativas e considerando o mo-delo multicausal, os elos entre corpo e espaçosão menos evidentes, dado que o elemento ex-terno não pode ser reconhecido na forma deagentes transmissíveis.

É com a corrente marxista da geografia quea epidemiologia busca elementos explicativosdas relações entre espaço e sociedade, tendo,contudo, sempre a contribuição de epidemio-logistas como Castellanos (1987), Possas (1989),Laurell & Noriega (1989), Breilh et al. (1990),dentre outros, que procuraram evidenciar as-pectos relacionados às desigualdades existen-tes entre classes e distintos grupos sociais. Es-sas contribuições se expressam claramente pa-ra além daquelas que se encontram estrita-mente no campo biológico, ao considerarem ascontradições existentes no modelo econômico,no processo de industrialização, na urbaniza-ção, na questão agrária e nas migrações, quetêm influenciado de forma extremamente mar-cante na organização social do espaço habita-do (Santos, 1988).

Porém, é fato que as várias concepções emodelos acima referidos não consideram asubjetividade existente entre os elos que sepa-ram espaço, enquanto categoria de análise, e oindivíduo. Entretanto, os diferentes autores la-tino-americanos, ainda que centrados numavisão que privilegia a doença, têm alcançadoavanços importantes quando consideram oprocesso de adoecer como determinado social-mente, entendido enquanto processo históri-co. Estes consideram dois momentos funda-mentais:

1) O momento da produção (trabalho), co-mo explicativo para um perfil epidemiológicode doenças crônicas, particularmente do setorsecundário (industrial) e terciário (comércio eserviços), secundarizados pelas doenças infec-ciosas e parasitárias; e

2) O momento da reprodução da força detrabalho, que, tendo em vista o insuficiente sa-lário, não dá condições ao trabalhador de su-prir suas necessidades básicas de sobrevivên-cia, como alimentação e moradia adequadas,saneamento básico, lazer, etc. Em conseqüên-cia, verificamos um perfil epidemiológico compredominância das doenças infecciosas e pa-rasitárias, secundarizadas pelas enfermidadescrônicas e degenerativas.

Entendemos que existe, ainda, um terceiroou novo padrão epidemiológico em sociedadesemergentes, em um contexto de iniqüidade so-cial, que encarnam e espelham as contradiçõesda forma desorganizada de ocupação dos es-

Page 13: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 607

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

paços urbanos e rurais. Nesses locais, coexis-tem, em níveis elevados, as enfermidades ar-caicas, (cólera, esquistossomose, sarampo,hanseníase, tuberculose), para as quais já dis-pomos de tecnologia para erradicá-las ou con-trolá-las, e as enfermidades da modernidade,particularmente as enfermidades crônicas edegenerativas, bem como eventos e danos àsaúde, inclusive as mortes violentas (acidentede trânsito, homicídio etc.).

Outras duas considerações colocadas paradiscussão são:

1) O emprego de técnicas de georreferen-ciamento e geoprocessamento dos dados e in-formações, que muito têm contribuído para oentendimento do espaço enquanto categoriade análise. Entretanto, essas técnicas não de-vem ser entendidas como ciência ou panacéiapara explicar o processo saúde–doença, postoque suas possibilidades e potencialidades sãoamplas, mas também têm claras limitações,pois são técnicas apenas.

2) A segunda consideração é a reflexão so-bre os ambientes de trabalho e suas relaçõesconflitantes entre chefes, supervisores e os de-mais trabalhadores. Relações geradoras de ten-são psicológica e estresse, que debilitam a saú-de dos indivíduos e que ainda não foram devi-damente explorados pela epidemiologia, namedida que pouco se conhece sobre estas e oselos existentes entre espaço e corpo.

Por último, as autoras nos fazem tambémrefletir sobre a utilização do método epidemio-lógico baseado na quantificação e distribuiçãodas doenças infecciosas e parasitárias e no mo-delo dos fatores de risco para as doenças crôni-co-degenerativas. Parece claro que tal metodo-logia não é apropriada para compreender asubjetividade existente entre espaço e corpo.Entretanto, parece, também, óbvio que, parabuscar compreender a subjetividade do pro-cesso de adoecer, é necessário nos apropriar-mos do método qualitativo, este sim possuidorde potencialidades capazes de explicar catego-rias de análise subjetivas. A tão preconizadatriangulação metodológica entre as ciências,visando a interdisciplinaridade e, quiçá, atransdiciplinaridade, aparenta ter grande po-tencial de buscar desvendar a complexidadedo processo saúde–doença, centrada, particu-larmente, na saúde.

BREILH, J., 1990. Deterioro de la Vida. Un Instrumen-to para Analisis de Prioridades Regionales en loSocial y la Salud. Quito: Corporación Editora Na-cional.

CASTELLANOS, P. L., 1987. Sobre el concepto salud-enfermidad: Un ponto de vista epidemiológico.In: Congresso Mundial de Medicina Social, Anais,

p. 5. Medellin: Congresso Mundial de MedicinaSocial. (mimeo.)

LAURELL, A. C. & NORIEGA, M., 1989. Processo deProdução e Saúde: Trabalho e Desgaste Operário.São Paulo: Editora Hucitec.

PESSOA, S. B., 1978. Ensaios Médico-Sociais. São Pau-lo: CEBES/Editora Hucitec.

POSSAS, C., 1989. Epidemiologia e Sociedade: Hetero-geneidade Estrutural e Saúde no Brasil. São Paulo:Editora Hucitec.

SANTOS, M., 1988. Metamorfose do Espaço Habitado:Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Geo-grafia. São Paulo: Editora Hucitec.

SILVA, L. J., 1997. O conceito de espaço na epidemio-logia das doenças infecciosas. Cadernos de SaúdePública,13:585-593.

SNOW, J., 1990. Sobre a Maneira de Transmissão doCólera. 2a Ed. São Paulo: Editora Hucitec/Rio deJaneiro: ABRASCO.

Elos entre geografia e epidemiologia

O artigo de Dina Czeresnia & Adriana Ribeiroapresenta uma reflexão oportuna sobre o espa-ço na epidemiologia. Outros artigos com preo-cupações semelhantes vêm sendo publicadosnos próprios Cadernos de Saúde Pública nos úl-timos anos, demonstrando uma retomada deuma abordagem espacial para os problemas desaúde. Dentre estes podem ser mencionadas ascontribuições de Maria da Conceição Costa &Maria da Glória Teixeira (Costa & Teixeira, 1999),Luiza Iñigez Rojas (Rojas, 1998) e Luiz Jacinthoda Silva (Silva, 1997). Também em artigo nestarevista, apontamos vantagens e riscos do uso dogeoprocessamento para análises de ambiente esaúde, procurando identificar problemas teóri-co-metodológicos encontrados nessa possíveljunção (Barcellos & Bastos, 1996). Essa série deartigos, entre os quais se destaca a presente re-visão, permite hoje recuperar correntes históri-cas e identificar tendências do uso do espaçocomo categoria de análise da epidemiologia.Diversos outros artigos, que vêm sendo recen-temente apresentados nesta e em outras revistasde saúde pública, contêm mapas ilustrativos oudemonstrativos da distribuição espacial de agra-vos à saúde, suas fontes de risco ou determinan-tes sociais e ambientais. Felizmente, a crescen-te utilização de categorias geográficas na análi-se de saúde parece estar sendo acompanhadapor reflexões a cerca de sua formulação teórica.

