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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - UFMG FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS - FAFICH PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO EM HISTÓRIA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: CIÊNCIA E CULTURA NA HISTÓRIA O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO NA FÍSICA DE HEINRICH HERTZ: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA Marco Antônio A. Carvalho Orientador: Prof. Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé Belo Horizonte 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - UFMG

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS - FAFICH PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

MESTRADO EM HISTÓRIA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: CIÊNCIA E CULTURA NA HISTÓRIA

O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO NA FÍSICA DE HEINRICH HERTZ: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA

Marco Antônio A. Carvalho

Orientador: Prof. Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé

Belo Horizonte 2007

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Marco Antônio Alves de Carvalho

O CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO NA FÍSICA DE HEINRICH HERTZ: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em História – Área de Concentração: Ciência e Cultura –, ao programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Orientador: Prof. Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé

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AGRADECIMENTOS

Ao professor e orientador Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé pela atenção, desde os tempos do Curso de Especialização, às minhas questões relativas à História da Ciência e pela dedicação e acompanhamento do projeto aqui desenvolvido.

A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais.

A todos os professores da turma de 2004 do Curso de Especialização em História da Ciência, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais.

Ao Prof. Dr. Antônio Júlio de Menezes Neto, à Profa. Dra. Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca e ao Prof. Dr. Orlando Gomes de Aguiar Júnior, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, pelo apoio e incentivo na minha volta à vida acadêmica.

Aos meus familiares, particularmente à minha mãe, Maria do Carmo Alves de Carvalho e à minha sogra, Luiza Santos Diniz de Deus, pelo eterno apoio. De forma muito especial, a meu filho Lucas e à minha esposa Rogéria, pelo incentivo incondicional e pela paciência ilimitada.

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RESUMO:

Heinrich Hertz é reconhecido como um dos importantes cientistas do século XIX, tendo passado

à história da física muito mais como o “descobridor” das ondas eletromagnéticas do que por seu

trabalho de reconstrução axiomática da teoria eletromagnética de Maxwell ou pela sua proposta de

uma nova representação da mecânica na obra The Principles of Mechanics, publicada

postumamente em 1894.

Hertz é também reconhecido por suas idéias nos domínios da filosofia da ciência expostas nas

introduções de Eletric Waves e The Principles of Mechanics. A filosofia da ciência de Hertz

chamou a atenção de alguns filósofos e cientistas do final do século XIX e do século XX, dentre os

quais destaco Max Planck, Ludwig Boltzmann e Ludwig Wittgenstein.

O presente trabalho tem como objeto de estudo a análise do conceito de representação na obra

The Principles of Mechanics do físico alemão Heinrich Hertz (1857-1894) e suas interfaces com a

ciência e a filosofia da ciência do final do século XIX e início do século XX, tomando como

referência a reconstrução axiomática da mecânica elaborada por Hertz na referida obra. Mais

especificamente, tal análise concentra-se na tentativa de estabelecer a relevância da proposta

filosófico-metodológica de Hertz tornada pública às vésperas do período mais crítico do processo

de transição entre a ciência moderna e a ciência contemporânea.

Palavras-chave: Hertz, representações, história da ciência, filosofia da ciência.

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ABSTRACT:

Heinrich Hertz is recognized as one of the most important scientists of the nineteenth century,

having passed to the history of physics much more as the man who “discovered” the

electromagnetic waves of that for its work of axiomatic reconstruction of the electromagnetic theory

of Maxwell or for its proposal of a new representation of the mechanics in the workmanship The

Principles of Mechanics, published after his death in 1894.

Hertz is also recognized for its ideas in the domain of philosophy of science displayed in the

introductions of Eletric Waves and The Principles of Mechanics. The philosophy of science of

Hertz called the attention some philosophers and scientists of the end of the nineteenth century and

the beginning of the twentieth century, amongst which I detach Ludwig Boltzmann, Ludwig

Wittgenstein and Erwin Schrödinger.

The present work has as study object the analysis of the concept of representation in the

workmanship The Principles of Mechanics of the German physicist Heinrich Hertz (1857-1894) and

its relationship with the science and the philosophy of science of the end of the nineteenth century

and the beginning of the twentieth century, taking as reference the axiomatic reconstruction of the

mechanics elaborated by Hertz in the related workmanship. More specifically, such analysis is

concentrated in the attempt to establish the relevance of the philosophical proposal of Hertz, wich

becomes public at the eves of the most critical period of the process of transition between modern

science and contemporary science.

Keywords: Hertz, representation, history of science, philosophy of science.

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SUMÁRIO

1. Apresentação ..........................................................................

2. Capítulo I: Ciência e filosofia no século XIX I.1. Introdução .................................................................. I.2. Alguns aspectos sobre a polêmica do éter ................. I.3. Ernst Mach e o conhecimento físico no século XIX ..

3. Capítulo II: A mecânica de Hertz II.1. Introdução ................................................................. II.2. A primeira representação da mecânica...................... II.3. A segunda representação da mecânica ..................... II.4. A mecânica de Hertz ................................................

4. Capítulo III: A filosofia da ciência de Heinrich Hertz III.1. Introdução ................................................................ III.2. A filosofia da ciência de Hertz ................................ III.3. Comentários sobre algumas das repercussões da filosofia da ciência de Hertz ................................... III.3.1. Heinrich Hertz e Ludwig Boltzmann ......... III.3.2. Heinrich Hertz e Ludwig Wittgenstein ...... III.3.3. Erwin Schrödinger e os modelos teóricos ..

5. Comentários finais .................................................................

6. Bibliografia de referência ......................................................

01

12 16 25

37 39 42 46

55 59

85 85 88 92

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APRESENTAÇÃO

O presente trabalho tem como objeto de estudo a análise do conceito de representação na

obra The Principles of Mechanics do físico alemão Heinrich Hertz (1857-1894) e suas interfaces

com a ciência e a filosofia da ciência do final do século XIX e início do século XX, tomando como

referência a reconstrução axiomática da mecânica elaborada por Hertz na referida obra. Mais

especificamente, tal análise concentra-se na tentativa de estabelecer a relevância da proposta

filosófico-metodológica de Hertz tornada pública às vésperas do período mais crítico do processo

de transição entre a ciência moderna e a ciência contemporânea. Transição entre uma época cujo

marco inicial é associado à duradoura adesão ao ‘ideal baconiano da boa ciência’ e outra, marcada

pela desconfiança das garantias oferecidas por este mesmo ideal após os abalos nos alicerces da

física newtoniana (FREITAS, 2005, p. 42); entre a concepção filosófica de Galileu de que ‘o mundo

objetivo coincide com o universo de tudo aquilo que é’ (ROSSI, 1992, p. 16) e os modelos (bild)

teóricos de Schrödinger que obrigam à ‘renúncia a uma descrição do que a natureza realmente é’

(D’AGOSTINO, 2004, p. 384); enfim, entre a ascensão e a ‘oposição à idéia de racionalidade

científica moderna erigida a partir do século XVII por cientistas como Galileu e Newton e filósofos

como Descartes, Bacon e Kant’ (CONDÉ, 2004, p. 2).

A concepção tradicional de ciência empírica foi inaugurada por Francis Bacon (1561 –

1626) no século XVII e a metodologia para a obtenção de leis científicas por ela sistematizada

pode, grosso modo, ser resumida da seguinte maneira: observações, acúmulo de dados, constatação

de traços de ordem geral, formulação de hipóteses gerais, confirmação das hipóteses através de

verificações experimentais e, finalmente, em caso de sucesso nos procedimentos de verificação,

estabelecimento de uma lei científica (MAGEE, 1977, P. 21). Enganos devem ser evitados

mantendo-se a mente a salvo das armadilhas da percepção e imune às influências de sentimentos

subjetivos e de fatores sócio-culturais (FREITAS, 2004, p. 1).

O ponto de partida dos empiristas é a observação, a qual deve ser neutra, indubitável,

localizada no tempo e no espaço. A observação gera um enunciado particular. A quantidade e a

variedade de observações permitem a passagem de enunciados particulares para enunciados

universais. A passagem de enunciados particulares para enunciados universais levada a termo de

acordo com os critérios estabelecidos é denominada indução e pressupõe uma regularidade da

natureza: admite que o futuro se assemelhará ao passado em todos os aspectos em que as leis

operam (MAGEE, 1977, p. 22).

No entanto, não há maneira pela qual este pressuposto possa ser garantido e estabelecido

com base em argumentos lógicos, uma vez que ‘do fato de futuros passados se terem assemelhado

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a passados passados não deflui que todos os futuros venham assemelhar-se aos passados futuros’

(MAGEE, 1977, pp. 22-23). Tal dificuldade impossibilita a demonstração das leis científicas, o que

força os empiristas a não mais considerá-las verdadeiras, mas prováveis, probabilidade que cresce

com o número de verificações destas leis. De qualquer forma, os princípios baconianos e,

especialmente, o método indutivo passaram a ser considerados critério de demarcação entre ciência

e não-ciência e ‘nada menos que Newton e, posteriormente, Darwin disseram-se tributários dessa

concepção’ (FREITAS, 2005, p. 42).1

Por outro lado,

Galileu declara que a verdade se nos apresenta de forma evidente no grande livro da natureza, mas só pode descobri-la aquele que está familiarizado com os símbolos da escrita em que esta verdade se encontra cifrada. Estes símbolos são, segundo ele, símbolos geométricos: linhas e ângulos, triângulos, circunferências e outras figuras. Não é possível chegar a conhecer nenhum fenômeno da natureza se não se sabe construí-lo geometricamente. (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 122).

Rossi (1992, p. 17), citando Horkheimer e Adorno, afirma que ‘a matematização galileana

da natureza reifica-se num processo automático’ e que ‘ao longo do caminho para a nova ciência,

os homens renunciam ao significado.’ O ideal de conhecimento de Galileu encontra legitimação

lógica na filosofia de Descartes (1596 – 1650) na qual o conceito de espaço ocupa um lugar central

(CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 122).

A tendência de matematização da filosofia natural se consolida com Isaac Newton (1643 –

1727). De acordo com Burtt (1983, p. 23), ‘Newton foi o homem que tomou termos vagos como

força e massa e deu-lhes significados precisos como contínuos quantitativos, de tal modo que,

através de seu uso, os fenômenos principais da física tornaram-se redutíveis ao tratamento

matemático.’ A concepção newtoniana de uma natureza mecânica – segundo a qual os fenômenos

naturais são redutíveis a massas em movimento sob a ação de forças – possibilitou ao cientista levar

a cabo, de forma extraordinária, a referida matematização. Mas Burtt atribui a Newton uma outra

responsabilidade:

Quanto à ciência pré-newtoniana, ela constitui um movimento único com a filosofia pré-newtoniana, tanto na Inglaterra quanto na Europa continental; a ciência era simplesmente a filosofia natural e as figuras influentes desse período eram também os grandes cientistas. É ao próprio Newton que se deve, basicamente, a distinção que chegou a produzir-se entre as duas; no essencial, a filosofia passou a deixar a ciência de lado... (1983, p. 22).

1 O problema da indução foi exaustivamente discutido na filosofia. Um dos mais destacados pensadores que abordaram este problema foi Karl Popper, o qual rejeita a indução e critica o método indutivo com o objetivo de propor um novo conceito de ciência empírica através de um critério de demarcação logicamente fundamentado. Segundo o autor, o critério adotado pelos empiristas ao aceitarem como científicos apenas os enunciados redutíveis a enunciados elementares da experiência – o que ‘é idêntico à exigência de uma lógica indutiva’ – é insuficiente, já que a indução não se apóia em bases lógicas, além de tornar metafísicas as leis naturais. Sobre o assunto, ver POPPER, K. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Edusp/Cultrix, 1975.

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No entanto, a afirmação de Burtt deve ser considerada com cautela. De acordo com Cassirer,

havia, no Principia, uma preocupação, de caráter filosófico, com a normatização metodológica:

Newton agrega à sua obra mestra um capítulo especial no qual intenta reduzir a regras seguras o modo de formação de conceitos em física e determinar a função e os limites desta operação. Tampouco ele se limita a refletir sobre o objeto, estendendo, também, suas reflexões ao método das ciências da natureza: ao lado dos princípios matemáticos da teoria da natureza aparecem, como complemento necessário e parte integrante do sistema total, as Regulae philosophandi. A filosofia não só se enlaça com todas as aspirações, mas também as resume e sintetiza. Trata de defendê-las sistematicamente e de justificá-las criticamente. Desta tendência nasceu a Crítica da razão pura de Kant (vol. IV, 1986, pp. 102-103).

No século XVIII e até meados do século XIX, os princípios newtonianos sintetizavam o

‘ideal da boa ciência’ ou mesmo, a demarcação entre ciência e não-ciência. Procurava-se estender a

aplicação do modelo de Newton para a mecânica aos demais domínios da física e acreditava-se que

o mecanicismo seria a única possibilidade de compreensão da natureza (CASSIRER, pp. 106 e

109).

Ao longo da história, modos diferentes de ver o mundo e de conceber o conhecimento

entrelaçam-se e, de forma subjacente ou determinante, acabam por balizar as propostas

metodológicas para a ciência. Segundo Burtt (1983. pp. 10-18), ‘o conhecimento não era um

problema para a filosofia dominante na Idade Média’, o ser humano ocupava uma posição

destacada e determinante diante de uma natureza passiva e subserviente, inteligível para aquele que

procurasse compreendê-la. Mas, aos poucos, ‘o trono de Deus’ foi sendo deslocado,2 o universo foi

se transformando em uma imensa máquina perene que opera por si só, e frente a esta natureza,

agora determinante e permanente (BURTT, 1992, p. 11), o ser humano se torna ‘um espectador

irrelevante de seus feitos, quase um intruso em seus domínios’ (Ibidem, p. 17). Mais tarde, ao final

da primeira metade do século XIX, a teoria da evolução de Darwin, de certa forma, põe um fim à

distinção entre homem e natureza.

O possível pessimismo existencial provocado pelo ‘descentramento do homem’3 ocorrido a

partir do século XVII foi substituído pela esperança na racionalização do mundo que atinge seu

ápice no iluminismo do século XVIII (CONDÉ, 2004, p.17.). Até o século XIX, a física clássica,

por exemplo,

Está convencida de que a razão e a experiência são capazes de penetrar na essência das coisas e de que estas se vão descobrindo, paulatinamente, diante de nós. Jamais se põe seriamente em dúvida, aqui, o valor ontológico das teorias físicas, por muito que estas se diferenciem por seu conteúdo (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 122).

2 KUHN, T. S. The Copernican revolution. Cambridge: Harvard University Press, 1957, p. 114. 3 CONDÉ, 2004, p.17.

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Rossi (1992, p. 17) declara, citando novamente Horkheimer e Adorno, que ‘o Iluminismo

ignorou a exigência clássica de pensar o pensamento’. Se assim foi, pode-se dizer que a postura

dos pensadores do século XIX em relação ao problema se mostrou bastante diferente. Nos estudos

históricos sobre os aspectos culturais do referido século, frequentemente nos deparamos com

alusões à singular riqueza e diversidade características da atividade intelectual naquele período,

especialmente no que se refere ao conhecimento científico. Para alguns autores, tais expressões de

admiração, são justificáveis se considerarmos que grande parte das principais idéias colocadas em

circulação à época viriam “caracterizar a ciência contemporânea, dando uma nova perspectiva

para a própria concepção de racionalidade científica”.4

Nas ciências naturais, é o século das idéias de Darwin, Helmholtz, Mach, Boltzmann e de

um sem número de cientistas e pensadores. Na física, o “antigo ´realismo´ é desalojado por um

´fenomenismo´ que não discute somente a possibilidade de solução, mas também o sentido, a razão

de ser de determinados problemas de que o pensamento físico vinha se ocupando” (CASSIRER,

vol. IV, 1986, p. 105).

Para Freitas,5 diante do sucesso inconteste da física newtoniana por mais de dois séculos, a

‘epistemologia se perguntava como Newton alcançara a verdade’. Em face das limitações da física

newtoniana, expostas no final do século XIX, a pergunta passa a ser a seguinte: “se não há um

método científico que conduz à verdade, então que privilégio – se é que existe algum – o

conhecimento científico pode ter sobre outras formas de conhecimento?”6

Creio que uma parcela da comunidade científica do século XIX concordaria, pelo menos em

parte, com a questão colocada por Freitas e debruçou-se sobre o problema. Apesar de convencidos

da posição privilegiada da ciência em relação às demais formas de conhecimento, alguns dos

cientistas da época tomaram para si a responsabilidade da reflexão crítica demandada pelos

tremores nos pilares da física clássica. Assim é que se pode observar nos trabalhos de Helmholtz,

Hertz, Boltzmann, Mach e muitos outros7 uma preocupação com a análise epistemológica ou com a

normatização metodológica.

Ao longo do século XIX, os diferentes pontos de vista sob os quais se efetivaram tais

reflexões críticas resultaram em acalorados debates em torno de alguns temas fundamentais para o

4 CONDÉ, M. L. L., “Wittgenstein e a Gramática da Ciência”. In. Unimontes Científica. Vol. 6. N° 1, jan/jun, 2004. 5 FREITAS, R. S. “A que vem uma abordagem pragmática da ciência? In: A ciência e seus impasses. Fiocruz: Rio de Janeiro, 1999, p. 53. 6 Ibidem. 7 De acordo com Cassirer, nem mesmo os realistas conseguiram escapar à análise epistemológica (1986, vol. IV, p. 103).

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desenvolvimento da física: ações a distância versus ações mediatizadas, conceito de causa e efeito

versus conceito de função,8 hipóteses versus descrição matemática dos fenômenos, etc.

Mas, se não se pode deixar de atribuir a devida importância a cada uma destas disputas

específicas, não se deve, tampouco, ignorar sua condição de tópicos da pauta de uma questio

disputata9 muito mais ampla e que pode ser, grosso modo, resumida da seguinte forma: qual

‘deveria ser o conceito e a missão da ciência natural’ (MARTINS, 1998, p. 113), que concepção

metodológica deveria ser adotada pelos cientistas do século XIX diante de uma natureza que se lhes

apresentava cada vez mais diversa, multifacetada?

O cerne da disputa por uma resposta hegemônica à referida questão é sintetizada da seguinte

maneira pelo cientista Georg Helm (1851 – 1923):

A disputa10... não gira, propriamente, em torno do atomismo ou da plenitude contínua do espaço, dos sinais de desigualdade na termodinâmica ou da fundamentação energética da mecânica; tudo isso não passa de detalhes. O que aqui se ventila, em última instância, são os princípios que presidem o nosso conhecimento da natureza (apud CASSIRER, 1986, p. 121).

Certamente que esta não foi uma preocupação exclusiva do século XIX: Galileu e Newton,

por exemplo, basearam suas investigações dos fenômenos naturais em concepções firmemente

estabelecidas do que poderia e deveria ser o conhecimento científico (CASSIRER, 1986, pp. 102-

103).

Porém, os problemas que a natureza, as transformações culturais e as novas possibilidades

disponibilizadas pela própria ciência vinham impondo à comunidade científica no século XIX

levaram os cientistas a questionar, com uma intensidade inédita, o conceito e a possibilidade de seu

objeto de estudos (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 106). De acordo com Cassirer, se perguntássemos

“a Mach e a Planck, a Boltzmann e a Ostwald, a Poincaré ou a Duhem o que é uma teoria física e

o que ela pode prover, obteríamos respostas diferentes, senão opostas” (1986, pp. 105-106).

Mas, a que vêm as breves considerações sobre as relações entre ciência, metodologia e

concepção do conhecimento feitas até aqui? Apesar de não compartilhar do ponto de vista de que a

história da ciência se resume à história do método científico,11 dedico parte deste trabalho ao estudo

da ferrenha disputa metodológica ocorrida no século XIX, a qual influencia e motiva a obra de

Hertz. Para isso, adoto, sem levantar questionamentos – o que extrapolaria os limites deste trabalho

– duas das premissas identificadas por Rossi (1992, p. 121) nos trabalhos de cunho filosófico-

8 MACH, 1960, p. 325. 9 Tomo o termo emprestado de Koyré (1982, p. 56). 10 Helm refere-se à repercussão da conferência proferida por Ostwald (1853 – 1932) em um congresso de médicos e cientistas alemães realizada na cidade de Lubeck, em 1895. Para Helm, esta conferência foi o marco inicial da oposição radical entre mecanicistas e energetistas. 11 Rossi (1992, pp. 121-123) afirma que diversos historiadores da ciência do século XX adotaram tal perspectiva.

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historiográfico de pensadores como Cassirer:12 “1. existe uma entidade unitária denominada

‘ciência moderna’; 2. existe um método (formulável com relativa clareza) que seria o método da

ciência moderna.”

À primeira vista, a segunda premissa parece contradizer a proposta de estudo de uma disputa

metodológica na física do século XIX. No entanto, esta premissa pode ser flexibilizada pela

perspectiva do próprio Rossi:

Alternativas, escolhas entre teorias, entre modos diferentes de ver o mundo e de entender a ciência estão sempre em ação em toda a história da ciência. Nela estão presentes cânones explicativos variáveis, métodos diversos, tradições de pesquisa diferentes e contrastantes, imagens diversas e às vezes opostas da ciência. Baconismo, galileísmo, cartesianismo, newtonismo, leibnizianismo, como o termo aristotelismo, são certamente etiquetas que recobrem tendências e problemas diversos: são entidades não facilmente isoláveis, variáveis no tempo, mas são sem dúvida também programas ou tradições filosóficas e científicas em competição entre si. Em torno desses programas (ou, se preferirmos, metafísicas), que implicam modos diferentes de conceber a ciência e de praticá-la, são construídas e consolidadas, no início da Idade Moderna, as novas ciências da natureza (1992, pp. 122-123).

Uma outra questão pode ainda ser levantada: “Privilegiar os métodos e a epistemologia não

significa acreditar que a ciência... é apenas (ou predominantemente) o resultado da aplicação de

uma metodologia?” (ROSSI, 1992, p. 124).

Para Thomas Kuhn ‘a ciência é a propriedade comum de um grupo’.13 Uma tal perspectiva,

segundo Stengers,14 preserva ‘a autonomia de uma comunidade científica em relação ao seu

ambiente político e social’, garante à ciência uma espécie de ‘extraterritorialidade’, 15 além de

desconsiderar ‘a idéia de que a cultura é uma totalidade, ou pelo menos que as ligações entre as

diferentes artes e disciplinas são extremamente importantes’.16

Segundo Latour, a ciência retira sua autoridade de jogos de poder, nos quais leva vantagem

por contar com ‘uma linguagem particularmente eficaz para aliciar os demais: a linguagem dos

resultados experimentais, dos gráficos e das tabelas’, produzidos nos confiabilíssimos e

inquestionáveis laboratórios.17

Stengers18 propõe a utilização do registro político para descrever as ciências.

12 É importante ressaltar que Rossi identifica tais premissas na sua crítica ao ‘mito historiográfico’ da continuidade entre a escola de Aristóteles e a ciência moderna (1992, p. 121). 13 STENGERS, I. A Invenção das Ciências Modernas. São Paulo: Editora 34, 2002, p.13 14 Ibidem. 15 Ibidem, p. 16. 16 BURKE, P. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p.34. 17 FREITAS, R. S. “A que vem uma abordagem pragmática da ciência? In: A ciência e seus impasses. Fiocruz: Rio de Janeiro, 1999, p. 64. 18 STENGERS, I. A Invenção das Ciências Modernas. São Paulo: Editora 34, 2002, p.29.

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Condé percebe uma espécie de crise da razão na cultura contemporânea, ao considerar que

“o mundo contemporâneo comporta não apenas múltiplas interpretações do real, mas também uma

espécie de suspeita do lugar a partir do qual essas interpretações são construídas, isto é, da

própria idéia de razão”.19 Para a abordagem desse problema, o autor oferece como alternativa a

intrincada “teia” constituída a partir da noção wittgensteiniana de gramática, em que a

compreensão da racionalidade passa pela consideração de aspectos biológicos, culturais,

pragmáticos, etc.

Tomando como exemplo Galileu Galilei, Koyré (1982, pp. 259-270) propõe que as

convicções científicas do cientista são plenamente coerentes com sua atitude estética e tanto esta

quanto aquelas guardam relação com o ambiente familiar, social e histórico em que Galileu

conviveu.20

Mas, seja na elaboração de uma teoria científica ou na reflexão crítica sobre esta mesma

teoria, acredito, com Poincaré, que “cada um carrega consigo sua concepção de mundo da qual

não se pode desfazer assim tão facilmente” (1984, p. 116). Creio, ainda, que tal concepção é

conformada por nossas interações (de caráter biológico e cultural) com o mundo, as quais se dão

por meio de uma trama (ou teia, como prefere Condé) cujos fios multiderecionados representam os

contatos com os aspectos filosóficos, científicos, éticos, estéticos, ideológicos, etc. e das relações

que estabelecemos entre estes aspectos.

Diante da impossibilidade de mapear a emaranhada teia na qual se encontra a mecânica de

Hertz, limito-me à tentativa de esboçar a direção de alguns de seus fios que foram se constituindo e

trançando ao longo do século XIX. Essa estratégia pode ser útil para a compreensão do valor do

trabalho de cunho filosófico-metodológico de Heinrich Hertz em meio à conturbada cena em que se

desenvolviam os debates científicos do final daquele século. Para tanto, dividirei este trabalho em

três capítulos.

No primeiro capítulo, objetivando situar o contexto em que se desenvolveu e repercutiu o

trabalho de Hertz, faço um breve relato dos ambientes científico e filosófico do século XIX,

detendo-me de forma mais demorada nas tensões resultantes de alguns dos principais debates

ocorridos nestes ambientes. Nesse capítulo, focalizo, primeiramente, o problema do éter – ‘el

verdadero hijo doliente de la teoría mecánica’ (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 111) –, tomando

como base as perspectivas de Maxwell e Helmholtz, dois proeminentes representantes de posições

antagônicas nesta polêmica. A escolha destes dois cientistas não se deu apenas por critério de

19 CONDÉ, M. L. L., As Teias da Razão: Wittgenstein e a Crise da Racionalidade Moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2005. 20 Esta referência a Koyré deve ser tomada com reservas, uma vez que o próprio autor desconsidera tais fatores em seus trabalhos sobre a história do pensamento.

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notabilidade, mas também pela estreita relação de seus trabalhos com o de Heinrich Hertz. As

pesquisas experimentais realizadas por Hertz na comparação entre as teorias eletromagnéticas de

Maxwell e Helmholtz resultaram na contribuição científica pela qual ele é mais conhecido: o

estabelecimento das ondas eletromagnéticas. Por fim, o compromisso de Hertz com o programa do

éter – fortalecido pelos resultados experimentais obtidos no estudo do eletromagnetismo – e sua

intenção de engendrar um modelo abrangente para ações mediatizadas por um éter hipotético

caracterizam de forma marcante os conteúdos filosófico e científico de The Principles of

Mechanics. Em seguida, introduzo alguns aspectos do pensamento de Ernst Mach relacionados a

questões relevantes para a compreensão da obra de Hertz, uma vez que não são raras as alusões

mútuas às obras de um e de outro. Além do mais, a escolha do pensamento de Mach como

referência privilegiada é justificada pela opinião de autores, como Janik e Toulmin, para os quais

Mach foi ‘um cientista que, como poucos, exerceu tão grande influência sobre sua cultura’ (1973,

p. 133) e de Cassirer para quem ‘com ele [Mach] a física parece entrar em uma nova fase de sua

trajetória epistemológica, fase que chegou a ser considerada, com freqüência, não só como um

progresso importante, mas também como sua forma definitiva’ (vol. IV, 1986, p. 117). Os

pensamentos de Hertz e Mach convergem em determinados aspectos e divergem completamente em

outros. O mesmo ocorre quando se considera as concepções científicas e epistemológicas de

Boltzmann – um opositor das idéias de Mach ao qual me refiro de maneira muito breve nesse

primeiro capítulo – em relação às de Hertz. E esta talvez seja a chave para a confirmação de Hertz

como uma figura de transição em uma época de transição.

Para melhor situar historicamente e culturalmente o caráter biológico do pensamento de

Mach, julguei útil discorrer, de forma resumida, sobre a teoria da evolução de Darwin e algumas

formas de apropriação desta teoria, embora alguns autores, como, por exemplo, D’Agostino (2004)

considerem que a origem da concepção psicofísica do conhecimento adotada por Mach encontre

suas raízes na epistemologia de Helmholtz – fundamentada em investigações de cunho fisiológico –

e o próprio Mach se declare tributário das idéias de Fechner e Avenarius (JANIK E TOULMIN,

1973, pp. 134-135). No entanto, as impressões deixadas pelo evolucionismo na concepção

epistemológica de Mach (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 115) são inegáveis.21 Também com o

propósito de estabelecer um pano de fundo para a cena cultural do século XIX, são mencionados

21 Certamente que Mach não foi o único pensador a incorporar os preceitos evolucionistas à teoria do conhecimento. Em um determinado momento de sua trajetória científica, Boltzmann – tomado aqui como exemplo em razão das interseções entre sua concepção de ciência e a de Hertz – adota uma ‘epistemologia de tipo evolucionária (influenciado por Darwin)’ e, passa a endossar a perspectiva de que nossa maneira de pensar é modificada ao longo da história (ABRANTES, 1992, P. 371).

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alguns aspectos relativos às transformações que vinham ocorrendo no mundo de língua inglesa e

aos sistemas idealistas da filosofia alemã.

Para complementar o estabelecimento do contexto a partir do qual será elaborada a análise

da obra de Hertz enfocada neste trabalho, esse primeiro capítulo é encerrado com rápidas

considerações a respeito da atenção de intelectuais e cientistas do final do século XIX ao estudo das

representações – síntese da concepção hertziana de teoria científica e cerne da proposta filosófico-

metodológica apresentada em The Principles of Mechanics – destacando a origem kantiana do

termo representação e suas implicações nas questões referentes à linguagem e quaisquer outros

meios de expressão.

O segundo capítulo é dedicado a considerações sobre a mecânica de Heinrich Hertz. Nele

enfatizo a análise crítica de Hertz das representações tradicionais da mecânica (newtoniana e

energetista), em que o autor expõe seu ponto de vista sobre os elementos problemáticos presentes

nos princípios fundamentais das referidas representações. Em seguida, apresento a proposta de

Hertz para uma nova representação da mecânica, abrindo mão de discorrer minuciosamente sobre

seu conteúdo físico, para contemplar os pontos em que a proposta hertziana enceta tentativas de

solucionar os problemas apontados nas duas primeiras representações. Para que as críticas e as

proposições de Hertz possam ser mais bem compreendidas, inicia-se esse segundo capítulo com a

apresentação de alguns aspectos da concepção de Hertz sobre o conhecimento físico22 e a exposição

dos critérios adotados pelo cientista para a análise das representações científicas das imagens dos

fenômenos naturais.

Nas críticas à representação newtoniana da mecânica fica claro que o conceito de força

constitui-se no principal incômodo para Hertz23. Segundo o cientista, a diferença entre as

concepções de força utilizadas na primeira e na segunda leis de Newton constitui-se em uma

obscuridade lógica inconcebível. Além do que, Hertz não é partidário das ações a distância

pressupostas no modelo newtoniano24. Também os princípios matemáticos utilizados na descrição

dos fenômenos mecânicos, como o de d’Alembert, são alvo da apreciação desfavorável do cientista.

Em certas passagens de The Principles of Mechanics Hertz demonstra certa admiração pela

representação energetista da mecânica. No entanto, suas críticas à aplicação dos princípios de

mínimo, tão proeminentes nesta imagem da mecânica, são implacáveis. A insatisfação do cientista

com a definição do conceito de energia é menos severa, mas relevante. Portanto, a apresentação do

22 A concepção de Hertz a respeito do conhecimento físico será analisada de forma mais detida no Capítulo III. 23 MACH, 1960, p. 321; POINCARÉ, 1984, p. 131. 24 ABRANTES, 1992, p. 373.

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ponto de vista de Hertz sobre a representação energetista da mecânica feita nesse segundo capítulo

gira em torno, principalmente, destes dois aspectos.

Por fim, apresento a mecânica de Hertz e suas repercussões. Quanto ao conteúdo físico da

reconstrução axiomática proposta pelo cientista, os principais aspectos ressaltados são: a escolha

das concepções fundamentais das quais parte a representação hertziana como forma de evitar as

concepções ‘problemáticas’ de força e energia; a sua ‘lei fundamental’ que, de certa forma, além de

representar uma novidade, é a referência mais conhecida e permanente da mecânica de Hertz

através do princípio de menor curvatura (MOREIRA, 1995, p. 40); as alternativas proporcionadas

pela lei fundamental aos enunciados do princípio da conservação da energia, do princípio de

Hamilton e à caracterização da força como causa do movimento; a coerência entre a forma em que

os princípios da mecânica são desenvolvidos e a proposta metodológica de Hertz; e a inclusão da

hipótese de massas ocultas, talvez o aspecto mais ousado e distinto do conteúdo científico de The

Principles of Mechanics. De maneira geral, as considerações a respeito do conteúdo físico da

mecânica hertziana servirão como suporte à análise da filosofia da ciência de Heinrich Hertz.

É dessa análise da filosofia da ciência de Hertz que se ocupa o terceiro capítulo.

Inicialmente, procuro identificar os elementos kantianos25 na concepção do conhecimento adotada

por Hertz. As implicações da filiação kantiana do cientista são analisadas a partir da comparação

com a concepção biológica do conhecimento de Ernst Mach26. A relevância e as repercussões na

física da filosofia hertziana da ciência expostas na introdução à The Principles of Mechanics e de

sua concepção das teorias científicas como representações (bild) são, então, examinadas à luz das

análises de autores como Cassirer (1986) e D’Agostino (2004): da Bild conception “isomórfica” de

Hertz, passando pela defesa intransigente de Boltzmann da inclusão de hipóteses que ‘vão muito

além dos fatos’ (D’AGOSTINO, 2004, p. 380) – concepções que se contrapõem ao empirismo

antimetafísico de inspiração machiana que vai se tornando dogmático no início do século XX –

chega-se aos modelos inevitavelmente “não isomórficos” de Schrödinger (D’AGOSTINO, 2004, p.

