O CONCEITO DE MEIO TÉCNICO EM MILTON SANTOS

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Este artigo tem como objetivo expor sinteticamente o entendimento do conceito de meio vinculado ao fenômeno técnico proposto pelo geógrafo brasileiro Milton Santos.

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    O CONCEITO DE MEIO TCNICO EM MILTON SANTOS1

    Carlos Francisco Gerencsez Geraldino

    Universidade Estadual de Campinas, Doutorando em Geografia pelo Instituto de Geocincias

    da UNICAMP, bolsista da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo -

    FAPESP. E-mail: [email protected]. Rua Joo Pandi Calgeras 51, Campinas-SP,

    CEP: 13083-870.

    Resumo

    Este artigo tem como objetivo expor sinteticamente o entendimento do conceito de meio

    vinculado ao fenmeno tcnico proposto pelo gegrafo brasileiro Milton Santos. Para isso,

    primeiro se discute o contedo que props aos conceitos de meio, tcnica, natureza e espao,

    procurando entrever suas relaes. Depois, se apresenta sua proposta gradual de anlise da

    transformao do meio natural em meio tcnico-cientfico e informacional, pontuando os

    recortes conceituais utilizados em cada etapa do processo de artificializao do entorno. Para,

    por fim, demonstrar como os contedos tcnicos agregados ao meio geogrfico podem faz-lo

    revelar-se como um atuante ente social; legitimando, dessa maneira, a anlise geogrfica

    como uma das principais vias de compreenso das relaes sociais contemporneas.

    Palavras-chave: meio tcnico; conceito; Milton Santos; geografia; epistemologia.

    Abstract

    THE CONCEPT OF TECHNICAL ENVIRONMENT IN MILTON SANTOS

    This article aims to explain briefly the understanding of the concept of environment linked to

    the technical phenomenon proposed by Brazilian geographer Milton Santos. For this, first

    discusses the content that proposed the concepts of medium, technique, nature and space,

    trying to observe their relationships. Then, it presents its proposal gradual analysis of the

    transformation of the natural environment in technical-scientific and informational

    environment, punctuating the cutouts conceptual used in each stage of the artificiality of the

    surroundings. To finally demonstrate how the technical content added to the geographical

    Artigo recebido para publicao em 05 de Junho de 2013

    Artigo aprovado para publicao em 04 de Outubro de 2013 1 Texto baseado em parte dos resultados da pesquisa de mestrado intitulada O conceito de meio na geografia

    (2010) defendida junto ao Programa de Ps-Graduao em Geografia Humana da Universidade de So Paulo.

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    environment can make it reveal itself as an active social being; legitimizing therefore the

    geographical analysis as a key way of understanding contemporary social relations.

    Key words: technical environment; concept; Milton Santos; geography; epistemology.

    Resumen

    EL CONCEPTO DE MEDIO TCNICO EN MILTON SANTOS

    Este artculo pretende explicar brevemente la comprensin del concepto de medio vinculado a

    fenmeno tcnico propuesto por el gegrafo brasileo Milton Santos. Para ello, primero se

    analiza el contenido que propuso el concepto de medio, la tcnica, la naturaleza y el espacio,

    tratando de observar sus relaciones. Despus, se presenta la propuesta de analizar la

    transformacin gradual del medio natural en el medio tcnico-cientfico e informacional,

    puntuando los recortes conceptuales utilizados en cada etapa de la artificialidad de los

    alrededores. Para demostrar finalmente, cmo el contenido tcnico aadi al medio

    geogrfico puede resultar esto como un ser social activo; legitimando, as, la anlisis

    geogrfica como uno dos principales caminos de entendimiento de las relaciones sociales

    contemporneas.

    Palabras clave: medio tcnico, concepto; Milton Santos; geografa, epistemologa.

