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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO
O CONCEITO DE JUSTIÇA NA FILOSOFIA ARISTOTÉLICA
TIAGO MENDONÇA DOS SANTOS
DECLARAÇÃO
“DECLARO QUE A MONOGRAFIA ESTÁ APTA PARA DEFESA EM BANCA PUBLICA EXAMINADORA”.
ITAJAÍ (SC), 08 de novembro de 2010.
___________________________________________ Professor Orientador: Josemar Soares, Dr.
UNIVALI – Campus Itajaí-SC
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO
O CONCEITO DE JUSTIÇA NA FILOSOFIA ARISTOTÉLICA
TIAGO MENDONÇA DOS SANTOS
Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.
Orientador: Professor Dr. Josemar Soares
Itajaí, novembro de 2010
AGRADECIMENTO
Ao princípio de Vida que continuamente nos impele a um caminho de contínuo desenvolvimento, aperfeiçoamento, à descoberta de quem verdadeiramente somos e de onde se encontra a felicidade própria a cada um de nós;
Ao prof. Dr. Josemar Soares, mais do que orientador deste trabalho, o Mestre externo que nestes cinco anos de convivência, trabalho e muito aprendizado foi e continuará sendo o estímulo ao encontro do Mestre interno que habita em nós;
À Dra. Aulia Esper, pelo exemplo de pessoa e pelo contínuo estímulo à tomada de uma nova atitude em relação à vida em que o sucesso profissional e pessoal tornam-se perfeitamente conciliáveis;
Aos meus pais, pela formação que me foi dada, que possibilitou a chegada neste momento em que se conclui mais esta importante fase da vida;
À Direção do CEJURPS, na pessoa do Prof. Dr. José Carlos Machado, pelo espaço de aprimoramento concedido; à Coordenação do Curso de Direito, na pessoa do Prof. MSc. Osmar Dinis Facchini; e à UNIVALI, na pessoa do Reitor Prof. Dr. Mário Cesar dos Santos;
Ao prof. Dr. Paulo Márcio Cruz, com quem muito pude aprender durante os dois projetos de pesquisa desenvolvidos sob sua orientação;
Ao prof. MSc. Natan Ben-Hur Braga pela atenção, pela confiança e pelas grandiosas oportunidades concedidas e a todos os professores que contribuíram para este momento;
Ao Dr. Rogê Macedo Neves, ao Dr. Norival Acácio Engel e ao Dr. Cláudio Valdyr Helfenstein, pelo exemplo de caráter e pela oportunidade da vivência prática no universo jurídico;
3
À Profa. MSc. Maria da Graça Mello Ferracioli, com quem muito pude aprender durante os primeiros anos da faculdade e também que nos cedeu carinhosamente seu espaço para tantas inesquecíveis comemorações.
À Profa. MSc. Fabiana de Bittencourt Rangel, com quem pude criar o Grupo de Estudos em Psicologia Organizacional, projeto que foi muito marcante para mim e que tem sido na atualidade a tantas outras pessoas.
Ao Tarcísio, à Bruna e ao Renan, verdadeiros amigos que pude conhecer e com os quais pude continuamente crescer durante os anos deste curso, pelo contínuo estímulo a, juntos, tomarmos o caminho do sucesso nesta existência;
Ao Grupo Paidéia, espaço onde pude refundar o meu modo de ver a minha própria vida e o mundo que me circunda, bem como onde começou minha caminhada rumo à construção de uma vida de realização e a todos aqueles que atualmente estão a percorrer este caminho de formação e de aprimoramento e que carregam adiante este projeto de formação humana.
A todos aqueles que, pelo apoio e pelo trabalho, tiveram marcante influência no desenvolvimento da Revista Filosofia do Direito e Intersubjetividade, primeira revista criada pela graduação em Direito da UNIVALI, projeto que me orgulho de, junto ao prof. Josemar Soares, ser o seu criador.
4
DEDICATÓRIA
Dedico esta obra àqueles que têm a coragem de olhar sinceramente para si mesmos e, neste processo, encontram o estímulo necessário para a contínua e incessante construção da excelência da própria perfeição.
5
“Παντεζ ανθρωποι του ειδεναι
ορεγονται ϕυσει”
“Todos os homens, por natureza, tendem ao saber”
Aristóteles. Metafísica. A. 980ª.
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte
ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do
Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de
toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
Itajaí , 08 de novembro de 2010
Tiago Mendonça dos Santos Graduando
PÁGINA DE APROVAÇÃO
A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale do
Itajaí – UNIVALI, elaborada pelo graduando Tiago Mendonça dos Santos, sob o
título O Conceito de Justiça na Filosofia Aristotélica, foi submetida em [Data] à banca
examinadora composta pelos seguintes professores: [Nome dos Professores ]
([Função]), e aprovada com a nota [Nota] ([nota Extenso]).
Itajaí, novembro de 2010
Prof. Dr. Josemar Soares Orientador e Presidente da Banca
Profa. MSc. Fabiana de Bittencourt Rangel Coordenação da Monografia
ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS
An. Post. An. Pr. Cat. De An. De Int. Eth. Eud. Eth. Nic.
Analytica Posteriora Analytica Priora Categoriae De Anima De Interpretatione Ethica Eudemia Ethica Nicomachea
M. M Magna Moralia Met. Phys.
Metaphysica Physica
Pol. Politica Reth. Soph. El. Top.
Rethorica Sophistici Elenchi Topica
SUMÁRIO
RESUMO........................................................................................... 11
INTRODUÇÃO .................................................................................. 13
Capítulo 1 ......................................................................................... 15
O SISTEMA FILOSÓFICO ARISTOTÉLICO ..................................... 15
1.1 A MODERNA INTERPRETAÇÃO DO PENSAMENTO ARISTOTÉLICO ..... 16
1.2 A SISTEMÁTICA FILOSÓFICA DE ARISTÓTELES ..................................... 19
1.3 ELEMENTOS BASILARES PARA O ESTUDO DA FILOSOFIA PRÁTICA DE ARISTÓTELES .................................................................................................... 22
1.3.1 A METAFÍSICA ............................................................................................... 22
1.3.2 O ÓRGANON .................................................................................................. 26
1.3.3 O DE ANIMA .................................................................................................. 32
Capítulo 2 ......................................................................................... 35
A FILOSOFIA PRÁTICA ARISTOTÉLICA E SUAS PRINCIPAIS DISCIPLINAS .................................................................................... 35
2.1 A ÉTICA ......................................................................................................... 36
2.1.1 AS EXCELÊNCIAS MORAIS ............................................................................... 39
2.1.2 AS EXCELÊNCIAS INTELECTUAIS ...................................................................... 47
2.1.3 O ACÚMULO DE BENS EXTERIORES, A AMIZADE, O PRAZER E A FELICIDADE ......... 51
2.2 A POLÍTICA ................................................................................................... 58
Capítulo 3 ......................................................................................... 67
O CONCEITO DE JUSTIÇA NA FILOSOFIA ARISTOTÉLICA ......... 67
x
3.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A JUSTIÇA ENQUANTO VIRTUDE: A JUSTIÇA UNIVERSAL ......................................................................................................... 68
3.2 O JUSTO EM SENTIDO PARTICULAR: JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E CORRETIVA ........................................................................................................ 72
3.3 JUSTIÇA DOMÉSTICA E JUSTIÇA POLÍTICA ............................................ 78
3.4 A VOLUNTARIEDADE DO AGENTE COMO CARACTERÍSTICA DO ATO INJUSTO .............................................................................................................. 80
3.5 A EQUIDADE COMO COMPLEMENTO DA JUSTIÇA ................................. 83
3.6 A RELAÇÃO ENTRE AMIZADE DE JUSTIÇA ............................................. 84
3.7 A POSIÇÃO DO CONCEITO DE JUSTIÇA NO SISTEMA FILOSÓFICO ARISTOTÉLICO ................................................................................................... 86
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 89
REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ........................................... 92
RESUMO
Aristóteles é o primeiro pensador a considerar o conceito de
Justiça e todas as dimensões que o envolvem de maneira crítica e logicamente
encadeada, motivo pelo qual sua definição serviu de base para a construção do
sistema jurídico romano, bem como foi objeto de discussão por grande parte dos
filósofos que o sucederam na matéria. Todavia, para se entender o que Aristóteles
entendia por Justiça e a função desta categoria no interior de seu pensamento deve-
se ter em conta todo seu sistema filosófico e a posição da Justiça neste. Assim,
propôs-se neste trabalho discorrer sobre o conceito de Justiça e suas várias facetas
no interior da Filosofia de Aristóteles. Para o alcance deste objetivo desenvolveu-se
uma pesquisa bibliográfica pautada no método indutivo. Ao término da pesquisa
constatou-se que o conceito de Justiça, entendido de maneira irrestrita como a
excelência moral perfeita, por se tratar da exteriorização da perfeição ética nas
relações humanas, é elemento extremamente importante para a construção do
homem feliz, objetivo a ser alcançado pela Ética. Como as relações humanas
envolvem também a concorrência de duas pessoas a um determinado cargo, ou a
necessidade de distribuição de bens, de honrarias, ou até mesmo de algum tipo de
assistência necessária, além do conflito de interesses, a Justiça também precisa ser
encarada de uma forma particular, de onde nasce a noção de Justiça como uma
proporção geométrica na distribuição das coisas da cidade (Justiça Distributiva) ou
como uma correção dos excessos tomados por uma das partes nas relações
humanas com base em uma proporção aritmética (Justiça Corretiva). Por regular as
relações humanas, a noção de Justiça também se relaciona com a Política, aliás, é o
grande objetivo desta ciência. No âmbito das organizações sociais a Justiça tem
relação com a gestão do poder, isto ocorre na família (Justiça Doméstica) e mais
ainda com o exercício do poder político, na busca por tratar os iguais como iguais e
os desiguais como desiguais, há uma parte natural, existente em todos os povos e
que deve ser obedecida daquela forma, e outra parte legal, que a princípio é
indiferente, mas quando há uma determinação da cidade perde este caráter,
devendo ser obedecida por todos. Aristóteles, por fim, traz a noção da Equidade
como uma correção desta Justiça, nos momentos em que o legislador não previu
12
determinada situação, seja pela inexistência de documento que trate do assunto, ou
pelo caráter demasiado generalista da lei. Nestas situações o juiz deve se valer da
Equidade para dizer o que é justo às partes. Constatou-se assim que o conceito de
Justiça de Aristóteles é o meio pelo qual se conectam as duas doutrinas práticas, de
modo o homem que sabe conduzir bem sua vida, o homem bom, seja também o
cidadão que conduz seus concidadãos à melhora de suas vidas, na direção da
felicidade.
Palavras-chave: 1) Justiça. 2) Ética. 3) Política. 4) Ciências Práticas. 5) Felicidade.
13
INTRODUÇÃO
A presente Monografia tem como objeto discorrer sobre o
conceito de Justiça e suas várias facetas dentro do sistema filosófico de Aristóteles.
O seu objetivo é, com base no estudo do pensamento
aristotélico, definir qual é o conceito de Justiça proposto por Aristóteles e que
relação esta definição possui com a filosofia do pensador, especialmente no que
pertine ao estudo das Ciências Práticas, a Ética e a Política.
Para tanto, principia–se, no Capítulo 1, apresentando o sistema
filosófico aristotélico, as principais obras e áreas do conhecimento que o compõem,
bem como apresentando elementos de três disciplinas a serem consideradas no
estudo das Ciências Práticas e, dentro destas, do conceito de Justiça, sendo estas a
Metafísica,a Lógica (ou Analítica) e a Psicologia.
No Capítulo 2, por sua vez, são apresentadas as duas
principais áreas que compõem a Filosofia Prática, sendo estas a Ética e a Política.
Neste escopo, serão apresentados os principais temas considerados por ambas as
doutrinas, o objeto de estudo de cada uma delas, bem como a finalidade que
objetivam alcançar.
Já no Capítulo 3, com base nos elementos apresentados nos
capítulos anteriores se trabalhará sobre o conceito de Justiça dentro da Filosofia
Aristotélica e todas as suas implicâncias no âmbito da Filosofia Prática.
O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as
Considerações Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos destacados,
seguidos do estímulo à continuidade das pesquisas, estudos e reflexões sobre o
pensamento aristotélico como base para a fundação do critério de Justiça ocidental.
Oportuno salientar que não é à toa que Villey considera que o
sucesso do Direito Romano, enquanto organização lógica, é devido à sua
fundamentação na teoria da justiça de Aristóteles e que quando estes substituíram
14
estas noções por novas concepções filosóficas que influenciaram a sociedade
romana, houve a queda do Direito Romano.1
Para a presente monografia foram levantadas as seguintes
hipóteses:
1 – o pensamento de Aristóteles compõe um sistema filosófico
e, deste modo, para a compreensão do significado de Justiça é necessário se
analisar anteriormente as bases da filosofia do Estagirita;
2 – a noção de Justiça é primordial para o sucesso das
Ciências Práticas, já que estas visam o desenvolvimento do indivíduo;
3 – para que se possa desenvolver indivíduos justos é preciso
um tipo de formação adequada neste sentido.
Esta pesquisa foi desenvolvida com base no método indutivo2,
por meio da pesquisa bilbliográfica3.
Destaca-se, outrossim, que as categorias fundamentais para a
monografia, bem como seus conceitos operacionais serão apresentados no decorrer
do texto deste trabalho monográfico.
1 VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Tradução de Claudia Berliner.
São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 73, 74. 2 “[...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção
ou conclusão geral [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 10 ed. Florianópolis: OAB-SC editora, 2007. p. 86.
3 “Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 209.
15
Capítulo 1
O SISTEMA FILOSÓFICO ARISTOTÉLICO
Para se poder discutir o conceito de Justiça dentro do
pensamento aristotélico, não se pode deixar de considerar antes a maneira pela qual
o Estagirita concebia a ordem do mundo, que se refletiu na forma pela qual ele
estruturou o conhecimento humano dentro de sua filosofia.
Assim, propõe-se neste primeiro capítulo apresentar os
principais elementos necessários para uma interpretação da formação do
pensamento aristotélico, bem como a maneira pela qual Aristóteles dividiu o
conhecimento humano em sua filosofia, o que será de primordial auxílio para se
definir em que local específico este tratou sobre a Justiça e qual a relação desta com
a totalidade de seu pensamento.
Cumpre desde já destacar que as obras aristotélicas são
divididas em dois particulares grupos, o primeiro composto pelas obras chamadas
‘exotéricas’, dirigidas ao grande público, às pessoas de fora de sua escola,
compostas tanto por obras formuladas no período acadêmico de Aristóteles, em sua
maioria em forma de diálogo, quanto por obras de períodos posteriores. A maioria
destas obras acabou se perdendo durante a história, sendo que importantes
fragmentos destas foram sendo encontrados e auxiliaram na melhor compreensão
do pensamento de Aristóteles.
Outro grupo é composto pelas obras ‘esotéricas’, destinadas
aos seus discípulos, das quais a maioria delas encontra-se preservada até a
atualidade. Estas são compostas especialmente pelo conteúdo que era passado por
Aristóteles durante suas aulas no Liceu.
Destaca-se que nesta monografia serão utilizadas somente
obras consideradas como esotéricas de Aristóteles, apesar de que houveram
16
tratados exotéricos que também consideraram o conteúdo aqui exposto, tal como
fazem prova os fragmentos encontrados do diálogo Sobre a Justiça, entre outros.
1.1 A MODERNA INTERPRETAÇÃO DO PENSAMENTO ARISTOTÉLICO
A formação do pensamento aristotélico pode ser caracterizada
por três específicos momentos, partindo-se do Aristóteles acadêmico, discípulo de
Platão, vivendo por vinte anos vinculado à Academia; o Aristóteles como acadêmico
dissidente, no período posterior à morte de Platão, em que o Estagirita esteve entre
Assos e Mitilene, e no qual foi ainda o tutor de Alexandro Magno; e depois, de volta
a Atenas, Aristóteles funda sua própria escola, o Liceu, período onde foram
produzidas as principais obras que restaram intactas até os dias atuais.4
Diógenes Laércio escreve que “Aristóteles foi o mais genuíno
discípulo de Platão”5 e se o faz é justamente devido ao fato de o Estagirita não
limitar-se aos cânones do pensamento platônico, mas buscando superar o espírito
do mestre, passou a trilhar seu caminho intelectual próprio, que é o que representa a
trajetória de formação do pensamento aristotélico.6 Sobre a evolução do
pensamento de Aristóteles, considera Bittar: “Seus escritos demonstram um natural
e gradativo amadurecimento que parte das reflexões platônicas numa caminhada
incessante e ininterrupta rumo à maturidade dos tratados científicos”7.
Quanto à interpretação da evolução do pensamento aristotélico
é marcante a publicação em 1923 da obra Aristoteles, Grundlegung einer Gescichte
seiner Entwicklung8, a qual rompe com a tradição anterior, o chamado método
sistemático-unitário, que entendia que as ideias de Aristóteles formavam um bloco
4 REALE, Giovanni. Storia della Filosofia Antica: II. Platone e Aristotele. 9. ed. Milano: Vita e
Pensiero, 1997. 2.v. p. 379, 380. 5 LAÉRCIO apud ________. Introdução a Aristóteles. Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições
70, 2001. p. 13. 6 REALE, Giovanni. Storia della Filosofia Antica: II. Platone e Aristotele. p. 383. 7 BITTAR, Eduardo C.B. A Justiça em Aristóteles. 3.ed.rev.e amp. Rio de Janeiro : Forense, 2005.
p.26. 8 JAEGER, Werner. Aristóteles: bases para la historia de su desarrollo intelectual. Traducción de
José Gaos. México: Fondo de Cultura Económica, 2000.
17
inamovível desde o princípio ao fim, para considerar a trajetória, desde um
Aristóteles seguidor das ideias de Platão até a superação destas concepções por
aquilo que representou a filosofia aristotélica legada até a atualidade.
Jaeger critica o antigo método de interpretação, pois este seria
não-histórico, em troca disto, a proposta do novo método, chamado histórico-
genético era considerar, ao se interpretar as obras aristotélicas, a gênese histórica e
o desenvolvimento do pensamento do Filósofo.
A conclusão é óbvia. Se esta maneira de ver, intimamente consistente, é insustentável em conjunto; se Aristóteles começou por atravessar um período platônico, que durou vinte anos; se escreveu obras inspiradas pelo espírito de Platão e defendeu a visão de universo deste, são destruídas todas nossas ideias anteriores acerca da natureza de nosso homem e necessitamos desenvolver um novo conceito, de sua personalidade e de sua história, como das forças que moldaram sua filosofia. De fato, este mito de um Aristóteles frio, estático, imutável e puramente crítico, sem ilusões, experiências, nem história, cai feito pedaços abaixo do peso dos fatos suprimidos artificialmente até agora em favor da própria causa.9
A proposta de Jaeger foi extremamente importante durante o
período do renascimento das ideias aristotélicas no início do séc. XX. Todavia,
segundo Reale, outros estudiosos usando do mesmo método acabaram por alcançar
conclusões diametralmente opostas, o que veio por derrubar boa parte das
conclusões alcançadas por esta escola, motivo pelo qual, segundo o autor italiano:
“As conclusões de Jaeger, acolhidas por muitos com grande entusiasmo, depressa
mostraram o seu caráter precário, ao serem examinadas justamente em função do
método genético”10.
Refletindo sobre as principais razões pelas quais a proposta do
método histórico-genético ruíra, Reale destaca as seguintes: a) as obras de escola
9 “La conclusión es obvia. Si esta manera de ver, íntimamente consistente, es insostenible en
conjunto; si Aristóteles empezó por atravesar un período platónico, que duró una veintena de años; si escribió obras inspiradas por el espíritu de Platón y defendió la visión del universo de éste, quedan destruídas todas nuestras ideas anteriores acerca de la naturaleza de nuestro hombre, y necesitamos tallarnos un nuevo concepto, así de su personalidad y de su historia, como de las fuerzas que moldearon su filosofía. De hecho, este mito de un Aristóteles frío, estático, inmutable y puramente crítico, sin ilusiones, experiencias, ni historia, cae hecho pedazos bajo el peso de los hecho suprimidos artificialmente, hasta ahora a favor de la propia causa”. JAEGER, Werner. Aristóteles: bases para la historia de su desarrollo intelectual. p. 47. (tradução livre).
10 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 2001. p. 155.
18
nunca foram concebidas e escritas como livros a serem publicados, mas como o
substrato da atividade didática; b) em razão disso, seria um absurdo pensar a
possibilidade de se distinguir estratificações cronologicamente determináveis, visto
que foram passíveis de sucessíveis remanejamentos pelos seus autores; c) para ser
de fato histórico, o método proposto pro Jaeger deveria pautar-se sobre dados
incontroversos, sobre datas seguras e bem provadas; d) as dificuldades na leitura do
Corpus aristotelicum restam multiplicadas com o método histórico-genético.11
Apesar disso, a proposta de Jaeger foi especialmente
importante, pois: a) representou a descoberta do Aristóteles dos escritos juvenis
(exotéricos); a demonstração de que só se entende Aristóteles, histórica e
teoricamente, levando-se em conta suas relações com o platonismo; c) oportunizou
um aprofundamento e um exame crítico das obras mais significativas de Aristóteles,
o que fez emergir muitos e importantes elementos novos, úteis para a compreensão
mais adequada dos textos; d) representou um sentido mais vivo da historicidade do
pensamento aristotélico, considerado até então demasiado abstrato e anti-
histórico.12
Barnes sintetiza muito bem a validade das descobertas de
Jaeger ao considerar que: “[…] ele estava certo, no fundo – somente os seus fatos
eram falsos”13.