Como apontado pelas autoras, geografia eepidemiologia têm histórias semelhantes, mar-

Departamento de Informações em Saúde,Centro de Informaçõesem Ciência e Tecnologia,Fundação Oswaldo Cruz.

Christovam Barcellos

Page 14: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.608

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

cadas por uma intensa troca com ciências danatureza e da sociedade. A epidemiologia e ageografia talvez tenham em comum, principal-mente, as crises que costumam produzir pelasaturação de modelos ou por sua superação emrazão de novas realidades. A AIDS, lembradapelas autoras, é uma dessas novas realidadesque acabaram por derrubar antigos conceitose esquemas de análise. Foi assim com o mode-lo proposto por Pavlovsky, superado pela urba-nização de doenças não explicadas por umaecologia ou geografia da paisagem natural.Tanto Pavlovsky quanto Max Sorre trabalharamcom a ecologia, no sentido de ciência das rela-ções entre ambiente e seres vivos, e talvez, porisso, se prenderam aos princípios de equilíbriomeio interno/meio externo, homem/meio, pa-rasitas/hospedeiro. Talvez esses modelos se-jam adequados para o estudo de algumas en-demias, mas não para doenças não transmissí-veis e situações epidêmicas. Algumas vezes te-mos que pensar no desequilíbrio, no efeito deum fato novo – um novo agente infeccioso ouas migrações – na determinação de doenças.Também parece estar em crise a chamada epi-demiologia dos fatores de risco (Castellanos,1990), que freqüentemente desconsidera as in-terações entre indivíduos (unidades de obser-vação) e as condições coletivas que emergemdestas relações. Algumas das importantes ex-pressões dessa coletividade são as cidades, asredes sociais, os grupos sócio-espaciais, locali-zados em guetos ou condomínios residenciais,ou organizados em torno de fatores comunsque unem pessoas, produzem subjetividadescoletivas e se manifestam no espaço; em luga-res particulares (Sabroza & Leal, 1992). Essasrelações são necessariamente coletivas e têmexpressão espacial, embora muitas vezes de di-fícil apreensão.

O lugar, ao lado de pessoas e tempo, é umadas três principais dimensões de análise de fe-nômenos epidemiológicos. Essa categorizaçãoé meramente didática, uma vez que pessoas,tempo e lugares interagem. O conjunto lugar-tempo-pessoas é, em outras palavras, precisa-mente o objeto da geografia. A geografia estu-da a relação entre sociedade e espaço, ou seja,como, onde, em que condições e por que cau-sas se dá o desenvolvimento humano (não pro-priamente equivalente ao desenvolvimentopessoal) na superfície da terra (lugares). Paraisso, compreende esse processo como resulta-do da acumulação de forças históricas (tempo).

Nesse sentido, o espaço não só viabiliza acirculação de agentes, como enfatizado pelasautoras, mas estabelece um elo, unindo, de umlado, grupos populacionais com características

sociais que podem magnificar efeitos adversose, do outro lado, fontes de contaminação, lo-cais de proliferação de vetores. Essa ligaçãoacontece não só no espaço, mas, principalmen-te, se dá através da organização espacial. Essaorganização impõe uma lógica de localização efuncionamento, tanto para a produção quantopara a reprodução da sociedade. Esse encontrosingular entre condições de risco e populaçõesem risco é determinado por fatores econômi-cos, culturais e sociais que atuam no espaço. Oexemplo da saúde dos trabalhadores é, talvez,o mais gritante, em que a posição do indivíduono espaço de trabalho está fortemente relacio-nada à função por ele exercida e a toda a estru-tura de produção, utilizando categorias da geo-grafia sugeridas por Milton Santos. Esse con-junto de variáveis, que é indissociável, deter-mina as condições de risco a que estão subme-tidas parcelas da população de trabalhadores.Essas relações não são tão evidentes no cha-mado ambiente geral, isto é, no espaço de mo-radia, de circulação e de consumo. Nesse caso,cabe à investigação epidemiológica e à geogra-fia da saúde restabelecer esse elo.

O uso do espaço na área de saúde tem sidoincrementado com o crescente acesso a basesde dados epidemiológicos e pela disponibili-dade de ferramentas cartográficas e estatísti-cas computadorizadas. O uso dessas ferramen-tas pressupõe, no entanto, modelos de explica-ção do processo saúde/doença baseados emvariáveis espaciais, como distância e vizinhan-ça, e no inter-relacionamento com dados decaracterização do lugar. O espaço é muitas ve-zes utilizado como simples plano geométricopara a disposição e análise de dados epidemio-lógicos, tendo como premissa os elementos es-paciais próximos compartilharem condiçõessócio-ambientais semelhantes. O espaço temsido fragmentado para, numa segunda aborda-gem, permitir verificar a diferenciação de con-dições sociais e ambientais, tendo como pres-supostos a homogeneidade interna e a inde-pendência das unidades espaciais de agrega-ção e análise de dados. Uma terceira aborda-gem é focada na visão particular do lugar e dascircunstâncias em que o espaço pode produzirriscos à saúde. A cada uso do espaço corres-ponde um conceito e um conjunto de métodose técnicas de análise que podem ser emprega-das. A falta de explicitação desses conceitos emétodos prejudica não só o próprio estudo,mas o estabelecimento desse possível elo entregeografia e saúde. O uso do geoprocessamento,uma ferramenta de cada vez mais fácil acesso eutilização entre profissionais da saúde, tam-bém pressupõe um embasamento metodológi-

Page 15: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 609

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

Departamento de Parasitologia, Institutode Ciências Biomédicas,Universidade de São [email protected]

Marcelo UrbanoFerreira

No final do século XVIII, os médicos passarama interrogar o corpo humano em busca da sededas doenças, que Morgagni e Bichat localiza-riam nos órgãos e tecidos e Virchow, posterior-mente, na célula. Quase simultaneamente, amedicina social buscava compreender a distri-buição das doenças em populações humanas eseus determinantes. A idéia de território dasdoenças surge, portanto, em contextos distin-tos. O território da clínica é delimitado por dis-ciplinas como a anatomia, a histologia e a pato-logia, enquanto o espaço que a medicina socialinvestiga corresponde ao objeto de estudo dogeógrafo. Embora técnicas cartográficas vies-sem sendo utilizadas, ao longo do século XIX,para descrever a distribuição das doenças hu-manas, o intercâmbio conceitual entre a medi-cina social e a geografia somente se intensificaem meados do século XX. Esse intercâmbio é o

co prévio. Que paradigmas usamos e dispomosnesse caso? Estamos buscando o complexo pa-togênico? Estamos condenados à geografiaquantitativa? Trabalhamos com a ecologia dasdoenças? Existe alguma maneira de se fazergeografia crítica usando geoprocessamento?Não temos respostas para estas questões, maso debate incitado por esse artigo permite recu-perar a história da difícil relação entre geogra-fia e epidemiologia e apontar possíveis cami-nhos a seguir.

BARCELLOS, C. & BASTOS, F. I., 1996. Geoprocessa-mento, ambiente e saúde, uma união possível?Cadernos de Saúde Pública, 12:389-397.