    Introduo

    A interpretao do conceito de meio vinculado ao fenmeno tcnico no algo que se

    faz recente no cenrio epistemolgico da geografia acadmica. Nomes como Paul Vidal de La

    Blache, Albert Demangeon, Max. Sorre2, Jean Gottman, Pierre Gourou, Pierre George e Jean

    Labasse; debruaram-se sobre o tema e contriburam, cada qual com a sua tica,

    decisivamente ao enriquecimento terico desse vnculo (SANTOS, 2004). Contudo, se,

    restringindo o campo de anlise, focarmos a ateno apenas ao cenrio contemporneo da

    geografia acadmica brasileira, logo veremos que jamais conseguiremos discorrer por mais de

    uma pgina sobre o conceito de meio tcnico sem mencionar um nome em especfico, esse

    nome, como sabemos, o de Milton Santos. Dificilmente encontraremos algum gegrafo que

    atualmente pesquise aspectos da realidade utilizando-se de conceitos como tcnica ou de meio

    tcnico sem a ele fazer referncia. Isso se deve ao tamanho da sua influncia acadmica

    2 Max. Sorre, segundo Milton Santos, foi [...] o primeiro gegrafo a propor, com detalhe, a considerao do

    fenmeno tcnico, em toda sua amplitude (2004, p. 35).

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    derivada de seus esforos, no isolados, na busca de compreender as intrincadas relaes entre

    geografia e a tcnica. Assim, se queremos entender o sentido de uma facetas com as quais o

    conceito de meio hoje se apresenta, no caso o meio como meio tcnico, necessariamente

    teremos que nos debruar na obra deixada por esse autor. Porm, estudar e descrever seu

    sistema conceitual como um todo extrapolaria em muito os objetivos desse artigo. Dessa

    maneira, cabe esclarecer que aqui o entendimento de seu sistema conceitual, e em particular

    de sua concepo de tcnica, no visa outra coisa seno sua direta relao compreenso do

    conceito de meio.

    O que se segue, portanto, uma anlise sinttica do conceito de meio proposto por

    Milton Santos sob o vis da tcnica. Assim, primeiramente se discute o contedo que props

    aos conceitos de meio, tcnica, natureza e espao, procurando entrever suas relaes. Depois,

    apresenta-se a gradual transformao do meio natural em meio tcnico-cientfico e

    informacional, pontuando os recortes conceituais utilizados pelo autor em cada etapa do

    processo de artificializao do entorno. Para, por fim, demonstrar como os contedos tcnicos

    agregados ao meio podem faz-lo agir como ente social; legitimando, dessa forma, a anlise

    geogrfica como uma das principais vias reveladoras da sociedade contempornea.

    Do meio tcnico ao meio tcnico-cientfico informacional

    Se, em 1978, Milton Santos expunha sua insatisfao acerca do trato ao qual vinha

    sendo dado ao conceito de meio asseverando que [...] dificilmente os gegrafos podem

    reclamar de outros especialistas o uso que fazem de palavras como meio geogrfico, meio

    fsico, meio natural, ou simplesmente meio, pois entre os gegrafos, a ambiguidade a

    regra geral (p. 21). Por sua vez, quase duas dcadas mais tarde, aps uma sucesso de

    ensaios, livros e artigos, apresenta detalhadamente uma sistematizao ampla de suas ideias

    na obra A natureza do espao (cuja primeira edio data de 1996), onde o conceito de meio,

    alm de afigurar-se como pea-chave na trama conceitual, aparece metodicamente atrelado a

    outros conceitos como a tcnica, a cincia e a informao3. J no incio do primeiro captulo

    desta obra podemos ver com clareza o caminho terico que se concentrar; l, Santos expe

    que:

    3 Segundo Flvia Grimm (2009), a expresso meio tcnico-cientfico aparece pela primeira vez nos escritos de

    Milton Santos no ano de 1981, para somente aps mais de uma dcada ser modificada, ou melhor, ser

    acrescentada de mais um termo: informacional. Apresentando, portanto, como meio tcnico-cientfico e

    informacional.