Portanto, por mais que a interpretação histórico-genética não
tenha de fato suprido todas as incertezas que envolvem a evolução histórica do
pensamento Aristotélico e ainda a dúvida sobre a autenticidade de determinadas
obras creditadas ao Estagirita, este trabalho demonstra que para compreender o
pensamento aristotélico deve-se ter em vista os rumos tomados pela vida do
pensador, bem como as suas fases da vida, além da noção sistêmica proposta por
ele, para então se considerar as ideias propostas por Aristóteles nas mais variadas
áreas do conhecimento.
11 REALE, Giovanni. Storia della Filosofia Antica: II. Platone e Aristotele. p. 386. 12 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 156. 13 “[…] he was right at bottom – only his facts were false”. BARNES, Jonathan. Life and work. In:
________ (Ed.). The Cambridge Companion to Aristotle. New York: Cambridge University Press, 1996. p. 17.
19
Tendo em vista os elementos aqui considerados, torna-se
possível apresentar logo em seguida a lógica sistemática que permeia o
pensamento de Aristóteles, fruto de seu processo evolutivo até o alcance de sua
maturidade intelectual, no período do Liceu.
1.2 A SISTEMÁTICA FILOSÓFICA DE ARISTÓTELES
Para se compreender o modo pelo qual Aristóteles sistematiza
o conhecimento humano no seu pensamento é primordial considerar as
contribuições feitas por Aristóteles nos livros que compõem a Metafísica.
Nesta obra, cujo objetivo centra-se em considerar a ciência que
se ocupa em estudar as causas e os princípios primeiros, os quais, por esta
característica, acabam por influenciar a todos os fenômenos no mundo, sendo
anteriores a eles e, por este motivo, metafísicas, o Filósofo divide as ciências em
três grupos: ciências práticas, poiéticas e teoréticas.
Nesta divisão, as ciências práticas se referem às ações que
têm seu início e seu termo no próprio sujeito, são as ações morais, pois estas têm
seu início no sujeito e retornam ao próprio sujeito, ou a toda humanidade,
aperfeiçoando-os, sendo representados neste grupo a Ética e a Política, conforme
se verá adiante.14 Para as ciências práticas: “[…] o princípio das ações práticas está
no agente, isto é, na volição, enquanto coincidem o objeto da ação prática e da
volição”15.
As ciências poiéticas, também chamadas de produtivas, são
aquelas que se dirigem à produção de algo, as ações têm seu princípio no próprio
sujeito, mas se dirigem a produzir algo fora do próprio homem, sendo exemplos as
operações e produções da arte, como a construção, a cura exercida pelo médico
14 REALE, Giovanni. Ensaio introdutório. In: ARISTÓTELES. Metafísica. 2. ed. Tradução de Marcelo
Perine. São Paulo: Loyola, 2005. (Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale.). 1.v. p. 48.
15 ARISTÓTELES. Metafísica. 2. ed. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2005. 2.v. (Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale.). p. 271.
20
sobre o paciente, o tocar um instrumento, entre outras.16 “[…] o princípio das
produções está naquele que produz, seja no intelecto, na arte e noutra faculdade “17
Já as ciências teoréticas, diferentemente, têm como fim a pura
especulação, o puro conhecimento como ele é, dividindo-se esta em física, que
estuda a substância que tem capacidade de movimento, as substâncias sensíveis, a
matemática, que considera as grandezas e planos que regem os corpos, bem como
as propriedades das coisas e a última e maior das ciências teoréticas, que é a
metafísica, que se encarrega de estudar a substância que está além da física, as
substâncias supra-sensíveis, imóveis e eternas.18
Pelo seu caráter, a metafísica é a ciência absolutamente
primeira, a mais elevada e sublime, visto que seu estudo não tem serventia a nada
em particular, mas ao conhecimento pelo conhecimento, o ato mais elevado que
pode ser executado pelo intelecto humano, este é o espírito que já se encontra
denunciado logo no início da obra, quando Aristóteles profere a célebre assertiva:
“Todos os homens, por natureza, tendem ao saber”19.
Apesar de não possuir uma destinação precisa e ser, a
princípio, inútil a qualquer coisa específica, é a partir da metafísica que se constrói
toda a compreensão sobre o mundo sensível nas suas mais variadas dimensões.
Deste modo, para uma fiel interpretação do pensamento do Estagirita é primordial se
considerar em um primeiro momento esta dimensão, para então se passar à
consideração das demais ciências, no objeto pertinente a cada uma delas.
Para a estruturação das ciências, também se faz importante
considerar a questão da organização lógica a ser tomada na área do conhecimento
a ser estudada. A lógica ou analítica (do grego analysis, que significa resolução)20,
usando o termo aristotélico, também é importante para a organização do raciocínio
científico.
16 REALE, Giovanni. Ensaio introdutório. In: ARISTÓTELES. Metafísica. p. 48. 17 ARISTÓTELES. Metafísica. p. 271. 18 REALE, Giovanni. Ensaio introdutório. In: ARISTÓTELES. Metafísica. p. 49. 19 ARISTÓTELES. Metafísica. p. 3. 20 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 116.
21
Para Aristóteles a lógica não é vista como uma ciência, pois
não tem em vista a produção de algo (ciências poiéticas), nem a ação moral (como
as ciências práticas), nem tem um conteúdo determinado diferente do conteúdo da
metafísica ou da física, ou ainda da matemática (ciências teoréticas), sendo vista
como um instrumento que considera a forma que deve ter qualquer tipo de discurso
que pretenda demonstrar algo e, em geral, queira ser probatório. Por este motivo,
inclusive, o termo organon foi dado aos principais tratados do Filósofo que
consideram a matéria. Apesar de não possuir status de ciência, a lógica é
considerada como um estudo preliminar a esta, justamente por seu caráter de
instrumentalidade Tal como assevera Bittar: “Sem fim próprio em si, a lógica coloca-
se a serviço do saber. Assim é que a argumentação e a estrutura do pensamento
devem conduzir à verdade”21.
Assim, dentre os escritos esotéricos que foram conservados
até a atualidade encontram-se obras do filósofo que tratam desde as causas e
princípios primeiros que ordenam todo o universo, como a Metafísica a que se
referiu antes, passando por obras de filosofia natural como Física, Céu e
Meteorologia, obras de psicologia como o De Anima, livros acerca da lógica como
constituinte do conhecimento humano, como os que compõem o Organon, tratados
sobre filosofia moral e política como a Ética a Nicômacos e a Política, obras relativas
às ciências naturais como o História dos animais, O movimento dos animais e A
geração dos animais e ainda obras sobre a arte do discurso e da representação,
como a Arte Retórica e a Arte Poética.22
Findas estas considerações preliminares, torna-se possível
apresentar de maneira sucinta as principais matérias pelas quais o Estagirita se
preocupou em trabalhar, colhendo-se assim os elementos necessários para que se
possa considerar a doutrina aristotélica das Ciências Práticas e, finalmente, do
conceito de Justiça dentro da filosofia aristotélica.
21 BITTAR, Eduardo C.B. Curso de Filosofia Aristotélica: leitura e interpretação do pensamento
aristotélico. Barueri: Manole, 2003. p. 174. 22 REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. 8. ed. São
Paulo: Paulus, 2003. 1.v. p. 175, 176.
22
1.3 ELEMENTOS BASILARES PARA O ESTUDO DA FILOSOFIA PRÁTICA DE
ARISTÓTELES
Ao buscar identificar o conceito de Justiça proposto por
Aristóteles, a presente monografia centra-se, portanto, no âmbito das Ciências
Práticas, aquelas cujo fim é orientar a própria conduta humana. Em razão disso,
estar-se-á tratando especialmente da Ética e da Política dentro do pensamento do
filósofo de Estagira. Todavia, considerando-se que esta pesquisa se destina a
precisar a implicância do conceito de Justiça dentro de toda a sistemática filosófica
aristotélica, é mister trabalhar preliminarmente alguns elementos das demais áreas
do conhecimento humano, segundo o raciocínio de Aristóteles.
Neste escopo, neste momento propõe-se trabalhar
especialmente sobre elementos dispostos na Metafísica, nos livros do Órgano e
ainda no tratado De Anima que se fazem primordiais para uma melhor compreensão
do assunto.
1.3.1 A Metafísica
O conjunto de textos que posteriormente foi batizado como
Metafísica, provavelmente por um dos discípulos de Aristóteles23, destina-se a tratar
daquilo que o próprio Aristóteles chamava de filosofia primeira ou também de
teologia. Dita filosofia primeira se trata daquela que se ocupa das realidades que
estão além da física, mas que condicionam esta, motivo pelo qual se diz que esta
trata das causas e dos princípios primeiros, em contraposição à filosofia segunda,
que viria a ser a física.
Como definição desta ciência, a maior das disciplinas
teoréticas, Aristóteles alcançou quatro diferentes definições, sendo estas:
- a metafísica como estudo das causas e dos princípios primeiros ou supremos, o
que é tratado nos livros A (primeiro), α ελαττον (segundo) e B (terceiro);
23 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 37.
23
- a metafísica como estudo do ser enquanto ser, tal com se encontra nos livros
Γ (quarto), Ε (sexto), capítulos 2-4 e Κ (décimo-primeiro), podendo-se entender seu
significado como a ciência que estuda as causas e princípios supremos do ser em
sua totalidade, valendo, portanto, para toda a realidade e para todo ser;24
- a metafísica enquanto estudo da substância (usiologia), conforme se vê nos livros
Ζ (sétimo), Η (oitavo), Θ (nono), isso ocorre pois, para Aristóteles o ser tem muitos
significados e, dentro destes, o mais importante é o de substância, motivo pelo qual
a ciência das causas e princípios primeiros é a ciência das causas e dos princípios
da substância;25
- e, por fim, metafísica como teologia, a investigação de Deus e a substância supra-
sensível, o que se vê nos livros Ε (sexto), capítulo 1, e Λ (décimo segundo), pois
uma ciência só pode ser divina por ser a ciência que Deus possui em grau supremo,
ou porque ela tem por objeto as coisas divinas, sendo que somente a sapiência
possui essas duas características.26
Nesta obra, Aristóteles principia por trazer que a sapiência, o
conhecimento filosófico, é a mais alta atividade humana, e que esta se traduz no
conhecimento das causas e dos princípios, mas não meramente qualquer causa ou
princípio, mas as causas e princípios primeiros, pois “por eles e a partir deles se
conhecem todas as outras coisas, enquanto ao contrário, eles não se conhecem por
meio das coisas que lhe estão sujeitas”27.
Considera Reale que causa e princípio, usados na maioria das
vezes como sinônimos por Aristóteles, nada mais são que a razão de ser da coisa,
aquilo porque aquela coisa é o que é. Neste sentido, tem-se que causas e princípios
são as condições ou fundamentos das coisas, se estas são excluídas, acaba-se por
excluir as próprias coisas.28
Quanto à proposta dos ensaios que compõem a Met., expressa
Jaeger que esta:
24 REALE, Giovanni. Ensaio introdutório. In: ARISTÓTELES. Metafísica. p. 41. 25 REALE, Giovanni. Ensaio introdutório. In: ARISTÓTELES. Metafísica. p. 42. 26 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 37. 27 ARISTÓTELES. Metafísica. p. 11. 28 REALE, Giovanni. Ensaio introdutório. In: ARISTÓTELES. Metafísica. p. 39.
24
[…] é a verdadeira realização mais alta da natureza humana; não se reduz a ser um simples meio de satisfazer às crescentes exigências da vida civilizada, senão que é o mais alto dos valores, o valor absoluto e acima da cultura; e de todos os estudos é o mais alto e mais desejável aquele cujo fruto é a ciência mais exata e cuja forma perfeita é a visão desinteressada do conhecimento puro.29
Tem-se assim que, para Aristóteles, aquele que estuda a mais
elevada das ciências é aquele que conhece o fim para o qual é feito cada coisa. O
fim de todas as coisas para Aristóteles é o bem, razão pela qual ele conclui que em
toda natureza o fim é o sumo bem.30 Esta consideração é de extrema importância
para os estudos do Estagirita, pois conforme se verá no capítulo seguinte, a procura
pelo bem é também o que motiva o estudo do ser humano na Ética e na Política e,
além disso, o tipo mais elevado de vida a ser considerado é justamente a do homem
que vive em busca desta ‘visão desinteressada do conhecimento puro, valendo-se
dos termos de Jaeger.
Tendo presente a ânsia que o ser humano possui por conhecer
e já delineando os pontos que constroem aquela que é a mais elevada das
disciplinas do conhecimento humano, Aristóteles passa então a tratar sobre quais
seriam os objetos de concentração dessa filosofia primeira.
No tocante ao presente estudo, é importante considerar a
distinção que Aristóteles faz sobre as causas que regem os fenômenos. O Estagirita
demonstra que estas são entendidas em quatro diferentes sentidos. Para
demonstrar isto Aristóteles aprecia o que seus antecessores já haviam considerado
sobre a matéria, concluindo que nenhum deles havia vislumbrado outras causas que
não essas quatro, apesar de nenhum antes dele as ter apresentado em conjunto.31
Acerca das aludidas causas, em um primeiro sentido, entende-
se que causa é a substância e a essência (causa formal), pois “De fato, o porquê
29 “[…] es la verdadera realización de la más alta naturaleza humana; no se reduce a ser un simple
medio de satisfacer las cecientes exigencias de la vida civilizada, sino que es el más alto de los valores, el valor absoluto y cima de la cultura; y de todos los estudios es el más alto y más deseable aquel cuyo fruto es la ciencia más exacta y cuya forma perfecta es la visión desinteresada del conocimiento puro”. JAEGER, Werner. Aristóteles: bases para la historia de su desarrollo intelectual. p. 85 (tradução livre).
30 ARISTÓTELES. Metafísica. p. 11. 31 ROSS, Sir David. Aristotle. 6th ed. London; New York: Routledge, 1995. p. 162.
25
das coisas se reduz, em última análise à forma e o primeiro porquê é, justamente
uma causa e um princípio”32; em um segundo sentido tem-se que a causa é a
matéria e o substrato (causa material); em um terceiro, o princípio do movimento
(causa eficiente); e num quarto sentido, a causa é o oposto do último sentido, se
trata do fim e o bem (causa final), sendo este o fim da geração e de todo movimento.
De fato, a causa final é a primeira a ser estabelecida, porém a última a ser
alcançada em relação a alguma coisa.33
Estas quatro causas, que já haviam sido anteriormente
apresentadas por Aristóteles no livro II de sua Física34, são novamente apresentadas
logo no início da Metafísica, demonstrando-se a importância de considerá-las na
busca pelo conhecimento mais alto que a humanidade pode alcançar, bem como
demonstra que a incidência destas causas não se encontra limitada aos corpos que
se submetem à característica do movimento, o que na lógica aristotélica se limita às
substâncias eternas e corruptíveis (os astros), e às substâncias mortais e
corruptíveis (as demais coisas físicas). Assim, tem-se que as quatro causas estão
também ligadas aos estudos da filosofia primeira, razão pela qual se fazem
importantes para a compreensão de todo o pensamento do Estagirita.
O conhecimento das quatro causas se mostra como elementar
não apenas para o conhecimento das coisas mais sublimes que a racionalidade
humana pode alcançar, pelo contrário, a sistemática filosófica aristotélica direciona-
se, seja em que área do conhecimento que se estiver a tratar, a buscar identificar
qual é a essência das coisas, separando-a dos acidentes que lhe acompanham,
bem como por este elemento discriminar o que compõe o objeto estudado, quem é o
seu causador ou que efeitos pode vir a causar e, especialmente, qual é a finalidade
deste objeto estudado.
Fixada esta concepção preliminar da importância dos princípios
da metafísica para o estudo das demais áreas do pensamento a que se ocupou
Aristóteles, alcança-se o momento de tratar de outro elemento primordial à
32 ARISTÓTELES. Metafísica. p. 15. 33 ARISTÓTELES. Metafísica. p. 15. 34 ARISTÓTELES. Física. Traducción y notas de Guillermo R. de Echandía. [s.l]: Gredos. (Biblioteca
Clásicos Gredos). p. 54, 55.
26
construção do saber científico: a lógica, ou na terminologia do autor, a analítica, que
representa o instrumento pelo qual o pesquisador se utilizará na busca por construir
um conhecimento verdadeiro sobre a realidade com a qual se depara.
1.3.2 O Órganon
Conforme destacou-se, no sistema científico aristotélico a
lógica, ou analítica, não possui lugar, devido ao fato de esta não ter por objeto nem a
produção de algo, caso em que seria considerada uma ciência poiética, nem a ação
moral, como as ciências práticas, nem uma realidade distinta da que é objeto da
metafísica, da física e da matemática, como ciências teoréticas.35
Contrariamente, a analítica considera a forma que deve ter
qualquer tipo de raciocínio que pretenda demonstrar algo e, em geral, que se
proponha a provar. Por isso Aristóteles a considerava como instrumento (organon),
pois esta mostra como o se procede o conhecimento quando se pensa, qual é a
estrutura do raciocínio e quais são os seus elementos, como se pode demonstrar
algo, os tipos e modos de demonstrações que existem, sobre que coisa versam e
quando são possíveis.36
Ross destaca que o uso do nome lógica é posterior a
Aristóteles, sendo que o termo analítica adotado por Aristóteles provém de analysis
e diz respeito primeiramente à análise da razão dentro das partes do silogismo, mas
também pode ser estendida para incluir a análise do silogismo em proposições e das
proposições em termos.37
Aliás, é de se destacar que Aristóteles, por ser o descobridor
do silogismo, destaca-se como o fundador da lógica enquanto disciplina própria. Isto
ocorre a partir do momento em que critica a limitação do ensino da retórica, à
maneira feita pelos sofistas, tal como o Filósofo considera em Elencos Sofísticos:
Não obstante, quanto ao presente tratado, não se pode afirmar que uma parte haja sido já anteriormente elaborada, e que outra parte ainda não o tinha sido. De facto, acerca desta disciplina, nada havia,
35 ROSS, Sir David. Aristotle. p. 21. 36 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 115. 37 ROSS, Sir David. Aristotle. p. 21.
27
porque a educação dada pelos mestres que, mediante honorários, ensinam os argumentos erísticos, era par da arte de Górgias […] Assim também, no caso da retórica, havia numerosos trabalhos e antigos, enquanto sobre o juízo não tínhamos literalmente nada anterior a mencionar, e passamos longos tempos em penosas buscas.38
Na estrutura do Órganon encontram-se compiladas as diversas
obras do Estagirita que tratam sobre a lógica, na seguinte sequência, tendo por base
a estrutura proposta por Ross39, adotada pela maioria dos autores pesquisados:
- no início as obras Categorias e De Interpretatione (Periermeneias) discutem os
termos e as proposições, que são os formadores dos silogismos, sendo
considerados por Ross como estudos preliminares;
- em seguida, os Analíticos Anteriores, tratam da estrutura do silogismo em geral,
suas diversas figuras e diferentes modos;
- os Analíticos Posteriores tratam do silogismo verdadeiro, do silogismo científico, no
qual se consiste a verdadeira demonstração;40
- por fim, nos Tópicos se estuda o silogismo dialético, entendido este como aquele
que estuda as opiniões geralmente aceitas, sendo estas as opiniões que todos, ou a
maioria, ou os mais notáveis e eminentes (filósofos) aceitam41; e nos Elencos
Sofísticos (ou Refutações Sofísticas), geralmente considerado como o nono livro do
Tópicos, o filósofo aborda as argumentações dos sofistas.
Ao analisar a lógica aristotélica, destaca Reale:
A lógica aristotélica tem, por conseguinte, uma gênese perfeitamente filosófica; esta ciência indica o momento em que o logos filosófico, depois de ter amadurecido completamente através da estruturação, de todos os problemas principais, se torna capaz de se questionar a si mesmo e ao próprio método de proceder, e consegue estabelecer
38 ARISTÓTELES. Elencos Sofísticos. In: ________. Órganon. Tradução e notas de Pinharanda
Gomes. Lisboa: Guimarães, 1986. 6.v. p. 122, 123. 39 ROSS, Sir David. Aristotle. p. 22. 40 ARISTOTLE. Posterior Analytics. In: THE Works of Aristotle. Translation of W. D. Ross. Chicago;
London; Toronto; Geneva: Encyclopaedia Britannica, 1952. p. 98. 41 ARISTÓTELES. Tópicos. Dos Argumentos Sofísticos. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd
Borheim. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 5.
28
o que é a própria razão, ou seja, o que importa fazer para raciocinar, bem como quando e sobre que coisa se pode raciocinar.42
Pelo que até aqui foi exposto, constata-se que o estudo da
analítica importa à melhor compreensão das Filosofias Práticas e, tendo em vista
este presente estudo, também ao conceito de Justiça, visto que fornece ao cientista
os elementos pelos quais ele possa considerar a realidade que ele estuda como
verdadeira, que ele possa identificá-la do modo como realmente é. Por este motivo,
cumpre neste momento destacar os principais pontos das obras do Órganon que se
fazem como elementares ao presente estudo.