385) propostos em meio aos debates epistemológicos ocorridos posteriormente aos trabalhos de

Planck e Einstein, considerados os marcos fundadores da chamada Física Moderna.

25 Janik e Toulmin (1973) caracterizam a concepção do conhecimento de Hertz como neokantiana. Já D’Agostino (2004, p. 380), considera que certas posições de Hertz – em relação, por exemplo, às concepções de tempo espaço – refletem sua adesão a um ‘kantianismo ortodoxo.’ 26 A ênfase aos aspectos kantianos do pensamento de Hertz não implicam em considerar que a concepção do conhecimento do cientista ou seu ponto de vista sobre o significado das teorias científicas sejam exclusivamente derivados das idéias de Kant. No entanto, as dificuldades em se estabelecer com clareza uma identificação entre a postura de Hertz diante do conhecimento científico e uma corrente qualquer de pensamento com características razoavelmente bem definidas – como mostram os trabalhos de Abrantes (1992) e Moreira (1995) – tornam a atenção à sua filiação à tradição kantiana um ponto de partida seguro para a análise pretendida.

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Finalmente, detenho-me na análise da influência do conceito hertziano de representação na

obra Tractatus Logico-Philosophicus, na qual seu autor, o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein,

desenvolve uma ‘teoria modelo da linguagem’ com o objetivo de demonstrar a possibilidade de

uma linguagem representacional (JANIK e TOULMIN, 1973, p. 181). As investigações das

relações entre The Principles of Mechanics e o Tractatus Logico-Philosophicus abrangem os

prováveis atrativos identificados por Wittgenstein na obra de Hertz, dentre eles, a possibilidade

oferecida pela metodologia proposta pelo físico alemão de ‘expor a natureza e os limites da

linguagem em termos de sua estrutura’ (Ibidem), sem que fosse necessário recorrer a uma

metalinguagem, e a concepção hertziana de modelos dinâmicos.

Como disse anteriormente, limito-me, neste trabalho, à tentativa de esboçar a direção de

alguns dos fios da teia na qual se insere a mecânica de Heinrich Hertz. Para tanto, optei por rastrear,

preferencialmente, alguns dos fios de cunho filosófico-científico que foram se constituindo e

trançando ao longo do século XIX e outros que alcançaram o século XX. O critério utilizado para

delimitação da extensão bibliográfica fundamentou-se na intenção de evitar conclusões

determinadas por relações estabelecidas de forma especulativa entre as concepções de Hertz e as

daqueles que o precederam e sucederam. Tal estratégia, embora conservadora, foi adotada com a

firme intenção de apresentar uma imagem, com a nitidez possível, do conceito de representação na

física de Heinrich Hertz.

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CAPÍTULO I – CIÊNCIA E FILOSOFIA NO SÉCULO XIX

I.1. INTRODUÇÃO

Caracterizado por alguns autores como ‘um momento extraordinário na cultura ocidental’1 e

‘´época de ouro` da ciência’,2 o século XIX foi um período de efervescência intelectual em que

idéias firmemente estabelecidas foram discutidas e criticadas, ao mesmo tempo em que se

constituíram novas idéias a partir de novas fundamentações.

Este é, também, sob a inspiração da filosofia alemã - especialmente o sistema de Hegel -, o

‘século da história’,3 o século em que se procura, através da história, explicar o presente e projetar o

futuro. Na oposição à disseminação generalizada deste ‘historicismo’,4 encontravam-se,

principalmente, alguns revisores de Kant, como, por exemplo, Arthur Schopenhauer (1788 –

1860).5

Filosofia e ciência têm seu divórcio decretado6 e, nesse processo, a ciência abre mão da

parte do patrimônio conjuntamente construído relativo a idéias de inspiração transcendental e

metafísica.

Em 1859, Charles Darwin (1809 – 1882) publica sua teoria da evolução através da obra

intitulada A Origem das Espécies. Em apenas uma década após a publicação do livro, a

intelectualidade convenceu-se da existência do evolucionismo (GOULD, 1999, p. 1), apesar de seu

conteúdo revolucionário. Segundo o próprio Darwin, ela “revolucionaria o estudo dos instintos, da

hereditariedade e da mente e transformaria toda a metafísica” (apud DESMOND e MOORE,

1995, p. 256-257).

Surgem as lógicas não-clássicas e as ciências humanas. Na matemática, destacam-se o

surgimento das geometrias não-euclidianas, a criação por Hamilton das álgebras não-comutativas e

por Grassmann da álgebra linear, além do estabelecimento da independência da matemática em

relação ao mundo físico “real” sob a influência da obra de Cantor.

Na física deve-se ressaltar o surgimento e o desenvolvimento da Termodinâmica, a

enunciação do Princípio da Conservação de Energia, o estudo da relação entre fenômenos elétricos

e magnéticos - e a conseqüente proposição de várias teorias eletromagnéticas -, o fortalecimento da

1 CONDÉ, M. L. L., “Wittgenstein e a Gramática da Ciência”. In. Unimontes Científica. Vol. 6. N° 1, jan/jun, 2004. 2 ÉVORA, F. R. R. (Ed.), Século XIX: O Nascimento da Ciência Contemporânea. Campinas, 1992. 3 KOYRÉ, A., Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1982. 4 CASSIRER, E., El Problema del Conocimiento, IV. México: Fondo de Cultura Econômica, 4ª reimpressão, 1986. 5 De acordo com Janik e Toulmin (1996, pp. 150 e 211), Schopenhauer opunha-se à transformação da filosofia crítica ‘nos grandiosos sistemas idealistas do início do século’ [XIX]. 6 ÉVORA, F. R. R. (Ed.), Século XIX: O Nascimento da Ciência Contemporânea. Campinas, 1992.

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teoria ondulatória da luz, a intensificação das polêmicas relativas ao éter,7 os debates entre

energetistas e mecanicistas, o surgimento da mecânica estatística.

Em busca de uma teoria fundamental que desse conta de todos os fenômenos naturais, os

assim chamados energetistas, com base nos sucessos obtidos nos estudos da termodinâmica,

defendiam que estes fenômenos poderiam ser entendidos exclusivamente em termos de trocas de

energia, fazendo-se total abstração da estrutura da matéria. Por outro lado, os mecanicistas

preconizavam o entendimento da natureza em termos de matéria em movimento “e muitos deles

não teriam hesitado em especificar que esse movimento seria o dos átomos”.8

Apesar de ainda hegemônico,9 o modelo newtoniano é alvo de críticas em relação a alguns

de seus aspectos,10 principalmente, por conter em sua formulação a incômoda idéia de ação a

distância. Além do mais, os limites da mecânica de Newton começam a ser expostos mediante o

estudo de determinados fenômenos, especialmente os eletromagnéticos,11 sem, no entanto, abalar a

confiança dos pesquisadores numa teoria que havia resistido aos mais duros testes durante mais de

dois séculos.

Um caso exemplar da confiança no caminho pavimentado pelo modelo newtoniano nos é

fornecido pelo físico J. von Jolly (1809 – 1884), orientador vocacional de Max Planck (1858 –

1947). Em 1874, Jolly desencorajou seu orientando a seguir a carreira de físico, alegando que “tudo

já teria sido pesquisado neste domínio e haveria, portanto, apenas alguns vazios a preencher”

(apud MARTINS, 1992, p. 299).

Durante as últimas décadas do século XIX crescem em importância os debates sobre a

filosofia da linguagem, ao mesmo tempo em que “o status e a validade do conhecimento científico

vinham sendo discutidos por um grande número de cientistas e filósofos da ciência de língua

alemã” (JANIK e TOULMIN, 1996, p. 132). Em meio a tais discussões, o termo representação –

colocado em circulação por Kant e Schopenhauer – exercia um papel importante (JANIK, e

TOULMIN, 1996, p. 132).

7 ÉVORA, F. R. R., 1992, p. xiv. 8 BEN DOV, 1996, p. 73. É importante ressaltar que o conceito de átomo não encontra, durante o século XIX, nem uma definição e nem uma aplicação precisas. Para uma abordagem mais detalhada do assunto, ver VIDEIRA, 1993, pp. 13-20. 9 ÉVORA, F. R. R. (Ed.), Século XIX: O Nascimento da Ciência Contemporânea. Campinas, 1992. MARTINS, R.C., “Planck e o Nascimento da Mecânica Quântica: Sugestões para o Estudo de Condicionantes Recentes”. In. ÉVORA, F. R. R. (Ed). Século XIX: O Nascimento da Ciência Contemporânea. Campinas: Unicamp, 1992. 10 Mach (1960) critica as concepções de espaço e tempo absolutos de Newton; Hertz (1952) critica a duplicidade de significação do conceito de inércia na mecânica newtoniana. 11 Martins (1992, p. 288) chama a atenção para o agravamento, durante o século XIX, das contradições entre o modelo newtoniano e as observações experimentais envolvendo radiações de corpos aquecidos. No início do século XX, Max Planck obtém uma representação matemática para tais fenômenos, partindo de suposições estranhas à Física Clássica e que são consideradas o marco fundador da Mecânica Quântica.

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De acordo com Janik e Toulmin, “entre 1800 e 1920, o problema do alcance essencial e

limites da razão foi duas vezes transformado: primeiro, no problema da definição do alcance e dos

limites das representações e, subseqüentemente, naquele de fazer o mesmo com a linguagem”

(1996, p. 121).

No período decorrido entre 22 de fevereiro de 1857 e 1º de janeiro de 1894 desse século

particularmente extraordinário, viveu Heinrich Rudolf Hertz, físico alemão cuja obra não só é

marcada pelas principais questões intelectuais de seu tempo, como, também, encontra repercussão

no pensamento de cientistas e filósofos que o sucederam.

Hertz passou boa parte de sua vida em Hamburgo, sua cidade natal, onde cumpriu sua

formação escolar básica. Quando jovem, Hertz demonstrava habilidade em trabalhos manuais,

tendo construído instrumento óticos e mecânicos e aparelhos elétricos de medida. A consciência de

tal habilidade talvez tenha sido a principal motivação para sua decisão de tornar-se engenheiro. No

entanto, após reavaliar sua opção inicial, Hertz muda-se para Berlim, em 1878, e inicia sua carreira

acadêmica como estudante no laboratório chefiado por Hermann von Helmholtz (1821 – 1894),

uma das lideranças científicas da Alemanha à época.

Em 1880, Hertz é nomeado demonstrador no laboratório de física da Universidade de

Berlim; em 1883, transfere-se para Kiel e, cerca de dois anos depois, torna-se Professor Ordinário

de Física da Escola Técnica de Karlsruhe, onde o cientista realizou a série de experimentos que o

notabilizou como o “descobridor” das ondas eletromagnéticas.

A importância dos resultados obtidos por Hertz em suas pesquisas experimentais nos

domínios do eletromagnetismo reside não apenas no estabelecimento de um modelo científico para

o estudo unificado dos fenômenos eletromagnéticos e luminosos, mas, também, nas implicações

epistemológicas decorrentes desses experimentos.12

Para além das questões científicas e epistemológicas, a relevância do trabalho experimental

de Hertz em Karlsruhe se mostra na aplicação de seus resultados ao desenvolvimento de novas

tecnologias, tais como o telégrafo sem fio e o rádio.

Entre abril de 1889 até sua morte, Hertz ocupou a cadeira de física na Universidade de

Bonn, onde, a partir de 1891, teve como assistente o físico Philipp Lenard (1862 – 1947),13

12 Como será visto mais adiante, a interpretação dos resultados experimentais obtidos por Hertz servirão como um importante reforço à hipótese do éter, na qual se apoiavam alguns dos partidários do mecanicismo. 13 Sobre a controversa vida de Philipp Lenard, ver MULLIGAN, 1999.

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ganhador do prêmio Nobel de 1905 por seu trabalho experimental sobre raios catódicos, iniciado

com o apoio do próprio Hertz.14

A contribuição de Hertz para a física experimental não se restringiu ao estudo das ondas

eletromagnéticas, estendeu-se aos fenômenos relacionados ao efeito fotoelétrico e aos raios

catódicos. Suas grandes contribuições teóricas estão contidas em Electric Waves,15 cuja primeira

edição data de 1893, e em The Principles of Mechanics,16 publicado postumamente em 1894. Na

primeira obra, motivado pelo sucesso de sua pesquisa experimental no eletromagnetismo, Hertz

apresenta uma reconstrução axiomática da teoria eletromagnética do físico escocês James Clerck

Maxwell (1831 – 1879); na segunda, Hertz propõe o que ele mesmo denomina uma terceira

representação da mecânica, como alternativa à representação newtoniana tradicional e à

representação energetista.

Tanto na elaboração de Electric Waves, quanto na de The Principles of Mechanics, o já

consagrado físico experimental Heinrich Hertz, começa como um ‘profundo’17 filósofo da ciência e

prossegue como um habilidoso físico teórico. Nas palavras de Abrantes,

Nas introduções a estas duas obras, Hertz desenvolve um conjunto de concepções a respeito da teoria física: seu objetivo, sua estrutura, a participação da experiência e do pensamento em sua elaboração, critérios metodológicos para a sua avaliação, etc. (1992, p. 353).

Embora a repercussão e o reconhecimento da obra do físico Heinrich Hertz superem em

muito à do Hertz filósofo,18 não se pode dizer que suas reflexões de caráter epistemológico tenham

passado despercebidas. Na relação de pensadores que, de alguma forma, tomaram a filosofia da

ciência de Hertz como uma referência importante, encontramos nomes como os dos cientistas Max

Planck, Ludwig Boltzmann (1844 – 1906) e Henri Poincaré (1854 – 1912) e, também, de filósofos

como Ludwig Wittgenstein (1889 – 1951) e Ernst Cassirer (1874 – 1945).

Se voltamos nossa atenção para as principais polêmicas que se desenvolveram durante todo

o século XIX em torno de questões metodológicas envolvendo as ciências da natureza, verificamos

que os problemas filosóficos colocados por Hertz não são exclusivos, nem pioneiros. Se nossa

atenção se volta para o intelectual Heinrich Hertz, concluímos que sua preocupação de elaborar uma

14 De acordo com Mulligan (1999, p. 354), as pesquisas com raios catódicos eram uma tradição de longa data na universidade de Bonn. O próprio Hertz publicou, em 1892, um artigo sobre o assunto. No discurso proferido na cerimônia de entrega do Nobel, Lenard agradece o apoio oferecido por Hertz. 15 Publicado em inglês pela Dover Publications, Inc., New York, 1962. 16 Publicado em inglês pela Dover Publications, Inc., New York, 1956. 17 BRAITHWAITE apud ABRANTES, 1992, pp. 351-352. 18 Se utilizarmos os prêmios concedidos a Hertz como medida do reconhecimento de seu trabalho por seus pares, observaremos que as datas em que estes prêmios lhe foram conferidos são anteriores às datas de publicação das referidas obras: Medalha Matteucci da Sociedade Científica Italiana (1888), Prêmio La Caze da Academia de Ciências de Paris (1889), Prêmio Baumgartner da Academia Imperial de Viena (1889), Medalha Rumford da Sociedade Real (1890) e o Prêmio Bressa da Academia Real de Turim (1891).

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proposta metodológica fundamentada na filosofia não é surpreendente. Afinal, trata-se de um

erudito que se dedicou à física. Seus interesses abrangiam as artes em geral, a arquitetura, a

economia, estudos lingüísticos e, de modo especial, a filosofia.

Discreto, modesto, escrupuloso, dono de um inabalável senso de honestidade intelectual.

Nestes termos alguns de seus contemporâneos, como Helmholtz e Ernst Mach (1838 – 1916), se

referiram a Hertz. Mas, apesar de seu perfil discreto, não se pode dizer que Hertz tenha vivido sua

breve vida de forma pouco intensa. Em menos de dez anos, desde sua indicação para demonstrador

no laboratório da Universidade de Berlim, torna-se titular da cadeira de física na Universidade de

Bonn, já notabilizado pelo estabelecimento das ondas eletromagnéticas. Entre o encontro e o

casamento com Elisabeth Doll,19 passaram-se menos de quatro meses.

Os últimos anos de Hertz, no entanto, foram de intensa dor. Um tumor maligno o fustigou20

até a morte, aos 37 anos, em 1º de janeiro de 1894.

I.2. ALGUNS ASPECTOS SOBRE A POLÊMICA DO ÉTER

Se perguntarmos a um físico atual como o Sol consegue atrair a Terra, a uma enorme distância, ele provavelmente responderá: ´Por causa do campo gravitacional`- e essa poderá lhe parecer uma resposta não-problemática e final – embora seja uma resposta puramente nominal. Mas se perguntarmos como o Sol consegue criar um campo em um local onde ele não está, talvez ele fique confuso (MARTINS, 1998, p. 117).

A citação acima foi retirada do texto Descartes e a impossibilidade de ações a distância -

publicado em 1998 -, em que seu autor, Roberto de Andrade Martins, afirma que a multicentenária

polêmica acerca da transmissão de forças e suas implicações desaparece, sem que tenha sido

propriamente resolvida.

No entanto, o ambiente científico do século XIX apresentava-se como um solo fértil para

que tal polêmica se mostrasse avivada. Em função dela, nem mesmo o ainda vigoroso modelo

newtoniano – que, diante da impossibilidade de uma explicação mecânica da gravitação se

conformava com as inexplicadas ações a distância – escapou às críticas de muitos dos pensadores

daquela época.

19 Elisabeth e Heinrich Hertz tiveram duas filhas: Johanna e Mathilde. A partir de 1923, Elisabeth Hertz e suas duas filhas passaram a conviver com enormes dificuldades financeiras. Em razão da ascendência judia de Hertz (seu avô era judeu, convertido ao Luteranismo), tais dificuldades tornaram-se críticas com a ascensão do nazismo na Alemanha. No entanto, durante todo este período, as três puderam contar com o apoio de cientistas como Max von Laue (1879 – 1960), Erwin Schrödinger (1887 – 1961) e J. J. Thomson (1856 – 1940), e com a ajuda de empresas de rádio de diversos países e da Associação de Engenheiros Elétricos (PIPPARD, 2002, pp. 241-242). 20 Em 26 de fevereiro de 1891, Hertz anota em seu diário: “Uma época infeliz, fadiga, desgosto” (apud COHEN, 1956).

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As alternativas à aceitação das interações a distância como uma inexplicável propriedade da

matéria, envolveram, em diferentes épocas, a elaboração de teorias complexas em torno de um

indefinido meio de transmissão dessas interações, composto por uma substância sutil: o éter.

A idéia de que todo espaço aparentemente vazio estaria preenchido por uma substância

imperceptível originou-se muito antes dos Principia de Newton, e, portanto, do açodamento da

polêmica acerca das ações a distância (MARTINS, 1993, p. 7) e, durante um longo período,

filósofos e cientistas empenharam-se muito mais em estabelecê-la com clareza do que em rejeitá-la.

A preocupação com o problema do éter demanda esforços do próprio Isaac Newton e de muitos de

seus contemporâneos, atravessa o século XIX e adentra o século XX.21

Aristóteles afirmava que o universo sempre atuaria no sentido de evitar o vácuo. Um tal

horror vacui poderia ser facilmente demonstrado pela simples observação da impossibilidade da

água contida em uma garrafa aberta escorrer através de seu gargalo estreito, a não ser que nela seja

feito um outro furo que permita a entrada do ar que ocupará o espaço deixado pela água que

escorreu (KUHN, 1957, p. 88). A concepção aristotélica de um universo plenamente preenchido e

pronto a atuar para evitar o vazio, servia para justificar o mecanismo dos movimentos dos corpos

supralunares e teve, ainda, implicações no estudo de lançamentos de projéteis nas proximidades da

superfície terrestre.

Segundo Thomas Kuhn, Aristóteles fundou uma física “em que conceitos astronômicos e

não astronômicos foram produzidos de um único e coerente tecido conceitual” (1957, p.78).

Estendendo, então, sua crença num onipresente éter ao mundo sublunar, Aristóteles afirmava que a

suposição da inexistência de algo que resistisse ao movimento de queda de um corpo, implicaria na

aceitação de um absurdo: o tempo de queda seria nulo.22

No entanto, no século XVII, Torricelli (1608 – 1647) e Pascal (1623 – 1662) colocam em

séria dúvida a concepção de horror vacui, ao produzirem espaços desprovidos de matéria sensível

(MARTINS, 1993, p. 9). Apesar disso, René Descartes defendia que a ausência de matéria sensível

em um determinado espaço, não implicaria, necessariamente, na inexistência, neste mesmo espaço,

de uma substância sutil, o éter (MARTINS, 1993, p. 9).

O éter de Descartes era a matéria prima fundamental na construção de sua concepção de

universo. Para ele, tanto a origem quanto o movimento dos corpos celestes poderiam ser explicados

21 Em 1920, durante o encontro da Sociedade de Cientistas e Médicos Alemães, o físico Philipp Lenard, ganhador do prêmio Nobel de 1905, objetou veementemente à declaração de Albert Einstein de que o éter havia se tornado ‘supérfluo para a compreensão e o progresso da física’ (MULLIGAN, 1999, p. 361). 22 Lembremo-nos de que o conceito de inércia e a relação entre força e massa ainda não haviam sido estabelecidos naquele momento.

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a partir da hipótese de que ‘o universo seria recoberto por um mosaico de turbilhões que

manteriam a ´matéria sutil`em rotação’ (FERRACIOLI e BATISTA, 2004, p. 81).

Huygens (1629 – 1695) explicava a gravitação também por meio de turbilhões, substituindo,

no entanto, o movimento da matéria sutil, pelo de minúsculas partículas (FERRACIOLI e

BATISTA, 2004, p. 81). Newton, por sua vez, rejeita a teoria dos turbilhões proposta por Descartes,

depois de concluir que a teoria cartesiana não se adequava às leis de Kepler. Entretanto, as diversas

tentativas engendradas pelo físico britânico para obter um modelo mecânico explicativo para as

interações gravitacionais, parecem mostrar que as ações a distância constituíram-se, mesmo que

temporariamente, em um desconforto intelectual para o cientista.

Lançando mão de hipóteses que envolviam correntes de éter, fluxos de éter, éter com

densidade variável, Newton esboçou diversos modelos explicativos para a gravidade e as

propriedades da luz.23 Em uma carta a Robert Boyle (1627 – 1691), datada de 28 de fevereiro de

1679, Newton escreve:

Vou apresentar mais uma conjectura, que veio à minha mente enquanto estava escrevendo esta carta: é sobre a causa da gravidade. Para isso, suporei que o éter consiste em partes que diferem uma da outra em sutileza, por graus indefinidos: que nos poros dos corpos há menos do éter grosseiro, em proporção ao mais fino, do que nos espaços abertos; e conseqüentemente que no grande corpo da Terra há muito menos do éter mais grosseiro, em proporção ao mais fino, do que nas regiões do ar; e que o éter mais grosseiro no ar afeta as regiões superiores da Terra, e o éter mais fino na Terra as regiões mais baixas do ar, de tal modo que do topo da Terra até seu centro, o éter é insensivelmente cada vez mais fino (apud MARTINS, 1998, p.83).

Após apresentar sua hipótese para a “estrutura” do éter, Newton prossegue com sua teoria sobre a

gravidade, identificando-a com o modelo físico aplicado aos fenômenos hidrostáticos. No entanto,

em seu Principia, Newton se abstém de uma explicação mecânica para a atuação das forças

gravitacionais, o que lhe rendeu severas críticas de alguns de seus contemporâneos.

Quase 200 anos depois da carta de Newton a Boyle, o cientista James Clerck Maxwell –

partidário da hipótese do éter e conhecedor das ressalvas do próprio Newton à idéia de transmissão

de forças sem intermediação24 – justificava da seguinte forma a posição adotada pelo autor dos

Principia:

O progresso da Ciência no tempo de Newton consistia em livrar-nos da maquinaria celestial com a qual gerações de astrônomos entulharam os céus e deste modo ´varrer as teias de aranha para fora dos céus`.

Embora os planetas já estivessem livres de suas esferas de cristal, eles ainda nadavam nos vórtices de Descartes. Imãs eram rodeados por eflúvios e corpos

23 Para uma abordagem mais detalhada do assunto, ver MARTINS, 1998, pp. 79-126. 24 Maxwell, que como será visto mais adiante, era partidário do modelo newtoniano, embora rejeitasse a idéia de ação à distância, responsabilizava o físico e matemático inglês Roger Cotes (1682 – 1716), autor do prefácio do Principia, e ‘não o descobridor da gravitação universal’ pela disseminação da ‘doutrina’ da ação a distância (2004, p. 278).

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eletrificados rodeados por atmosferas cujas propriedades não se pareciam em nada com aquelas dos eflúvios e atmosferas normais (MAXWELL, 2004, p. 277).

A obra de Newton ‘varreu as teias de aranha’ que preenchiam os espaços ao redor de

corpos celestes, ímãs e objetos eletrizados, substituindo-as por forças cuja forma de transmissão não

podia ou não precisava ser explicada. Àqueles que consideravam ser esta uma lacuna inaceitável no

modelo newtoniano, a aparentemente inquestionável e ilimitada eficiência da mecânica de Newton

era a melhor resposta. Assim, para muitos cientistas, prevaleceu a concepção – até certo ponto,

inaceitável para o próprio Newton – de uma ‘gravidade inata, inerente e essencial à matéria’.25

Então, gradativamente foram sendo estabelecidas expressões matemáticas análogas à da lei

da gravitação de Newton para a descrição quantitativa de interações magnéticas e elétricas, sem que

os ‘eflúvios’ ou ‘atmosferas’ que rodeavam as partículas que apresentavam tais propriedades fossem

sequer considerados:26

De fato, Cavendish, Coulomb e Poisson, fundadores das ciências exatas da eletricidade e do magnetismo, não deram nenhuma atenção àquelas noções antigas de “eflúvios magnéticos” e “atmosferas elétricas”, que tinham sido propostas no século anterior. Ao invés disso, voltaram decididamente suas atenções para a determinação da lei de força pela qual os corpos eletrificados e magnetizados atraem-se ou repelem-se uns aos outros. Dessa maneira, as verdadeiras leis destas ações foram descobertas, e isso foi feito por homens que nunca duvidaram que a ação se dá a distância, sem a intervenção de qualquer meio, e que teriam considerado a descoberta de tal meio mais como um fato complicador do que uma explicação dos fenômenos estabelecidos da atração (MAXWELL, 2004, p. 278).

Apesar de perceber-se, na citação acima, um certo tom de admiração pelo estabelecimento

de ‘leis’ matemáticas para o estudo quantitativo dos referidos fenômenos, Maxwell acreditava que o

próximo passo a ser dado, consistiria na obtenção de uma explicação para a maneira pela qual as

interações elétricas e magnéticas se transmitiam.

Em 1820, o cientista dinamarquês Hans Christian Oersted (1777 – 1851) comprova

experimentalmente que um fio condutor percorrido por corrente elétrica é capaz de perturbar um

ímã colocado em suas proximidades. A experiência de Oersted estabelecia, de forma inequívoca,

uma conexão entre a eletricidade e o magnetismo e, ao mesmo tempo, colocava em evidência

fenômenos para os quais o modelo newtoniano não se mostrava adequado.27

Sobre as interpretações do que foi observado por Oersted, Maxwell comenta:

25 Em uma carta a Bentley, citada por Maxwell (2004, p. 277), Newton afirma de forma contundente: “Que a gravidade deva ser inata, inerente e essencial à matéria de tal modo que um corpo possa agir sobre o outro a distância, através do vácuo, sem a intermediação de qualquer coisa por meio da qual as suas ações e forças possam ser transmitidas, é para mim um absurdo tão grande que acredito que nenhum homem que tenha competência em questões filosóficas possa aceitar”. 26 Para uma abordagem mais detalhada do assunto, ver BEN DOV, 1996, p. 99 e TORT, CUNHA e ASSIS, 2004, p. 279. 27 Para uma abordagem mais detalhada do assunto, ver BEN DOV, 1996, p. 99 e TORT, CUNHA e ASSIS, 2004, p. 279.

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A dedução mais óbvia deste fato novo é que a ação da corrente sobre o imã não ocorre por meio de uma força do tipo “puxa-empurra”, mas sim por meio de uma força rotatória e, conseqüentemente, muitas mentes começaram a imaginar vórtices e correntes de éter circulando em torno da corrente (2004, p. 279)

Após a experiência de Oersted, André Marie Ampère (1775 – 1883) observa que, assim

como uma corrente elétrica é capaz de atuar sobre um ímã, um ímã também pode exercer influência

sobre uma corrente elétrica. Posteriormente, Ampère verifica que dois fios condutores colocados a

uma determinada distância um do outro interagem quando percorridos por correntes elétricas.

Tendo estabelecido que tal interação era de caráter magnético, Ampère tenta elaborar uma

representação matemática para os resultados experimentais obtidos, que estivesse em conformidade

com o modelo newtoniano. No entanto, a ‘fórmula de Ampère’ era extremamente complexa28 e

aplicava-se somente a casos particulares.29

A esperança dos que não se conformavam com a idéia de ações a distância no vácuo foi

reacendida pelo experimentador inglês Michael Faraday (1791 – 1867) e suas linhas de força.

Faraday identificou a configuração apresentada por limalhas de ferro salpicadas entre os pólos de

dois ímãs30 à representação das interações magnéticas nas vizinhanças destes ímãs. Configurações

similares foram observadas no estudo de interações elétricas. Alterando-se as variáveis envolvidas

nas observações experimentais, verificava-se que a configuração comportava-se de maneira análoga

a uma corda tracionada (MAXWELL, 2004, p. 280).

Maxwell vê no trabalho de Faraday um caminho promissor para a explicação do mecanismo

de transmissão de forças:

... podemos considerar a concepção de Faraday de um estado de tensão de um campo eletromagnético como um método de explicar a ação a distância por meio de uma transmissão contínua de força, mesmo que não saibamos como este estado de tensão se produz (2004, p. 280).

Animado por esta nova possibilidade, Maxwell elabora um complexo modelo, baseado na

mecânica newtoniana (BEN DOV, 1996, p. 101), para um éter por meio do qual seriam transmitidas

as interações eletromagnéticas. Calculando a velocidade de ondas transversais propagando-se em

seu meio hipotético, Maxwell encontrou um valor muito próximo daquele medido para a velocidade

da luz à sua época.31 Este resultado levou-o à conclusão de que havia um éter único responsável

pela transmissão das interações eletromagnéticas e no qual a luz se propagava.32

28 MAXWELL 2004, p. 279. 29 BEN DOV, 1996, p. 100. 30 As limalhas tendem a se organizar em linhas que parecem emergir de um dos pólos em direção ao outro. Daí o nome linhas de força. 31 “A velocidade da luz no ar, como determinada pelo Sr. Fizeau, é 70.843 léguas por segundo (25 léguas por grau) o que dá v = 314.858.000.000 milímetros [por segundo] = 195.647 milhas por segundo. A velocidade das ondas transversais em nosso meio hipotético, calculada a partir dos experimentos eletromagnéticos dos Srs. Kolhrausch e

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Na passagem abaixo, Maxwell não esconde seu entusiasmo com os resultados obtidos a

partir de seu modelo:

As vastas regiões interplanetárias e interestelares não serão mais consideradas como regiões desoladas, as quais o Criador não achou apropriado preencher com os símbolos da múltipla ordem de seu Reino. Deveremos encontrá-las já preenchidas com este meio maravilhoso, tão pleno, que nenhum poder humano poderá removê-lo da menor porção do espaço, ou produzir a mais leve falha em sua infinita continuidade. Ele se estende ininterrupto de estrela a estrela, e quando uma molécula de hidrogênio vibra em uma estrela da constelação do Cão, o meio recebe os impulsos destas vibrações, e depois de transportá-los em seu imenso regaço por três anos, entrega-os no devido tempo, de maneira regular, ao espectroscópio do Sr. Huggins, em Tulse Hill (2004, p. 281).

À época em que este texto de Maxwell foi publicado, a maioria dos cientistas de língua

alemã, de acordo com Hermann von Helmholtz, lidavam com os fenômenos eletromagnéticos a

partir da hipótese de W. Weber (1804 – 1891), que pressupunha ‘forças diretas a distância agindo

em linha reta’ (HELMHOLTZ, 1956, prefácio), transmitindo-se com velocidade infinita através do

espaço. A descrição matemática das forças entre duas partículas eletrizadas era feita de forma

análoga à lei da gravitação de Newton. Weber, porém, afirmava que a intensidade da força elétrica

entre duas partículas eletrizadas em movimento dependia não só das cargas de cada uma destas

partículas e da distância entre elas, mas também, da velocidade e da variação da velocidade com

que estas partículas se moviam.

Mas, ainda de acordo com Helmholtz,

lado a lado com a teoria de Weber, existiam inúmeras outras, as quais tinham em comum o seguinte: todas elas consideravam que a intensidade da força expressa pela lei de Coulomb seria modificada pela influência de alguma componente da velocidade das quantidades elétricas em movimento (1956, prefácio).

Para Helmholtz, estas diversas formas de abordar os fenômenos eletromagnéticos estavam

apoiadas em hipóteses de difícil conciliação e em teorias duvidosas, o que acabava por transformar

os domínios do eletromagnetismo em um emaranhado instransponível (HELMHOLTZ, 1956,

prefácio). O próprio Helmholtz havia concebido uma teoria neste domínio pressupondo que as

interações elétricas e magnéticas eram devidas a ações a distância.