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    por demais sabido que a principal forma de relao entre o homem e a natureza,

    ou melhor, entre o homem e o meio, dada pela tcnica. As tcnicas so um

    conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida,

    produz e, ao mesmo tempo, cria espao. Essa forma de ver a tcnica no , todavia,

    completamente explorada (2004, p. 29).

    Nesta passagem, vrios elementos j esto postos. O primeiro, e mais evidente, a escolha

    terico-metodolgica feita querendo entender as recprocas relaes entre a sociedade e a

    natureza pelo vis da tcnica. Ou seja, o autor deixa por entrever que existem outros tipos de

    relao para este binmio, porm, afirmando ser a tcnica a principal, opta por ela. Um

    segundo, no menos evidente, a atribuio dual de sentido ao conceito de meio. Isso, pois,

    se num primeiro momento o termo meio aparece como aquilo que envolve o homem, ou seja,

    sendo o outro do homem, sua alteridade, seu entorno o que, por conseguinte, permite a

    relao , num segundo momento, o termo meio aparece na prpria definio do que

    tcnica, como sinnimo de recurso. Assim, mesmo nesta pequena e introdutria passagem j

    se pode identificar, e no transcorrer do texto se confirmar, a dupla designao em que o termo

    meio entendido pelo autor: como entorno e como recurso. J os outros elementos, apesar de

    estarem presentes na passagem, no esto to evidenciados como estes primeiros, abrigando-

    se no transcorrer do texto. Estes dizem respeito ao significado dos conceitos de natureza,

    meio, tcnica e espao, como tambm de suas interelaes.

    Atentemos primeiro relao entre natureza e meio. Aquele que iniciando a leitura

    desta obra depara-se com o trecho j aqui citado: [...] a principal forma de relao entre o

    homem e a natureza, ou melhor, entre o homem e o meio [...] (grifo nosso), pode, com razo,

    indagar sobre o que o autor entende por meio e por natureza. Seriam eles termos sinnimos?

    No decorrer da leitura ver que sim. Apesar de no haver particular preocupao em definir o

    conceito de natureza, Santos, em vrios momentos, considera que a partir do momento em que

    existe o homem, seu olhar para o entorno natural dirigido apreenso prtica e simblica,

    transformando de imediato a natureza em recurso para suprir sua sobrevivncia. Essa

    apreenso do meio, ou da natureza, feita pela tcnica. Santos chega mesmo a levantar a

    pergunta se haveria uma distino entre o que natural e o que artificial do meio. Porm,

    apressa-se em responder que [...] para os fins de nossa anlise, mesmo os objetos naturais

    poderiam ser includos entre os objetos tcnicos, se considerado o critrio de uso possvel

    (2004, p. 38). Assim, mesmo os objetos provenientes de processos naturais seriam

    interpretados, pelo critrio do uso possvel, como tendo potenciais finalidades ao homem e,

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    portanto, poderiam ser considerados como meios. Da, a tcnica, segundo o autor, seria uma

    possvel resoluo de certa m herana da Geografia de considerar homem e natureza como

    fenmenos separados.

    Se o entendimento da relao entre os conceitos de meio e de natureza em Santos so

    pautados pela tcnica, faz necessrio sabermos ento qual a relao entre meio e tcnica. E

    esta, no muito diferente da anterior, resulta numa quase paridade dos contedos dos termos.

    Como expresso em um dos subttulos de A natureza do espao: A tcnica, ela prpria,

    um meio (ibidem). Dessa maneira, aquilo que envolve o homem, sua geografia, seu meio,

    composto de tecnicidade. O olhar ento estaria sempre procurando finalidades, por isso,

    enxergando tudo ao seu redor como meio; mesmo aqueles objetos, como vimos, de origem

    natural. A geografia faz-se, dessa feita, como o resultado histrico de um processo de

    tecnificao que o homem faz de seu meio. Pois, como aferiu Santos, referenciando Nathan

    Rotenstreich, [...] a prpria histria se torna um meio (um environment) (ibidem, p. 40).