Nas Cat. expõe-se os elementos mais simples que compõem a
lógica. Ao se desvincular as palavras das combinações que possuem entre si, as
seguintes categorias podem ser encontradas: a substância, a quantidade, a
qualidade, a relação, o lugar, o tempo, o estado, o hábito, a ação e a paixão.43 Estas
dez categorias são, com efeito, os elementos aos quais se deve poder referir
qualquer termo da proposição. No De Int., por sua vez, fala-se sobre as proposições,
ou seja, sobre o modo como se afirma ou se nega algo de outra coisa.44
Fixada esta base, das principais categorias a serem
consideradas na investigação de alguma coisa, e também do modo como se afirma
ou nega algo, nos Analíticos e nos Tópicos são discutidos os meios pelos quais se
pode proceder à verificação de um conhecimento que possa ser considerado
verdadeiro, seja em absoluto, seja tendo em vista um consenso (dialética),
procedendo-se assim por meio dos silogismos.
Os silogismos, definidos como a afirmação ou negação de
algum predicado acerca de algum sujeito, são compostos por três elementos, sendo
dois deles premissas e o terceiro o termo conseqüente. “A premissa é a oração que
afirma ou nega algo acerca de algum sujeito, e este pode ser universal, particular e
42 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 118, 119. 43 ARISTÓTELES. Categorias. Periermeneias. In: ________. Órganon. Tradução e notas de
Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães, 1986. 1.v. p. 48. 44 ARISTÓTELES. Categorias. Periermeneias. In: ________. Órganon. p. 48.
29
indefinido”45. Neste processo, entende-se por termo aqui em que uma premissa se
resolve, ou seja, o predicado e o sujeito acerca do qual se afirma ou se nega algo.
Para Aristóteles é importante fazer a diferença ainda entre o
silogismo perfeito e o imperfeito. Silogismo perfeito é aquele que “não requer mais
do que o que está compreendido nele, para que a necessidade da conclusão seja
evidente”46, portanto, todos os elementos que compõem sua proposição são
suficientes para a afirmação ou negação que se está a fazer. Já o silogismo
imperfeito é “o silogismo que carece de uma ou mais proposições, que resultam
necessariamente dos termos postos, mas não estão explícitas nas premissas”47.
Ademais, dentro da estrutura dos silogismos, conforme foi dito,
são encontrados três termos, as premissas, divididas entre a premissa maior e a
premissa menor, e a conclusão da ligação entre estas duas premissas. Um exemplo
disso é a proposição: ‘Se todos os homens são mortais, e se Sócrates é homem,
então Sócrates é mortal’.
A importância do raciocínio silogístico para a construção do
pensamento aristotélico é diagnosticada nos próprios Analíticos anteriores, quando o
Estagirita considera:
O método é o mesmo em todas as artes, tanto em filosofia como não importa qualquer outra arte ou disciplina. Convém procurar os predicados e os sujeitos de cada um dos termos, obter o maior número possível de predicados e de sujeitos, e considerá-los mediante os três termos, tanto de um modo como de outro, quer se trate de refutação ou de demonstração e, quando o raciocínio tiver por objeto a verdade, partir de premissas em que os termos estejam dispostos, de modo a formar uma predicação conforme à verdade, enquanto que, nos silogismos dialécticos, temos de partir de premissas conforme à probabilidade.48
Neste texto encontra-se explícito o caráter instrumental da
analítica para a construção do conhecimento no pensamento de Aristóteles, seja
este um conhecimento certo ou provável.
45 ARISTÓTELES. Analíticos Anteriores. In: ________. Órganon. Tradução e notas de Pinharanda
Gomes. Lisboa: Guimarães, 1986. 2.v. p. 9. 46 ARISTÓTELES. Categorias. Periermeneias. In: ________. Órganon. p. 11. 47 ARISTÓTELES. Categorias. Periermeneias. In: ________. Órganon. p. 11. 48 ARISTÓTELES. Analíticos Anteriores. In: ________. Órganon. p. 116.
30
Falando-se em conhecimento certo, verdadeiro, é importante
se considerar os silogismos demonstrativos ou científicos, visto que é por meio deles
que se busca o conhecimento verdadeiro, e este se distingue do silogismo geral,
pois, além da correção formal da dedução, também considera o valor da verdade
das premissas e conseqüências trabalhadas, a este conteúdo. A este estudo,
conforme foi dito, dedica-se especialmente os An. Post.
Sobre os silogismos científicos, destaca Mignucci apud Reale:
O procedimento silogístico próprio da ciência chama-se demonstração; trata-se de uma classe particular de silogismo, que se diferencia deste não pela forma, pois, de outro modo não se poderia aplicar com verdade o nome de silogismo, mas pelo conteúdo das premissas utilizadas. Na demonstração, as premissas devem ser sempre verdadeiras, ao passo que não é necessário que assim seja no silogismo como tal, porque neste último só interessa se certo conseqüente deriva ou não das premissas estabelecidas, pelo simples facto de terem sido estabelecidas, independentemente do valor de verdade que possam ter. Em contrapartida, na demonstração, por esta ser o procedimento que conduz à ciência do conseqüente, a saber, se o conseqüente é verdadeiramente tal ou não, há que empregar um antecedente verdadeiro, pois só do verdadeiro se deriva necessariamente o verdadeiro.49
Com isso firma-se que para Aristóteles a ciência consiste
basicamente em um processo discursivo tendente à determinação do porquê ou da
causa e, dentre as quatro causas anteriormente referidas, busca-se sobretudo a
causa formal, a essência da coisa.50 É neste sentido que Aristóteles expõe nos Top.
que a definição de uma coisa é a identificação de sua essência, tendo-se neste
ponto a ligação entre a concepção de ciência e a Metafísica, sendo primordial ao
raciocínio científico reputar-se àquilo que anteriormente já é, para diagnosticar o
verdadeiro.51
Com base no que foi até aqui visto, nota-se que Aristóteles
centra o conhecimento científico também nos silogismos, apesar de ser um
silogismo diverso daquele estritamente lógico, pois no primeiro a veracidade das
proposições é fundamental para uma conclusão verdadeira. Tendo em vista esta
49 MIGNUCCI apud REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 126. 50 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 127. 51 ARISTÓTELES. Tópicos. Dos Argumentos Sofísticos. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd
Borheim. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 6.
31
posição, surge então o problema de como se firmar as premissas verdadeiras, pois
se para isso se procedesse somente por meio de silogismos, estes teriam de ser
construídos até ao infinito para que se pudesse fixar algum ponto de verdadeiro.
Surge então neste ponto a importância da indução e da
intuição como processos que, apesar de opostos ao silogismos, se manifestam
como pressupostos deste. Tal como considera Aristóteles: “Toda a convicção é
adquirida, ou assenta no silogismo, ou parte da indução”52. Tem-se assim que a
indução ou epagoge é o procedimento pelo qual se obtém do particular o universal,
se trata de uma condução do conhecimento particular a uma generalização
universal. Assim: “a indução opõe-se ao silogismo, já que este demonstra, pelo
termo médio, que o termo maior se predica do terceiro termo, enquanto a indução
prova, pelo terceiro termo, que o termo maior predica o termo médio”53.
Já a intuição (nous), conforme se tratará também no capítulo
seguinte, é a apreensão pura e simples dos primeiros princípios, partindo-se destes,
conforme se considera nos Analíticos posteriores, para a construção das demais
demonstrações. Considera Aristóteles que as intuições são sempre verdadeiras,
pois nenhum outro tipo de conhecimento é mais exato do que aquele captado pela
intuição e, ainda, os seus princípios são a base para as demonstrações, sendo que
estes são obtidos por meio da intuição, motivo pelo qual a intuição será sempre o
princípio da ciência.54
Finalizando este ponto, importante também ressaltar aqui que
cada uma das ciências assumirá premissas e princípios que lhe são próprios, tendo
em vista os seus objetos de estudo, aliados aos princípios que são gerais a todas as
ciências, conforme considerou-se na Met.
Cada ciência presumirá a existência do âmbito, do sujeito
sobre o qual versarão todas as suas determinações, e caracterizará o seu objeto por
meio das definições. Além disso, cada ciência definirá a série de termos que lhe
pertencem. Em terceiro lugar, as ciências deverão recorrer a certos axiomas,
52 ARISTÓTELES. Analíticos Anteriores. In: ________. Órganon. p. 233. 53 ARISTÓTELES. Analíticos Anteriores. In: ________. Órganon. p. 235. 54 ARISTOTLE. Posterior Analytics. In: THE Works of Aristotle. p. 136.
32
proposições verdadeiras e intuitivas, sendo estes os princípios aos quais se efetuará
a demonstração (vale ressaltar neste ponto que na Met. Aristóteles destaca que
todas as ciências partem de axiomas, mas somente o estudioso da filosofia primeira
encontra-se habilitado a discutir os axiomas utilizados pelas diversas ciências).55
Dentre os axiomas, destaca-se que alguns são próprios de
cada ciência específica, outros comuns a várias ciências e outros ainda próprios de
todas as ciências sem exceção, como o princípio de não-contradição (“[…] é
impossível que uma coisa, ao mesmo tempo, seja e não seja […]”56), bem como os
princípios de identidade e do terceiro excluído, todos estes expostos no livro quarto
da Metafísica.57
Fixados estes pontos em relação à lógica de Aristóteles,
especialmente contidos no Órganon, torna-se possível passar ao próximo ponto,
onde analisar-se-á especialmente as implicações do tratado De Anima, para a
interpretação da Filosofia Prática de Aristóteles.
1.3.3 O De Anima
Dentre as obras de Aristóteles, o tratado Da alma (De anima)
diz respeito à obra onde o Filósofo discute o princípio que diferencia os seres
animados dos inanimados, a alma. Para o Filósofo, o objeto de estudo da Psicologia
é estudar e conhecer a natureza essencial da alma, bem como suas propriedades.58
Ao contrário do conceito de psique dos pensadores anteriores,
que com os pré-socráticos identificava-se muito mais com o princípio físico ou como
um aspecto deste, e que em Platão era concebido como contraposto ao corpo, ao
ponto de considerá-la totalmente distinta e incapaz de conciliação harmônica com
este, Aristóteles adota uma posição intermediária, buscando fazer deste conceito
55 HAMELIN, O. Le Système D’Aristote. 4. ed. Paris : Librairie Philosophique J. Vrin, 1985.
(Bibliothèque D’Histoire de la Philosophie. Publié par Léon Robin). p. 247, 248. 56 ARISTÓTELES. Metafísica. p. 145. 57 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 130. 58 ARISTÓTELES. De Anima. Traducción de Alfredo Llanos. Buenos Aires: Leviatán, 2003. p. 19.
33
uma síntese mediadora. Assim, a alma ao mesmo tempo é algo intrinsecamente
unido ao corpo, mas também é um princípio formal, é a forma, o ato ou a enteléquia
do corpo.59
Para o estudo da Filosofia Prática em Aristóteles
especialmente um ponto do tratado De anima se faz primordial, que é a questão dos
três tipos de alma e suas respectivas funções. Platão em A República já falara em
três partes ou funções da alma, dividindo-a em alma concupiscível, irascível e
intelectiva.60
Esta primeira divisão tem relação com a elaborada por
Aristóteles, conforme demonstrar-se-á a seguir, todavia, vale ressaltar que a divisão
feita pelo Estagirita tem muito mais relação com as observações feitas pelo filósofo
no plano biológico, do que o universo psicológico.
Aristóteles destaca que estas faculdades da alma são
possuídas por certos seres em sua completude, enquanto que, devido ao caráter de
não serem unas, outros possuem somente algumas ou apenas uma delas. Estas
faculdades são as nutritivas, apetitivas, sensoriais, motoras e intelectuais.61
As plantas, que possuem somente a alma vegetativa, possuem
tão somente a faculdade nutritiva, ou seja, a capacidade de obter alimento por si e
também de se reproduzir.62
Já os animais têm além da faculdade nutritiva também as
faculdades sensitiva, apetitiva e de movimento, sendo estes os elementos que
caracterizam os seres dotados da alma sensitiva.63
Por fim, aos seres humanos é acrescentada a última e mais
importante das faculdades, a intelectual, que o caracteriza como ser dotado de alma
racional. O ato intelectivo é análogo ao ato perceptivo, o primeiro recepção ou
59 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 130. 60 PLATÃO. A República. 9. ed. Tradução de Maria Helena Pereira. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001. 61 ARISTÓTELES. De Anima. p. 68. 62 ARISTÓTELES. De Anima. p. 72. 63 ARISTÓTELES. De Anima. p. 68.
34
assimilação das formas inteligíveis, tal como o ato perceptivo consiste na
assimilação da forma sensível, mas difere desta pois não se mistura com algo do
corpo, nem algo corpóreo.64 Conforme destaca Aristóteles: “A faculdade sensitiva
não é independente do corpo, enquanto que o intelecto está separado dele”65.
Estas divisões da alma, especialmente entre a alma sensitiva e
intelectiva, entre a parte irracional e racional do homem terão especiais implicações
na própria noção de Filosofia Prática de Aristóteles e, assim, também na noção de
Justiça, visto que a Ética e a Política têm como proposta disciplinar a conduta
humana ao modo mais adequado.
Apresentados estes elementos sobre o sistema filosófico
aristotélico e os principais elementos a serem considerados ao se analisar o
conceito de Justiça em Aristóteles, é chegada a hora de se apresentar as Ciências
Práticas e, dentro destas, a posição da Ética e da Política, o que será feito no
próximo capítulo, para então finalmente se tratar sobre a noção de Justiça dentro da
filosofia aristotélica.
64 REALE, Giovanni. Storia della Filosofia Antica: II. Platone e Aristotele. p. 473. 65 “La facultad sensitiva no es Independiente Del cuerpo, mientras que el intelecto está separado de
él”. ARISTÓTELES. De Anima. p. 133.
Capítulo 2
A FILOSOFIA PRÁTICA ARISTOTÉLICA E SUAS PRINCIPAIS DISCIPLINAS
Na divisão das Ciências formulada por Aristóteles a Filosofia
Prática diz respeito ao tipo de conhecimento que tem por objeto o próprio homem ou
a coletividade humana. Por isso a designação de Filosofia Prática, pois mais do que
se compreender o comportamento humano e suas implicações, esta área da
Filosofia tem por objetivo tornar realidade este tipo de orientação mais adequada.
Este tipo de conhecimento pode ser denominado pelo nome geral de Política, ou
ainda de ‘filosofia das coisas do homem’, conforme desta Reale66.
Apesar de se poder designar de maneira genérica a Filosofia
Prática como Política, importante também destacar que em Aristóteles, ao contrário
de seu mestre Platão, a Ética e a Política possuem uma separação no que concerne
ao objeto de estudo de cada uma destas áreas. Tem-se assim que o estudo da Ética
antecede ao da Política, conforme encontra-se perfeitamente destacado em diversos
trechos da Eth. Nic.
Com efeito, Aristóteles considera elementar em um primeiro
momento se formar o indivíduo que posteriormente virá a exercer as atividades
como cidadão da polis. Conforme se verá a seguir, para se tratar no bom político é
primordial primeiramente se considerar o homem ético, pois este sim estará
habilitado a conduzir seus concidadãos a uma via boa e plena. Neste espírito,
escreve o Filósofo no M. M.:
A ética, a meu juízo, só pode formar parte da política. Em política não é possível coisa alguma sem estar dotado de certas qualidades; quero dizer, sem ser homem de bem. Mas ser homem de bem equivale a ter virtudes; e, por tanto, se em política se quer fazer algo, é preciso ser moralmente virtuoso. Isto faz que pareça o estudo da ética como uma parte e também como o princípio da política, e, por
66 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 83.
36
conseguinte, sustento que ao conjunto deste estudo deve se dar melhor o nome de política que o de ética.67
Com base na divisão conceitual formulada pelo Estagirita e,
além disso, tendo em vista que a doutrina aristotélica da Justiça terá implicações
diretas tanto na esfera da Ética, quanto da Política, propõe-se neste segundo
capítulo apresentar o significado destes conceitos para Aristóteles, o que
possibilitará a discussão do conceito de Justiça em Aristóteles no derradeiro
capítulo.
2.1 A ÉTICA
No que pertine à doutrina da Ética, esta matéria foi objeto de
três tratados do Estagirita dos que foram legados até a atualidade, sendo estes a
Ethica Nichomachea, a Ethica Eudemia e o Magna Moralia. No conjunto destas três
obras o Filósofo retrata as principais questões necessárias para que se possa viver
bem e venturosamente. Assim, nestas obras são apresentados os principais
elementos que devem ser considerados para que, por meio de um critério racional,
seja possível que o homem alcance a realização de sua própria finalidade.
Destaca-se que na divisão destas obras, a Ethica
Nichomachea e a Ethica Eudemia possuem estrutura similar, tanto que ambas
partilham de três livros em comum, dentre estes o livro que trata sobre a teoria da
Justiça (livro V da Ehica Nichomachea e livro IV da Ethica Eudemia). Já a Magna
Moralia é um tratado em que se apresenta de maneira sintética em seus dois livros
os principais assuntos atinentes à Ética.
Dentre os três tratados, utilizar-se-á principalmente neste
trabalho a Eth. Nic, visto que é considerada a mais acabada das três éticas, onde a
doutrina do Filósofo sobre a matéria encontra-se melhor apresentada. Sobre as
diferenças entre a Eth. Nic. e a Eth. Eud., considera Jaeger que: “[…] a Etica
67 ARISTÓTELES. La Gran Moral. In: ________. Moral: La gran Moral. Moral a Eudemo. Traducción
de Patricio de Azcárate. Madrid: Espasa-Calpe, 1976. p. 25.
37
Nicomaquea é decididamente superior pelo acabado da construção, a claridade do
estilo e a maturidade do pensamento”68.
Todavia, isto significará um impeditivo para que, no decorrer do
texto, sejam utilizadas partes das outras duas Éticas, no intuito de complementar-se
as considerações sobre este ramo do saber prático na filosofia aristotélica.
Ao se pensar na Ética aristotélica, não se pode esquecer que
no sistema filosófico do Estagirita todas as coisas tendem a um fim, tal como se viu
no momento em que se trabalhou a metafísica aristotélica, de modo que o mesmo
valerá para as questões referentes ao ser humano. Até por este motivo, a primeira
coisa que o autor faz, quando trata sobre a ética, é refletir sobre qual é a finalidade
da vida humana.
Deste modo, no início da Eth. Nic. se faz a seguinte
consideração:“Toda arte e toda indagação, assim como toda ação e todo propósito,
visam a algum bem; por isso foi dito acertadamente que o bem é aquilo a que todas
as coisas visam”69. Ora, se tudo direciona-se a um bem, a um fim específico, há que
se considerar a existência de uma finalidade última, pois se assim não fosse infinito
seria este procedimento, de modo que o desejar seria vazio e vão. Assim, a Ética
direciona-se a conduzir o homem ao bem, ou melhor, ao sumo bem.70
Para Aristóteles, este sumo bem, a finalidade da vida humana,
é a felicidade (eudaimonia), pois “[…] o acordo quanto a este ponto é quase geral;
tanto a maioria dos homens quanto as pessoas mais qualificadas dizem que este
bem supremo é a felicidade, e consideram viver bem e ir bem equivale a ser feliz”71.
Não bastasse considerar o conceito da maioria, o que
constituiria um juízo dialético, Aristóteles demonstra então que também por
68 “[…] la Etica Nicomaquea es decididamente superior por lo acabado de la construcción, la claridad
del estilo y la madurez del pensamiento”. JAEGER, Werner. Aristóteles: bases para la historia de su desarrollo intellectual. p. 263.
69 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 2. ed. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Unb, 1992. p. 17.
70 REALE, Giovanni. Storia della Filosofia Antica: II. Platone e Aristotele. p. 491. 71 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 19.
38
intermédio do raciocínio filosófico é possível concluir que a felicidade é a finalidade
da vida humana. Assim:
Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais; mas as honrarias, o prazer, a inteligência e todas outras formas de excelência, embora a escolhamos por si mesmas (escolhê-las-iamos ainda que nada resultasse delas), escolhemo-las por causa da felicidade, pensando que através delas seremos felizes. Ao contrário, ninguém escolhe a felicidade por causa de várias formas de excelência, nem, de um modo geral, por qualquer outra coisa além dela mesma.72
Se a constatação da felicidade como finalidade da vida humana
é uma conclusão simples, difícil se torna definir qual o conceito de felicidade que se
deve considerar, visto que alguns entendem a felicidade como a vida prazerosa,
para outros se trata de possuir riquezas ou ainda de ter uma vida honrosa.
Para Aristóteles, porém, a felicidade é a vida contemplativa
(bios theoretikos), razão pela qual somente o sábio poderá considerar-se feliz, se
souber conduzir bem sua vida. Tendo em vista estas considerações, a proposta da
obra é demonstrar o modo pelo qual se pode construir este modelo de vida ética,
seja para o tipo de felicidade mais plena, ligada ao intelecto, seja a felicidade ligada
às questões mais sensíveis do ser humano.