Sob o ponto de vista de Helmholtz, a situação do eletromagnetismo na Inglaterra era a

seguinte:

... as idéias introduzidas por Faraday quanto à natureza da eletricidade estavam se alastrando. Estas idéias, na forma em que eram expressas, em uma linguagem

Weber, concorda tão exatamente com a velocidade da luz calculada a partir dos experimentos ópticos do Sr. Fizeau, que dificilmente podemos evitar a dedução de que a luz consiste de ondas transversas do mesmo meio que é responsável pelos fenômenos elétricos e magnéticos” (MAXWELL apud ASSIS, 1992, pp. 55-56) 32 Ibidem.

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abstrata de difícil compreensão, pouco progrediram até encontrar em Clerck Maxwell um intérprete adequado. Faraday e Maxwell tendiam a adotar o ponto de vista de que simplesmente não havia ação a distância; esta hipótese, que contrariava as concepções até então aceitas, foi colocada sob forma matemática e desenvolvida por Maxwell (1956, prefácio).

Helmholtz, então, decide testar as várias teorias eletromagnéticas em circulação por meio de

‘experimentos adequados’ (1956, prefácio). O primeiro teste proposto pelo cientista visava verificar

a adequação das diversas teorias ao comportamento da corrente elétrica em circuitos abertos e

fechados.33 Na explicação dos fenômenos envolvidos no problema proposto por Helmholtz, os que

admitiam a concepção de ação a distância, como Weber, sugeriam que a eletricidade seria dotada de

‘um certo grau de inércia’ (HELMHOLTZ, 1956, prefácio). Por outro lado, aqueles que, como

Faraday e Maxwell, rejeitavam a idéia de ação a distância, propunham a explicação de tais

fenômenos a partir da polarização dielétrica de um meio interveniente hipotético.

As pesquisas que decidiram a questão foram realizadas por Heinrich Hertz, um dos

pesquisadores do laboratório comandado Helmholtz em Berlim. Inicialmente, Hertz verificou que o

efeito da hipotética inércia da eletricidade seria extremamente pequeno (Helmholtz, 1956, prefácio).

Em seguida, realizou experiências34 cujos resultados apontavam as teorias de Faraday e Maxwell

como ‘altamente prováveis’.35

Hertz identificou ‘oscilações elétricas’ (HELMHOLTZ, 1956, prefácio) propagando-se

entre as extremidades de condutores abertos. No decorrer de sua pesquisa, ele tornou-se capaz de

controlar as características das oscilações produzidas para, em seguida, medir seu comprimento de

onda e sua velocidade de propagação no ar. A velocidade e as propriedades das ondas de Hertz

coincidiam com as da luz.36

Mas, as implicações do notável trabalho experimental de Hertz transpunham os domínios do

eletromagnetismo e da ótica que ele próprio acabara expandir:37 Sua identificação com a teoria de

Maxwell representava um importante reforço à hipótese do éter.

33 Para uma abordagem mais detalhada do problema proposto por Helmholtz, ver HELMHOLTZ, 1956, prefácio e POINCARÉ, 1984, pp. 165-176. 34 Para uma abordagem mais detalhada do assunto, ver HELMHOLTZ, 1956, prefácio e HERTZ, 1962. 35 Segundo Poincaré, “ao cabo de vinte anos, as idéias de Maxwell tiveram a confirmação da experiência. Hertz conseguiu produzir sistemas de oscilações elétricas que reproduzem todas as propriedades da luz e só diferem dela pelo comprimento de onda, como o violeta difere do vermelho. Ele fez, de uma certa maneira, a síntese da luz. Como todo mundo sabe, foi daí que surgiu o telégrafo sem fio”. “Poderíamos dizer que Hertz não demonstrou, diretamente, a idéia fundamental de Maxwell: a ação da corrente de deslocamento sobre o galvanômetro. Isso é verdade, num certo sentido, e o que demonstrou diretamente foi que a indução eletromagnética não se propaga instantaneamente, como se acreditava, mas com a velocidade da luz” (1984, p. 174). 36 As oscilações produzidas por Hertz podiam ser polarizadas, refletidas, refratadas, etc. (HELMHOLTZ, 1956, prefácio; MULLIGAN, 1999, p. 346). 37 Ver nota 33 acima e MULLIGAN (1999, p. 346).

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Mesmo Helmholtz, tradicionalmente comprometido com a idéia de ação à distância,

declarava não ter mais dúvidas de que ‘as ondas de luz consistem de vibrações elétricas no

onipresente [“all-pervading”] éter, o qual apresenta as propriedades de um meio isolante e

magnético’ (HELMHOLTZ, 1956, prefácio). E o velho mestre de Hertz vai mais além:

Do ponto de vista da ciência teórica, talvez seja mais importante ser capaz de entender como aparentes ações a distância realmente consistem na propagação de uma ação de uma camada de um meio interveniente para a próxima. A gravitação permanece como um enigma insolúvel; enquanto uma explicação satisfatória não for fornecida, permanecemos compelidos a tratá-la puramente como uma ação a distância (1956, prefácio).

Hertz, por sua vez, adota definitivamente a concepção de que as interações elétricas e

eletromagnéticas transmitem-se de forma contígua e mediatizada, e, em sua última obra, The

Principles of Mechanics, esboça uma tentativa de estender tal concepção às interações

gravitacionais.

Porém, a adequação dos resultados experimentais obtidos por Hertz à teoria de Maxwell não

era suficiente para esgotar a polêmica em torno do éter. Afinal, segundo Cassirer (vol. IV, 1986, p.

121), o problema do éter dividia com outros problemas a composição da pauta de um debate mais

amplo, de caráter metodológico que poderia ser resumido pela seguinte questão: qual ‘deveria ser a

concepção e a missão da ciência natural’ naquele momento?

O próprio Hertz discordava de algumas das idéias introduzidas na teoria de Maxwell as

quais, aparentemente, davam suporte a ela. Em Electric Waves, Hertz propõe uma reconstrução

axiomática da teoria eletromagnética de Maxwell, objetivando eliminar as inconsistências

identificadas na referida teoria além de reduzir ao máximo as concepções arbitrárias nela

introduzidas.38 Após a efetivação da reconstrução axiomática, Hertz reduz as equações formuladas a

partir da teoria de Maxwell e, de certa forma, a própria teoria,39 a apenas quatro equações

fundamentais.40

Hertz concordava que a teoria de Maxwell apresentava-se como a mais adequada para a

previsão da propagação das ondas eletromagnéticas (ABRANTES, 1992, p. 355), mas discordava

da estrutura da teoria do seu colega escocês. Tal discordância torna-se compreensível, quando se

leva em conta os estilos de pensamento e as respectivas opções metodológicas predominantes nas

38 Para uma abordagem um pouco mais detalhada do assunto, ver ABRANTES, 1992, pp. 354-356. 39 Hertz declarava que, “para a questão ‘O que é a teoria de Maxwell?` eu não conheço resposta mais curta ou definitiva do que a seguinte: a teoria de Maxwell é o sistema de equações de Maxwell. Toda teoria que conduza ao mesmo sistema de equações e, portanto, inclua os mesmos fenômenos possíveis, eu consideraria como sendo uma forma ou caso especial da teoria de Maxwell; toda teoria que conduza a diferentes equações e, portanto, a diferente fenômenos possíveis, é uma teoria diferente” (apud COHEN, 1956, ensaio introdutório). 40 De acordo com Mulligan (1999, p. 347), Hertz “expressou as equações de Maxwell para o campo magnético na forma simétrica em que ainda hoje as utilizamos”.

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comunidades científicas em que Hertz e Maxwell se formaram: enquanto os físicos continentais,

especialmente os alemães, procuravam relacionar os dados empíricos por meio de equações

diferenciais, evitando lançar mão de hipóteses, os britânicos preferiam elaborar modelos físicos que

propiciassem a “visualização” do formalismo matemático presente nas teorias (ABRANTES, 1992,

p. 355; MULLIGAN, 1999, p. 347).

O austríaco Ernst Mach afirmava em uma das edições de sua obra The Science of

Mechanics, que a reconstrução axiomática da teoria de Maxwell, levada a cabo por Hertz, ‘oferece

um bom exemplo da descrição de fenômenos por simples equações diferenciais’ (1960, p. 598).

Mach defende ainda que

Todos os fluidos e meios hipotéticos são eliminados da teoria da eletricidade como elementos inteiramente supérfluos, quando percebemos que as condições elétricas são todas dadas pelos valores da função potencial V e das constantes dielétricas (1960, p. 597).

Em contrapartida, o britânico William Thomson declarava: “Não fico satisfeito enquanto

não consigo elaborar um modelo mecânico do objeto estudado; se consigo, compreendo; de outro

modo, não consigo compreender” (apud CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 142).

Na concepção de ciência de Mach, e de muitos outros cientistas continentais41 em atividade

no final do século XIX, alguns problemas, como o das ações gravitacionais à distância, são

facilmente dissolvidos ou perdem o sentido. Para Mach, “a gravitação não perturba mais ninguém:

ela se tornou um incompreensível comum” (apud MARTINS, 1998, p. 113).

No entanto, assim como a confirmação experimental, por Hertz, da teoria de Maxwell, tal

argumento não era suficientemente convincente para levar a termo a polêmica em torno do éter. Em

uma publicação de 1902, Poincaré afirma: “Pouco nos importa que o éter exista realmente: é um

problema para os metafísicos. O importante para nós é que tudo se passa como se ele existisse, e

essa é uma hipótese cômoda para a explicação dos fenômenos” (1984, p. 157). No final do século

XX, Martins - autor das palavras com as quais esta sessão foi iniciada -, embora reconheça o

descrédito para com a concepção ‘de um éter’ por parte dos cientistas contemporâneos, defende-a,

por, dentre outros motivos, considerá-la ‘útil à compreensão dos fenômenos físicos’ e ‘ao progresso

futuro da ciência’ (1993, p.7).

I.3. ERNST MACH E O CONHECIMENTO FÍSICO NO SÉCULO XIX

Durante boa parte do século XIX, os cientistas estavam convencidos de que a missão da

física consistia em reduzir os fenômenos naturais aos princípios fundamentais da mecânica

41 Dentre outros, pode-se citar Otswald, Helm, e Kirchhoff.

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newtoniana42 (CASSIRER, vol. IV, 1986, pp. 106 e 108). A mecânica seria, então, a base sobre a

qual se apoiariam todos os demais ramos da física (Ibidem, p. 113).

O modelo de Newton43 era utilizado no estudo dos fenômenos luminosos, na teoria cinética

dos gases, na teoria atômica, etc.44 Alguns cientistas adotavam incondicionalmente o modelo

newtoniano. Outros, como Hertz e Maxwell,45 por exemplo, o adotavam de forma crítica.

Alguns desses mecanicistas poderiam ser considerados herdeiros do realismo científico dos

séculos XVII e XVIII, por confiarem no ‘valor ontológico das teorias físicas’ (CASSIRER, vol. IV,

1986, p. 105). Outros, não acreditavam que as teorias físicas revelassem a essência das coisas.

Havia aqueles que defendiam o uso de hipóteses – como a do éter – seja como instrumento

heurístico, seja como instrumento explicativo ou como forma de visualizar o formalismo

matemático de uma teoria, mas que, frequentemente, esbarravam com enormes dificuldades em

conciliar tais hipóteses com os resultados experimentais (MARTINS, 1998, p. 113). Outros, não se

preocupavam ou até mesmo eram veementemente contra a inclusão de hipóteses no corpo das

teorias científicas.

Havia, por outro lado, cientistas que, a partir dos problemas surgidos no estudo de

fenômenos nos domínios da termodinâmica, da ótica e da eletricidade, defendiam que os fenômenos

naturais poderiam ser entendidos exclusivamente em termos de trocas de energia, fazendo-se total

abstração da estrutura da matéria.

E havia, também, a partir da segunda metade do século XIX, a ‘figura dominante’ de Ernst

Mach, ‘um cientista que, como poucos, exerceu tão grande influência sobre sua cultura’ (JANIK e

TOULMIN, 1973, p. 133). Para Mach, todo o conhecimento se reduz a sensações e a tarefa da

ciência consiste em descrever, da maneira mais simples ou mais econômica os dados dos sentidos.

“O ponto de vista de Mach é o de um fenomenista radical; o mundo é a soma total do que se

apresenta aos sentidos” (JANIK & TOULMIN, 1973, p. 134). As teorias científicas são descrições

dos dados do sentido e permitem aos cientistas antecipar eventos futuros, tendo as funções

matemáticas utilizadas nas teorias o papel de organizar e simplificar o que os sentidos percebem.

42 Cassirer (vol. IV, 1986, p. 105) afirma não ter dúvidas de que, até meados do século XIX, este era ‘o ideal de conhecimento ao qual a física se achava obrigada a perseguir’. Segundo Martins (1992, p. 299), na década de setenta do século XIX, o modelo newtoniano ainda era vigoroso e hegemônico. 43 Ou modificações deste modelo (HELMHOLTZ, 1956, prefácio). 44 EINSTEIN, A., “Autobiographical Notes”. In: Albert Einstein Philosopher-Scientist. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. 45 Hertz e Maxwell que, de acordo com Albert Einstein, por seus estudos nos domínios do eletromagnetismo, ‘são vistos, retrospectivamente, como aqueles que demoliram a mecânica clássica [newtoniana]’, eram mecanicistas (EINSTEIN, A., “Autobiographical Notes”. In: Albert Einstein Philosopher-Scientist. Cambridge: Cambridge University Press, 1982, p. 21).

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Teorias são descrições e não, julgamentos das sensações; sendo assim, é mais adequado referir-se a

teorias como mais ou menos úteis do que como falsas ou verdadeiras (JANIK E TOULMIN, 1973).

Em 1871, Mach esboçava seu “ponto de vista epistemológico” para as ciências naturais:

O conceito de causa é substituído pelo conceito de função; a determinação da dependência dos fenômenos uns dos outros, a exposição econômica dos fatos reais, são definidos como o objeto, e os conceitos físicos, exclusivamente, como meios para um fim (Mach, 1960, p. 325).

Para Mach, “não há causa nem efeito na natureza; a natureza não tem senão uma existência

própria; a natureza simplesmente é” (1960, p. 580). Segundo o cientista,

O ofício da física é a reconstrução de fatos no pensamento, ou a expressão quantitativa abstrata de fatos. As regras que criamos para estas reconstruções são as leis da natureza. Na certeza de que tais regras são possíveis apóia-se a lei da causalidade. A lei da causalidade simplesmente afirma que os fenômenos da natureza são dependentes uns dos outros... As leis da natureza são equações entre elementos mensuráveis a ß d ... dos fenômenos (1960, p. 604).

Mas as críticas de Mach à abordagem causal das relações entre os fenômenos naturais, têm

também como alvo a idéia de que a mecânica seria a ciência fundamental sobre a qual deveriam se

apoiar todos os demais ramos da física.46 Afinal, para cientistas influentes, com Helmholtz e Wundt,

por exemplo, a posição privilegiada da ciência da mecânica se devia ao caráter mecânico do

princípio da causalidade47 (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 114).

Mach, no entanto, afirmava, a partir do seu estudo histórico do desenvolvimento da

mecânica, que pensadores como Arquimedes, Da Vinci, Stevin e Galileu, elaboraram suas idéias

sobre a mecânica, impressionados, mesmo que inconscientemente, pela constatação experimental da

impossibilidade de um moto perpétuo e não por abstrações envolvendo causa e efeito.48 Para Mach,

a impossibilidade do perpetuum mobile é o ‘fato fundamental’ que se apresenta aos nossos sentidos,

ao nosso conhecimento instintivo da natureza.

Uma vez estabelecido o fato fundamental, ele deve ser ‘trabalhado dedutivamente e

logicamente através dos métodos da física-matemática’ (MACH, 1960, p. 88), o que permite que

outros fatos que não são diretamente acessíveis aos nossos sentidos aflorem e sejam incluídos no

domínio em questão. A análise histórica da mecânica efetuada por Mach aliada ao processo acima

descrito, levou-no à convicção de que o fato de que ‘o trabalho não pode ser obtido do nada’

46 Segundo Cassirer, a singularidade da proposta de Mach reside na ênfase dada pelo cientista na diferenciação entre o postulado da compreensão causal da natureza e seu conhecimento mecânico (vol. IV, 1986, p. 114). 47 De acordo com Cassirer, Helmholtz e Wundt acreditavam que a compreensão causal da natureza e seu conhecimento mecânico se equivaliam, e, pretendiam, por esta razão, “derivar os axiomas da mecânica como simples corolários do princípio geral da causalidade” (vol. IV, 1986, p. 114). 48 Segundo Mach, Galileu identificou a grandeza Trabalho como o fator decisivo na determinação de situações de equilíbrio estático (1960, p. 65); ainda de acordo com o autor, Da Vinci desenvolveu com clareza a idéia da impossibilidade de um movimento perpétuo (1960, p. 101).

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(CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 114), formalizado no princípio da conservação do trabalho, deveria

ser o ponto de partida para o estudo dos fenômenos naturais.

Sob este ponto de vista, a mecânica perderia sua posição privilegiada e passaria a ser apenas

um dos ramos da física:

Fenômenos puramente mecânicos não existem. A produção de acelerações mútuas em massas é, apenas aparentemente, um fenômeno puramente mecânico. Mas, a estes resultados dinâmicos estão sempre associados fenômenos térmicos, elétricos e químicos, sendo os primeiros sempre proporcionalmente modificados quando estes últimos são estabelecidos (MACH, 1960, p. 596).

Na concepção de Mach, a mecânica não deve ser considerada ‘o fundamento explicativo

definitivo dos demais ramos da física’ (1960, p. 471), mas, ao mesmo tempo, apresenta-se como um

‘admirável protótipo de tal explicação’ (Ibidem), devido à superioridade de seu desenvolvimento

formal. Naquele momento, de acordo com Mach, a abordagem energetista, fundamentada no

princípio da conservação do trabalho, mostrava-se mais vantajosa:

A mecânica... não é um fim em si mesmo; ela também tem problemas a resolver, relativos às necessidades da vida prática e que afetam o desenvolvimento de outras ciências. Atualmente, tais problemas são, em sua maioria, resolvidos de forma mais vantajosa por outros métodos que não o de Newton – métodos cuja equivalência com este último já foi demonstrada (MACH, 1960, p. 357).

Mas, em The Science of Mechanics, Mach preocupou-se, também, com a elaboração de uma

análise crítica rigorosa das concepções newtonianas de tempo, espaço e movimento absolutos49.

Para Mach, a idéia de um tempo absoluto – cuja existência independe da observação de mudanças,

de movimento – é completamente destituída de sentido, não passando de uma concepção metafísica.

‘Tempo é uma abstração à qual chegamos por meio das mudanças das coisas’ (MACH, 1960, p.

273).

Em sua crítica às concepções de espaço e tempo absolutos de Newton,50 Mach afirma que

todos os princípios da mecânica foram derivados de ‘conhecimento experimental referente a

posições e movimentos relativos dos corpos’ (1960, p. 280) e que espaço e movimento absolutos

não podiam ser reproduzidos experimentalmente.51 No final do século XIX, segundo Mach, era

crescente o número de investigadores que rejeitavam a idéia de movimento absoluto em favor da

concepção de que todo movimento é relativo. Mas a concepção adotada pelos relativistas trazia

consigo uma séria questão para um princípio físico fundamental: se espaço e movimento absolutos

são inconcebíveis, de que forma devemos entender o princípio da inércia?

49 Para uma abordagem mais detalhada do assunto, ver MACH, 1960, pp. 271-298. 50 Outros cientistas propuseram as estrelas fixas e também o éter como sistema de referência em relação aos quais o movimento absoluto seria estabelecido. Newton não estava certo de que as estrelas fixas estivessem realmente em repouso (MACH, 1960, p.280) e o éter sempre foi uma hipótese controversa. 51 Para Mach (1960, p. 280), espaço e tempo absolutos não passavam de construções mentais, ‘coisas do pensamento’, sobre as quais ninguém está abalizado a dizer qualquer coisa.

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Mach apresenta ‘dois caminhos’ para lidar com o problema:

(1) o caminho histórico e crítico, o qual reconsidera os fatos sobre os quais a lei da inércia se apóia e que define os seus limites de validade para, finalmente, considerar uma nova formulação; (2) a suposição de que a velha forma da lei da inércia nos ensina o suficiente sobre os movimentos e a derivação do sistema de coordenadas correto a partir destes movimentos (1960, p. 293).

Independentemente da problematização dos conceitos de tempo, espaço e movimento, o que

importava para Mach era o estabelecimento da utilidade e dos limites de utilização do princípio da

inércia na descrição matemática dos movimentos, além, é claro, de verificar sua adequação aos

fenômenos.

Certamente que a proposta de Mach não se aplica somente à mecânica. Para a natureza física

como um todo, ‘uma vez descobertas as relações numéricas exatas entre as diferentes classes de

fenômenos naturais, teremos conseguido tudo que a ciência pode esperar e exigir...’ (CASSIRER,

vol. IV, 1986, p. 123). Este é o limite da ciência, dentro do qual não cabem hipóteses.

Para aqueles que adotaram o limite assim proposto, não seria missão da ciência ‘penetrar

por meio de hipóteses nas profundidades da ordem universal...’ (MAYER apud CASSIRER, vol.

IV, 1986, p. 123). De maneira radical, Otswald decreta: “não farás uso de imagens nem de

analogias” (apud CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 122).

Mesmo hipóteses eficientes, como a do átomo, tornaram-se alvos de severos ataques. A

despeito de sua bem sucedida utilização na teoria cinética dos gases,52 a idéia de átomo apresentava

aspectos que não se enquadravam nos mandamentos metodológicos da corrente de pensamento que

vinha se fortalecendo na comunidade científica:

(1) A aceitação do átomo como entidade física esbarrava na impossibilidade de uma

confirmação empírica convincente de sua existência;

(2) Como entidade hipotética, o átomo – ou qualquer outro tipo de hipótese – deveria ser

evitado;53

(3) A identificação do atomismo com a mecânica clássica – já então, alvo de severas críticas –

dificultava a adoção de hipóteses atômicas (Videira, 1997, p. 71).

Entretanto, o atomismo encontrava no físico austríaco Ludwig E. Boltzmann um persistente

defensor. Boltzmann acreditava que a elaboração de teorias científicas não deveria prescindir de

hipóteses (VIDEIRA, 1997, p. 56) e, desde seus primeiros escritos, o fundador da mecânica

estatística deixava claro que a hipótese atômica lhe era especialmente cara (JANIK e TOULMIN,

52 De acordo com esta teoria, a pressão exercida pelo gás sobre as paredes do recipiente que o contém é resultado dos choques dos átomos que compõem o gás contra as paredes do recipiente. 53 Videira (1997, p. 61) cita as tentativas feitas, a partir de 1870, de abordar o estudo dos gases, em que a hipótese do átomo era aplicada com sucesso, ‘sem o recurso ao conceito de átomo’.

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1996, p. 143). De acordo com Videira (1997, p. 71), Boltzmann não considerava o átomo como uma

entidade física à qual se deveria atribuir valor ontológico. Ele admitia vários modos de

representação para a física e acreditava que a coexistência destes diferentes modos de representação

poderia ser frutífera para a ciência (VIDEIRA, 1997, pp. 59-60). Não admitia, porém, que

partidários do energetismo ou da fenomenologia físico-matemática rejeitassem, por meio de

argumentos, a seu ver, dogmáticos, sua visão atomística de mundo.

Por outro lado, o emblemático Ernst Mach considerava inadmissível a convivência de

diferentes ‘esquemas conceituais’ (JANIK e TOULMIN, 1996, p. 137) para a descrição de um

mesmo fenômeno. Para Mach, a função do conhecimento está relacionada à adaptação do homem

ao seu meio ambiente. Através da descrição do mundo sensível somos capazes de interagir com a

natureza e sobreviver. Somos, em grande medida, conhecedores passivos. ‘Esquemas conceituais

são instrumentos econômicos que nos permitem lidar com problemas práticos’ (JANIK e

TOULMIN, 1996, p. 137). De acordo com a perspectiva machiana, o conhecimento eficiente de

nosso meio ambiente só nos poderá ser fornecido pelas idéias e conceitos que, após competirem

com idéias e conceitos rivais pela conquista de adeptos, sobreviveram, mostrando assim, estarem

mais bem adaptadas aos fatos e às outras idéias e conceitos sobreviventes (JANIK e TOULMIN,

1996, p. 138).

Sob o ponto de vista epistemológico de Mach a coexistência de teorias rivais era

inadmissível e o fenomenismo radical que lhe era característico tornava inaceitável ‘a existência de

átomos e de outros dogmas similares’ (MACH apud MENGER, 1960, p. xiv)54. Para Mach, “algo

que está além do alcance do conhecimento, algo que não pode se exibir aos sentidos, é destituído

de significado para as ciências naturais” (1960, p. 337).

Em contrapartida, Max Planck, um admirador do método de análise estatística proposto por

Boltzmann, criticou a concepção machiana de conhecimento, identificando nela características

antropomórficas.55 Especificamente sobre a resistência de Mach e seus seguidores em aceitar a idéia

de átomo, Planck declarou:

Não me surpreenderia se, algum dia, um dos membros da escola de Mach anunciasse a grande descoberta de que a teoria da probabilidade ou a realidade do átomo são, de fato, conseqüências da economia científica (apud Janik e Toulmin, 1996, p. 138).

54 Esta declaração, de acordo com Menger, foi retirada de artigos deixados por Mach e citada por Ludwig Mach, filho do cientista. O texto completo da citação é o seguinte: “Eu não considero os princípios newtonianos como completos e perfeitos; mesmo assim, em minha idade avançada, posso aceitar a teoria da relatividade tão dificilmente quanto posso aceitar a existência de átomos e de outros dogmas similares” (apud MENGER, 1960, p. xiv). 55 Para uma abordagem mais detalhada do assunto, ver Janik e Toulmin, 1996, pp. 136-138.

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Mas, o pensamento de Mach pode ser melhor compreendido se consideramos outros

aspectos proeminentes da cena cultural européia de sua época. Nas primeiras décadas do século

XIX, a Inglaterra vivia o otimismo de um capitalismo industrial bem sucedido,56 enquanto assistia

ao enfraquecimento e à reforma da Igreja e à democratização dos paços imperiais.57 Sob a tensão da

relação entre ciência e religião alimentada pelas recentes pesquisas de geólogos e naturalistas,

discutia-se as intenções de Deus para conosco e nosso mundo: seria Deus um interventor

intermitente a operar milagres sempre que julgasse necessário ou um legislador cuja infinita

sabedoria permitiu-Lhe, através de um único decreto, baixado no momento da criação, o

estabelecimento de todas as leis da natureza?

Nesse contexto, Charles Darwin elabora, e publica em 1859, sua teoria da evolução através

da obra intitulada A Origem das Espécies. A teoria de Darwin influenciou obras literárias, a

antropologia, a ciência, a teoria do conhecimento e, é claro, a nossa cosmovisão. O impacto do

evolucionismo e, indiretamente, o papel assumido naquele momento pela própria ciência é assim

descrito por Sigmund Freud:

No decurso do tempo, a humanidade teve de agüentar, das mãos da ciência, duas grandes ofensas ao seu ingênuo amor próprio. A primeira foi quando percebeu que a Terra não era o centro do universo, mas apenas um pontinho num sistema de magnitude dificilmente compreensível... A segunda quando a pesquisa biológica roubou-lhe o privilégio de ter sido criada especialmente, e relegou o homem a descendente do mundo animal (apud GOULD, 1999, pp. 6-7).

Para Gould, a concepção de Darwin sobre a seleção natural era bastante simples e tinha

como base os seguintes aspectos:

(1) Os organismos variam, e essas transformações são herdadas (pelo menos em parte) por seus descendentes. (2) Os organismos produzem mais dependentes do que aqueles que podem sobreviver. (3) Na média, a descendência que varia com mais intensidade em direções favorecidas pelo meio ambiente sobreviverá e se propagará. Variações favoráveis, portanto, crescerão na população através da seleção natural. (1999, p. 1)

Ainda de acordo com Gould (1999, p. 2), Darwin defendia que as variações orgânicas são

casuais e não são pré-dirigidas ‘para a forma mais favorável’. Além do mais, a evolução não seria

condicionada por causas finais e nem resultaria, ‘inevitavelmente’, em organismos superiores.

Segundo o próprio Darwin, “é absurdo falar que um animal seja superior a outro. Nós

consideramos que os mais superiores são aqueles em que as faculdades mentais são mais

desenvolvidas. Uma abelha, sem dúvida, usaria os instintos com critério” (apud DESMOND e

MOORE, 1995, p. 251).

56 GOULD, S. J., 1999, p.33. 57 DESMOND, A.; MOORE, J., 1995, p. 230.

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No entanto, dificilmente dissociamos os significados dos termos evolução e progresso. Por

esse motivo, em alguns de seus trabalhos o próprio Darwin preferiu adotar o termo descendência

com modificação (GOULD, 1999, p. 25). Segundo Gould (1999, p. 27), a utilização da palavra

evolução, no sentido de progresso, como sinônimo do termo descendência com modificação, foi

popularizada pelo cientista vitoriano Herbert Spencer (1820 – 1903).

Assim sendo, o sentido segundo o qual se apropriou do termo evolução e do próprio

evolucionismo a partir da teoria de Darwin, foi condicionado por aspectos culturais característicos

da época em que viveram seus comentadores. Além de Spencer, este também teria sido o caso de

Haeckel (1834 – 1919) – um cientista que discutiu diretamente com Darwin alguns dos aspectos da

teoria da evolução (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 200) – cuja filosofia da natureza é considerada

por Cassirer como ‘antropomórfica, antropocêntrica e teleológica’ (1986, p. 200).

À época de Darwin, a intelectualidade londrina assistia a importantes transformações

culturais concomitantes ao sucesso do capitalismo industrial que se instalara na Inglaterra58. O

círculo de amizades de Darwin era formado, em sua maioria, por intelectuais entusiasmados com as

transformações que vinham ocorrendo e que partilhavam ideais de inspiração malthusiana

(DESMOND e MOORE, 1997, pp. 235-236): racionalização dos valores da classe média,

corroboração da competição, apoio ao livre comércio e à expansão das fábricas e justificação da

remoção dos empecilhos religiosos.

Na grandiosa obra The Science of Mechanics: A Critical and Historical Account of Its

Development, cuja primeira edição em alemão data de 1883,59 percebe-se em seu autor, Ernst Mach,

um intelectual em sintonia com algumas das tendências científicas de seu tempo: atitude

francamente antimetafísica, adesão ao fenomenalismo, consideração ‘do pensamento cotidiano e da

ciência em geral como fenômenos biológicos e orgânicos’ (MACH, 1960, p. 593), etc. Pode-se,

também, dizer, que Mach comungava com alguns dos ideais defendidos pelos intelectuais

reformistas ingleses e, de maneira geral, parecia se identificar com o momento histórico pelo qual

passava o mundo britânico. De acordo com Menger:

Ele [Mach] era um defensor da educação em massa e do progresso, além de um destemido advogado do que ele considerava a verdade. Na atmosfera próspera, mas nacionalista e militarista da Europa Central do final da era vitoriana-eduardiana, Mach aparentava sentir uma forte afinidade com o mundo de língua inglesa (1960, p. xx).

58 Para uma abordagem mais detalhada do assunto, ver DESMOND e MOORE, 1997, pp. 230-258. 59 “Nove edições em alemão desse livro forma publicadas, sete delas enquanto Mach ainda vivia (1838-1916), em 1883, 1888, 1897, 1901, 1904, 1908 e 1912. A 8ª e a 9ª edições em alemão apareceram em 1921 e 1933. As traduções para o inglês foram publicadas pela Open Court Publishing Company em 1893, 1902, 1915, 1919, 1942 e 1960” (MACH, 1960, p. v).

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Um dos objetivos principais do estudo crítico e histórico de Mach sobre o desenvolvimento

da mecânica é mostrar que este se deu sob forte influência teológica. Assim sendo, não se pôde

evitar a inclusão, em seus domínios, de idéias ‘supérfluas’, elementos metafísicos e explicações que

se fundam em argumentos que ultrapassam os limites do observável. De acordo com Mach, homens

com Pascal, Otto Von Guericke, Leibniz, Newton, Euler e outros, foram capazes de feitos

brilhantes, mesmo que constrangidos pelo ambiente religioso de sua época. Não foi apenas contra o

poder político da religião que estes e outros investigadores tiveram que lutar, mas, também, contra

suas próprias idéias preconcebidas e, “especialmente, contra a noção de que filosofia e ciência

deveriam se fundar na teologia” (MACH, 1960, p. 542).

Para Mach, toda a ciência tem sua origem nas necessidades da vida (1960, p. 604), “todo

conhecimento é dirigido para a adaptação do animal ao seu meio ambiente” (JANIK e TOULMIN,

1996, p. 137). Durante uma investigação científica, a atenção do investigador deve estar voltada

para ‘a adaptação das idéias aos fatos, a adaptação das idéias umas às outras...’ (MACH, 1960, p.

593). Não é possível considerar simultaneamente toda a ciência e, por isso, deve-se subdividi-la de

acordo com as ‘vocações’ e ‘capacidades’ individuais dos investigadores:

A divisão do trabalho, a restrição de investigadores individuais a domínios limitados, a consideração da investigação de tais domínios como o trabalho de uma vida, são as condições fundamentais para um desenvolvimento frutífero da ciência. Somente por meio de tal especialização e restrição do trabalho pode-se aperfeiçoar os instrumentos econômicos do pensamento necessários para o domínio sobre um determinado ramo [do conhecimento] (MACH, 1960, p. 609).

Mach declarava entender o problema da ciência com base na concepção de psicofísica

(psychophisics) de Gustav Theodor Fechner, o qual considerava o psíquico e o físico como dois

aspectos de uma mesma realidade, e nas idéias de Avenarius de fusão da física e da psicologia

(JANIK e TOULMIN, 1996, pp. 134-135). Em The Science of Mechanics Mach refere-se a Darwin

apenas duas vezes,60 mais para destacar o método de investigação darwiniano do que propriamente

a teoria que notabilizou o cientista britânico.61 Mesmo assim, dificilmente se pode negar a

influência da teoria da evolução na concepção epistemológica de Mach.