    Sendo o meio geogrfico o mesmo que meio tcnico. Da, em suas prprias palavras, vemos

    que:

    [...] no h essa coisa de um meio geogrfico de um lado e de um meio tcnico do

    outro. O que sempre se criou a partir da fuso um meio geogrfico, um meio que

    viveu milnios como meio natural ou pr-tcnico, um meio ao qual se chamou de

    meio tcnico ou maqunico durante dois a trs sculos, e que hoje estamos propondo

    considerar como meio tcnico-cientfico-informacional (ibidem, p. 41).

    Ou seja, o meio geogrfico constante resultado nunca acabado da tcnica em

    desenvolvimento. Porm, antes de nos debruarmos na anlise desses novos elementos (o

    cientfico e o informacional) do meio atual, devemos ainda resolver a ltima relao exposta

    em questo na primeira passagem, a relao entre o conceito de meio e o de espao.

    Numa pergunta, meio e espao, para Milton Santos, tambm so termos correlatos?

    Considerando esta frase do prprio: por isso que estamos considerando o espao

    geogrfico do mundo atual como um meio tcnico-cientfico-informacional (ibidem, p. 240),

    necessariamente teremos que responder de forma afirmativa. Esta a passagem que mais

    evidencia a semelhana entre estes termos, mas em vrios momentos das suas obras isso fica

    subsumido. Espao demonstrado por Milton Santos como algo diferenvel de paisagem e

    configurao territorial4. Todavia, possvel se afirmar dada, primeiro, a ausncia da

    4 Como bem explicita nessa passagem: Paisagem e espao no so sinnimos. A paisagem o conjunto de

    formas que, num dado momento, exprimem as heranas que representam as sucessivas relaes localizadas entre

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    diferenciao em seus escritos e, segundo, pela simples substituio dos termos sem ressalvas

    em vrias passagens de suas obras que meio ora expresso como meio tcnico-cientfico e

    informacional (2004, p. 41), como meio geogrfico (idem), como meio social ambiente (1999,

    p. 17), como meio ambiente (2003, p. 7) ou como meio ambiente construdo (1998, p. 73) e

    espao so termos equivalentes, portanto, sinnimos.

    Autorizados por esse raciocnio, talvez no estivssemos exagerando se

    interpretssemos o ttulo de seu principal livro como A natureza do meio. Afinal, o espao

    composto pelas formas territorializadas mais a sociedade que as anima ou seja, por objetos e

    aes e o meio entendido pelo autor como entorno e recurso, sendo relativo existncia

    de algum indivduo ou da sociedade , ento, tambm composto de formas territoriais e

    sociedade propiciadora de dinmica. E ainda mais, ambos, meio e espao, existiriam tanto

    objetivamente quanto subjetivamente. Caso que a seguir pode-se evidenciar na preciso e na

    sobreposio no conflitiva que o autor faz no uso desses termos:

    O espao se impe atravs das condies que ele oferece para a produo, para a

    circulao, para a residncia, para a comunicao, para o exerccio da poltica, para

    o exerccio das crenas, para o lazer e como condio de viver bem. Como meio operacional, presta-se a uma avaliao objetiva e como meio percebido est

    subordinado a uma avaliao subjetiva. Mas o mesmo espao pode ser visto como

    terreno das operaes individuais e coletivas, ou como realidade percebida. Na

    realidade, o que h so invases recprocas entre o operacional e o percebido.

    Ambos tm a tcnica como origem e por essa via nossa avaliao acaba por ser uma

    sntese entre objetivo e o subjetivo (SANTOS, 2004, p. 55, grifo nosso).

