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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO O CONCEITO DE JUSTIÇA NA FILOSOFIA ARISTOTÉLICA TIAGO MENDONÇA DOS SANTOS DECLARAÇÃO “DECLARO QUE A MONOGRAFIA ESTÁ APTA PARA DEFESA EM BANCA PUBLICA EXAMINADORA”. ITAJAÍ (SC), 08 de novembro de 2010. ___________________________________________ Professor Orientador: Josemar Soares, Dr. UNIVALI – Campus Itajaí-SC

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

O CONCEITO DE JUSTIÇA NA FILOSOFIA ARISTOTÉLICA

TIAGO MENDONÇA DOS SANTOS

DECLARAÇÃO

“DECLARO QUE A MONOGRAFIA ESTÁ APTA PARA DEFESA EM BANCA PUBLICA EXAMINADORA”.

ITAJAÍ (SC), 08 de novembro de 2010.

___________________________________________ Professor Orientador: Josemar Soares, Dr.

UNIVALI – Campus Itajaí-SC

UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

O CONCEITO DE JUSTIÇA NA FILOSOFIA ARISTOTÉLICA

TIAGO MENDONÇA DOS SANTOS

Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientador: Professor Dr. Josemar Soares

Itajaí, novembro de 2010

AGRADECIMENTO

Ao princípio de Vida que continuamente nos impele a um caminho de contínuo desenvolvimento, aperfeiçoamento, à descoberta de quem verdadeiramente somos e de onde se encontra a felicidade própria a cada um de nós;

Ao prof. Dr. Josemar Soares, mais do que orientador deste trabalho, o Mestre externo que nestes cinco anos de convivência, trabalho e muito aprendizado foi e continuará sendo o estímulo ao encontro do Mestre interno que habita em nós;

À Dra. Aulia Esper, pelo exemplo de pessoa e pelo contínuo estímulo à tomada de uma nova atitude em relação à vida em que o sucesso profissional e pessoal tornam-se perfeitamente conciliáveis;

Aos meus pais, pela formação que me foi dada, que possibilitou a chegada neste momento em que se conclui mais esta importante fase da vida;

À Direção do CEJURPS, na pessoa do Prof. Dr. José Carlos Machado, pelo espaço de aprimoramento concedido; à Coordenação do Curso de Direito, na pessoa do Prof. MSc. Osmar Dinis Facchini; e à UNIVALI, na pessoa do Reitor Prof. Dr. Mário Cesar dos Santos;

Ao prof. Dr. Paulo Márcio Cruz, com quem muito pude aprender durante os dois projetos de pesquisa desenvolvidos sob sua orientação;

Ao prof. MSc. Natan Ben-Hur Braga pela atenção, pela confiança e pelas grandiosas oportunidades concedidas e a todos os professores que contribuíram para este momento;

Ao Dr. Rogê Macedo Neves, ao Dr. Norival Acácio Engel e ao Dr. Cláudio Valdyr Helfenstein, pelo exemplo de caráter e pela oportunidade da vivência prática no universo jurídico;

3

À Profa. MSc. Maria da Graça Mello Ferracioli, com quem muito pude aprender durante os primeiros anos da faculdade e também que nos cedeu carinhosamente seu espaço para tantas inesquecíveis comemorações.

À Profa. MSc. Fabiana de Bittencourt Rangel, com quem pude criar o Grupo de Estudos em Psicologia Organizacional, projeto que foi muito marcante para mim e que tem sido na atualidade a tantas outras pessoas.

Ao Tarcísio, à Bruna e ao Renan, verdadeiros amigos que pude conhecer e com os quais pude continuamente crescer durante os anos deste curso, pelo contínuo estímulo a, juntos, tomarmos o caminho do sucesso nesta existência;

Ao Grupo Paidéia, espaço onde pude refundar o meu modo de ver a minha própria vida e o mundo que me circunda, bem como onde começou minha caminhada rumo à construção de uma vida de realização e a todos aqueles que atualmente estão a percorrer este caminho de formação e de aprimoramento e que carregam adiante este projeto de formação humana.

A todos aqueles que, pelo apoio e pelo trabalho, tiveram marcante influência no desenvolvimento da Revista Filosofia do Direito e Intersubjetividade, primeira revista criada pela graduação em Direito da UNIVALI, projeto que me orgulho de, junto ao prof. Josemar Soares, ser o seu criador.

4

DEDICATÓRIA

Dedico esta obra àqueles que têm a coragem de olhar sinceramente para si mesmos e, neste processo, encontram o estímulo necessário para a contínua e incessante construção da excelência da própria perfeição.

5

“Παντεζ ανθρωποι του ειδεναι

ορεγονται ϕυσει”

“Todos os homens, por natureza, tendem ao saber”

Aristóteles. Metafísica. A. 980ª.

TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte

ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do

Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de

toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

Itajaí , 08 de novembro de 2010

Tiago Mendonça dos Santos Graduando

PÁGINA DE APROVAÇÃO

A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale do

Itajaí – UNIVALI, elaborada pelo graduando Tiago Mendonça dos Santos, sob o

título O Conceito de Justiça na Filosofia Aristotélica, foi submetida em [Data] à banca

examinadora composta pelos seguintes professores: [Nome dos Professores ]

([Função]), e aprovada com a nota [Nota] ([nota Extenso]).

Itajaí, novembro de 2010

Prof. Dr. Josemar Soares Orientador e Presidente da Banca

Profa. MSc. Fabiana de Bittencourt Rangel Coordenação da Monografia

ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS

An. Post. An. Pr. Cat. De An. De Int. Eth. Eud. Eth. Nic.

Analytica Posteriora Analytica Priora Categoriae De Anima De Interpretatione Ethica Eudemia Ethica Nicomachea

M. M Magna Moralia Met. Phys.

Metaphysica Physica

Pol. Politica Reth. Soph. El. Top.

Rethorica Sophistici Elenchi Topica

SUMÁRIO

RESUMO........................................................................................... 11

INTRODUÇÃO .................................................................................. 13

Capítulo 1 ......................................................................................... 15

O SISTEMA FILOSÓFICO ARISTOTÉLICO ..................................... 15

1.1 A MODERNA INTERPRETAÇÃO DO PENSAMENTO ARISTOTÉLICO ..... 16

1.2 A SISTEMÁTICA FILOSÓFICA DE ARISTÓTELES ..................................... 19

1.3 ELEMENTOS BASILARES PARA O ESTUDO DA FILOSOFIA PRÁTICA DE ARISTÓTELES .................................................................................................... 22

1.3.1 A METAFÍSICA ............................................................................................... 22

1.3.2 O ÓRGANON .................................................................................................. 26

1.3.3 O DE ANIMA .................................................................................................. 32

Capítulo 2 ......................................................................................... 35

A FILOSOFIA PRÁTICA ARISTOTÉLICA E SUAS PRINCIPAIS DISCIPLINAS .................................................................................... 35

2.1 A ÉTICA ......................................................................................................... 36

2.1.1 AS EXCELÊNCIAS MORAIS ............................................................................... 39

2.1.2 AS EXCELÊNCIAS INTELECTUAIS ...................................................................... 47

2.1.3 O ACÚMULO DE BENS EXTERIORES, A AMIZADE, O PRAZER E A FELICIDADE ......... 51

2.2 A POLÍTICA ................................................................................................... 58

Capítulo 3 ......................................................................................... 67

O CONCEITO DE JUSTIÇA NA FILOSOFIA ARISTOTÉLICA ......... 67

x

3.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A JUSTIÇA ENQUANTO VIRTUDE: A JUSTIÇA UNIVERSAL ......................................................................................................... 68

3.2 O JUSTO EM SENTIDO PARTICULAR: JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E CORRETIVA ........................................................................................................ 72

3.3 JUSTIÇA DOMÉSTICA E JUSTIÇA POLÍTICA ............................................ 78

3.4 A VOLUNTARIEDADE DO AGENTE COMO CARACTERÍSTICA DO ATO INJUSTO .............................................................................................................. 80

3.5 A EQUIDADE COMO COMPLEMENTO DA JUSTIÇA ................................. 83

3.6 A RELAÇÃO ENTRE AMIZADE DE JUSTIÇA ............................................. 84

3.7 A POSIÇÃO DO CONCEITO DE JUSTIÇA NO SISTEMA FILOSÓFICO ARISTOTÉLICO ................................................................................................... 86

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 89

REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ........................................... 92

RESUMO

Aristóteles é o primeiro pensador a considerar o conceito de

Justiça e todas as dimensões que o envolvem de maneira crítica e logicamente

encadeada, motivo pelo qual sua definição serviu de base para a construção do

sistema jurídico romano, bem como foi objeto de discussão por grande parte dos

filósofos que o sucederam na matéria. Todavia, para se entender o que Aristóteles

entendia por Justiça e a função desta categoria no interior de seu pensamento deve-

se ter em conta todo seu sistema filosófico e a posição da Justiça neste. Assim,

propôs-se neste trabalho discorrer sobre o conceito de Justiça e suas várias facetas

no interior da Filosofia de Aristóteles. Para o alcance deste objetivo desenvolveu-se

uma pesquisa bibliográfica pautada no método indutivo. Ao término da pesquisa

constatou-se que o conceito de Justiça, entendido de maneira irrestrita como a

excelência moral perfeita, por se tratar da exteriorização da perfeição ética nas

relações humanas, é elemento extremamente importante para a construção do

homem feliz, objetivo a ser alcançado pela Ética. Como as relações humanas

envolvem também a concorrência de duas pessoas a um determinado cargo, ou a

necessidade de distribuição de bens, de honrarias, ou até mesmo de algum tipo de

assistência necessária, além do conflito de interesses, a Justiça também precisa ser

encarada de uma forma particular, de onde nasce a noção de Justiça como uma

proporção geométrica na distribuição das coisas da cidade (Justiça Distributiva) ou

como uma correção dos excessos tomados por uma das partes nas relações

humanas com base em uma proporção aritmética (Justiça Corretiva). Por regular as

relações humanas, a noção de Justiça também se relaciona com a Política, aliás, é o

grande objetivo desta ciência. No âmbito das organizações sociais a Justiça tem

relação com a gestão do poder, isto ocorre na família (Justiça Doméstica) e mais

ainda com o exercício do poder político, na busca por tratar os iguais como iguais e

os desiguais como desiguais, há uma parte natural, existente em todos os povos e

que deve ser obedecida daquela forma, e outra parte legal, que a princípio é

indiferente, mas quando há uma determinação da cidade perde este caráter,

devendo ser obedecida por todos. Aristóteles, por fim, traz a noção da Equidade

como uma correção desta Justiça, nos momentos em que o legislador não previu

12

determinada situação, seja pela inexistência de documento que trate do assunto, ou

pelo caráter demasiado generalista da lei. Nestas situações o juiz deve se valer da

Equidade para dizer o que é justo às partes. Constatou-se assim que o conceito de

Justiça de Aristóteles é o meio pelo qual se conectam as duas doutrinas práticas, de

modo o homem que sabe conduzir bem sua vida, o homem bom, seja também o

cidadão que conduz seus concidadãos à melhora de suas vidas, na direção da

felicidade.

Palavras-chave: 1) Justiça. 2) Ética. 3) Política. 4) Ciências Práticas. 5) Felicidade.

13

INTRODUÇÃO

A presente Monografia tem como objeto discorrer sobre o

conceito de Justiça e suas várias facetas dentro do sistema filosófico de Aristóteles.

O seu objetivo é, com base no estudo do pensamento

aristotélico, definir qual é o conceito de Justiça proposto por Aristóteles e que

relação esta definição possui com a filosofia do pensador, especialmente no que

pertine ao estudo das Ciências Práticas, a Ética e a Política.

Para tanto, principia–se, no Capítulo 1, apresentando o sistema

filosófico aristotélico, as principais obras e áreas do conhecimento que o compõem,

bem como apresentando elementos de três disciplinas a serem consideradas no

estudo das Ciências Práticas e, dentro destas, do conceito de Justiça, sendo estas a

Metafísica,a Lógica (ou Analítica) e a Psicologia.

No Capítulo 2, por sua vez, são apresentadas as duas

principais áreas que compõem a Filosofia Prática, sendo estas a Ética e a Política.

Neste escopo, serão apresentados os principais temas considerados por ambas as

doutrinas, o objeto de estudo de cada uma delas, bem como a finalidade que

objetivam alcançar.

Já no Capítulo 3, com base nos elementos apresentados nos

capítulos anteriores se trabalhará sobre o conceito de Justiça dentro da Filosofia

Aristotélica e todas as suas implicâncias no âmbito da Filosofia Prática.

O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as

Considerações Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos destacados,

seguidos do estímulo à continuidade das pesquisas, estudos e reflexões sobre o

pensamento aristotélico como base para a fundação do critério de Justiça ocidental.

Oportuno salientar que não é à toa que Villey considera que o

sucesso do Direito Romano, enquanto organização lógica, é devido à sua

fundamentação na teoria da justiça de Aristóteles e que quando estes substituíram

14

estas noções por novas concepções filosóficas que influenciaram a sociedade

romana, houve a queda do Direito Romano.1

Para a presente monografia foram levantadas as seguintes

hipóteses:

1 – o pensamento de Aristóteles compõe um sistema filosófico

e, deste modo, para a compreensão do significado de Justiça é necessário se

analisar anteriormente as bases da filosofia do Estagirita;

2 – a noção de Justiça é primordial para o sucesso das

Ciências Práticas, já que estas visam o desenvolvimento do indivíduo;

3 – para que se possa desenvolver indivíduos justos é preciso

um tipo de formação adequada neste sentido.

Esta pesquisa foi desenvolvida com base no método indutivo2,

por meio da pesquisa bilbliográfica3.

Destaca-se, outrossim, que as categorias fundamentais para a

monografia, bem como seus conceitos operacionais serão apresentados no decorrer

do texto deste trabalho monográfico.

1 VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Tradução de Claudia Berliner.

São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 73, 74. 2 “[...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção

ou conclusão geral [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 10 ed. Florianópolis: OAB-SC editora, 2007. p. 86.

3 “Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 209.

15

Capítulo 1

O SISTEMA FILOSÓFICO ARISTOTÉLICO

Para se poder discutir o conceito de Justiça dentro do

pensamento aristotélico, não se pode deixar de considerar antes a maneira pela qual

o Estagirita concebia a ordem do mundo, que se refletiu na forma pela qual ele

estruturou o conhecimento humano dentro de sua filosofia.

Assim, propõe-se neste primeiro capítulo apresentar os

principais elementos necessários para uma interpretação da formação do

pensamento aristotélico, bem como a maneira pela qual Aristóteles dividiu o

conhecimento humano em sua filosofia, o que será de primordial auxílio para se

definir em que local específico este tratou sobre a Justiça e qual a relação desta com

a totalidade de seu pensamento.

Cumpre desde já destacar que as obras aristotélicas são

divididas em dois particulares grupos, o primeiro composto pelas obras chamadas

‘exotéricas’, dirigidas ao grande público, às pessoas de fora de sua escola,

compostas tanto por obras formuladas no período acadêmico de Aristóteles, em sua

maioria em forma de diálogo, quanto por obras de períodos posteriores. A maioria

destas obras acabou se perdendo durante a história, sendo que importantes

fragmentos destas foram sendo encontrados e auxiliaram na melhor compreensão

do pensamento de Aristóteles.

Outro grupo é composto pelas obras ‘esotéricas’, destinadas

aos seus discípulos, das quais a maioria delas encontra-se preservada até a

atualidade. Estas são compostas especialmente pelo conteúdo que era passado por

Aristóteles durante suas aulas no Liceu.

Destaca-se que nesta monografia serão utilizadas somente

obras consideradas como esotéricas de Aristóteles, apesar de que houveram

16

tratados exotéricos que também consideraram o conteúdo aqui exposto, tal como

fazem prova os fragmentos encontrados do diálogo Sobre a Justiça, entre outros.

1.1 A MODERNA INTERPRETAÇÃO DO PENSAMENTO ARISTOTÉLICO

A formação do pensamento aristotélico pode ser caracterizada

por três específicos momentos, partindo-se do Aristóteles acadêmico, discípulo de

Platão, vivendo por vinte anos vinculado à Academia; o Aristóteles como acadêmico

dissidente, no período posterior à morte de Platão, em que o Estagirita esteve entre

Assos e Mitilene, e no qual foi ainda o tutor de Alexandro Magno; e depois, de volta

a Atenas, Aristóteles funda sua própria escola, o Liceu, período onde foram

produzidas as principais obras que restaram intactas até os dias atuais.4

Diógenes Laércio escreve que “Aristóteles foi o mais genuíno

discípulo de Platão”5 e se o faz é justamente devido ao fato de o Estagirita não

limitar-se aos cânones do pensamento platônico, mas buscando superar o espírito

do mestre, passou a trilhar seu caminho intelectual próprio, que é o que representa a

trajetória de formação do pensamento aristotélico.6 Sobre a evolução do

pensamento de Aristóteles, considera Bittar: “Seus escritos demonstram um natural

e gradativo amadurecimento que parte das reflexões platônicas numa caminhada

incessante e ininterrupta rumo à maturidade dos tratados científicos”7.

Quanto à interpretação da evolução do pensamento aristotélico

é marcante a publicação em 1923 da obra Aristoteles, Grundlegung einer Gescichte

seiner Entwicklung8, a qual rompe com a tradição anterior, o chamado método

sistemático-unitário, que entendia que as ideias de Aristóteles formavam um bloco

4 REALE, Giovanni. Storia della Filosofia Antica: II. Platone e Aristotele. 9. ed. Milano: Vita e

Pensiero, 1997. 2.v. p. 379, 380. 5 LAÉRCIO apud ________. Introdução a Aristóteles. Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições

70, 2001. p. 13. 6 REALE, Giovanni. Storia della Filosofia Antica: II. Platone e Aristotele. p. 383. 7 BITTAR, Eduardo C.B. A Justiça em Aristóteles. 3.ed.rev.e amp. Rio de Janeiro : Forense, 2005.

p.26. 8 JAEGER, Werner. Aristóteles: bases para la historia de su desarrollo intelectual. Traducción de

José Gaos. México: Fondo de Cultura Económica, 2000.

17

inamovível desde o princípio ao fim, para considerar a trajetória, desde um

Aristóteles seguidor das ideias de Platão até a superação destas concepções por

aquilo que representou a filosofia aristotélica legada até a atualidade.

Jaeger critica o antigo método de interpretação, pois este seria

não-histórico, em troca disto, a proposta do novo método, chamado histórico-

genético era considerar, ao se interpretar as obras aristotélicas, a gênese histórica e

o desenvolvimento do pensamento do Filósofo.

A conclusão é óbvia. Se esta maneira de ver, intimamente consistente, é insustentável em conjunto; se Aristóteles começou por atravessar um período platônico, que durou vinte anos; se escreveu obras inspiradas pelo espírito de Platão e defendeu a visão de universo deste, são destruídas todas nossas ideias anteriores acerca da natureza de nosso homem e necessitamos desenvolver um novo conceito, de sua personalidade e de sua história, como das forças que moldaram sua filosofia. De fato, este mito de um Aristóteles frio, estático, imutável e puramente crítico, sem ilusões, experiências, nem história, cai feito pedaços abaixo do peso dos fatos suprimidos artificialmente até agora em favor da própria causa.9

A proposta de Jaeger foi extremamente importante durante o

período do renascimento das ideias aristotélicas no início do séc. XX. Todavia,

segundo Reale, outros estudiosos usando do mesmo método acabaram por alcançar

conclusões diametralmente opostas, o que veio por derrubar boa parte das

conclusões alcançadas por esta escola, motivo pelo qual, segundo o autor italiano:

“As conclusões de Jaeger, acolhidas por muitos com grande entusiasmo, depressa

mostraram o seu caráter precário, ao serem examinadas justamente em função do

método genético”10.

Refletindo sobre as principais razões pelas quais a proposta do

método histórico-genético ruíra, Reale destaca as seguintes: a) as obras de escola

9 “La conclusión es obvia. Si esta manera de ver, íntimamente consistente, es insostenible en

conjunto; si Aristóteles empezó por atravesar un período platónico, que duró una veintena de años; si escribió obras inspiradas por el espíritu de Platón y defendió la visión del universo de éste, quedan destruídas todas nuestras ideas anteriores acerca de la naturaleza de nuestro hombre, y necesitamos tallarnos un nuevo concepto, así de su personalidad y de su historia, como de las fuerzas que moldearon su filosofía. De hecho, este mito de un Aristóteles frío, estático, inmutable y puramente crítico, sin ilusiones, experiencias, ni historia, cae hecho pedazos bajo el peso de los hecho suprimidos artificialmente, hasta ahora a favor de la propia causa”. JAEGER, Werner. Aristóteles: bases para la historia de su desarrollo intelectual. p. 47. (tradução livre).

10 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 2001. p. 155.