CASTELLANOS, P. L., 1990. Sobre el concepto desalud-enfermedad. Descripción y explicación dela situación de salud. Boletín Epidemiológico,10:1-7.

COSTA, M. C. N. & TEIXEIRA, M. G. L. C., 1999. A con-cepção de “espaço” na investigação epidemioló-gica. Cadernos de Saúde Pública, 15:271-279.

ROJAS, L. I., 1998. Geografía y salud: Temas y pers-pectivas en América Latina. Cadernos de SaúdePública, 14:701-711.

SABROZA, P. C. & LEAL, M. C., 1992. Saúde, ambientee desenvolvimento. Alguns conceitos fundamen-tais. In: Saúde, Ambiente e Desenvolvimento. UmaAnálise Interdisciplinar (M. C. Leal, P. C. Sabroza,R. H. Rodriguez & P. M. Buss, org.), pp. 45-93, Riode Janeiro: ABRASCO/São Paulo: Editora Hucitec.

SILVA, L. J., 1997. O conceito de espaço na epidemio-logia das doenças infecciosas. Cadernos de SaúdePública, 13:585-593.

tema central do oportuno artigo de Dina Cze-resnia & Adriana Maria Ribeiro.

A principal vertente acadêmica da geografiamédica surge em 1943, com a publicação doprimeiro volume da obra magistral de Max Sor-re, Les Fondements de la Géographie Humaine,dedicado aos seus fundamentos biológicos.Sorre propõe aqui o complexo patogênico co-mo um conceito de integração entre a geogra-fia e as ciências biológicas. A geografia médi-ca aplicada torna-se popular a partir de 1939,quando o parasitologista russo Y. N. Pavlovskylança a sua teoria dos focos naturais das doençashumanas, que teria servido de base para as ativi-dades de controle de diversas endemias ruraisno território soviético. Do ponto de vista concei-tual, importa examinar como Sorre e Pavlovskyinterpretam as relações entre o homem, o espaçogeográfico e as doenças, e em que consiste a no-vidade de suas proposições (Ferreira, 1991).

O foco natural das doenças é descrito emPavlovsky como um objeto da geografia física:uma paisagem caracterizada por elementosclimáticos e de cobertura vegetal, onde circu-lam agentes etiológicos, vetores e reservatóriosde uma infecção. O ser humano situa-se forado foco, ainda que eventualmente sua ação so-bre a paisagem possa contribuir para a disse-minação de infecções. Sua posição hierárquicacorresponde exatamente à dos demais elemen-tos paisagísticos e biológicos em jogo. Não há,no plano conceitual, nenhuma ruptura com atradição positivista; a noção de foco naturalreaparecerá na tríade clássica agente-hospe-deiro-meio da epidemiologia funcionalista deLeavell & Clarck (1976). No Brasil, as idéias dePavlovsky teriam ampla divulgação nos escri-tos de Samuel Pessoa (1978), cujo valor residemais em seu caráter de denúncia social do queem seu apuro conceitual ou metodológico.

Por outro lado, o complexo patogênico deSorre pertence ao âmbito da geografia huma-na. Nele, o papel do homem não se restringe aoplano biológico, como eventual hospedeiro deagentes infecciosos. A doença não surge ou de-saparece como fenômeno natural; a gênese oudesintegração dos complexos patogênicos écondicionada pela ação humana sobre o ambi-ente. No entanto, Sorre prende-se a uma pers-pectiva ecológica para compreender esta açãohumana, sintetizada em seu conceito de gêne-ro de vida. Os diferentes gêneros de vida resul-tariam de modos diversos de adaptação do ho-mem às dificuldades impostas pelo meio geo-gráfico. Não cabem nessa perspectiva atoressociais em conflito de classes nem formaçõessociais que geram determinados modos deocupação do espaço. A fria recepção das idéias

Page 16: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.610

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

de Sorre no Brasil, pelo menos entre os epide-miologistas, pode ser medida pela inexistênciade estudos empíricos que se utilizam de seuconceito de complexo patogênico.

A geografia crítica proporciona outro pos-sível elo de interação entre a epidemiologia e ageografia. Entre os epidemiologistas de forma-ção positivista, no entanto, há dificuldade deabsorver conceitos de espaço incompatíveiscom a tríade agente-hospedeiro-meio. O pro-blema básico reside no modo como se analisa arelação entre as partes e o todo. Ora, na geogra-fia crítica o espaço humano é interpretado co-mo uma totalidade que resulta da ação do ho-mem organizado em sociedade sobre a paisa-gem. Nas palavras de Milton Santos, “a essên-cia do espaço é social. Nesse caso, o espaço nãopode ser apenas formado pelas coisas, os obje-tos geográficos, naturais e artificiais, cujo con-junto nos dá a Natureza. O espaço é tudo isso,mais a sociedade: cada fração da naturezaabriga uma fração da sociedade atual” (Santos,1985). Essa totalidade não resulta meramenteda justaposição de seus componentes, nem es-tes podem ser compreendidos sem referênciaà totalidade.

No plano teórico, a maior contribuição so-bre espaço e doença da epidemiologia brasilei-ra deve-se a Luiz Jacintho da Silva (Silva, 1991),que radicaliza a noção de foco antropúrgico dePavlovsky em seus estudos sobre a doença deChagas no Estado de São Paulo. Geógrafos bra-sileiros vêm realizando trabalhos metodológi-cos e empíricos valiosos, como aqueles reuni-dos na obra coordenada por Alberto Najar &Eduardo Marques (Najar & Marques, 1998), nãomencionados por Czeresnia & Ribeiro. A vastaobra geográfica de Milton Santos, que ganhacada vez mais leitores no Brasil, propõe umasólida base conceitual para a epidemiologia so-cial lidar com os problemas do espaço. A geo-grafia urbana, em especial, convive com fecun-das teorias do espaço de orientação marxista,como as de Manuel Castells & Henri Lefebvre(Castells & Lefebvre, apud Gottdiener, 1997).Criam-se condições para que a geografia médi-ca brasileira se liberte de sua tradição de des-crever (e eventualmente denunciar) a ocorrên-cia e distribuição das endemias rurais e se de-bruce sobre temas como, por exemplo, a emer-gência de doenças infecciosas nas cidades.AIDS e tuberculose estão na pauta dessas futu-ras investigações.

FERREIRA, M. U., 1991. Epidemiologia e Geografia: Ocomplexo patogênico de Max Sorre. Cadernos deSaúde Pública, 7:301-309.

GOTTDIENER, M., 1997. A Produção Social do EspaçoUrbano. São Paulo: Edusp.

LEAVELL, S. & CLARCK, E. G., 1976. Medicina Preven-tiva. São Paulo: McGraw-Hill.

NAJAR, A. L. & MARQUES, E. C., 1998. Saúde e Espaço:Estudos Metodológicos e Técnicas de Análise. Riode Janeiro: Editora Fiocruz.

PESSOA, S. B., 1978. Ensaios Médico-Sociais. São Pau-lo: CEBES/Editora Hucitec.

SANTOS, M., 1985. Espaço e Método. São Paulo: Nobel.SILVA, L. J., 1991. Evolução da Doença de Chagas no

Estado de São Paulo. Tese de Doutorado, RibeirãoPreto: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto,Universidade de São Paulo.