    A subjetividade e objetividade relacionadas ao meio expressas na passagem tm, para Santos,

    nomes prprios, respectivamente: psicoesfera e tecnoesfera. Sendo ambas [...] redutveis

    uma outra (ibidem, p. 256). A tecnoesfera responde pela materialidade do meio. o

    resultado nunca acabado dos processos de territorializao das tcnicas, fazendo-se como

    prteses aderidas ao meio natural. J a psicoesfera a parte subjetivada do meio. So as ideias

    amalgamadas expansiva artificializao do meio. Em um exemplo utilizando-se do territrio

    nacional (1998, p. 32), Santos clarifica estes termos ao dizer que a tecnoesfera d-se como

    fenmeno contnuo na maior parte do Sul e do Sudeste brasileiro, chegando at quase a cobrir

    o Mato Grosso do Sul, j a psicoesfera apresenta-se como uma realidade em todo pas. Ou

    homem e natureza. O espao so essas formas mais a vida que as anima. A palavra paisagem frequentemente

    utilizada em vez da expresso configurao territorial. Esta o conjunto de elementos naturais e artificiais que

    fisicamente caracterizam uma rea. A rigor, a paisagem apenas a poro da configurao territorial que

    possvel abarcar com a viso. Assim, quando se fala em paisagem, h, tambm, referncia configurao

    territorial e, em muitos idiomas, o uso das duas expresses indiferente (SANTOS, 2004, p. 103).

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    seja, mesmo naqueles lugares onde no h uma tecnificao expressiva do territrio j pode

    haver alguns comportamentos e desejos, gerados e perpassados pelos meios de comunicao,

    de regies altamente tecnificadas. Todavia, psicoesfera e tecnoesfera so aspectos atuais de

    uma nica e mesma realidade: o meio tcnico-cientfico-informacional. E somente o

    entendimento dessa composio terminolgica possibilitar uma melhor compreenso do

    conceito de meio utilizado pelo autor.

    A transformao do meio natural no meio tcnico-cientfico-informacional se d por

    etapas de artificializao do entorno. Como talvez se poderia imaginar a princpio, a noo de

    meio natural no se faz aquela apenas proveniente de um territrio sem humanos. possvel

    haver humanos habitando e modificando certa poro do territrio sem, no entanto, este ser

    classificado por Santos como meio tcnico. Para o autor, o meio natural s passa a ser um

    meio tcnico com a inveno das mquinas. Isso passvel de ser verificado em suas palavras,

    ao afirmar que: Estamos porm, reservando a apelao de meio tcnico fase posterior

    inveno e ao uso das mquinas, j que estas, unidas ao solo, do uma nova dimenso

    respectiva geografia (2004, p. 234). Assim, a mquina seria um recorte terico derivado do

    entendimento de que seu surgimento alterou significativamente as relaes entre sociedade e

    natureza proporcionando com a territorializao em formas de estradas de ferro, rodovias,

    fbricas etc. uma nova configurao geogrfica no mundo. E a consonncia com a natureza

    rompida d a luz ao um novo meio, o meio tcnico.

    Milton Santos enfatiza que a relao do homem com a natureza sempre mediada pela

    tcnica. E, seguindo tal raciocnio, para qualquer ato humano, em um determinado meio, j

    teramos que cham-lo de meio tcnico. Pois, uma abertura na floresta ou construes de

    abrigos feitos com materiais encontrados na natureza e pouco modificados seriam, sem

    dvida, frutos de sistemas tcnicos. Porm, Santos argumenta que nessas condies de vida

    nestes gneros de vida, para lembrarmos a clssica designao de Paul Vidal de La Blache

    (1946) presente uma ligao harmnica entre homem e meio; e que mesmo este meio

    sendo produto de certas modificaes, estas, por contrapartida, no seriam to agressivas, a

    ponto mesmo de ainda podermos cham-lo de meio natural. Haveria, assim, nestes espaos ou

    meios a presena de [...] sistemas tcnicos sem objetos tcnicos (SANTOS, 2004, p. 236).

    J o meio tcnico conteria objetos resultantes no s de processos estritamente culturais, mas

    tambm de objetos puramente tcnicos; estes, no sentido de serem produtos de clculos

    racionais que no necessariamente estivessem relacionados aos ditames tradicionais daquele

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    grupo humano. Inaugurando, assim, na histria da humanidade, um estranhamento do entorno

    derivado no mais pela no compreenso dos processos naturais, mas, sim, pelo novo meio

    resultante dos prprios objetos artificiais.