60 MACH, 1960, p. 547 e pp. 554-555. 61 Na referência mais longa a Darwin, Mach utiliza a teoria da seleção natural como argumento contra aqueles que defendiam a idéia de que a perfeita adaptação das estruturas orgânicas seria uma comprovação da existência de uma sabedoria suprema regulando a natureza: “Não deveríamos nos esquecer... que a investigação, e não meramente a admiração, é o ofício da ciência. Sabemos como Darwin pensou em resolver estes problemas através da teoria da seleção natural. Se a solução de Darwin é completa, pode-se com justiça duvidar; o próprio Darwin colocou para si tal questão... Mas não pode haver dúvida de que esta teoria é a primeira tentativa séria de substituição da mera admiração das adaptações da natureza orgânica pela investigação séria sobre o modo pelo qual elas se originaram” (MACH, 1960, pp. 547-548).

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Cassirer caracteriza Mach como um “partidário da moderna teoria da evolução” (vol. IV,

1986, p. 115), segundo a qual o cientista não deve se preocupar com ‘a verdade em si’ ou com ‘o

caráter e as causas finais dos acontecimentos naturais’.62

Mas, desde o início do século XIX, uma nova leitura de mundo estava sendo disponibilizada

por e para determinados pensadores: “o presente continha a chave genealógica do passado. Este

era o caminho mais curto para a verdade histórica” (DESMOND e MOORE, 1995, p. 234).

Segundo Koyré, ‘a regra: o passado explica o presente’ se estende à cosmologia, à geologia, à

biologia (1982, p. 372).63

Num trecho retirado de uma carta do pesquisador britânico John Herschel (1792 – 1871) a

Lyell (1797 – 1875), percebe-se os reflexos dessa nova leitura de mundo:

As palavras são para o antropólogo o mesmo que os seixos lisos representam para o geólogo – são relíquias maltratadas de eras passadas, muitas vezes contendo dentro de si registros indeléveis, capazes de uma interpretação inteligível –, e quando vemos a quantidade de mudanças que dois mil anos foram capazes de fazer nas linguagens da Grécia e Itália, ou de milhares na Alemanha, França e Espanha, naturalmente começamos a perguntar quanto tempo deve ter decorrido para que os chineses, hebreus, índios delaware e malgaves tenham atingido um ponto em comum com os alemães, italianos e todos os demais (apud DESMOND e MOORE, 1995, p. 233).

Enquanto alguns procuravam por ‘remanescentes fósseis do discurso’ (DESMOND e

MOORE, 1995, p. 234), Darwin ‘desenterrava preguiças fósseis’ (Ibidem) e Mach, em seus estudos

históricos e críticos sobre o desenvolvimento da ciência, deparava-se com ‘indicações fósseis’

(MACH, 1960, p. 35) da origem e evolução do conhecimento científico.64

Na busca pela origem do conhecimento científico e pelas ‘leis que presidem a evolução de

sua ciência’ (MACH apud CASSIRER, p. 115), o cientista deve se deixar guiar pela ‘mão

encaminhadora da história’ (Ibidem). Ao percorrer o caminho indicado pela história, o cientista

perceberá que as necessidades surgidas da interação dos seres humanos com seu meio ambiente,

representadas de acordo com o que nosso equipamento biológico,65 e não a reflexão e a abstração,

respondem pela origem e a evolução da ciência. O processo cognitivo é ‘puramente instintivo’ e

62 Para Mach, a fase mais frutífera do período em que Galileu permaneceu em Pádua foi exatamente aquela em que ele desistiu do ‘por quê’ para se preocupar apenas em investigar estritamente ‘como’ os diversos tipos de movimentos podem ser observados (1960, p. 155). 63 Acredito que o trecho da carta de Herschel citado acima e a abordagem histórica de Mach sobre o desenvolvimento da ciência são fortemente influenciadas por este historicismo. 64 Sobre as conclusões de Stevin referentes ao estudo do equilíbrio estático no plano inclinado, Mach declara: “A dedução de Stevinus é uma das raras indicações fósseis que possuímos na história primitiva da mecânica, e lança uma luz maravilhosa no processo de formação da ciência em geral, sobre sua origem no conhecimento instintivo” (1960, p. 35). 65 Ver, por exemplo, MACH, 1960, p.95.

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‘existe em absoluta independência de nossa participação’, sem que nada de arbitrário

acrescentemos a ele (MACH, 1960, pp. 34-35).

Para Haeckel, o resultado da abordagem histórica utilizada por Darwin na busca por uma

explicação para o surgimento de novas espécies, deve ser considerado ‘uma verdadeira façanha

emancipadora’ por ter levado à ‘eliminação e superação de qualquer modalidade de concepção

teleológica’ (apud CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 122). Ao afirmar que a natureza ‘não tem senão

uma existência própria; a natureza simplesmente é’, Mach (1960. p. 580) parece concordar com

Haeckel e, estende sua concepção aos fenômenos físicos e à própria teoria do conhecimento.

Koyré caracteriza o século XIX como o ‘século da história’ (1982, p. 372), o século em que

a história, sob a influência da filosofia alemã – especialmente do sistema de Hegel –, ‘torna-se a via

universal de explicação’. Para muitos, a marcha do espírito em busca da liberdade66 e o progresso

do conhecimento rumo a uma identidade universal67 ideal se dão por uma mesma estrada iluminada

pela história.

Para Mach, a adaptação dos seres humanos ao seu meio ambiente é inevitável e conduz,

progressivamente, a uma situação ideal. O progresso é garantido pela tendência natural à economia

de pensamento68 apresentada pela mente humana. A ciência se apresenta como uma forma

privilegiada e exemplar de intercâmbio com a natureza, mas, paulatinamente, todo equipamento

humano de sobrevivência alcançará uma configuração universal ideal:

... a linguagem escrita está sendo gradualmente metamorfoseada em um conjunto ideal de símbolos universais... Números, sinais algébricos, símbolos químicos, notas musicais, fonemas alfabéticos, devem ser considerados partes já constituídas da futura simbologia universal... Na escrita chinesa encontramos um exemplo real de uma verdadeira linguagem ideográfica, pronunciada diversamente nas diferentes províncias, mas carregando, em todas elas, o mesmo significado... [pela sua simplicidade] o uso da escrita chinesa deve se tornar universal (MACH, 1960, p. 578).

Em sua abrangente obra, é provável que a atenção de Mach em relação ao problema da

linguagem tenha se restringido aos aspectos destacados na passagem acima. Menger (1960, p. xvi)

aponta a negligência de Mach para com a crítica da linguagem como uma das principais lacunas em

seus estudos. No entanto, a intensa reflexão crítica acerca da metodologia, possibilidade e limites da

66 REIS, J. C. “História da História: Civilização Ocidental e Sentido Histórico”. In: História & Teoria: Historicismo, Modernidade, Temporalidade e Verdade. 2ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005. 67 Ibidem. 68 Segundo Mach, a natureza é composta de sensações e seus elementos. Ao reproduzirmos os ‘fatos’ da natureza no pensamento – ‘o cômodo gabinete econômico da ciência’ – consideramos apenas os seus aspectos que mais nos interessam por motivos práticos, por meio de abstrações. Nas ciências, por exemplo, as mais desenvolvidas economicamente são aquelas capazes de reduzir os fatos tratados em seus domínios a uns poucos elementos de mesma natureza e expressá-los através de símbolos e relações matemáticas. A matemática, por sua vez, ‘pode ser definida como a economia do cálculo’. Assim, por exemplo, aos estudarmos a queda dos corpos não precisamos e nem somos capazes de memorizar todos os casos possíveis, bastando, para isto, recorrer à expressão matemática h = g.t²/2. Para uma abordagem detalhada do princípio da economia de pensamento, ver MACH, 1960, pp. 577-595.

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ciência não era um privilégio desta forma específica de representação do mundo. De acordo com

Janik e Toulmin, não eram poucos os intelectuais e artistas europeus que, no final do século XIX,

ocupavam-se da seguinte questão: “como poderia alguma coisa servir como meio para expressar

ou simbolizar uma outra coisa qualquer?” (1996, p. 30).

Para os intelectuais de língua alemã, a crítica da linguagem69 – que poderia levar à solução

ou dissolução de alguns aspectos do problema colocado pela questão acima – deveria ser feita com

base nas três tradições que lhes eram familiares:

(1) o neoempirismo de Ernst Mach, com sua ênfase nas ‘impressões dos sentidos’ e nas ciências naturais; (2) a análise kantiana da ‘representação’ e da ‘schemata’ como determinantes das formas da experiência e dos juízos, e sua continuidade pelo anti-filósofo Arthur Schopenhauer; (3) a abordagem anti-intelectualista dos temas relacionados à moral e à estética conduzida por outro anti-filósofo, Søren Kierkegaard... (JANIK e TOULMIN, 1996, p. 119).

Apesar do estudo dos problemas referentes especificamente à crítica da linguagem

ultrapassar o escopo estabelecido para este trabalho – embora um e outro, como será visto, guardem

uma relação importante – deve-se ressaltar dois aspectos comuns aos pensadores que

protagonizavam a cena intelectual do mundo germânico:70 cientistas e filósofos que se dedicavam

aos debates sobre o papel das teorias científicas, intelectuais e artistas que se ocupavam das

questões referentes à linguagem e quaisquer outros meios de expressão, recorriam, em sua maioria,

às duas primeiras tradições filosóficas anteriormente citadas e consideravam seus respectivos

objetos de estudo como representações (JANIK e TOULMIN, 1996, p. 31).

Na concepção de Mach de que o mundo se nos apresenta por meio de nossas sensações e de

que o conhecimento do mundo se resume à descrição das relações dos dados fornecidos por nossos

sentidos, o poeta Hugo Hofmannsthal (1874 – 1929) encontra a significação e a relevância de sua

poesia. Também sob inspiração machiana, o jornalista Fritz Mauthner (1849 – 1923) adotou uma

postura francamente pragmática diante das difíceis questões relacionadas à crítica da linguagem.

Para Mauthner, tais questões se dissolvem quando consideramos a linguagem como mais um

‘equipamento biológico humano’ (JANIK e TOULMIN, 1996, p. 127) que favorece nossa

adaptação ao meio ambiente.71

69 A palavra linguagem é aqui utilizada no sentido mais geral: música, literatura, arquitetura, pintura, linguagem ordinária, etc. (JANIK e TOULMIN, 1996, p. 119). 70 Para uma abordagem mais detalhada do mundo intelectual de língua alemã à época, ver JANIK e TOULMIN, 1996. 71 Como foi dito no corpo do texto, Menger (1960, p. xvi) aponta a negligência de Mach para com a crítica da linguagem como uma das principais lacunas na abrangente obra do cientista. A postura de Mauthner diante do problema talvez ajude a esclarecer os motivos de tal negligência.

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Por outro lado, o comentarista e revisor das idéias de Kant, Arthur Schopenhauer, apresenta-

se como um fervoroso defensor da segunda tradição.72 Dentre os cientistas que aderiram à proposta

filosófica de Kant e/ou às reconsiderações de sua proposta, pode-se destacar Helmholtz e Hertz.

O termo representação havia sido colocado em circulação por Kant e pelo kantiano

Schopenhauer e, na primeira década do século XX, a ‘idéia de considerar a linguagem, os

simbolismos e quaisquer meios de expressão como ‘representações’73 (darstellugen) ou imagens

[pictures] (bilder) havia se tornado lugar comum no debate cultural’74 (JANIK e TOULMIN, 1996,

p. 31). No meio científico o termo foi disseminado por Heinrich Hertz – que o utilizou para

especificar o caráter kantiano de suas imagens (bilder) dos fenômenos naturais (JANIK e

TOULMIN, 1996, p. 139) – e adotado por Ludwig Boltzmann. Mais tarde, Erwin Schödinger

consagrou a Bild conception como uma tradição na física teórica (D’AGOSTINO, 2004, p. 372).

De acordo com Janik e Toulmin, ‘as implicações do programa crítico’ proposto por Kant,

vieram, gradualmente, a dominar a filosofia e as ciências naturais alemãs nos cem anos posteriores

à publicação da Crítica da Razão Pura, sendo a própria preocupação com a natureza e os limites da

linguagem – e, provavelmente, com a natureza e os limites da ciência – uma das conseqüências do

programa crítico kantiano (1996, pp. 120 e 122). No entanto, nem todos aqueles que se ocuparam de

tal problema no final do século XIX concordariam com esta afirmação: o influente Ernst Mach, por

exemplo, era francamente anti-kantiano75 e seu neo-empirismo é claramente inspirado na filosofia

do britânico Hume.

72 No ambiente intelectual do mundo de língua alemã, a filiação de Schopenhauer à tradição kantiana é compreensível. A anglofilia de Schopenhauer (JANIK e TOULMIN, 1996, p. 124) tornava-o um opositor da primeira tradição, influenciada pelas idéias de Locke e Hume. 73 Existem duas palavras para designar o termo representações em alemão: Darstellugen, utilizada no sentido kantiano do termo e Vorstellugen, quando se pretende utiliza-lo de acordo com o sentido que lhe é conferido pela tradição filosófica inglesa. Por isso, Janik e Toulmin destacam entre parênteses o termo correspondente em alemão. 74 Nesta passagem, Janik e Toulmin referem-se especificamente ao ‘debate cultural vienense’ no fim do século XIX e início do século XX, o que, a meu ver, não invalida sua extensão ao restante do mundo de língua alemã, principalmente em razão da consideração da Viena de fim de século como um centro irradiador de cultura. 75 Na sua crítica à mecânica de Hertz, Mach declara: “de meu ponto de vista (que não deve ser confundido com as concepções kantiana ou atomística da maioria dos físicos)...” (1960, p. 318).

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CAPÍTULO II – A MECÂNICA DE HERTZ

II.1. INTRODUÇÃO

Heinrich Hertz dedicou os três últimos anos de sua vida à obra The Principles of Mechanics,

publicada postumamente em 1894,1 na qual apresenta a proposta de um novo modo de

representação da Mecânica. Na opinião de Abrantes (1992, p. 354), os motivos que levaram Hertz a

se lançar em tal empreitada estariam enraizados na prática, comum entre os cientistas alemães da

época, de comparar os diferentes formalismos utilizados na representação de um mesmo conjunto

de fenômenos relativos a um determinado domínio da física.2 Mach, por sua vez, acreditava que o

novo sistema proposto por Hertz para a mecânica teria por objetivo a representação das forças

gravitacionais – ‘e quaisquer outras forças’ – como resultado de movimentos em um meio, assim

como já havia sido feito, com sucesso, no caso das forças elétricas e magnéticas (1960, p. 323).

Pode-se, também, argumentar que os sinais de inadequação da mecânica newtoniana ao

estudo de determinados fenômenos, tenham levado Hertz a uma tentativa de “salvar” aquele que

para muitos ainda se apresentava como um modelo privilegiado, fundamental para os demais ramos

da física.

Na introdução de The Principles of Mechanics, Hertz esclarece:

...eu não me dediquei a esta tarefa porque a mecânica vem mostrando sinais de inadequação em suas aplicações, nem porque ela, de alguma forma, conflita com a experiência, mas, somente, como forma de me livrar do sentimento opressivo de que seus elementos não estariam livres de coisas obscuras e ininteligíveis (1956, p. 33).

Mas, como já foi dito, não se pode deixar de lembrar que o século XIX assiste a uma severa

disputa pelo estabelecimento de uma metodologia hegemônica para o desenvolvimento da física.

Disputa esta que vai se acirrando à medida que o fim do século se aproxima. Por isso, apesar das

interpretações e declarações que apontam motivos pontuais para a iniciativa levada a cabo por

Hertz, chama-nos a atenção, na própria introdução de The Principles of Mechanics, a exposição

feita pelo autor de sua concepção a respeito do conhecimento físico, suas posições metodológicas,

simultaneamente à aplicação das diretrizes contidas nesta concepção, à representação por ele

proposta.

1 Primeira edição alemã: Die Principien der Mechanik in neuem Zusammenhange dargestellt. Leipzig, 1894. Edição utilizada como fonte bibliográfica para este trabalho: The Principles of Mechanics presented in a new form. Dove Publications, Inc, 1956. 2 Como visto anteriormente à elaboração de The Principles of Mechanics Hertz já havia obtido sucesso na reconstrução axiomática da teoria eletromagnética de Maxwell.

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Para Hertz, a principal função do conhecimento é tornar-nos aptos a ‘antecipar eventos

futuros’, tendo como base o conhecimento de eventos observados casualmente ou através de

experimentos (1956, p. 1). No processo de inferência do futuro a partir do passado, ‘nós formamos

para nós mesmos imagens ou símbolos de objetos externos’, de tal forma que as relações entre as

imagens formadas devem concordar com as relações entre os objetos externos (Ibidem). Hertz

ressalta que as imagens a que ele se refere são nossas concepções das coisas e que a conformidade

destas imagens com a natureza se esgota na sua adequação ao que delas é requisitado no processo

anteriormente descrito. Não há meios de se saber se estas imagens estão em conformidade com as

coisas em nenhum outro aspecto que não seja este.

No entanto, estas imagens não estão livres de ambigüidades, ‘várias imagens de um mesmo

objeto são possíveis e estas imagens podem diferir em vários aspectos’ (HERTZ, 1956, p. 2):

Devemos considerar inadmissíveis todas as imagens que implicitamente contradizem as leis do nosso pensamento. Assim, postulamos em primeiro lugar que todas as imagens devem ser logicamente permissíveis... Consideramos incorretas quaisquer imagens permissíveis, se suas relações essenciais contradizem as relações das coisas externas, isto é, se elas não satisfazem nosso primeiro requisito fundamental. Portanto, nós postulamos, em segundo lugar, que nossas imagens devem ser corretas. Mas duas imagens permissíveis e corretas do mesmo objeto externo podem ainda diferir no que concerne à adequação. De duas imagens do mesmo objeto a mais adequada é aquela que melhor representa as relações essenciais do objeto, - aquela que denominaremos a mais distinta. De duas imagens igualmente distintas, a mais apropriada é aquela que contém, em acréscimo às características essenciais, o menor número de relações vazias ou supérfluas, - a mais simples das duas. Relações vazias não podem ser totalmente evitadas: elas fazem parte das imagens por que elas são simplesmente imagens, - imagens produzidas pela nossa mente e necessariamente afetadas pelas características de seu modo de representação (portrayal) (HERTZ, 1956, p. 2).

Em outras palavras, Hertz postula três critérios para o estabelecimento das imagens dos

fenômenos naturais: as imagens não podem contrariar as leis do nosso pensamento

(permissibilidade); as conseqüências das imagens devem ser compatíveis com a experiência

(correção); e a melhor imagem é a mais simples (adequação) (ABRANTES, 1992, p. 359).

Na concepção de Hertz, uma representação científica das imagens deve ser capaz de

fornecer com clareza quais características devem ser atribuídas às imagens, para que estas se

enquadrem nos critérios apontados acima (1956, p. 2).

Segundo o cientista, a decisão quanto à permissibilidade e à correção das imagens pode ser

obtida sem contradições. No entanto, no que se refere à exigência de adequação – ‘notações,

definições, abreviações e, em resumo, tudo que podemos arbitrariamente adicionar ou retirar [da

imagem]’ (HERTZ, 1956, p. 3) – a decisão é, frequentemente, controversa:

... não podemos decidir sem ambigüidade se uma imagem é adequada ou não; quanto a isso, podem surgir diferentes opiniões. Uma imagem pode se mostrar mais

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apropriada para certo propósito, outra para um propósito diferente; somente testando gradualmente muitas imagens, podemos, finalmente, obter com sucesso a mais adequada (HERTZ, 1956, p.3).

À época de Hertz duas representações da mecânica estavam disponíveis: uma derivada da

mecânica newtoniana, que tinha o conceito de força como um de seus elementos fundamentais e a

outra, baseada no Princípio da Conservação da Energia, que partia dos mesmos fundamentos da

primeira, com exceção do conceito de força que fora substituído pelo de energia.

II. 2. A PRIMEIRA REPRESENTAÇÃO DA MECÂNICA

Para Hertz ‘a representação usual da mecânica’ – aquela apresentada aos estudantes através

dos livros-textos – ‘fornece-nos uma primeira imagem’ (1956, p. 4). Os conceitos básicos sobre os

quais se apóia esta representação são espaço, tempo, força e massa. As relações entre espaço e força

são tratadas na estática. As relações entre espaço e tempo são o tema da cinemática. O princípio da

inércia estabelece a relação entre espaço, tempo e massa. E, finalmente, os quatro conceitos

fundamentais desta representação são relacionados pelas Leis de Newton.3

Nesta primeira imagem, a força é concebida como a causa do movimento, precedendo-o e

existindo independentemente dele. Apesar de a adoção prolongada e generalizada desta

representação da mecânica conferir-lhe um caráter modelar, Hertz tinha dúvidas quanto à sua

permissibilidade lógica. Para o cientista, um exame mais acurado da aplicação dos princípios

fundamentais desta primeira imagem ao estudo dos fenômenos naturais revelava suas contradições

internas. Mesmo em casos simples de movimento – como o de uma pedra girando presa a uma

corda4 – verifica-se que, se, por um lado, a segunda lei de Newton mostra-se eficiente, por outro,

para que se cumpra a exigência da terceira lei, o efeito da inércia da pedra deve ser levado em conta

duas vezes: “primeiramente como massa, posteriormente como força [centrífuga]” (HERTZ, 1956,

p. 6), força esta, que surge como conseqüência do movimento.

Mas, se nos fundamentos desta primeira imagem a força é concebida como causa do

movimento, cabe, segundo Hertz, a seguinte questão:

3 Hertz cita ainda o princípio de d’Alembert, o qual estende os resultados da estática para os casos de movimento, como um princípio fundamental desta primeira imagem. 4 “Fazemos girar uma corda presa a um barbante e, ao fazê-lo, sabemos que estamos exercendo uma força sobre a pedra. Esta força desvia constantemente a pedra de sua trajetória retilínea. Se variamos a força, a massa da pedra e o comprimento da corda, verificamos que o movimento real da pedra está sempre de acordo com a segunda lei [de Newton]. Mas, a terceira lei exige uma força oposta à força exercida pela mão sobre a pedra. Em relação a esta força oposta, a explicação usual é que a pedra reage sobre a mão em conseqüência da força centrífuga, e que esta força centrífuga é, de fato, exatamente igual e oposta àquela que exercemos. Seria este modo de expressão permissível? O que chamamos de força centrífuga não seria senão a inércia da pedra?” (HERTZ, 1956, pp. 5-6).

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Podemos, sem confundir nossas idéias, subitamente começar a falar de forças que surgem através do movimento, que são conseqüências do movimento? Podemos nos comportar como se já tivéssemos estabelecido em nossas leis alguma coisa sobre forças deste novo tipo, como se, ao denominá-las forças pudéssemos investi-las com as propriedades das forças? A resposta a tal questão deve ser claramente negativa. A única explicação possível é que a força centrífuga não é, de forma alguma, uma força. Seu nome, assim como o nome vis viva, é aceito como uma tradição histórica; sua manutenção é conveniente, embora devêssemos nos desculpar por mantê-la ao invés de nos esforçarmos para justificá-la. (1956, p. 6).

Para Hertz, a diferença entre as concepções de força utilizadas na terceira lei e na primeira e

segunda leis de Newton constitui-se em uma obscuridade lógica inconcebível. Mas, de acordo com

ele, os cientistas, embora incomodados pelo desconforto intelectual causado por esta e outras

obscuridades presentes nas definições e concepções básicas das representações científicas, relevam-

nas, preferindo concentrar-se nos ‘exemplos que falam por si mesmos’ (1956, p. 7).

As críticas de Hertz à mecânica tradicional referem-se apenas aos seus aspectos formais.

Quanto ao seu conteúdo, admite Hertz, não se pode ignorar os ‘numerosos triunfos que a mecânica

obteve em suas aplicações’ (1956, p. 8). Mas as dificuldades lógicas relativas à forma desta imagem

da mecânica não devem ser deixadas de lado em favor da permissibilidade conferida ao seu

conteúdo por tais triunfos:5 “ela ainda falha em distinguir completamente e com exatidão entre os

elementos internos da imagem que surgem das necessidades do pensamento, da experiência e da

escolha arbitrária” (HERTZ, 1956, p. 8).

Quanto ao critério de correção, Hertz afirma que, de acordo com as observações

experimentais até aquele momento, a primeira representação da mecânica seria inquestionável. Mas,

para ele, de forma alguma isso representaria uma garantia de que a eficiência desta primeira

imagem se confirmaria quando de sua aplicação a experiências futuras: “aquilo que deriva da

experiência pode novamente ser anulado pela experiência” (HERTZ, 1956, p. 9).

As ressalvas apresentadas por Hertz ao submeter a mecânica tradicional ao teste de correção,

referem-se, possivelmente, às observações experimentais nos domínios do eletromagnetismo – nos

quais as pesquisas do cientista são reconhecidas como fundamentais – e às suas implicações

teóricas. Ao analisar a primeira imagem da mecânica quanto ao critério de adequação, o cientista

parece demonstrar mais claramente sua posição.

Segundo Hertz, quando se leva em consideração apenas os problemas que deram origem a

este sistema da mecânica – problemas mecânicos práticos e ações gravitacionais – a primeira

imagem da mecânica deve, com justiça, ser considerada adequada. No entanto, a sua preocupação

não se restringe aos fenômenos originais:

5 De acordo com o próprio Hertz, essa não é uma preocupação exclusivamente sua. Em nota, o cientista cita trabalhos de Mach, de Thomson e Tait e de E. Budde sobre o assunto (ver HERTZ, 1956, p. 8).

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Devemos nos lembrar que não estamos aqui representando as necessidades da vida diária ou o ponto de vista de tempos passados; estamos considerando toda a extensão do conhecimento físico e, acima de tudo, falando de adequação no sentido especial definido no início desta introdução (HERTZ, 1956, p. 10).

Sob esta perspectiva, pensando na física como um todo e, provavelmente, na mecânica como

um ciência basilar para a física, Hertz questiona a distinção desta primeira imagem da mecânica: os

movimentos admitidos pelas suas leis fundamentais – ‘tratados na mecânica como exercícios

matemáticos’ – não ocorrem na natureza; suas leis fundamentais não são suficientes para o estudo

incondicional de casos envolvendo movimentos naturais, forças e conexões rígidas (1956, p. 10).

A opção de Hertz pelo mecanicismo vai se tornando mais clara à medida que o cientista

insiste em apontar a incompatibilidade entre a mecânica tradicional e a interpretação dos fenômenos

recentemente observado nos domínios do eletromagnetismo como uma falha a ser corrigida. Hertz

cita, como exemplo, a controversa hipótese de Weber: os módulos das forças de atração e repulsão

dependeriam somente da distância entre os corpos, como previsto pela mecânica tradicional, ou

também das velocidades e acelerações relativas? (1956, pp. 10-11).

Por fim, ainda em relação à distinção da imagem, Hertz levanta dúvidas quanto à

correspondência das representações matemáticas determinadas pelo princípio de d’Alembert com os

fenômenos físicos em geral6 e quanto à forma pela qual devem-se ser estabelecidas as restrições

para as equações de condição (1956, p. 11).

A última etapa da análise feita por Hertz da mecânica tradicional diz respeito à simplicidade

desta imagem, um requisito importante na avaliação de sua adequação. Para isto, ele volta

novamente sua atenção para a idéia de força:

Não se pode negar que, em muitos casos, as forças que são utilizadas no tratamento de problemas em física são simplesmente sócios adormecidos que cuidam dos negócios quando fatos reais têm que ser representados (1956, p. 12).

De acordo com o cientista, este pode não ser o caso em situações simples em que a força

parece poder ser diretamente percebida pelos sentidos. Mas, em situações em que as forças não

podem ser percebidas – como no estudo dos movimentos das estrelas – nossa experiência passada,

assim como a antecipação de observações futuras relacionam apenas as posições dos corpos em

estudo. Neste caso, “é apenas na dedução de futuras experiências a partir do passado que as

forças gravitacionais entram como auxílios transitórios nos cálculos e, em seguida, são

desconsideradas” (Ibidem).

6 Segundo Hertz, “é matematicamente possível formular qualquer equação finita ou diferencial entre coordenadas e estabelecer critérios para que ela seja satisfeita; mas nem sempre é possível especificar uma conexão física natural correspondente a tal equação; frequentemente sentimos, na verdade, às vezes estamos convencidos, de que uma tal conexão é excluída pela natureza das coisas” (1956, p.11).

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Hertz estende sua crítica às complicações e à aparência inverossímil decorrentes da

aplicação do conceito de força à representação atomística dos fenômenos naturais.

O cientista conclui sua análise destacando os principais problemas detectados nesta primeira

imagem da mecânica: obscuridade lógica formal e inadequação de seu conteúdo aos movimentos

naturais.7 Mas, o ponto de vista do autor sobre a posição da mecânica em relação ao todo do

conhecimento físico, leva-o a recomendar prudência na interpretação de suas críticas:

Mesmo se estas objeções forem admitidas como bem fundamentadas, elas não devem nos levar a imaginar que a representação usual da mecânica está, por isso, destinada a perder ou mesmo na eminência de perder seu valor e sua posição privilegiada; mas elas justificam suficientemente a procura por outras representações menos expostas à censura quanto a estes aspectos, e mais aproximadamente conformada às coisas que devem ser representadas (HERTZ, 1956, p. 14).

II. 3. A SEGUNDA REPRESENTAÇÃO DA MECÂNICA

A segunda imagem da mecânica8 é derivada da ‘descoberta’ (HERTZ, 1956, p. 14) do

princípio da conservação da energia. Esta segunda imagem, que vinha ganhando a preferência dos

físicos ao final do século XIX (Ibidem), trata os fenômenos da física em geral em termos de

transformações de energia, e fornece uma segunda representação da mecânica quando aplicada aos

‘processos elementares de movimento’ (Ibidem).

Nesta segunda imagem, a idéia de força cede lugar à idéia de energia e seus conceitos

básicos são espaço, tempo, massa, além, é claro, do conceito de energia. Nela, espaço e tempo têm

caráter matemático; massa e energia ‘são introduzidas como entidades físicas que estão presentes

numa dada quantidade e não podem ser destruídas nem sofrer acréscimo’ (HERTZ, 1956, p. 15).

A energia associada às massas em estudo é dividida em duas partes: energia cinética, que

depende de suas velocidades absolutas, e energia potencial, que depende de suas posições relativas.

Assim, estabelece-se a relação entre espaço, massa e energia.9

A idéia de força não faz parte dos fundamentos desta segunda representação, sendo nela

introduzida, quando necessário, não como uma entidade empírica, mas como um elemento

7 De acordo com Hertz, a mecânica tradicional não se aplica a todos os movimentos observados, e, ao mesmo tempo, prevê relações que estão ausentes na natureza (1956. p. 13-14). 8 Para Hertz, há uma ‘segunda imagem dos processos mecânicos’, mais recente que a primeira, que se baseia na redução dos fenômenos naturais a ações à distância entre os átomos da matéria. No entanto, o autor considera que esta segunda imagem é condicionada pela primeira e vice-versa. Assim, para Hertz, a imagem que realmente apresenta novidade em relação à tradicional, e que, portanto, deve ser considerada com a segunda, é aquela que se baseia no princípio da conservação da energia (HERTZ, 1956, p. 14). 9 Na versão de Poincaré (1984, p. 104), o princípio da conservação da energia mecânica pode ser definido da seguinte forma: f (T + U) = constante, onde T é a energia cinética e U é a energia potencial de um sistema isolado de pontos materiais.

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matemático convenientemente definido e deduzido a partir das leis fundamentais (HERTZ, 1956, p.

16). Dessa forma evita-se, nesta segunda imagem, a inclusão das obscuridades relativas à idéia de

força, assim como concebida na representação tradicional da mecânica.

A relação entre espaço, massa, energia e tempo, é estabelecida pelo princípio de Hamilton10

ou ‘qualquer um dos princípios integrais da mecânica ordinária que envolva a idéia de energia’

(HERTZ, 1956, p. 16).

Mas, de acordo com Hertz, isto não seria motivo suficiente para a preferência da segunda

imagem em detrimento da primeira. A decisão de adotar uma ou outra somente pode ser tomada,

segundo o autor, após submeter também a segunda imagem aos critérios metodológicos por ele

propostos.

Para Hertz, a segunda imagem mostra-se claramente superior à primeira quanto ao critério

de adequação: ela estabelece importantes limitações para os movimentos representados, ao mesmo

tempo em que prevê ‘toda uma série de relações, especialmente de relações mútuas entre todos os

tipos de forças possíveis’11 (1956, p.17), todas elas presentes na natureza, ao contrário do que é

oferecido pela primeira imagem.

De acordo com a concepção de Hertz, esta segunda imagem é mais simples do que a

primeira, o que a tornaria menos vulnerável quanto à adequação e mais vantajosa para utilização:

Se nos perguntarmos sobre os verdadeiros motivos que levam os físicos da atualidade a se expressar em termos de energia, nossa resposta será: por que, dessa forma, evita-se falar sobre coisas das quais se sabe muito pouco, as quais não afetam, de modo algum, os enunciados essenciais em questão (HERTZ, 1956, p. 17).

Coisas como átomos e moléculas,12 que, ‘embora devam ser investigadas’, em nada

contribuem para o estabelecimento dos formalismos teóricos (HERTZ, 1956, p. 18).