Czeresnia & Ribeiro nos trazem um tema damaior relevância: a questão do espaço em Epi-demiologia. Com efeito, tempo e espaço são,como sabemos desde Kant, as intuições funda-mentais com as quais o entendimento contri-bui para a construção do conhecimento positi-vo – ainda que se ponha em questão o carátertranscendental dessas categorias estéticas. Comjusta razão, portanto, toda disciplina científicaque reflete sobre suas bases epistemológicasprecisa, mais ou cedo ou mais tarde, examinarde que modo essas noções basilares estão ins-truindo o conhecimento que produz. Esseexercício se torna tão mais necessário quantomais tais intuições se desdobram na constru-ção da linguagem própria de cada campo deconhecimento, na constituição de categoriasanalíticas e conceitos nos quais tempo e espa-ço revestem-se, eles próprios, de conteúdo em-pírico que se busca validar. É o caso da histó-ria, da geografia e, sem sombra de dúvida, daepidemiologia.

Tempo, lugar e pessoa compõem a tríadebásica da produção/interpretação dos cons-tructos epidemiológicos, dizem os manuaisque fundaram as bases metodológicas da disci-plina. O que, na verdade, poderia ser escritocomo pessoas em lugares/tempos. É a distri-buição de ocorrências que define o escopo daepidemiologia, já propõem textos mais recen-tes. De qualquer modo está ali, inexorável, oespaço. Para além de fundamento estético, elemesmo é aspecto a ser apreendido e problema-tizado, assim como o tempo, como vem discu-tindo Gil Sevalho. Quantificar e comparar ocor-rências pressupõe delimitar em termos de tem-po e espaço a grandeza de eventos definidos.Assim, determinar onde os eventos acontecemé, em epidemiologia, indispensável para che-gar a identificar porque eles acontecem ou, ao

José RicardoAyres

Departamento de Medicina, Faculdade deMedicina, Universidadede São Paulo.

Page 17: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 611

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

menos, como podem vir a não acontecer. Asautoras defendem, nesse sentido, que a própriaidentidade da disciplina se construiu sobreuma figura de espacialidade, qual seja, a buscadas vias de transmissão das doenças de massa.

Não obstante seu caráter central na consti-tuição da epidemiologia, o espaço também nãoconseguiu, porém, escapar ao horror antiteoré-tico que marca o desenvolvimento conceitualdessa disciplina. O espaço tem sido amplamen-te usado em epidemiologia para conhecer co-mo se distribuem as doenças e seus correlatos(serviços, tratamentos, respostas), mas não pa-ra pensar o que isso significa. Espaço virou lu-gar, e este passou a ser apreendido como ende-reço. O endereço, enquanto tal, foi progressiva-mente deixando de ser um dado empírico dota-do de significado para transformar-se no supor-te lógico de variáveis cada vez mais abstratas,altamente isoladas do “conjunto indissociávelde sistemas de objetos e sistemas de ação” de quenos fala Milton Santos (Santos, 1996:18).

Essa é uma das questões centrais suscita-das pelo trabalho aqui apresentado. Dado que,também a epidemiologia, como ocorrência, co-mo evento delimitável espacialmente, deve sertratada como parte indissociável de um siste-ma (ou sistemas) de objetos e ações, cabe per-guntar: o que esse deslocamento nos diz a res-peito de nós próprios? Por que o lugar repre-senta o espaço no âmbito da nossa prática epi-demiológica? Se considerarmos ainda que, en-tre nossos sistemas de objetos e ações, um de-les, o sistema lingüístico, tem um lugar deter-minante na contínua reconstrução desses sis-temas, por maior razão devemos nos deter so-bre o que estamos fazendo com o espaço emque vivemos quando, epidemiologicamente, odesignamos “lugar”.

Da problemática acima desdobra-se aindaoutra ordem de questões levantadas pelo arti-go e que diz respeito às transformações históri-cas, com a licença do trocadilho, do lugar epis-temológico que vem ocupando esse “lugar”epidemiológico no desenvolvimento científicoda disciplina. As autoras destacam que o pontode vista central do seu trabalho é o de que “onúcleo epistemológico que orienta a apreensãodo espaço em Epidemiologia é a teoria da doen-ça” e que “os elementos do espaço que são incor-porados na explicação epidemiológica inte-gram-se aos que explicam como a doença ocorreno corpo” (grifos meus). Nesse sentido, pare-cem sugerir que o “lugar” é um dispositivo frag-mentador do espaço – do qual a epidemiologiaextrai alguns elementos – e que o princípio des-sa fragmentação é a fisiopatologia – só interes-sando os fragmentos que (e à proporção que)

são capazes de evidenciar mecanismos disfun-cionais no corpo. Estamos de acordo, porém,que, desde a verdadeira revolução epistemoló-gica que foi a emergência do conceito de riscoem epidemiologia, o desvelar de um círculodisfuncional, cujo centro estava na intimidadeorgânica e cuja circunferência se estendia paratudo que, no meio externo, se relacionava comela, perdeu espaço (eu disse espaço?!). Até osanos 30, as relações entre microbiologia, imu-nologia e clínica permitiram à epidemiologiamanter-se ainda como porta-voz de uma me-cânica interno–externo, mas, agora, já traba-lhando menos com a idéia de disfunção do quecom a idéia de desequilíbrio (entre infectantes,infectados e suscetíveis). Após a Segunda Guer-ra Mundial, contudo, vemos a epidemiologiado risco prescindir quase totalmente não só dafisiopatologia, como também de qualquer me-cânica interno–externo para produzir seu co-nhecimento. Nem disfunção, nem desequilí-brio, o que a epidemiologia passa a buscar e re-velar é o desfavorável. Se uma ocorrência qual-quer tem possibilidade de estar favorável oudesfavoravelmente associada a outra no cam-po da saúde, esse fato, junto com sua extensão,passa a ser o norte e o traço distintivo da pro-dução hegemônica na epidemiologia do risco.Nesse sentido, cabe perguntar: não terá a epi-demiologia contemporânea modificado sua re-lação com as teorias das doenças? Nesse con-texto, como se recompôs o espaço da epide-miologia? Qual princípio está gerando hoje osfragmentos que, através do “lugar”, represen-tam o espaço nos estudos epidemiológicos?

Certamente, essas questões não são algo aque as autoras devam (e possam) responder deforma conclusiva em sua tréplica. São reflexõesfundamentais que seu artigo apenas levanta einicia. Cabe a nós todos, do campo da epide-miologia e da saúde pública, especialmenteaqueles que já vêm dedicando esforços espe-ciais para a compreensão do problema, comoLuiz Jacintho da Silva, Maurício Barreto, PauloSabroza, entre outros, ajudar a respondê-lascom nossas melhores reflexões e práticas coti-dianas.

SANTOS, M., 1996. A Natureza do Espaço – Técnica eTempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora Hu-citec.

Page 18: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.612

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

Núcleo de Estudos emSaúde Coletiva, Centrode Pesquisas Aggeu Magalhães, FundaçãoOswaldo Cruz.Departamento de Medicina Clínica,Centro de Ciências daSaúde, UniversidadeFederal de Pernambuco.