    Para ressaltar esse raciocnio, Santos nos lembra de que fomos [...] rodeados, nestes

    ltimos quarenta anos, por mais objetos do que nos precedentes quarenta mil anos (1998, p.

    21). E, de tal modo, os raciocnios referentes aos porqus das coisas estarem onde esto

    portando, raciocnios eminentemente do tipo geogrfico j no podem ser realizados tendo

    unicamente a cultura local como referncia. O meio tcnico produzido tendo outros ditames,

    outra razo; A razo do comrcio, e no a da natureza, que preside sua instalao (2004,

    p. 237), dizia. Razo vinda, muitas vezes, de outros lugares. Razo colonizadora, capitalista.

    Tornando o meio um hbrido cada vez menos fruto de uma ordem proveniente da cultura local

    para ser resultado de uma razo de tipo comercial. Sintetizando, expe que:

    Ontem, o homem se comunicava com o seu pedao da natureza praticamente sem

    mediao, hoje, a prpria definio do que esse entorno, prximo ou distante, o

    Local ou o Mundo, cheia de mistrios. Agora que todas as condies de vida,

    profundamente enraizadas, esto sendo destrudas (A. Wellmer, 1974), aumenta

    exponencialmente a tenso entre a cultura objetiva e a cultura subjetiva e, do mesmo

    modo, se multiplicam os equvocos de nossa percepo, de nossa definio e de

    nossa relao com o Meio (SANTOS, 1998, p. 22).

    Data da dcada de 1970 um incremento cientfico ao meio tcnico. Na verdade, ainda

    tcnico, porm com tcnicas inovadoras descobertas por processos acelerados em

    laboratrios. A cincia potencializou a tcnica ao trat-la como um fim em si prprio;

    inaugurando, assim, a tecnologia. Essa, por sua vez, esparramada estrategicamente ao

    territrio azeitando ainda mais a trade de produo, circulao e consumo de mercadorias.

    Todavia, o alargamento das fronteiras visando uma mais-valia de nvel global no poderia vir

    seno acompanhadas de alguma espcie de controle. Controle tanto na sincronizao da

    produo e circulao de mercadorias em fbricas distantes de suas sedes, quanto na garantia

    do consumo dessas. De maneira que to logo que o meio tcnico-cientfico se assentou j foi

    prontamente adicionado de um mundo de redes comunicacionais sob a forma de cabos

    submarinos, satlites e antenas, forjando o que hoje temos como a cara geogrfica (idem,

    2004, p. 239) do processo de globalizao: o meio tcnico-cientfico-informacional.

    Da anlise do meio tcnico legibilidade da Geografia

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    J se fazem razoavelmente claros alguns dos princpios subjacentes quando algum

    hoje em dia menciona o termo meio tcnico. Obviamente, h possibilidade de haver outras

    leituras e compreenses, porm, como vimos, no h como fugir muito da fonte aqui

    mencionada. Vimos minimamente que meio se relaciona com outros conceitos e tambm

    como se relaciona. Vimos, tambm, como um crescente processo de artificializao vai

    paulatinamente modificando seu contedo e como esse modificar periodizado

    terminologicamente por Santos. No entanto, para atendermos o escopo de compreenso do

    meio tcnico, faltaria ainda uma nica considerao provinda da questo: Como o meio

    tcnico pode aspirar ser um ente analtico e explicativo da sociedade com autonomia frente s

    cincias humanas? Questo essa que em outras palavras se exprime: Qual a legitimidade da

    cincia geogrfica segundo essa concepo terico-metodolgica? A sua resposta necessitar,

    mais uma vez, da boa utilizao do conceito de meio tcnico.