Tendo em vista que o homem é um sínolo entre matéria e
forma, corpo e alma, e que, além disso, o homem possui as faculdades apetitiva e
racional da alma, Aristóteles considera que a felicidade, que é uma atividade da
alma, provirá do alcance e do exercício dos modelos ideais do agir e do pensar, as
chamadas excelências (aretai) ou virtudes. Em razão deste caráter dúplice, algumas
destas excelências são intelectuais (virtudes dianoéticas) enquanto outras são
morais (virtudes éticas).73
As excelências no pensar, também chamadas de virtudes
intelectuais, são aquelas que se adquire por meio do estudo, da instrução, motivo
pelo qual requer experiência e tempo. Na estrutura da Eth. Nic. o livro VI em
72 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 23. 73 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 33.
39
especial é dedicado a apresentar as principais excelências intelectuais e sua relação
com o homem ético, já na Eth Eud.este assunto é tratado no livro V.
A outra modalidade de excelência, a excelência moral, o modo
de se agir de maneira mais adequada em conformidade com o momento da ação, é
por sua vez adquiridas pelo cultivo dos hábitos, razão pela qual são inclusive no
grego produto de uma ligeira variação da palavra hábito (ethiké provém de ethos,
que pode ser entendido como hábito, costume)74.
Assim, a seguir serão trabalhadas cada uma destas categorias
de excelência elementares à construção do homem excelente, o que será importante
inclusive para se situar a posição da Justiça, partindo-se do pressuposto que ela
também é vista como uma virtude pelo Estagirita.
2.1.1 As excelências morais
Segundo Aristóteles, pelo exercício reiterado de uma ação boa,
esta ação é adquirida como parte do próprio indivíduo, fazendo assim que este se
torne um homem excelente neste aspecto. Não é por outro motivo que Aristóteles,
na Reth., destaca que os hábitos podem ser considerados como uma segunda
natureza do homem. Segundo o pensador:
Os hábitos são igualmente agradáveis, porque o habitual é já como que uma segunda natureza. O hábito assemelha-se de algum modo à natureza: ‘muitas vezes não está longe de sempre’. A natureza tem por objeto o que acontece sempre; o hábito, o que acontece muitas vezes.75
Portanto, o ser humano, ao se manter em exercício reiterado
de uma ação virtuosa, após certo transcurso temporal virá a ter este tipo de atitude
como parte sua, como um modelo de ação próprio daquele que pratica, neste
sentido, um hábito, que faz deste homem um homem virtuoso, porquanto pratica
ações virtuosas.
74 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Aristotélica: leitura e interpretação do pensamento
aristotélico. p. 1.019. 75 ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Traduzido por Antônio Pinto de Carvalho. 17.ed.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. p. 70.
40
Não basta, todavia, saber que as excelências no plano moral
são adquiridas pelos hábitos, faz-se necessário logo em seguida definir qual é o
critério do agir humano, para que então se possa ter noção também das vias pelos
quais a conduta moral resta destruída, seja pelo excesso, seja pela falta.
O Estagirita considera que as várias formas de excelência
moral possuem relação com as ações e emoções, sendo que em ambas encontra-se
ínsita a dimensão do prazer e do sofrimento. Ao contrário de Platão, que via na
dimensão do prazer algo a ser evitado, por afastar o indivíduo da formação de sua
alma, que seria a parte mais importante, para Aristóteles ambos os pontos não são
de todo condenáveis, porém o critério ético encontra-se na mediania, no meio-termo
(mesotés) entre o excesso e a falta em cada ação ou emoção. É neste sentido que a
virtude moral faz com que os homens ajam da melhor maneira possível e que
disponham mais completamente para fazer o bem, para tanto faz-se elementar se
conformar o agir humano com a reta razão, a disposição racional para se agir
conforme aquilo que é virtuoso.
Considera assim Aristóteles:
Depois de haver reconhecido que a virtude é esta maneira de ser moral que nos faz agir do melhor modo possível e que nos dispõe do modo mais completo que pode ser para fazer o bem; depois de ter reconhecido que o bem supremo na vida consiste em se conformar com a reta razão, quer dizer, que é o que ocupa o justo meio entre o excesso e a falta relativamente a nós, é imprescindível reconhecer também que a virtude moral é para cada indivíduo em particular um certo meio ou um conjunto de meios, no que concerne a seus prazeres e às suas penas, às coisas agradáveis e dolorosas que se possa sentir. Algumas vezes o meio estará somente nos prazeres, em que se encontram igualmente o excesso e a falta; em outras somente estará nas pena, e algumas nos dois juntos.76
76 “Después de haber reconocido que la virtud es esta manera de ser moral que nos hace obrar lo
mejor posible, y que nos dispone lo más completamente que puede ser para hacer el bien; después de haber reconocido que el bien supremo en la vida consiste en conformarse con la recta razón, es decir, que es lo que ocupa el justo medio entre el exceso y el defecto relativamente a nosotros, es imprescindible reconocer también que la virtud moral es para cada individuo en particular un cierto medio o un conjunto de medios, en lo que concierne a sus placeres y a sus penas, a las cosas agradables y dolorosas que se pueda sentir. Unas veces el medio se hallará solo en los placeres, en que se encuentran igualmente el exceso y el defecto; otras sólo se hallará en las penas, y algunas en los dos a par”. ARISTÓTELES. Moral a Eudemo. In: ________. Moral: La gran Moral. Moral a Eudemo. Traducción de Patricio de Azcárate. Madrid: Espasa-Calpe, 1976. p.142.
41
Neste ínterim, Aristóteles explana que existem três objetos de
escolha (o nobilitante, o vantajoso e o agradável) e três objetos de repulsa (o ignóbil,
o nocivo e o penoso), encontrando-se no percurso em busca dos três a luta do
homem para dominar seus prazeres, luta esta que, segundo Heráclito, é mais difícil
do que a luta contra a própria cólera.77
Para conseguir domar a própria alma, ou melhor, a parte da
alma irracional, que é esta que se relaciona com os objetos de escolha e com os de
repulsa é necessário, assim, a reiteração de ações virtuosas, pois pela prática
destas é que o homem se torna virtuoso. Assim:
As ações, portanto, são justas e moderadas quando são como as que o homem justo e moderado praticaria, mas o agente não é justo e moderado apenas por praticá-las, e sim porque também as pratica como as praticariam homens justos e moderados. É correto, então, dizer que é mediante a prática de atos justos que o homem se torna justo, e é mediante a prática de atos moderados que o homem se torna moderado; sem os praticar ninguém teria sequer remotamente a possibilidade de tornar-se bom.78
Aristóteles destaca ainda que dentre as manifestações da
alma, consideradas como as emoções, as faculdades e as disposições, a excelência
moral diz respeito apenas à última. Não se considera como emoção visto que não se
considera um homem bom ou mau com fundamento em suas emoções, mas em sua
excelência ou deficiência moral (vício), motivo pelo qual também não somos
louvados ou censurados pelas emoções. Outrossim, também não se considera
alguém bom por sua faculdade de sentir as emoções, visto que a faculdade é algo
que se possui de natureza. Resta assim, logicamente, que as virtudes dizem
respeito às disposições da alma e, de um modo mais específico, se trata da
disposição relacionada com a escolha das ações e emoções que devem ser
escolhidas, por serem boas, sendo estas, o meio-termo entre o excesso e a falta.
A excelência moral, então, é uma disposição da alma relacionada com a escolha de ações e emoções, disposição esta consistente num meio termo (o meio termo relativo a nós) determinado pela razão (a razão graças à qual um homem dotado de discernimento o determinaria). Trata-se de um estado intermediário, porque nas várias formas de deficiência moral há falta ou excesso do que é
77 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 38. 78 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 40.
42
conveniente tanto nas emoções quanto nas ações, enquanto a excelência moral encontra e prefere o meio termo. Logo, a respeito do que ela é, ou seja, a definição que expressa sua essência, a excelência moral é um meio termo, mas com referência ao que é melhor e conforme ao bem ela é um extremo.79
Em razão disso, ao se considerar a excelência moral como
uma disposição relativa à escolha das emoções e ações a serem vividas/praticadas,
considera-se somente as emoções e ações voluntárias, visto que somente estas
serão louvadas ou censuradas. Quanto às involuntárias, estas “[…] são perdoadas,
e às vezes inspiram piedade”80. Em razão disso, outro ponto a ser considerado na
questão das excelências morais são os atos voluntários.
São involuntárias as ações praticadas sob compulsão ou por
ignorância, portanto, quando o princípio do movimento possui origem externa ao
agente, não havendo contribuição deste ao ato, sendo pelo contrário influenciado
por este, movido, não há, por conseguinte, a dimensão moral envolvida.
Quanto à ignorância, considera-se que tudo aquilo que é feito
por ignorância é não-voluntário, sendo involuntário somente aquilo que causa
sofrimento e pesar. Neste mesmo sentido, o Estagirita considera a diferença entre
agir por ignorância e agir na ignorância, exemplificando-se este último caso com a
situação de uma pessoa embriagada ou encolerizada que age sem saber o que está
fazendo e na ignorância.81
Em sentido contrário, são voluntários os atos que são objeto de
uma escolha no momento de serem praticados, o indivíduo racionalmente opta por
agir de determinado modo, tendo em vista um fim específico que almeja alcançar,
sendo assim responsável por todas as conseqüências decorrentes deste ato. Por
este motivo, conclui Aristóteles que: “[…] as palavras ‘voluntário’ e ‘involuntário’
devem ser usadas com referência ao momento da ação […]”82.
Dentre o âmbito do voluntarismo, pode-se especificar ainda
mais a posição da excelência moral com a concepção de escolha, sendo que esta 79 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 42. 80 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 49. 81 BROADIE, Sarah. Ethics with Aristotle. New York; Oxford: Oxford University Press, 1991. p. 127. 82 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 50.
43
envolve o uso da razão e do pensamento no sentido de se buscar algo que seja um
bem àquele que está a escolher. Por isso, escolhe-se aquilo que é objeto de nossa
deliberação, tendo-se ainda que somente se delibera sobre coisas que são relativas
a nós mesmos (ninguém delibera sobre coisas eternas, nem sobre fenômenos que
ora ocorrem de uma maneira, ora de outra, nem sobre eventos fortuitos, nem sobre
todos os assuntos que interessam aos homens se, neste caso, não haja relação
conosco), que se encontram ao alcance do indivíduo. Delibera-se sobre os fins
sobre o qual se intenciona agir e, definida a finalidade, toma-se então a escolha,
implicando esta, no ato voluntário do agente, com todas as responsabilidades que
este agir envolve.
Então, como o objeto da escolha é algo ao nosso alcance, que desejamos após deliberar, a escolha será um desejo deliberado de coisas ao nosso alcance, pois quando, após a deliberação, chegamos a um juízo de valor, passamos a desejar de conformidade com nossa deliberação.83
Destaca-se neste ponto uma intersecção entre o âmbito das
virtudes morais e das intelectuais, visto que a construção de uma racionalidade reta,
que possua a capacidade a escolher o que é bom e deixar de escolher o que não é
envolve, mais do que a aquisição de bons hábitos, também uma formação intelectual
para tanto.
Tendo por base o que foi até aqui exposto, é extremamente
importante para a investigação do conceito de Justiça destacar que para Aristóteles
o indivíduo é plenamente responsável por aquilo que faz voluntariamente, visto que
ninguém é feliz contra a vontade, mas a desgraça pode ser voluntária. Deste modo,
o homem é o princípio gerador de suas ações e, por este motivo, plenamente
responsável pelas mesmas. Conforme destaca Hutchinson: “Até nos casos onde
nossa possibilidade de escolha é restringida por circunstâncias desfavoráveis, nós
permanecemos responsáveis por aquilo que escolhemos fazer […]”84.
Não poderia ser por outra razão que este assunto possui íntima
relação com a prática jurídica, visto que pune-se os autores de maldades e exigem 83 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 56. 84 “Even in cases where our range of choice is restricted by unfavourable circumstances, we remain
responsible for what we choose to do”. HUTCHINSON, D. S. Ethics. In: BARNES, Jonathan (Ed.). The Cambridge Companion to Aristotle. New York: Cambridge University Press, 1996.
44
deles uma reparação se o fizeram voluntariamente, sendo desresponsabilizados nas
situações em que tenham agido sob compulsão ou ignorância (considerada nestas
ainda o quanto que o agente influiu para o alcance do resultado, pois pune-se uma
pessoa se ela for considerada responsável pela ignorância, como nos casos de
embriaguez voluntária, pois a origem da ação está no próprio homem, bem como
pune-se as pessoas que ignoram dispositivos de leis ou conhecimentos específicos
de sua área de atuação que deveriam conhecer, pois presume-se que estava ao
alcance destes não ser ignorantes, havendo portanto responsabilidade no evento)85,
havendo íntima relação com a atual noção de dolo e culpa no âmbito da Ciência
Jurídica, conforme inclusive se verá mais adiante ao se falar sobre a Justiça em
Aristóteles.
Ao findar estas considerações preliminares, Aristóteles passa a
tratar então sobre cada uma das espécies de virtude no plano moral, apresentando-
se, neste ínterim, inicialmente a coragem e a temperança (moderação), virtudes que
disciplinam a parte irracional da alma.
Quanto à coragem, meio termo entre o medo e a temeridade
(ousadia), esta é considerada a capacidade de agir quando é devido e não agir
quando não é devido “[…] o homem corajoso escolhe e enfrenta as coisas porque é
nobilitante agir corajosamente, ou porque é ignóbil não agir assim”86.
A temperança, por sua vez, é o meio-termo no tocante aos
prazeres do corpo, mais precisamente ainda em relação àqueles prazeres que os
outros animais também sentem, parecendo por isso servis e bestiais, sendo estes os
que envolvem especialmente os sentidos do tato e do paladar e, dentre os dois,
mais ainda com relação ao tato (em relação aos alimentos, à bebida e às relações
sexuais)87.
Portanto, a temperança é a capacidade de racionalmente
controlar os impulsos, buscando-os quando é devido e evitando-os quando não for
devido praticá-los. A pessoa intemperante (concupiscente) sofre mais do que deve
85 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 57, 58. 86 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 62. 87 ARISTÓTELES. Moral a Eudemo. In: ________. Moral: La gran Moral. Moral a Eudemo. p. 53.
45
quando não consegue as coisas agradáveis, sendo neste sentido a falta do prazer
fonte de sofrimento, enquanto que o temperante não sofre com a falta de coisas
agradáveis, nem por abster-se delas.88
No livro quarto trata-se sobre as virtudes relacionadas à
administração dos bens e das honras, coisas que também são elementares para a
construção de uma vida Ética, visto que esta ciência envolve tanto o
desenvolvimento das capacidades pessoais, quanto à aquisição de bens externos
que nos possibilitem sermos felizes. Nesta parte da obra trata-se sobre as virtudes
da liberalidade, da magnificência e da magnanimidade.
A liberalidade é o meio-termo em relação à riqueza, a
capacidade de adquirir e gastar, vender e doar bens, quando é devido, sendo tais
pessoas louvadas por “dar e obter riquezas”89, sendo a prodigalidade e a avareza o
excesso e a falta de tal virtude.
Já a magnificência relaciona-se aos atos que têm a ver com os
gastos, porém de maior monta que os da liberalidade, tratando-se de um dispêndio
consentâneo com seus objetivos e em grande escala. Seus opostos são a
mesquinhez e a vulgaridade.
Por último, a magnanimidade (megalopsychos) relaciona-se
com grandes objetivos. Trata-se, assim, dos atos dotados de grandeza,
relacionando-se somente àqueles em que há preparação para tal.
Considera-se magnânima a pessoa que aspira a grandes coisas e está à altura delas, pois quem aspira a grandes coisas sem estar à altura delas é insensato, mas nenhuma pessoa dotada de excelência moral é insensata ou tola90.
Outro aspecto elementar o estudo da excelência moral se
refere às disposições morais a serem evitadas, objeto de estudo do livro VII da Eth.
Nic., mesmo texto utilizado no livro VI da Eth. Eud., sendo três estas espécies de
88 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 68. 89 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 71. 90 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 78.
46
disposições: a deficiência moral, ou vício (kakía), a incontinência (akrasía) e a
bestialidade (theriótes).91
Estas se referem a três gradações reprováveis da atitude
humana, tendo por contrários: do vício as virtudes, da incontinência a continência e
da bestialidade, enquanto maior proximidade aos animais irracionais, um tipo de
arete moral sobre-humana, a espécie heróica e divina louvada pelos poetas
gregos.92
Quanto ao vício, conforme se tratou anteriormente, este se
refere ao excesso e a falta nas mais variadas disposições onde o homem age
voluntariamente, sendo por isso medidas a serem evitadas.
Assim, o principal objeto de estudo deste livro acaba sendo a
definição da continência e incontinência, que se referem especialmente à busca do
ser humano pelo prazer, diferenciando estas da temperança e da intemperança,
visto que o homem continente não obrigatoriamente é virtuoso.
O homem incontinente é aquele homem que busca o prazer
por não possuir a capacidade de conter esta tensão, o que é marcante no próprio
termo que em grego akratós, ou seja, a ausência de domínio de si próprio. Como
este indivíduo não escolhe buscar o prazer, mas é impelido pelos seus impulsos
orgânicos a fazê-lo, não se considera este como um intemperante, visto que este
último opta por buscar o prazer, sabendo que naquele momento ele não é devido, o
que é muito mais reprovável.
O continente, neste ínterim, é aquele que, apesar de possuir
desejos fortes e maus, consegue segurá-los. Pela característica de possuir estes
desejos, este é diferente do temperante, que por sua disposição racional consegue
conter estes impulsos.
Outrossim, se a continência pressupõe que se tenha desejos fortes e maus, as pessoas moderadas não terão continência, nem as pessoas dotadas de continência serão moderadas, pois as pessoas
91 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Aristotélica: leitura e interpretação do pensamento
aristotélico. p. 1.075. 92 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 29.
47
dotadas de continência devem necessariamente ter desejos fortes e maus, pois se os desejos são bons a disposição que nos impede de segui-los é má, de tal forma que nem toda continência é boa; se, ao contrário, os desejos são fracos e não são maus, nada há de admirável em resistir-lhes, e se são fracos e maus, nada há de notável em resistir-lhes também neste caso.93
Quanto à bestialidade, esta é o extremo do distanciamento do
homem das características que se fazem considerá-lo como tal, não havendo como
se falar em excelência ou deficiência pela proximidade, mas sim na proximidade
deste tipo humano com as feras. Assim, a alienação, a covardia, a intemperança e a
irascibilidade, quando levadas ao excesso, são consideradas condições bestiais ou
mórbidas.94
Tendo por base o que foi até aqui exposto, restam
demonstrados os principais elementos que se referem à virtude moral, os quais
acabam por ocupar boa parte da teoria ética do Filósofo, faltando apenas tratar
sobre as questões da amizade e do prazer em sentido ético, que serão feitas em
momento posterior devido à sua importância ao tema.
Cumpre agora ressaltar os principais aspectos referentes às
excelências intelectuais no pensamento de Aristóteles.
2.1.2 As excelências intelectuais
A outra grade área das excelências que se deve atentar no
estudo da Ética se trata do aspecto intelectual, ou seja, tratam-se das virtudes que
dizem respeito à parte racional da alma, possuindo portanto relação direta com a
capacidade de raciocínio que os homens possuem.
Diógenes Laércio inclusive, em sua obra que trata sobre a vida
e a doutrina dos maiores filósofos gregos destaca que um dos principais pontos que
diferencia o pensamento aristotélico é sua defesa da formação intelectual para o
alcance de uma vida excelente, conforme colhe-se: “Esse filósofo sustentava que os
93 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 131. 94 ROSS, Sir David. Aristotle. p. 227.
48
estudos incluídos na educação enciclopédica são úteis para alcançarmos a
excelência”95.
Em Aristóteles, para se discutir as virtudes intelectuais é
importante ter-se por base que existem duas faculdades racionais, uma nos permite
contemplar as coisas cujos primeiros princípios são invariáveis, outra às coisas
passíveis de variação, denominando-se a primeira capacidade como faculdade
científica e à outra calculativa.96
Quanto à faculdade científica a primeira forma de excelência a
se destacar é o conhecimento científico (episteme), o qual se direciona ao
conhecimento das coisas que são verdadeiras. Este tipo de conhecimento, conforme
Aristóteles já tratou nos Analíticos (especialmente nos Analíticos posteriores)
procede por duas vias, por meio da indução se estabelecem os universais, enquanto
que pelos silogismos são os avanços feitos a partir dos universais.
A episteme se refere a um tipo de conhecimento que pode ser
ensinado, pelo qual busca-se identificar algo que já é existente e verdadeiro. Assim,
um homem possui conhecimento na situação em que “[…] tem uma convicção a que
chegou de certa maneira, e conhece os pontos de partida”97. Neste ponto, inclusive,
volta-se àquilo que Aristóteles já destacou no livro I de sua Metafísica, de que a
sapiência consiste no conhecimento das causas das coisas.98
A arte (techné) por sua vez, diferencia-se por ser uma
disposição relacionada com a criação, envolvendo assim um modo de raciocinar que
traga algo de novidade àquilo que é feito pelo artista. O ponto de novidade surge a
partir do intelecto do artista, sendo por este motivo considerado como algo artístico.