Maria de FátimaMilitão de Albuquerque

O texto de Dina Czeresnia & Adriana Ribeiroapresenta um tema bastante atual e estimula oleitor a fazer algumas reflexões e questiona-mentos. Tendo como propósito interpretar autilização do conceito de espaço em epidemio-logia e revisar a produção teórica a respeito, naAmérica Latina, sente-se falta, no entanto, deuma maior clareza a respeito da perspectivaassumida pelo artigo. Se esta era sistematizar asdiversas correntes do pensamento geográfico,especialmente a concepção de espaço, e sua in-fluência na epidemiologia, o artigo exibe umagrande lacuna quando não considera os traba-lhos do geógrafo e médico Josué de Castro.

Entre as vertentes explicativas, somente fo-ram destacadas as influências de Pavlovsky,Max Sorre, Samuel Pessoa e Milton Santos. Aobra pioneira de Josué de Castro, Geografia daFome, publicada em 1946 (Castro, 1992), ficouinexplicavelmente de fora. Do ponto de vistasocial, a obra se insere no âmbito da geografiacrítica, precisamente na chamada geografia dedenúncia, que, segundo Moraes, “Fazia-se umadescrição da vida regional, que não encobria ascontradições existentes no espaço analisado.Sendo a realidade injusta, sua mera descriçãojá adquiria um componente de oposição à or-dem instituída” (Moraes, 1990:118).

Vale, então, salientar uma outra questão co-locada pelo artigo, que é a suposta inadequa-ção dessa abordagem para as doenças não in-fecciosas. Em síntese, o texto assume que: “aidéia de circulação de agentes específicos no es-paço é fundamental a esse desenvolvimentoconceitual”, porque expressaria melhor as rela-ções do homem com o meio.

Abordando um evento não transmissível, nocaso a fome, a obra de Josué de Castro (Castro,1992) não ficou ancorada na tríade agente, hos-pedeiro e ambiente, apreendida nas investigaçõesdas doenças transmissíveis. Samuel Pessoa, noensaio Histórico da Geografia Médica, afirma: “Es-tudos sobre a alimentação em relação à geografiatêm vindo mais abundantemente à luz, talvez de-vido à influência poderosa do notável nutricionis-ta e geógrafo Josué de Castro” (Pessoa, 1983:119).

O espaço, socialmente organizado peloshomens, congrega as marcas impressas por es-sa organização, adquirindo características lo-cais próprias que expressam a diferenciação deacesso aos resultados da produção coletiva (San-tos, 1979). A ocupação do espaço territorial re-fletiria, assim, as posições ocupadas pelos in-divíduos na sociedade e seria conseqüência deuma construção histórica e social, sendo, por is-so, capaz de refletir as desigualdades existentes.

Sem dúvida, o conceito de transmissão pre-serva um conteúdo relacional que não é tãoevidente para a ocorrência das doenças não-transmissíveis ou outros eventos de saúde/do-ença em populações (Czeresnia & Albuquerque,1998). Porém, hábitos e comportamentos con-siderados como fatores causais/protetores pa-ra essas doenças/eventos, tais como fumo, ali-mentação, agentes tóxicos, uso de preservativos,etc., parecem circular de forma diferenciada emgrupos populacionais. E, sem dúvida, esse fatonão depende apenas de variações individuais.

Assim, estudar a relação entre o uso de ca-pacetes e a mortalidade entre motociclistas édiferente de estudar o efeito das leis que obri-gam o uso de capacetes por motociclistas sobrea mortalidade por acidentes de moto, em dife-rentes lugares/espaços (Morgenstern, 1998). Osestudo ecológicos orientados pela concepçãode espaço socialmente organizado tornam evi-dentes os efeitos de processos não perceptíveisno âmbito dos indivíduos (Castellanos, 1998).

A utilização do conceito de espaço redefini-do pela geografia crítica é uma das propostasteórico-metodológicas no âmbito da epidemio-logia que têm tentado integrar o conhecimentobiológico do processo de adoecer aos fenôme-nos sociais. É um esforço que parece bem-su-cedido em enfatizar a função estrutural da di-mensão social do processo saúde/doença, co-mo têm demonstrado vários estudos orienta-dos por essa abordagem. E, principalmente,mostra-se como uma alternativa metodológicapara identificação e análise das necessidadesde populações, buscando-se superar as iniqüi-dades em saúde (Paim, 1997). Contribuir paraa viabilização de mudanças das práticas sani-tárias, subsidiando novos modelos de interven-ção sobre os problemas de saúde pública, semdúvida, é um dos grandes méritos desse esforço.

É preciso, contudo, não perder de vista oalerta das autoras para o fato de que nenhumaestratégia de análise isolada é capaz de darconta da pluralidade dos fatores implicados naocorrência de eventos de saúde e doença naprática das investigações e serão sempre apro-ximações da realidade.

CASTELLANOS, P. L., 1998. O ecológico na epidemi-ologia. In: Teoria Epidemiológica Hoje – Funda-mentos, Interfaces e Tendências (N. Almeida Filho,M. L. Barreto, R. P. Veras & R. B. Barata, org.), pp.129-147, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

CASTRO, J., 1992. Geografia da Fome – Dilema Brasi-leiro: Pão ou Aço. 11a Ed. Rio de Janeiro: Griphus.

CZERESNIA, D. & ALBUQUERQUE, M. F. M., 1998.Limites da inferência causal. In: Teoria Epidemio-lógica Hoje – Fundamentos, Interfaces e Tendên-cias (N. Almeida Filho, M. L. Barreto, R. P. Veras &

Page 19: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 613

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

Instituto de Saúde Coletiva, UniversidadeFederal da Bahia.

Maurício LimaBarreto

O espaço e a epidemiologia: entre o conceituale o pragmático

No movimento de construção da epidemiolo-gia social latino-americana, no decorrer da dé-cada de 70, necessitava-se avidamente de no-vos conceitos que o liberasse das amarras im-postas pelo modelo epidemiológico, surgidono pós-guerra e que se cristalizava a partir dolivro Principles and Methods in Epidemiologyde MacMahon, Pugh and Ipsen (MacMahon etal., 1960), publicado no início da década ante-rior. Nesse contexto, surgem, entre outros, de-bates em torno das desigualdades sociais inter-mediados pelo conceito de classe social ou so-bre a utilização do conceito de espaço na buscade explicação para as conformações geográfi-cas definidas, principalmente, pelas endemias.

Uma revisão da geografia crítica da saúdenos leva a alguns autores fundamentais, comoPavlovsky, Maximilian Sorre e Milton Santos.Os trabalhos de Pavlovsky, parasitologista degrande importância no contexto da antigaUnião Soviética a partir da década de 30, erampouco conhecido fora da cortina de ferro. Pes-quisadores ocidentais de esquerda, após visitasàquele país, passavam a divulgar as idéias pa-vlovskianas. No Brasil, o grande divulgador foio iminente e militante parasitologista SamuelPessoa. Embora a contribuição de Pavlovsky te-nha sido transcendental para o entendimentode muitas idéias da dinâmica dos agentes infec-ciosos, deve-se chamar a atenção para o fato de

que o núcleo de suas idéias, que emergiram deum intenso programa de pesquisa empírica,centrava-se nos agentes infecciosos que circu-lavam como zoonoses em áreas previamenteinabitadas. Historicamente, esse era o momen-to da intensa expansão das fronteiras agrícolase industriais da extensa União Soviética.