    Declaradamente inspirado pela filosofia de Jean-Paul Sartre (1905-1980), Milton

    Santos deixou implcito em seus escritos uma concepo de homem como ser projetivo, como

    o nico ser na natureza que age segundo um projeto de ordem existencial. Agindo, portanto,

    num mundo anterior a ele. Atuando como um ser fincado no mundo. Projetando-se e, de certa

    forma, realizando um ato de ver-se agindo no futuro. Todavia, sabemos, nem todos os

    projetos se realizam do modo como foram pensados. Pois, se sempre assim o fossem,

    habitaramos um mundo onrico, sem resistncia; um mundo ficcional onde no viveramos,

    mas atuaramos num filme do qual tambm estranhamente estaramos sentados na cadeira do

    diretor. E o que se encontra justamente entre a projeo e o ato o meio ao qual vivemos, ele

    a real resistncia. Assim, ao longo da histria, os seres humanos o enfrentaram e foram,

    pouco a pouco, por tentativa e erro, modificando-o como objetivavam em seus projetos.

    Porm, seus projetos, em concomitncia, eram tambm modificados por conta da resistncia

    gerada pelo meio. Os humanos foram geografando um mundo onde o resultado era

    reconhecido como fruto de um projeto e de uma ao feita por eles. E, como resultado, os

    objetos que os envolviam possuam explicaes histricas e geogrficas. Ou seja, sabiam dos

    objetos de seu meio os porqus que haviam surgido e o porqus que estavam onde estavam.

    Porm, como vimos, para Santos, a inaugurao do meio tcnico acarretou, dentre as suas

    novidades, um incio do estranhamento, que hoje se d a nveis supremos, em relao aos

    objetos dispostos no meio. A maquinizao do territrio instalou prteses cujas explicaes

    foram reservadas hoje para poucos tcnicos, que por suas vezes, sabem at explicar seu

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    funcionamento, mas no tm o real conhecimento sobre os motivos sociais de seus usos.

    Nessa constante artificializao do meio, junto ao espraiamento territorial da diviso do

    trabalho, formas foram surgindo e sendo substitudas na paisagem j sem explicao.

    Exigindo, ainda, aes especficas para suas melhores realizaes. dessa maneira que:

    As aes so cada vez mais precisas e, tambm, mais cegas, porque obedientes a um

    projeto alheio. Em virtude do papel dos objetos tcnicos, a ao cada vez mais

    racional, mas a sua razo , frequentemente, uma razo tcnica. Dentro de uma

    ordem pragmtica, a racionalidade do que fim para outrem acaba sendo a

    racionalidade do meio e no do sujeito (SANTOS, 2004, p. 81).

    Mas, ento, segundo esta passagem, os objetos estariam agindo? O meio estaria agindo? Seria

    isso possvel? Como bem se sabe, a ao propriedade de um sujeito e, portando, no

    poderamos de forma alguma considerar um objeto como um ser agente. No entanto, se de

    fato queremos entender os processos da realidade, no devemos nos contentar com apenas as

    construes lingusticas vigentes. Muito das vezes um raciocnio complexo sofre para

    conseguir ser expresso pelo rano de lgicas mais simples que se assentaram semanticamente

    nos discursos. Neste caso, dizer que os objetos de maneira alguma podem agir dando-se por

    satisfeito com a rplica no mnimo preocupante para a legitimao do discurso geogrfico.

    Afinal, seguindo este raciocnio simplrio, a geografia de um lugar no participaria das aes

    presentes nele; o que acarretaria uma pergunta cuja resposta, podemos facilmente prever, seria

    inevitavelmente desoladora: Para que ento estudar geografia? Se atentarmos bem para isso,

    certamente iremos ver o valor presente na passagem seguinte:

    Objetos no agem, mas, sobretudo no perodo histrico atual, podem nascer

    predestinados a um certo tipo de aes, a cuja plena eficcia se tornam

    indispensveis. So as aes que, em ltima anlise, definem os objetos, dando-lhes

    um sentido. Mas hoje, os objetos valorizam diferentemente as aes em virtude de um contedo tcnico. Assim, considerar as aes separadamente ou os objetos

    separadamente no d conta da sua realidade histrica. Uma geografia social deve

    encarar, de um modo uno, isto , no-separado, objetos e aes agindo em concerto (ibidem, p. 86).