O Estagirita conclui assim que:
Toda arte se relaciona com a criação, e dedicar-se a uma arte é estudar a maneira de fazer uma coisa que pode existir ou não, e cuja origem está em quem faz, e não na coisa feita; de fato, a arte não
95 LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos Filósofos Ilustres. Tradução de Mário da Gama
Kury. 2. ed. Brasília: UnB, 1977. p. 136. 96 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 114. 97 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 115. 98 ARISTÓTELES. Metafísica. p.7.
49
trata de coisas que existem ou passam a existir necessariamente, nem de coisas que existem ou passam a existir de conformidade com a natureza (estas coisas têm sua origem em si mesmas). Já que há diferença entre fazer e agir, a arte deve relacionar-se com a criação, e não com a ação. De certo modo, aliás, o acaso e a arte se relacionam com os mesmos objetos […]”99.
A terceira excelência intelectual apresentada pelo Estagirita é a
sabedoria prática, também chamada de prudência (especialmente pela tradição
posterior a S. Tomás de Aquino) ou discernimento (phronesis), que diz respeito à
capacidade de deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para si mesmo.
Trata-se, portanto, de uma excelência ligada à faculdade calculativa da alma e que
se caracteriza por saber dentre as várias situações que surgem diante do indivíduo
escolher aquela que é a mais adequada, a que gera mais ganho existencial,
portanto, o modo mais virtuoso de se agir.100
Justamente por esta característica é que se destaca que a
phronesis diz respeito à situação existencial do momento, a algo que é variável, que
hoje pode ser vantajoso e amanhã não mais sê-lo, o que a torna diferente do
conhecimento científico, da intuição ou ainda da sabedoria filosófica como se verá
ainda. “O discernimento deve ser então uma qualidade racional que leva à verdade
no tocante às ações relacionadas com os bens humanos”101.
Destaca-se ainda que esta forma de excelência intelectual
possui íntima relação com a sabedoria política, diferenciando-se deste pois na
prudência visa-se o que é o melhor ao indivíduo que raciocina, enquanto que pela
sabedoria política se busca aquilo que é necessário, útil ou agradável à todos
aqueles que compõem a polis.
Ademais, a sabedoria prática identifica-se ainda com outras
espécies de conhecimento prático relacionados com o próprio indivíduo, dentre este
rol Aristóteles destaca a economia doméstica, a legislação, a deliberativa (ou
política) e por fim a judicial (de onde pela origem latina identifica-se a origem do
termo iurisprudentia), se referindo à sabedoria prática nestas específicas áreas, seja
99 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 116. 100 ROSS, Sir David. Aristotle. p. 223 101 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 117.
50
na arte de adquirir, usar e vender os bens, seja na fixação do que é o melhor para
uma cidade, seja na deliberação das questões de urgência desta mesma polis ou no
modo de se decidir da maneira mais adequada.102
Se o conhecimento científico discute as coisas universais e
necessárias, buscando identificá-las, o conhecimento demonstrado pelo raciocínio
científico é derivado, parte dos primeiros princípios. Todavia, nem pela via da
indução, nem pelos silogismos, se faz possível alcançar estes primeiros princípios,
razão pela qual deve haver outra espécie de excelência intelectual que possibilite ao
homem acessar este conhecimento. Destaca Aristóteles (o mesmo pode ser colhido
na Metafísica, no tratado De Anima e nos Analíticos posteriores) que estas verdades
primeiras e invariáveis pelas quais se parte ao conhecimento são captadas pela
intuição, também chamada de intelecto (nous).
Por fim, destaca-se como a última das virtudes intelectuais a
sabedoria filosófica ou sapiência (sophia), pois a partir desta não apenas se conhece
o que decorre dos primeiros princípios (nous), como também se possui uma
concepção verdadeira sobre estes próprios primeiros princípios, os discute como
objeto de estudo próprio. Tem-se assim que a sabedoria filosófica é uma
combinação do conhecimento científico com a intuição, sendo “[…] uma combinação
da inteligência com o conhecimento – um conhecimento científico consumado das
coisas mais sublimes”103.
Restam assim apresentadas as principais excelências
intelectuais para o homem, sendo todas elas de extrema importância ao homem que
busca construir um tipo de vida total. Todavia, nem todas elas obrigatoriamente
devem ser desenvolvidas pelos homens para se tornarem felizes, apesar de que, se
o saber filosófico, conforme foi dito, dizer respeito às coisas mais sublimes, sem este
não se poderá viver o tipo de felicidade mais sublime que existe.
Dentre as virtudes aqui apresentadas a mais importante para a
orientação da conduta humana é a sabedoria prática, visto que o seu
102 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Aristotélica: leitura e interpretação do pensamento
aristotélico. p. 1.069. 103 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 118.
51
desenvolvimento possibilita a construção da reta razão, a qual orienta o indivíduo a
saber querer (tendo em vista a ideia de vontade) aquilo que é adequado, que é ético,
agindo de modo corretamente. Pela sabedoria prática discute-se o que é justo,
nobilitante e bom para as pessoas.
Exemplificando esta relação, Aristóteles apresenta os casos de
Anaxágoras e Tales, este último famoso pois supostamente ao caminhar admirando
os céus, na busca por compreendê-los, acabou por cair em um buraco que estava à
sua frente, dizendo que estes homens possuíam sabedoria filosófica e nisso
conheciam coisas extraordinárias, difíceis e até divinas, mas não possuíam a
sabedoria prática, motivo pelo qual ignoravam aquilo que lhes era mais vantajoso.
Porém, tendo em vista que a prudência busca levar o indivíduo
ao conhecimento das verdades morais, com vistas a tornar esta uma pessoa boa,
este não terá qualquer utilidade para as pessoas que já forem boas, surgindo para
estas outros tipos de necessidades racionais que já não são meramente supríveis
por uma adequado tirocínio nas coisas práticas.
Tendo em vista estas considerações, quanto às virtudes
intelectuais e sua relação com a ética conclui-se que sem a sabedoria prática não é
possível ser bom e, consequentemente justo ou ético, nem é possível possuir este
discernimento adequado sem a construção da excelência moral. Apesar disso, não
se pode elevar a sabedoria prática à categoria de maior das virtudes intelectuais,
pelo contrário ela é a mais básica e serve de abertura para que o homem já
excelente moralmente e com um raciocínio minimamente adequado possa se abrir
às formas de conhecimento mais profundas e sublimes.
2.1.3 O acúmulo de bens exteriores, a amizade, o prazer e a felicidade
Para finalizar esta visão geral pela doutrina da Ética no
pensamento filosófico aristotélico cumpre neste momento tratar sobre a aquisição de
bens exteriores, especialmente no tocante à amizade, e, em seguida, sobre a noção
de prazer em Aristóteles e também a definição de felicidade.
O acúmulo de bens exteriores se faz importante no
pensamento aristotélico pois, tal como se destaca no livro I da Ethica Nicomachea
52
“[…] a felicidade também requer bens exteriores, pois é impossível, ou na melhor
das hipóteses não é fácil, praticar belas ações sem os instrumentos próprios”104.
Sobre esta questão considera-se especialmente a aquisição de dinheiro e das
amizades.
Com relação ao dinheiro, este se destaca como um meio
elementar à construção de uma vida ética, devendo-se ter a sabedoria para saber
adquiri-lo, administrá-lo, fazer investimentos, bem como para fazer com que o
dinheiro circule. Conforme visto, no livro IV se discorre sobre esta matéria,
especialmente no momento em que se tratou sobre virtudes da liberalidade, da
magnanimidade e da magnificência.
No que se refere à amizade, Aristóteles dedica ao assunto dois
livros de sua Eth. Nic. (livros VIII e IX), bem como os primeiros capítulos do livro VII,
último da Eth. Eud. O fato de o Estagirita dedicar dois livros do seu principal tratado
sobre a Ética à temática, aliás, demonstra sua importância para a construção da
felicidade do homem.
Ross destaca que um dos fatores para esta tratativa mais
acurada da temática é o fato de que a palavra amizade em grego possui um sentido
mais amplo do que o utilizado na atualidade: “[…] ela pode servir para qualquer
atração mútua entre dois seres humanos”105. O estudioso destaca ainda o
significado deste capítulo no conjunto da Ética aristotélica, visto que até então não
se havia falado sobre a relação entre o indivíduo e as demais pessoas, o que a
princípio poderia dar a impressão de que a Ética seria uma doutrina estritamente
egoísta e, pelo contrário, nesta parte Aristóteles destaca o quando que o
desenvolvimento de boas amizades é de extrema importância para uma vida feliz.106
Logo no início do livro VIII, Aristóteles destaca que os seres
humanos são dados a viver entre amigos, considerando-se que até que:
104 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 27. 105 “[…] it can stand for any mutual attraction between two human beings”. ROSS, Sir David. Aristotle.
p. 235. 106 ROSS, Sir David. Aristotle. p. 235.
53
[…] as pessoas ricas e as ocupantes de altos cargos e as detentoras do poder são as que mais necessitam de amigos; realmente, de que serve a prosperidade sem a oportunidade de fazer benefícios, que se manifesta principalmente em sua mais louvável forma em relação aos amigos? Ou então, como pode a prosperidade ser protegida e preservada sem amigos? Quanto maior ela for, mais exposta estará aos riscos. E as pessoas pensam que na pobreza e em outros infortúnios os amigos são o único refúgio. Além disso, os amigos estimulam as pessoas na plenitude de suas forças à prática de ações nobilitantes […] pois com amigos as pessoas são mais capazes de pensar e agir.107
Tendo em vista a relevância do assunto para a disciplina do
agir e do pensar humano, Aristóteles apresenta os diferentes tipos de amizade e no
que em cada um destes tipos se constrói o vínculo entre os amigos. Tem-se assim
as amizades constituídas pelo prazer, pelo interesse (utilidade) e também a amizade
perfeita.108
As amizades pelo prazer e pelo interesse são extremamente
volúveis, sendo consideradas por este motivo apenas acidentais, visto que não é a
pessoa em si que é amada, mas apenas o prazer ou o prazer que ela causa que o
são, e quando estes cessam, o amor existente entre ambos também cessa. O
primeiro tipo de amizade é considerado pelo Estagirita comum aos jovens, que se
envolvem e desvinculam facilmente neste período tendo em vista o proveito que
ganham com suas relações. Já a amizade por interesse é o tipo de amizade eleito
pela maioria, especialmente pelas pessoas idosas, visto que nesta idade os
indivíduos não buscam mais o agradável, mas sim o que lhes é útil.109
Em contrapartida, a amizade perfeita “é a existente entre as
pessoas boas e semelhantes em termos de excelência moral; neste caso, cada uma
das pessoas quer bem à outra de maneira idêntica, porque a outra pessoa é boa, e
elas são boas em si mesmas”110.
Este é o tipo de amizade duradoura, visto que ambos os
amigos mantêm este vínculo pela excelência que cada um possui e somente cessa
107 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 153. 108 REALE, Giovanni. Storia della Filosofia Antica: II. Platone e Aristotele. p. 510. 109 HUTCHINSON, D. S. Ethics. In: BARNES, Jonathan (Ed.). The Cambridge Companion to
Aristotle. p. 229. 110 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 156.
54
esta relação quando cessa o equilíbrio entre ambos os amigos e a parte
desequilibrada decide não buscar de volta o equilíbrio que cessou.
Por estas características aqui apresentadas, Aristóteles
considera que até mesmos as pessoas más e os criminosos podem possuir as
amizades por interesse ou pelo prazer, todavia não podem viver em conformidade
com o tipo de amizade perfeita, visto que estas pessoas não gostam uma da outra a
não ser que obtenham algum proveito nesta relação.111
Na amizade perfeita, ambas as partes colhem o mesmo tipo de
proveito ao estabelecerem a relação entre si, razão pela qual cada um proporciona o
desenvolvimento e a evolução do outro. Assim:
Gostando de um amigo as pessoas gostam do que é bom para si mesmas, pois a pessoa boa, tornando-se amiga, torna-se um bem para seu amigo. Cada uma das partes, então, ama o seu próprio bem e oferece à outra parte uma retribuição equivalente, desejando-lhe bem e proporcionando-lhe prazer. A propósito, diz-se que a amizade é igualdade, e ambas se encontram principalmente nas pessoas boas.112
Conforme se destaca no livro IX da Eth. Nic., tal como na
relação entre as ações o principal elemento que caracteriza a amizade é a
proporção entre as partes, razão pela qual até os desiguais podem manter vínculo
de amizade (somente em relação aos tipos por prazer ou interesse), devendo para
tanto compensar sua deficiência em relação ao outro. Neste espírito, Bittar considera
que: “A par da análise das personalidades, pode-se dizer que a amizade ocorre
entre iguais, ora entre desiguais. Onde as expectativas recíprocas se equivalem se
diz haver semelhança”113.
Trata-se ainda nesta mesma parte sobre as principais questões
envolvendo a amizade, como por exemplo, quando se torna necessário desfazer
uma amizade, como se deve tratar um ex-amigo, os sentimentos havidos entre os
amigos, bem como os motivos que levam o homem à constituir amizades.
111 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 157. 112 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 159. 113 BITTAR, Eduardo C.B. Curso de Filosofia Aristotélica: leitura e interpretação do pensamento aristotélico. p. 1.094.
55
Complementando aquilo que já havia destacado no início do
livro VIII, Aristóteles considera que o homem é um animal social, sendo, portanto,
natural a convivência (apesar de a capacidade de saber conduzir a si próprio, a
autarkeia ser primordial). Assim, conclui que o homem feliz necessita de amigos,
com quem possa compartilhar a convivência agradável e sempre reforçar o estímulo
ao desenvolvimento.
Conclui assim o Filósofo:
Então, se a existência é desejável em si mesma pelas pessoas sumamente felizes (já que existir é bom e agradável por natureza), e se acontece a bem dizer o mesmo em relação à existência de um amigo, um amigo será uma das coisas mais desejáveis. Ora: uma pessoa sumamente feliz deve ter aquilo que deseja, ou então ela será deficiente sob este aspecto. Portanto, o homem que tiver se ser feliz necessitará de amigos dotados de excelência moral.114
Findas estas considerações, o livro X da Ética principia por
concentrar-se na questão do prazer dentro do pensamento prático de Aristóteles.
De maneira diversa daquela tratada por Platão, para Aristóteles
o homem não deve buscar se afastar por completo os prazeres, pois para o
Estagirita estes são entendidos como bens, não sendo todavia melhores do que os
outros tipos de bens existentes. Ressalta assim Reale que dentre as correntes
contrapostas que se enfrentavam nesta matéria, especialmente dentro da Academia
platônica: “Aristóteles discute a fundo estas conclusões e assume uma posição bem
original nos confrontos destes e, em certo sentido, capaz de mediar as opostas
instâncias”115.
Para Aristóteles, o homem bom deve possuir o discernimento
necessário para saber escolher os prazeres que são devidos e evitar aqueles que
não o são, consideradas todas as circunstâncias que envolvem o momento da ação.
Assim, conforme Hutchinson: “O prazer é certamente uma coisa boa, na visão de
Aristóteles, quando este vem das atividades humanas apropriadas na condição
114 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 187. 115 “Aristotele discute a fondo queste conclusioni e assume una posizione assai originale nei confronti di esse e, in certo senso, capace di mediare le opposte istanze”. REALE, Giovanni. Storia della Filosofia Antica: II. Platone e Aristotele. p. 511, 515.
56
moral apropriada, e nosso mais alto bem, uma vida vivida com sucesso, incluirá o
prazer como um de seus bens”116.
Acerca do prazer Aristóteles entende que este, contrariamente
às excelências, que já se encontram ínsitas dentro do agente, é uma perfeição
cumulativa que acompanha a atividade que é efetuada, não sendo, portanto,
contínuo. Para o Filósofo existem inúmeros prazeres, sendo estes inerentes às
atividades efetuadas, tornando as atividades perfeitas pelo resultado que produz.
Destaca-se ainda que para Aristóteles são mais elevados os
prazeres adequados às criaturas humanas do que os outros em que os demais
animais também participam, estando portanto os prazeres ligados à alma intelectiva
em uma posição superior àqueles relativos à alma sensitiva.117
Nesta linha, chega-se finalmente à questão da natureza da
felicidade, já que esta foi apresentada no início da obra como a finalidade da vida
humana.
Tendo em vista todas as discussões realizadas em sua obra,
Aristóteles chega à conclusão de que a felicidade consiste na atividade conforme à
excelência, sendo a atividade conforme à mais alta de todas as formas de
excelência, que é a excelência da melhor parte de cada um de nós.
Considerando-se que o intelecto é a melhor parte que nós
possuímos, tal como encontra-se na Metafísica e também nos próprios tratados
sobre a Ética, logicamente a mais alta felicidade será a vida contemplativa (bios
theoretikos).118
Isto ocorre pois o intelecto não é somente a melhor parte do
homem, mas também se relaciona com os melhores objetos que são passíveis de
ser conhecidos pelo homem, bem como a contemplação é a atividade que pode ter
uma maior continuidade do que qualquer outra que pode ser exercida pelo homem,
116 HUTCHINSON, D. S. Ethics. In: BARNES, Jonathan (Ed.). The Cambridge Companion to Aristotle. p. 212. 117 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p.199, 200. 118 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 201.
57
sendo inclusive a mais prazerosa das atividades que se pode possuir. Por este
motivo:
[…] considera-se que a busca da sabedoria filosófica oferece prazeres de maravilhosa pureza e perenidade, e é de esperar que as pessoas que já conhecem a sabedoria filosófica passem o seu tempo mais agradavelmente que aquelas que ainda se esforçam por alcançá-la.119
Porém, a felicidade não é algo dado somente ao filósofo,
quando este é excelente, apesar de que ele, para Aristóteles, viverá o tipo de
felicidade mais completa, e em certo sentido até mesmo divina, visto que o intelecto
é a parte que o homem possui de mais divina.120 A vida conforme a qualquer
espécie de excelência moral também é feliz, apesar de sê-lo de um modo
secundário.
Tendo em vista a articulação existente entre estes dois níveis
de felicidade, a intelectiva e a felicidade tendo em vista os bens humanos, reflete
Hobuss:
Embora seja o que há de divino no homem, a ευδαιµονια é especificamente humana, e o homem não tem possibilidade de viver do mesmo modo que os deuses: o exercício daquilo que é divino em nós, a contemplação, pode ser a atividade mais contínua, mas não pode eliminar o seu caráter propriamente humano. Isto não significa cindir a ευδαιµονια em duas, uma perfeita e outra imperfeita, mas articulá-las no interior de uma concepção inclusiva permitida, sem problemas, a partir do discurso aristotélico propriamente dito.121
Com isto, tem-se o fechamento das principais ideias que
constituem a doutrina da ética no pensamento de Aristóteles. Todavia, a
consideração sobre o fim da conduta humana leva o pensador a não somente refletir
sobre como o homem deve se construir, mas também como que a sociedade deve
se portar para que os homens se tornem felizes, até porque é necessária a instrução
dos homens às virtudes para que estas venham a ser desenvolvidas em cada
indivíduo.
119 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 202. 120 KENNY, Anthony. Aristotle on the perfect life. New York: Oxford University Press, 1999. p. 96. 121 HOBUSS, João. Eudaimonia e Auto-Suficiência em Aristóteles. Pelotas: EGUFPel, 2002. (Coleção Dissertatio Filosofia). p. 134.
58
É impossível separar por completo a Ética da Política no
pensamento aristotélico, apesar de que o Estagirita foi o primeiro a tratar em
momentos separados sobre os dois assuntos, diferentemente de Platão, que as
considera em conjunto, aliada aos demais temas que compõem sua doutrina
filosófica, tal como se encontra em República ou ainda em As Leis. Aliás, no início
da Magna Moralia o Filósofo já considera esta íntima relação existente entre estas
duas partes da Filosofia Prática, in verbis:
A ética, a meu juízo só pode formar parte da política. Em política não é possível coisa alguma sem estar dotado de certas qualidades; quero dizer, sem ser homem de bem. Mas ser homem de bem equivale a ter virtudes; e, portanto, se em política se quer fazer algo, é preciso ser moralmente virtuoso. Isto faz que pareça o estudo da ética como uma parte e também como o princípio da política e, por conseguinte, sustenho que ao conjunto deste estudo deve se dar o nome de política mais bem do que de ética.122
Alcança-se assim o final da Ética e também o início da doutrina
política aristotélica, o que será feito no tópico seguinte.
2.2 A POLÍTICA
Tratadas sobre as principais questões do comportamento
humano e sobre o meio pelo qual se pode desenvolver um homem excelente, feliz, a
questão que surge logo em seguida é o papel da sociedade e, especialmente, dos
mecanismos de organização social para que se possa promover este tipo de
desenvolvimento.
O próprio final da Eth. Nic. serve como um prólogo à Política
neste sentido, especialmente no momento em que o Estagirita constata que os seus
predecessores se omitiram em tratar sobre a questão da legislação, razão pela qual
122 “La moral, a mi juicio, sólo puede formar parte de la política. En política no es posible cosa alguna
sin estar dotado de ciertas cualidades; quiero decir, sin ser hombre de bien. Pero ser hombre de bien equivale a tener virtudes; y, por tanto, si en política si quiere hacer algo, es preciso ser moralmente virtuoso. Esto hace que parezca el estudio de la moral como una parte y aun como el principio de la política, y, por consiguiente, sostengo que al conjunto de este estudio debe dársele el nombre de política mas bien que el de moral”. ARISTÓTELES. Moral: La Gran Moral; Moral a Eudemo. 6. ed. Traducción de Patricio de Azcárate. Madrid: Espasa-Calpe, 1976. Colección Austral. p. 25. (tradução livre).