Esta segunda imagem da mecânica baseia-se, em todos os seus aspectos, na ‘experiência

tangível’:

Aqui repousa a vantagem da concepção de energia e de nossa segunda imagem da mecânica: nas hipóteses dos problemas entram apenas características que são diretamente acessíveis à experiência, aos parâmetros ou às coordenadas arbitrárias dos corpos considerados; a análise prossegue com o auxílio dessas características numa forma finita e completa; e o resultado final pode novamente ser diretamente traduzido em experiências tangíveis (HERTZ, 1956, p. 18).

10 “De todas as trajetórias possíveis para o deslocamento de um sistema dinâmico entre dois pontos, num intervalo de tempo específico (consistente com quaisquer vínculos), a trajetória seguida é aquela que minimiza a integral no tempo

da diferença entre as energias cinética e potencial” (Marion e Thorton, 1995, p. 234). De outro modo: f

(T – U)dt = 0, entre t1 e t2. 11 Estas limitações são determinadas pela utilização do princípio de Hamilton. De acordo com Poincaré, esta segunda imagem nos explica ‘mais coisas do que os princípios fundamentais da teoria clássica e exclui certos movimentos que a natureza não realiza e que seriam compatíveis com a teoria clássica’ (1984, p. 103). 12 Como ocorria, por exemplo, de forma bem sucedida no estudo do comportamento dos gases.

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Hertz, no entanto, levanta dúvidas quanto à correção desta imagem. As críticas decorrentes

da aplicação deste critério de análise à segunda imagem devem-se, segundo o autor, à incapacidade

do princípio de Hamilton – estabelecido, como foi dito, como um de seus fundamentos – em

descrever toda a diversidade de conexões13 rígidas que podem surgir entre os corpos da natureza.

Hertz reconhece a maior generalidade de aplicação do princípio de Hamilton, em relação às

equações de Newton, no estudo dos movimentos observados na natureza.14 Porém, as limitações

impostas pelo referido princípio às conexões fixas em sistemas materiais – ele só admite conexões

que sejam expressas por equações finitas entre as coordenadas e não permite a ocorrência de

conexões que somente podem ser representadas por equações diferenciais (HERTZ, 1956, p. 19) –

conduzem a resultados fisicamente falsos, embora matematicamente possíveis (Ibidem).

Além do mais, o princípio de Hamilton é um princípio de ação mínima, e, como tal,

pressupõe que um corpo sobre o qual não atuam forças, movendo-se sobre uma superfície,

percorrerá, entre duas posições dadas, uma trajetória tal que o tempo de movimento entre estas duas

posições seja o mínimo possível. Sob o ponto de vista de Hertz, tal pressuposto dá a impressão de

que um corpo movendo-se de acordo com o princípio de Hamilton...

... teria, decididamente, a aparência de uma coisa viva, dirigindo sua trajetória conscientemente para um dado objetivo, enquanto uma esfera seguindo a lei da natureza daria a impressão de uma massa inanimada girando firmemente em direção a este mesmo objetivo15 (1956, p. 20).

Entretanto, em nome da maior eficiência desta segunda imagem da mecânica (em relação à

primeira), Hertz dispõe-se a admitir que os vínculos excluídos pelo princípio de Hamilton não

ocorram ‘realmente’, mas apenas aproximadamente, na natureza,16 e que quando aplicamos uma lei

fundamental de um sistema mecânico “a relações aproximadamente corretas, esta nos conduz a

resultados aproximadamente corretos, não a resultados inteiramente falsos” (1956, p. 21). Dessa

forma, a dúvida quanto à correção do sistema é transferida para a sua adequação.

13 “Há uma conexão entre uma série de pontos materiais quando, a partir do conhecimento de alguns dos componentes dos deslocamentos daqueles pontos, somos capazes de enunciar algo sobre os componentes remanescentes” (HERTZ, 1956, p. 78). 14 A obtenção de expressões matemáticas para as forças de vínculo presentes em determinados casos de movimento por meio de “procedimentos newtonianos”, pode ser extremamente difícil ou, até mesmo, impossível (MARION e THORTON, 1995, p. 232). 15 Esta é também a opinião de Poincaré, para que o princípio da ação mínima deveria ser enunciado de forma menos ‘chocante’ em que, ‘como diriam os filósofos, as causas finais não parecessem tomar os lugar das causas eficientes’ (1984, p. 106). 16 Um caso de rolamento sem deslizamento, por exemplo, seria, na verdade, um caso de rolamento com um pouco de deslizamento (HERTZ, 1956, p. 20).

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Mas, na concepção de Hertz, a imagem mais adequada é aquela que se mostra mais simples,

e, nesta segunda imagem, a simplicidade é extremamente comprometida pela complexidade

excessiva do princípio de Hamilton:

Ele não apenas faz com que o movimento presente dependa de conseqüências que somente se exibirão no futuro – por isso atribuindo intenções à natureza inanimada – mas, o que é muito pior, atribuindo à natureza intenções que são desprovidas de sentido, uma vez que a integral, cujo mínimo é requerido pelo princípio de Hamilton, não tem um significado físico simples; e para a natureza, fazer de uma expressão matemática um mínimo ou induzir sua variação para zero é um objetivo ininteligível (1956, p. 23).

Hertz estava ciente de que a maioria dos adeptos da abordagem dos problemas físicos

propiciada pela representação energetista da mecânica replicariam, alegando que a sua dúvida, e

não os artifícios matemáticos envolvidos na aplicação do princípio de Hamilton, é que seria

desprovida de sentido. A preocupação de Hertz, diriam, tem caráter metafísico e, como tal, não tem

significado para a física.

Mas, para Hertz, “não se remove um dúvida que impressiona nossas mentes ao chamá-la de

metafísica” (1956, p. 23). Para ele, o aspecto mais problemático desta segunda imagem da

mecânica refere-se à sua permissibilidade lógica e envolve, inicialmente, a definição do conceito de

energia. Segundo o cientista,

Atualmente, muitos físicos renomados tendem frequentemente a atribuir à energia as propriedades de uma substância, ao assumir que cada porção mínima de energia está associada, a qualquer instante, com um dado lugar no espaço, e que, durante todas as mudanças de posição e todas as transformações de energia em novas formas, ela mantém sua identidade (1956, p. 21).17

Mas, a separação da energia mecânica em dois tipos dissimilares – cinética e potencial –

compromete a coerência da analogia entre este conceito e o de substância. Além do mais, costuma-

se atribuir valor negativo à energia potencial, o que, de forma alguma, poderia ser associado às

propriedades de uma substância (HERTZ, 1956, p. 22).

Por fim, Hertz afirma que, levando-se ao limite a definição de quantidade de energia

potencial contida em um dado corpo, conclui-se que “a quantidade das muitas formas de energia

potencial contida em quantidades finitas de matéria é infinitamente grande”18 (Ibidem).

17 A idéia de energia como uma substância indestrutível não era unânime entre os cientistas. Georg Helm, por exemplo, defendia que o conceito de energia não expressava nada mais do que relações entre os fenômenos. Apesar da defesa de Helm do caráter puramente relacional do conceito de energia ter se tornado pública somente após a morte de Hertz, a polêmica sobre este tema já vinha ocorrendo a mais tempo. Sobre o assunto, ver (CASSIRER, vol. IV. 1986, pp. 120-125). 18 “... a quantidade de energia potencial contida em um dado corpo depende da presença de massas distantes que, talvez, nunca tenham exercido nenhuma influência sobre o sistema. Se o universo e, por conseguinte, o número de tais massas distantes, for infinito, então, a quantidade das muitas formas de energia potencial contida mesmo em quantidades finitas de matéria, será infinitamente grande” (HERTZ, 1956, p. 22).

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Hertz considera que esta segunda imagem da mecânica carece de desenvolvimentos que a

tornem logicamente satisfatória.19 Levando em conta o estado formal em que ela se encontra, o

cientista opta por abandoná-la em favor da terceira imagem da mecânica.

II. 4. A MECÂNICA DE HERTZ

A terceira imagem da mecânica é aquela que Ernst Mach chama de ‘a mecânica de Hertz’

(1960, p. 317), cuja forma e conteúdo são inteiramente desenvolvidos na obra The Principles of

Mechanics. Segundo o próprio autor, esta terceira imagem difere das duas primeiras neste

importante aspecto: ‘ela parte de apenas três concepções fundamentais independentes, ou seja,

tempo, espaço e massa’ (HERTZ, 1956, p. 24) e seu objetivo é ‘representar as relações naturais

entre estas três concepções, e apenas estas três’ (HERTZ, 1956, p. 25).

Dessa forma, acredita Hertz, os problemas até aqui encontrados quando da utilização das

idéias de força e energia como concepções fundamentais nas duas primeiras imagens, podem ser

evitados. Porém, para evitar que esta terceira imagem, apoiada apenas nas referidas concepções

fundamentais, torne-se restritiva, Hertz lança mão de uma hipótese:

Se tentarmos entender os movimentos dos corpos à nossa volta, e remetê-los a regras simples e claras, prestando atenção somente no que pode ser diretamente observado, nossa tentativa, geralmente, falhará. Nós logo percebemos que a totalidade das coisas visíveis e tangíveis não forma um universo de acordo com a lei, no qual os mesmos resultados sempre são obtidos a partir das mesmas condições. Nós nos convencemos de que a diversidade do universo real deve ser maior do que a diversidade do universo que nos é diretamente revelado pelos nossos sentidos. Se desejamos obter uma imagem do universo que seja bem modelada, completa e conforme a lei, temos que pressupor, por trás das coisas que vemos, outras coisas invisíveis: devemos imaginar aliados ocultos além dos limites de nossos sentidos. Tais influências subjacentes foram identificadas nas duas primeiras representações; nós as imaginamos como tipos especiais e peculiares de entidades e, então, criamos as idéias de força e energia. Mas um outro caminho se mostra aberto. Podemos admitir que exista algo oculto atuando e, mesmo assim, negar que este algo pertença a uma categoria especial. Estamos livres para assumir que este algo escondido não é nada mais do que movimento e massa novamente20 – movimento e massa que diferem dos casos visíveis apenas por não poderem ser percebidos pelos nossos meios usuais de percepção. Este modo de concepção é simplesmente nossa hipótese (1956, p. 25).

Na passagem acima, Hertz parece contradizer não só suas próprias críticas quanto à

obscuridade da idéia de força contida na primeira imagem da mecânica, ao introduzir na sua

19 Os comentários de Hertz sobre a representação energetista da mecânica são bastante gerais. Nesses comentários, o autor não cita especificamente problemas dos quais tratará em The Principles of Mechanics, como o da inadequação da definição da energia mecânica total nos casos em que as ações mútuas entre partículas eletrizadas dependem não só das distâncias entre elas, mas também da velocidade e aceleração dessas partículas (hipótese de Weber). 20 Segundo Hertz, idéias similares a esta já vinham sendo utilizadas no estudo de fenômenos relacionados com calor e na explicação das forças envolvidas nas interações eletromagnéticas. Na Alemanha, os termos massa oculta (concealed mass) e ‘movimento oculto’ (concealed motion) foram disseminados por von Helmholtz (HERTZ, 1956, p. 26).

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imagem, mesmo que na forma de hipótese, entidades e movimentos ocultos, como também os

elogios feitos por ele em relação à simplicidade e aos aspectos vantajosos da segunda imagem.

Mas, como será visto mais adiante, a referida hipótese cumpre um papel crucial no

estabelecimento da forma, do conteúdo e, talvez o mais importante, do papel da mecânica de Hertz

em relação ao conhecimento físico. A opção por representar a mecânica exclusivamente por meio

das relações entre os três elementos fundamentais apresentados inicialmente – tempo, massa e

espaço – com o auxílio de uma hipótese que pressupõe a repetição dessas mesmas relações de forma

supra-sensível, tem como objetivo a obtenção de uma explicação dinâmica das interações

envolvidas nos fenômenos naturais, evitando caracterizá-las como interações a distância.21

As idéias fundamentais da mecânica de Hertz são, primeiramente, relacionadas em pares. A

cinemática trata das relações entre espaço e tempo.22 Relações existentes exclusivamente entre

massa e espaço podem ser observadas na natureza e seu estudo exibe propriedades importantes para

o desenvolvimento da imagem de Hertz:

Da origem dos tempos em diante e através dos tempos e, por isso, independentemente do tempo, certas posições e certas mudanças de posições são prescritas e associadas como possíveis para estas massas, e todas as outras são consideradas impossíveis. Respeitando estas conexões, podemos também afirmar de maneira geral que elas se aplicam apenas às posições relativas das massas entre si; além do mais, podemos afirmar que elas satisfazem certas condições de continuidade, as quais encontram sua expressão matemática no fato de que as próprias conexões podem sempre ser representadas por equações lineares homogêneas entre a derivada primeira das magnitudes pelas quais as posições das massas são representadas (HERTZ, 1956, p. 27).

As relações entre as três idéias fundamentais tomadas simultaneamente, são sintetizadas pela

lei fundamental desta terceira imagem:

§309 – Todo sistema livre persiste no seu estado de repouso ou de movimento

uniforme na trajetória mais retilínea.

Systema omne liberum perseverare in statu suo quiescendi vel movendi uniformiter

in directissimam. (HERTZ, 1956, p. 144).

De acordo com Hertz, no enunciado da lei fundamental de sua imagem da mecânica estão

condensados a lei da inércia e o princípio da mínima restrição de Gauss (1956, p. 28).

A partir do que foi até aqui estabelecido, pode-se derivar ‘todo o resto da mecânica por

meio de puro raciocínio dedutivo’ (HERTZ, 1956, p. 28). Assim, alguns problemas, como os

apontados na concepção da idéia de força contida na primeira imagem da mecânica, são, segundo

Hertz, evitados:

21 Maxwell já havia obtido sucesso na abordagem dinâmica dos fenômenos eletromagnéticos (MARTINS, 2005, pp. 13-15). 22 Para uma abordagem mais detalhada, ver HERTZ, 1956, pp. 121-135.

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(1) Quando necessária ao desenvolvimento desta terceira imagem da mecânica, a idéia de força

aparece como um auxílio matemático cujas propriedades são pré-determinadas;

(2) caracterizada como resultado da interdependência dos movimentos de dois corpos pertencentes a

um mesmo sistema,23 conforme determinado pela lei fundamental, a força deve ser considerada

causa e, ao mesmo tempo, conseqüência do movimento, apresentando-se, dessa forma, como uma

‘conseqüência necessária do pensamento’ (HERTZ, 1956, p. 28).

De maneira geral, as principais vantagens ou ‘méritos’ do sistema proposto por Hertz, na

forma matemática em que é apresentado, seriam, de acordo com o próprio autor, os seguintes: em

primeiro lugar, a forma matemática utilizada para representar o seu sistema24 confere-lhe

abrangência, simplicidade, brevidade e maior conformidade com as observações experimentais; em

segundo lugar, a lei fundamental, ao condensar a primeira lei de Newton e o princípio de Gauss,

“simplesmente expressa um fato conhecido sem qualquer pretensão de estabelecê-lo”25 (1956, p.

32); Hertz considera como a terceira vantagem do modo de apresentação de seu sistema mecânico, a

descaracterização do princípio de Hamilton como uma ramificação da mecânica, para considerá-lo

como mais um método geométrico aplicado a ela (1956, pp. 29-33).

O esmero de Hertz na preparação dos aspectos lógicos formais de sua imagem da mecânica

é coerente com os critérios metodológicos por ele propostos. Na concepção do autor, “apenas

imagens logicamente claras são testáveis quanto à correção e apenas imagens corretas são

passíveis de comparação quanto à adequação. Por pressão das circunstâncias este processo é

muitas vezes revertido” (1956, p. 10).

A pureza lógica da representação da mecânica de Hertz é garantida pela maneira segundo a

qual ela é desenvolvida. O autor adota na elaboração de The Principles of Mechanics a ‘velha forma

sintética’ (1956, p. 35), o que significa ‘especificar previamente e claramente, mesmo que de forma

monótona, o valor lógico atribuído a cada enunciado importante’ (Ibidem). Mas, de tal esforço

resulta uma representação conclusiva, pura e livre de contradições (1956, p. 33).

O autor divide sua obra em dois livros. No livro I, são descritas, minuciosamente, uma série

de idéias fundamentais e suas relações, obtidas, não da experiência, mas das ‘leis da nossa intuição

23 “O movimento do primeiro corpo determina uma força e esta força, então, determina o movimento do segundo corpo” (HERTZ, 1956, p. 28). 24 Hertz inicia o desenvolvimento de sua representação da mecânica a partir do estudo de sistemas materiais ao invés de partir do estudo, teoricamente mais simples, de pontos materiais, por considerar estes últimos uma abstração (1956, p.31). 25 De acordo com Hertz, o modo de expressão matemática escolhido por ele permitiu-lhe a enunciação da lei fundamental, sintetizando nela a primeira lei de Newton e o princípio de Gauss, estabelecendo, porém, uma limitação que não é estabelecida quando se considera estes dois últimos tomados separadamente: os vínculos entre sistemas materiais são permanentes e indestrutíveis. Além do mais, o princípio de Gauss sugere que a natureza atuaria como um “calculista perspicaz”, mantendo o menor valor possível da quantidade que denominamos restrição (‘constraint’) (1956, pp. 31-32).

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e pensamento, combinadas com uma série de enunciados arbitrários’ (1956, p. 135). Neste

primeiro livro, Hertz apresenta uma primeira definição de tempo, espaço e massa, a descrição de

conexões, trajetórias mínimas, trajetórias geodésicas, trajetórias “mais retilíneas” (‘straightest

paths’) e uma série de enunciados aos quais deve ser remetido o conteúdo do livro II.

O livro II trata da mecânica propriamente dita. Nele o autor enuncia a lei fundamental de sua

mecânica, estabelecendo sua validade e limites, além de, obviamente, aplicá-la ao estudo dos

movimentos. Alguns enunciados, como o do princípio da conservação da energia e do princípio de

Hamilton, por exemplo, são revisados à luz da lei fundamental.26 No penúltimo e mais longo

capítulo do livro II, Hertz apresenta um estudo de sistemas cíclicos que incluem sua hipótese de

massas ocultas. Segundo Hertz, “neste segundo livro nosso objetivo não consiste em determinar as

relações necessárias entre as criações de nossas próprias mentes, mas, especialmente, considerar

as conexões experimentais entre os objetos de nossa observação externa” (1956, pp. 270 - 271).

De acordo com Hertz, sua intenção não era apresentar uma imagem que pudesse ser

considerada única e nem a melhor imagem. Sua tentativa objetivava fornecer um exemplo de

representação inteligível que evitasse “o uso de reservas e ambigüidades convenientes para as

quais somos atraídos pela riqueza de combinações da linguagem ordinária” (1956, p. 35), o que,

de acordo com sua própria avaliação, teria sido cumprido com sucesso.

Hertz, então, submete a sua própria imagem da mecânica à crítica segundo os critérios por

ele estabelecidos: permissibilidade lógica, correção e adequação.

Quanto à correção, Hertz não tem dúvidas de que o seu sistema está em conformidade com

um grande número de movimentos naturais, e não hesita em afirmar que ele incluiria todos os

movimentos observados experimentalmente. Por outro lado, sua proposta extrapola o que é

assegurado pela experiência ao supor que as conexões entre sistemas materiais são limitadas por

condições de continuidade, podendo, portanto, ser representadas exclusivamente por equações

diferenciais lineares. Hertz apóia-se na máxima Natura non facit saltus, a qual, se não pode ser

respaldada pela experiência, deve ser assumida como uma hipótese temporariamente aceita (1956,

pp. 36-37).

Também além da experiência sensível está a explicação dinâmica da força. Por isso, Hertz

mostra-se cauteloso em relação ao assunto, mesmo ressaltando que teorias como a dos vórtices

26 §358. “A integral horária da energia na transferência de um sistema holonômico, de uma dada posição inicial para uma posição final suficientemente próxima, é menor para o movimento natural do que para qualquer outro movimento possível pelo qual o sistema possa passar da posição inicial dada para a posição final em um mesmo tempo” (HERTZ, 1956, p. 158). §359. “Se a limitação a posições suficientemente próximas é removida, então, a integral horária da energia não mais será necessariamente um mínimo, mas sua variação, todavia, desaparece na transferência para qualquer outro dos movimentos considerados” (Ibidem). §360. “A proposição precedente corresponde ao princípio de Hamilton” (Ibidem).

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atômicos no éter de Lord Kelvin tenham se mostrado em conformidade com os fenômenos

naturais27 (1956, pp. 37-38).

No intuito de estabelecer a abrangência de sua mecânica, Hertz esclarece que o limite de

aplicação de seu sistema e de sua lei fundamental restringe-se à natureza inanimada, não sendo estes

capazes de dar conta nem mesmo do mais simples processo interno da vida:

“Por enquanto, ela nos permite abordar todo o domínio da mecânica, ela nos mostra quais são os limites deste domínio. Ao nos fornecer apenas fatos conhecidos, sem atribuir a eles qualquer aparência de necessidade, ela nos torna capazes de reconhecer que tudo poderia ser completamente diferente”28 (1956, p. 38).

Hertz considera que, das duas primeiras imagens analisadas, a segunda apresenta

superioridade quanto ao critério de adequação. Na opinião do autor, esta segunda imagem e a sua

própria se equiparam no que concerne à distinção e à simplicidade.29 Porém, a terceira imagem

inclui os casos de certas conexões rígidas que não estão presentes na segunda. Na terceira imagem,

assim como na segunda, o principal aspecto relativo à simplicidade reside na possibilidade de

‘confinar nossas considerações a características do sistema material que são acessíveis à

observação’ (HERTZ, 1956, p. 39). Mas a imagem de Hertz é formalmente mais simples e suas

concepções estão mais aproximadamente adaptadas à natureza (Ibidem).

Pode-se alegar, no entanto, que a simplicidade se vai quando as massas ocultas entram em

cena. Contra este tipo de argumento, Hertz rebate: “Mas mesmo nestes casos, a razão da

complicação é perfeitamente óbvia. A perda de simplicidade não se deve à natureza, mas ao nosso

conhecimento imperfeito da natureza” (1956, p. 39).

Na comparação entre sua própria imagem e a primeira, Hertz avalia que as duas encontram-

se em pé de igualdade no que diz respeito à permissibilidade lógica e à adequação. Porém, o critério

de correção define a terceira como a melhor imagem, “na medida em que um conhecimento mais

refinado nos mostra que a suposição de forças a distância invariáveis fornece apenas uma primeira

aproximação da verdade; um caso que já se manifestara na esfera das forças elétricas e

magnéticas” (1956, p. 41).

27 Moreira (1995, p. 35) interpreta da seguinte forma a proposta de Hertz: “[Hertz] supõe a existência de vínculos (conexões geométricas) que ligam os objetos e seus elementos hipotéticos, as massas ocultas. Sua dinâmica se reduz, num certo sentido, à cinemática. A lei básica será construída na forma de um sistema variacional local”. 28 Abrantes (1992) e Moreira (1995) defendem que esta limitação imposta por Hertz à sua representação tem como objetivo livrá-la de pressupostos metafísicos de caráter teológico ou teleológico, coerentemente, portanto, com as críticas dirigidas pelo cientista ao princípio de Hamilton. Veremos mais adiante, que na perspectiva de Janik e Toulmin (1973), o estabelecimento de uma representação cujos limites estão contidos nela própria é uma conseqüência da filiação neokantiana de Hertz. 29 De acordo com Hertz, isto se torna claro quando todo o conteúdo de The Principles of Mechanics é examinado (1956, p. 39).

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E, segundo o autor, os fenômenos eletromagnéticos não apenas seriam capazes de consolidar

a sua imagem como a mais apropriada, mas também de definir novos pressupostos sobre os quais se

apoiariam a mecânica:

O balanço das evidências será inteiramente favorável à terceira imagem quando uma segunda aproximação da verdade puder ser obtida pela associação das supostas ações a distância a movimentos em um meio que tudo permeia (“all-pervading”) cujas partes estão sujeitas a conexões rígidas; um caso que também parece próximo de ser concretizado na mesma esfera [do eletromagnetismo]. Este é o campo no qual será travada a batalha decisiva entre os pressupostos fundamentais da mecânica (1956, p. 41).

Mas, Hertz considera que a sua representação da mecânica e a mecânica tradicional foram

desenvolvidas sob diferentes circunstâncias: enquanto uma representa um ‘esforço para abarcar

objetivamente o todo do conhecimento físico, sem considerar a posição acidental do homem na

natureza, apresentando este conhecimento de uma maneira simples’, a outra se mostra mais

adequada quando se leva em conta suas aplicações práticas ou as necessidades da humanidade. Sob

a perspectiva de Hertz:

Nossa representação da mecânica tem para com a representação usual a mesma relação que a gramática sistemática da linguagem tem para com uma gramática utilizada com o propósito de capacitar estudantes a aprender, o mais rapidamente possível, aquilo de que eles necessitarão na vida diária (1956, p.40).

Ao se deparar com dificuldades na compreensão de certos trechos do livro II de The

Principles of Mechanics, seu editor, Philipp Lenard, recorreu ao velho mentor de Hertz, Hermann

von Helmholtz, obtendo a seguinte resposta:

Eu só posso dizer que estou apenas começando a compreender qual é o objetivo [de Hertz], e isso somente desde que eu recebi os últimos originais há poucos dias atrás. Até então, eu não tinha a menor noção do que ele estava querendo dizer30

(apud MULLIGAN, 1999, p. 357).

No prefácio à obra, Helmholtz lamenta a ausência de exemplos que ilustrem a aplicação e,

portanto, a necessidade, da hipótese de massas e movimentos ocultos. Moreira (1995, p. 36)

concorda com Helmholtz e ainda aponta ‘dificuldades operacionais na manipulação matemática’

dos princípios da mecânica de Hertz. Ademais, continua Moreira, a nova forma proposta por Hertz

para representar a mecânica, além de não conseguir resolver as dificuldades por ele indicadas nos

outros sistemas, introduz novas dificuldades.

Enfim, é no mínimo duvidoso que Hertz tenha alcançado em sua imagem da mecânica as tão

almejadas clareza e simplicidade, o que, de certa forma, tenha minimizado a sua repercussão.31

30 A frase está destacada em itálico no texto original. 31 Para Moreira, além da proposta de Hertz apresentar-se como uma alternativa complicada para a abordagem da mecânica, sua repercussão foi prejudicada por ela se basear na mecânica clássica, num momento em que os questionamentos teóricos e experimentais demandavam um sistema mais radical (1995, pp. 36-37).

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De qualquer forma, a mecânica de Hertz não passou despercebida. Mach, por exemplo,

dedica uma secção do capítulo III de seu livro The Development of Mechanics (em edições revistas,

publicadas após 1894) – no qual são comentados alguns aspectos das realizações de Galileu,

Huygens e Newton – exclusivamente para a discussão da mecânica de Hertz.

Mach não concorda com os ataques dirigidos por Hertz à falta de clareza da idéia de força

no sistema ‘galileano-newtoniano’ da mecânica. Segundo Mach, o conceito de força que Hertz

tinha em mente ao efetuar tal crítica se deve, possivelmente, a interpretações logicamente

deficientes herdadas dos tempos em que o cientista ainda era um estudante (1960, p. 319). Sobre a

afirmação de Hertz de que, em muitos casos, a força não se apresenta aos sentidos, Mach replica:

“Em todo caso, ‘forças’ estão decididamente em vantagem nesta contenda, se comparadas a

‘massas ocultas’ e movimentos ocultos’ ”(Ibidem).

Mas, aparentemente, Mach considera indiferente a eliminação da força na descrição dos

movimentos – o que ele identifica como o objetivo principal de The Principles of Mechanics – em

favor das conexões rígidas propostas por Hertz:

Faz parte da idéia geral do sistema da mecânica galileano-newtoniano conceber todas as conexões substituídas por forças que determinam os movimentos exigidos pelas conexões; reciprocamente, tudo que aparece como força pode ser concebido como conseqüência de uma conexão. Se a primeira idéia aparece frequentemente nos antigos sistemas como sendo historicamente mais simples e imediata, no caso de Hertz, a segunda é a mais proeminente. Se considerarmos que em ambos os casos, sejam pressupostas forças ou conexões, a dependência real dos movimentos das massas em relação umas às outras é dada, para toda configuração instantânea do sistema, por equações diferenciais lineares entre as coordenadas das massas, então, a existência dessas equações deve ser considerada o fato fundamental – o fato estabelecido pela experiência (MACH, 190, p. 321).

Como o sistema proposto por Hertz se desenvolve plenamente a partir de tais equações,

qualquer preocupação adicional com as idéias de força e conexões, torna-se, segundo Mach,

absolutamente desnecessária (1960, p. 321).

Além do mais, Mach considera que a utilização da hipótese de massas e movimentos ocultos

implicaria lançar mão de “de fantásticas e até, frequentemente, questionáveis ficções, às quais as

acelerações ‘dadas’ seriam, sem dúvida, preferíveis”32 (1960, pp. 323-324).

Quanto às críticas de Hertz aos princípios de mínimo, Mach afirma que, ao introduzir os

conceitos de tempo, velocidade, etc., todo sistema da mecânica contém referências ao futuro. Além

do mais, as condições de mínimo são determinadas matematicamente de acordo com observações

experimentais, não sendo capazes de revelar o significado físico dos fenômenos em questão.

32 “Por exemplo, se uma massa m está se movendo uniformemente em um círculo de raio r, com velocidade v, à qual estamos acostumados a atribuir uma aceleração centrípeta mv²/r procedente do centro do círculo, nós deveríamos, ao invés disto, ter que conceber a massa rigidamente conectada a uma distância 2r com uma outra de mesmo tamanho movendo-se com velocidade contrária” (MACH, 1960, p. 324).

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Mach, no entanto, demonstra admiração pela eliminação quase total de elementos supérfluos

do conteúdo da mecânica, resultante da forma pela qual Hertz o apresenta, chegando mesmo a

afirmar que a mecânica de Hertz seria o sistema que mais se aproximaria do ideal cartesiano (1960,

p. 323). Segundo Mach, “como um programa ideal, a mecânica de Hertz é mais simples e bela,

mas, para propósitos práticos, nosso presente sistema da mecânica é preferível, como o próprio

Hertz, com sua honestidade característica, admite” (1960, p. 324).

Para alguns autores, como Moreira (1995, p. 37), a mecânica de Hertz é complicada e

incapaz de resolver satisfatoriamente os problemas apresentados pelas demais representações; para

outros, como Mach, o sistema de Hertz é formalmente impecável, mas inadequado para a

abordagem de problemas práticos. Sejam quais forem os motivos, o certo é que referências à

mecânica de Hertz raramente aparecem em livros- texto e, quando aparecem, resumem-se ao seu

princípio da menor curvatura33 (MOREIRA, 1995, p. 40).

Mas, se o conteúdo dos Princípios da Mecânica apresentados numa nova forma não atraiu

adeptos, o mesmo não pode ser dito do seu leitmotiv: a unificação do estudo dos fenômenos naturais

através da mecânica. D’Agostino caracteriza The Principles of Mechanics como um ‘programa

inacabado’ que visava unificar a mecânica e o eletromagnetismo por meio dos elementos ocultos

hipotéticos de Hertz (2004, p. 379). Na perspectiva de Planck, “a tentativa mais elegante, e talvez a

final, de expressar todos os fenômenos da natureza em termos de movimento está contida na

mecânica de H. Hertz” (apud MOREIRA, 1995, p. 37).

Mesmo aqueles que não partilhavam da crença de que a natureza deveria se ‘dobrar’ à

mecânica ou à dinâmica, em algum momento, citaram Hertz como referência:

A maioria dos teóricos tem uma constante predileção pelas explicações tomadas à Mecânica ou à Dinâmica. Alguns ficariam bem satisfeitos se pudessem explicar tudo pelos movimentos de moléculas que se atraem mutuamente segundo certas leis. Outros são mais exigentes; gostariam de suprimir as atrações à distância. As moléculas seguiriam trajetórias retilíneas das quais só poderiam ser desviadas por choques. Outros ainda, como Hertz, suprimem também as forças, mas supõe suas moléculas submetidas a conexões geométricas análogas, por exemplo, àquelas de nossos sistemas articulados. Desse modo, pretendem reduzir a Dinâmica a uma espécie de cinemática. Em suma, todos querem dobrar a natureza de uma certa forma, fora da qual suas mentes não se sentiriam à vontade. (POINCARÉ, 1984, p. 131).

Não se quer defender aqui que o ideal de unificação da física através da mecânica estivesse

personificado exclusivamente em Hertz. Aliás, o trecho acima afirma exatamente o contrário. No

entanto, segundo Moreira (1995, p. 39), o programa de unificação da física ‘raramente encontrou

um defensor mais insistente’, do que houvera encontrado em Hertz.

33 Ver, por exemplo, MARION e THORTON, 1995, p. 234.

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Se assim é, não se pode descartar a hipótese de que o ponto de vista do próprio Poincaré –

um estudioso da mecânica de Hertz34 – sobre o objetivo da ciência, tenha sido reforçado pela

postura unificadora de Hertz, mesmo discordando do aspecto fundamental para o cientista alemão.

Segundo o matemático francês, o objetivo da ciência “não é o mecanismo, o verdadeiro, o único

fim, é a unidade” (1984, p. 136).

Moreira especula – com base nas referências feitas por Einstein em suas Notas

Autobiográficas ao trabalho de Hertz e nas semelhanças entre os critérios adotados por ambos na

elaboração das teorias científicas – sobre uma possível influência da perspectiva de Hertz em

relação à mecânica na obra de Einstein:

As críticas de Mach e Hertz, e possivelmente também as de Poincaré, terão influenciado Einstein na sua crítica à mecânica clássica e em sua busca por uma teoria mais abrangente que englobasse o campo gravitacional. Certamente a geometrização daí advinda tem paralelos importantes com as concepções de Hertz de eliminação da força e de redução da dinâmica a uma cinemática (o que, em alguma forma, ocorrerá com o campo gravitacional na teoria da relatividade geral) (MOREIRA, 1995, p. 39).