18

nunca foram concebidas e escritas como livros a serem publicados, mas como o

substrato da atividade didática; b) em razão disso, seria um absurdo pensar a

possibilidade de se distinguir estratificações cronologicamente determináveis, visto

que foram passíveis de sucessíveis remanejamentos pelos seus autores; c) para ser

de fato histórico, o método proposto pro Jaeger deveria pautar-se sobre dados

incontroversos, sobre datas seguras e bem provadas; d) as dificuldades na leitura do

Corpus aristotelicum restam multiplicadas com o método histórico-genético.11

Apesar disso, a proposta de Jaeger foi especialmente

importante, pois: a) representou a descoberta do Aristóteles dos escritos juvenis

(exotéricos); a demonstração de que só se entende Aristóteles, histórica e

teoricamente, levando-se em conta suas relações com o platonismo; c) oportunizou

um aprofundamento e um exame crítico das obras mais significativas de Aristóteles,

o que fez emergir muitos e importantes elementos novos, úteis para a compreensão

mais adequada dos textos; d) representou um sentido mais vivo da historicidade do

pensamento aristotélico, considerado até então demasiado abstrato e anti-

histórico.12

Barnes sintetiza muito bem a validade das descobertas de

Jaeger ao considerar que: “[…] ele estava certo, no fundo – somente os seus fatos

eram falsos”13.

Portanto, por mais que a interpretação histórico-genética não

tenha de fato suprido todas as incertezas que envolvem a evolução histórica do

pensamento Aristotélico e ainda a dúvida sobre a autenticidade de determinadas

obras creditadas ao Estagirita, este trabalho demonstra que para compreender o

pensamento aristotélico deve-se ter em vista os rumos tomados pela vida do

pensador, bem como as suas fases da vida, além da noção sistêmica proposta por

ele, para então se considerar as ideias propostas por Aristóteles nas mais variadas

áreas do conhecimento.

11 REALE, Giovanni. Storia della Filosofia Antica: II. Platone e Aristotele. p. 386. 12 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 156. 13 “[…] he was right at bottom – only his facts were false”. BARNES, Jonathan. Life and work. In:

________ (Ed.). The Cambridge Companion to Aristotle. New York: Cambridge University Press, 1996. p. 17.

19

Tendo em vista os elementos aqui considerados, torna-se

possível apresentar logo em seguida a lógica sistemática que permeia o

pensamento de Aristóteles, fruto de seu processo evolutivo até o alcance de sua

maturidade intelectual, no período do Liceu.

1.2 A SISTEMÁTICA FILOSÓFICA DE ARISTÓTELES

Para se compreender o modo pelo qual Aristóteles sistematiza

o conhecimento humano no seu pensamento é primordial considerar as

contribuições feitas por Aristóteles nos livros que compõem a Metafísica.

Nesta obra, cujo objetivo centra-se em considerar a ciência que

se ocupa em estudar as causas e os princípios primeiros, os quais, por esta

característica, acabam por influenciar a todos os fenômenos no mundo, sendo

anteriores a eles e, por este motivo, metafísicas, o Filósofo divide as ciências em

três grupos: ciências práticas, poiéticas e teoréticas.

Nesta divisão, as ciências práticas se referem às ações que

têm seu início e seu termo no próprio sujeito, são as ações morais, pois estas têm

seu início no sujeito e retornam ao próprio sujeito, ou a toda humanidade,

aperfeiçoando-os, sendo representados neste grupo a Ética e a Política, conforme

se verá adiante.14 Para as ciências práticas: “[…] o princípio das ações práticas está

no agente, isto é, na volição, enquanto coincidem o objeto da ação prática e da

volição”15.

As ciências poiéticas, também chamadas de produtivas, são

aquelas que se dirigem à produção de algo, as ações têm seu princípio no próprio

sujeito, mas se dirigem a produzir algo fora do próprio homem, sendo exemplos as

operações e produções da arte, como a construção, a cura exercida pelo médico

14 REALE, Giovanni. Ensaio introdutório. In: ARISTÓTELES. Metafísica. 2. ed. Tradução de Marcelo

Perine. São Paulo: Loyola, 2005. (Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale.). 1.v. p. 48.

15 ARISTÓTELES. Metafísica. 2. ed. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2005. 2.v. (Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale.). p. 271.

20

sobre o paciente, o tocar um instrumento, entre outras.16 “[…] o princípio das

produções está naquele que produz, seja no intelecto, na arte e noutra faculdade “17

Já as ciências teoréticas, diferentemente, têm como fim a pura

especulação, o puro conhecimento como ele é, dividindo-se esta em física, que

estuda a substância que tem capacidade de movimento, as substâncias sensíveis, a

matemática, que considera as grandezas e planos que regem os corpos, bem como

as propriedades das coisas e a última e maior das ciências teoréticas, que é a

metafísica, que se encarrega de estudar a substância que está além da física, as

substâncias supra-sensíveis, imóveis e eternas.18

Pelo seu caráter, a metafísica é a ciência absolutamente

primeira, a mais elevada e sublime, visto que seu estudo não tem serventia a nada

em particular, mas ao conhecimento pelo conhecimento, o ato mais elevado que

pode ser executado pelo intelecto humano, este é o espírito que já se encontra

denunciado logo no início da obra, quando Aristóteles profere a célebre assertiva:

“Todos os homens, por natureza, tendem ao saber”19.

Apesar de não possuir uma destinação precisa e ser, a

princípio, inútil a qualquer coisa específica, é a partir da metafísica que se constrói

toda a compreensão sobre o mundo sensível nas suas mais variadas dimensões.

Deste modo, para uma fiel interpretação do pensamento do Estagirita é primordial se

considerar em um primeiro momento esta dimensão, para então se passar à

consideração das demais ciências, no objeto pertinente a cada uma delas.

Para a estruturação das ciências, também se faz importante

considerar a questão da organização lógica a ser tomada na área do conhecimento

a ser estudada. A lógica ou analítica (do grego analysis, que significa resolução)20,

usando o termo aristotélico, também é importante para a organização do raciocínio

científico.

16 REALE, Giovanni. Ensaio introdutório. In: ARISTÓTELES. Metafísica. p. 48. 17 ARISTÓTELES. Metafísica. p. 271. 18 REALE, Giovanni. Ensaio introdutório. In: ARISTÓTELES. Metafísica. p. 49. 19 ARISTÓTELES. Metafísica. p. 3. 20 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 116.

21

Para Aristóteles a lógica não é vista como uma ciência, pois

não tem em vista a produção de algo (ciências poiéticas), nem a ação moral (como

as ciências práticas), nem tem um conteúdo determinado diferente do conteúdo da

metafísica ou da física, ou ainda da matemática (ciências teoréticas), sendo vista

como um instrumento que considera a forma que deve ter qualquer tipo de discurso

que pretenda demonstrar algo e, em geral, queira ser probatório. Por este motivo,

inclusive, o termo organon foi dado aos principais tratados do Filósofo que

consideram a matéria. Apesar de não possuir status de ciência, a lógica é

considerada como um estudo preliminar a esta, justamente por seu caráter de

instrumentalidade Tal como assevera Bittar: “Sem fim próprio em si, a lógica coloca-

se a serviço do saber. Assim é que a argumentação e a estrutura do pensamento

devem conduzir à verdade”21.

Assim, dentre os escritos esotéricos que foram conservados

até a atualidade encontram-se obras do filósofo que tratam desde as causas e

princípios primeiros que ordenam todo o universo, como a Metafísica a que se

referiu antes, passando por obras de filosofia natural como Física, Céu e

Meteorologia, obras de psicologia como o De Anima, livros acerca da lógica como

constituinte do conhecimento humano, como os que compõem o Organon, tratados

sobre filosofia moral e política como a Ética a Nicômacos e a Política, obras relativas

às ciências naturais como o História dos animais, O movimento dos animais e A

geração dos animais e ainda obras sobre a arte do discurso e da representação,

como a Arte Retórica e a Arte Poética.22

Findas estas considerações preliminares, torna-se possível

apresentar de maneira sucinta as principais matérias pelas quais o Estagirita se

preocupou em trabalhar, colhendo-se assim os elementos necessários para que se

possa considerar a doutrina aristotélica das Ciências Práticas e, finalmente, do

conceito de Justiça dentro da filosofia aristotélica.

21 BITTAR, Eduardo C.B. Curso de Filosofia Aristotélica: leitura e interpretação do pensamento

aristotélico. Barueri: Manole, 2003. p. 174. 22 REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. 8. ed. São

Paulo: Paulus, 2003. 1.v. p. 175, 176.

22

1.3 ELEMENTOS BASILARES PARA O ESTUDO DA FILOSOFIA PRÁTICA DE

ARISTÓTELES

Ao buscar identificar o conceito de Justiça proposto por

Aristóteles, a presente monografia centra-se, portanto, no âmbito das Ciências

Práticas, aquelas cujo fim é orientar a própria conduta humana. Em razão disso,

estar-se-á tratando especialmente da Ética e da Política dentro do pensamento do

filósofo de Estagira. Todavia, considerando-se que esta pesquisa se destina a

precisar a implicância do conceito de Justiça dentro de toda a sistemática filosófica

aristotélica, é mister trabalhar preliminarmente alguns elementos das demais áreas

do conhecimento humano, segundo o raciocínio de Aristóteles.

Neste escopo, neste momento propõe-se trabalhar

especialmente sobre elementos dispostos na Metafísica, nos livros do Órgano e

ainda no tratado De Anima que se fazem primordiais para uma melhor compreensão

do assunto.

1.3.1 A Metafísica

O conjunto de textos que posteriormente foi batizado como

Metafísica, provavelmente por um dos discípulos de Aristóteles23, destina-se a tratar

daquilo que o próprio Aristóteles chamava de filosofia primeira ou também de

teologia. Dita filosofia primeira se trata daquela que se ocupa das realidades que

estão além da física, mas que condicionam esta, motivo pelo qual se diz que esta

trata das causas e dos princípios primeiros, em contraposição à filosofia segunda,

que viria a ser a física.

Como definição desta ciência, a maior das disciplinas

teoréticas, Aristóteles alcançou quatro diferentes definições, sendo estas:

- a metafísica como estudo das causas e dos princípios primeiros ou supremos, o

que é tratado nos livros A (primeiro), α ελαττον (segundo) e B (terceiro);

23 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 37.

23

- a metafísica como estudo do ser enquanto ser, tal com se encontra nos livros

Γ (quarto), Ε (sexto), capítulos 2-4 e Κ (décimo-primeiro), podendo-se entender seu

significado como a ciência que estuda as causas e princípios supremos do ser em

sua totalidade, valendo, portanto, para toda a realidade e para todo ser;24

- a metafísica enquanto estudo da substância (usiologia), conforme se vê nos livros

Ζ (sétimo), Η (oitavo), Θ (nono), isso ocorre pois, para Aristóteles o ser tem muitos

significados e, dentro destes, o mais importante é o de substância, motivo pelo qual

a ciência das causas e princípios primeiros é a ciência das causas e dos princípios

da substância;25

- e, por fim, metafísica como teologia, a investigação de Deus e a substância supra-

sensível, o que se vê nos livros Ε (sexto), capítulo 1, e Λ (décimo segundo), pois

uma ciência só pode ser divina por ser a ciência que Deus possui em grau supremo,

ou porque ela tem por objeto as coisas divinas, sendo que somente a sapiência

possui essas duas características.26

Nesta obra, Aristóteles principia por trazer que a sapiência, o

conhecimento filosófico, é a mais alta atividade humana, e que esta se traduz no

conhecimento das causas e dos princípios, mas não meramente qualquer causa ou

princípio, mas as causas e princípios primeiros, pois “por eles e a partir deles se

conhecem todas as outras coisas, enquanto ao contrário, eles não se conhecem por

meio das coisas que lhe estão sujeitas”27.

Considera Reale que causa e princípio, usados na maioria das

vezes como sinônimos por Aristóteles, nada mais são que a razão de ser da coisa,

aquilo porque aquela coisa é o que é. Neste sentido, tem-se que causas e princípios

são as condições ou fundamentos das coisas, se estas são excluídas, acaba-se por

excluir as próprias coisas.28

Quanto à proposta dos ensaios que compõem a Met., expressa

Jaeger que esta:

24 REALE, Giovanni. Ensaio introdutório. In: ARISTÓTELES. Metafísica. p. 41. 25 REALE, Giovanni. Ensaio introdutório. In: ARISTÓTELES. Metafísica. p. 42. 26 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 37. 27 ARISTÓTELES. Metafísica. p. 11. 28 REALE, Giovanni. Ensaio introdutório. In: ARISTÓTELES. Metafísica. p. 39.

24

[…] é a verdadeira realização mais alta da natureza humana; não se reduz a ser um simples meio de satisfazer às crescentes exigências da vida civilizada, senão que é o mais alto dos valores, o valor absoluto e acima da cultura; e de todos os estudos é o mais alto e mais desejável aquele cujo fruto é a ciência mais exata e cuja forma perfeita é a visão desinteressada do conhecimento puro.29

Tem-se assim que, para Aristóteles, aquele que estuda a mais

elevada das ciências é aquele que conhece o fim para o qual é feito cada coisa. O

fim de todas as coisas para Aristóteles é o bem, razão pela qual ele conclui que em

toda natureza o fim é o sumo bem.30 Esta consideração é de extrema importância

para os estudos do Estagirita, pois conforme se verá no capítulo seguinte, a procura

pelo bem é também o que motiva o estudo do ser humano na Ética e na Política e,

além disso, o tipo mais elevado de vida a ser considerado é justamente a do homem

que vive em busca desta ‘visão desinteressada do conhecimento puro, valendo-se

dos termos de Jaeger.

Tendo presente a ânsia que o ser humano possui por conhecer

e já delineando os pontos que constroem aquela que é a mais elevada das

disciplinas do conhecimento humano, Aristóteles passa então a tratar sobre quais

seriam os objetos de concentração dessa filosofia primeira.

No tocante ao presente estudo, é importante considerar a

distinção que Aristóteles faz sobre as causas que regem os fenômenos. O Estagirita

demonstra que estas são entendidas em quatro diferentes sentidos. Para

demonstrar isto Aristóteles aprecia o que seus antecessores já haviam considerado

sobre a matéria, concluindo que nenhum deles havia vislumbrado outras causas que

não essas quatro, apesar de nenhum antes dele as ter apresentado em conjunto.31

Acerca das aludidas causas, em um primeiro sentido, entende-

se que causa é a substância e a essência (causa formal), pois “De fato, o porquê

29 “[…] es la verdadera realización de la más alta naturaleza humana; no se reduce a ser un simple

medio de satisfacer las cecientes exigencias de la vida civilizada, sino que es el más alto de los valores, el valor absoluto y cima de la cultura; y de todos los estudios es el más alto y más deseable aquel cuyo fruto es la ciencia más exacta y cuya forma perfecta es la visión desinteresada del conocimiento puro”. JAEGER, Werner. Aristóteles: bases para la historia de su desarrollo intelectual. p. 85 (tradução livre).

30 ARISTÓTELES. Metafísica. p. 11. 31 ROSS, Sir David. Aristotle. 6th ed. London; New York: Routledge, 1995. p. 162.

25

das coisas se reduz, em última análise à forma e o primeiro porquê é, justamente

uma causa e um princípio”32; em um segundo sentido tem-se que a causa é a

matéria e o substrato (causa material); em um terceiro, o princípio do movimento

(causa eficiente); e num quarto sentido, a causa é o oposto do último sentido, se

trata do fim e o bem (causa final), sendo este o fim da geração e de todo movimento.

De fato, a causa final é a primeira a ser estabelecida, porém a última a ser

alcançada em relação a alguma coisa.33

Estas quatro causas, que já haviam sido anteriormente

apresentadas por Aristóteles no livro II de sua Física34, são novamente apresentadas

logo no início da Metafísica, demonstrando-se a importância de considerá-las na

busca pelo conhecimento mais alto que a humanidade pode alcançar, bem como

demonstra que a incidência destas causas não se encontra limitada aos corpos que

se submetem à característica do movimento, o que na lógica aristotélica se limita às

substâncias eternas e corruptíveis (os astros), e às substâncias mortais e

corruptíveis (as demais coisas físicas). Assim, tem-se que as quatro causas estão

também ligadas aos estudos da filosofia primeira, razão pela qual se fazem

importantes para a compreensão de todo o pensamento do Estagirita.

O conhecimento das quatro causas se mostra como elementar

não apenas para o conhecimento das coisas mais sublimes que a racionalidade

humana pode alcançar, pelo contrário, a sistemática filosófica aristotélica direciona-

se, seja em que área do conhecimento que se estiver a tratar, a buscar identificar

qual é a essência das coisas, separando-a dos acidentes que lhe acompanham,

bem como por este elemento discriminar o que compõe o objeto estudado, quem é o

seu causador ou que efeitos pode vir a causar e, especialmente, qual é a finalidade

deste objeto estudado.

Fixada esta concepção preliminar da importância dos princípios

da metafísica para o estudo das demais áreas do pensamento a que se ocupou

Aristóteles, alcança-se o momento de tratar de outro elemento primordial à

32 ARISTÓTELES. Metafísica. p. 15. 33 ARISTÓTELES. Metafísica. p. 15. 34 ARISTÓTELES. Física. Traducción y notas de Guillermo R. de Echandía. [s.l]: Gredos. (Biblioteca

Clásicos Gredos). p. 54, 55.

26

construção do saber científico: a lógica, ou na terminologia do autor, a analítica, que

representa o instrumento pelo qual o pesquisador se utilizará na busca por construir

um conhecimento verdadeiro sobre a realidade com a qual se depara.

1.3.2 O Órganon

Conforme destacou-se, no sistema científico aristotélico a

lógica, ou analítica, não possui lugar, devido ao fato de esta não ter por objeto nem a

produção de algo, caso em que seria considerada uma ciência poiética, nem a ação

moral, como as ciências práticas, nem uma realidade distinta da que é objeto da

metafísica, da física e da matemática, como ciências teoréticas.35

Contrariamente, a analítica considera a forma que deve ter

qualquer tipo de raciocínio que pretenda demonstrar algo e, em geral, que se

proponha a provar. Por isso Aristóteles a considerava como instrumento (organon),

pois esta mostra como o se procede o conhecimento quando se pensa, qual é a

estrutura do raciocínio e quais são os seus elementos, como se pode demonstrar

algo, os tipos e modos de demonstrações que existem, sobre que coisa versam e

quando são possíveis.36

Ross destaca que o uso do nome lógica é posterior a

Aristóteles, sendo que o termo analítica adotado por Aristóteles provém de analysis

e diz respeito primeiramente à análise da razão dentro das partes do silogismo, mas

também pode ser estendida para incluir a análise do silogismo em proposições e das

proposições em termos.37

Aliás, é de se destacar que Aristóteles, por ser o descobridor

do silogismo, destaca-se como o fundador da lógica enquanto disciplina própria. Isto

ocorre a partir do momento em que critica a limitação do ensino da retórica, à

maneira feita pelos sofistas, tal como o Filósofo considera em Elencos Sofísticos:

Não obstante, quanto ao presente tratado, não se pode afirmar que uma parte haja sido já anteriormente elaborada, e que outra parte ainda não o tinha sido. De facto, acerca desta disciplina, nada havia,

35 ROSS, Sir David. Aristotle. p. 21. 36 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 115. 37 ROSS, Sir David. Aristotle. p. 21.

27

porque a educação dada pelos mestres que, mediante honorários, ensinam os argumentos erísticos, era par da arte de Górgias […] Assim também, no caso da retórica, havia numerosos trabalhos e antigos, enquanto sobre o juízo não tínhamos literalmente nada anterior a mencionar, e passamos longos tempos em penosas buscas.38

Na estrutura do Órganon encontram-se compiladas as diversas

obras do Estagirita que tratam sobre a lógica, na seguinte sequência, tendo por base

a estrutura proposta por Ross39, adotada pela maioria dos autores pesquisados:

- no início as obras Categorias e De Interpretatione (Periermeneias) discutem os

termos e as proposições, que são os formadores dos silogismos, sendo

considerados por Ross como estudos preliminares;

- em seguida, os Analíticos Anteriores, tratam da estrutura do silogismo em geral,

suas diversas figuras e diferentes modos;

- os Analíticos Posteriores tratam do silogismo verdadeiro, do silogismo científico, no

qual se consiste a verdadeira demonstração;40

- por fim, nos Tópicos se estuda o silogismo dialético, entendido este como aquele

que estuda as opiniões geralmente aceitas, sendo estas as opiniões que todos, ou a

maioria, ou os mais notáveis e eminentes (filósofos) aceitam41; e nos Elencos

Sofísticos (ou Refutações Sofísticas), geralmente considerado como o nono livro do

Tópicos, o filósofo aborda as argumentações dos sofistas.

Ao analisar a lógica aristotélica, destaca Reale:

A lógica aristotélica tem, por conseguinte, uma gênese perfeitamente filosófica; esta ciência indica o momento em que o logos filosófico, depois de ter amadurecido completamente através da estruturação, de todos os problemas principais, se torna capaz de se questionar a si mesmo e ao próprio método de proceder, e consegue estabelecer

38 ARISTÓTELES. Elencos Sofísticos. In: ________. Órganon. Tradução e notas de Pinharanda

Gomes. Lisboa: Guimarães, 1986. 6.v. p. 122, 123. 39 ROSS, Sir David. Aristotle. p. 22. 40 ARISTOTLE. Posterior Analytics. In: THE Works of Aristotle. Translation of W. D. Ross. Chicago;

London; Toronto; Geneva: Encyclopaedia Britannica, 1952. p. 98. 41 ARISTÓTELES. Tópicos. Dos Argumentos Sofísticos. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd

Borheim. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 5.