Na França, no mesmo período e de formaindependente, um geógrafo, Maxmilian Sorre,com uma vasta obra e contribuições nas maisdiversas áreas da geografia, preocupa-se tam-bém com a questão das doenças infecciosas ebusca entender suas determinações no campode confluência da geografia, das ciências so-ciais e das ciências biológicas, desenvolvendoo conceito de complexo patogênico. Mais tarde,outro autor busca ampliar esse conceito paraos demais problemas de saúde, denominando-o de complexo sócio-patogênico. Porém, naperspectiva da epidemiologia social, é a divul-gação dos trabalhos de Milton Santos, princi-palmente aqueles produzidos a partir da se-gunda metade da década de 70, que tem umimpacto significante, pois trazia no conceito deespaço a possibilidade de articular os comple-xos elementos da dinâmica das sociedades,bem como da sua historicidade. Uma questãoimportante é nos perguntar porque um concei-to tão poderoso, como bem coloca Czeresnia &Ribeiro, teve a sua aplicação geograficamenterestrita à América Latina e tematicamente res-trita a questões relacionadas, quase exclusiva-mente, às endemias. Sem ter tal pretensão,acredito que a busca de resposta para tal inda-gação nos ajuda a entender um pouco mais dospercalços relativos à evolução da epidemiolo-gia em nosso continente.

A reafirmação de uma geografia nova emcontraposição à geografia tradicional foi acom-panhada de profundos debates, que perpassa-ram por profundas redefinições das bases teó-ricas desta disciplina. Embora se deva enfati-zar, como o fazem autores relacionados com ageografia nova, que as tendências hegemôni-cas no interior da geografia continuam a diri-gir-se para outras direções, preocupadas comas questões locacionais e com o desenvolvi-mento dos métodos quantitativo, deslocadasdos fundamentos teóricos postos em conceitoscomo o de espaço. Os defensores da geografianova fizeram um trabalho radical de crítica aomodelo hegemônico. Nesse percurso e tendoem vista o limite aqui definido, eu gostaria dereportar-me a dois trabalhos fundamentais pa-ra entender o processo de gestação da geogra-fia nova: o primeiro, Explanation in Geography,por David Harvey (Harvey, 1969), na Inglaterra;e o outro, La Production de l’Espace, por Henry

R. B. Barata, org.), pp. 63-78, Rio de Janeiro: Edi-tora Fiocruz.

MORAES, A. C. R., 1990.Geografia: Pequena HistóriaCrítica. São Paulo: Editora Hucitec.

MORGENSTERN, H., 1998. Ecologic studies. In: Mod-ern Epidemiology (K. J. Rothman & S. Greenland,eds.), pp. 459-480, Philadelphia: Lippincott-RavenPublishers.

PAIM, J. S., 1997. Abordagens teórico-conceituais emestudos de condições de vida e saúde: Notas parareflexão e ação. In: Condições de Vida e Situaçãode Saúde: Saúde e Movimento (R. B. Barata, org.),pp. 7-30, Rio de Janeiro: ABRASCO.

PESSOA, S., 1983. Histórico da geografia médica. In:Ensaios Médico-sociais (J. R. F. de A. Bonfim & D.C. da Costa Filho, org.), pp. 94-121, Rio de Janei-ro: Guanabara Koogan.

SANTOS, M., 1979. O Espaço Dividido: Os Dois Circuitosda Economia Urbana dos Países Subdesenvolvidos.Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora.

Page 20: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.614

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

Lefebvre (Lefebvre, 1991), na França. Ambos osautores, enquanto intelectuais de sólida for-mação marxista, foram ambientados em dife-rentes tradições epistemológicas e científicas.Harvey, geógrafo, herdeiro da tradição induti-vista anglo-saxônica, centra-se na idéia de queé necessário trabalhar com os fatos, processá-los, analisá-los. Vai além, porém, ao conceberque estes só passarão a ter pleno sentido quan-do alicerçados por sólidas teorias. O autor, em-bora reconheça a importância da rota teoréti-co-dedutiva, enfatiza que teorias somente al-cançam status científico quando podem gerarhipóteses passíveis de serem testadas, ou se-ja, que sigam as etapas do método científico.Acontecem casos em que a teoria antecede aosmétodos que irá testá-lo, porém existem tam-bém teorias que nunca disporão de tais méto-dos. Portanto, nunca serão científicas. Nessa li-nha, em um trabalho seguinte, no qual buscaconstruir uma teoria sobre a cidade, Harvey(1973) pontua que “a ponte entre as imagina-ções sociológica e geográfica somente pode serconstruída se possuirmos instrumentos adequa-dos”(Harvey, 1973:37). Outros aspectos impor-tantes considerados pelo autor e que podemservir de esquema para análise de outras disci-plinas são: a) a relação entre os argumentosmetodológicos da geografia comparados com osdo conhecimento, em geral; b) o relacionamen-to entre as afirmações feitas pelos metodologis-tas da geografia e a prática dos geógrafos, comorevelado pelo seu trabalho empírico; c) o rela-cionamento entre as formas explanatórias acei-tas pelos geógrafos e as formas explanatóriasaceitas pelos praticantes de outras disciplinas.

O ambicioso programa proposto por Lefeb-vre (l991), um filósofo, tinha por objetivo cons-truir ou descobrir uma unidade teórica entrecampos que são apreendidos separadamente,quais sejam: o físico, o mental e o social. Adver-te que, na busca dessa teoria unitária, não sepoderia descartar os inevitáveis conflitos den-tro do conhecimento. Como conseqüência,controvérsias e polêmicas seriam inevitáveis.Questiona a razão pela qual os esforços deconstrução de uma teoria unificada de espaço,anunciados em épocas passadas, haviam sidoabandonados. O seu projeto emerge do pro-fundo diálogo e reflexões em torno de Hegel,Marx, Nietzsche, Freud, entre outros, da suaaproximação com os movimentos artísticos eda sua militância política e, ao final, deixa cla-ro que “este livro foi informado desde o seu iní-cio até o fim por um projeto…de uma sociedadediferente, um diferente modo de produção, aon-de a prática social seria governado por diferentesdeterminações conceituais” (Lefebvre, 1991:419).

Nos trabalhos de Milton Santos (Santos,1980), que, além de conter contribuições origi-nais para a constituição da geografia nova, seráo difusor dessas idéias em nosso meio, siste-matiza-se o conceito de espaço que será aco-lhido por alguns epidemiologistas que enten-diam que este se ajustava bem ao projeto deuma epidemiologia social. Alguns poucos tra-balhos epidemiológicos tem sido produzidosutilizando-se desse referencial. É importantechamar a atenção para o fato de que, na intro-dução do livro que inaugura esta fase (Santos,1980), o autor expressa que ali iniciava o seu“projeto ambicioso”, consagrado ao tema do“espaço humano”, o qual ele propunha comple-tar em etapas, sem desconhecer os riscos quese colocavam para o cumprimento da tarefa.

Parece-me que, apesar do vigor do debateintelectual dos programas de trabalho filosóficose científicos de onde paulatinamente emerge oconceito unificado de espaço, o qual permitirápensar em uma nova geografia, esta não con-segue firmar-se como hegemônica, porém deixamarcas na organização disciplinar da geografia.O deslocamento dessa experiência para a epi-demiologia nos mostra que ainda existe um lon-go caminho a ser percorrido, bastando observar-mos como os debates epistemológicos e meto-dológicos, no seu interior, ainda são incipientes.