59
se propõe a fazê-lo e assim estudar: “[…] de um modo geral a questão das
constituições, a fim de completarmos da melhor maneira possível, nos limites de
nossa capacidade, a filosofia das coisas humanas”123.
Logo em seguida, Aristóteles inclusive introduz o modo como
procederia o estudo da Política, especialmente feito no livro II desta obra ao
considerar que:
Primeiro, então, se algo foi dito com acerto e detalhadamente pelos pensadores anteriores, passemos em revista a sua contribuição; depois, à luz das constituições que colecionamos, examinemos as instituições que preservam ou destroem as cidades, e as que preservam ou destroem as várias espécies de constituições, e as razões pelas quais umas cidades são bem administradas e outras, ao contrário, são mal administradas. Quando tivermos estudado convenientemente estes assuntos é mais provável que possamos ver de maneira mais abrangente qual das várias espécies de constituições é a melhor, e como cada constituição deve ser estruturada, e quais as leis e costumes que uma constituição deve incorporar para ser a melhor. Comecemos a discussão.124
É preciso ter em conta que, para Aristóteles, o homem é, por
natureza, um animal político (πολιτικον ζωον)125, no sentido de que é um ser dado à
convivência com outros indivíduos, pois nasce já tendente a viver em sociedade, em
grupo, mesmo que seja dever de cada um tornar-se um ser autárquico, senhor de si
mesmo. Esta noção é ainda complementada pelo autor ao considerar que quem não
necessitasse da cidade seria ou uma besta, ou um ser sobre-humano.126
Este entendimento inclusive sintetiza a visão de mundo do
homem grego, para o qual inexistia a ideia de indivíduo, mas somente a de cidadão
(polites) que fazia parte da cidade-estado (polis). Inclusive quando este cidadão ia
viver em outra localidade, nesta seria tratado conforme sua condição de estrangeiro,
não possuindo, portanto, os direitos políticos inerentes à cidadania. Vale ressaltar
que a noção de indivíduo somente será construída no período posterior à morte de
Alexandre Magno e, por conseguinte, posterior também à morte de Aristóteles,
123 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 210. 124 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 210, 211. 125 ARISTÓTELES. Política. Tradução de António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes.
Lisboa: Vega, 1998. (Edição Bilíngue). p. 49-99. 126 ARISTÓTELES. Política. p. 55.
60
quando a nova organização política afasta a maioria dos homens da organização da
cidade, cindindo-se portanto a noção de cidadão daquela de indivíduo.
Para realizar a discussão sobre a sociedade, Aristóteles parte
da primeira instituição política, que faz a mediação entre cada homem e a cidade, a
família. Assim, o livro I é dedicado a considerar a organização familiar, sua estrutura,
composição e os poderes existentes dentro dela, consideradas as relações entre
marido e mulher, pais e filhos e senhores e servos, bem como considera ainda a
importância da economia doméstica para a boa administração dos bens do lar, bem
como para a aquisição de novos bens.127
Finda esta primeira parte, logo em seguida no livro II o
Estagirita procede do modo como havia indicado no final da Eth. Nic., considerando
neste capítulo as principais doutrinas formuladas por Platão, Fáleas de Calcedônia e
Hipodamo de Mileto, bem como as constituições de Lacedemônica, Creta e Cartago
e, ainda, a legislação formulada por Sólon para Atenas.128
Após estas considerações iniciais é que Aristóteles parte a
apresentar suas principais noções sobre o assunto da organização política da
cidade, destacando-se o livro III da obra como o mais importante para se
compreender a noção de Política dentro do pensamento aristotélico.
Neste sentido, primeiramente o filósofo considera o conceito de
cidade e de cidadão, para então analisar a questão das formas de governo e outros
elementos correlatos.
A cidade é definida por Aristóteles como a comunidade de
pessoas autossuficientes que buscam garantir as condições primordiais a uma boa
vida. As pessoas anseiam uma vida boa e feliz, mas apenas a vida em família ou em
comunidade não é suficiente para tanto, sendo necessária a construção de um tipo
de organização política que venha a permitir o alcance de uma vida perfeita, esta é a
cidade e, por conseguinte, sua finalidade será a mesma da Ética, o alcance da
felicidade:
127 WOLFF, Francis. Aristote et la Politique. Paris : Presses Universitaires de France, 1991. p. 30. 128 ARISTÓTELES. Política. p. 103-181.
61
A finalidade e o objectivo da cidade é a vida boa, e tais instituições propiciam esse fim. A cidade é constituída pela comunidade de famílias em aldeias, numa existência perfeita e auto-suficiente; e esta é, em nosso juízo, a vida feliz e boa. É preciso concluir que a comunidade política existe graças às boas ações, e não à simples vida em comum.129
Por este motivo, Reale considera que o Estado (a cidade) é o
último ente cronologicamente (visto que é posterior à família e à aldeia), mas é o
primeiro ontologicamente, pois é a cidade se configura como o todo em que a família
e a aldeia são partes e o todo precede à parte. A cidade dá sentido às outras
comunidades e é a única dentre estas que é autosuficiente.130
Outro conceito elementar ao se tratar da política é o de
cidadão, pois conforme destaca Reale, para Aristóteles “[…] não basta habitar no
território dela (da cidade), nem gozar do direito de iniciar uma acção judicial, nem
sequer é suficiente ser descendente de cidadãos”131, para Aristóteles cidadão é
aquele que pode participar da administração da justiça ou do governo.132
O próprio filósofo destaca que este conceito de cidadão aborda
de um ponto de vista generalista a questão, visto que em cada uma das formas de
governo a noção de cidadão será complementada pela componente de quais
pessoas podem ter acesso ao poder, de modo que em um certo sentido somente em
uma das formas de democracia este conceito seria aplicado em absoluto.
Finda esta questão, Aristóteles depara-se com uma
interessante questão, se as virtudes do homem bom são as mesmas do homem de
bem, o que faz se considerar diretamente a relação entre a Política e a Ética.
Ao apreciar este ponto é importante ter em mente que as
virtudes do homem de bem se tratam daquelas expostas por Aristóteles em seus
tratados sobre a Ética, enquanto que a virtude do cidadão deverá se relacionar ao
governo da polis e pertencer a todos os seus cidadãos.
129 ARISTÓTELES. Política. p. 221. 130 REALE, Giovanni. Storia della Filosofia Antica: II. Platone e Aristotele. 9. ed. Milano: Vita e
Pensiero, 1997. p. 523. 131 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 99. 132 ARISTÓTELES. Política. p. 187.
62
Tem-se assim que ambas as virtudes não são as mesmas e
que somente viriam a sê-lo na cidade perfeita.133 Contudo, o homem bom poderá ser
um bom cidadão, se puder fazer parte do governo (tendo em vista as diversas
formas que serão apresentadas mais adiante), enquanto que o bom cidadão
precisará de início estar adequado ao modelo de governo vigente e, além disso,
possuir virtudes específicas para sê-lo. Fechando este ponto e já dando início ao
próximo, tem-se que o homem bom possuirá os elementos necessários para ser um
bom governante (tal como se encontra na M. M.), enquanto que o inverso não é
verdadeiro.
O bom cidadão deve ter a sabedoria de mandar e também de
obedecer, visto que os cargos políticos em sua maioria são eletivos e temporários.
Por este motivo, faz-se necessária também a consideração de que virtudes
diferenciam aquele que manda dos que obedecem e, neste ponto, Aristóteles
considera que o bom governante deve possuir a virtude da prudência (motivo pelo
qual inclusive considerou-se a existência de uma sabedoria prática das coisas
políticas na Eth. Nic.), enquanto que o bom cidadão deve enquanto a virtude peculiar
ao cidadão, além de reconhecer a autoridade dos homens livres, também se trata da
opinião verdadeira das coisas relativas à polis.134
Fixadas estas considerações preliminares, Aristóteles passa
então a tratar sobre a diversidade de regimes e as formas de autoridade, também
chamadas de constituições (politeia) das cidades.
Insta salientar que quando se utiliza neste trabalho o termo
constituição, não se está a considerar a noção de um texto fundamental no qual
encontram-se as bases para a construção da organização política, sentido moderno
dado ao termo e motivo pelo qual muitos tradutores, como o que se utilizou no
presente trabalho dão preferência à expressão ‘regime’.135 Aristóteles define
constituição (politeia) como: “a organização da cidade no que se refere a diversas
magistraturas e, sobretudo, às magistraturas supremas. O governo é o elemento
133 ARISTÓTELES. Política. p. 197. 134 ARISTÓTELES. Política. p. 201. 135 WOLFF, Francis. Aristote et la Politique. Paris : Presses Universitaires de France, 1991. p. 85.
63
supremo em toda a cidade e o regime (constituição) é, de facto, esse governo”136.
Tem-se assim que ao se falar em constituição está a se tratar do próprio modelo de
organização da cidade e do regime de governo do que do texto que funda aquela
cidade.
A análise das principais formas de governo ou constituições é feita
no sentido de considerar duas espécies: os regimes que se direcionam ao bem
público, considerados como retos; e os governos que tem por base os interesses
dos próprios governantes, considerados como defeituosos e desviados dos regimes
retos.137 Tal como assinala Bittar: “A retidão ou a torpeza de um regime, nestes
moldes, se mede por estar ou não voltado para o bem comum, por estar ou não
encaminhado para a satisfação da massa e não dos interesses particulares e
próprios do governante […]”138.
Além desse pressuposto, considera-se ainda o número de
governantes para se diferenciar as diversas espécies de constituição. Portanto:
“Quando o único, ou os poucos, ou os muitos, governam em vista do interesse
comum, esses regimes serão rectos. Os regimes em que se governa em vista do
único, dos poucos, ou dos muitos são transviados”139.
Deste modo, se o governo é exercido apenas por uma pessoa, tendo
em vista o benefício de todos, se trata de uma monarquia, caso vise o bem do
próprio governante, caracteriza-se como uma tirania. Do mesmo modo, o governo
exercido por poucos, composto pelos melhores ou aqueles que propõem o melhor
para a cidade e seus membros é uma aristocracia (do grego aristein, o melhor), cujo
desvio é a oligarquia, o governo exercido por poucas pessoas, compostas pelos
mais ricos e que buscam seus próprios interesses. Por último, se o governo é
exercido pela maioria dos cidadãos tendo em vista o bem comum, dá-se o nome de
politia, ou regime constitucional, que é o nome comum às demais formas, o desvio
desta última forma é a democracia, entendida como o governo dos mais pobres (por
serem a maioria), tendo em vista o próprio interesse.
136 ARISTÓTELES. Política. p. 207. 137 WOLFF, Francis. Aristote et la Politique. Paris : Presses Universitaires de France, 1991. p. 89. 138 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Aristotélica: leitura e interpretação do pensamento aristotélico. p. 1.217. 139 ARISTÓTELES. Política. p. 211.
64
Um ponto importante a ser abordado aqui é que,
diferentemente do pensamento platônico, Aristóteles não constrói sua teoria política
no intuito de caracterizar o modelo ideal de governo a ser alcançado, razão pela qual
apesar de manifestar a preferência pela forma de governo aristocrática, visto que
nesta os melhores cidadãos, ou seja, aqueles que vivem conforme à ética, os
homens de bem serão os governantes, o Filósofo não a apresenta como um modelo
absoluto de governo.
Isto ocorre por variados motivos, sendo que, um dos
determinantes é o número de cidadãos de valor que uma cidade possui, motivo pelo
qual, sendo raro se encontrar em uma cidade uma pessoa que se destaque sobre
todas as demais, ou um grupo que também tenha esse destaque, o modelo da
politia apresenta-se como o mais plausível, tomando para si elementos da oligarquia
e da democracia em um governo que tem por norte a presença de uma classe média
forte, que garante que os interesses de ricos e pobres não entrem em conflito a
ponto de darem causa a qualquer tipo de revolução.
Outros elementos que não se pode deixar de considerar é a
natureza da população, o local da cidade, o clima, dentre outros fatores a que se
deve atentar para se definir qual é o melhor governo para uma determinada
localidade, assim, considera Aristóteles que: “Um determinado povo é naturalmente
destinado para um governo despótico, outro para a realeza, outro para um regime
constitucional, o que é justo e vantajoso para cada um deles […]”140, sendo que
somente os governos desviados fogem à regra, visto que são contrários à natureza
das coisas.141
Por tudo o que foi considerado, torna-se possível então concluir
qual é o bem visado pela Ciência Política. Se na Ética a finalidade a ser alcançada é
a felicidade, a qual também é a finalidade da própria cidade, como foi visto, o bem a
ser alcançado pela Política é a Justiça, como elemento primordial para que a cidade
possa vir a ser feliz.
140 ARISTÓTELES. Política. p. 263. 141 WOLFF, Francis. Aristote et la Politique. Paris : Presses Universitaires de France, 1991. p. 97,
98.
65
Refletindo sobre este ponto, Taylor conclui que “A teoria
política, então, não é para Aristóteles uma área distinta da teoria moral nem a
aplicação da teoria moral na esfera política, mas sim, ela é uma disciplina auxiliar à
teoria moral”142. Tem-se assim que para o autor a Política é o meio pelo qual se
pode definitivamente alcançar a excelência sob o prisma da Ética, entendimento
também partilhado por Morrall, ao considerar o papel e a responsabilidade da
autoridade política.143
A concepção de Justiça anunciada por Aristóteles dentro da
polis, conforme será visto mais adiante, consiste em tratar os iguais como iguais e os
desiguais como desiguais, sendo, portanto, o ponto nevrálgico da questão
determinar qual noção de igualdade e desigualdade que deve ser considerada.144.
É com base nos elementos aqui considerados que Aristóteles
parte então à análise mais cuidadosa de cada uma das constituições por ele
apresentadas, a começar pela monarquia no final do livro III. Já no livro IV são
consideradas as peculiaridades que envolvem o regime oligárquico e democrático,
temática que é retornada no livro VI, o regime da politia como um meio-termo entre
estes dois extremos, a aristocracia e, ainda, o governo tirânico. O livro V é dedicado
a tratar sobre a teoria das revoluções e o modo como cada um dos governos
elencados, especialmente a tirania, poderá sustentar seu poderio, evitando-se
qualquer movimento revolucionário. No livro VII são consideradas as relações entre
a Política e a Ética, na busca pelo alcance da felicidade, bem como outros
elementos que se deve atentar para a construção da cidade, enquanto que o livro
VIII tratará sobre a educação dos jovens de modo que venham a manter o caminho
de crescimento da própria cidade e também para que sejam homens de valor.
Antes de finalizar este capítulo, vale ressaltar que no final do
livro IV Aristóteles apresenta a visão das partes que compõem o governo, dividindo-
142 “Political theory, then, is for Aristotle neither a distinct subject from moral theory nor the application of moral theory to the political sphere; rather, it is a discipline ancillary to moral theory”. TAYLOR, C. C. W. Politics. In: BARNES, Jonathan (Ed.). The Cambridge Companion to Aristotle. New York: Cambridge University Press, 1996. p. 233. 143 MORRALL, John B. Aristóteles: pensamento politico. 2. ed. Tradução de Sérgio Duarte. Brasília: UnB, 1985. p. 55, 56. 144 ARISTÓTELES. Política. p. 231.
66
o em três, sendo estas a função deliberativa, executiva e judicial. Nos dizeres de
Aristóteles:
Uma dessas três partes relaciona-se com a deliberação sobre assuntos que dizem respeito à comunidade. A segunda é a que se refere às magistraturas (ou seja, por um lado, quais as magistraturas e sobre que assuntos devem ter autoridade; por outro, de que modo se deve proceder à sua eleição). A terceira parte é a que respeita ao exercício da justiça.145
O que se nota é que já em Aristóteles se manifestava uma
concepção tripartida das funções de governo, apesar de não haver no pensamento
do Filósofo uma noção dos três poderes separados um do outro, do modo como
entendemos na atualidade. Estas funções certas vezes eram de competência dos
mesmos órgãos, bem como não havia em Aristóteles a necessidade de se
caracterizar cada parte do governo de modo autônoma e independente. Apesar
disso, nota-se a influência do Estagirita na construção das mais atuais concepções
de governo através deste fator.
Concluindo esta parte, tem-se que a Política, para Aristóteles, é a
mais importante das ciências práticas, encarregada da mais nobre função dentre
estas, a construção de uma sociedade justa, que possibilite àqueles que nela
habitam uma vida feliz e venturosa, em conformidade com os ditames da Ética.
Feitas estas considerações, torna-se possível partir para a análise
do conceito de Justiça como parte importante das doutrinas da Filosofia Prática no
pensamento do Estagirita.
145 ARISTÓTELES. Política. p. 325.
Capítulo 3
O CONCEITO DE JUSTIÇA NA FILOSOFIA ARISTOTÉLICA
Após todas as considerações anteriormente feitas é que torna-
se possível tratar sobre o conceito de Justiça de Aristóteles. Com efeito, busca-se
determinar o significado deste conceito dentro da filosofia do pensador de Estagira,
de modo que para tanto é elementar ter em vista o sistema de pensamento
aristotélico e, mais ainda, a doutrina da Filosofia Prática de Aristóteles, visto que a
Justiça encontra-se inserta dentro deste assunto.
Sobre este ponto, destaca Máynez: “Estamos igualmente
convencidos de que os ensinamentos de Aristóteles sobre o justo estejam
estreitamente vinculados aos conceitos básicos de sua filosofia moral, e em não
poucos aspectos constituem sua aplicação"146.
Assim, tendo em vista os aportes teóricos já obtidos, pretende-
se no presente capítulo atingir o principal objetivo deste trabalho monográfico, qual
seja, apresentar o conceito de Justiça de Aristóteles e as principais implicações do
mesmo nas Ciências Práticas.
Com base nestes elementos, pretende-se neste momento partir
da definição aristotélica de Justiça enquanto virtude, para então tratá-la nos
aspectos políticos, tendo em vista as noções de Justiça Universal e Justiça
Particular, dentro desta última as concepções de Justiça Distributiva e Corretiva,
além de considerar a divisão entre Justiça Doméstica e Justiça Política, esta última
no sentido natural e legal, o conceito de Equidade de Aristóteles e, por fim, a relação
entre amizade, Justiça, formas de governo e a vida perfeita.
146 “Estamos igualmente convencidos de que las enseñanzas de Aristóteles sobre lo justo se hallan
estrechamente vinculadas a los conceptos básicos de su filosofía moral, y en no pocos respectos constituyen su aplicación”. GARCIA MÁYNEZ, Eduardo. Doctrina Aristotélica de la Justicia: estudio, selección y traducción de textos. México: Universidad Autónoma de México, 1973. p. 8. (tradução livre).
68
Para alcançar o objetivo deste capítulo serão utilizados
especialmente o livro V da Eth. Nic., que é o mesmo livro IV da Eth. Eud. e é
dedicado em sua totalidade a considerar as concepções de Justiça do Estagirita.
Serão utilizadas também a Pol., bem como a Reth., bem como do auxílio de
importantes intérpretes do pensamento aristotélico para se garantir o sucesso da
presente investigação.
3.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A JUSTIÇA ENQUANTO VIRTUDE: A JUSTIÇA
UNIVERSAL
Por tudo o que foi já exposto sobre a Ética faz-se possível
deduzir que a Justiça será uma espécie de virtude que disciplina o agir humano, o
que está plenamente correto.
Aliás, para a tradição filosófica anterior, especialmente tendo
em vista o pensamento platônico a Justiça era enquadrada como uma das virtudes
cardeais (junto da coragem, da temperança e da sabedoria) que direcionam a
conduta correta do ser humano.
A temática da Justiça reveste-se de tamanha importância no
pensamento aristotélico que recebe um livro próprio a tratar sobre o assunto nos
seus dois principais tratados sobre a Ética. Além disso, conforme tratou-se no
capítulo anterior, a Justiça é a própria finalidade da Política enquanto Ciência, o que
demonstra a importância da temática no pensamento prático de Aristóteles.
E que tipo de virtude será a Justiça? Aristóteles parte da noção
comum de que: “[…] justiça é a disposição da alma graças à qual elas (as pessoas)
se dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo […]”147.
Assim, a injustiça seria “[…] a disposição da alma graças à qual elas agem
injustamente e desejam o que é injusto”148.
Isto contudo traz uma dificuldade, que é determinar qual é a
noção de justo de deve ser considerava, visto que o conceito de justo é ambíguo e
147 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 91. 148 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 91.
69
os seus significados são próximos uns dos outros, motivo pelo qual essa
ambigüidade comumente não é notada.
Tendo em vista este caráter ambíguo do termo é que
Aristóteles se propõe a investigar em quantos sentidos as pessoas podem ser
consideradas injustas e em quanto justas, considerando assim que o termo ‘injusto’
aquele que não respeita a lei (paranomos), aquele que não respeita a igualdade
(ánisos), aquele que toma em excesso o que é bom, seja no sentido absoluto, seja
no sentido relativo (pleonéktes).149 Tendo em vista estes elementos, conclui-se que:
“O justo, então, é aquilo que é conforme à lei e correto, e o injusto é o ilegal e
iníquo”150.