28

o que é a própria razão, ou seja, o que importa fazer para raciocinar, bem como quando e sobre que coisa se pode raciocinar.42

Pelo que até aqui foi exposto, constata-se que o estudo da

analítica importa à melhor compreensão das Filosofias Práticas e, tendo em vista

este presente estudo, também ao conceito de Justiça, visto que fornece ao cientista

os elementos pelos quais ele possa considerar a realidade que ele estuda como

verdadeira, que ele possa identificá-la do modo como realmente é. Por este motivo,

cumpre neste momento destacar os principais pontos das obras do Órganon que se

fazem como elementares ao presente estudo.

Nas Cat. expõe-se os elementos mais simples que compõem a

lógica. Ao se desvincular as palavras das combinações que possuem entre si, as

seguintes categorias podem ser encontradas: a substância, a quantidade, a

qualidade, a relação, o lugar, o tempo, o estado, o hábito, a ação e a paixão.43 Estas

dez categorias são, com efeito, os elementos aos quais se deve poder referir

qualquer termo da proposição. No De Int., por sua vez, fala-se sobre as proposições,

ou seja, sobre o modo como se afirma ou se nega algo de outra coisa.44

Fixada esta base, das principais categorias a serem

consideradas na investigação de alguma coisa, e também do modo como se afirma

ou nega algo, nos Analíticos e nos Tópicos são discutidos os meios pelos quais se

pode proceder à verificação de um conhecimento que possa ser considerado

verdadeiro, seja em absoluto, seja tendo em vista um consenso (dialética),

procedendo-se assim por meio dos silogismos.

Os silogismos, definidos como a afirmação ou negação de

algum predicado acerca de algum sujeito, são compostos por três elementos, sendo

dois deles premissas e o terceiro o termo conseqüente. “A premissa é a oração que

afirma ou nega algo acerca de algum sujeito, e este pode ser universal, particular e

42 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 118, 119. 43 ARISTÓTELES. Categorias. Periermeneias. In: ________. Órganon. Tradução e notas de

Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães, 1986. 1.v. p. 48. 44 ARISTÓTELES. Categorias. Periermeneias. In: ________. Órganon. p. 48.

29

indefinido”45. Neste processo, entende-se por termo aqui em que uma premissa se

resolve, ou seja, o predicado e o sujeito acerca do qual se afirma ou se nega algo.

Para Aristóteles é importante fazer a diferença ainda entre o

silogismo perfeito e o imperfeito. Silogismo perfeito é aquele que “não requer mais

do que o que está compreendido nele, para que a necessidade da conclusão seja

evidente”46, portanto, todos os elementos que compõem sua proposição são

suficientes para a afirmação ou negação que se está a fazer. Já o silogismo

imperfeito é “o silogismo que carece de uma ou mais proposições, que resultam

necessariamente dos termos postos, mas não estão explícitas nas premissas”47.

Ademais, dentro da estrutura dos silogismos, conforme foi dito,

são encontrados três termos, as premissas, divididas entre a premissa maior e a

premissa menor, e a conclusão da ligação entre estas duas premissas. Um exemplo

disso é a proposição: ‘Se todos os homens são mortais, e se Sócrates é homem,

então Sócrates é mortal’.

A importância do raciocínio silogístico para a construção do

pensamento aristotélico é diagnosticada nos próprios Analíticos anteriores, quando o

Estagirita considera:

O método é o mesmo em todas as artes, tanto em filosofia como não importa qualquer outra arte ou disciplina. Convém procurar os predicados e os sujeitos de cada um dos termos, obter o maior número possível de predicados e de sujeitos, e considerá-los mediante os três termos, tanto de um modo como de outro, quer se trate de refutação ou de demonstração e, quando o raciocínio tiver por objeto a verdade, partir de premissas em que os termos estejam dispostos, de modo a formar uma predicação conforme à verdade, enquanto que, nos silogismos dialécticos, temos de partir de premissas conforme à probabilidade.48

Neste texto encontra-se explícito o caráter instrumental da

analítica para a construção do conhecimento no pensamento de Aristóteles, seja

este um conhecimento certo ou provável.

45 ARISTÓTELES. Analíticos Anteriores. In: ________. Órganon. Tradução e notas de Pinharanda

Gomes. Lisboa: Guimarães, 1986. 2.v. p. 9. 46 ARISTÓTELES. Categorias. Periermeneias. In: ________. Órganon. p. 11. 47 ARISTÓTELES. Categorias. Periermeneias. In: ________. Órganon. p. 11. 48 ARISTÓTELES. Analíticos Anteriores. In: ________. Órganon. p. 116.

30

Falando-se em conhecimento certo, verdadeiro, é importante

se considerar os silogismos demonstrativos ou científicos, visto que é por meio deles

que se busca o conhecimento verdadeiro, e este se distingue do silogismo geral,

pois, além da correção formal da dedução, também considera o valor da verdade

das premissas e conseqüências trabalhadas, a este conteúdo. A este estudo,

conforme foi dito, dedica-se especialmente os An. Post.

Sobre os silogismos científicos, destaca Mignucci apud Reale:

O procedimento silogístico próprio da ciência chama-se demonstração; trata-se de uma classe particular de silogismo, que se diferencia deste não pela forma, pois, de outro modo não se poderia aplicar com verdade o nome de silogismo, mas pelo conteúdo das premissas utilizadas. Na demonstração, as premissas devem ser sempre verdadeiras, ao passo que não é necessário que assim seja no silogismo como tal, porque neste último só interessa se certo conseqüente deriva ou não das premissas estabelecidas, pelo simples facto de terem sido estabelecidas, independentemente do valor de verdade que possam ter. Em contrapartida, na demonstração, por esta ser o procedimento que conduz à ciência do conseqüente, a saber, se o conseqüente é verdadeiramente tal ou não, há que empregar um antecedente verdadeiro, pois só do verdadeiro se deriva necessariamente o verdadeiro.49

Com isso firma-se que para Aristóteles a ciência consiste

basicamente em um processo discursivo tendente à determinação do porquê ou da

causa e, dentre as quatro causas anteriormente referidas, busca-se sobretudo a

causa formal, a essência da coisa.50 É neste sentido que Aristóteles expõe nos Top.

que a definição de uma coisa é a identificação de sua essência, tendo-se neste

ponto a ligação entre a concepção de ciência e a Metafísica, sendo primordial ao

raciocínio científico reputar-se àquilo que anteriormente já é, para diagnosticar o

verdadeiro.51

Com base no que foi até aqui visto, nota-se que Aristóteles

centra o conhecimento científico também nos silogismos, apesar de ser um

silogismo diverso daquele estritamente lógico, pois no primeiro a veracidade das

proposições é fundamental para uma conclusão verdadeira. Tendo em vista esta

49 MIGNUCCI apud REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 126. 50 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 127. 51 ARISTÓTELES. Tópicos. Dos Argumentos Sofísticos. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd

Borheim. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 6.

31

posição, surge então o problema de como se firmar as premissas verdadeiras, pois

se para isso se procedesse somente por meio de silogismos, estes teriam de ser

construídos até ao infinito para que se pudesse fixar algum ponto de verdadeiro.

Surge então neste ponto a importância da indução e da

intuição como processos que, apesar de opostos ao silogismos, se manifestam

como pressupostos deste. Tal como considera Aristóteles: “Toda a convicção é

adquirida, ou assenta no silogismo, ou parte da indução”52. Tem-se assim que a

indução ou epagoge é o procedimento pelo qual se obtém do particular o universal,

se trata de uma condução do conhecimento particular a uma generalização

universal. Assim: “a indução opõe-se ao silogismo, já que este demonstra, pelo

termo médio, que o termo maior se predica do terceiro termo, enquanto a indução

prova, pelo terceiro termo, que o termo maior predica o termo médio”53.

Já a intuição (nous), conforme se tratará também no capítulo

seguinte, é a apreensão pura e simples dos primeiros princípios, partindo-se destes,

conforme se considera nos Analíticos posteriores, para a construção das demais

demonstrações. Considera Aristóteles que as intuições são sempre verdadeiras,

pois nenhum outro tipo de conhecimento é mais exato do que aquele captado pela

intuição e, ainda, os seus princípios são a base para as demonstrações, sendo que

estes são obtidos por meio da intuição, motivo pelo qual a intuição será sempre o

princípio da ciência.54

Finalizando este ponto, importante também ressaltar aqui que

cada uma das ciências assumirá premissas e princípios que lhe são próprios, tendo

em vista os seus objetos de estudo, aliados aos princípios que são gerais a todas as

ciências, conforme considerou-se na Met.

Cada ciência presumirá a existência do âmbito, do sujeito

sobre o qual versarão todas as suas determinações, e caracterizará o seu objeto por

meio das definições. Além disso, cada ciência definirá a série de termos que lhe

pertencem. Em terceiro lugar, as ciências deverão recorrer a certos axiomas,

52 ARISTÓTELES. Analíticos Anteriores. In: ________. Órganon. p. 233. 53 ARISTÓTELES. Analíticos Anteriores. In: ________. Órganon. p. 235. 54 ARISTOTLE. Posterior Analytics. In: THE Works of Aristotle. p. 136.

32

proposições verdadeiras e intuitivas, sendo estes os princípios aos quais se efetuará

a demonstração (vale ressaltar neste ponto que na Met. Aristóteles destaca que

todas as ciências partem de axiomas, mas somente o estudioso da filosofia primeira

encontra-se habilitado a discutir os axiomas utilizados pelas diversas ciências).55

Dentre os axiomas, destaca-se que alguns são próprios de

cada ciência específica, outros comuns a várias ciências e outros ainda próprios de

todas as ciências sem exceção, como o princípio de não-contradição (“[…] é

impossível que uma coisa, ao mesmo tempo, seja e não seja […]”56), bem como os

princípios de identidade e do terceiro excluído, todos estes expostos no livro quarto

da Metafísica.57

Fixados estes pontos em relação à lógica de Aristóteles,

especialmente contidos no Órganon, torna-se possível passar ao próximo ponto,

onde analisar-se-á especialmente as implicações do tratado De Anima, para a

interpretação da Filosofia Prática de Aristóteles.

1.3.3 O De Anima

Dentre as obras de Aristóteles, o tratado Da alma (De anima)

diz respeito à obra onde o Filósofo discute o princípio que diferencia os seres

animados dos inanimados, a alma. Para o Filósofo, o objeto de estudo da Psicologia

é estudar e conhecer a natureza essencial da alma, bem como suas propriedades.58

Ao contrário do conceito de psique dos pensadores anteriores,

que com os pré-socráticos identificava-se muito mais com o princípio físico ou como

um aspecto deste, e que em Platão era concebido como contraposto ao corpo, ao

ponto de considerá-la totalmente distinta e incapaz de conciliação harmônica com

este, Aristóteles adota uma posição intermediária, buscando fazer deste conceito

55 HAMELIN, O. Le Système D’Aristote. 4. ed. Paris : Librairie Philosophique J. Vrin, 1985.

(Bibliothèque D’Histoire de la Philosophie. Publié par Léon Robin). p. 247, 248. 56 ARISTÓTELES. Metafísica. p. 145. 57 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 130. 58 ARISTÓTELES. De Anima. Traducción de Alfredo Llanos. Buenos Aires: Leviatán, 2003. p. 19.

33

uma síntese mediadora. Assim, a alma ao mesmo tempo é algo intrinsecamente

unido ao corpo, mas também é um princípio formal, é a forma, o ato ou a enteléquia

do corpo.59

Para o estudo da Filosofia Prática em Aristóteles

especialmente um ponto do tratado De anima se faz primordial, que é a questão dos

três tipos de alma e suas respectivas funções. Platão em A República já falara em

três partes ou funções da alma, dividindo-a em alma concupiscível, irascível e

intelectiva.60

Esta primeira divisão tem relação com a elaborada por

Aristóteles, conforme demonstrar-se-á a seguir, todavia, vale ressaltar que a divisão

feita pelo Estagirita tem muito mais relação com as observações feitas pelo filósofo

no plano biológico, do que o universo psicológico.

Aristóteles destaca que estas faculdades da alma são

possuídas por certos seres em sua completude, enquanto que, devido ao caráter de

não serem unas, outros possuem somente algumas ou apenas uma delas. Estas

faculdades são as nutritivas, apetitivas, sensoriais, motoras e intelectuais.61

As plantas, que possuem somente a alma vegetativa, possuem

tão somente a faculdade nutritiva, ou seja, a capacidade de obter alimento por si e

também de se reproduzir.62

Já os animais têm além da faculdade nutritiva também as

faculdades sensitiva, apetitiva e de movimento, sendo estes os elementos que

caracterizam os seres dotados da alma sensitiva.63

Por fim, aos seres humanos é acrescentada a última e mais

importante das faculdades, a intelectual, que o caracteriza como ser dotado de alma

racional. O ato intelectivo é análogo ao ato perceptivo, o primeiro recepção ou

59 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 130. 60 PLATÃO. A República. 9. ed. Tradução de Maria Helena Pereira. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 2001. 61 ARISTÓTELES. De Anima. p. 68. 62 ARISTÓTELES. De Anima. p. 72. 63 ARISTÓTELES. De Anima. p. 68.

34

assimilação das formas inteligíveis, tal como o ato perceptivo consiste na

assimilação da forma sensível, mas difere desta pois não se mistura com algo do

corpo, nem algo corpóreo.64 Conforme destaca Aristóteles: “A faculdade sensitiva

não é independente do corpo, enquanto que o intelecto está separado dele”65.

Estas divisões da alma, especialmente entre a alma sensitiva e

intelectiva, entre a parte irracional e racional do homem terão especiais implicações

na própria noção de Filosofia Prática de Aristóteles e, assim, também na noção de

Justiça, visto que a Ética e a Política têm como proposta disciplinar a conduta

humana ao modo mais adequado.

Apresentados estes elementos sobre o sistema filosófico

aristotélico e os principais elementos a serem considerados ao se analisar o

conceito de Justiça em Aristóteles, é chegada a hora de se apresentar as Ciências

Práticas e, dentro destas, a posição da Ética e da Política, o que será feito no

próximo capítulo, para então finalmente se tratar sobre a noção de Justiça dentro da

filosofia aristotélica.

64 REALE, Giovanni. Storia della Filosofia Antica: II. Platone e Aristotele. p. 473. 65 “La facultad sensitiva no es Independiente Del cuerpo, mientras que el intelecto está separado de

él”. ARISTÓTELES. De Anima. p. 133.

Capítulo 2

A FILOSOFIA PRÁTICA ARISTOTÉLICA E SUAS PRINCIPAIS DISCIPLINAS

Na divisão das Ciências formulada por Aristóteles a Filosofia

Prática diz respeito ao tipo de conhecimento que tem por objeto o próprio homem ou

a coletividade humana. Por isso a designação de Filosofia Prática, pois mais do que

se compreender o comportamento humano e suas implicações, esta área da

Filosofia tem por objetivo tornar realidade este tipo de orientação mais adequada.

Este tipo de conhecimento pode ser denominado pelo nome geral de Política, ou

ainda de ‘filosofia das coisas do homem’, conforme desta Reale66.

Apesar de se poder designar de maneira genérica a Filosofia

Prática como Política, importante também destacar que em Aristóteles, ao contrário

de seu mestre Platão, a Ética e a Política possuem uma separação no que concerne

ao objeto de estudo de cada uma destas áreas. Tem-se assim que o estudo da Ética

antecede ao da Política, conforme encontra-se perfeitamente destacado em diversos

trechos da Eth. Nic.

Com efeito, Aristóteles considera elementar em um primeiro

momento se formar o indivíduo que posteriormente virá a exercer as atividades

como cidadão da polis. Conforme se verá a seguir, para se tratar no bom político é

primordial primeiramente se considerar o homem ético, pois este sim estará

habilitado a conduzir seus concidadãos a uma via boa e plena. Neste espírito,

escreve o Filósofo no M. M.:

A ética, a meu juízo, só pode formar parte da política. Em política não é possível coisa alguma sem estar dotado de certas qualidades; quero dizer, sem ser homem de bem. Mas ser homem de bem equivale a ter virtudes; e, por tanto, se em política se quer fazer algo, é preciso ser moralmente virtuoso. Isto faz que pareça o estudo da ética como uma parte e também como o princípio da política, e, por

66 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 83.

36

conseguinte, sustento que ao conjunto deste estudo deve se dar melhor o nome de política que o de ética.67

Com base na divisão conceitual formulada pelo Estagirita e,

além disso, tendo em vista que a doutrina aristotélica da Justiça terá implicações

diretas tanto na esfera da Ética, quanto da Política, propõe-se neste segundo

capítulo apresentar o significado destes conceitos para Aristóteles, o que

possibilitará a discussão do conceito de Justiça em Aristóteles no derradeiro

capítulo.

2.1 A ÉTICA

No que pertine à doutrina da Ética, esta matéria foi objeto de

três tratados do Estagirita dos que foram legados até a atualidade, sendo estes a

Ethica Nichomachea, a Ethica Eudemia e o Magna Moralia. No conjunto destas três

obras o Filósofo retrata as principais questões necessárias para que se possa viver

bem e venturosamente. Assim, nestas obras são apresentados os principais

elementos que devem ser considerados para que, por meio de um critério racional,

seja possível que o homem alcance a realização de sua própria finalidade.

Destaca-se que na divisão destas obras, a Ethica

Nichomachea e a Ethica Eudemia possuem estrutura similar, tanto que ambas

partilham de três livros em comum, dentre estes o livro que trata sobre a teoria da

Justiça (livro V da Ehica Nichomachea e livro IV da Ethica Eudemia). Já a Magna

Moralia é um tratado em que se apresenta de maneira sintética em seus dois livros

os principais assuntos atinentes à Ética.

Dentre os três tratados, utilizar-se-á principalmente neste

trabalho a Eth. Nic, visto que é considerada a mais acabada das três éticas, onde a

doutrina do Filósofo sobre a matéria encontra-se melhor apresentada. Sobre as

diferenças entre a Eth. Nic. e a Eth. Eud., considera Jaeger que: “[…] a Etica

67 ARISTÓTELES. La Gran Moral. In: ________. Moral: La gran Moral. Moral a Eudemo. Traducción

de Patricio de Azcárate. Madrid: Espasa-Calpe, 1976. p. 25.

37

Nicomaquea é decididamente superior pelo acabado da construção, a claridade do

estilo e a maturidade do pensamento”68.

Todavia, isto significará um impeditivo para que, no decorrer do

texto, sejam utilizadas partes das outras duas Éticas, no intuito de complementar-se

as considerações sobre este ramo do saber prático na filosofia aristotélica.

Ao se pensar na Ética aristotélica, não se pode esquecer que

no sistema filosófico do Estagirita todas as coisas tendem a um fim, tal como se viu

no momento em que se trabalhou a metafísica aristotélica, de modo que o mesmo

valerá para as questões referentes ao ser humano. Até por este motivo, a primeira

coisa que o autor faz, quando trata sobre a ética, é refletir sobre qual é a finalidade

da vida humana.

Deste modo, no início da Eth. Nic. se faz a seguinte

consideração:“Toda arte e toda indagação, assim como toda ação e todo propósito,

visam a algum bem; por isso foi dito acertadamente que o bem é aquilo a que todas

as coisas visam”69. Ora, se tudo direciona-se a um bem, a um fim específico, há que

se considerar a existência de uma finalidade última, pois se assim não fosse infinito

seria este procedimento, de modo que o desejar seria vazio e vão. Assim, a Ética

direciona-se a conduzir o homem ao bem, ou melhor, ao sumo bem.70

Para Aristóteles, este sumo bem, a finalidade da vida humana,

é a felicidade (eudaimonia), pois “[…] o acordo quanto a este ponto é quase geral;

tanto a maioria dos homens quanto as pessoas mais qualificadas dizem que este

bem supremo é a felicidade, e consideram viver bem e ir bem equivale a ser feliz”71.

Não bastasse considerar o conceito da maioria, o que

constituiria um juízo dialético, Aristóteles demonstra então que também por

68 “[…] la Etica Nicomaquea es decididamente superior por lo acabado de la construcción, la claridad

del estilo y la madurez del pensamiento”. JAEGER, Werner. Aristóteles: bases para la historia de su desarrollo intellectual. p. 263.

69 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 2. ed. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Unb, 1992. p. 17.

70 REALE, Giovanni. Storia della Filosofia Antica: II. Platone e Aristotele. p. 491. 71 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 19.

38

intermédio do raciocínio filosófico é possível concluir que a felicidade é a finalidade

da vida humana. Assim:

Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais; mas as honrarias, o prazer, a inteligência e todas outras formas de excelência, embora a escolhamos por si mesmas (escolhê-las-iamos ainda que nada resultasse delas), escolhemo-las por causa da felicidade, pensando que através delas seremos felizes. Ao contrário, ninguém escolhe a felicidade por causa de várias formas de excelência, nem, de um modo geral, por qualquer outra coisa além dela mesma.72

Se a constatação da felicidade como finalidade da vida humana

é uma conclusão simples, difícil se torna definir qual o conceito de felicidade que se

deve considerar, visto que alguns entendem a felicidade como a vida prazerosa,

para outros se trata de possuir riquezas ou ainda de ter uma vida honrosa.

Para Aristóteles, porém, a felicidade é a vida contemplativa

(bios theoretikos), razão pela qual somente o sábio poderá considerar-se feliz, se

souber conduzir bem sua vida. Tendo em vista estas considerações, a proposta da

obra é demonstrar o modo pelo qual se pode construir este modelo de vida ética,

seja para o tipo de felicidade mais plena, ligada ao intelecto, seja a felicidade ligada

às questões mais sensíveis do ser humano.