Referindo-se ainda à possível repercussão da mecânica de Hertz na produção científica de

Einstein, mas incluindo, também, a influência hertziana nos trabalhos de outros cientistas

importantes, Moreira continua:

As massas ocultas de Hertz, que ressuscitam, em certo sentido, na tentativa de introduzir variáveis ocultas para uma descrição realista local da mecânica quântica, encetada por de Broglie, D. Bohm, Vigier e outros, e que contava com a simpatia de Schrödinger, não oferecia atrativos para Einstein. Mas o programa global da descrição unificada de toda a física, perspectiva significativa em Einstein, embora não seja, de nenhum modo, uma postura unicamente de Hertz, raramente encontrou um defensor mais insistente (Ibidem).

Se a repercussão da representação da mecânica exposta em The Principles of Mechanics é

pálida e somente pode ser rastreada de forma indireta, senão especulativa, o mesmo não ocorre com

a influência da filosofia da ciência de Heinrich Hertz, exibida na introdução a esta obra.

34 Ver, por exemplo, POINCARÉ, H. Les idées de Hertz sur la mécanique. Revue Génerale dês Sciences, t. 8, p. 734-743, 1897.

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CAPÍTULO III – A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE HEINRICH HERTZ

III. 1. INTRODUÇÃO

Em geral, estabelece-se a análise da teoria eletromagnética de Maxwell exposta na

introdução à Electric Waves, como marco inicial das preocupações de Hertz com aspectos de

caráter filosófico-metodológico das teorias científicas (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 128;

ABRANTES, 1992, p. 353; D’AGOSTINO, 2004, p. 377). Na introdução a esta obra, Hertz

investiga os diferentes ‘modos de representação’ (D’AGOSTINO, 2004, p. 377), “imagens” ou

“modelos” dos fenômenos eletromagnéticos (ABRANTES, 1992, p. 354), problematiza a

possibilidade de proposição de diferentes representações para um mesmo grupo de fenômenos ‘e

dada a necessidade de se optar por uma das representações, estabelece critérios de seleção e tenta

justificá-los’ (Ibidem).

Como foi dito no Capítulo I deste trabalho, a reconstrução axiomática da teoria

eletromagnética de Maxwell elaborada por Hertz em Eletric Waves visava, dentre outras coisas, a

eliminação das inconsistências identificadas na referida teoria. Segundo Hertz, tais inconsistências

surgiam como conseqüência dos diferentes “modos de representação” utilizados por Maxwell em

sua obra A Treatise on Electricity and Magnetism.1 Além do mais, a teoria de Maxwell, que

pressupunha ações eletromagnéticas mediatizadas, podia ser obtida da teoria de Helmholtz,2 a qual

considerava que as ações eletrodinâmicas se davam a distância. Sobre estes diferentes modos de

representação de um mesmo domínio da física, Hertz – naquela que é, provavelmente, a passagem

mais conhecida de seu trabalho de cunho filosófico – afirma:

Embora diferentes em forma – [os diferentes modos de representação] têm substancialmente a mesma significação interna. Esta significação comum dos diferentes modos de representação (e outros podem certamente ser encontrados) parece-me constituir a parte permanente do trabalho de Maxwell. Isto, e não as concepções e métodos peculiares de Maxwell, eu definiria como “a teoria de Maxwell”. À questão, “O que é a teoria de Maxwell?” Eu não conheço uma resposta mais direta ou mais definitiva do que a seguinte: – a teoria de Maxwell é o sistema de equações de Maxwell. Toda teoria que conduza ao mesmo sistema de equações, e, portanto, abranja os mesmos fenômenos, eu consideraria uma forma ou um caso especial da teoria de Maxwell... Assim, neste sentido, e apenas neste sentido, podem as duas dissertações teóricas tratadas no presente livro ser consideradas como representações da teoria de Maxwell. Em nenhum sentido elas podem ter a pretensão de serem consideradas traduções precisas das idéias de Maxwell. Ao contrário, é duvidoso que Maxwell, enquanto vivo, as reconheceria como representantes de seus próprios pontos de vista em qualquer aspecto (apud D’AGOSTINO, 2004, pp. 377-378).

1 Primeira edição: Clarendon Press, Oxford, 1873. 2 Levando-se ao limite determinados parâmetros da teoria de Helmholtz, chega-se à teoria de Maxwell (ABRANTES, 1992, p. 354; D’AGOSTINO, 2004, p. 377).

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A princípio, a citação acima parece sugerir uma identificação imediata entre a concepção de

teoria científica de Hertz e o ponto de vista dos fenomenistas: ‘a teoria de Maxwell é o sistema de

equações de Maxwell’! Mas, se esta última afirmação representasse a síntese da concepção

hertziana de uma teoria científica, poder-se-ia, então, dizer que, em última análise, as

representações de Helmholtz e Maxwell dos fenômenos eletromagnéticos se equivalem. No entanto,

embora estes dois modos de representação possuam uma mesma significação interna fornecida pela

possibilidade de identidade dos respectivos formalismos matemáticos, eles diferem num aspecto: a

significação física. E este não parece ter sido um aspecto secundário para Hertz. Afinal, ‘ele deu

preferência ao ponto de vista de Faraday-Maxwell de ação contínua (mais especificamente o ponto

de vista de que os fenômenos magnéticos, como a eletrização, são efeitos de processos ocorrendo

no meio etéreo)’3 (ABRANTES, 1992, pp. 364-365).

Hertz, então, concebe duas componentes distintas na estrutura de uma teoria científica: uma

constituída pelo imperecível formalismo matemático, que lhe fornece significação interna, e outra,

estabelecida pelo modo de representação adotado, responsável pela definição da significação física

desta teoria. Porém, para um mesmo conjunto de fenômenos (por exemplo, os fenômenos

eletromagnéticos envolvidos na pesquisa experimental de Hertz) diferentes modos de representação

são possíveis. Percebem-se aqui os primeiros traços distintivos do pensamento de Hertz. Segundo

D’Agostino:

... ao separar a estrutura matemática de uma teoria dos seus modos de representação ele [Hertz] desafiou profundamente a concepção de uma teoria física como uma unidade indivisível dos dois – uma concepção aceita por Maxwell e outros físicos-matemáticos do século XIX. De fato, para Hertz, os vários modos de representação de uma teoria física cumprem o papel de interpretar seus símbolos matemáticos e, assim, constituem seu conteúdo empírico; eles correlacionam seus símbolos matemáticos aos respectivos observáveis. Esta correlação, no entanto, não é de um para um; há nela uma certa margem de liberdade, uma vez que diferentes modos de representação são possíveis (2004, p. 379).

Para Hertz, portanto, a teoria é sub-determinada4 pela experiência, o que indica um

afastamento entre as suas concepções e a dos fenomenologistas, para os quais ‘todo conceito

empregado em uma teoria física deve, em última instância, encontrar sua realização concreta na

intuição empírica’ (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 131). Mas, diante da necessidade de se escolher

um dentre os diferentes modos de representação dos fenômenos, Hertz procura, em Electric Waves,

3 Vários fatores podem ter levado Hertz a optar pela representação maxwelliana do eletromagnetismo. Dentre eles destaco as possíveis vantagens heurísticas supostamente oferecidas por um modelo que pressupunha ações mediatizadas para o programa de unificação da física por meio da mecânica, pretendido por Hertz. 4 O problema da subdeterminação das teorias científicas será tratado mais adiante.

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estabelecer critérios metodológicos que balizem tal escolha e esboça uma definição de suas

concepções de ciência e ‘da tarefa filosofia da ciência’:

1. A tese de que nossas “idéias físicas e matemáticas” constituem “modos de representação” dos fenômenos (que subdeterminam tais modos de representação); 2. Importância do critério lógico (consistência) na aceitabilidade da teoria científica; 3. A exigência metodológica de parcimônia no emprego de hipóteses nas teorias científicas (ABRANTES, 1992, p. 356).

Em The Principles of Mechanics Hertz define sua posição em relação à função, validade e

limites de uma teoria científica, ao mesmo tempo em que formaliza um conjunto de critérios

metodológicos5 coerentes com sua concepção epistemológica. Tais critérios além de serem

aplicados na análise crítica das representações tradicionais da mecânica servem também como

diretrizes na elaboração da representação do próprio Hertz. Tanto na concepção hertziana de teoria

científica e nos critérios metodológicos dela derivados, quanto no desenvolvimento de sua

representação da mecânica, percebe-se a adesão de Hertz ao pensamento de Immanuel Kant (1724 –

1804) (ABRANTES, 1992; JANIK e TOULMIN, 1996; D’AGOSTINO, 2004). Certamente que a

distinção do pensamento de Hertz não se restringe à sua filiação kantiana.6 Mas, sua opção pelo

sistema filosófico de Kant foi, possivelmente, influenciada ou reforçada por seu primeiro mestre,

Hermann von Helmholtz.

Helmholtz formou-se em medicina pelo Instituto Real Friedrich-Wilhem. Trabalhou como

cirurgião e, posteriormente, também como professor de fisiologia até se tornar professor de física

em Berlim, onde Hertz estudou sob seus auspícios. A transição de Helmholtz da medicina para a

física deu-se como conseqüência de suas investigações das relações entre os processos biológicos e

fenômenos físicos e químicos, iniciadas ainda nos tempos de estudante sob o incentivo de seu

professor Johannes Peter Müller7 (1801 – 1858) (SOUZA FILHO, 1995, pp. 53-55). Os interesses

de Helmholtz abrangiam, também, a epistemologia e sua concepção de teoria física guarda

influências marcantes de seus estudos nos domínios da fisiologia e do pensamento de Kant.

Segundo D’Agostino, ‘Helmholtz foi um dos primeiros cientistas a criticar o caráter

objetivo das teorias científicas negando que os conceitos teóricos descrevem objetos físicos reais’,

crítica esta partilhada, posteriormente, por Hertz e Boltzmann (2004, p. 372). Esta postura de

5 Sobre os critérios metodológicos propostos por Hertz, ver Capítulo II deste trabalho. 6 Em escritos do final do século XIX, Mach (1960, p. 318) considera que a maioria dos físicos adota conceitos kantianos. 7 Os títulos de alguns dos artigos de Helmholtz publicados nos vinte e nove anos decorridos entre sua graduação em medicina (1842) e seu ingresso, como professor de física, na Universidade de Berlim (1871) dão uma medida do conteúdo físico de suas pesquisas: “Sobre a Conservação da Força” (1847), “Sobre a duração e o sentido de Correntes Elétricas induzidas pela variação de uma Corrente Indutora” (1851), “Sobre as Integrais das Equações Hidrodinâmicas que representam o Movimento de Vórtice” (1858), “Sobre a Aplicação da Lei de Conservação da Força à Natureza Orgânica” (1868), “Sobre as Oscilações Elétricas” (1868), etc. Sobre o assunto, ver SOUZA FILHO, 1995, pp. 53-55.

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Helmholtz relaciona-se diretamente com a sua opção de adotar as formas a priori de Kant como

ferramenta de análise dos problemas que vinham se apresentando nos domínios da física na segunda

metade do século XIX. A decisão do cientista em adotar um sistema filosófico que fundamentasse

uma análise crítica do desenvolvimento dos formalismos científicos advém de seu ponto de vista

sobre o papel e o valor da filosofia na investigação dos processos cognitivos:8

O que é verdade em nossa intuição e em nosso pensamento? Em que sentido nossas representações correspondem à realidade? Filosofia e ciências naturais encaram este problema de dois lados opostos; é uma tarefa comum a ambas (apud D’AGOSTINO, 2004, p. 373).

As pesquisas de Helmholtz no campo da fisiologia foram, também, determinantes na sua

concepção de conhecimento. Por meio delas, as interações entre sujeito e objeto puderam ser

expressas e quantificadas através do estabelecimento de relações entre as funções orgânicas e

fenômenos físicos e químicos. Mas, segundo Helmholtz, os processos mentais decorrentes de tais

interações se dariam em conformidade com a doutrina kantiana:9

A excitação do nervo ótico produz apenas sensações de luz, não importando se a luz objetiva – i.e. vibrações do éter – nele impinge, ou [se ele é estimulado por] uma corrente elétrica que passa através do olho, ou [por] pressão no globo ocular, ou [pela] tração do nervo durante rápidas mudanças da direção da visão. Na medida em que a qualidade de nossas sensações fornece-nos um relato do que é peculiar à influência externa pela qual estas sensações são excitadas, elas devem ser consideradas como um símbolo [do que é percebido], mas não como uma imagem. Pois, de uma imagem exige-se algum tipo de similaridade com o objeto do qual ela é uma imagem... (apud D’AGOSTINO, 2004, p. 373).

Em contrapartida, as impressões deixadas em Helmholtz por suas pesquisas em fisiologia

levaram-no a encetar uma proposta de modificação da concepção kantiana de formas de intuição a

priori.10 Além disso, segundo Helmholtz, as investigações de Kant sobre os processos de cognição

limitaram-se à análise lingüística, enquanto ele próprio seguiu o único caminho capaz de levar ao

entendimento dos processos cognitivos: a investigação fisiológica.

De acordo com D’Agostino, as reflexões de Helmholtz tornaram possíveis duas vertentes do

pensamento científico: “através de sua atenção à percepção e à psicologia, ele pavimentou o

caminho para a fenomenologia de Mach; por outro lado, através de sua atenção às formas de

8 É provável que o ponto de vista de Helmholtz sobre a importância da filosofia nos processos cognitivos tenha sido fortemente influenciado, desde cedo, pelo seu ambiente familiar e convívio social. Helmholtz presenciou inúmeros debates filosóficos entre seu pai, professor de Filosofia e Literatura Clássica, e os amigos da família (SOUZA FILHO, 1995, p. 55). 9 Helmholtz afirmava que os estudos de Johannes Müller sobre a fisiologia dos sentidos confirmam a doutrina de Kant (D’AGOSTINO, 2004, p. 375). 10 Helmholtz propõe uma forma geral de intuição a priori a qual seria completamente destituída de conteúdo empírico e que não abarcaria, por exemplo, a geometria euclidiana e as não-euclidianas (consideradas demasiadamente de pendentes de conteúdo empírico); as geometrias seriam, segundo o cientista, formas restritas (narrower) de intuição a priori. Sobre o assunto, ver D’AGOSTINO, 2004, pp. 375-376.

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intuição a priori de Kant, ele pavimentou o caminho para a “Bild conception” de Hertz”

(D’AGOSTINO, 2004, p. 385).

No final do século XIX, partidários destas duas vertentes11 encontravam-se em luta franca e

aberta. Nos primeiros anos do século XX, o empirismo antimetafísico de inspiração machiana

tornara-se dogmático na comunidade científica e tinha nas idéias de alguns de seus membros que se

identificavam com o pensamento de Hertz e Boltzmann o seu contraponto. Na filosofia, a influência

de Mach estendeu-se até o Círculo de Viena, cujos participantes dispensaram especial atenção ao

pensamento de Ludwig Wittgenstein, o qual, em sua obra Tractatus Logico-Philosophicus, recebeu

influência direta das idéias de Heinrich Hertz e Ludwig Boltzmann. No decorrer do século XX,

Erwin Schrödinger defendeu a disseminação da Bild conception e a radicalizou.

A época de Helmholtz, Hertz e Boltzmann assistiu à consolidação da física teórica como um

ramo institucionalizado da física (VIDEIRA, 1995, pp. 12-13). De acordo com diversos autores, a

perspectiva de Hertz sobre a relação entre teoria e hipótese associada à sua consciência das

implicações filosóficas desta relação, apontaram novos rumos para o desenvolvimento dessa

especialidade da física no século XX (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 128; VIDEIRA, 1995, p. 13;

D’AGOSTINO, 2004, p. 385): ‘com ele se abre, efetivamente, uma nova fase na metodologia da

física’ (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 128).

III. 2. A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE HEINRICH HERTZ12

No prefácio de The Principles of Mechanics, Hertz expõe, de forma muito geral, o seu ponto

de vista sobre qual seria o principal impasse enfrentado pela física naquele momento:

Todos os físicos concordam que o problema da física consiste em remeter (trace back) os fenômenos da natureza às leis simples da mecânica. Mas não há o mesmo acordo sobre o que são estas leis simples. Para a maioria dos físicos, elas são simplesmente as leis do movimento de Newton. Mas, na realidade, estas leis obtêm sua significação interna e seu significado físico através do pressuposto tácito de que as forças a que elas se referem são de natureza simples e possuem propriedades simples. Mas, a este respeito, não temos certeza do que é simples e permissível e do que não o é: é aqui que não mais encontramos qualquer acordo geral. Assim,

11 Ao utilizar a expressão partidários destas duas vertentes não estou com isto querendo afirmar que existiam dois grupos antagônicos de pensadores facilmente identificáveis que aderiram incondicionalmente a uma ou outra corrente de pensamento. A questão é complexa e nem mesmo a posição de Hertz em meio às polêmicas em torno do problema do conhecimento na virada do século XIX para o século XX era interpretada de forma única. 12 A análise dos aspectos filosóficos da concepção de ciência de Hertz apresentada nesta secção baseia-se, exclusivamente, no que é exposto pelo cientista em The Principles of Mechanics, principalmente na introdução à referida obra, em detrimento das reflexões apresentados em Electric Waves. Sigo aqui, a orientação adotada por autores como Janik e Toulmin (1973), Poincaré (1984), Cassirer (1986), Abrantes (1992), Moreira (1995) e D’Agostino (2004), os quais consideram a relevância de Electric Waves como marco inicial das preocupações filosóficas de Hertz, mas vêem The Principles of Mechanics como a obra em que o pensamento de Hertz se consolida.

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surgem diferenças reais de opinião sobre se esse ou aquele pressuposto estão ou não de acordo com o sistema usual da mecânica. É no tratamento de novos problemas que reconhecemos a existência de tais questões em aberto como um obstáculo real ao progresso. Então, é prematuro, por exemplo, basear as equações do movimento do éter nas leis da mecânica até que tenhamos obtido um acordo perfeito sobre o que se entende por este nome (1956, prefácio).

Para Hertz, portanto, não há dúvidas de que a mecânica ocupa uma posição privilegiada em

relação ao todo da física. Não se pode afirmar, no entanto, a mesma unanimidade em relação à

representação da mecânica a ser utilizada no estudo dos fenômenos físicos. Para a maior parte da

comunidade científica, o modelo newtoniano seria o mais adequado. Mas, frente aos ‘novos

problemas’ que vinham se apresentando aos físicos o modelo newtoniano dava sinais de

inadequação. Mesmo assim, algumas suposições vagas decorrentes desses ‘novos problemas’ – e o

exemplo do éter não é escolhido por acaso na citação acima – vinham sendo submetidas às leis da

mecânica. A partir de sua perspectiva sobre a situação da física naquele momento, Hertz, então,

apresenta o objetivo de The Principles of Mechanics:

O problema que me empenho em resolver na presente investigação é o seguinte: – Preencher as lacunas existentes e fornecer uma apresentação completa e definitiva das leis da mecânica que seja consistente com o presente estado de nosso conhecimento, que não seja restritiva demais, nem por demais extensiva em relação ao escopo deste conhecimento (1956, prefácio).

Ao empreender tal tarefa, Hertz deixa claro que não pretende fundar uma nova mecânica:

não há essencialmente nada de novo em relação ao que pode ser encontrado nos muitos livros sobre

o assunto (1956, prefácio). No entanto, o cientista demonstra ter plena consciência do caráter e do

alcance de sua proposta:

O que eu espero que seja novidade, e somente a isto eu atribuo valor, é o arranjo e a concatenação do todo – o aspecto lógico ou filosófico do assunto. Assim, na medida em que isto representa ou não um avanço nesta direção, reside o sucesso ou o fracasso do meu trabalho (HERTZ, 1956, prefácio).

Em The Principles of Mechanics, Hertz afirma que o principal objetivo do conhecimento

sistemático da natureza é “a antecipação de eventos futuros para que possamos organizar o nosso

presente de acordo com tal antecipação” (1956, p. 1). Com base em nosso conhecimento de

eventos já ocorridos, adotamos o seguinte processo para que esse objetivo seja alcançado:

Nós formamos para nós mesmos imagens ou símbolos de objetos externos; e a forma que nós damos a eles é tal que as conseqüências necessárias das imagens no pensamento são sempre as imagens das conseqüências necessárias na natureza das coisas observadas. Para que esta condição seja satisfeita, há de haver uma conformidade entre a natureza e o pensamento. A experiência nos ensina que tal requisito pode ser satisfeito, e, portanto, que tal conformidade de fato existe. Quando somos bem sucedidos na dedução de imagens da natureza desejada, a partir de nossa experiência previamente acumulada, nós podemos, então, em um curto período de tempo, por meio delas, ou por meio de modelos, chegar às

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conseqüências que no mundo externo só surgiriam em um espaço de tempo muito longo ou como resultado de nossa própria interferência (HERTZ, 1956, p. 1).

Hertz ressalta que as imagens a que ele se refere são nossas concepções das coisas e que a

conformidade destas imagens com a natureza se esgota na sua adequação ao que delas é requisitado

no processo anteriormente descrito. Não há meios de se saber se estas imagens estão em

conformidade com as coisas em nenhum outro aspecto que não seja este. No entanto, ainda de

acordo com Hertz, várias imagens de um mesmo objeto são possíveis (1956, p. 2). Para a definição

da ‘melhor’ dentre as várias imagens possíveis, Hertz estabelece três exigências:13 as imagens não

podem contrariar as leis do nosso pensamento, ou seja, não devem ser autocontraditórias

(‘permissibilidade’); as conseqüências das imagens devem ser compatíveis com a experiência

(‘correção’); a ‘melhor’ imagem é a mais simples (‘adequação’), ‘aquela que melhor representa as

relações essenciais do objeto’ (HERTZ, 1956, p. 2), a que contém o menor número de relações

supérfluas ou vazias. Mas, “relações vazias não podem ser totalmente evitadas. Elas fazem parte

das imagens por que elas são simplesmente imagens. Imagens produzidas por nossas mentes e,

necessariamente afetadas pelas características do seu modo de representação (portrayal)”

(HERTZ, 1956, p. 2).

Na concepção do conhecimento adotada por Hertz e apresentada nas páginas iniciais da

introdução à The Principles of Mechanics, percebe-se a filiação do cientista à tradição kantiana:14

formamos dos objetos imagens cuja conformidade com os objetos é garantida pela assumpção de

um isomorfismo15 entre pensamento e natureza; as imagens formadas, de modo algum, representam

as ‘coisas em si mesmas’ (KANT, 2005, p. 82); ‘relações vazias não podem ser evitadas’, já que

... a razão humana progride irresistivelmente até perguntas que não podem ser respondidas por nenhum uso da razão na experiência nem por princípios daí tomados emprestados, e assim alguma metafísica sempre existiu e continuará a

13 Os critérios postulados por Hertz foram estudados no Capítulo II deste trabalho. 14 A adesão de Hertz à filosofia de Kant é reconhecida por autores como Cohen (1956), Abrantes (1992), Janik e Toulmin (1996) e D’Agostino (2004). 15 “Seja de que modo e com que meio um conhecimento possa referir-se a objetos, o modo como ele se refere imediatamente aos mesmos e ao qual todo pensamento como meio tende, é a intuição. Esta, contudo, só ocorre na medida em que o objeto nos for dado; a nós homens pelo menos, isto é por sua vez possível pelo fato do objeto afetar a mente de certa maneira. A capacidade (receptividade) de obter representações mediante o modo como somos afetados por objetos denomina-se sensibilidade. Portanto, pela sensibilidade nos são dados objetos e apenas ela nos fornece intuições; pelo entendimento, ao invés, os objetos são pensados e dele se originam conceitos. Todo pensamento, contudo, quer diretamente (directe), quer por rodeios (indirecte), através de certas características, finalmente tem de referir-se a intuições, por conseguinte em nós à sensibilidade, pois de outro modo nenhum objeto pode ser-nos dado.” “O efeito de um objeto sobre a capacidade de representação, na medida em que somos afetados pelo mesmo, é sensação. Aquela intuição que se refere ao objeto mediante sensação denomina-se empírica. O objeto indeterminado de uma intuição empírica denomina-se fenômeno.” “Aquilo que no fenômeno corresponde à sensação denomino sua matéria, aquilo porém que faz com que o múltiplo do fenômeno possa ser ordenado em certas relações denomino a forma do fenômeno. Já que aquilo unicamente no qual as sensações podem se ordenar e ser postas em certa forma não pode, por sua vez, ser sensação, então, a matéria de todo fenômeno nos é dada somente a posteriori, tendo porém a sua forma que estar à disposição a priori na mente e poder ser por isso considerada separadamente de toda a sensação” (KANT, 2005, pp. 71-72).

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existir realmente em todos os homens, tão logo a razão se estenda neles até a especulação (KANT, 2005, p. 63).

Ou, conforme a interpretação de Janik e Toulmin da concepção de Kant citada acima, ‘a metafísica

é, portanto, a mais “humana” das atividades humanas’ (1996, p. 147). Hertz opta pela inclusão de

‘especulações’ ou hipóteses em sua representação da mecânica, respaldado, possivelmente, por esta

abertura propiciada pelo pensamento kantiano, ao mesmo tempo em que, por meio dos critérios

metodológicos propostos, estabelece limites lógicos para tais hipóteses, o que constituiria um novo

ponto de aproximação entre Hertz e Kant:

... não se pode [então] contentar com a mera disposição natural para a metafísica, isto é, com a própria faculdade pura da razão, da qual sempre resulta alguma metafísica (seja qual for), mas com tal disposição tem que ser possível alcançar uma certeza quanto ao saber ou não-saber dos objetos, isto é, ou decidir sobre os objetos de suas perguntas ou sobre a capacidade ou incapacidade da razão de julgar algo a respeito deles, portanto ou ampliar com confiança a nossa razão pura ou impor-lhe limites determinados e seguros (KANT, 2005, p. 64).

Mas, não é preciso ir muito longe para identificar a filiação kantiana de Hertz. Na nota

introdutória ao Livro I de The Principles of Mechanics, Hertz declara:

O assunto do primeiro livro é completamente independente da experiência. Todas as asserções feitas são julgamentos a priori no sentido de Kant. Elas se baseiam nas leis da intuição interna e nas formas lógicas seguidas por quem faz as asserções; com sua experiência externa elas não têm outras conexões além daquelas que possam ter estas intuições e formas16 (1956, p. 45).

Associando, então, sua concepção do processo de conhecimento aos critérios lógicos

exigidos para a depuração das imagens resultantes de tal processo, Hertz constrói, sobre uma

plataforma kantiana, sua idéia de representação científica destas imagens.17 A ênfase no caráter

kantiano da idéia de representação em Hertz se justifica pelas múltiplas possibilidades de

interpretação dos termos imagem e representação, conceitos fundamentais na sua concepção de

teoria científica. Existem duas palavras para designar o termo representação em alemão:

Vorstellung, associada à percepção sensorial e relacionada à tradição empiricista, significando uma

16 Hertz inicia o Capítulo I do Livro I apresentado as três concepções fundamentais de sua representação da mecânica: “O tempo do primeiro livro é o tempo de nossa intuição interna. É, portanto, uma quantidade tal que as variações das outras quantidades envolvidas devem ser consideradas dependentes de sua variação; enquanto ele próprio é sempre uma variável independente.” “O espaço do primeiro livro é o espaço tal como o concebemos. É, portanto, o espaço da geometria de Euclides, com todas as propriedades que esta geometria lhe atribui. Não nos importamos se estas propriedades são consideradas como sendo dadas pelas leis de nossa intuição interna, ou como conseqüências do pensamento que se seguem, necessariamente, de definições arbitrárias”. “A massa do primeiro livro será introduzida por uma definição” (HERTZ, 1956, p. 45). 17 Segundo Hertz (1956, p. 2), os critérios por ele estabelecidos servem como diretrizes para a crítica e a elaboração das representações científicas das imagens e não das imagens em si. Mais uma vez, a referência ao pensamento de Kant é inevitável: “A diferença entre uma representação obscura e uma clara é meramente lógica, e não se refere ao conteúdo. Sem dúvida, o conceito de direito utilizado pelo bom senso contém exatamente o mesmo que a mais sutil especulação pode desenvolver a seu respeito, com a diferença apenas que no uso comum e prático não se está consciente destas múltiplas representações neste pensamento” (KANT, 2005, p. 84).

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reprodução mental involuntária dos dados do sentido; e Darstellung, cujo significado é associado a

representações “externas”, públicas, construídas conscientemente, como, por exemplo, as

representações artísticas ou os modelos matemáticos científicos18 (JANIK e TOULMIN, 1996, pp.

31, 132-133, 140). De acordo com Janik e Toulmin (1996, p. 139), na edição original em alemão de

The Principles of Mechanics, Hertz utiliza a palavra Bild, cujo significado é vago, para designar o

termo imagem,19 o que possibilitou interpretações ‘incorretas’ deste conceito fundamental da

concepção hertziana. Na interpretação de Mach, por exemplo, “Hertz utiliza o termo Bild (image ou

picture) no sentido do antigo uso de idéia pela tradição filosófica inglesa, e aplica-o a sistemas de

idéias ou conceitos relacionados a quaisquer domínios” (MACH, 1960, p. 318; JANIK e

TOULMIN, 1996, p. 139). Desta forma, Mach aproxima Hertz da tradição filosófica inglesa e,

consequentemente, o afasta de Kant. No entanto, afirmam Janik e Toulmin, “é significativo que, ao

descrever sua concepção de Bilder como “representações”, Hertz consistentemente escolheu

empregar a palavra Darstellungen ao invés de Vorstellungen” (1996, p. 139).

Mach, por sua vez, identificava-se com a tradição filosófica empirista inglesa.20 Para ele,

toda ciência tem sua origem nas necessidades da vida (MACH, 1960, p. 609):

Ele [Mach] acreditava que todo o conhecimento é dirigido para a adaptação do animal ao seu meio ambiente. Todos os conceitos, teorias, afirmações e similares eram, para ele, funções dos nossos instintos para a sobrevivência biológica. Esquemas conceituais são instrumentos econômicos que nos possibilitam lidar com problemas práticos (JANIK e TOULMIN, 1996, P. 137).

Nossas mentes são impressionadas por inumeráveis fatos e tudo o que observamos é

impresso de forma não compreendida e não analisada em nosso pensamento. Em função disso, no

processo de compreensão de um fato, não partimos de conseqüências que nos parecem absurdas,

que nunca observamos. A esse processo Mach denomina ‘conhecimento instintivo’, o qual, por suas

características, não é místico, não possui elementos a priori, nem é subjetivo, sendo, portanto,

extremamente confiável (MACH, 1960, p. 94). O conhecimento instintivo é decorrente de nossa

relação com a natureza e é por ela determinado, independe de nós. Mais do que isso, “todas as

coisas no mundo estão relacionadas umas às outras e dependem umas das outras... e, nós mesmos e

nossos pensamentos somos também parte da natureza” (MACH, 1960, p. 273). Portanto,

adquirimos naturalmente a capacidade de estabelecer objetivamente os “fatos individuais” da

natureza.

18 Janik e Toulmin (1996, p. 133) utilizam ‘as representações gráficas utilizadas atualmente em física’ como exemplo de Darstellung. 19 Picture ou image na tradução para o inglês. 20 O empirismo de Mach é frequentemente identificado com o pensamento filosófico do escocês David Hume. Sobre o assunto, ver JANIK e TOULMIN, 1996.

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Uma vez estabelecidos os fatos mais importantes, deve-se elaborá-los dedutivamente e

logicamente através de métodos da física-matemática, de modo a acrescentar às propriedades

observadas, outras que não se manifestam diretamente (MACH, 1960, p. 88). Em seguida, a atenção

é voltada para o desenvolvimento formal da ciência, organizando-se os fatos em um ‘sistema’, o

que nos permite tê-los sempre ao alcance e reproduzi-los mentalmente com o menor esforço

intelectual (MACH, 1960, p. 516). Assim se desenvolve a ciência.

Ao estabelecer a necessidade de análise lógica e de elaboração de sistemas formais, a

metodologia identificada por Mach no estudo do desenvolvimento da mecânica parece extrapolar a

naturalidade da relação entre pensamento e mundo. Entretanto, coerentemente com seu “modelo de

racionalidade”, Mach esclarece: “Nesta investigação, eu julguei útil e restritivo considerar o

pensamento cotidiano e a ciência em geral como um fenômeno biológico e orgânico, no qual o

pensamento lógico assume a posição de um caso limite ideal” (1960, p. 593).

Um dos principais objetivos de Mach em seu estudo crítico e histórico realizado em The

Science of Mechanics era identificar os componentes não-científicos na ciência e os preconceitos

dos cientistas21 decorrentes de aspectos histórico-culturais para, em seguida, eliminá-los,

permitindo, assim, que novos caminhos fossem descobertos. Mas, de acordo com a concepção de

Mach, o conhecimento independe de nós, ele é o resultado de nossa relação com a natureza, com

nosso meio ambiente. Sendo assim, os condicionantes históricos, apesar de infrutíferos, não

impediram o avanço da ciência: “a visão teológica não forneceu os conteúdos dos princípios [da

mecânica], mas simplesmente determinaram sua forma” (MACH, 1960, p. 555).

Os objetivos da investigação histórica de Mach aliados à sua concepção biológica ou

psicofísica22 do conhecimento visavam uma nova ciência a-histórica: “Nós e nossos pensamentos

somos parte da natureza”, natureza esta que “não tem senão uma existência própria; a natureza

simplesmente é” (MACH, 1960, p. 580). Se a ciência é o resultado de nossa relação com a natureza,

então, em última análise, a ciência simplesmente é.

Para Mach, portanto, o conhecimento é possibilitado e determinado pela conformação de

nosso pensamento à ininterrupta impressão em nossas mentes dos ‘fatos’ observados na natureza.