Um destaque precisa ser feito antes de prosseguir nestas
investigações, que é o sentido que deve ser dado à palavra nomos por Aristóteles,
visto que conforme destaca Máynez, esta possui um sentido muito mais amplo do
que o termo lei. Assim, citando Saalomon, o autor destaca: “O νοµοζ abarca tanto à
lei, na acepção moderna do termo, como às convenções sociais, às regras do
decoro, às formas de vida, os usos e, em resumo, tudo o que no existir social
aparece ante a nós como regra e ordem”151.
Ainda sobre o conceito de nomos, considera Bittar:
A lei é, aqui, a razão humana atuando para a sobrevivência do espaço social. Trata-se, em suma, de uma forma convencional, imperativa, de se consentir o envolver daquele que pode se determinar como sendo o télos social, plena realização da racionalidade política humana, o que se encontra em estreito vínculo com a própria noção de sociabilidade.152
Importante se considerar esta questão, até porque o termo
nomos irá acompanhar toda esta investigação acerca do conceito aristotélico de
149 BITTAR Eduardo C.B. A Justiça em Aristóteles. p. 113. 150 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 92. 151 “El νοµοζ abarca tanto a la ley, em la acepción moderna del término, como a los
convencionalismos sociales, las reglas del decoro, las formas de vida, los usos y, en resumen, todo lo que el existir social aparece ante nosotros como regla y orden”. SALOMON apud GARCIA MÁYNEZ, Eduardo. Doctrina Aristotélica de la Justicia: estudio, selección y traducción de textos. p. 63. (tradução livre).
152 BITTAR Eduardo C.B. Curso de Filosofia Aristotélica: leitura e interpretação do pensamento aristotélico. p. 1.045.
70
Justiça, bem como, conforme destaca Máynez, por essa razão quando se fala no
legislador (nomotétes), deve-se vislumbrá-lo como um ser que carece de existência
real, visto que não se tratará apenas do indivíduo com competência legislativa no
sentido atual do termo, mas também àqueles que deram início aos usos e costumes
vigentes e uma sociedade.
Com a definição de injusto como iníquo, tem-se a relação dos
homens com os bens, mais especificamente com os bens dos quais dependem a
prosperidade e a adversidade, sendo que o iníquo será o homem ambicioso, aquele
que busca sempre o maior quinhão das coisas boas e o menor das que não são
boas em excesso à sua própria necessidade.
Por outro lado, o injusto também será aquele que infringe as
leis (no sentido de nomos), visto que os atos conformes à lei são em certo sentido
justos, porquanto estipulados pelo legislador com vistas ao interesse comum a todas
as pessoas, às melhores, ou à classe dos governantes, de forma que consideram-se
que os atos da lei intencionam produzir e preservar a felicidade, e os elementos que
a compõem, para a comunidade política (motivo pelo qual inclusive deve o legislador
ter estudado tão bem a Ética, conforme se destacou anteriormente).
Com base nestas considerações, conclui Aristóteles que:
[…] a justiça neste sentido é a excelência moral perfeita, embora não o seja de modo irrestrito, mas em relação ao próximo. Portanto a justiça é frequentemente considerada a mais elevada forma de excelência moral, e “nem a estrela vespertina, nem a matutina é tão maravilhosa”, e também se diz proverbialmente que “na justiça se resume toda a excelência”.153
O motivo que conduz o Filósofo à conclusão apresentada
acima é o fato de que a Justiça, nos termos anteriormente considerados se trata da
mais alta das virtudes, pois ela pode ser praticada não somente em relação a si
mesmo (como as demais virtudes), mas também em relação ao próximo. A Justiça,
portanto, se traduz no fazer o que é vantajoso para os outros, quer se trate de um
governante, de um companheiro ou de toda a comunidade.
Assim:
153 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 93.
71
O pior dos homens é aquele que põem em prática sua deficiência moral tanto em relação a si mesmo quanto em relação aos seus amigos, e o melhor dos homens não é aquele que põe em prática sua excelência moral em relação a si mesmo, e sim em relação aos outros, pois esta é uma tarefa difícil.154
Por este motivo é que se considera que a Justiça não é uma
parte da excelência moral, da virtude, mas a excelência moral inteira. O que difere a
Justiça da excelência moral, em essência é o fato de que uma se trata do exercício
da virtude em relação ao próximo, enquanto que a outra é o exercício virtuoso como
uma disposição irrestrita, por sua vez, em vista desta relação, o vício da Justiça
corresponde ao maior dos vícios.
O que se tem apresentado aqui é a concepção de Justiça
Universal ou Total, conforme prefere Bittar, de Justiça, correspondendo
especialmente ao respeito das condutas normativamente prescritas (pois apesar de
noções diversas o conceito de iníquo está contido no de ilegal).
Sobre a Justiça Universal, considera Bittar:
Esse tipo de justiça é o gênero, o sentido mais amplo que se pode atribuir ao termo. A justiça total é também chamada de universal ou integral, e tal se deve ao fato de ser a abrang6encia de sua aplicação a mais extensa possível. Pode-se mesmo afirmar que toda virtude, naquilo que concerne ao outro, pode ser entendida como justiça, e é neste sentido que se denomina justiça total ou universal.155
Importante destacar que nesta concepção de Justiça Universal
encontra-se encerrada não somente a visão da Justiça enquanto a maior das
virtudes éticas que um indivíduo pode possuir, mas também nela se encerra todo o
objetivo da própria Justiça política, visto que, tal como se considerou no tópico sobre
a Pol. de Aristóteles, o fim visado por esta é a própria Justiça e, por meio desta,
conduzir os cidadãos a uma vida boa e feliz.
Contudo, esta noção geral da Justiça não encerra toda a
questão sobre a justiça, motivo pelo qual o Estagirita passa a considerar outros tipos
de Justiça, estes em sentido não mais universal, mas particular. Dentro desta
154 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 93. 155 BITTAR, Eduardo C.B. A Justiça em Aristóteles. p. 114, 115.
72
concepção duas formas de se ver a Justiça surgirão, conforme se verá a seguir, a
Justiça Distributiva, ou Geométrica e a Justiça Corretiva, ou Aritmética.
3.2 O JUSTO EM SENTIDO PARTICULAR: JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E
CORRETIVA
Tratadas sobre as principais questões sobre a Justiça em sua
acepção máxima, cumpre neste momento trabalhar os significados de Justiça no
sentido restrito, ou particular do termo.
Enquanto a Justiça Universal direciona-se a toda a comunidade
de pessoas (koinonia), a todos os que circundam ao indivíduo, contrariamente a
Justiça Particular tem por objeto a relação entre indivíduos singularmente
considerados. Por este motivo, considera Bittar:
A justiça particular refere-se ao outro singularmente no relacionamento direto entre as partes, diferença fundamental que permite se encontrem as fronteiras de aplicação terminológica entre a justiça em sua acepção particular e em sua acepção universal. Ressalte-se, ainda, que enquanto a espécie relaciona-se apenas com a conduta de um homem de bem, no gênero por parte daquele que obra injustamente, sejam honoríficas, sejam pecuniárias, sejam de segurança pessoal do agente, caso em que se constitui a injustiça legal.156
Tendo em vista esta categoria pertencente à Justiça Universal,
o Estagirita propõe-se então a verificar que espécie de meio-termo consiste as
espécies de justo particular. Neste escopo, duas espécies de Justiça são concebidas
pelo Estagirita. São estas a que se manifesta na “[…] distribuição de funções
elevadas de governo, ou de dinheiro, ou das outras coisas que devem ser divididas
entre os cidadãos que compartilham dos benefícios outorgados pela constituição da
cidade”157 e também a outra “[…] é a que desempenha uma função corretiva nas
relações entre as pessoas”158.
156 BITTAR, Eduardo C.B. A Justiça em Aristóteles. p. 118. 157 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 95. 158 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 95.
73
Destaca Aristóteles que, sendo tanto o homem injusto quanto o
ato injusto iníquos, e que entre o excesso e a falta, que dizem respeito ao injusto
deve haver o meio-termo, que é o igual entre ambas as partes, se terá que o justo
pressupõe no mínimo quatro elementos, pois as pessoas para a qual ele é de fato
justo são duas e os objetos distribuídos são também dois. No momento em que há
desigualdade nestas proporções instaura-se a injustiça que favorece a uma das
partes. Portanto, o justo em sentido particular será uma espécie do gênero
proporcional, todavia esta proporção irá variar conforme se trate de um dos gêneros
anunciados.
Em relação à primeira espécie de Justiça enunciada, que diz
respeito especialmente às áreas que na atualidade considera-se como de
competência do Direito Público, ou seja, às distribuições de cargos ou funções, de
dinheiro ou outras coisas a serem divididas e partilhadas o justo deve ser uma
proporção conforme ao mérito de quem recebe. Esta noção de mérito, obviamente,
irá variar conforme ao governo em que se destina, por exemplo o Filósofo destaca
que aos democratas a distribuição deve ser de acordo com a condição de homem
livre, os oligarcas com a riqueza (ou nobreza de nascimento) e os aristocratas com a
excelência. Neste sentido, quando se concluiu no capítulo anterior que a Justiça na
polis seria tratar os iguais como iguais e os desiguais como desiguais, se está a
considerar exatamente a noção aristotélica de Justiça Distributiva.159
O fato é que esta proporção conforme o mérito irá ser tomada
geometricamente, considerando-se que: “[…] o elemento A está para o elemento B
assim como o elemento C está para o elemento D, e portanto, por alternação A está
para C assim como B está para D”160. O injusto nesta relação será a violação desta
proporcionalidade, tanto quanto um quinhão se torna muito grande e o outro muito
pequeno.
Ao considerar os pressupostos desta forma de Justiça,
considera Máynez:
159 WOLFF, Francis. Aristote et la Politique. Paris : Presses Universitaires de France, 1991. p. 100. 160 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 96.
74
A distributiva pressupõe, segundo a sumária caracterização que dela faz o filósofo na mesma passagem: a) A existência do repartível entre os membros da comunidade. b) A da instância encarregada de fazer a repartição. c) A do critério que, ao ser observado, determinará a retidão do ato
distributivo.161
Portanto, sinteticamente, tem-se que a Justiça Distributiva ou
Geométrica diz respeito às distribuições de bens, cargos ou honrarias e que deve
seguir uma proporção geométrica para tanto, cada uma das partes relacionadas
deve receber o que lhe é de direito, segundo o mérito que possui. No momento em
que esta proporção fosse violada, e que alguém recebesse menos que o devido ou
mais do que lhe cabia, estar-se-ia diante de uma injustiça.
A outra espécie de Justiça a ser considerada neste ponto é a
corretiva, esta diz respeito às relações diretas entre indivíduos, motivo pelo qual se
subdivide em uma parte que versa sobre as transações voluntárias e outra que trata
das transações involuntárias. Por este motivo, inclusive, a noção de Justiça
Corretiva é maior do que a de Justiça Comutativa defendida por pensadores
posteriores, visto que esta última trata apenas do ponto de vista das relações
voluntárias entre pessoas.
Como exemplo de relações voluntárias Aristóteles traz: “[…] a
venda, a compra, o empréstimo a juros, o penhor, o empréstimo sem juros, o
depósito e a locação”, trazendo para a visão do Direito atual, pode-se considerar que
esta modalidade de Justiça diz respeito às relações de Direito Privado, que
englobam o universo das relações obrigacionais, contratuais, de propriedade, bem
como do Direito de família e outros ramos específicos desta grande área em que a
autonomia da vontade entre as partes é um princípio a ser considerado.
Em contrapartida, acerca das relações involuntárias:
161 “La distributiva presupone, según la sumaria caracterización que de ella hace el filósofo en el
mismo pasaje:
a) La existencia de lo repartible entre los miembros de la comunidad.
b) La de la instancia encargada de hacer la repartición.
c) La del criterio que, de ser observado, determinará la rectitud del acto distributivo”. GARCIA MÁYNEZ, Eduardo. Doctrina Aristotélica de la Justicia: estudio, selección y traducción de textos. p. 75. (tradução livre).
75
[…] algumas são sub-reptícias (como o furto, o adultério, o envenenamento, o lenocínio, o desvio de escravos, o assassínio traiçoeiro, o falso testemunho), e outras são violentas, como o assalto, a prisão, o homicídio, o roubo, a mutilação, a injúria e o ultraje.162
Nestas relações há a sobrepujança da vontade de uma das
partes sobre a outra, seja de modo violento, seja por meio de um engodo ou outro
mecanismo que prejudique a parte adversa, motivo pelo qual pode-se comparar esta
parte da justiça com os atos ilícitos civis e também os ilícitos penais, visto que há
esta característica de agressão à vontade da outra parte, atingindo-o seja em seus
bens, seja fisicamente ou ainda moralmente.
Na Justiça Corretiva o critério proporcional será diverso
daquele adotado na Justiça Distributiva, visto que não se parte de uma relação
desigual onde, apurada a medida da desigualdade das partes se distribuirá o que é
devido a cada uma. Pelo contrário, na Justiça Corretiva as partes são consideradas
previamente iguais e, ao estabelecerem a relação entre si, firma-se a desigualdade,
havendo proveito por uma parte e prejuízo pela outra.
Destaca-se que nesta apreciação é irrelevante se uma das
partes é uma pessoa boa ou se a outra é má, ambas são tratadas enquanto iguais
de início e, estabelecida a desigualdade, é tarefa do juiz buscar restabelecer a
igualdade perdida, até mesmo nos casos de homicídio “[…] pois também no caso
em que a pessoa é ferida e a outra fere, ou uma pessoa mata e a outra é morta, o
sofrimento e a ação estão mal distribuídos, e o juiz tenta igualizar as coisas por meio
da penalidade[…]”163, isto é feito ao se subtrair do ofensor o excesso do ganho de
um, transferindo-o à parte que sofreu uma perda.
Por este motivo, a proporção entre a perda e o ganho, o meio-
termo entre estas relações será o justo dentro da Justiça Corretiva, o que significará
uma proporção aritmética, motivo pelo qual esta forma de Justiça também pode ser
chamada de Justiça Aritmética.
162 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 97. 163 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 97.
76
Nesta relação surge a figura do juiz, como terceiro
desinteressado na causa que aprecia a relação havida entre ambos, verificando
quem ganhou e quem perdeu, na busca pelo retorno à justa medida.
O justo, portanto, é eqüidistante, já que o juiz o é. O juiz então restabelece a igualdade; as coisas se passam como se houvesse uma linha dividida em dois segmentos desiguais, e o juiz subtraísse a parte que faz com que o segmento maior exceda a metade, e acrescentasse ao segmento menor. Quando o todo houver sido afinal dividido igualmente, então as partes litigantes dirão que tem aquilo que lhes pertence – isto é, quando elas houverem obtido o que é igual. O igual é o meio termo entre a linha maior e a menor de acordo com a proporção aritmética.164
Complementando seu raciocínio, Aristóteles relaciona a
origem dos termos díkaion, que significa justo com a noção de divisão ao meio e o
juiz como sendo aquele que divide ao meio o que é devido por ambas as partes.
Assim: “Esta é a origem da palavra díkaion (=justo); ela quer dizer dikha (=dividida
ao meio), como se se devesse entender esta última palavra no sentido de díkaion; e
um dikastés (=juiz), é aquele que divide ao meio (dikhastés)”.
Dada a importância da figura do juiz nesta modalidade de
Justiça, considera Bittar:
A própria noção de intermediário do justo relaciona-se à posição do juiz perante as partes em contenda, uma vez que é a imparcial e eqüidistante personificação da justiça. É o representante do intermediário, é um mediador, e, já por esta significação, representa uma mediedade, sinônima de justiça corretiva. A posição ocupada pelo juiz na aplicação da lei é tal que se pode dizer que se colocar diante do mesmo é se colocar diante do justo; o juiz (dikastés) quer ser como o justo personificado (díkaion empsýchon).165
Outrossim, pode-se relacionar a noção entre ‘perda’ e ‘ganho’
que o Filósofo diz ser proveniente das operações de troca voluntária com as
definições de credor e devedor que norteiam as relações obrigacionais do Direito
contemporâneo, as quais, inclusive, têm origem no Direito Romano e sua tratativa do
creditor por um lado e do debitor no outro.
164 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 98. 165 BITTAR, Eduardo C.B. A Justiça em Aristóteles. p. 126.
77
Outro aspecto a ser considerado antes de seguir adiante é a
relação entre reciprocidade e Justiça, visto que para alguns pensadores, como os
pitagóricos, o justo é o recíproco, e a reciprocidade não se identifica nem com a
Justiça Distributiva, nem com a Corretiva. A noção de reciprocidade pode ser
resumida na frase que atribuem a noção de justo de Radamantis, um dos três juízes
do mundo inferior: “se alguém sofrer o mesmo que infligiu, então teremos a justiça
feita”166.
A reciprocidade, contudo, é uma concepção estritamente
‘taliônica’, conforme destaca Garcia Máynez, pois busca-se retribuir ao mal que se
sofreu com outro mal e ao bem que se recebeu com o bem, o que diverge das
noções anteriormente apresentadas e denota a insuficiência desta noção para se
alcançar um verdadeiro ideal de Justiça Universal, do tratamento proporcional entre
as partes desiguais ou ainda da retomada da desigualdade causada por uma das
partes relacionadas.167
A proporção recíproca se efetua através de uma conjunção
cruzada dos termos, motivo pelo qual é de ser louvada no que se refere às relações
de intercâmbio entre as partes. Se houver uma igualdade proporcional entre o que
ambas as partes oferecem e recebem verificar-se-á um resultado de igualdade, se
não houver, a permuta feita pelas partes será desigual.
Em razão da dificuldade de se igualar os serviços prestados
por profissionais diferentes, destaca Aristóteles o surgimento do dinheiro como uma
espécie de meio-termo entre as partes instituído por convenção, até mesmo o seu
nome em grego (nomisma) provém de nomos e demonstra que o dinheiro não é um
critério natural, mas sim convencional, estando no poder dos homens mudá-lo e
torná-lo inútil.168
Assim, conclui Aristóteles que:
166 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 99. 167 MÁYNEZ, Eduardo. Doctrina Aristotélica de la Justicia: estudio, selección y traducción de
textos. p. 89. 168 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 100.
78
O dinheiro, portanto, agindo como um padrão, torna os bens comensuráveis e os igualiza, e não haveria comunidade se não houvesse permutas, nem permutas se não houvesse igualização, nem igualização se não houvesse comensurabilidade.169
Portanto, se a reciprocidade não serve como base para se
estabelecer a igualdade quando se trata de receber bens, cargos ou honrarias da
polis, bem como nas transações já efetuadas entre as partes, esta pode servir de um
critério de justiça no momento em que se está a realizar o negócio entre ambas as
partes, de modo que se garanta que a prestação de um e a remuneração dada pela
outra parte, ou a contraprestação sejam proporcionais e, portanto, justas, motivo
pelo qual também se faz importante a consideração desta dimensão no conceito de
Justiça aristotélico.
Porém, todas as considerações até aqui feitas não exaurem a
doutrina aristotélica sobre a Justiça, findas estas considerações sobre o justo em
seu sentido particular, deve-se considerar também a questão da Justiça Política, que
se trata de um tipo especial e análogo de Justiça. Com efeito, conforme destacou-se
anteriormente a noção de Justiça considera a relação do homem e o seu respeito à
lei (nomos), tendo esta como um critério de discriminação do que é justo e injusto
nas situações da vida, motivo pelo qual inclusive pretende o Estagirita, conforme
visto em sua Pol. que seja a lei quem governe e não um homem, dado o risco de
que este venha a tornar-se um tirano. O governante deve, isso sim, ser um guardião
da justiça, das leis, da igualdade. Portanto, findas estas considerações, em seguida
se tratará sobre o justo no sentido doméstico, bem como da Justiça Política.
3.3 JUSTIÇA DOMÉSTICA E JUSTIÇA POLÍTICA
Tendo em vista o que foi considerado ao se trabalhar a
temática da Política no pensamento aristotélico, a Justiça se apresenta como a
finalidade da Ciência Política, sendo que, por meio desta, a cidade (o todo) poderá
auxiliar o cidadão (a parte) no alcance de uma vida plena.
Aliás, com base no que já foi visto sobre a noção de Justiça,
percebe-se o liame entre a noção da Justiça e a promoção das virtudes na cidade
169 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 101.
79
visto que a Justiça em seu sentido universal pode ser considerada a prática da
própria excelência em relação aos demais.
Todavia as virtudes orientam o ser humano em seu agir, de
modo que a noção de Justiça em um sentido Político será diversa do cunho Ético
que a dikaiosyne também possui.
A reflexão sobre o significado da Justiça Política no
pensamento de Aristóteles conduz à reflexão sobre a noção de Justiça dentro da
polis, que segundo o próprio Arisóteles é o tratamento dos iguais na medida de sua
igualdade e dos desiguais na medida de sua desigualdade, o que remete
diretamente à noção de Justiça Distributiva.
Além disso, outro elemento deve ser considerado na
ordenação da cidade, que é as partes que constituem esta Justiça Política, que são
as noções de Justiça Natural e Justiça Legal.
Entretanto, antes de adentrar nesta temática se faz necessário
diferenciar o justo no sentido político (politikon dikaion) do justo doméstico
(oikonomikon dikaion), visto que, tal como encontra-se no livro I da Pol., a cidade é
composta pela reunião de famílias e nestas existem três tipos de relações, entre
marido e mulher, pais e filhos e entre senhor e servos.