Tendo em vista que o homem é um sínolo entre matéria e

forma, corpo e alma, e que, além disso, o homem possui as faculdades apetitiva e

racional da alma, Aristóteles considera que a felicidade, que é uma atividade da

alma, provirá do alcance e do exercício dos modelos ideais do agir e do pensar, as

chamadas excelências (aretai) ou virtudes. Em razão deste caráter dúplice, algumas

destas excelências são intelectuais (virtudes dianoéticas) enquanto outras são

morais (virtudes éticas).73

As excelências no pensar, também chamadas de virtudes

intelectuais, são aquelas que se adquire por meio do estudo, da instrução, motivo

pelo qual requer experiência e tempo. Na estrutura da Eth. Nic. o livro VI em

72 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 23. 73 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 33.

39

especial é dedicado a apresentar as principais excelências intelectuais e sua relação

com o homem ético, já na Eth Eud.este assunto é tratado no livro V.

A outra modalidade de excelência, a excelência moral, o modo

de se agir de maneira mais adequada em conformidade com o momento da ação, é

por sua vez adquiridas pelo cultivo dos hábitos, razão pela qual são inclusive no

grego produto de uma ligeira variação da palavra hábito (ethiké provém de ethos,

que pode ser entendido como hábito, costume)74.

Assim, a seguir serão trabalhadas cada uma destas categorias

de excelência elementares à construção do homem excelente, o que será importante

inclusive para se situar a posição da Justiça, partindo-se do pressuposto que ela

também é vista como uma virtude pelo Estagirita.

2.1.1 As excelências morais

Segundo Aristóteles, pelo exercício reiterado de uma ação boa,

esta ação é adquirida como parte do próprio indivíduo, fazendo assim que este se

torne um homem excelente neste aspecto. Não é por outro motivo que Aristóteles,

na Reth., destaca que os hábitos podem ser considerados como uma segunda

natureza do homem. Segundo o pensador:

Os hábitos são igualmente agradáveis, porque o habitual é já como que uma segunda natureza. O hábito assemelha-se de algum modo à natureza: ‘muitas vezes não está longe de sempre’. A natureza tem por objeto o que acontece sempre; o hábito, o que acontece muitas vezes.75

Portanto, o ser humano, ao se manter em exercício reiterado

de uma ação virtuosa, após certo transcurso temporal virá a ter este tipo de atitude

como parte sua, como um modelo de ação próprio daquele que pratica, neste

sentido, um hábito, que faz deste homem um homem virtuoso, porquanto pratica

ações virtuosas.

74 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Aristotélica: leitura e interpretação do pensamento

aristotélico. p. 1.019. 75 ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Traduzido por Antônio Pinto de Carvalho. 17.ed.

Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. p. 70.

40

Não basta, todavia, saber que as excelências no plano moral

são adquiridas pelos hábitos, faz-se necessário logo em seguida definir qual é o

critério do agir humano, para que então se possa ter noção também das vias pelos

quais a conduta moral resta destruída, seja pelo excesso, seja pela falta.

O Estagirita considera que as várias formas de excelência

moral possuem relação com as ações e emoções, sendo que em ambas encontra-se

ínsita a dimensão do prazer e do sofrimento. Ao contrário de Platão, que via na

dimensão do prazer algo a ser evitado, por afastar o indivíduo da formação de sua

alma, que seria a parte mais importante, para Aristóteles ambos os pontos não são

de todo condenáveis, porém o critério ético encontra-se na mediania, no meio-termo

(mesotés) entre o excesso e a falta em cada ação ou emoção. É neste sentido que a

virtude moral faz com que os homens ajam da melhor maneira possível e que

disponham mais completamente para fazer o bem, para tanto faz-se elementar se

conformar o agir humano com a reta razão, a disposição racional para se agir

conforme aquilo que é virtuoso.

Considera assim Aristóteles:

Depois de haver reconhecido que a virtude é esta maneira de ser moral que nos faz agir do melhor modo possível e que nos dispõe do modo mais completo que pode ser para fazer o bem; depois de ter reconhecido que o bem supremo na vida consiste em se conformar com a reta razão, quer dizer, que é o que ocupa o justo meio entre o excesso e a falta relativamente a nós, é imprescindível reconhecer também que a virtude moral é para cada indivíduo em particular um certo meio ou um conjunto de meios, no que concerne a seus prazeres e às suas penas, às coisas agradáveis e dolorosas que se possa sentir. Algumas vezes o meio estará somente nos prazeres, em que se encontram igualmente o excesso e a falta; em outras somente estará nas pena, e algumas nos dois juntos.76

76 “Después de haber reconocido que la virtud es esta manera de ser moral que nos hace obrar lo

mejor posible, y que nos dispone lo más completamente que puede ser para hacer el bien; después de haber reconocido que el bien supremo en la vida consiste en conformarse con la recta razón, es decir, que es lo que ocupa el justo medio entre el exceso y el defecto relativamente a nosotros, es imprescindible reconocer también que la virtud moral es para cada individuo en particular un cierto medio o un conjunto de medios, en lo que concierne a sus placeres y a sus penas, a las cosas agradables y dolorosas que se pueda sentir. Unas veces el medio se hallará solo en los placeres, en que se encuentran igualmente el exceso y el defecto; otras sólo se hallará en las penas, y algunas en los dos a par”. ARISTÓTELES. Moral a Eudemo. In: ________. Moral: La gran Moral. Moral a Eudemo. Traducción de Patricio de Azcárate. Madrid: Espasa-Calpe, 1976. p.142.

41

Neste ínterim, Aristóteles explana que existem três objetos de

escolha (o nobilitante, o vantajoso e o agradável) e três objetos de repulsa (o ignóbil,

o nocivo e o penoso), encontrando-se no percurso em busca dos três a luta do

homem para dominar seus prazeres, luta esta que, segundo Heráclito, é mais difícil

do que a luta contra a própria cólera.77

Para conseguir domar a própria alma, ou melhor, a parte da

alma irracional, que é esta que se relaciona com os objetos de escolha e com os de

repulsa é necessário, assim, a reiteração de ações virtuosas, pois pela prática

destas é que o homem se torna virtuoso. Assim:

As ações, portanto, são justas e moderadas quando são como as que o homem justo e moderado praticaria, mas o agente não é justo e moderado apenas por praticá-las, e sim porque também as pratica como as praticariam homens justos e moderados. É correto, então, dizer que é mediante a prática de atos justos que o homem se torna justo, e é mediante a prática de atos moderados que o homem se torna moderado; sem os praticar ninguém teria sequer remotamente a possibilidade de tornar-se bom.78

Aristóteles destaca ainda que dentre as manifestações da

alma, consideradas como as emoções, as faculdades e as disposições, a excelência

moral diz respeito apenas à última. Não se considera como emoção visto que não se

considera um homem bom ou mau com fundamento em suas emoções, mas em sua

excelência ou deficiência moral (vício), motivo pelo qual também não somos

louvados ou censurados pelas emoções. Outrossim, também não se considera

alguém bom por sua faculdade de sentir as emoções, visto que a faculdade é algo

que se possui de natureza. Resta assim, logicamente, que as virtudes dizem

respeito às disposições da alma e, de um modo mais específico, se trata da

disposição relacionada com a escolha das ações e emoções que devem ser

escolhidas, por serem boas, sendo estas, o meio-termo entre o excesso e a falta.

A excelência moral, então, é uma disposição da alma relacionada com a escolha de ações e emoções, disposição esta consistente num meio termo (o meio termo relativo a nós) determinado pela razão (a razão graças à qual um homem dotado de discernimento o determinaria). Trata-se de um estado intermediário, porque nas várias formas de deficiência moral há falta ou excesso do que é

77 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 38. 78 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 40.

42

conveniente tanto nas emoções quanto nas ações, enquanto a excelência moral encontra e prefere o meio termo. Logo, a respeito do que ela é, ou seja, a definição que expressa sua essência, a excelência moral é um meio termo, mas com referência ao que é melhor e conforme ao bem ela é um extremo.79

Em razão disso, ao se considerar a excelência moral como

uma disposição relativa à escolha das emoções e ações a serem vividas/praticadas,

considera-se somente as emoções e ações voluntárias, visto que somente estas

serão louvadas ou censuradas. Quanto às involuntárias, estas “[…] são perdoadas,

e às vezes inspiram piedade”80. Em razão disso, outro ponto a ser considerado na

questão das excelências morais são os atos voluntários.

São involuntárias as ações praticadas sob compulsão ou por

ignorância, portanto, quando o princípio do movimento possui origem externa ao

agente, não havendo contribuição deste ao ato, sendo pelo contrário influenciado

por este, movido, não há, por conseguinte, a dimensão moral envolvida.

Quanto à ignorância, considera-se que tudo aquilo que é feito

por ignorância é não-voluntário, sendo involuntário somente aquilo que causa

sofrimento e pesar. Neste mesmo sentido, o Estagirita considera a diferença entre

agir por ignorância e agir na ignorância, exemplificando-se este último caso com a

situação de uma pessoa embriagada ou encolerizada que age sem saber o que está

fazendo e na ignorância.81

Em sentido contrário, são voluntários os atos que são objeto de

uma escolha no momento de serem praticados, o indivíduo racionalmente opta por

agir de determinado modo, tendo em vista um fim específico que almeja alcançar,

sendo assim responsável por todas as conseqüências decorrentes deste ato. Por

este motivo, conclui Aristóteles que: “[…] as palavras ‘voluntário’ e ‘involuntário’

devem ser usadas com referência ao momento da ação […]”82.

Dentre o âmbito do voluntarismo, pode-se especificar ainda

mais a posição da excelência moral com a concepção de escolha, sendo que esta 79 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 42. 80 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 49. 81 BROADIE, Sarah. Ethics with Aristotle. New York; Oxford: Oxford University Press, 1991. p. 127. 82 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 50.

43

envolve o uso da razão e do pensamento no sentido de se buscar algo que seja um

bem àquele que está a escolher. Por isso, escolhe-se aquilo que é objeto de nossa

deliberação, tendo-se ainda que somente se delibera sobre coisas que são relativas

a nós mesmos (ninguém delibera sobre coisas eternas, nem sobre fenômenos que

ora ocorrem de uma maneira, ora de outra, nem sobre eventos fortuitos, nem sobre

todos os assuntos que interessam aos homens se, neste caso, não haja relação

conosco), que se encontram ao alcance do indivíduo. Delibera-se sobre os fins

sobre o qual se intenciona agir e, definida a finalidade, toma-se então a escolha,

implicando esta, no ato voluntário do agente, com todas as responsabilidades que

este agir envolve.

Então, como o objeto da escolha é algo ao nosso alcance, que desejamos após deliberar, a escolha será um desejo deliberado de coisas ao nosso alcance, pois quando, após a deliberação, chegamos a um juízo de valor, passamos a desejar de conformidade com nossa deliberação.83

Destaca-se neste ponto uma intersecção entre o âmbito das

virtudes morais e das intelectuais, visto que a construção de uma racionalidade reta,

que possua a capacidade a escolher o que é bom e deixar de escolher o que não é

envolve, mais do que a aquisição de bons hábitos, também uma formação intelectual

para tanto.

Tendo por base o que foi até aqui exposto, é extremamente

importante para a investigação do conceito de Justiça destacar que para Aristóteles

o indivíduo é plenamente responsável por aquilo que faz voluntariamente, visto que

ninguém é feliz contra a vontade, mas a desgraça pode ser voluntária. Deste modo,

o homem é o princípio gerador de suas ações e, por este motivo, plenamente

responsável pelas mesmas. Conforme destaca Hutchinson: “Até nos casos onde

nossa possibilidade de escolha é restringida por circunstâncias desfavoráveis, nós

permanecemos responsáveis por aquilo que escolhemos fazer […]”84.

Não poderia ser por outra razão que este assunto possui íntima

relação com a prática jurídica, visto que pune-se os autores de maldades e exigem 83 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 56. 84 “Even in cases where our range of choice is restricted by unfavourable circumstances, we remain

responsible for what we choose to do”. HUTCHINSON, D. S. Ethics. In: BARNES, Jonathan (Ed.). The Cambridge Companion to Aristotle. New York: Cambridge University Press, 1996.

44

deles uma reparação se o fizeram voluntariamente, sendo desresponsabilizados nas

situações em que tenham agido sob compulsão ou ignorância (considerada nestas

ainda o quanto que o agente influiu para o alcance do resultado, pois pune-se uma

pessoa se ela for considerada responsável pela ignorância, como nos casos de

embriaguez voluntária, pois a origem da ação está no próprio homem, bem como

pune-se as pessoas que ignoram dispositivos de leis ou conhecimentos específicos

de sua área de atuação que deveriam conhecer, pois presume-se que estava ao

alcance destes não ser ignorantes, havendo portanto responsabilidade no evento)85,

havendo íntima relação com a atual noção de dolo e culpa no âmbito da Ciência

Jurídica, conforme inclusive se verá mais adiante ao se falar sobre a Justiça em

Aristóteles.

Ao findar estas considerações preliminares, Aristóteles passa a

tratar então sobre cada uma das espécies de virtude no plano moral, apresentando-

se, neste ínterim, inicialmente a coragem e a temperança (moderação), virtudes que

disciplinam a parte irracional da alma.

Quanto à coragem, meio termo entre o medo e a temeridade

(ousadia), esta é considerada a capacidade de agir quando é devido e não agir

quando não é devido “[…] o homem corajoso escolhe e enfrenta as coisas porque é

nobilitante agir corajosamente, ou porque é ignóbil não agir assim”86.

A temperança, por sua vez, é o meio-termo no tocante aos

prazeres do corpo, mais precisamente ainda em relação àqueles prazeres que os

outros animais também sentem, parecendo por isso servis e bestiais, sendo estes os

que envolvem especialmente os sentidos do tato e do paladar e, dentre os dois,

mais ainda com relação ao tato (em relação aos alimentos, à bebida e às relações

sexuais)87.

Portanto, a temperança é a capacidade de racionalmente

controlar os impulsos, buscando-os quando é devido e evitando-os quando não for

devido praticá-los. A pessoa intemperante (concupiscente) sofre mais do que deve

85 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 57, 58. 86 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 62. 87 ARISTÓTELES. Moral a Eudemo. In: ________. Moral: La gran Moral. Moral a Eudemo. p. 53.

45

quando não consegue as coisas agradáveis, sendo neste sentido a falta do prazer

fonte de sofrimento, enquanto que o temperante não sofre com a falta de coisas

agradáveis, nem por abster-se delas.88

No livro quarto trata-se sobre as virtudes relacionadas à

administração dos bens e das honras, coisas que também são elementares para a

construção de uma vida Ética, visto que esta ciência envolve tanto o

desenvolvimento das capacidades pessoais, quanto à aquisição de bens externos

que nos possibilitem sermos felizes. Nesta parte da obra trata-se sobre as virtudes

da liberalidade, da magnificência e da magnanimidade.

A liberalidade é o meio-termo em relação à riqueza, a

capacidade de adquirir e gastar, vender e doar bens, quando é devido, sendo tais

pessoas louvadas por “dar e obter riquezas”89, sendo a prodigalidade e a avareza o

excesso e a falta de tal virtude.

Já a magnificência relaciona-se aos atos que têm a ver com os

gastos, porém de maior monta que os da liberalidade, tratando-se de um dispêndio

consentâneo com seus objetivos e em grande escala. Seus opostos são a

mesquinhez e a vulgaridade.

Por último, a magnanimidade (megalopsychos) relaciona-se

com grandes objetivos. Trata-se, assim, dos atos dotados de grandeza,

relacionando-se somente àqueles em que há preparação para tal.

Considera-se magnânima a pessoa que aspira a grandes coisas e está à altura delas, pois quem aspira a grandes coisas sem estar à altura delas é insensato, mas nenhuma pessoa dotada de excelência moral é insensata ou tola90.

Outro aspecto elementar o estudo da excelência moral se

refere às disposições morais a serem evitadas, objeto de estudo do livro VII da Eth.

Nic., mesmo texto utilizado no livro VI da Eth. Eud., sendo três estas espécies de

88 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 68. 89 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 71. 90 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 78.

46

disposições: a deficiência moral, ou vício (kakía), a incontinência (akrasía) e a

bestialidade (theriótes).91

Estas se referem a três gradações reprováveis da atitude

humana, tendo por contrários: do vício as virtudes, da incontinência a continência e

da bestialidade, enquanto maior proximidade aos animais irracionais, um tipo de

arete moral sobre-humana, a espécie heróica e divina louvada pelos poetas

gregos.92

Quanto ao vício, conforme se tratou anteriormente, este se

refere ao excesso e a falta nas mais variadas disposições onde o homem age

voluntariamente, sendo por isso medidas a serem evitadas.

Assim, o principal objeto de estudo deste livro acaba sendo a

definição da continência e incontinência, que se referem especialmente à busca do

ser humano pelo prazer, diferenciando estas da temperança e da intemperança,

visto que o homem continente não obrigatoriamente é virtuoso.

O homem incontinente é aquele homem que busca o prazer

por não possuir a capacidade de conter esta tensão, o que é marcante no próprio

termo que em grego akratós, ou seja, a ausência de domínio de si próprio. Como

este indivíduo não escolhe buscar o prazer, mas é impelido pelos seus impulsos

orgânicos a fazê-lo, não se considera este como um intemperante, visto que este

último opta por buscar o prazer, sabendo que naquele momento ele não é devido, o

que é muito mais reprovável.

O continente, neste ínterim, é aquele que, apesar de possuir

desejos fortes e maus, consegue segurá-los. Pela característica de possuir estes

desejos, este é diferente do temperante, que por sua disposição racional consegue

conter estes impulsos.

Outrossim, se a continência pressupõe que se tenha desejos fortes e maus, as pessoas moderadas não terão continência, nem as pessoas dotadas de continência serão moderadas, pois as pessoas

91 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Aristotélica: leitura e interpretação do pensamento

aristotélico. p. 1.075. 92 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 29.

47

dotadas de continência devem necessariamente ter desejos fortes e maus, pois se os desejos são bons a disposição que nos impede de segui-los é má, de tal forma que nem toda continência é boa; se, ao contrário, os desejos são fracos e não são maus, nada há de admirável em resistir-lhes, e se são fracos e maus, nada há de notável em resistir-lhes também neste caso.93

Quanto à bestialidade, esta é o extremo do distanciamento do

homem das características que se fazem considerá-lo como tal, não havendo como

se falar em excelência ou deficiência pela proximidade, mas sim na proximidade

deste tipo humano com as feras. Assim, a alienação, a covardia, a intemperança e a

irascibilidade, quando levadas ao excesso, são consideradas condições bestiais ou

mórbidas.94

Tendo por base o que foi até aqui exposto, restam

demonstrados os principais elementos que se referem à virtude moral, os quais

acabam por ocupar boa parte da teoria ética do Filósofo, faltando apenas tratar

sobre as questões da amizade e do prazer em sentido ético, que serão feitas em

momento posterior devido à sua importância ao tema.

Cumpre agora ressaltar os principais aspectos referentes às

excelências intelectuais no pensamento de Aristóteles.

2.1.2 As excelências intelectuais

A outra grade área das excelências que se deve atentar no

estudo da Ética se trata do aspecto intelectual, ou seja, tratam-se das virtudes que

dizem respeito à parte racional da alma, possuindo portanto relação direta com a

capacidade de raciocínio que os homens possuem.

Diógenes Laércio inclusive, em sua obra que trata sobre a vida

e a doutrina dos maiores filósofos gregos destaca que um dos principais pontos que

diferencia o pensamento aristotélico é sua defesa da formação intelectual para o

alcance de uma vida excelente, conforme colhe-se: “Esse filósofo sustentava que os

93 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 131. 94 ROSS, Sir David. Aristotle. p. 227.

48

estudos incluídos na educação enciclopédica são úteis para alcançarmos a

excelência”95.

Em Aristóteles, para se discutir as virtudes intelectuais é

importante ter-se por base que existem duas faculdades racionais, uma nos permite

contemplar as coisas cujos primeiros princípios são invariáveis, outra às coisas

passíveis de variação, denominando-se a primeira capacidade como faculdade

científica e à outra calculativa.96

Quanto à faculdade científica a primeira forma de excelência a

se destacar é o conhecimento científico (episteme), o qual se direciona ao

conhecimento das coisas que são verdadeiras. Este tipo de conhecimento, conforme

Aristóteles já tratou nos Analíticos (especialmente nos Analíticos posteriores)

procede por duas vias, por meio da indução se estabelecem os universais, enquanto

que pelos silogismos são os avanços feitos a partir dos universais.

A episteme se refere a um tipo de conhecimento que pode ser

ensinado, pelo qual busca-se identificar algo que já é existente e verdadeiro. Assim,

um homem possui conhecimento na situação em que “[…] tem uma convicção a que

chegou de certa maneira, e conhece os pontos de partida”97. Neste ponto, inclusive,

volta-se àquilo que Aristóteles já destacou no livro I de sua Metafísica, de que a

sapiência consiste no conhecimento das causas das coisas.98

A arte (techné) por sua vez, diferencia-se por ser uma

disposição relacionada com a criação, envolvendo assim um modo de raciocinar que

traga algo de novidade àquilo que é feito pelo artista. O ponto de novidade surge a

partir do intelecto do artista, sendo por este motivo considerado como algo artístico.