Em oposição ao ponto de vista de Mach, Hertz, assim como Kant, adota a perspectiva de que nossas

experiências sensíveis se nos apresentam com uma ‘estrutura epistêmica’ (JANIK e TOULMIN,

1996, p. 121), cuja compreensão é possibilitada por um isomorfismo inato entre pensamento e

natureza. Os dados empíricos contêm em si representações estruturadas ou Vorstellungen (Ibidem),

21 Este assunto foi abordado no Capítulo I deste trabalho. 22 Ibidem.

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as quais, após um processo ativo de depuração lógica, são apresentadas na forma de Darstellungen

ou representações no sentido de Hertz.

Não obstante as diferenças entre as concepções do conhecimento de Mach e de Hertz até

aqui apontadas, pode-se argumentar que estas exibem pelo menos um ponto em comum: de uma

forma ou de outra, as representações científicas dos fenômenos têm sua origem nos dados empíricos

e com eles devem concordar. Além do mais, tanto Mach quanto Hertz admitem que ‘várias imagens

dos mesmos objetos são possíveis’ (HERTZ, 1956, p. 2), apesar de divergirem sobre os motivos de

tal possibilidade. Mach enceta uma abordagem histórica na análise do problema da diversidade dos

princípios físicos referentes a um mesmo domínio de fenômenos (os princípios da mecânica, por

exemplo, objeto de sua análise histórica em The Science of Mechanics), chegando à conclusão de

que os condicionantes históricos afetaram tão somente a forma sob a qual estes princípios foram

apresentados, mas não seus conteúdos, determinados exclusivamente pela conformidade empírica.

A análise crítica dos aspectos formais de um princípio físico deve se basear no princípio da

economia de pensamento: o princípio físico mais adequado à economia de pensamento tem

prioridade sobre os demais.

Hertz, por sua vez, opta por uma abordagem lógico-filosófica do problema e estabelece sua

análise a partir dos critérios de ‘permissibilidade’, ‘correção’ e ‘adequação’ por ele definidos. De

acordo com a concepção do cientista, a imagem mais adequada para a constituição de uma

representação científica é aquela que contém o ‘menor número de relações supérfluas ou vazias’.

Em The Science of Mechanics, Mach afirma: “o critério de adequação de Hertz coincide com nosso

critério de economia” (1960, p. 318). Mas, os pontos de vista de Mach e Hertz sobre a natureza dos

conceitos de economia e adequação divergem. Para Mach, a economia de pensamento não deve ser

considerada como um princípio conscientemente elaborado, mas sim como uma característica

adquirida e desenvolvida ‘instintivamente’ e ‘involuntariamente’ pelo equipamento biológico

humano que favorece nossa adaptação ao meio ambiente.23 As ciências ‘cujos fatos são redutíveis a

alguns poucos elementos enumeráveis de mesma natureza’ e que podem ser reproduzidos,

relacionados e antecipados por expressões matemáticas, são as mais ‘economicamente

desenvolvidas’ (MACH, 1960, pp. 582-583).

O critério de adequação de Hertz, ao contrário, é fruto de uma atividade intelectual

deliberada e, antes de prescrever economia ou simplicidade, estabelece que, dentre as imagens

23 Como exemplo: “Muito da autoridade das idéias de causa e efeito é devida ao fato de que elas são desenvolvidas instintivamente e involuntariamente, e à nossa certeza de não termos contribuído em nada para sua formação. Podemos dizer, sem dúvida, que nosso senso de causalidade não é adquirido pelo indivíduo, mas se aperfeiçoou com o desenvolvimento da raça. Causa e efeito, portanto, são coisas do pensamento, tendo uma função econômica” (MACH, 1960, p. 581).

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possíveis, a mais adequada é “aquela que descreve (pictures) mais das relações essenciais do

objeto...” (HERTZ, 1956, p. 2).24 Despir as imagens dos “trajes vistosos”25 que lhes foram

concedidos historicamente para que a pureza e a eficiência de suas formas matemáticas sejam

expostas, como pretendia Mach, ou reduzir ao máximo as inevitáveis concepções arbitrárias nelas

introduzidas como conseqüência da maneira pela qual nossas mentes as representam, como

propunha Hertz, são procedimentos que, por si só, não garantem a seleção da imagem mais

adequada.

Tampouco a concepção do conhecimento como o ‘resultado de um esforço de nossa parte

para adaptar nossas idéias ao nosso ambiente sensorial’ (MACH, 1960, p. 318) ou da existência de

uma disposição apriorística para conhecer são critérios suficientes para o estabelecimento de um

acordo sobre a melhor representação científica. Sim, há de haver conformidade entre as imagens e a

natureza (permissibilidade) e entre as conseqüências das imagens e a experiência (correção). Mas

Hertz não parece depositar nesses critérios a mesma confiança depositada por Mach no

‘conhecimento instintivo’: “aquilo que é derivado da experiência pode novamente ser anulado pela

experiência” (HERTZ, 1956, p. 9). Em uma passagem pouco destacada na introdução de The

Principles of Mechanics, Hertz atribui um caráter contingente às imagens ou representações

científicas e dá a entender que a análise de uma teoria não se esgota na crítica histórica ou lógico-

filosófica:

... não podemos decidir sem ambigüidade se uma imagem é adequada ou não; quanto a isso, surgem diferenças de opinião. Uma imagem pode ser mais apropriada para um determinado propósito, outra para outro propósito; somente testando gradualmente muitas imagens é que podemos, finalmente, ter sucesso na obtenção da mais apropriada (1956, p. 3).

Ao fazer a afirmação acima, Hertz possivelmente tinha em mente suas pesquisas nos

domínios do eletromagnetismo: embora as teorias de Maxwell e Helmholtz pudessem ser

consideradas igualmente adequadas, o veredicto da comparação entre elas somente foi possível

após um programa de testes experimentais, seguido da reconstrução axiomática da teoria eleita.

Antes de tal procedimento, nem a representação de Maxwell, nem a de Helmholtz poderiam ser

descartadas, ainda que partissem de pressupostos conceituais diferentes. Dessa forma, mesmo a

inclusão de hipóteses na elaboração de uma representação científica – procedimento a que os

fenomenistas se opunham com veemência – deveria, dentro dos limites estabelecidos, ser admitida.

A proposta metodológica de Hertz encerra, portanto, uma nova concepção do significado e da

função de uma teoria científica e, de certo modo, assemelha-se ao que, em termos mais atuais,

24 O significado deste preceito é esclarecido por Hertz no desenvolvimento de sua crítica às representações da mecânica. Sobre o assunto, ver Capítulo II deste trabalho e HERTZ, 1956, pp. 4-40. 25 A expressão é utilizada por Hertz em Electric Waves (1960, p. 28).

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denomina-se programa de pesquisa.26 Ou, como bem define Cassirer, “os conceitos fundamentais

da física teórica são, para Hertz, pré-figurações para possíveis experiências, enquanto que para

Mach, são pós-figurações e reproduções de experiências reais” (1986, p. 132). Numa tal

perspectiva, uma abordagem atomista da teoria cinética dos gases ou uma proposta de representação

da mecânica que unificasse a física através de um modelo mecânico para ações mediatizadas têm a

chance de mostrar sua fecundidade.

De acordo com Cassirer,

Os conceitos fundamentais da física são em Mach o produto e a reprodução passiva que a ação das coisas deixa nos órgãos de nossos sentidos. Hertz, por outro lado, apresenta-os como a expressão de um processo espiritual extraordinariamente complicado, de um processo em que a atividade teórica se desenvolve livremente para coincidir, em seu objetivo e ao seu término, com a experiência e por ela ser confirmada ou retificada (vol. IV, 1986, pp. 131-132).

As ‘pré-figurações’ de Hertz são “esquemas conscientemente construídos para conhecer”

(JANIK e TOULMIN, 1996, p. 140). Tais ‘esquemas’ ou modelos são sub-determinados pela

experiência, uma vez que várias imagens de um mesmo objeto são possíveis, apesar do pressuposto

isomorfismo entre pensamento e natureza. A admissão da sub-determinação das imagens pelos

dados empíricos permite a introdução de ‘um novo elemento de liberdade na escolha dos conceitos

teóricos’ representado pela possibilidade de inclusão de ‘conceitos que não correspondem a

percepções’, como, por exemplo, as massas ocultas hipotéticas presentes na representação hertziana

da mecânica (D’AGOSTINO, 2004, p. 379). Os limites dessa liberdade teórica, assim como os da

representação científica como um todo, são determinados pelos critérios estabelecidos por Hertz.

No entanto, a posição do cientista é frequentemente associada àquela defendida pelos

fenomenistas. Videira (1997, pp. 61-62) identifica Hertz, juntamente com Kirchhoff (1824 – 1887),

entre os adeptos da ‘fenomenologia de fundamento físico-matemático’27 e Mach (1960, p. 598) cita

o resultado da reconstrução axiomática da teoria eletromagnética de Maxwell como uma bem

sucedida tentativa de representar os fenômenos exclusivamente por meio de sistemas de equações

diferenciais. Expressões isoladas do pensamento de Hertz, como sua emblemática afirmação de que

‘a teoria de Maxwell é o sistema de equações de Maxwell’, tornam compreensíveis tais

interpretações de sua concepção de teoria científica. Porém, diferentemente do que defendiam os

fenomenistas, Hertz considerava que o sistema de equações de Maxwell – ‘a parte permanente do

trabalho de Maxwell’ – não representava apenas o que foi determinado pela experiência, mas

também, aquilo que poderia ser empiricamente testado. Além do mais, as equações de Maxwell

26 Ver, por exemplo, LAKATOS, I. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix, Ed. Univ. de São Paulo, 1979. 27 Videira (1997, p. 61) atribui a autoria dessa denominação a Boltzmann.

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foram desenvolvidas a partir da pressuposição – impossível de ser diretamente confirmada pela

experiência (D’AGOSTINO, 2004, p. 380) –, posteriormente abraçada por Hertz, da existência de

um éter “que preenchia todo o espaço e que transmitia os efeitos eletromagnéticos” (MARTINS,

2005, p. 13),28

Mas, os traços distintivos entre os pensamentos de Hertz e Mach não são assim tão

facilmente delineáveis. Um fenomenista convicto tenderia a considerar a preocupação de Hertz para

com o papel de hipóteses em uma teoria científica como um hábito anacrônico, atribuindo valor

unicamente aos sistemas de equações por ele obtidos:

De fato, a física vem se acostumando, gradualmente, a buscar a descrição dos fatos por meio de equações diferenciais como seu verdadeiro objetivo... Por isso, a aplicabilidade geral das formulações matemáticas de Hertz é admitida, sem que sejamos obrigados a considerar quaisquer outras interpretações das forças ou conexões (MACH, 1960, p. 321).

Afinal, Mach havia mostrado em The Science of Mechanics que mesmo a “inquestionável”

mecânica newtoniana podia prescindir de elementos inobserváveis tais como força, tempo absoluto

e espaço absoluto, considerados por Newton – e por muitos daqueles que o sucederam – como seus

conceitos fundamentais. O programa energetista pregava a eliminação de elementos intangíveis e

hipóteses arbitrárias das teorias científicas (JANIK, 2002, p. 10). O próprio Mach minimizou as

implicações decorrentes da inclusão de massas e movimentos ocultos na representação da mecânica

de Hertz 29– embora alerte sobre o risco de sermos conduzidos a especulações fantasiosas pelo uso

de tais elementos ocultos (MACH, 1960, pp. 323-324) –, considerando a representação hertziana

como um grande ‘passo adiante’ e louvando aquela que seria, segundo ele, a principal meta em The

Principles of Mechanics: “dar expressão apenas ao que realmente pode ser observado” (MACH,

1960, p. 320).

Janik afirma que, uma ‘leitura superficial’ da introdução de The Principles of Mechanics

pode sugerir que Hertz estaria reafirmando o ponto de vista de Mach com um enfoque ligeiramente

diferente (2002, p. 8). Para o autor, a preocupação com a precisão empírica e a coerência lógica das

representações, além da ênfase em apresentá-las na forma de sistemas de equações ou sistemas

axiomáticos são, evidentemente, pontos de contato entre os pensamentos de Mach e Hertz (JANIK,

2002, pp. 8-9). No entanto, na proposta filosófico-metodológica apresentada em The Principles of

28 Como exemplo: a energia eletrostática associada a um condutor eletrizado estaria, segundo Maxwell, distribuída sob

forma de tensão no éter em torno deste condutor e seria dada pela equação We = (1/2) eE²dV. Esta equação é ainda utilizada com a mesma finalidade sem que, no entanto, seja considerada a existência de um éter (MARTINS, 2005, p. 14). 29 Mach afirmava que as ‘circunstâncias psicológicas’ que levaram Hertz à inclusão de massas e movimento ocultos em sua representação da mecânica eram facilmente compreensíveis: seu sucesso na representação das interações eletromagnéticas através de forças mediatizadas o teria levado à tentativa de obter o mesmo resultado para as forças gravitacionais (MACH, 1960, p. 323).

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Mechanics, os aspectos comuns dos pensamentos de Mach e Hertz divergem e até se opõem quando

se enseja uma análise acurada de seus papéis na elaboração ou reconstrução de uma teoria

científica.

A crítica empreendida por Mach visava à purificação da ‘retórica’ utilizada na apresentação

das teorias científicas através de um filtro histórico – como no caso da ‘retórica teológica’ utilizada

por Newton – para que os fenômenos observáveis pudessem ser representados “em termos das mais

simples relações (funções) matemáticas entre as observações” (JANIK, 2002, p. 5). Hertz, assim

como Mach, também defendia que o objetivo de uma teoria física seria a representação mais

simples dos fenômenos observados. Quanto a isso, no entanto, Hertz se colocou duas questões que

Mach havia ignorado: O que é simplicidade?30 Simples, para quem? (Ibidem, p. 6). Em pelo menos

três passagens da introdução de The Principles of Mechanics, Hertz se refere a estas questões.

Primeiramente ele alega que, mesmo no estudo de um caso simples, como o de um corpo em

repouso sobre uma superfície, a análise do equilíbrio das forças envolvidas, a partir da aplicação

rigorosa dos princípios de Newton, soaria para um leigo (“unprejudice persons”) como ‘imagens de

uma imaginação perturbada’ (HERTZ, 1956, p. 13).31 Em seguida, Hertz afirma que não se pode

exigir simplicidade da natureza, mas, se não se consegue representar ‘as relações reais entre as

coisas’ de forma tal que estas relações possam ser compreendidas por uma ‘mente despreparada’,

deve-se concluir que as imagens por nós elaboradas ‘não estão suficientemente adaptadas às

coisas’ (Ibidem, pp. 23-24). Na terceira e, talvez, a mais importante dessas passagens, Hertz admite

que a representação usual da mecânica, a despeito de seus aspectos obscuros, é a mais apropriada

para fins práticos e didáticos – assim como ‘uma gramática desenvolvida com o propósito de

possibilitar a rápida familiarização de aprendizes com o que lhes é requerido na vida diária’ –,

enquanto a sua própria, desenvolvida para cumprir um papel análogo ao de uma ‘gramática

sistemática’, não se adequaria aos mesmos fins (HERTZ, 1956, p. 40). De acordo com Janik,

Quanto mais consideramos essa analogia, mais complexa ela se torna; rapidamente percebemos que estudantes no processo de domínio de sua língua pátria demandarão uma gramática bem diferente daquela requerida por estrangeiros que

30 Ver citação inicial da secção III.2 deste trabalho. 31 “Vemos uma barra de aço em repouso sobre uma mesa e, consequentemente, imaginamos que nenhuma causa de movimento – nenhuma força – está presente. A física, que se baseia na mecânica aqui considerada [a representação newtoniana] e necessariamente determinada por esta base, ensina-nos de outra forma. Através de forças gravitacionais, cada átomo do aço é atraído por qualquer outro átomo do universo. Mas cada átomo do aço é magnético e está, então, conectado por novas forças com cada um dos átomos magnéticos do universo. Novamente, corpos no universo contêm eletricidade em movimento, e esta última exerce forças ainda mais complicadas que atraem cada um dos átomos do aço. Como as partes do próprio aço contêm eletricidade, temos que considerar novos tipos de forças; e, acrescidos a elas, novamente vários tipos de forças moleculares. Algumas dessas forças não são pequenas: se apenas uma parte delas fosse efetiva, esta parte seria suficiente para despedaçar a barra de aço. Mas, de fato, todas estas forças estão de tal modo ajustadas entre elas, que o efeito de todo o arranjo é zero; assim, apesar da existência de milhares de causas de movimento, nenhum movimento é observado e a barra de aço permanece em repouso. Agora, se colocarmos estas concepções diante de um leigo [unprejudiced persons], quem acreditará em nós?” (HERTZ, 1956, p. 13).

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se esforçam para aprender essa mesma língua, enquanto diferentes grupos de estrangeiros considerarão diferentes apresentações de gramática mais ou menos úteis de acordo com os modos de expressão característicos de sua própria língua, etc. Para esses diferentes propósitos necessitamos de diferentes “imagens” [pictures] ou modelos das regras de gramática. O mesmo vale para a física: uma representação adequada para um teórico dificilmente se mostra adequada, por exemplo, para engenheiros32 ou químicos trabalhando com o mesmo assunto, para não citar os estudantes de cursos introdutórios (2002, p. 7).

‘”Uma imagem pode ser mais apropriada para um determinado propósito, outra para outro

propósito...” (HERTZ, 1956, p. 3). De acordo com Janik, Hertz estaria admitindo e enfatizando a

necessidade da pluralidade de representações para o desenvolvimento da ciência, o que o

distinguiria de Mach (2002, p. 7). Certamente que os dois cientistas concordam que diferentes

modos de representação de uma mesma teoria científica devem comungar da mesma estrutura

matemática – parte da representação capaz de lhe conferir conformação empírica – e que tal

estrutura deve ser expressa na forma mais simples possível. No entanto, enquanto Mach vê a

pluralidade das representações como um entrave ao desenvolvimento científico, o qual pode e deve

ser minimizado por meio da eliminação gradual dos elementos retóricos incluídos nas teorias, Hertz

atribui à retórica subjacente aos modelos físicos construídos na elaboração de uma representação

um importante papel na comunicação entre os cientistas (JANIK, 2002, p. 8).

Eis aqui, segundo Janik, uma distinção fundamental entre os pensamentos dos dois

cientistas:

Embora dificilmente se possa dizer que Mach fosse contrário à idéia de que modelos são constructos, sua concentração no apuro empírico e na simplicidade arquitetural o levou a negligenciar a significação do elemento teleológico na elaboração de modelos. Embora Hertz fosse tão sensível quanto Mach às demandas da precisão empírica e da coerência lógica, ele se mostrava inflexível ao insistir que a característica crucial dos modelos da realidade física é que, ao construí-los, ‘nossa exigência de simplicidade não se aplica à natureza, mas aos modelos que dela formamos’ (2002, p. 8).

Na perspectiva de Janik, o apego de Mach ao princípio da economia o levou à concepção de

que os modelos científicos devem, em última análise, reduzir-se a modelos matemáticos –

‘simplicidade arquitetural’ – cuja fecundidade é limitada: sua origem e aplicações devem sempre

remeter-se à experiência sensível. Em Hertz, além da correção empírica e da coerência lógica, os

modelos científicos devem, também, apresentar um caráter pragmático (JANIK, 2002, p.6): eles

32 Apesar de extrapolarem os limites deste trabalho, considero importante citar pesquisas relativas ao ensino de física que corroboram essa afirmação de Janik. Como exemplo, cito as entrevistas realizadas por Stoklmayer e Treagust com alunos dos ensinos médio e técnico, professores do ensino médio e especialistas que trabalham com eletricidade em aplicações práticas ou em pesquisas científicas (engenheiros, físicos, etc.) sobre o comportamento e a natureza da corrente elétrica. Os resultados indicam que os diferentes grupos investigados adotam diferentes modos de representação para os problemas em questão. Sobre o assunto, ver STOCKLMAYER, S. M. e TREAGUST, D. F., Images of eletricity: how do novices and experts model electric current? In: International Journal of Science Education, v. 18, n. 2, pp. 163-178, 1996.

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têm que se mostrar eficientes para comunicar a idéia que representam e adequados aos problemas

surgidos na prática científica (Ibidem, p. 8). O primeiro desses dois últimos aspectos da concepção

hertziana de modelo físico, parece confirmar o ponto de vista de Helmholtz33 o qual interpretava a

postura de Hertz como um alinhamento com a tendência dos físicos britânicos de utilização de

modelos físicos como forma de “visualizar” o formalismo matemático nas teorias científicas. O

segundo deles, mais uma vez, aponta, inevitavelmente, para a preocupação de Hertz com o

problema das interações eletromagnéticas mediatizadas e suas possíveis implicações para o estudo

de outros tipos de interações (por exemplo, as interações gravitacionais à distância).34

Mas, o que dizer, então, sobre as críticas de Hertz aos conceitos de eletricidade e polarização

constantes na retórica da teoria eletromagnética de Maxwell (ABRANTES, 1992, p. 355) ou à idéia

de força, conceito fundamental da mecânica newtoniana? Mais do que isso, o que dizer da

insistência de Hertz em tentar eliminar tais conceitos por meio de reconstruções axiomáticas das

teorias que os continham? Segundo Janik, Hertz atribuía valor à retórica científica sem perder de

vista os possíveis problemas de interpretação que poderiam ser provocados pela inclusão de

elementos obscuros ou auto-contraditórios nos modelos físicos (2002, pp. 6-7). Ainda de acordo

com este autor, Hertz propõe enfrentar o problema da mesma maneira em que ele foi criado:

“criando modelos alternativos que renunciem às características não essenciais que incluímos

nestes modelos e que se tornaram embaraçosas para nós” (JANIK, 2002, p. 9). Assim...

... o modo pelo qual Hertz lida com os problemas metafísicos que surgem no curso do desenvolvimento de uma teoria científica exige, literalmente, uma representação (matemática) de nossas teorias, de maneira a sermos capazes de distinguir, rigorosamente, aqueles elementos no modelo (Bild) que derivam da necessidade lógica e aqueles que se referem à evidência empírica, daqueles que nele inserimos arbitrariamente com vistas à efetividade retórica. Na verdade, a ênfase de Hertz em purgar nossos modelos de inconsistências assemelha-se muito à análise lógica (i.e., a componente matemática na elaboração de modelos) (JANIK, 2002, p. 9).

De fato, a interpretação de Janik exposta na citação acima encontra confirmação nas

palavras do próprio Hertz:

Como forma de dar expressão ao meu desejo de provar a pureza lógica do sistema [hertziano da mecânica] em todos os seus detalhes, eu moldei a representação na velha forma sintética. Por isso, a forma utilizada tem o mérito de nos compelir a

33 “Hertz parece ter depositado confiança na introdução de sistemas cíclicos providos de movimentos ocultos.” “Físicos ingleses – por exemplo, Lord Kelvin em sua teoria dos vórtices atômicos e Maxwell, em sua teoria de células com elementos rotacionais, em que ele baseia sua tentativa de uma explicação mecânica dos processos eletromagnéticos – obtiveram maior satisfação de tais explicações do que da simples representação dos fatos e leis físicas na forma mais geral, dada por sistemas de equações diferenciais. Quanto a mim, devo admitir ter aderido a esse último modo de representação, tendo me sentido seguro ao fazê-lo; apesar disso, não levanto nenhuma objeção contra um método adotado por três físicos tão eminentes” (HELMHOLTZ, 1956, prefácio). 34 Numa análise superficial, poder-se-ia dizer que a filiação de Mach à tradição filosófica inglesa o conduziu à fenomenologia que caracterizava a física germânica; o kantiano Hertz, por sua vez, demonstrou certa afinidade com o estilo de pensamento dos físicos britânicos.

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especificar, de antemão, definitivamente, mesmo que monotonamente, o valor lógico que se pretende dar a todo enunciado importante. Isto torna impossível a utilização das reservas e ambigüidades convenientes para as quais somos atraídos pela riqueza de combinações do discurso ordinário (1956, p. 35).

Por menos evidente que possa parecer, a abordagem lógico-matemática proposta e

empreendida por Hertz para a análise das teorias científicas afasta-o, mais uma vez, de Mach. Para

Mach, a identificação dos elementos supérfluos e/ou metafísicos em uma representação científica

deveria ser feita de “fora para dentro” por meio de uma crítica histórica (JANIK e TOULMIN,

1996, p. 141). Na proposta filosófico-metodológica de Hertz, ao contrário, a coerência entre os

conceitos e princípios fundamentais de uma representação, assim como os limites de sua aplicação,

são estabelecidos internamente a partir de modelos matemáticos. Os modelos matemáticos ou

sistemas de equações não são para Hertz um fim – como defendia Mach – mas um meio para se

obter representações científicas conceitualmente claras (JANIK, 2002, pp. 9-10).

Como já foi dito, no desenvolvimento do conteúdo físico de The principles of Mechanics

Hertz substitui o conceito de força por um modelo que pressupõe vínculos geométricos entre as

massas dos sistemas estudados:

§109. Há uma conexão entre uma série de pontos materiais quando, a partir do conhecimento de alguns dos componentes dos deslocamentos daqueles pontos, somos capazes de enunciar algo sobre os componentes remanescentes (HERTZ, 1956, p. 78). §110. Quando existem conexões entre os pontos de um sistema, alguns dos deslocamentos concebíveis do sistema são desconsiderados, especialmente aqueles deslocamentos do sistema cuja ocorrência pudesse contrariar o enunciado anterior. Reciprocamente, toda afirmação de que alguns dos deslocamentos concebíveis do sistema estão excluídos de consideração, implica numa conexão entre os pontos do sistema. As conexões entre os pontos de um sistema são completamente dadas quando para todo deslocamento concebível do sistema é sabido se ele está ou não excluído de nossa consideração (Ibidem).

Os conceitos fundamentais da representação da mecânica de Hertz – tempo, espaço e massa

– são definidos, no Livro I, com base ‘nas leis de nossa intuição interna’ e, no Livro II, como

‘símbolos de objetos de nossa experiência externa’. A definição de massa no Livro II é estabelecida

do seguinte modo:

§300. Regra 3. A massa dos corpos que podemos tocar é determinada por pesagem. A unidade de massa é a massa de algum corpo estabelecida por convenção arbitrária.

A massa de um corpo tangível, como determinado por esta regra, possui as propriedades atribuídas à massa idealmente definida (§ 4).35 Ou seja, ela pode ser concebida como dividida em um número qualquer de partes iguais, sendo cada uma delas indestrutível e imutável e capaz de ser empregada como uma marca de referência, sem ambigüidade, de um ponto no espaço em um certo instante para

35 Ver HERTZ, 1956, p. 46.

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outro ponto no espaço em qualquer outro instante (§ 3).36 A regra é, além disso, determinada e única quando se considera corpos tangíveis, apesar das incertezas que não podemos eliminar de nossa experiência real passada ou futura (HERTZ, 1956, pp. 140-141).

Definidas a bases de seu modelo matemático e de suas concepções fundamentais, Hertz

sente-se livre para incluir em sua representação uma hipótese cujos limites devem ser coerentes com

as definições, regras e relações estabelecidas criteriosamente:

§301. Acréscimo à Regra 3. Admitimos o pressuposto que, em adição aos corpos que podemos tocar, existem outros corpos os quais não podem ser tocados, movidos, nem colocados em uma balança, e para os quais a Regra 3 não é aplicável. As massas de tais corpos apenas podem ser determinadas por hipótese.

Em tal hipótese, temos a liberdade de atribuir a estas massas apenas aquelas propriedades que são consistentes com as propriedades da massa idealmente definida (HERTZ, 1956, p. 141).

Na representação hertziana da mecânica o pressuposto isomorfismo entre pensamento e

natureza garante, portanto, a permissibilidade das imagens. A correção da representação – i.e., a

conformidade com ‘experiências possíveis e, em particular, futuras’ (HERTZ, 1956, p. 139) – é

garantida pela Lei Fundamental,37 a qual estabelece as relações entre os conceitos fundamentais –

espaço, tempo e massa. Satisfeitos estes dois critérios, a representação de Hertz da mecânica é

desenvolvida matematicamente ‘por meio de puro raciocínio dedutivo’ (HERTZ, 1956, p. 4), a

partir de um modelo que subentende a existência de conexões geométricas entre as massas. Este

modelo de conexões geométricas fornece à representação pelo menos um aspecto de sua

adequação: o aspecto retórico. Ou, como define Janik, o modelo mecânico de Hertz torna sua

representação ‘comunicativamente adequada ou efetiva’ (JANIK, 2002, p. 8), principalmente por

não conter em sua construção conceitos obscuros ou contraditórios, tais como força ou energia.

Mas a adequação do modelo de Hertz também se mostra em um outro sentido. Ele é

adequado para o estudo de um problema que, pelo menos para Hertz e parte da comunidade

científica, era premente naquele momento: o problema das ações mediatizadas, que voltou a chamar

a atenção a partir das pesquisas nos domínios do eletromagnetismo. Sobre esta questão, Hertz – sem

citar Maxwell, mas referindo-se provavelmente ao cientista britânico – declara: “... é prematuro

tentar basear as equações do movimento do éter nas leis da mecânica até que tenhamos obtido um

acordo sobre o que se entende por este nome” (1956, p. 1). A representação de Hertz, no entanto,

oferece uma alternativa para um modelo de éter – embora isso não seja admitido claramente pelo

cientista em The Principles of Mechanics – que guarda as características e os princípios físicos e

geométricos do modelo estabelecido para as massas tangíveis. Desta forma, “não temos que temer a

36 Ibidem, pp. 45-46. 37 Ver Capítulo II deste trabalho ou HERTZ, 1956, p. 144.

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objeção de que, ao construir uma ciência dependente da experiência, tenhamos extrapolado o

mundo da experiência” (HERTZ, 1956, p. 30). Em termos kantianos, “toda a mecânica é

representada dentro dos limites (Grenzen) do empírico, mas não dentro das fronteiras (Schranken)

do empiricamente dado” (JANIK, 2002, p. 11).

Mas, o critério de adequação de uma representação requer, também, simplicidade e, de

acordo com o próprio Hertz, sua representação da mecânica é análoga a uma ‘gramática

sistemática’, não sendo, portanto, simples ou adequada para os não iniciados, nem apropriada para

aplicações práticas. Quais, então, os méritos da mecânica de Hertz, medidos a partir de seus

próprios critérios? Primeiramente, ela evidencia ‘nossa capacidade de obter a clarificação

conceitual das teorias físicas com base em apresentações alternativas de nossas teorias’ (JANIK,

2002, p. 9). Em segundo lugar – e, talvez, este seja o maior mérito da proposta hertziana – ela lança

as bases para um programa de pesquisa: ‘... a situação muda a favor da terceira imagem [a

representação de Hertz] assim que um conhecimento mais refinado nos mostrar que a suposição de

que as forças invariáveis à distância fornecem apenas uma primeira aproximação da verdade’

(HERTZ, 1956, p. 41). Uma segunda aproximação da verdade, segundo Hertz, implicaria em

associar as supostas ações à distância ao movimento de minúsculas partículas no éter, como vinha

sendo feito no estudo dos fenômenos eletromagnéticos. A representação da mecânica elaborada por

Hertz oferece adequação e simplicidade para a abordagem deste problema. Mais do que isso, Hertz

estava consciente do valor heurístico de sua representação:

§596. 3. O problema que um sistema com massas ocultas oferece para a consideração da mecânica é o seguinte: – Predeterminar os movimentos das massas visíveis do sistema, ou as mudanças de suas coordenadas visíveis, não obstante nossa ignorância sobre as posições das massas ocultas (HERTZ, 1956, p. 224).

Talvez fosse mais apropriado afirmar que Hertz estava confiante no valor heurístico das

massas e movimentos ocultos hipotéticos incluídos em sua representação, embora não tenha sido

capaz – ou não tenha tido tempo – de demonstrar, em The Principles of Mechanics, as aplicações de

sua hipótese.38 Sobre isso, Helmholtz comenta:

Infelizmente ele [Hertz] não deu exemplos que ilustrassem a suposta maneira pela qual tal mecanismo hipotético deveria atuar; a explicação nesses termos, mesmo dos casos mais simples de forças físicas, demandaria, claramente, muita intuição científica e capacidade imaginativa. Neste sentido, Hertz parece ter depositado bastante confiança na introdução de sistemas cíclicos com movimentos invisíveis (1956, prefácio).

38 Hertz dedica parte do Capítulo V de The Principles of Mechanics (§601 a §658, pp. 225-249) à formalização matemática de um caso especial de sistemas cíclicos conservativos contendo massas ocultas. Sobre os sistemas não-conservativos o autor tece apenas alguns comentários, deixando o problema em aberto (pp. 250-252).

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D’Agostino (2007, p. 220) enfatiza a influência de Helmholtz e, assim como os demais

comentadores, dos trabalhos experimental e teórico de Hertz nos domínios do eletromagnetismo

como fatores decisivos na definição da concepção de teoria científica do cientista alemão. Para este

autor, a filosofia da ciência de Hertz exposta e aplicada em The Principles of Mechanics representa

uma retomada do paralelismo da legalidade proposto por Helmholtz: as asserções decorrentes das

representações científicas devem ser confirmadas pelas observações experimentais e vice-versa.39

No entanto, Hertz está ciente de que o referido paralelismo não garante univocidade entre

representação e observação e tende a optar, a partir das suas pesquisas que resultaram no

estabelecimento das ondas eletromagnéticas, pela teoria que apresenta maior capacidade heurística

– no caso em questão, a teoria de Maxwell –, mesmo que a teoria escolhida se apoiasse em

elementos não-observáveis. Aliás, Hertz considerava que o emprego de elementos hipotéticos não

era privilégio da relativamente jovem ciência do eletromagnetismo. Também a mecânica vinha, há

tempos, fazendo uso de ‘entidades ocultas’ (“entità nascoste”) ao incluir, por exemplo, em sua

representação tradicional (o modelo newtoniano), o conceito de força:

O peso de uma pedra e a força exercida pelo braço aparentam ser tão reais e prontamente e diretamente perceptíveis quanto os movimentos por elas produzidos. Mas o mesmo não pode ser dito quando nos voltamos para os movimentos das estrelas. Aqui as forças nunca foram objetos da percepção direta; todas as nossas experiências prévias referem-se apenas às posições aparentes das estrelas (HERTZ, 1956, p. 12).