Aristóteles considera que não há noção de justiça e injustiça
nas relações entre senhor e servo, bem como entre pai e filho, por não haver justiça
no sentido irrestrito em relação a coisas que pertencem ao senhor, entendendo que
os servos e os filhos, até certa idade, pertencem ao homem. Assim, a Justiça, em
seu sentido doméstico, pode se manifestar na única relação não inclusa neste
tópico, que é a Justiça em seu sentido doméstico stricto sensu, que cuida das
relações entre marido e mulher dentro de casa, sendo, contudo, diferente da Justiça
Política.
Quanto à Justiça Política, conforme dito, esta é em parte
natural e em parte legal. São naturais “[…] as coisas que têm a mesma força e não
dependem de as aceitarmos ou não […]”170 e é legal “[…] aquilo que a princípio pode
170 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 103.
80
ser determinado indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de
determinado já não é indiferente […]”171.
Ao se considerar a noção de Justiça Natural para Aristóteles é
importante se tomar o devido cuidado para não se confundir este conceito com a
ideia de Direito Natural que fervilhou pela Europa especialmente durante o período
moderno. Para a mentalidade do homem grego e, também para Aristóteles, a Justiça
Natural não se tratava de um princípio racional universal que deveria ser
considerado pelos homens, pelo contrário, se tratava de determinadas regras que,
por serem cumpridas invariavelmente pelas diversas cidades, poderiam ser
consideradas como naturais, e assim não legais ou convencionais.
Por outro lado, a Justiça Legal diz respeito àquilo que é fixado
pelos homens tendo em vista suas próprias demandas locais, razão pela qual estas
decisões normalmente não são as mesmas em todos os lugares.
3.4 A VOLUNTARIEDADE DO AGENTE COMO CARACTERÍSTICA DO ATO
INJUSTO
Com base no que foi até aqui exposto outra se faz necessário
considerar outra questão, que é a da imputabilidade aos indivíduos da conduta
injusta, o que faz com que se retorne às discussões sobre o voluntário e o
involuntário elaboradas no seio do livro III, da Eth. Nic.
Tal como se considerou naquele momento, o agir ético diz
respeito somente às emoções e ações voluntárias, o que envolve um cálculo do
indivíduo agente sobre o que anseia obter e quais os benefícios e malefícios que
esta ação almejada envolve. Os atos involuntários por sua vez, dependendo de sua
intensidade podem ser perdoados ou não, o que irá diferir neste sentido é o quanto
que o indivíduo foi responsável, ainda que involuntariamente, pelo resultado
causado.
Em assim sendo, do mesmo modo o que determina se um ato
é ou não um ato de justiça ou injustiça é sua voluntariedade ou involuntariedade,
171 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 103.
81
pois “[…] quando ele é voluntário, o agente é censurado, e somente neste caso se
trata de um ato de injustiça, de tal forma que haverá atos que são injustos mas não
chegam a ser atos de injustiça se a voluntariedade não estiver presente”172.
Do mesmo modo, destaca o Filósofo que é possível se cometer
atos de justiça ou injustiça acidentalmente, quando se pratica o ato contra a vontade,
por temor a alguma coisa ou a alguém, visto que o ato em si foi justo, mas não
houve intenção do agente neste sentido, motivo pelo qual se caracteriza a dimensão
acidental do mesmo.
Aristóteles considera que existem três espécies de dano nas
relações interpessoais, são eles: os causados na ignorância, que são erros ocorridos
quando a pessoa prejudicada, ou o ato, ou o instrumento, ou o fim a ser atingido não
é o que o agente imaginava; os danos causados quando o agente pensava não
estar a atingir pessoa alguma, ou não estava a atingindo com a intensidade que veio
a usar (tal como nos casos de preterdolo como se denomina na atualidade); ou o
dano ocorre contrariamente à expectativa razoável, constitui-se como um infortúnio.
Destaca-se ainda que, quando o dano não ocorre
contrariamente à expectativa razoável, mas pressupõe deficiência moral (vício),
trata-se de um erro, pois a falta tem origem na própria pessoa e um acidente diz
respeito a uma causa externa à pessoa. Quando o indivíduo age conscientemente,
mas não deliberadamente, comete uma injustiça, como os atos devidos à cólera ou
às emoções incontroláveis, nestes casos não há vício também, mas pode-se
considerar que o agente foi incontinente, conforme visto. Por fim, quando o indivíduo
age deliberadamente para prejudicar a outrem, a ação é injusta e ele é considerado
moralmente deficiente.173
Tendo em vista estes elementos, considera Bittar:
A ação, seja ela justa, seja ela injusta, diferentemente do que ocorre com a coisa justa de per si, depende de um agente que lhe dê causa. Assim, nemo actio sine auctore. Sendo que a prática da injustiça e também da justiça requerem a participação de um agente como causa eficiente de um efeito que se produza na esfera alheia, mister
172 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 104. 173 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 105.
82
se faz a análise da diferença entre o agir, justa ou injustamente, e o ser, justo ou injusto.174
Com base nestas considerações, constata-se a íntima relação
entre as considerações de Aristóteles e a atual noção de dolo e culpa que norteia o
Direito Penal, bem como a Responsabilidade Civil, excetuando-se os casos em que
esta é considerada como objetiva. De fato, é elementar que o indivíduo tenha
participação voluntária no resultado obtido ou então na ação que decorra em um
resultado danoso para ser considerado como responsável por aquela ação,
elemento extremamente importante quando se for praticar a Justiça Distributiva ou
Corretiva entre os homens.
Além disso, considera-se neste momento também a seguinte
questão: é possível ser injusto consigo mesmo? A princípio isto é considerado como
impossível, visto que não é possível que uma pessoa se trate injustamente, na
acepção de que o homem injusto não é totalmente mau. Considerar a possibilidade
de ser injusto consigo próprio seria também considerar a possibilidade de ser vítima
de uma injustiça voluntariamente. Isto a princípio é impossível, tendo-se por base
que inclusive o suicídio, mais do que ser uma violação contra a si próprio, é uma
agressão à própria cidade, motivo pelo qual pune-se o suicida como se este tivesse
agido injustamente em relação à cidade.
Apesar disso, considerando-se a existência de mais de uma
parte da alma, sendo uma racional e a outra irracional, com base nestes elementos
pode-se considerar a existência de uma injustiça em relação a si mesmo, mas não
uma justiça pela, e sim uma nos moldes da que existe entre senhor e servo, entre
pai e filho e a mesma espécie de injustiça que pode haver neste âmbito pode ser a
mesma que atinge as relações entre governante e governado.175
Findas estas considerações, faz-se necessário considerar
neste momento a noção de equidade e sua importância para a realização da Justiça.
174 BITTAR, Eduardo C.B. A Justiça em Aristóteles. p. 131. 175 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 105.
83
3.5 A EQUIDADE COMO COMPLEMENTO DA JUSTIÇA
Ao se considerar a relação entre o justo e o equitativo,
Aristóteles parte da constatação da similaridade entre ambos os conceitos, visto que
as pessoas são louvadas por serem equitativas, como também se louvam as
pessoas justas, sendo ambas as categorias referentes a coisas boas. Destaca
Aristóteles que, quando analisadas, Justiça e equidade (epiekeia) não são
absolutamente a mesma coisa, nem são especificamente diferentes.
O equitativo é considerado melhor que uma simples espécie de
Justiça, apesar de ser em si mesmo justo. Justiça e equidade, assim, são
consideradas a mesma coisa, apesar de se considerar a equidade como melhor que
a justiça. Isto ocorre, pois o equitativo não é o justo conforme à lei, mas um corretivo
da Justiça Legal.176
Por qual razão isto ocorre? O que motiva esta noção de
correção da Justiça Legal é a limitação do legislador ao formular as leis. Ora, as leis
são preceitos de ordem geral, motivo pelo qual é impossível fazer uma afirmação
universal, que venha a contemplar todas as situações possíveis. Assim:
Quando a lei estabelece uma regra geral, e aparece em sua aplicação um caso não previsto por esta regra geral, e aparece em sua aplicação um caso não previsto por esta regra, então é correto, onde o legislador é omisso e falhou por excesso de simplificação, suprir a omissão, dizendo o que o próprio legislador diria se estivesse presente, e o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso em questão.177
Deste modo, considera Garcia Máynez: Quando não é possível
ou, com outras palavras, quando o nómos não é suficientemente amplo, pode o juiz
se desviar dele, e o recurso que permanece então é emitir uma decisão para o caso
singular (ψηϕισµα)"178.
176 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 109. 177 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 109. 178 “Cuando esto no es possible o, con otras palabras, cuando el nómos no es suficientemente amplio,
puede el juez desviarse de él, y el recurso que encontes le queda es emitir una decisión para el caso singular (ψηϕισµα)”. MÁYNEZ, Eduardo. Doctrina Aristotélica de la Justicia: estudio, selección y traducción de textos. p. 89.
84
Portanto, em razão de ser uma correção do ponto onde a
Justiça Legal é falha é que se pode considerar que o equitativo é melhor que uma
simples espécie de Justiça, o que não faz da epiekeia um sinônimo da Justiça
Universal. “Então o equitativo é, por sua natureza, uma correção da lei onde esta é
omissa devido à generalidade”179.
É neste sentido que considera-se na Ret. que:
Mostrar-se equitativo é ser indulgente com as fraquezas humanas; é também ter menos consideração pela lei do que pelo legislador; ter em conta não a letra da lei, mas a intenção do legislador, não a ação em si, mas a intenção premeditada.180
Em razão disso, considera-se uma pessoa equitativa quando
esta escolhe e pratica atos equitativos, não se atendo única e exclusivamente aos
seus direitos, e que inclusive se contenta em receber menos do que lhe caberia,
embora a lei estivesse do seu lado.181 Tem-se com isso que o homem equitativo
será aquele que, por compreender o sentido das leis às quais encontra-se
submetido, está inclusive na posição de estar acima destas mesmas leis agindo em
conformidade com o momento da ação, muito mais do que do modo como que as
leis o determinam a fazer.
3.6 A RELAÇÃO ENTRE AMIZADE DE JUSTIÇA
A conclusão de que a Justiça se trata da virtude plena, pois diz
respeito à ação virtuosa não somente em relação a si mesmo, tal como as demais
virtudes morais, mas pelo contrário em relação ao outro conduz à consideração
sobre a relação entre a amizade e a Justiça.
Aristóteles considera que a Justiça consiste em tratar aos
outros de maneira adequada, fazendo-se o bem não somente aos amigos, mas à
todas as pessoas, e não prejudicando-se nem aos amigos, nem aos inimigos, motivo
179 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 109. 180 ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. p. 82. 181 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 110.
85
pelo qual não se pode considerar a retribuição como um critério absoluto de Justiça,
apesar de sua validade na dimensão das transações humanas.
Assim, tendo em vista as considerações de Aristóteles sobre a
amizade tem-se que esta é uma espécie de Justiça entre ambos os amigos,
inclusive é a forma mais desejável de Justiça, pois mais do que agir-se de maneira
correta tendo em vista a esfera da corretude da ação, considera-se o benefício da
outra pessoa com esta mesma ação. Neste sentido: “Quando as pessoas são
amigas não têm necessidade de justiça, enquanto mesmo quando são justas elas
necessitam da amizade; considera-se que a mais autêntica forma de justiça é uma
disposição amistosa”182.
Uma das coisas que difere a amizade da Justiça é o fato de
que na esfera da Justiça o que é igual no sentido primordial é o proporcional ao
merecimento, enquanto que na amizade a igualdade quantitativa é elementar, sendo
secundário o merecimento, o que permite que duas pessoas em posições diferentes
quanto à excelência moral possam ser amigas, ainda que não se atinja o tipo de
amizade ideal com isso.183
Se há uma aproximação maior entre os amigos do que entre as
pessoas comuns, e a relação de amizade seja também uma relação entre as partes,
é de se considerar que a injustiça praticada contra um amigo é muito mais
condenável do que aquela praticada contra uma pessoa comum. Assim: “As
reivindicações de justiça também parecem aumentar com a intensidade da amizade,
e isto significa que a amizade e a justiça existem entre as mesmas pessoas e têm
uma extensão igual”184.
Além disso, destaca-se que para Aristóteles os modelos ideais
de governo inclusive são uma relação de amizade entre governante (ou
governantes) e governados em uma proporção segundo a qual exista também
justiça ente estes.185 Por sua vez, nas formas degeneradas de governo a amizade,
182 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 154. 183 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 161. 184 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 164. 185 MÁYNEZ, Eduardo. Doctrina Aristotélica de la Justicia: estudio, selección y traducción de
textos. p. 175.
86
tanto quanto a Justiça, é praticamente inexistente, porquanto o que prevalece é o
interesse daquele que governa e, portanto, um mínimo de amizade ou mesmo
nenhuma entre governantes e governados.
Acerca deste ponto conclui Bittar:
Se a sociabilidade e a politicidade são da natureza humana é a φιλια a realização de todo contato que une os membros de um único corpo social […] Alheio ao convívio social (éremos) – e o homem alheio ao convívio social ou é uma besta ou é um deus -, não há possibilidade de exercício da virtude ou da justiça em qualquer das suas formas, seja particular, seja universal; fora do convívio social não há, enfim, reciprocidade. Se a sociabilidade funda-se na utilidade e na φιλια, é evidente que esta última condiciona a existência da própria justiça.186
Conclui-se portanto este ponto vislumbrando-se que, se o ideal
da cidade é o alcance da Justiça, como meio de se possibilitar o tratamento
proporcional a todos e a concessão da possibilidade de que estes venham a ser
felizes, a amizade é a realização do ideal de Justiça em seu sentido mais pleno,
motivo pelo qual se considera que uma cidade feliz será uma cidade em que haja
amizade entre os próprios cidadão, bem como ente aquele que governa e os seus
governados.
3.7 A POSIÇÃO DO CONCEITO DE JUSTIÇA NO SISTEMA FILOSÓFICO
ARISTOTÉLICO
Por tudo o que foi exposto, torna-se possível precisar a posição
específica ocupada pelo conceito de Justiça e todas as variações que o mesmo
abarca dentro da filosofia do Estagirita.
Assim, considerados os elementos retirados da metafísica
aristotélica, da base de pensamento do Órganon e também das divisões da alma
apresentadas no De Anima, bem como a definição do objeto de estudo e da
finalidade perseguida tanto pela Ética, quanto pela Política, constata-se que o
186 BITTAR, Eduardo C.B. A Justiça em Aristóteles. p. 170.
87
conceito de Justiça se apresenta como elemento primordial para o alcance da
finalidade destas duas áreas do conhecimento.
Apesar de não ser a coisa mais importante para a realização
da Ética, visto que o ideal desta ciência é a felicidade, que é especialmente
alcançada pela autarkeia, pela capacidade de ser auto-suficiente e conduzir bem a
própria vida, por meio dos atos justos é que o homem exteriorizará a excelência
moral que possui, fazendo com que inclusive se confundam as definições de virtude
e de Justiça neste sentido.
Esta característica de exterioridade faz com que a noção de
Justiça esteja muito próxima da de amizade, contudo, tendo em vista que com os
amigos busca-se fazer o bem pelo fato de eles serem amados, sendo um dos bens
externos que o homem precisa possuir para ser feliz, a Justiça apresenta-se como
superior, pois além de se fazer o que é devido a quem se possui um vínculo afetivo,
faz-se para todos e se age deste modo como uma exteriorização daquilo que se é
internamente, não em busca de algum tipo de reconhecimento ou gratificação pela
atitude tomada.
Além desta dimensão, obviamente, não se pode deixar de
considerar a importância das facetas que esta Justiça Universal toma na relação
entre os particulares, sendo que quando há a concorrência de pessoas a um mesmo
objetivo, ou a discrepância de interesses em uma relação voluntária ou involuntária
entre as pessoas é necessário um critério de Justiça que seja proporcional, dando a
cada um o que lhe é adequado, valendo-se assim tanto da noção de proporção
geométrica, quanto aritmética, conforme foi visto.
Por esta característica de exteriorização da perfeição moral
que se tem, a Justiça é o elemento a ser perseguido pela Política. A grande
finalidade das organizações sociais, em Aristóteles, é o alcance da felicidade de
cada um, e isto somente será possível se as instituições que regem esta
comunidade possibilitem a todos o alcance desta finalidade, tratando-os, portanto,
de maneira justa.
Vale ressaltar que este tratamento justo não deve se pautar em
um critério único de tratamento de todos os membros da polis, mas em um critério
88
proporcional, que releve a igualdade ou a desigualdade das pessoas e as trate tendo
em vista estas noções, o que faz com que a Justiça Política, seja no seu aspecto
legal, seja natural, sempre tenha uma íntima ligação com o ideal da Justiça
Universal.
Resta assim demonstrado que a posição da Justiça dentro do
pensamento prático de Aristóteles é a de ser um bem elementar a ser alcançado
para que tanto o cidadão, quando a cidade onde este vivem possam tornar realidade
a realização do seu thelos, a vida em felicidade.
89
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho foi construído com o objetivo de definir o
conceito de Justiça no interior da Filosofia aristotélica, o que já o posiciona como
diferenciado dos demais trabalhos na área, que acabam por considerar apenas o
que Aristóteles tratou sobre a noção de Justiça, como se fosse uma parte separada
de todo seu pensamento ou, quando muito, apresentando a dimensão ética e
política envolvida com a Justiça.
Para o alcance deste objetivo, partiu-se do estudo do sistema
filosófico aristotélico, tendo em vista que o Filósofo é um pensador sistemático e,
portanto, para se ter uma compreensão mais adequada de um ponto específico de
seu pensamento é preciso considerar a totalidade do seu pensamento.
Assim, foram apresentadas as principais áreas da filosofia
aristotélica, culminando-se com a tratativa de três disciplinas especialmente
necessárias para a consideração das Ciências Práticas, que abarcam o conceito de
Justiça para Aristóteles, sendo estas a metafísica, especialmente no tocante à
doutrina das quatro causas, a sistematização lógica das ciências promovida no
Órganon, bem como a consideração das partes da alma elaboradas no De An.
Findas esta parte, no segundo capítulo apresentou-se os
principais elementos que compõem as duas grandes áreas da Ciência Prática, a
Ética e a Política, que podem ambas serem consideradas como partes da grande
área da Política, visto que a Ética se apresenta como elemento de base para a
construção adequada da cidade, bem como que o homem somente virá a ser feliz
dentro da cidade, havendo portanto uma intrínseca relação entre ambas.
Constatado o modo como cada uma destas doutrinas busca
conduzir os homens à felicidade, uma por meio da orientação da conduta e do
pensamento de cada homem, outra encarregando-se de preparar a cidade para o
alcance desta finalidade, tornou-se possível partir para a consideração do conceito
de Justiça no terceiro capítulo deste trabalho.
90
Então, apresentou-se o modo pelo qual o Estagirita trata sobre
a Justiça em seus principais tratados sobre a matéria, especialmente na Eth. Nic., o
que tornou possível vislumbrar a existência de diversas facetas que compõem a
noção de Justiça, apesar de esta, no seu sentido irrestrito, ser considerada uma
excelência moral, ou melhor, a maior delas, visto que se trata da exposição das
virtudes que se possui na relação com o outro.
Tendo em vista esta característica própria da Justiça, tornou-se
possível concluir que a virtude da Justiça é o meio pelo qual se constrói a ligação
entre Ética e Política e que, portanto, os homens virtuosos possam ser aqueles que
conduzem a cidade ao seu melhor (havendo aqui a coincidência entre as virtudes do
homem de bem e do bom cidadão, conforme se discute no livro terceiro da Pol.) e
que, portanto, além de se alcançarem a própria perfeição moral e intelectual e,
assim, a eudaimonia, conduzem também os seus pares, a coletividade que
compartilha com eles sua vida em comunidade ao melhor de si, sendo esta a
posição da Justiça dentro das Ciências Práticas, bem como dentro de toda a filosofia
de Aristóteles.
Restam assim comprovadas todas as hipóteses suscitadas
preliminarmente à execução desta pesquisa, visto que: para a adequada
compreensão do conceito de Justiça se faz necessário considerar o sistema
filosófico de Aristóteles como um todo; que a Justiça é um elemento necessário e
que inclusive faz a ligação entre o âmbito da Ética e da Política, sendo que a Justiça
é importante para que não se viva somente individualmente em felicidade, mas que
nisso todo o corpo social possa ter a possibilidade do alcance deste tipo de vida; por
fim, como uma parte das virtudes éticas, demonstrou-se que para se construir um
indivíduo justo, ou uma cidade justa é necessário um modelo de formação que
possa incutir este tipo de hábito nas pessoas, para que assim se possa constituir
uma sociedade verdadeiramente justa.
Destaca-se por fim que o exposto neste trabalho não encerra a
discussão sobre a temática, mas serve como um estímulo para que se busque
encontrar o verdadeiro significado de Justiça para os grandes pensadores da
humanidade e, mais do que isso, compreendendo o que estas notáveis mentes que
se fizeram presentes na história humana, se possa trabalhar para o desenvolvimento
91
de homens que, por meio de sua própria realização, conduzam toda a sociedade em
direção ao contínuo aprimoramento e à conformidade com o projeto virtual que é
disposto a todos pela Vida.
92
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