O Estagirita conclui assim que:

Toda arte se relaciona com a criação, e dedicar-se a uma arte é estudar a maneira de fazer uma coisa que pode existir ou não, e cuja origem está em quem faz, e não na coisa feita; de fato, a arte não

95 LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos Filósofos Ilustres. Tradução de Mário da Gama

Kury. 2. ed. Brasília: UnB, 1977. p. 136. 96 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 114. 97 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 115. 98 ARISTÓTELES. Metafísica. p.7.

49

trata de coisas que existem ou passam a existir necessariamente, nem de coisas que existem ou passam a existir de conformidade com a natureza (estas coisas têm sua origem em si mesmas). Já que há diferença entre fazer e agir, a arte deve relacionar-se com a criação, e não com a ação. De certo modo, aliás, o acaso e a arte se relacionam com os mesmos objetos […]”99.

A terceira excelência intelectual apresentada pelo Estagirita é a

sabedoria prática, também chamada de prudência (especialmente pela tradição

posterior a S. Tomás de Aquino) ou discernimento (phronesis), que diz respeito à

capacidade de deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para si mesmo.

Trata-se, portanto, de uma excelência ligada à faculdade calculativa da alma e que

se caracteriza por saber dentre as várias situações que surgem diante do indivíduo

escolher aquela que é a mais adequada, a que gera mais ganho existencial,

portanto, o modo mais virtuoso de se agir.100

Justamente por esta característica é que se destaca que a

phronesis diz respeito à situação existencial do momento, a algo que é variável, que

hoje pode ser vantajoso e amanhã não mais sê-lo, o que a torna diferente do

conhecimento científico, da intuição ou ainda da sabedoria filosófica como se verá

ainda. “O discernimento deve ser então uma qualidade racional que leva à verdade

no tocante às ações relacionadas com os bens humanos”101.

Destaca-se ainda que esta forma de excelência intelectual

possui íntima relação com a sabedoria política, diferenciando-se deste pois na

prudência visa-se o que é o melhor ao indivíduo que raciocina, enquanto que pela

sabedoria política se busca aquilo que é necessário, útil ou agradável à todos

aqueles que compõem a polis.

Ademais, a sabedoria prática identifica-se ainda com outras

espécies de conhecimento prático relacionados com o próprio indivíduo, dentre este

rol Aristóteles destaca a economia doméstica, a legislação, a deliberativa (ou

política) e por fim a judicial (de onde pela origem latina identifica-se a origem do

termo iurisprudentia), se referindo à sabedoria prática nestas específicas áreas, seja

99 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 116. 100 ROSS, Sir David. Aristotle. p. 223 101 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 117.

50

na arte de adquirir, usar e vender os bens, seja na fixação do que é o melhor para

uma cidade, seja na deliberação das questões de urgência desta mesma polis ou no

modo de se decidir da maneira mais adequada.102

Se o conhecimento científico discute as coisas universais e

necessárias, buscando identificá-las, o conhecimento demonstrado pelo raciocínio

científico é derivado, parte dos primeiros princípios. Todavia, nem pela via da

indução, nem pelos silogismos, se faz possível alcançar estes primeiros princípios,

razão pela qual deve haver outra espécie de excelência intelectual que possibilite ao

homem acessar este conhecimento. Destaca Aristóteles (o mesmo pode ser colhido

na Metafísica, no tratado De Anima e nos Analíticos posteriores) que estas verdades

primeiras e invariáveis pelas quais se parte ao conhecimento são captadas pela

intuição, também chamada de intelecto (nous).

Por fim, destaca-se como a última das virtudes intelectuais a

sabedoria filosófica ou sapiência (sophia), pois a partir desta não apenas se conhece

o que decorre dos primeiros princípios (nous), como também se possui uma

concepção verdadeira sobre estes próprios primeiros princípios, os discute como

objeto de estudo próprio. Tem-se assim que a sabedoria filosófica é uma

combinação do conhecimento científico com a intuição, sendo “[…] uma combinação

da inteligência com o conhecimento – um conhecimento científico consumado das

coisas mais sublimes”103.

Restam assim apresentadas as principais excelências

intelectuais para o homem, sendo todas elas de extrema importância ao homem que

busca construir um tipo de vida total. Todavia, nem todas elas obrigatoriamente

devem ser desenvolvidas pelos homens para se tornarem felizes, apesar de que, se

o saber filosófico, conforme foi dito, dizer respeito às coisas mais sublimes, sem este

não se poderá viver o tipo de felicidade mais sublime que existe.

Dentre as virtudes aqui apresentadas a mais importante para a

orientação da conduta humana é a sabedoria prática, visto que o seu

102 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Aristotélica: leitura e interpretação do pensamento

aristotélico. p. 1.069. 103 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 118.

51

desenvolvimento possibilita a construção da reta razão, a qual orienta o indivíduo a

saber querer (tendo em vista a ideia de vontade) aquilo que é adequado, que é ético,

agindo de modo corretamente. Pela sabedoria prática discute-se o que é justo,

nobilitante e bom para as pessoas.

Exemplificando esta relação, Aristóteles apresenta os casos de

Anaxágoras e Tales, este último famoso pois supostamente ao caminhar admirando

os céus, na busca por compreendê-los, acabou por cair em um buraco que estava à

sua frente, dizendo que estes homens possuíam sabedoria filosófica e nisso

conheciam coisas extraordinárias, difíceis e até divinas, mas não possuíam a

sabedoria prática, motivo pelo qual ignoravam aquilo que lhes era mais vantajoso.

Porém, tendo em vista que a prudência busca levar o indivíduo

ao conhecimento das verdades morais, com vistas a tornar esta uma pessoa boa,

este não terá qualquer utilidade para as pessoas que já forem boas, surgindo para

estas outros tipos de necessidades racionais que já não são meramente supríveis

por uma adequado tirocínio nas coisas práticas.

Tendo em vista estas considerações, quanto às virtudes

intelectuais e sua relação com a ética conclui-se que sem a sabedoria prática não é

possível ser bom e, consequentemente justo ou ético, nem é possível possuir este

discernimento adequado sem a construção da excelência moral. Apesar disso, não

se pode elevar a sabedoria prática à categoria de maior das virtudes intelectuais,

pelo contrário ela é a mais básica e serve de abertura para que o homem já

excelente moralmente e com um raciocínio minimamente adequado possa se abrir

às formas de conhecimento mais profundas e sublimes.

2.1.3 O acúmulo de bens exteriores, a amizade, o prazer e a felicidade

Para finalizar esta visão geral pela doutrina da Ética no

pensamento filosófico aristotélico cumpre neste momento tratar sobre a aquisição de

bens exteriores, especialmente no tocante à amizade, e, em seguida, sobre a noção

de prazer em Aristóteles e também a definição de felicidade.

O acúmulo de bens exteriores se faz importante no

pensamento aristotélico pois, tal como se destaca no livro I da Ethica Nicomachea

52

“[…] a felicidade também requer bens exteriores, pois é impossível, ou na melhor

das hipóteses não é fácil, praticar belas ações sem os instrumentos próprios”104.

Sobre esta questão considera-se especialmente a aquisição de dinheiro e das

amizades.

Com relação ao dinheiro, este se destaca como um meio

elementar à construção de uma vida ética, devendo-se ter a sabedoria para saber

adquiri-lo, administrá-lo, fazer investimentos, bem como para fazer com que o

dinheiro circule. Conforme visto, no livro IV se discorre sobre esta matéria,

especialmente no momento em que se tratou sobre virtudes da liberalidade, da

magnanimidade e da magnificência.

No que se refere à amizade, Aristóteles dedica ao assunto dois

livros de sua Eth. Nic. (livros VIII e IX), bem como os primeiros capítulos do livro VII,

último da Eth. Eud. O fato de o Estagirita dedicar dois livros do seu principal tratado

sobre a Ética à temática, aliás, demonstra sua importância para a construção da

felicidade do homem.

Ross destaca que um dos fatores para esta tratativa mais

acurada da temática é o fato de que a palavra amizade em grego possui um sentido

mais amplo do que o utilizado na atualidade: “[…] ela pode servir para qualquer

atração mútua entre dois seres humanos”105. O estudioso destaca ainda o

significado deste capítulo no conjunto da Ética aristotélica, visto que até então não

se havia falado sobre a relação entre o indivíduo e as demais pessoas, o que a

princípio poderia dar a impressão de que a Ética seria uma doutrina estritamente

egoísta e, pelo contrário, nesta parte Aristóteles destaca o quando que o

desenvolvimento de boas amizades é de extrema importância para uma vida feliz.106

Logo no início do livro VIII, Aristóteles destaca que os seres

humanos são dados a viver entre amigos, considerando-se que até que:

104 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 27. 105 “[…] it can stand for any mutual attraction between two human beings”. ROSS, Sir David. Aristotle.

p. 235. 106 ROSS, Sir David. Aristotle. p. 235.

53

[…] as pessoas ricas e as ocupantes de altos cargos e as detentoras do poder são as que mais necessitam de amigos; realmente, de que serve a prosperidade sem a oportunidade de fazer benefícios, que se manifesta principalmente em sua mais louvável forma em relação aos amigos? Ou então, como pode a prosperidade ser protegida e preservada sem amigos? Quanto maior ela for, mais exposta estará aos riscos. E as pessoas pensam que na pobreza e em outros infortúnios os amigos são o único refúgio. Além disso, os amigos estimulam as pessoas na plenitude de suas forças à prática de ações nobilitantes […] pois com amigos as pessoas são mais capazes de pensar e agir.107

Tendo em vista a relevância do assunto para a disciplina do

agir e do pensar humano, Aristóteles apresenta os diferentes tipos de amizade e no

que em cada um destes tipos se constrói o vínculo entre os amigos. Tem-se assim

as amizades constituídas pelo prazer, pelo interesse (utilidade) e também a amizade

perfeita.108

As amizades pelo prazer e pelo interesse são extremamente

volúveis, sendo consideradas por este motivo apenas acidentais, visto que não é a

pessoa em si que é amada, mas apenas o prazer ou o prazer que ela causa que o

são, e quando estes cessam, o amor existente entre ambos também cessa. O

primeiro tipo de amizade é considerado pelo Estagirita comum aos jovens, que se

envolvem e desvinculam facilmente neste período tendo em vista o proveito que

ganham com suas relações. Já a amizade por interesse é o tipo de amizade eleito

pela maioria, especialmente pelas pessoas idosas, visto que nesta idade os

indivíduos não buscam mais o agradável, mas sim o que lhes é útil.109

Em contrapartida, a amizade perfeita “é a existente entre as

pessoas boas e semelhantes em termos de excelência moral; neste caso, cada uma

das pessoas quer bem à outra de maneira idêntica, porque a outra pessoa é boa, e

elas são boas em si mesmas”110.

Este é o tipo de amizade duradoura, visto que ambos os

amigos mantêm este vínculo pela excelência que cada um possui e somente cessa

107 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 153. 108 REALE, Giovanni. Storia della Filosofia Antica: II. Platone e Aristotele. p. 510. 109 HUTCHINSON, D. S. Ethics. In: BARNES, Jonathan (Ed.). The Cambridge Companion to

Aristotle. p. 229. 110 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 156.

54

esta relação quando cessa o equilíbrio entre ambos os amigos e a parte

desequilibrada decide não buscar de volta o equilíbrio que cessou.

Por estas características aqui apresentadas, Aristóteles

considera que até mesmos as pessoas más e os criminosos podem possuir as

amizades por interesse ou pelo prazer, todavia não podem viver em conformidade

com o tipo de amizade perfeita, visto que estas pessoas não gostam uma da outra a

não ser que obtenham algum proveito nesta relação.111

Na amizade perfeita, ambas as partes colhem o mesmo tipo de

proveito ao estabelecerem a relação entre si, razão pela qual cada um proporciona o

desenvolvimento e a evolução do outro. Assim:

Gostando de um amigo as pessoas gostam do que é bom para si mesmas, pois a pessoa boa, tornando-se amiga, torna-se um bem para seu amigo. Cada uma das partes, então, ama o seu próprio bem e oferece à outra parte uma retribuição equivalente, desejando-lhe bem e proporcionando-lhe prazer. A propósito, diz-se que a amizade é igualdade, e ambas se encontram principalmente nas pessoas boas.112

Conforme se destaca no livro IX da Eth. Nic., tal como na

relação entre as ações o principal elemento que caracteriza a amizade é a

proporção entre as partes, razão pela qual até os desiguais podem manter vínculo

de amizade (somente em relação aos tipos por prazer ou interesse), devendo para

tanto compensar sua deficiência em relação ao outro. Neste espírito, Bittar considera

que: “A par da análise das personalidades, pode-se dizer que a amizade ocorre

entre iguais, ora entre desiguais. Onde as expectativas recíprocas se equivalem se

diz haver semelhança”113.

Trata-se ainda nesta mesma parte sobre as principais questões

envolvendo a amizade, como por exemplo, quando se torna necessário desfazer

uma amizade, como se deve tratar um ex-amigo, os sentimentos havidos entre os

amigos, bem como os motivos que levam o homem à constituir amizades.

111 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 157. 112 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 159. 113 BITTAR, Eduardo C.B. Curso de Filosofia Aristotélica: leitura e interpretação do pensamento aristotélico. p. 1.094.

55

Complementando aquilo que já havia destacado no início do

livro VIII, Aristóteles considera que o homem é um animal social, sendo, portanto,

natural a convivência (apesar de a capacidade de saber conduzir a si próprio, a

autarkeia ser primordial). Assim, conclui que o homem feliz necessita de amigos,

com quem possa compartilhar a convivência agradável e sempre reforçar o estímulo

ao desenvolvimento.

Conclui assim o Filósofo:

Então, se a existência é desejável em si mesma pelas pessoas sumamente felizes (já que existir é bom e agradável por natureza), e se acontece a bem dizer o mesmo em relação à existência de um amigo, um amigo será uma das coisas mais desejáveis. Ora: uma pessoa sumamente feliz deve ter aquilo que deseja, ou então ela será deficiente sob este aspecto. Portanto, o homem que tiver se ser feliz necessitará de amigos dotados de excelência moral.114

Findas estas considerações, o livro X da Ética principia por

concentrar-se na questão do prazer dentro do pensamento prático de Aristóteles.

De maneira diversa daquela tratada por Platão, para Aristóteles

o homem não deve buscar se afastar por completo os prazeres, pois para o

Estagirita estes são entendidos como bens, não sendo todavia melhores do que os

outros tipos de bens existentes. Ressalta assim Reale que dentre as correntes

contrapostas que se enfrentavam nesta matéria, especialmente dentro da Academia

platônica: “Aristóteles discute a fundo estas conclusões e assume uma posição bem

original nos confrontos destes e, em certo sentido, capaz de mediar as opostas

instâncias”115.

Para Aristóteles, o homem bom deve possuir o discernimento

necessário para saber escolher os prazeres que são devidos e evitar aqueles que

não o são, consideradas todas as circunstâncias que envolvem o momento da ação.

Assim, conforme Hutchinson: “O prazer é certamente uma coisa boa, na visão de

Aristóteles, quando este vem das atividades humanas apropriadas na condição

114 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 187. 115 “Aristotele discute a fondo queste conclusioni e assume una posizione assai originale nei confronti di esse e, in certo senso, capace di mediare le opposte istanze”. REALE, Giovanni. Storia della Filosofia Antica: II. Platone e Aristotele. p. 511, 515.

56

moral apropriada, e nosso mais alto bem, uma vida vivida com sucesso, incluirá o

prazer como um de seus bens”116.

Acerca do prazer Aristóteles entende que este, contrariamente

às excelências, que já se encontram ínsitas dentro do agente, é uma perfeição

cumulativa que acompanha a atividade que é efetuada, não sendo, portanto,

contínuo. Para o Filósofo existem inúmeros prazeres, sendo estes inerentes às

atividades efetuadas, tornando as atividades perfeitas pelo resultado que produz.

Destaca-se ainda que para Aristóteles são mais elevados os

prazeres adequados às criaturas humanas do que os outros em que os demais

animais também participam, estando portanto os prazeres ligados à alma intelectiva

em uma posição superior àqueles relativos à alma sensitiva.117

Nesta linha, chega-se finalmente à questão da natureza da

felicidade, já que esta foi apresentada no início da obra como a finalidade da vida

humana.

Tendo em vista todas as discussões realizadas em sua obra,

Aristóteles chega à conclusão de que a felicidade consiste na atividade conforme à

excelência, sendo a atividade conforme à mais alta de todas as formas de

excelência, que é a excelência da melhor parte de cada um de nós.

Considerando-se que o intelecto é a melhor parte que nós

possuímos, tal como encontra-se na Metafísica e também nos próprios tratados

sobre a Ética, logicamente a mais alta felicidade será a vida contemplativa (bios

theoretikos).118

Isto ocorre pois o intelecto não é somente a melhor parte do

homem, mas também se relaciona com os melhores objetos que são passíveis de

ser conhecidos pelo homem, bem como a contemplação é a atividade que pode ter

uma maior continuidade do que qualquer outra que pode ser exercida pelo homem,

116 HUTCHINSON, D. S. Ethics. In: BARNES, Jonathan (Ed.). The Cambridge Companion to Aristotle. p. 212. 117 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p.199, 200. 118 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 201.

57

sendo inclusive a mais prazerosa das atividades que se pode possuir. Por este

motivo:

[…] considera-se que a busca da sabedoria filosófica oferece prazeres de maravilhosa pureza e perenidade, e é de esperar que as pessoas que já conhecem a sabedoria filosófica passem o seu tempo mais agradavelmente que aquelas que ainda se esforçam por alcançá-la.119

Porém, a felicidade não é algo dado somente ao filósofo,

quando este é excelente, apesar de que ele, para Aristóteles, viverá o tipo de

felicidade mais completa, e em certo sentido até mesmo divina, visto que o intelecto

é a parte que o homem possui de mais divina.120 A vida conforme a qualquer

espécie de excelência moral também é feliz, apesar de sê-lo de um modo

secundário.

Tendo em vista a articulação existente entre estes dois níveis

de felicidade, a intelectiva e a felicidade tendo em vista os bens humanos, reflete

Hobuss:

Embora seja o que há de divino no homem, a ευδαιµονια é especificamente humana, e o homem não tem possibilidade de viver do mesmo modo que os deuses: o exercício daquilo que é divino em nós, a contemplação, pode ser a atividade mais contínua, mas não pode eliminar o seu caráter propriamente humano. Isto não significa cindir a ευδαιµονια em duas, uma perfeita e outra imperfeita, mas articulá-las no interior de uma concepção inclusiva permitida, sem problemas, a partir do discurso aristotélico propriamente dito.121

Com isto, tem-se o fechamento das principais ideias que

constituem a doutrina da ética no pensamento de Aristóteles. Todavia, a

consideração sobre o fim da conduta humana leva o pensador a não somente refletir

sobre como o homem deve se construir, mas também como que a sociedade deve

se portar para que os homens se tornem felizes, até porque é necessária a instrução

dos homens às virtudes para que estas venham a ser desenvolvidas em cada

indivíduo.

119 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 202. 120 KENNY, Anthony. Aristotle on the perfect life. New York: Oxford University Press, 1999. p. 96. 121 HOBUSS, João. Eudaimonia e Auto-Suficiência em Aristóteles. Pelotas: EGUFPel, 2002. (Coleção Dissertatio Filosofia). p. 134.

58

É impossível separar por completo a Ética da Política no

pensamento aristotélico, apesar de que o Estagirita foi o primeiro a tratar em

momentos separados sobre os dois assuntos, diferentemente de Platão, que as

considera em conjunto, aliada aos demais temas que compõem sua doutrina

filosófica, tal como se encontra em República ou ainda em As Leis. Aliás, no início

da Magna Moralia o Filósofo já considera esta íntima relação existente entre estas

duas partes da Filosofia Prática, in verbis:

A ética, a meu juízo só pode formar parte da política. Em política não é possível coisa alguma sem estar dotado de certas qualidades; quero dizer, sem ser homem de bem. Mas ser homem de bem equivale a ter virtudes; e, portanto, se em política se quer fazer algo, é preciso ser moralmente virtuoso. Isto faz que pareça o estudo da ética como uma parte e também como o princípio da política e, por conseguinte, sustenho que ao conjunto deste estudo deve se dar o nome de política mais bem do que de ética.122

Alcança-se assim o final da Ética e também o início da doutrina

política aristotélica, o que será feito no tópico seguinte.

2.2 A POLÍTICA

Tratadas sobre as principais questões do comportamento

humano e sobre o meio pelo qual se pode desenvolver um homem excelente, feliz, a

questão que surge logo em seguida é o papel da sociedade e, especialmente, dos

mecanismos de organização social para que se possa promover este tipo de

desenvolvimento.

O próprio final da Eth. Nic. serve como um prólogo à Política

neste sentido, especialmente no momento em que o Estagirita constata que os seus

predecessores se omitiram em tratar sobre a questão da legislação, razão pela qual

122 “La moral, a mi juicio, sólo puede formar parte de la política. En política no es posible cosa alguna

sin estar dotado de ciertas cualidades; quiero decir, sin ser hombre de bien. Pero ser hombre de bien equivale a tener virtudes; y, por tanto, si en política si quiere hacer algo, es preciso ser moralmente virtuoso. Esto hace que parezca el estudio de la moral como una parte y aun como el principio de la política, y, por consiguiente, sostengo que al conjunto de este estudio debe dársele el nombre de política mas bien que el de moral”. ARISTÓTELES. Moral: La Gran Moral; Moral a Eudemo. 6. ed. Traducción de Patricio de Azcárate. Madrid: Espasa-Calpe, 1976. Colección Austral. p. 25. (tradução livre).