    Antes de tudo, interessante vermos que os limites da linguagem esto presentes nos termos

    postos entre aspas valorizam e agindo. Mas o que de fato devemos nos ater, a

    argumentao a favor da importncia de se considerar o meio ao qual se d a ao. No

    preciso lembrar que vivemos num mundo onde o meio cada vez mais artificializado, ou seja,

    feito por artifcios produzidos por sujeitos. Sujeitos plenos em intenes. Intenes que se

    cristalizam em formas de objetos que aceitam as aes de maneira diferenciada, seletiva.

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    Assim, o trabalho morto materializado no meio ergue-se como dado no passivo na sociedade.

    Justamente porque [...] a prxis inscrita no instrumento pelo trabalho anterior define a priori

    as condutas [...] (SARTRE apud SANTOS, 2004, p. 299), o meio entendido como produto

    social faz-se, ento, como uma entidade explicativa das sociedades. Pois, a [...] cada

    momento, em ltima anlise, a sociedade est agindo sobre ela prpria, e jamais sobre a

    materialidade exclusivamente (SANTOS, 2004, p. 110). Essa idia, transposta sob certas

    modificaes por Santos Geografia, aquela mesma lanada por Sartre em seu Crtica da

    Razo Dialtica; afinal, nas palavras de Santos, [...] podemos dizer que o espao, pelas suas

    formas geogrficas materiais, a expresso mais acabada do prtico-inerte (ibidem, p. 317).

    Consideraes finais

    Dentro do exposto, vimos que se o meio, constitudo inegavelmente de uma ordem

    geogrfica, ganhando cada vez mais intencionalidade, seleciona aes, ento, tambm se faz

    como possibilidade de resposta aos questionamentos contemporneos acerca de uma das

    facetas do fenmeno humano. Este ser, explicado enquanto agrupado em sociedade, seguidor

    de uma cultura, determinado por ordens polticas e econmicas, fruto de um enredo histrico,

    possuidor de uma biologia e psicologia nica; tambm pode ser desvelado como um resultado

    sempre inacabado das relaes necessrias, mediadas pela tcnica, com o meio geogrfico

    constitudo por determinadas formas e contedos. Assim , para Milton Santos, que a

    Geografia, enquanto disciplina acadmica, ganharia um importante quinho de terra nas

    explicaes da ordem humana, bem como, no papel de reconhecimento das inescapveis

    determinaes tecno-mesolgicas que as relaes sociais contemporneas se encontram.

    Referncias bibliogrficas

    GERALDINO, Carlos F. G. O conceito de meio na Geografia. Dissertao (Mestrado em

    Geografia Humana) Departamento de Geografia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010.

    GRIMM, Flvia. Contribuies tericas do gegrafo Milton Santos para pensar o perodo

    tecnolgico. Anais do II ENHPG, So Paulo, 2007.

    SANTOS, Milton. Por uma geografia nova. So Paulo: Hucitec, 1978.

    ______. Tcnica, espao, tempo. 4 ed. So Paulo: Hucitec, 1998.

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    ______. Modo de produo tcnico-cientfico e diferenciao espacial. Revista Territrio. Rio

    de Janeiro, ano IV, n 6, 1999.

    ______. Sade e ambiente no processo de desenvolvimento. Cinc. Sade coletiva, Rio de

    Janeiro, v. 8, n. 1, 2003.

    ______. A natureza do espao. 4 ed. So Paulo: Edusp, 2004.

    SARTRE, Jean-Paul. Crtica da razo dialtica. Trad. Guilherme Joo de Freitas Teixeira e

    apresentao da edio brasileira por Gerd Bornheim. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

    VIDAL DE LA BLACHE, Paul. Princpios de geografia humana. Trad. Fernando Martins.

    Lisboa: Cosmos, 1946.