Parafraseando Harvey (1973), a ponte entreas imaginações epidemiológica e geográficasomente pode ser construída se possuirmos osinstrumentos adequados, veremos que, quei-ramos ou não, em verdade, existem duas pon-tes. Por uma, circula o conceito de espaço (de-rivado da geografia nova), o qual, apesar da suaimportância, como bem pontuado no artigo emdebate, tem tido, até o momento, uso limitadono campo da epidemiologia. Na outra, com trá-fego intenso, vemos o florescimento do uso detécnicas geocartográficas e geoestatísticas emtorno dos denominados sistemas de informa-ções geográficos – SIGs (derivados da geografiatradicional). Várias questões podem emergirdesta constatação (inclusive quanto à sua vera-cidade), porém, para os praticantes da epide-miologia, não tenho dúvida de que a questãomais imediata na hora da travessia é: tenho deoptar por uma das duas ou posso circular livre-mente entre elas?

HARVEY, D., 1969. Explanation in Geography. Lon-don: Edward Arnold.

HARVEY, D., 1973. Social Justice and the City. London:Edward Arnold.

LEFEBVRE, H., 1991. The Production of Space. Oxford:Blackwell.

SANTOS, M., 1980. Por uma Geografia Nova. SãoPaulo: Editora Hucitec.

Page 21: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 615

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

Departamento de Medicina Social, SantaCasa de São Paulo.

Rita BarradasBarata

As autoras descrevem um amplo panoramaacerca da utilização do conceito de espaço empesquisas epidemiológicas, pontuando as trans-formações históricas do conceito ao longo dosúltimos dois séculos. A tese central do artigo éa de que no âmbito da epidemiologia o concei-to de espaço foi construído, em cada momen-to, como uma decorrência da teoria da doença,isto é, espaço é tomado mais como uma noçãoinstrumental, subordinada à concepção de do-ença dominante em cada período histórico.

Para problematizar a orientação para a quala argumentação foi construída poderíamosformular a seguinte questão: Em que epistemee a partir de quais elementos se constrói a teo-ria da doença em cada momento? Esta formu-lação nos levaria a inverter o foco, dirigindonossa indagação no sentido de verificar comoas diferentes concepções da categoria espaçocontribuíram, em diferentes momentos histó-ricos, para a construção das teorias da doença.Assim, espaço passaria a ter um papel na con-figuração do pensamento epidemiológico, nãoapenas de caráter instrumental e subordinado,mas, antes, um papel ativo e propriamenteepistêmico.

Na fase de constituição da epidemiologiacomo disciplina científica, a descrição da dis-tribuição das doenças nas coletividades de-sempenhou papel fundamental no sentido depermitir a formulação de hipóteses capazes deorientar o estudo dos determinantes. Toda des-crição necessita, do ponto de vista formal, dascategorias espaço e tempo para poder se reali-zar. Segundo Kant, ambas seriam formas purasde intuição a priori necessárias para a apreen-são sensível dos fenômenos. Sem um conceito,absoluto ou relativo, de espaço e tempo torna-se impossível diferenciar, delimitar, definir ob-jetos ou fenômenos passíveis de investigaçãoobjetiva, ou o uso das demais categorias do en-tendimento (esquemas transcendentais kan-tianos). Assim, a construção de uma epidemio-logia descritiva, destinada a investigar a distri-buição das doenças nas populações, requer umconceito de espaço para se concretizar, aindaque o espaço seja visto meramente como cená-rio onde os fatos se desenrolam, como algo ex-terno e estático em referência ao objeto de es-tudo.

No início do século XX, sob a influência darevolução relativista na física, os diferentescampos científicos passam a tratar espaço etempo como categorias interdependentes, su-perando a dicotomia anteriormente existente.O desenvolvimento das concepções sistêmicas

em diferentes âmbitos disciplinares introduz anoção de processo no tratamento de diversosfenômenos. No âmbito da epidemiologia, prin-cipalmente nos estudos acerca das doençastransmissíveis, o conceito de mecanismo de re-servatório ou cadeia do processo infecciosoexemplifica essa nova tendência na qual espa-ço e tempo são referenciais relativos para acompreensão de processos de disseminação datransmissão.

Sob a influência crescente do materialismohistórico, principalmente de suas versões mili-tantes dos movimentos sociais das décadas de20, 30 e 40, a categoria espaço vai paulatina-mente perdendo força, restando apenas a cate-goria tempo, subjacente à noção de processo,na explicação de diferentes tipos de fenôme-nos. Assiste-se a um domínio quase que abso-luto da dimensão temporal em muitos camposdo conhecimento. O modelo da história naturaldas doenças poderia ser tomado como exem-plar dessa fase. A sucessão de fases desenrola-se cronologicamente, sendo possível abstrairda explicação a referência a qualquer espaçoconcreto.

Com o movimento da chamada nova geo-grafia, no pós-guerra, procura-se restituir aopensamento materialista e histórico a dimen-são espacial abandonada no período anterior.Esse movimento se traduz, na epidemiologia,em estudos que trabalham com o conceito deespaço socialmente construído, em seus dife-rentes matizes de expressão. Passa-se, então,de um espaço pensado inicialmente como umareferência absoluta, um cenário, evoluindo-separa a concepção de um espaço relativo neces-sário apenas para a apreensão dos fenômenos,para um espaço relacional, lugar de construçãode relações dos homens entre si e de criação desua vida material e imaterial.

Enfim, é possível pensar as relações entre acategoria espaço e as explicações epidemioló-gicas tanto pelo vetor doença–espaço quantopelo vetor espaço–doença. Consideramos, en-tretanto, que a segunda perspectiva pode per-mitir a compreensão das origens do pensamen-to sobre saúde–doença, articulando esse saberao conhecimento científico prevalente em ca-da período histórico, enquanto a primeira pers-pectiva aprofunda e investiga a configuraçãoassumida por determinadas categorias explica-tivas no interior do campo disciplinar. Trata-se, portanto, de perspectivas complementaresmais do que antagônicas na elucidação dos pro-cessos de constituição de saberes específicos.

Page 22: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

CZERESNIA, D. & RIBEIRO, A. M.616

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

Em primeiro lugar, desejo agradecer aos edito-res do Cadernos de Saúde Pública, por terempropiciado a oportunidade deste debate, e aoscolegas que participaram enriquecendo a dis-cussão. É um privilégio poder discutir este arti-go com um grupo de especialistas que tanto jácontribuiu com estudos a respeito deste tema.Como observou Christovam Barcellos, uma sé-rie de trabalhos centrados na abordagem espa-cial dos problemas de saúde foi publicada nosCadernos de Saúde Pública nos últimos anos, eo debate neste momento é uma forma de esti-mular o diálogo entre diferentes autores.