59

se propõe a fazê-lo e assim estudar: “[…] de um modo geral a questão das

constituições, a fim de completarmos da melhor maneira possível, nos limites de

nossa capacidade, a filosofia das coisas humanas”123.

Logo em seguida, Aristóteles inclusive introduz o modo como

procederia o estudo da Política, especialmente feito no livro II desta obra ao

considerar que:

Primeiro, então, se algo foi dito com acerto e detalhadamente pelos pensadores anteriores, passemos em revista a sua contribuição; depois, à luz das constituições que colecionamos, examinemos as instituições que preservam ou destroem as cidades, e as que preservam ou destroem as várias espécies de constituições, e as razões pelas quais umas cidades são bem administradas e outras, ao contrário, são mal administradas. Quando tivermos estudado convenientemente estes assuntos é mais provável que possamos ver de maneira mais abrangente qual das várias espécies de constituições é a melhor, e como cada constituição deve ser estruturada, e quais as leis e costumes que uma constituição deve incorporar para ser a melhor. Comecemos a discussão.124

É preciso ter em conta que, para Aristóteles, o homem é, por

natureza, um animal político (πολιτικον ζωον)125, no sentido de que é um ser dado à

convivência com outros indivíduos, pois nasce já tendente a viver em sociedade, em

grupo, mesmo que seja dever de cada um tornar-se um ser autárquico, senhor de si

mesmo. Esta noção é ainda complementada pelo autor ao considerar que quem não

necessitasse da cidade seria ou uma besta, ou um ser sobre-humano.126

Este entendimento inclusive sintetiza a visão de mundo do

homem grego, para o qual inexistia a ideia de indivíduo, mas somente a de cidadão

(polites) que fazia parte da cidade-estado (polis). Inclusive quando este cidadão ia

viver em outra localidade, nesta seria tratado conforme sua condição de estrangeiro,

não possuindo, portanto, os direitos políticos inerentes à cidadania. Vale ressaltar

que a noção de indivíduo somente será construída no período posterior à morte de

Alexandre Magno e, por conseguinte, posterior também à morte de Aristóteles,

123 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 210. 124 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 210, 211. 125 ARISTÓTELES. Política. Tradução de António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes.

Lisboa: Vega, 1998. (Edição Bilíngue). p. 49-99. 126 ARISTÓTELES. Política. p. 55.

60

quando a nova organização política afasta a maioria dos homens da organização da

cidade, cindindo-se portanto a noção de cidadão daquela de indivíduo.

Para realizar a discussão sobre a sociedade, Aristóteles parte

da primeira instituição política, que faz a mediação entre cada homem e a cidade, a

família. Assim, o livro I é dedicado a considerar a organização familiar, sua estrutura,

composição e os poderes existentes dentro dela, consideradas as relações entre

marido e mulher, pais e filhos e senhores e servos, bem como considera ainda a

importância da economia doméstica para a boa administração dos bens do lar, bem

como para a aquisição de novos bens.127

Finda esta primeira parte, logo em seguida no livro II o

Estagirita procede do modo como havia indicado no final da Eth. Nic., considerando

neste capítulo as principais doutrinas formuladas por Platão, Fáleas de Calcedônia e

Hipodamo de Mileto, bem como as constituições de Lacedemônica, Creta e Cartago

e, ainda, a legislação formulada por Sólon para Atenas.128

Após estas considerações iniciais é que Aristóteles parte a

apresentar suas principais noções sobre o assunto da organização política da

cidade, destacando-se o livro III da obra como o mais importante para se

compreender a noção de Política dentro do pensamento aristotélico.

Neste sentido, primeiramente o filósofo considera o conceito de

cidade e de cidadão, para então analisar a questão das formas de governo e outros

elementos correlatos.

A cidade é definida por Aristóteles como a comunidade de

pessoas autossuficientes que buscam garantir as condições primordiais a uma boa

vida. As pessoas anseiam uma vida boa e feliz, mas apenas a vida em família ou em

comunidade não é suficiente para tanto, sendo necessária a construção de um tipo

de organização política que venha a permitir o alcance de uma vida perfeita, esta é a

cidade e, por conseguinte, sua finalidade será a mesma da Ética, o alcance da

felicidade:

127 WOLFF, Francis. Aristote et la Politique. Paris : Presses Universitaires de France, 1991. p. 30. 128 ARISTÓTELES. Política. p. 103-181.

61

A finalidade e o objectivo da cidade é a vida boa, e tais instituições propiciam esse fim. A cidade é constituída pela comunidade de famílias em aldeias, numa existência perfeita e auto-suficiente; e esta é, em nosso juízo, a vida feliz e boa. É preciso concluir que a comunidade política existe graças às boas ações, e não à simples vida em comum.129

Por este motivo, Reale considera que o Estado (a cidade) é o

último ente cronologicamente (visto que é posterior à família e à aldeia), mas é o

primeiro ontologicamente, pois é a cidade se configura como o todo em que a família

e a aldeia são partes e o todo precede à parte. A cidade dá sentido às outras

comunidades e é a única dentre estas que é autosuficiente.130

Outro conceito elementar ao se tratar da política é o de

cidadão, pois conforme destaca Reale, para Aristóteles “[…] não basta habitar no

território dela (da cidade), nem gozar do direito de iniciar uma acção judicial, nem

sequer é suficiente ser descendente de cidadãos”131, para Aristóteles cidadão é

aquele que pode participar da administração da justiça ou do governo.132

O próprio filósofo destaca que este conceito de cidadão aborda

de um ponto de vista generalista a questão, visto que em cada uma das formas de

governo a noção de cidadão será complementada pela componente de quais

pessoas podem ter acesso ao poder, de modo que em um certo sentido somente em

uma das formas de democracia este conceito seria aplicado em absoluto.

Finda esta questão, Aristóteles depara-se com uma

interessante questão, se as virtudes do homem bom são as mesmas do homem de

bem, o que faz se considerar diretamente a relação entre a Política e a Ética.

Ao apreciar este ponto é importante ter em mente que as

virtudes do homem de bem se tratam daquelas expostas por Aristóteles em seus

tratados sobre a Ética, enquanto que a virtude do cidadão deverá se relacionar ao

governo da polis e pertencer a todos os seus cidadãos.

129 ARISTÓTELES. Política. p. 221. 130 REALE, Giovanni. Storia della Filosofia Antica: II. Platone e Aristotele. 9. ed. Milano: Vita e

Pensiero, 1997. p. 523. 131 REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. p. 99. 132 ARISTÓTELES. Política. p. 187.

62

Tem-se assim que ambas as virtudes não são as mesmas e

que somente viriam a sê-lo na cidade perfeita.133 Contudo, o homem bom poderá ser

um bom cidadão, se puder fazer parte do governo (tendo em vista as diversas

formas que serão apresentadas mais adiante), enquanto que o bom cidadão

precisará de início estar adequado ao modelo de governo vigente e, além disso,

possuir virtudes específicas para sê-lo. Fechando este ponto e já dando início ao

próximo, tem-se que o homem bom possuirá os elementos necessários para ser um

bom governante (tal como se encontra na M. M.), enquanto que o inverso não é

verdadeiro.

O bom cidadão deve ter a sabedoria de mandar e também de

obedecer, visto que os cargos políticos em sua maioria são eletivos e temporários.

Por este motivo, faz-se necessária também a consideração de que virtudes

diferenciam aquele que manda dos que obedecem e, neste ponto, Aristóteles

considera que o bom governante deve possuir a virtude da prudência (motivo pelo

qual inclusive considerou-se a existência de uma sabedoria prática das coisas

políticas na Eth. Nic.), enquanto que o bom cidadão deve enquanto a virtude peculiar

ao cidadão, além de reconhecer a autoridade dos homens livres, também se trata da

opinião verdadeira das coisas relativas à polis.134

Fixadas estas considerações preliminares, Aristóteles passa

então a tratar sobre a diversidade de regimes e as formas de autoridade, também

chamadas de constituições (politeia) das cidades.

Insta salientar que quando se utiliza neste trabalho o termo

constituição, não se está a considerar a noção de um texto fundamental no qual

encontram-se as bases para a construção da organização política, sentido moderno

dado ao termo e motivo pelo qual muitos tradutores, como o que se utilizou no

presente trabalho dão preferência à expressão ‘regime’.135 Aristóteles define

constituição (politeia) como: “a organização da cidade no que se refere a diversas

magistraturas e, sobretudo, às magistraturas supremas. O governo é o elemento

133 ARISTÓTELES. Política. p. 197. 134 ARISTÓTELES. Política. p. 201. 135 WOLFF, Francis. Aristote et la Politique. Paris : Presses Universitaires de France, 1991. p. 85.

63

supremo em toda a cidade e o regime (constituição) é, de facto, esse governo”136.

Tem-se assim que ao se falar em constituição está a se tratar do próprio modelo de

organização da cidade e do regime de governo do que do texto que funda aquela

cidade.

A análise das principais formas de governo ou constituições é feita

no sentido de considerar duas espécies: os regimes que se direcionam ao bem

público, considerados como retos; e os governos que tem por base os interesses

dos próprios governantes, considerados como defeituosos e desviados dos regimes

retos.137 Tal como assinala Bittar: “A retidão ou a torpeza de um regime, nestes

moldes, se mede por estar ou não voltado para o bem comum, por estar ou não

encaminhado para a satisfação da massa e não dos interesses particulares e

próprios do governante […]”138.

Além desse pressuposto, considera-se ainda o número de

governantes para se diferenciar as diversas espécies de constituição. Portanto:

“Quando o único, ou os poucos, ou os muitos, governam em vista do interesse

comum, esses regimes serão rectos. Os regimes em que se governa em vista do

único, dos poucos, ou dos muitos são transviados”139.

Deste modo, se o governo é exercido apenas por uma pessoa, tendo

em vista o benefício de todos, se trata de uma monarquia, caso vise o bem do

próprio governante, caracteriza-se como uma tirania. Do mesmo modo, o governo

exercido por poucos, composto pelos melhores ou aqueles que propõem o melhor

para a cidade e seus membros é uma aristocracia (do grego aristein, o melhor), cujo

desvio é a oligarquia, o governo exercido por poucas pessoas, compostas pelos

mais ricos e que buscam seus próprios interesses. Por último, se o governo é

exercido pela maioria dos cidadãos tendo em vista o bem comum, dá-se o nome de

politia, ou regime constitucional, que é o nome comum às demais formas, o desvio

desta última forma é a democracia, entendida como o governo dos mais pobres (por

serem a maioria), tendo em vista o próprio interesse.

136 ARISTÓTELES. Política. p. 207. 137 WOLFF, Francis. Aristote et la Politique. Paris : Presses Universitaires de France, 1991. p. 89. 138 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Aristotélica: leitura e interpretação do pensamento aristotélico. p. 1.217. 139 ARISTÓTELES. Política. p. 211.

64

Um ponto importante a ser abordado aqui é que,

diferentemente do pensamento platônico, Aristóteles não constrói sua teoria política

no intuito de caracterizar o modelo ideal de governo a ser alcançado, razão pela qual

apesar de manifestar a preferência pela forma de governo aristocrática, visto que

nesta os melhores cidadãos, ou seja, aqueles que vivem conforme à ética, os

homens de bem serão os governantes, o Filósofo não a apresenta como um modelo

absoluto de governo.

Isto ocorre por variados motivos, sendo que, um dos

determinantes é o número de cidadãos de valor que uma cidade possui, motivo pelo

qual, sendo raro se encontrar em uma cidade uma pessoa que se destaque sobre

todas as demais, ou um grupo que também tenha esse destaque, o modelo da

politia apresenta-se como o mais plausível, tomando para si elementos da oligarquia

e da democracia em um governo que tem por norte a presença de uma classe média

forte, que garante que os interesses de ricos e pobres não entrem em conflito a

ponto de darem causa a qualquer tipo de revolução.

Outros elementos que não se pode deixar de considerar é a

natureza da população, o local da cidade, o clima, dentre outros fatores a que se

deve atentar para se definir qual é o melhor governo para uma determinada

localidade, assim, considera Aristóteles que: “Um determinado povo é naturalmente

destinado para um governo despótico, outro para a realeza, outro para um regime

constitucional, o que é justo e vantajoso para cada um deles […]”140, sendo que

somente os governos desviados fogem à regra, visto que são contrários à natureza

das coisas.141

Por tudo o que foi considerado, torna-se possível então concluir

qual é o bem visado pela Ciência Política. Se na Ética a finalidade a ser alcançada é

a felicidade, a qual também é a finalidade da própria cidade, como foi visto, o bem a

ser alcançado pela Política é a Justiça, como elemento primordial para que a cidade

possa vir a ser feliz.

140 ARISTÓTELES. Política. p. 263. 141 WOLFF, Francis. Aristote et la Politique. Paris : Presses Universitaires de France, 1991. p. 97,

98.

65

Refletindo sobre este ponto, Taylor conclui que “A teoria

política, então, não é para Aristóteles uma área distinta da teoria moral nem a

aplicação da teoria moral na esfera política, mas sim, ela é uma disciplina auxiliar à

teoria moral”142. Tem-se assim que para o autor a Política é o meio pelo qual se

pode definitivamente alcançar a excelência sob o prisma da Ética, entendimento

também partilhado por Morrall, ao considerar o papel e a responsabilidade da

autoridade política.143

A concepção de Justiça anunciada por Aristóteles dentro da

polis, conforme será visto mais adiante, consiste em tratar os iguais como iguais e os

desiguais como desiguais, sendo, portanto, o ponto nevrálgico da questão

determinar qual noção de igualdade e desigualdade que deve ser considerada.144.

É com base nos elementos aqui considerados que Aristóteles

parte então à análise mais cuidadosa de cada uma das constituições por ele

apresentadas, a começar pela monarquia no final do livro III. Já no livro IV são

consideradas as peculiaridades que envolvem o regime oligárquico e democrático,

temática que é retornada no livro VI, o regime da politia como um meio-termo entre

estes dois extremos, a aristocracia e, ainda, o governo tirânico. O livro V é dedicado

a tratar sobre a teoria das revoluções e o modo como cada um dos governos

elencados, especialmente a tirania, poderá sustentar seu poderio, evitando-se

qualquer movimento revolucionário. No livro VII são consideradas as relações entre

a Política e a Ética, na busca pelo alcance da felicidade, bem como outros

elementos que se deve atentar para a construção da cidade, enquanto que o livro

VIII tratará sobre a educação dos jovens de modo que venham a manter o caminho

de crescimento da própria cidade e também para que sejam homens de valor.

Antes de finalizar este capítulo, vale ressaltar que no final do

livro IV Aristóteles apresenta a visão das partes que compõem o governo, dividindo-

142 “Political theory, then, is for Aristotle neither a distinct subject from moral theory nor the application of moral theory to the political sphere; rather, it is a discipline ancillary to moral theory”. TAYLOR, C. C. W. Politics. In: BARNES, Jonathan (Ed.). The Cambridge Companion to Aristotle. New York: Cambridge University Press, 1996. p. 233. 143 MORRALL, John B. Aristóteles: pensamento politico. 2. ed. Tradução de Sérgio Duarte. Brasília: UnB, 1985. p. 55, 56. 144 ARISTÓTELES. Política. p. 231.

66

o em três, sendo estas a função deliberativa, executiva e judicial. Nos dizeres de

Aristóteles:

Uma dessas três partes relaciona-se com a deliberação sobre assuntos que dizem respeito à comunidade. A segunda é a que se refere às magistraturas (ou seja, por um lado, quais as magistraturas e sobre que assuntos devem ter autoridade; por outro, de que modo se deve proceder à sua eleição). A terceira parte é a que respeita ao exercício da justiça.145

O que se nota é que já em Aristóteles se manifestava uma

concepção tripartida das funções de governo, apesar de não haver no pensamento

do Filósofo uma noção dos três poderes separados um do outro, do modo como

entendemos na atualidade. Estas funções certas vezes eram de competência dos

mesmos órgãos, bem como não havia em Aristóteles a necessidade de se

caracterizar cada parte do governo de modo autônoma e independente. Apesar

disso, nota-se a influência do Estagirita na construção das mais atuais concepções

de governo através deste fator.

Concluindo esta parte, tem-se que a Política, para Aristóteles, é a

mais importante das ciências práticas, encarregada da mais nobre função dentre

estas, a construção de uma sociedade justa, que possibilite àqueles que nela

habitam uma vida feliz e venturosa, em conformidade com os ditames da Ética.

Feitas estas considerações, torna-se possível partir para a análise

do conceito de Justiça como parte importante das doutrinas da Filosofia Prática no

pensamento do Estagirita.

145 ARISTÓTELES. Política. p. 325.

Capítulo 3

O CONCEITO DE JUSTIÇA NA FILOSOFIA ARISTOTÉLICA

Após todas as considerações anteriormente feitas é que torna-

se possível tratar sobre o conceito de Justiça de Aristóteles. Com efeito, busca-se

determinar o significado deste conceito dentro da filosofia do pensador de Estagira,

de modo que para tanto é elementar ter em vista o sistema de pensamento

aristotélico e, mais ainda, a doutrina da Filosofia Prática de Aristóteles, visto que a

Justiça encontra-se inserta dentro deste assunto.

Sobre este ponto, destaca Máynez: “Estamos igualmente

convencidos de que os ensinamentos de Aristóteles sobre o justo estejam

estreitamente vinculados aos conceitos básicos de sua filosofia moral, e em não

poucos aspectos constituem sua aplicação"146.

Assim, tendo em vista os aportes teóricos já obtidos, pretende-

se no presente capítulo atingir o principal objetivo deste trabalho monográfico, qual

seja, apresentar o conceito de Justiça de Aristóteles e as principais implicações do

mesmo nas Ciências Práticas.

Com base nestes elementos, pretende-se neste momento partir

da definição aristotélica de Justiça enquanto virtude, para então tratá-la nos

aspectos políticos, tendo em vista as noções de Justiça Universal e Justiça

Particular, dentro desta última as concepções de Justiça Distributiva e Corretiva,

além de considerar a divisão entre Justiça Doméstica e Justiça Política, esta última

no sentido natural e legal, o conceito de Equidade de Aristóteles e, por fim, a relação

entre amizade, Justiça, formas de governo e a vida perfeita.

146 “Estamos igualmente convencidos de que las enseñanzas de Aristóteles sobre lo justo se hallan

estrechamente vinculadas a los conceptos básicos de su filosofía moral, y en no pocos respectos constituyen su aplicación”. GARCIA MÁYNEZ, Eduardo. Doctrina Aristotélica de la Justicia: estudio, selección y traducción de textos. México: Universidad Autónoma de México, 1973. p. 8. (tradução livre).

68

Para alcançar o objetivo deste capítulo serão utilizados

especialmente o livro V da Eth. Nic., que é o mesmo livro IV da Eth. Eud. e é

dedicado em sua totalidade a considerar as concepções de Justiça do Estagirita.

Serão utilizadas também a Pol., bem como a Reth., bem como do auxílio de

importantes intérpretes do pensamento aristotélico para se garantir o sucesso da

presente investigação.

3.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A JUSTIÇA ENQUANTO VIRTUDE: A JUSTIÇA

UNIVERSAL

Por tudo o que foi já exposto sobre a Ética faz-se possível

deduzir que a Justiça será uma espécie de virtude que disciplina o agir humano, o

que está plenamente correto.

Aliás, para a tradição filosófica anterior, especialmente tendo

em vista o pensamento platônico a Justiça era enquadrada como uma das virtudes

cardeais (junto da coragem, da temperança e da sabedoria) que direcionam a

conduta correta do ser humano.

A temática da Justiça reveste-se de tamanha importância no

pensamento aristotélico que recebe um livro próprio a tratar sobre o assunto nos

seus dois principais tratados sobre a Ética. Além disso, conforme tratou-se no

capítulo anterior, a Justiça é a própria finalidade da Política enquanto Ciência, o que

demonstra a importância da temática no pensamento prático de Aristóteles.

E que tipo de virtude será a Justiça? Aristóteles parte da noção

comum de que: “[…] justiça é a disposição da alma graças à qual elas (as pessoas)

se dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo […]”147.

Assim, a injustiça seria “[…] a disposição da alma graças à qual elas agem

injustamente e desejam o que é injusto”148.

Isto contudo traz uma dificuldade, que é determinar qual é a

noção de justo de deve ser considerava, visto que o conceito de justo é ambíguo e

147 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 91. 148 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 91.

69

os seus significados são próximos uns dos outros, motivo pelo qual essa

ambigüidade comumente não é notada.

Tendo em vista este caráter ambíguo do termo é que

Aristóteles se propõe a investigar em quantos sentidos as pessoas podem ser

consideradas injustas e em quanto justas, considerando assim que o termo ‘injusto’

aquele que não respeita a lei (paranomos), aquele que não respeita a igualdade

(ánisos), aquele que toma em excesso o que é bom, seja no sentido absoluto, seja

no sentido relativo (pleonéktes).149 Tendo em vista estes elementos, conclui-se que:

“O justo, então, é aquilo que é conforme à lei e correto, e o injusto é o ilegal e

iníquo”150.