O artigo se propôs a realizar uma interpre-tação sobre a utilização do conceito de espaçoem epidemiologia, fazendo uma revisão dosprincipais autores cujo pensamento orientouos estudos sobre o tema na América Latina. Aodelimitar-se a análise em Pavlovsky, Max Sorre,Samuel Pessoa e Milton Santos, assumiu-se umrecorte que, sem dúvida, implicou reduções.Essa escolha considerou que eles foram os quetiveram maior influência no desenvolvimentodas investigações sobre saúde e espaço, masnão teve a pretensão de negar ou muito menosdesqualificar a importância de outros, espe-cialmente alguém do porte de Josué de Castro,lembrado por Maria de Fátima Militão de Albu-querque.

O subtítulo do artigo esclarece que se tratade uma interpretação, isto é, o texto não pre-tende falar em nome da verdade. Ao contrário,é explicitamente um ponto de vista sobre aquestão, e isso justifica mais ainda a pertinên-cia e oportunidade do debate.

O argumento central do texto é o de que ateoria da doença orienta epistemologicamentea concepção do espaço em epidemiologia. Oconceito de transmissão e a idéia de circulaçãode agentes de doença no espaço foram funda-mentais para essa construção. O conceito deespaço foi utilizado principalmente no estudode doenças transmissíveis, mais especifica-mente as doenças endêmicas transmitidas porvetores. O modo de transmissão dessas doen-ças permite que se alcance mais materialidadenas explicações das relações entre elementosdo corpo e do espaço.

O autor responde The author replies

Rita Barata interroga que episteme constrói ateoria da doença e se essa episteme não se de-fine inicialmente por uma dada concepção doespaço. Será que há uma anterioridade do con-ceito de espaço em relação ao de corpo? Ou se-ja, é o conceito espaço que determina o de cor-po ou é o de corpo que determina o de espaço?O artigo pauta-se na idéia de que a concepçãode espaço está vinculada à de corpo. O proces-so de fragmentação do conhecimento foi o defragmentação do espaço, do corpo e de seu mo-vimento (o tempo). Diferentes sentidos são da-dos ao corpo, ao tempo e ao espaço, conformea perspectiva de quem o observa.

A medicina configurou-se mediante umacompreensão dessa relação, expressa nas teo-rias de doença. A epidemiologia, como umadisciplina articulada à medicina e ao conceitomoderno de doença, estrutura-se com base naidéia do corpo orgânico. A relação entre corpoe espaço reduziu-se aos elementos do espaçocapazes de se integrarem aos elementos fisico-químicos mediante os quais o corpo é apreen-dido. As inúmeras tentativas de ampliar as con-cepções de espaço e de tempo no interior dadisciplina esbarraram nos limites impostos poressa construção.

Localizar esse limite esclarece a naturezados desafios que se apresentam. Um dos prin-cipais é lidar com o homem em sua integrida-de. A visão dual do homem, que o divide emcorpo e mente, está na origem desta questão. Oproblema que restringiu historicamente a abor-dagem da epidemiologia não diz respeito ape-nas à redução da concepção do espaço, ou dotempo, mas também à concepção do homem edo seu corpo. Não é à toa que no Congresso deSaúde Coletiva do ano 2000 estará em foco o te-ma do sujeito.

O sujeito não foi devidamente consideradona epidemiologia, que se constituiu conside-rando o homem um organismo, articulando-sea uma clínica configurada privilegiadamentecom base na microbiologia e na imunologia. Aemergência do conceito de risco aprofundou oprocesso de diluição das relações entre o ho-mem e as suas circunstâncias. A medida da pro-babilidade da ocorrência entre exposição eevento não integra uma explicação acerca doque ocorre na relação entre corpo e meio.

“Transmissão” ainda preserva um elo entreos dois, mesmo reduzindo esse elo aos elemen-tos do espaço capazes de incorporarem-se àapreensão fisiopatológica do corpo. Sem dúvi-da, o conceito de risco modificou a relação daepidemiologia contemporânea com a teoria dasdoenças, como aponta José Ricardo Ayres. Pes-soas, tempos e espaços tornam-se ainda mais

Dina CzeresniaAdriana MariaRibeiro

Page 23: O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação ... · logam com facilidade. Mesmo tentando pensar o espaço como totalidade integrada, esta é ex-pressa através de conceitos

O CONCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIOLOGIA 617

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(3):595-617, jul-set, 2000

fragmentados e desconectados. O deslocamen-to da epidemiologia no sentido de privilegiar asanálises de risco é um dos principais condicio-nantes do uso restrito e da incipiente discussãoteórica acerca da categoria espaço, apesar deesta ser tão básica na constituição da discipli-na, como destacou Maurício Barreto.

A perspectiva de ampliar o uso do conceitode espaço vincula-se à de construir formas detrabalhar os problemas epidemiológicos combase em abordagens que transitem entre teo-rias e métodos elaborados por distintas disci-plinas conforme ressaltou Eduardo M. Freesede Carvalho. É através dessa abertura que sepode resgatar também o sujeito. Mas a possibi-lidade de integrar sujeito (pessoa), tempo e es-paço, na compreensão dos problemas de saúdee doença das populações ainda esbarra nos li-mites da(s) teoria(s) da doença.

As importantes transformações, tanto nosproblemas sanitários como também no discur-so científico contemporâneo, têm aberto novasquestões, demandando novas alternativas parapensar a relação entre espaço e fenômenos desaúde. Estas não excluem a pertinência dos mo-delos de análise de risco. Maria de Fátima Mili-tão de Albuquerque comenta, por exemplo, aimportância dos estudos ecológicos, que per-mitem relacionar eventos de saúde a aspectosespecíficos da organização do espaço urbano,como o estudo dos efeitos da aplicação de leisque regulam o trânsito sobre a mortalidade poracidentes.

A questão é considerar devidamente os li-mites do método epidemiológico e não reificaras suas possibilidades, incrementadas por meiode recursos de programas computacionais ca-da vez mais poderosos. Isso diz respeito aos

modelos de análise de risco e também à análi-se espacial e é um dos pontos mais ressaltadosnas intervenções deste debate. As técnicas degeoprocessamento têm viabilizado o estudo deespaços crescentemente particularizados. Afragmentação dos lugares, as inúmeras alter-nativas de utilização de bancos de dados e deapresentação de mapas, tabelas e gráficos, sãotambém evidência da relatividade das verda-des que se enunciam através deles.

Se, por um lado, não há como negar a po-tencialidade desses recursos, por outro lado, es-tes devem ser utilizados ancorados em uma só-lida base conceitual devidamente explicitada.Conceitos e métodos são sempre redutores, e éimportante ter clareza dos limites do conheci-mento construído. O melhor método é aquelemais adequado às perguntas que se quer res-ponder.

Mauricio Barreto finaliza sua intervençãocom essa questão apresentada também porChristovam Barcelos e Eduardo Freese. Comoconciliar a necessidade de maior desenvolvi-mento teórico do conceito de espaço e seu usona epidemiologia com o intenso aumento dosrecursos técnicos em geoprocessamento? Pen-so que se deve buscar transitar entre a reflexãoteórica e o desenvolvimento de técnicas, e,além disso, buscar se integrar ao máximo a ou-tras áreas de conhecimento. Esse trânsito não étarefa de um pesquisador isolado, e a dificul-dade em realizá-lo diz respeito, principalmen-te, a disputas de competência. Não fosse a im-portante presença dessas disputas e a tendên-cia hegemônica de se demarcar a epidemiolo-gia como uma disciplina estritamente técnica,acredito que a oposição entre teoria e métodose revelaria uma falsa questão.