Um destaque precisa ser feito antes de prosseguir nestas

investigações, que é o sentido que deve ser dado à palavra nomos por Aristóteles,

visto que conforme destaca Máynez, esta possui um sentido muito mais amplo do

que o termo lei. Assim, citando Saalomon, o autor destaca: “O νοµοζ abarca tanto à

lei, na acepção moderna do termo, como às convenções sociais, às regras do

decoro, às formas de vida, os usos e, em resumo, tudo o que no existir social

aparece ante a nós como regra e ordem”151.

Ainda sobre o conceito de nomos, considera Bittar:

A lei é, aqui, a razão humana atuando para a sobrevivência do espaço social. Trata-se, em suma, de uma forma convencional, imperativa, de se consentir o envolver daquele que pode se determinar como sendo o télos social, plena realização da racionalidade política humana, o que se encontra em estreito vínculo com a própria noção de sociabilidade.152

Importante se considerar esta questão, até porque o termo

nomos irá acompanhar toda esta investigação acerca do conceito aristotélico de

149 BITTAR Eduardo C.B. A Justiça em Aristóteles. p. 113. 150 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 92. 151 “El νοµοζ abarca tanto a la ley, em la acepción moderna del término, como a los

convencionalismos sociales, las reglas del decoro, las formas de vida, los usos y, en resumen, todo lo que el existir social aparece ante nosotros como regla y orden”. SALOMON apud GARCIA MÁYNEZ, Eduardo. Doctrina Aristotélica de la Justicia: estudio, selección y traducción de textos. p. 63. (tradução livre).

152 BITTAR Eduardo C.B. Curso de Filosofia Aristotélica: leitura e interpretação do pensamento aristotélico. p. 1.045.

70

Justiça, bem como, conforme destaca Máynez, por essa razão quando se fala no

legislador (nomotétes), deve-se vislumbrá-lo como um ser que carece de existência

real, visto que não se tratará apenas do indivíduo com competência legislativa no

sentido atual do termo, mas também àqueles que deram início aos usos e costumes

vigentes e uma sociedade.

Com a definição de injusto como iníquo, tem-se a relação dos

homens com os bens, mais especificamente com os bens dos quais dependem a

prosperidade e a adversidade, sendo que o iníquo será o homem ambicioso, aquele

que busca sempre o maior quinhão das coisas boas e o menor das que não são

boas em excesso à sua própria necessidade.

Por outro lado, o injusto também será aquele que infringe as

leis (no sentido de nomos), visto que os atos conformes à lei são em certo sentido

justos, porquanto estipulados pelo legislador com vistas ao interesse comum a todas

as pessoas, às melhores, ou à classe dos governantes, de forma que consideram-se

que os atos da lei intencionam produzir e preservar a felicidade, e os elementos que

a compõem, para a comunidade política (motivo pelo qual inclusive deve o legislador

ter estudado tão bem a Ética, conforme se destacou anteriormente).

Com base nestas considerações, conclui Aristóteles que:

[…] a justiça neste sentido é a excelência moral perfeita, embora não o seja de modo irrestrito, mas em relação ao próximo. Portanto a justiça é frequentemente considerada a mais elevada forma de excelência moral, e “nem a estrela vespertina, nem a matutina é tão maravilhosa”, e também se diz proverbialmente que “na justiça se resume toda a excelência”.153

O motivo que conduz o Filósofo à conclusão apresentada

acima é o fato de que a Justiça, nos termos anteriormente considerados se trata da

mais alta das virtudes, pois ela pode ser praticada não somente em relação a si

mesmo (como as demais virtudes), mas também em relação ao próximo. A Justiça,

portanto, se traduz no fazer o que é vantajoso para os outros, quer se trate de um

governante, de um companheiro ou de toda a comunidade.

Assim:

153 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 93.

71

O pior dos homens é aquele que põem em prática sua deficiência moral tanto em relação a si mesmo quanto em relação aos seus amigos, e o melhor dos homens não é aquele que põe em prática sua excelência moral em relação a si mesmo, e sim em relação aos outros, pois esta é uma tarefa difícil.154

Por este motivo é que se considera que a Justiça não é uma

parte da excelência moral, da virtude, mas a excelência moral inteira. O que difere a

Justiça da excelência moral, em essência é o fato de que uma se trata do exercício

da virtude em relação ao próximo, enquanto que a outra é o exercício virtuoso como

uma disposição irrestrita, por sua vez, em vista desta relação, o vício da Justiça

corresponde ao maior dos vícios.

O que se tem apresentado aqui é a concepção de Justiça

Universal ou Total, conforme prefere Bittar, de Justiça, correspondendo

especialmente ao respeito das condutas normativamente prescritas (pois apesar de

noções diversas o conceito de iníquo está contido no de ilegal).

Sobre a Justiça Universal, considera Bittar:

Esse tipo de justiça é o gênero, o sentido mais amplo que se pode atribuir ao termo. A justiça total é também chamada de universal ou integral, e tal se deve ao fato de ser a abrang6encia de sua aplicação a mais extensa possível. Pode-se mesmo afirmar que toda virtude, naquilo que concerne ao outro, pode ser entendida como justiça, e é neste sentido que se denomina justiça total ou universal.155

Importante destacar que nesta concepção de Justiça Universal

encontra-se encerrada não somente a visão da Justiça enquanto a maior das

virtudes éticas que um indivíduo pode possuir, mas também nela se encerra todo o

objetivo da própria Justiça política, visto que, tal como se considerou no tópico sobre

a Pol. de Aristóteles, o fim visado por esta é a própria Justiça e, por meio desta,

conduzir os cidadãos a uma vida boa e feliz.

Contudo, esta noção geral da Justiça não encerra toda a

questão sobre a justiça, motivo pelo qual o Estagirita passa a considerar outros tipos

de Justiça, estes em sentido não mais universal, mas particular. Dentro desta

154 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 93. 155 BITTAR, Eduardo C.B. A Justiça em Aristóteles. p. 114, 115.

72

concepção duas formas de se ver a Justiça surgirão, conforme se verá a seguir, a

Justiça Distributiva, ou Geométrica e a Justiça Corretiva, ou Aritmética.

3.2 O JUSTO EM SENTIDO PARTICULAR: JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E

CORRETIVA

Tratadas sobre as principais questões sobre a Justiça em sua

acepção máxima, cumpre neste momento trabalhar os significados de Justiça no

sentido restrito, ou particular do termo.

Enquanto a Justiça Universal direciona-se a toda a comunidade

de pessoas (koinonia), a todos os que circundam ao indivíduo, contrariamente a

Justiça Particular tem por objeto a relação entre indivíduos singularmente

considerados. Por este motivo, considera Bittar:

A justiça particular refere-se ao outro singularmente no relacionamento direto entre as partes, diferença fundamental que permite se encontrem as fronteiras de aplicação terminológica entre a justiça em sua acepção particular e em sua acepção universal. Ressalte-se, ainda, que enquanto a espécie relaciona-se apenas com a conduta de um homem de bem, no gênero por parte daquele que obra injustamente, sejam honoríficas, sejam pecuniárias, sejam de segurança pessoal do agente, caso em que se constitui a injustiça legal.156

Tendo em vista esta categoria pertencente à Justiça Universal,

o Estagirita propõe-se então a verificar que espécie de meio-termo consiste as

espécies de justo particular. Neste escopo, duas espécies de Justiça são concebidas

pelo Estagirita. São estas a que se manifesta na “[…] distribuição de funções

elevadas de governo, ou de dinheiro, ou das outras coisas que devem ser divididas

entre os cidadãos que compartilham dos benefícios outorgados pela constituição da

cidade”157 e também a outra “[…] é a que desempenha uma função corretiva nas

relações entre as pessoas”158.

156 BITTAR, Eduardo C.B. A Justiça em Aristóteles. p. 118. 157 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 95. 158 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 95.

73

Destaca Aristóteles que, sendo tanto o homem injusto quanto o

ato injusto iníquos, e que entre o excesso e a falta, que dizem respeito ao injusto

deve haver o meio-termo, que é o igual entre ambas as partes, se terá que o justo

pressupõe no mínimo quatro elementos, pois as pessoas para a qual ele é de fato

justo são duas e os objetos distribuídos são também dois. No momento em que há

desigualdade nestas proporções instaura-se a injustiça que favorece a uma das

partes. Portanto, o justo em sentido particular será uma espécie do gênero

proporcional, todavia esta proporção irá variar conforme se trate de um dos gêneros

anunciados.

Em relação à primeira espécie de Justiça enunciada, que diz

respeito especialmente às áreas que na atualidade considera-se como de

competência do Direito Público, ou seja, às distribuições de cargos ou funções, de

dinheiro ou outras coisas a serem divididas e partilhadas o justo deve ser uma

proporção conforme ao mérito de quem recebe. Esta noção de mérito, obviamente,

irá variar conforme ao governo em que se destina, por exemplo o Filósofo destaca

que aos democratas a distribuição deve ser de acordo com a condição de homem

livre, os oligarcas com a riqueza (ou nobreza de nascimento) e os aristocratas com a

excelência. Neste sentido, quando se concluiu no capítulo anterior que a Justiça na

polis seria tratar os iguais como iguais e os desiguais como desiguais, se está a

considerar exatamente a noção aristotélica de Justiça Distributiva.159

O fato é que esta proporção conforme o mérito irá ser tomada

geometricamente, considerando-se que: “[…] o elemento A está para o elemento B

assim como o elemento C está para o elemento D, e portanto, por alternação A está

para C assim como B está para D”160. O injusto nesta relação será a violação desta

proporcionalidade, tanto quanto um quinhão se torna muito grande e o outro muito

pequeno.

Ao considerar os pressupostos desta forma de Justiça,

considera Máynez:

159 WOLFF, Francis. Aristote et la Politique. Paris : Presses Universitaires de France, 1991. p. 100. 160 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 96.

74

A distributiva pressupõe, segundo a sumária caracterização que dela faz o filósofo na mesma passagem: a) A existência do repartível entre os membros da comunidade. b) A da instância encarregada de fazer a repartição. c) A do critério que, ao ser observado, determinará a retidão do ato

distributivo.161

Portanto, sinteticamente, tem-se que a Justiça Distributiva ou

Geométrica diz respeito às distribuições de bens, cargos ou honrarias e que deve

seguir uma proporção geométrica para tanto, cada uma das partes relacionadas

deve receber o que lhe é de direito, segundo o mérito que possui. No momento em

que esta proporção fosse violada, e que alguém recebesse menos que o devido ou

mais do que lhe cabia, estar-se-ia diante de uma injustiça.

A outra espécie de Justiça a ser considerada neste ponto é a

corretiva, esta diz respeito às relações diretas entre indivíduos, motivo pelo qual se

subdivide em uma parte que versa sobre as transações voluntárias e outra que trata

das transações involuntárias. Por este motivo, inclusive, a noção de Justiça

Corretiva é maior do que a de Justiça Comutativa defendida por pensadores

posteriores, visto que esta última trata apenas do ponto de vista das relações

voluntárias entre pessoas.

Como exemplo de relações voluntárias Aristóteles traz: “[…] a

venda, a compra, o empréstimo a juros, o penhor, o empréstimo sem juros, o

depósito e a locação”, trazendo para a visão do Direito atual, pode-se considerar que

esta modalidade de Justiça diz respeito às relações de Direito Privado, que

englobam o universo das relações obrigacionais, contratuais, de propriedade, bem

como do Direito de família e outros ramos específicos desta grande área em que a

autonomia da vontade entre as partes é um princípio a ser considerado.

Em contrapartida, acerca das relações involuntárias:

161 “La distributiva presupone, según la sumaria caracterización que de ella hace el filósofo en el

mismo pasaje:

a) La existencia de lo repartible entre los miembros de la comunidad.

b) La de la instancia encargada de hacer la repartición.

c) La del criterio que, de ser observado, determinará la rectitud del acto distributivo”. GARCIA MÁYNEZ, Eduardo. Doctrina Aristotélica de la Justicia: estudio, selección y traducción de textos. p. 75. (tradução livre).

75

[…] algumas são sub-reptícias (como o furto, o adultério, o envenenamento, o lenocínio, o desvio de escravos, o assassínio traiçoeiro, o falso testemunho), e outras são violentas, como o assalto, a prisão, o homicídio, o roubo, a mutilação, a injúria e o ultraje.162

Nestas relações há a sobrepujança da vontade de uma das

partes sobre a outra, seja de modo violento, seja por meio de um engodo ou outro

mecanismo que prejudique a parte adversa, motivo pelo qual pode-se comparar esta

parte da justiça com os atos ilícitos civis e também os ilícitos penais, visto que há

esta característica de agressão à vontade da outra parte, atingindo-o seja em seus

bens, seja fisicamente ou ainda moralmente.

Na Justiça Corretiva o critério proporcional será diverso

daquele adotado na Justiça Distributiva, visto que não se parte de uma relação

desigual onde, apurada a medida da desigualdade das partes se distribuirá o que é

devido a cada uma. Pelo contrário, na Justiça Corretiva as partes são consideradas

previamente iguais e, ao estabelecerem a relação entre si, firma-se a desigualdade,

havendo proveito por uma parte e prejuízo pela outra.

Destaca-se que nesta apreciação é irrelevante se uma das

partes é uma pessoa boa ou se a outra é má, ambas são tratadas enquanto iguais

de início e, estabelecida a desigualdade, é tarefa do juiz buscar restabelecer a

igualdade perdida, até mesmo nos casos de homicídio “[…] pois também no caso

em que a pessoa é ferida e a outra fere, ou uma pessoa mata e a outra é morta, o

sofrimento e a ação estão mal distribuídos, e o juiz tenta igualizar as coisas por meio

da penalidade[…]”163, isto é feito ao se subtrair do ofensor o excesso do ganho de

um, transferindo-o à parte que sofreu uma perda.

Por este motivo, a proporção entre a perda e o ganho, o meio-

termo entre estas relações será o justo dentro da Justiça Corretiva, o que significará

uma proporção aritmética, motivo pelo qual esta forma de Justiça também pode ser

chamada de Justiça Aritmética.

162 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 97. 163 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 97.

76

Nesta relação surge a figura do juiz, como terceiro

desinteressado na causa que aprecia a relação havida entre ambos, verificando

quem ganhou e quem perdeu, na busca pelo retorno à justa medida.

O justo, portanto, é eqüidistante, já que o juiz o é. O juiz então restabelece a igualdade; as coisas se passam como se houvesse uma linha dividida em dois segmentos desiguais, e o juiz subtraísse a parte que faz com que o segmento maior exceda a metade, e acrescentasse ao segmento menor. Quando o todo houver sido afinal dividido igualmente, então as partes litigantes dirão que tem aquilo que lhes pertence – isto é, quando elas houverem obtido o que é igual. O igual é o meio termo entre a linha maior e a menor de acordo com a proporção aritmética.164

Complementando seu raciocínio, Aristóteles relaciona a

origem dos termos díkaion, que significa justo com a noção de divisão ao meio e o

juiz como sendo aquele que divide ao meio o que é devido por ambas as partes.

Assim: “Esta é a origem da palavra díkaion (=justo); ela quer dizer dikha (=dividida

ao meio), como se se devesse entender esta última palavra no sentido de díkaion; e

um dikastés (=juiz), é aquele que divide ao meio (dikhastés)”.

Dada a importância da figura do juiz nesta modalidade de

Justiça, considera Bittar:

A própria noção de intermediário do justo relaciona-se à posição do juiz perante as partes em contenda, uma vez que é a imparcial e eqüidistante personificação da justiça. É o representante do intermediário, é um mediador, e, já por esta significação, representa uma mediedade, sinônima de justiça corretiva. A posição ocupada pelo juiz na aplicação da lei é tal que se pode dizer que se colocar diante do mesmo é se colocar diante do justo; o juiz (dikastés) quer ser como o justo personificado (díkaion empsýchon).165

Outrossim, pode-se relacionar a noção entre ‘perda’ e ‘ganho’

que o Filósofo diz ser proveniente das operações de troca voluntária com as

definições de credor e devedor que norteiam as relações obrigacionais do Direito

contemporâneo, as quais, inclusive, têm origem no Direito Romano e sua tratativa do

creditor por um lado e do debitor no outro.

164 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 98. 165 BITTAR, Eduardo C.B. A Justiça em Aristóteles. p. 126.

77

Outro aspecto a ser considerado antes de seguir adiante é a

relação entre reciprocidade e Justiça, visto que para alguns pensadores, como os

pitagóricos, o justo é o recíproco, e a reciprocidade não se identifica nem com a

Justiça Distributiva, nem com a Corretiva. A noção de reciprocidade pode ser

resumida na frase que atribuem a noção de justo de Radamantis, um dos três juízes

do mundo inferior: “se alguém sofrer o mesmo que infligiu, então teremos a justiça

feita”166.

A reciprocidade, contudo, é uma concepção estritamente

‘taliônica’, conforme destaca Garcia Máynez, pois busca-se retribuir ao mal que se

sofreu com outro mal e ao bem que se recebeu com o bem, o que diverge das

noções anteriormente apresentadas e denota a insuficiência desta noção para se

alcançar um verdadeiro ideal de Justiça Universal, do tratamento proporcional entre

as partes desiguais ou ainda da retomada da desigualdade causada por uma das

partes relacionadas.167

A proporção recíproca se efetua através de uma conjunção

cruzada dos termos, motivo pelo qual é de ser louvada no que se refere às relações

de intercâmbio entre as partes. Se houver uma igualdade proporcional entre o que

ambas as partes oferecem e recebem verificar-se-á um resultado de igualdade, se

não houver, a permuta feita pelas partes será desigual.

Em razão da dificuldade de se igualar os serviços prestados

por profissionais diferentes, destaca Aristóteles o surgimento do dinheiro como uma

espécie de meio-termo entre as partes instituído por convenção, até mesmo o seu

nome em grego (nomisma) provém de nomos e demonstra que o dinheiro não é um

critério natural, mas sim convencional, estando no poder dos homens mudá-lo e

torná-lo inútil.168

Assim, conclui Aristóteles que:

166 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 99. 167 MÁYNEZ, Eduardo. Doctrina Aristotélica de la Justicia: estudio, selección y traducción de

textos. p. 89. 168 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 100.

78

O dinheiro, portanto, agindo como um padrão, torna os bens comensuráveis e os igualiza, e não haveria comunidade se não houvesse permutas, nem permutas se não houvesse igualização, nem igualização se não houvesse comensurabilidade.169

Portanto, se a reciprocidade não serve como base para se

estabelecer a igualdade quando se trata de receber bens, cargos ou honrarias da

polis, bem como nas transações já efetuadas entre as partes, esta pode servir de um

critério de justiça no momento em que se está a realizar o negócio entre ambas as

partes, de modo que se garanta que a prestação de um e a remuneração dada pela

outra parte, ou a contraprestação sejam proporcionais e, portanto, justas, motivo

pelo qual também se faz importante a consideração desta dimensão no conceito de

Justiça aristotélico.

Porém, todas as considerações até aqui feitas não exaurem a

doutrina aristotélica sobre a Justiça, findas estas considerações sobre o justo em

seu sentido particular, deve-se considerar também a questão da Justiça Política, que

se trata de um tipo especial e análogo de Justiça. Com efeito, conforme destacou-se

anteriormente a noção de Justiça considera a relação do homem e o seu respeito à

lei (nomos), tendo esta como um critério de discriminação do que é justo e injusto

nas situações da vida, motivo pelo qual inclusive pretende o Estagirita, conforme

visto em sua Pol. que seja a lei quem governe e não um homem, dado o risco de

que este venha a tornar-se um tirano. O governante deve, isso sim, ser um guardião

da justiça, das leis, da igualdade. Portanto, findas estas considerações, em seguida

se tratará sobre o justo no sentido doméstico, bem como da Justiça Política.

3.3 JUSTIÇA DOMÉSTICA E JUSTIÇA POLÍTICA

Tendo em vista o que foi considerado ao se trabalhar a

temática da Política no pensamento aristotélico, a Justiça se apresenta como a

finalidade da Ciência Política, sendo que, por meio desta, a cidade (o todo) poderá

auxiliar o cidadão (a parte) no alcance de uma vida plena.

Aliás, com base no que já foi visto sobre a noção de Justiça,

percebe-se o liame entre a noção da Justiça e a promoção das virtudes na cidade

169 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 101.

79

visto que a Justiça em seu sentido universal pode ser considerada a prática da

própria excelência em relação aos demais.

Todavia as virtudes orientam o ser humano em seu agir, de

modo que a noção de Justiça em um sentido Político será diversa do cunho Ético

que a dikaiosyne também possui.

A reflexão sobre o significado da Justiça Política no

pensamento de Aristóteles conduz à reflexão sobre a noção de Justiça dentro da

polis, que segundo o próprio Arisóteles é o tratamento dos iguais na medida de sua

igualdade e dos desiguais na medida de sua desigualdade, o que remete

diretamente à noção de Justiça Distributiva.

Além disso, outro elemento deve ser considerado na

ordenação da cidade, que é as partes que constituem esta Justiça Política, que são

as noções de Justiça Natural e Justiça Legal.

Entretanto, antes de adentrar nesta temática se faz necessário

diferenciar o justo no sentido político (politikon dikaion) do justo doméstico

(oikonomikon dikaion), visto que, tal como encontra-se no livro I da Pol., a cidade é

composta pela reunião de famílias e nestas existem três tipos de relações, entre

marido e mulher, pais e filhos e entre senhor e servos.

Aristóteles considera que não há noção de justiça e injustiça

nas relações entre senhor e servo, bem como entre pai e filho, por não haver justiça

no sentido irrestrito em relação a coisas que pertencem ao senhor, entendendo que

os servos e os filhos, até certa idade, pertencem ao homem. Assim, a Justiça, em

seu sentido doméstico, pode se manifestar na única relação não inclusa neste

tópico, que é a Justiça em seu sentido doméstico stricto sensu, que cuida das

relações entre marido e mulher dentro de casa, sendo, contudo, diferente da Justiça

Política.

Quanto à Justiça Política, conforme dito, esta é em parte

natural e em parte legal. São naturais “[…] as coisas que têm a mesma força e não

dependem de as aceitarmos ou não […]”170 e é legal “[…] aquilo que a princípio pode

170 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 103.

80

ser determinado indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de

determinado já não é indiferente […]”171.

Ao se considerar a noção de Justiça Natural para Aristóteles é

importante se tomar o devido cuidado para não se confundir este conceito com a

ideia de Direito Natural que fervilhou pela Europa especialmente durante o período

moderno. Para a mentalidade do homem grego e, também para Aristóteles, a Justiça

Natural não se tratava de um princípio racional universal que deveria ser

considerado pelos homens, pelo contrário, se tratava de determinadas regras que,

por serem cumpridas invariavelmente pelas diversas cidades, poderiam ser

consideradas como naturais, e assim não legais ou convencionais.

Por outro lado, a Justiça Legal diz respeito àquilo que é fixado

pelos homens tendo em vista suas próprias demandas locais, razão pela qual estas

decisões normalmente não são as mesmas em todos os lugares.

3.4 A VOLUNTARIEDADE DO AGENTE COMO CARACTERÍSTICA DO ATO

INJUSTO

Com base no que foi até aqui exposto outra se faz necessário

considerar outra questão, que é a da imputabilidade aos indivíduos da conduta

injusta, o que faz com que se retorne às discussões sobre o voluntário e o

involuntário elaboradas no seio do livro III, da Eth. Nic.

Tal como se considerou naquele momento, o agir ético diz

respeito somente às emoções e ações voluntárias, o que envolve um cálculo do

indivíduo agente sobre o que anseia obter e quais os benefícios e malefícios que

esta ação almejada envolve. Os atos involuntários por sua vez, dependendo de sua

intensidade podem ser perdoados ou não, o que irá diferir neste sentido é o quanto

que o indivíduo foi responsável, ainda que involuntariamente, pelo resultado

causado.

Em assim sendo, do mesmo modo o que determina se um ato

é ou não um ato de justiça ou injustiça é sua voluntariedade ou involuntariedade,

171 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 103.

81

pois “[…] quando ele é voluntário, o agente é censurado, e somente neste caso se

trata de um ato de injustiça, de tal forma que haverá atos que são injustos mas não

chegam a ser atos de injustiça se a voluntariedade não estiver presente”172.

Do mesmo modo, destaca o Filósofo que é possível se cometer

atos de justiça ou injustiça acidentalmente, quando se pratica o ato contra a vontade,

por temor a alguma coisa ou a alguém, visto que o ato em si foi justo, mas não

houve intenção do agente neste sentido, motivo pelo qual se caracteriza a dimensão

acidental do mesmo.

Aristóteles considera que existem três espécies de dano nas

relações interpessoais, são eles: os causados na ignorância, que são erros ocorridos

quando a pessoa prejudicada, ou o ato, ou o instrumento, ou o fim a ser atingido não

é o que o agente imaginava; os danos causados quando o agente pensava não

estar a atingir pessoa alguma, ou não estava a atingindo com a intensidade que veio

a usar (tal como nos casos de preterdolo como se denomina na atualidade); ou o

dano ocorre contrariamente à expectativa razoável, constitui-se como um infortúnio.

Destaca-se ainda que, quando o dano não ocorre

contrariamente à expectativa razoável, mas pressupõe deficiência moral (vício),

trata-se de um erro, pois a falta tem origem na própria pessoa e um acidente diz

respeito a uma causa externa à pessoa. Quando o indivíduo age conscientemente,

mas não deliberadamente, comete uma injustiça, como os atos devidos à cólera ou

às emoções incontroláveis, nestes casos não há vício também, mas pode-se

considerar que o agente foi incontinente, conforme visto. Por fim, quando o indivíduo

age deliberadamente para prejudicar a outrem, a ação é injusta e ele é considerado

moralmente deficiente.173

Tendo em vista estes elementos, considera Bittar:

A ação, seja ela justa, seja ela injusta, diferentemente do que ocorre com a coisa justa de per si, depende de um agente que lhe dê causa. Assim, nemo actio sine auctore. Sendo que a prática da injustiça e também da justiça requerem a participação de um agente como causa eficiente de um efeito que se produza na esfera alheia, mister

172 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 104. 173 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 105.

82

se faz a análise da diferença entre o agir, justa ou injustamente, e o ser, justo ou injusto.174

Com base nestas considerações, constata-se a íntima relação

entre as considerações de Aristóteles e a atual noção de dolo e culpa que norteia o

Direito Penal, bem como a Responsabilidade Civil, excetuando-se os casos em que

esta é considerada como objetiva. De fato, é elementar que o indivíduo tenha

participação voluntária no resultado obtido ou então na ação que decorra em um

resultado danoso para ser considerado como responsável por aquela ação,

elemento extremamente importante quando se for praticar a Justiça Distributiva ou

Corretiva entre os homens.

Além disso, considera-se neste momento também a seguinte

questão: é possível ser injusto consigo mesmo? A princípio isto é considerado como

impossível, visto que não é possível que uma pessoa se trate injustamente, na

acepção de que o homem injusto não é totalmente mau. Considerar a possibilidade

de ser injusto consigo próprio seria também considerar a possibilidade de ser vítima

de uma injustiça voluntariamente. Isto a princípio é impossível, tendo-se por base

que inclusive o suicídio, mais do que ser uma violação contra a si próprio, é uma

agressão à própria cidade, motivo pelo qual pune-se o suicida como se este tivesse

agido injustamente em relação à cidade.

Apesar disso, considerando-se a existência de mais de uma

parte da alma, sendo uma racional e a outra irracional, com base nestes elementos

pode-se considerar a existência de uma injustiça em relação a si mesmo, mas não

uma justiça pela, e sim uma nos moldes da que existe entre senhor e servo, entre

pai e filho e a mesma espécie de injustiça que pode haver neste âmbito pode ser a

mesma que atinge as relações entre governante e governado.175

Findas estas considerações, faz-se necessário considerar

neste momento a noção de equidade e sua importância para a realização da Justiça.

174 BITTAR, Eduardo C.B. A Justiça em Aristóteles. p. 131. 175 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 105.

83

3.5 A EQUIDADE COMO COMPLEMENTO DA JUSTIÇA

Ao se considerar a relação entre o justo e o equitativo,

Aristóteles parte da constatação da similaridade entre ambos os conceitos, visto que

as pessoas são louvadas por serem equitativas, como também se louvam as

pessoas justas, sendo ambas as categorias referentes a coisas boas. Destaca

Aristóteles que, quando analisadas, Justiça e equidade (epiekeia) não são

absolutamente a mesma coisa, nem são especificamente diferentes.

O equitativo é considerado melhor que uma simples espécie de

Justiça, apesar de ser em si mesmo justo. Justiça e equidade, assim, são

consideradas a mesma coisa, apesar de se considerar a equidade como melhor que

a justiça. Isto ocorre, pois o equitativo não é o justo conforme à lei, mas um corretivo

da Justiça Legal.176

Por qual razão isto ocorre? O que motiva esta noção de

correção da Justiça Legal é a limitação do legislador ao formular as leis. Ora, as leis

são preceitos de ordem geral, motivo pelo qual é impossível fazer uma afirmação

universal, que venha a contemplar todas as situações possíveis. Assim:

Quando a lei estabelece uma regra geral, e aparece em sua aplicação um caso não previsto por esta regra geral, e aparece em sua aplicação um caso não previsto por esta regra, então é correto, onde o legislador é omisso e falhou por excesso de simplificação, suprir a omissão, dizendo o que o próprio legislador diria se estivesse presente, e o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso em questão.177

Deste modo, considera Garcia Máynez: Quando não é possível

ou, com outras palavras, quando o nómos não é suficientemente amplo, pode o juiz

se desviar dele, e o recurso que permanece então é emitir uma decisão para o caso

singular (ψηϕισµα)"178.

176 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 109. 177 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 109. 178 “Cuando esto no es possible o, con otras palabras, cuando el nómos no es suficientemente amplio,

puede el juez desviarse de él, y el recurso que encontes le queda es emitir una decisión para el caso singular (ψηϕισµα)”. MÁYNEZ, Eduardo. Doctrina Aristotélica de la Justicia: estudio, selección y traducción de textos. p. 89.

84

Portanto, em razão de ser uma correção do ponto onde a

Justiça Legal é falha é que se pode considerar que o equitativo é melhor que uma

simples espécie de Justiça, o que não faz da epiekeia um sinônimo da Justiça

Universal. “Então o equitativo é, por sua natureza, uma correção da lei onde esta é

omissa devido à generalidade”179.

É neste sentido que considera-se na Ret. que:

Mostrar-se equitativo é ser indulgente com as fraquezas humanas; é também ter menos consideração pela lei do que pelo legislador; ter em conta não a letra da lei, mas a intenção do legislador, não a ação em si, mas a intenção premeditada.180

Em razão disso, considera-se uma pessoa equitativa quando

esta escolhe e pratica atos equitativos, não se atendo única e exclusivamente aos

seus direitos, e que inclusive se contenta em receber menos do que lhe caberia,

embora a lei estivesse do seu lado.181 Tem-se com isso que o homem equitativo

será aquele que, por compreender o sentido das leis às quais encontra-se

submetido, está inclusive na posição de estar acima destas mesmas leis agindo em

conformidade com o momento da ação, muito mais do que do modo como que as

leis o determinam a fazer.

3.6 A RELAÇÃO ENTRE AMIZADE DE JUSTIÇA

A conclusão de que a Justiça se trata da virtude plena, pois diz

respeito à ação virtuosa não somente em relação a si mesmo, tal como as demais

virtudes morais, mas pelo contrário em relação ao outro conduz à consideração

sobre a relação entre a amizade e a Justiça.

Aristóteles considera que a Justiça consiste em tratar aos

outros de maneira adequada, fazendo-se o bem não somente aos amigos, mas à

todas as pessoas, e não prejudicando-se nem aos amigos, nem aos inimigos, motivo

179 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 109. 180 ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. p. 82. 181 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 110.

85

pelo qual não se pode considerar a retribuição como um critério absoluto de Justiça,

apesar de sua validade na dimensão das transações humanas.

Assim, tendo em vista as considerações de Aristóteles sobre a

amizade tem-se que esta é uma espécie de Justiça entre ambos os amigos,

inclusive é a forma mais desejável de Justiça, pois mais do que agir-se de maneira

correta tendo em vista a esfera da corretude da ação, considera-se o benefício da

outra pessoa com esta mesma ação. Neste sentido: “Quando as pessoas são

amigas não têm necessidade de justiça, enquanto mesmo quando são justas elas

necessitam da amizade; considera-se que a mais autêntica forma de justiça é uma

disposição amistosa”182.

Uma das coisas que difere a amizade da Justiça é o fato de

que na esfera da Justiça o que é igual no sentido primordial é o proporcional ao

merecimento, enquanto que na amizade a igualdade quantitativa é elementar, sendo

secundário o merecimento, o que permite que duas pessoas em posições diferentes

quanto à excelência moral possam ser amigas, ainda que não se atinja o tipo de

amizade ideal com isso.183

Se há uma aproximação maior entre os amigos do que entre as

pessoas comuns, e a relação de amizade seja também uma relação entre as partes,

é de se considerar que a injustiça praticada contra um amigo é muito mais

condenável do que aquela praticada contra uma pessoa comum. Assim: “As

reivindicações de justiça também parecem aumentar com a intensidade da amizade,

e isto significa que a amizade e a justiça existem entre as mesmas pessoas e têm

uma extensão igual”184.

Além disso, destaca-se que para Aristóteles os modelos ideais

de governo inclusive são uma relação de amizade entre governante (ou

governantes) e governados em uma proporção segundo a qual exista também

justiça ente estes.185 Por sua vez, nas formas degeneradas de governo a amizade,

182 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 154. 183 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 161. 184 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. p. 164. 185 MÁYNEZ, Eduardo. Doctrina Aristotélica de la Justicia: estudio, selección y traducción de

textos. p. 175.

86

tanto quanto a Justiça, é praticamente inexistente, porquanto o que prevalece é o

interesse daquele que governa e, portanto, um mínimo de amizade ou mesmo

nenhuma entre governantes e governados.

Acerca deste ponto conclui Bittar:

Se a sociabilidade e a politicidade são da natureza humana é a φιλια a realização de todo contato que une os membros de um único corpo social […] Alheio ao convívio social (éremos) – e o homem alheio ao convívio social ou é uma besta ou é um deus -, não há possibilidade de exercício da virtude ou da justiça em qualquer das suas formas, seja particular, seja universal; fora do convívio social não há, enfim, reciprocidade. Se a sociabilidade funda-se na utilidade e na φιλια, é evidente que esta última condiciona a existência da própria justiça.186

Conclui-se portanto este ponto vislumbrando-se que, se o ideal

da cidade é o alcance da Justiça, como meio de se possibilitar o tratamento

proporcional a todos e a concessão da possibilidade de que estes venham a ser

felizes, a amizade é a realização do ideal de Justiça em seu sentido mais pleno,

motivo pelo qual se considera que uma cidade feliz será uma cidade em que haja

amizade entre os próprios cidadão, bem como ente aquele que governa e os seus

governados.

3.7 A POSIÇÃO DO CONCEITO DE JUSTIÇA NO SISTEMA FILOSÓFICO

ARISTOTÉLICO

Por tudo o que foi exposto, torna-se possível precisar a posição

específica ocupada pelo conceito de Justiça e todas as variações que o mesmo

abarca dentro da filosofia do Estagirita.

Assim, considerados os elementos retirados da metafísica

aristotélica, da base de pensamento do Órganon e também das divisões da alma

apresentadas no De Anima, bem como a definição do objeto de estudo e da

finalidade perseguida tanto pela Ética, quanto pela Política, constata-se que o

186 BITTAR, Eduardo C.B. A Justiça em Aristóteles. p. 170.

87

conceito de Justiça se apresenta como elemento primordial para o alcance da

finalidade destas duas áreas do conhecimento.

Apesar de não ser a coisa mais importante para a realização

da Ética, visto que o ideal desta ciência é a felicidade, que é especialmente

alcançada pela autarkeia, pela capacidade de ser auto-suficiente e conduzir bem a

própria vida, por meio dos atos justos é que o homem exteriorizará a excelência

moral que possui, fazendo com que inclusive se confundam as definições de virtude

e de Justiça neste sentido.

Esta característica de exterioridade faz com que a noção de

Justiça esteja muito próxima da de amizade, contudo, tendo em vista que com os

amigos busca-se fazer o bem pelo fato de eles serem amados, sendo um dos bens

externos que o homem precisa possuir para ser feliz, a Justiça apresenta-se como

superior, pois além de se fazer o que é devido a quem se possui um vínculo afetivo,

faz-se para todos e se age deste modo como uma exteriorização daquilo que se é

internamente, não em busca de algum tipo de reconhecimento ou gratificação pela

atitude tomada.

Além desta dimensão, obviamente, não se pode deixar de

considerar a importância das facetas que esta Justiça Universal toma na relação

entre os particulares, sendo que quando há a concorrência de pessoas a um mesmo

objetivo, ou a discrepância de interesses em uma relação voluntária ou involuntária

entre as pessoas é necessário um critério de Justiça que seja proporcional, dando a

cada um o que lhe é adequado, valendo-se assim tanto da noção de proporção

geométrica, quanto aritmética, conforme foi visto.

Por esta característica de exteriorização da perfeição moral

que se tem, a Justiça é o elemento a ser perseguido pela Política. A grande

finalidade das organizações sociais, em Aristóteles, é o alcance da felicidade de

cada um, e isto somente será possível se as instituições que regem esta

comunidade possibilitem a todos o alcance desta finalidade, tratando-os, portanto,

de maneira justa.

Vale ressaltar que este tratamento justo não deve se pautar em

um critério único de tratamento de todos os membros da polis, mas em um critério

88

proporcional, que releve a igualdade ou a desigualdade das pessoas e as trate tendo

em vista estas noções, o que faz com que a Justiça Política, seja no seu aspecto

legal, seja natural, sempre tenha uma íntima ligação com o ideal da Justiça

Universal.

Resta assim demonstrado que a posição da Justiça dentro do

pensamento prático de Aristóteles é a de ser um bem elementar a ser alcançado

para que tanto o cidadão, quando a cidade onde este vivem possam tornar realidade

a realização do seu thelos, a vida em felicidade.

89

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho foi construído com o objetivo de definir o

conceito de Justiça no interior da Filosofia aristotélica, o que já o posiciona como

diferenciado dos demais trabalhos na área, que acabam por considerar apenas o

que Aristóteles tratou sobre a noção de Justiça, como se fosse uma parte separada

de todo seu pensamento ou, quando muito, apresentando a dimensão ética e

política envolvida com a Justiça.

Para o alcance deste objetivo, partiu-se do estudo do sistema

filosófico aristotélico, tendo em vista que o Filósofo é um pensador sistemático e,

portanto, para se ter uma compreensão mais adequada de um ponto específico de

seu pensamento é preciso considerar a totalidade do seu pensamento.

Assim, foram apresentadas as principais áreas da filosofia

aristotélica, culminando-se com a tratativa de três disciplinas especialmente

necessárias para a consideração das Ciências Práticas, que abarcam o conceito de

Justiça para Aristóteles, sendo estas a metafísica, especialmente no tocante à

doutrina das quatro causas, a sistematização lógica das ciências promovida no

Órganon, bem como a consideração das partes da alma elaboradas no De An.

Findas esta parte, no segundo capítulo apresentou-se os

principais elementos que compõem as duas grandes áreas da Ciência Prática, a

Ética e a Política, que podem ambas serem consideradas como partes da grande

área da Política, visto que a Ética se apresenta como elemento de base para a

construção adequada da cidade, bem como que o homem somente virá a ser feliz

dentro da cidade, havendo portanto uma intrínseca relação entre ambas.

Constatado o modo como cada uma destas doutrinas busca

conduzir os homens à felicidade, uma por meio da orientação da conduta e do

pensamento de cada homem, outra encarregando-se de preparar a cidade para o

alcance desta finalidade, tornou-se possível partir para a consideração do conceito

de Justiça no terceiro capítulo deste trabalho.

90

Então, apresentou-se o modo pelo qual o Estagirita trata sobre

a Justiça em seus principais tratados sobre a matéria, especialmente na Eth. Nic., o

que tornou possível vislumbrar a existência de diversas facetas que compõem a

noção de Justiça, apesar de esta, no seu sentido irrestrito, ser considerada uma

excelência moral, ou melhor, a maior delas, visto que se trata da exposição das

virtudes que se possui na relação com o outro.

Tendo em vista esta característica própria da Justiça, tornou-se

possível concluir que a virtude da Justiça é o meio pelo qual se constrói a ligação

entre Ética e Política e que, portanto, os homens virtuosos possam ser aqueles que

conduzem a cidade ao seu melhor (havendo aqui a coincidência entre as virtudes do

homem de bem e do bom cidadão, conforme se discute no livro terceiro da Pol.) e

que, portanto, além de se alcançarem a própria perfeição moral e intelectual e,

assim, a eudaimonia, conduzem também os seus pares, a coletividade que

compartilha com eles sua vida em comunidade ao melhor de si, sendo esta a

posição da Justiça dentro das Ciências Práticas, bem como dentro de toda a filosofia

de Aristóteles.

Restam assim comprovadas todas as hipóteses suscitadas

preliminarmente à execução desta pesquisa, visto que: para a adequada

compreensão do conceito de Justiça se faz necessário considerar o sistema

filosófico de Aristóteles como um todo; que a Justiça é um elemento necessário e

que inclusive faz a ligação entre o âmbito da Ética e da Política, sendo que a Justiça

é importante para que não se viva somente individualmente em felicidade, mas que

nisso todo o corpo social possa ter a possibilidade do alcance deste tipo de vida; por

fim, como uma parte das virtudes éticas, demonstrou-se que para se construir um

indivíduo justo, ou uma cidade justa é necessário um modelo de formação que

possa incutir este tipo de hábito nas pessoas, para que assim se possa constituir

uma sociedade verdadeiramente justa.

Destaca-se por fim que o exposto neste trabalho não encerra a

discussão sobre a temática, mas serve como um estímulo para que se busque

encontrar o verdadeiro significado de Justiça para os grandes pensadores da

humanidade e, mais do que isso, compreendendo o que estas notáveis mentes que

se fizeram presentes na história humana, se possa trabalhar para o desenvolvimento

91

de homens que, por meio de sua própria realização, conduzam toda a sociedade em

direção ao contínuo aprimoramento e à conformidade com o projeto virtual que é

disposto a todos pela Vida.

92

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