Sob o ponto de vista de Hertz, a extensão, por hipótese, do conceito de força estabelecido a

partir de nossa experiência sensível ao estudo de situações em que as forças não podem ser

diretamente percebidas, não é metodologicamente problemática:

Mas mesmo que as forças tenham sido apenas introduzidas por nós na natureza, não devemos, por isso, considerar sua introdução como inadequada. Estamos convencidos, desde o princípio, de que relações supérfluas não podem ser totalmente evitadas em nossas imagens (HERTZ, 1956, p. 12).

Para o cientista, o que se afigurava como problemático era o próprio conceito de força e suas

aplicações. Daí sua opção por uma representação da mecânica baseada em vínculos geométricos

entre as massas dos sistemas naturais estudados – imagens das conseqüências necessárias das

mudanças de posição dessas massas – em detrimento do conceito de força. As massas e os

movimentos ocultos ‘invisíveis’ hipoteticamente conformados pelas características das conexões

39 D’Agostino utiliza o seguinte exemplo: “Se na teoria de uma nossa representação associamos corrente elétrica e campo magnético, também à nossa observação experimental da corrente deve-se seguir a medida de um campo magnético” (2007, p. 217-218).

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rígidas, exercem uma função complementar na obtenção de uma representação ‘bem modelada,

completa e em conformidade com a lei’40 (HERTZ, 1956, p. 25).

Das reflexões de Hertz sobre a relação entre teoria e experiência durante seus trabalhos

experimental e teórico nos domínios do eletromagnetismo – que acabaram por aguçar sua percepção

crítica do papel de determinados conceitos (força, energia) nas representações tradicionais da

mecânica – até a proposta de cunho filosófico-metodológico apresentada pelo cientista em The

Principles of Mechanics, surge uma nova concepção de teoria científica, assim sintetizada por

D’Agostino:

Daqui a exigência de uma nova codificação da relação entre ente teórico e observável, em que, além da grandeza observável, é necessário postular “massas ocultas” que não são entidades observáveis e que, entram, assim, diretamente na “ciência empírica de Hertz”. Os termos teóricos não são mais vinculados com uma relação de termo a termo à entidade observável, e a teoria adquire, de imediato, uma certa liberdade com respeito à observação, que se traduz em sua maior potência (2007, p. 218).

A interpretação de D’Agostino se aproxima bastante da de Cassirer, o qual considera que a

representação da mecânica de Hertz, além de ‘muito audaciosa’, transcende os problemas

intrínsecos tratados em The Principles of Mechanics e acaba por conceder um novo sentido ao

problema da função de uma teoria científica (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 133). Cassirer toma

como ponto de partida para compreensão do pensamento hertziano as ‘Investigações sobre a

propagação da força elétrica’ (Electric Waves), ressaltando, porém, as implicações desta obra para

a polêmica – posta em relevância desde, pelo menos, a época de Newton41 – sobre a natureza da luz.

Alguns contemporâneos de Hertz acreditavam que os resultados de sua pesquisa com as ondas

eletromagnéticas haviam levado a termo tal polêmica.42 No entanto, segundo Cassirer, poder-se-ia

argumentar que a identificação dos fenômenos luminosos com a propagação de ondas

eletromagnéticas não revelava absolutamente nada sobre a “natureza” da luz: “não se fazia mais do

que substituir um enigma pelo outro, já que a natureza dos fenômenos eletromagnéticos não é nem

um pouco mais clara do que a dos fenômenos óticos” (vol. IV, 1986, p. 129). Segundo este autor,

Hertz estava consciente disto e, ao optar pela teoria de Maxwell, ele não estaria preocupado com a

“verdade” ou “falsidade” ontológica dos modelos construídos pelo físico britânico, mas sim, com a

40 Há controvérsias quanto ao que Hertz tinha em mente quando atribui à sua hipótese de entidades ocultas o papel de complementar a ‘conformidade com a lei’ de sua representação. Abrantes (1992, pp. 365-366) identifica a posição de Hertz expressa nessa passagem com o realismo, ‘embora em nenhum momento [Hertz] afirme que as entidades postuladas “existem realmente” no mundo’. Por outro lado, D’Agostino (2007, p. 220) sugere que Hertz, ao fazer tal afirmação, estaria se referindo ao paralelismo da legalidade de Helmholtz e não estabelecendo um caráter ontológico para tais entidades (ao citar o trecho em questão, este autor coloca entre parênteses, ao lado da palavra legge (lei), o termo regolare, ou seja, regular, regulamentar, ajustar). 41 Sobre o assunto, ver, por exemplo, VALADARES, E. C., Newton – A órbita da Terra em um copo d’água. Odysseus Editora: São Paulo, 2003. 42 Sobre o assunto, ver HELMHOLTZ, 1956, prefácio ou o Capítulo I deste trabalho.

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fecundidade da referida teoria como um todo (Ibidem). Também para Cassirer, este é o caráter

distintivo do pensamento de Hertz em relação a alguns de seus mais destacados contemporâneos.

Para Mach, como já foi dito repetidas vezes, o valor de uma teoria deveria ser medido pela

sua capacidade de adaptação aos fatos, ou seja, ao que nos é acessível pelos sentidos. As teses ou

proposições gerais em uma teoria científica têm a função estrita de dar expressão a conjuntos de

fatos individuais. Conceitos e princípios gerais são recursos mnemotécnicos que ‘permitem agrupar

sob um mesmo signo de linguagem coisas distintas e diversas, que se propõe a reproduzi-las com

maior facilidade’ (CASSIRER, vol. IV, 1986, pp. 130-131). Hertz, no entanto,

Estava absolutamente seguro de que nem todo componente de uma teoria é suscetível de semelhante realização ou tenha necessitado dela, e crê que esta somente pode ser exigida e obtida em relação ao conjunto, ou seja, em relação a um sistema de proposições teóricas. Com ele se atribui à atividade do pensamento uma significação completamente distinta e se lhe concede uma margem muito mais livre do que ocorria com a teoria sensualista de Mach, em que uma determinada “idéia” só podia creditar seus títulos de legitimidade e validez à condição de que víssemos nela a cópia de determinadas “impressões” (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 131).

De acordo com os preceitos da fenomenologia, a fecundidade de uma teoria física residiria

na sua capacidade de reprodução dos fatos de forma simples e econômica, evitando-se

interpretações ontológicas ou mesmo hipóteses sobre uma natureza que ‘não tem senão uma

existência própria’ (MACH, 1960, p. 580). Mas, segundo Cassirer, se assim deve ser, a teoria física

na forma concebida pelos fenomenologistas vinha cumprindo muito mal a sua missão:

Com efeito, já em suas proposições iniciais nós a vemos não só alijar-se daqueles fatos, como também projetar sua perspectiva sobre algo que “jamais nem em parte alguma poderia ocorrer”. A lei da inércia trata de descrever o movimento de um corpo sobre o qual não atua nenhuma força exterior, e a hipótese de que semelhante caso nunca tenha se dado na natureza é, por si só, absurda (vol. IV, 1986, p. 134).43

43 Obviamente que Mach não concordaria com a interpretação de Cassirer. Para o cientista, princípios gerais derivados de situações “ideais” – como a lei da inércia – são o resultado de ‘experimentos mentais’ conformados por experiências físicas. Em The Science of Mechanics, Mach cita, como exemplo, os trabalhos de Stevin sobre equilíbrio estático: “Se é um fato, para o nosso instinto mecânico, que uma corrente pesada sem fim [fechada] não apresentará rotação [quando apoiada em um plano inclinado], então, os casos individuais simples de equilíbrio sobre um plano inclinado, os quais Stevin estudou e que são prontamente controlados quantitativamente, podem ser considerados como uma grande quantidade de experiências particulares. Por isso, não é essencial que os experimentos tenham sido realmente executados, se o resultado está acima de qualquer dúvida. De fato, Stevin experimenta mentalmente. O resultado de Stevin poderia, na realidade, ser deduzido dos correspondentes experimentos físicos, com o atrito reduzido ao mínimo. De maneira análoga, as considerações de Arquimedes com respeito à alavanca devem ser consideradas devem ser concebidos como similares ao modo de proceder de Galileu. Se os diversos experimentos mentais tivessem sido executados fisicamente, a dependência linear entre o momento estático e a distância do peso em relação ao eixo poderia ser deduzida com perfeito rigor. Teríamos ainda muitos casos exemplares, entre os mais importantes pesquisadores nos domínios da mecânica, desta tentativa de adaptação de concepções quantitativas particulares a impressões instintivas gerais” (MACH, 1960, p. 38). Cassirer, no entanto, considera ‘extraordinariamente duvidosa’ a legitimidade de se experimentar com o pensamento, se a fenomenologia machiana é tomada ao pé da letra (CASSIRER, vol. IV, 1986, pp. 134-135).

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Além do mais, a física do século XIX caracteriza-se por ser uma “física de princípios” –

princípio de Carnot, princípio da conservação da energia, princípio de mínima ação, etc. – os quais

pressupõem uma generalidade temporal e espacial que não pode ser obtida da experiência, mas

serve como ‘pauta’ para elas (CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 137).

Ao contrário dos fenomenistas, Hertz percebe que as imagens que formamos da natureza são

inevitavelmente afetadas pelas características do modo pelo qual nossas mentes formam as

representações (HERTZ, 1956, p. 2) e propõe que tiremos proveito disso. Segundo Cassirer, a

concepção do conhecimento de Mach subentende que ‘a necessidade de se pensar em conceitos

gerais e em leis’ representa mais uma debilidade do ‘espírito humano’ do que propriamente uma

virtude sua (vol. IV, 1986, p. 134). Hertz, por outro lado, defende que, na construção de

representações científicas, não devemos abrir mão de uma teoria sobre a natureza (CASSIRER, vol.

IV, 1986, p. 135), de uma visão de mundo físico: Newton concebeu um mundo mecânico em que os

objetos interagiam por meio de forças à distância; Maxwell preencheu as “distâncias” entre os

objetos da natureza com um éter que transmitia tais interações; Hertz modelou um éter geométrico

oculto de nossas percepções à imagem e semelhança das ‘ imagens das conseqüências necessárias na

natureza das coisas observadas’. É claro que, tanto as diversas teorias sobre a natureza quanto as

representações construídas a partir delas devem, além de obedecer ao isomorfismo pressuposto por Hertz,

conduzir em suas conseqüências a resultados consonantes com a experiência (CASSIRER, vol. IV, 1986,

p. 135). Hertz, então, realiza um deslocamento de prioridade em relação à doutrina fenomenológica:

na filosofia da ciência hertziana as representações não estão obrigadas, em sua origem, a uma

fidelidade empírica estreita e passiva, mas devem oferecer, em troca da maior liberdade em sua

concepção, maior adequação e fecundidade empírica.

O pensamento de Hertz explicita ‘a espontaneidade inerente à criação de toda teoria’

(CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 135), as quais corresponderiam ‘à atividade de uma verdadeira

imaginação científica’ (ABRANTES, 1992, p. 358). Se assim for, a filosofia da ciência de Hertz

estaria, em oposição à concepção biológica ou psicofísica de Mach, realocando o papel do intelecto

humano na atividade científica e conteria, também nesse aspecto, características herdadas da

filosofia de Kant, pelo menos na interpretação que Burtt faz desta última: “uma tentativa pertinaz

de devolver ao homem e a seus elevados anseios espirituais um lugar de importância no esquema

cósmico” (1983, p. 18). No entanto, segundo Cassirer (vol. IV, 1986, pp. 127-128), não se pode

deixar de considerar as propostas epistemológicas que apontavam para um rompimento com o

‘estreito esquema sensualista’ da fenomenologia machiana, como uma resposta a algumas novas (e

outras não tão novas) demandas empíricas da física no final do século XIX e início do século XX,

como, por exemplo, aquelas que se relacionam à teoria cinética dos gases de Boltzmann, as

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investigações sobre o movimento browniano, a prova do caráter atômico da eletricidade por

Helmholtz, a descoberta do fenômeno da interferência por Laues e, obviamente, no caso de Hertz,

as pesquisas experimentais dos fenômenos eletromagnéticos.

Os comentadores da obra de Hertz até aqui citados destacam, de forma conclusiva e, às

vezes, até mesmo ufana, os aspectos originais e distintivos do pensamento hertziano em relação ao

contexto científico de sua época. Entretanto, as referências elogiosas de Hertz aos trabalhos de

Mach e Kirchhoff em The Principles of Mechanics, associadas a algumas de suas próprias idéias,

levaram alguns estudiosos, como já foi dito, a identificar a postura do cientista em relação à teoria

científica com uma filiação a diferentes correntes de pensamento. De acordo com Abrantes (1992,

p. 358), Van Fraassen44 e Elkana45 identificam a concepção de Hertz de que nada podemos afirmar

sobre as coisas da natureza além do que nos é dado pelo pressuposto isomorfismo entre pensamento

e natureza, com ‘um ceticismo de corte claramente empirista ou fenomenista, em contraposição ao

realismo (que, no século XIX, tinha os atomistas como principais representantes)’; a premissa de

que ‘a antecipação de eventos futuros’ (HERTZ, 1956, p.1) constitui-se no principal problema a ser

resolvido pelo conhecimento científico, alinharia Hertz aos instrumentalistas; para Mary Hesse46,

“Hertz (...) retorna à visão positivista do início do século XIX... [ao defender que]... o significado

essencial de uma teoria científica esgota-se em seu conteúdo testável” (HESSE, 1970, pp. 214-215

apud ABRANTES, 1992, p. 358). O próprio Abrantes sugere que Hertz ‘aproxima-se bastante do

realismo’ (1992, pp. 365-366) ao propor que a inclusão de massas ocultas em movimento na sua

representação da mecânica tinha por objetivo a obtenção ‘de uma imagem de universo’ que fosse

‘bem acabada, completa e conforme a lei... ’ (HERTZ, 1956, p. 25).47

Certamente que Hertz abordava as questões da ciência a partir de sua visão de mundo físico,

e que, durante o processo de elaboração dessa visão, esteve exposto aos ‘programas ou tradições

filosóficas e científicas’ (ROSSI, 1992, p. 123) acima citados. Entretanto, os aspectos fundamentais

de sua filosofia da ciência exibem-se com maior clareza e coerência quando sua análise se fixa no

instrumental kantiano de que Hertz lançou mão. Assim, no sentido de evitar qualquer tipo de

interpretação ontológica, Hertz utiliza-se das idéias de imagem e representação. Os conceitos

científicos básicos são considerados como um sistema de ‘possíveis seqüências de eventos

observados’ (JANIK e TOULMIN, 1996, p. 143). Os critérios estabelecidos por Hertz para a

análise das teorias científicas vão ao encontro de uma das ambições de Kant, ao permitirem que o

44 VAN FRAASSEN, B. C., The Scientific Image. New York: Oxford University, 1980. 45 ELKANA, Y., Boltzmann’s Scientific Research Program and its Alternatives. In: ELKANA Y. (Ed.). The Interaction between Science and Philosophy. New Jersey: Humanities, 1974. 46 HESSE, M., Forces and Fields. Westport: Greenwood, 1970. 47 Uma outra interpretação desta afirmação de Hertz, em contraposição à interpretação de Abrantes é apresentada na nota 40, deste Capítulo.

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alcance de uma representação teórica seja estabelecido de dentro da própria teoria, com base na

concepção de que as questões metafísicas referem-se ao que não se pode conhecer (“unknowable”),

por estarem assentadas nas fronteiras da razão ou além delas (Ibidem, pp. 145-146). As

especulações a priori de Hertz ‘funcionam como axiomas fundamentais de um sistema de axiomas’

(COHEN, 1956: Ensaio Introdutório).

Abrantes reconhece que ‘o neokantismo de Hertz o faz, efetivamente, acreditar num

isomorfismo entre a seqüência de nossos pensamentos e a seqüência de eventos do mundo’ (1992,

p. 358). Ressalva, porém – pensando, possivelmente no aparato conceitual elaborado por Mach para

sustentar sua teoria do conhecimento –, que ‘Hertz não avança qualquer explicação para esta

conformidade’ (ABRANTES, 1992, p. 357). É possível, no entanto, que Hertz tenha se apoiado na

autoridade de Helmholtz, para quem a doutrina kantiana havia encontrado confirmação nas

pesquisas sobre a fisiologia dos sentidos:

Investigações sobre a fisiologia dos sentidos, as quais foram particularmente completadas e criticamente testadas por Johannes Müller e, em seguida, sintetizadas por ele na lei das energias específicas dos nervos sensoriais, trouxeram a total confirmação [da doutrina de Kant] a um grau inesperado”(HELMHOLTZ apud D’AGOSTINO, 2004, p. 375).

Por outro lado, as especulações a priori de Hertz são o ponto de partida para a construção de

modelos matemáticos ou de uma ‘teoria de modelos’ cujos limites de aplicabilidade lhe são

inerentes:

Os modelos de Hertz, cuja própria estrutura prescreve sua esfera de aplicação, marcam um grande avanço sobre o aparato conceitual básico utilizado por Mach – ou seja, símbolos que são “cópias” ou “nomes” de experiências sensíveis reais – porque seu fundamento não é psicológico ou descritivo, mas lógico-matemático. Assim, partindo do princípio da economia de pensamento do próprio Mach, essas estruturas preenchem a função de capacitar o cientista a “antecipar a experiência” de maneira muito mais eficiente do que haviam feito as descrições de Mach. De fato, pode-se argumentar que uma crítica histórica como a realizada por Mach seja uma “gramática” propedêutica para a representação sistemática das leis da mecânica, assim como Hertz a concebeu. Ela estabelece historicamente que diferentes sistemas da mecânica explicaram os mesmos fenômenos e, além disso, que nenhum sistema em particular tem qualquer prioridade, exceto aquele derivado da economia de sua apresentação. Todavia, o sistema que permite ao cientista antecipar experiências permanece sendo, de longe, o mais eficiente, especialmente quando ele, simultaneamente, evita tantas ciladas filosóficas quanto o faz o sistema de Hertz (JANIK e TOULMIN, 1996, p. 142).

Mas, alerta Cassirer, a utilização dos termos símbolo, imagem ou representação, na forma

em que Hertz os concebe, traz à tona uma antiga dificuldade: “como estas ‘imagens aparentes’

podem nos aproximar da verdade, como é possível que, com base nelas, não só podemos agrupar

as experiências presentes, mas também formular perdições exatas sobre coisas futuras”?

(CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 141). É o problema da indução que, nesse caso, só pode ser evitado

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se aceitarmos, com Hertz, que a pressuposição de um isomorfismo entre pensamento e natureza nos

é permitida pela experiência previamente acumulada, a qual ‘nos ensina que este requisito pode ser

satisfeito e que, por conseguinte, uma tal conformidade existe de fato’ (1956, p.1). Porém, tal

argumento apresenta um caráter circular: o isomorfismo deriva da experiência ao mesmo tempo em

que é utilizado como ‘premissa necessária para a validade de toda conclusão indutiva’

(CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 141). No entanto, o problema pode ser minimizado48 quando se

considera que das ‘pré-figurações’ (ordenação das imagens) de Hertz só se deve exigir que

correspondam a ‘possíveis seqüências de eventos observados’. As estruturas dos símbolos, em

Hertz, não firmam um compromisso com a “realidade”, não têm a pretensão de reproduzir as

estruturas dos objetos (Ibidem). A proposição de modelos possibilita a elaboração da formulação

matemática das teorias, as quais devem cumprir uma função heurística:

... o papel primário de muitos símbolos ocorrendo em teorias é o de facilitar a formulação da teoria com grande generalidade, possibilitando transformações lógicas e matemáticas de maneira relativamente simples, ou de servir como recursos heurísticos para a aplicação estendida da teoria (NAGEL apud ABRANTES, 1992, p.352).

Sob o ponto de vista de Abrantes, a proposta filosófico-metodológica de Hertz resulta numa

concepção de estrutura da teoria científica muito próxima das concepções contemporâneas, segundo

as quais os cálculos são interpretados através de regras de correspondência (1992, pp. 362-363). De

acordo com esta perspectiva, uma teoria apresenta duas componentes distintas: uma delas

correspondente ao formalismo matemático, ‘desprovido de qualquer sentido empírico’; a correlação

entre as fórmulas matemáticas e os fenômenos observáveis é estabelecida por meio de regras de

correspondência49 (OSTERMAN, F e PRADO, S. D., 2005, p. 194).

48 D’Agostino classifica a Bild conception de Helmholtz e Hertz como francamente anti-indutivista. Sobre o assunto, ver (D’AGOSTINO, 2004, p. 372). 49 Como este não é um tema central neste trabalho, recorremos, à guisa de esclarecimento, ao trabalho de Michel Paty: “A questão da interpretação das teorias, de seus formalismos e de seus enunciados obteve variadas respostas, tanto da parte dos filósofos das ciências, no que diz respeito ao problema geralmente considerado, como dos cientistas confrontados à interpretação de uma teoria específica, como, por exemplo, em física, a mecânica quântica. Notaremos, todavia, que o problema da interpretação se coloca em diferentes níveis, e em diferentes momentos da imbricação dos elementos da estrutura teórica. É o que gostaríamos de precisar agora.” “Quando Schlick caracteriza, em seu livro AlJgemeine Erkenntnislehre, os elementos da estrutura de uma teoria (representação simbólica de uma ciência da natureza) como sendo os axiomas, as proposições derivadas e as definições, aliás impossíveis de se distinguir umas das outras, ele inaugura uma concepção que justapõe o formalismo e o conteúdo, a sintaxe e a semântica, tanto para os elementos que entram na constituição do formalismo como para as proposições que dele se inferem. Segundo essa concepção, a significação não faz parte da representação simbólica considerada em si mesma, e deve ser acrescentada à formulação de um enunciado: ‘os enunciados não interpretados são apenas regras gramaticais’. É nesse sentido que a teoria é uma estrutura formal interpretada.” “Nessa linha, o positivismo lógico e a filosofia analítica adotaram a tese da interpretação parcial, segundo a qual a teoria consiste em um formalismo abstrato (F) e em um conjunto de regras de correspondência ou definições de coordenação (R), que unem os termos presentes no primeiro aos fenômenos e dados de experiência. A questão que se coloca é saber se esse conjunto por si só constitui uma teoria física ou se é preciso acrescentar-lhe outros elementos de interpretação de natureza diferente (por exemplo, para fazer dele uma teoria explicativa ou preditiva). Para a

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De fato, no intuito de atribuir ‘conteúdo semântico’ (ABRANTES, 1992, p. 363)50 ao

formalismo matemático de sua representação, Hertz, no Capítulo I do Livro II de The Principles of

Mechanics, insere três regras em que estabelece as características do espaço, do tempo e da massa

que medimos (1956, § 298, § 299 e § 300, pp. 140 e 141) – em contraste com o espaço, o tempo e a

massa que intuímos, apresentados no Livro I – explicando, em seguida, a função exercida por essas

grandezas, agora redefinidas:

§ 302. Observação 1. As três regras precedentes não são novas definições das quantidades tempo, espaço e massa, as quais foram completamente definidas previamente. Elas apresentam as leis de transformação por meio das quais traduzimos a experiência externa, i.e. sensações concretas e percepções, para a linguagem simbólica das imagens que delas formamos (vide Introdução), e pelas quais, reciprocamente, as conseqüências necessárias destas imagens são novamente remetidas aos domínios de possíveis percepções sensíveis. Portanto, somente através dessas três regras os símbolos espaço, tempo e massa podem tornar-se partes de nossas imagens dos objetos externos. Mais uma vez, apenas por essas três regras elas estão sujeitas a outras demandas além daquelas que são requeridas por nosso pensamento (HERTZ, 1956, p. 141).

Assim como Abrantes, Cassirer identifica alguns caminhos apontados por Hertz e também

alguns dos pensadores que percorreram estes caminhos ou os tomaram como ponto de partida. Um

deles, segundo Cassirer, teria sido Jules-Henri Poincaré, cuja obra representa ‘a continuação e o

desenvolvimento desta marcha do pensamento’ (vol. IV, 1986, p. 135). De acordo com Poincaré, a

ciência não atinge as coisas, mas as relações entre as coisas e estas relações são expressas por

equações cuja ‘verdade’ fornece a medida da “realidade” das relações por elas representadas (1985,

p. 127). Os objetos da ciência são imagens ou denominações dos ‘objetos reais’ e

as verdadeiras relações entre esses objetos reais são a única realidade que podemos atingir, e a única condição para isso é que as relações entre esses objetos sejam as mesmas que existem entre as imagens que somos obrigados a pôr em seu lugar. Se conhecemos essas relações, pouco importa que julguemos ser conveniente substituir uma imagem pela outra (Ibidem, pp. 127-128).

Para Poincaré, não há por que abrir mão de hipóteses numa teoria científica, desde que se

esteja consciente de seu valor. Elas nada nos dizem sobre a natureza dos objetos, são ‘metáforas’

que ‘podem ser úteis para satisfazer a mente e não serão nocivas desde que não passem de

hipóteses indiferentes’51 (1985, p. 129). Segundo o matemático francês, os axiomas geométricos,

por exemplo, “não são nem juízos sintéticos a priori, nem fatos experimentais. São convenções.”

interpretação segundo a metalinguagem que estabelece as regras de coordenação (por exemplo, associando a variável X a uma coordenada no espaço físico e à possibilidade de determiná-la pela observação), seria preciso, ou não, acrescentar elementos de interpretação mais gerais (de tipo metateórico ou até ontológicos ou metafísicos). Como no caso da mecânica quântica, a complementaridade ou, ao contrário, o realismo ou determinismo.” Sobre o assunto, ver PATY, M., “Endo-referência de um ciência formalizada da natureza”. In: Estudo Avançados, 6 (14), 1992. 50 Ver também nota 49 acima. 51 Sobre o assunto, ver VIDEIRA, A. A. P., “Poincaré e as hipóteses indiferentes’. In. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, n. 17, Jan-Jun, 1997.

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Nesse sentido, a geometria euclidiana não é mais verdadeira do qualquer outra geometria: ela é

apenas a mais cômoda. (POINCARÉ, 1985, p. 54). Da mesma forma, os princípios da mecânica são

convenções não inteiramente arbitrárias que se mostraram mais cômodas (Ibidem, p. 110). É

possível que haja uma infinidade de explicações mecânicas dos fenômenos naturais, mas a escolha

deve recair sobre a mais simples (Ibidem, p. 136).

Cassirer (vol. IV, 1986, pp. 137-141) destaca o caráter simbólico atribuído por Pierre

Duhem ao conhecimento físico para alinhá-lo com Hertz52 e Poincaré. Para Duhem, a

fenomenologia de Mach não se sustenta quando aplicada na explicação do processo de transição do

‘fato bruto’ ao ‘fato científico’, uma vez que o estabelecimento e a interpretação de um fato

científico só são possíveis a partir de pressupostos teóricos correlacionados, de um sistema de

símbolos e princípios predeterminados, de sua remissão ‘a um mundo ideal, abstrato, simbólico,

criado pelas teorias’ que a comunidade científica considera momentaneamente asseguradas: “uma

lei física é uma relação simbólica cuja aplicação à realidade concreta exige o conhecimento e a

aceitação da validade de todo um conjunto de teorias” (DUHEM apud CASSIRER, vol. IV, 1986,

p. 139). A verdade ou falsidade de uma teoria não pode ser medida pelo ‘mundo dos fatos’ assim

como concebido por Mach. ‘Uma teoria somente pode ser medida por outra teoria’. Ao se deparar

com uma teoria problemática, o físico, dizia Duhem, não atua como um relojoeiro que, diante de um

relógio defeituoso, desmonta-o, separando suas peças para, depois de examiná-las, substituir ou

reparar aquela que impede o mecanismo de funcionar devidamente. A atuação do físico, nesse caso,

assemelha-se à de um médico que mantém vivo um paciente enfermo, enquanto procura pelo órgão

causador da enfermidade. ‘A física é um sistema que deve ser enfocado como uma unidade, como

um todo’ e não como ‘uma máquina que se possa desmontar’ (Ibidem CASSIRER, p. 140).

Na elaboração de modelos físicos do universo perceptível, no entanto, os físicos, ainda

atrelados à tradição cartesiana, operavam como um relojoeiro, construindo mecanismos constituídos

de massas em movimento ‘segundo leis matemáticas imutáveis’ (Ben Dov, 1996, p. 41). Aqueles

que, por um motivo ou por outro, empreenderam modelos de um “universo imperceptível”, o

fizeram sob a mesma tradição. Assim se deu com os primeiros modelos de éter postulados por

Maxwell53, com a hipótese de massas ocultas em movimento de Hertz e nas tentativas iniciais de se

estabelecer uma imagem da estrutura dos átomos. No início do século XX, a mecânica quântica de

52 Em nota, Abrantes (1992, pp. 351-352) recomenda cautela ao se atribuir alguma influência direta do pensamento de Hertz sobre a filosofia da ciência de Duhem, já que os primeiros trabalhos filosóficos do pensador francês foram produzidos entre 1892 e 1894. 53 “A complicada estrutura que Maxwell atribuía ao éter, na primeira versão de sua teoria, dava ao seu sistema uma fisionomia estranha e repulsiva; ela nos dava a impressão de estarmos diante de uma fábrica, com suas engrenagens e bielas que transmitem o movimento e reduzem o esforço, com seus reguladores e suas correias de transmissão” (POINCARÉ apud CASSIRER, vol. IV, 1986, p. 142).

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Planck e a teoria da relatividade de Einstein marcam o início do fim da relojoaria universal e da

tendência de modelar um microcosmo “isomórfico” ao macrocosmo. Sob o ponto de vista da física

moderna, mesmo o macrocosmo não é tão facilmente reconhecível pelos nossos sentidos: as noções

de tempo e espaço não podem mais ser ‘baseadas nas leis de nossa intuição interna’, como

postulava Hertz ou definidas simplesmente como ‘abstrações às quais chegamos por meio das

mudanças das coisas’, como estabelecia Mach. As medidas de tempo e espaço na nova física não

dependem apenas ‘das mudanças das coisas’, mas, também, das velocidades relativas das ‘coisas’.

Nessa nova representação da natureza, a imagem geométrica do espaço, longe de ser intuitiva, é

não-euclidiana. ‘Estas teorias impuseram novos sacrifícios no tocante à clareza plástica da imagem

da natureza’ (CASSIRER vol. IV, 1986, p. 142). Com elas o conhecimento físico se vê obrigado a

renunciar à busca de um modelo mecânico simples e unificador, mas não abre mão da unidade

(POINCARÉ, 1985, p. 136), de seu caráter orgânico: “o último passo dado nessa direção é a

trajetória seguida pela teoria geral da relatividade e pela teoria dos quanta” (CASSIRER vol. IV,

1986, p. 142). Tampouco abre mão de teorias sobre a natureza – a perspectiva atomística, por

exemplo – e, aos poucos, liberta-se da “obrigação” de manter um compromisso irrevogável entre as

representações científicas e a nossa percepção ou intuição direta.

Segundo Cassirer, o estudo das reflexões de caráter epistemológico de cientistas como

Hertz, Boltzmann e Poincaré54 e sua gradual apropriação por membros da comunidade científica –

Einstein e Schrödinger, por exemplo55 – ‘revelam de um modo muito claro que a trajetória do

pensamento físico que levou aos últimos acontecimentos revolucionários [da física atômica] se

desenvolveram, em geral, com uma continuidade muito maior do que se pode pensar’:

Dificilmente a física teria se permitido chegar a conclusões tão opostas aos hábitos da intuição direta, se não estivesse preparada par isto e não houvesse sido estimulada a seguir este caminho pela mudança operada em seu conceito de conhecimento, mudança que, como vimos, já se inicia no próprio terreno do sistema clássico. Neste sentido, podemos afirmar que o trabalho concreto de investigação e as reflexões da teoria do conhecimento por ele estimuladas se completaram mutuamente e importantes e fecundas sugestões se intercambiaram (CASSIRER vol. IV, 1986, p. 145).

54 Cassirer não se refere especificamente a estes pensadores, mas utiliza, ao longo de sua obra, os pontos de vista dos mesmos sobre o conhecimento científico para preparar suas conclusões a respeito do desenvolvimento do conhecimento físico. 55 De acordo com D’Agostino, ‘Einstein lerá o Prinzipien [The Principles of Mechanics] com grande interesse’ (2007, p. 221) e Schrödinger será o responsável pelo estabelecimento da Bild conception como uma tradição na física teórica (2004, p. 372).

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III. 3. COMENTÁRIOS SOBRE ALGUMAS DAS REPERCUSSÕES DA FILOSOFIA DA

CIÊNCIA DE HERTZ

III. 3. 1. Heinrich Hertz e Ludwig Boltzmann

Mesmo que não simultaneamente, as carreiras de Heinrich Hertz e do físico austríaco

Ludwig Boltzmann (1844 – 1906) apresentaram alguns pontos em comum antes que suas

concepções de teoria científica pudessem ser analisadas comparativamente. Quando Hertz era ainda

um adolescente, Boltzmann freqüentou, como visitante, o laboratório comandado por Helmholtz,

com quem trocou correspondências e por quem foi incentivado a investigar a aplicação de modelos

mecânicos à teoria do calor. Além disso, Boltzmann dedicou especial atenção à teoria

eletromagnética de Maxwell e tornou-se um de seus principais divulgadores na Europa, por meio de

sua obra didática Vorlesungen Äuber Maxwells Theorie der Elekritzitätt und des Lichtes

(VIDEIRA, 2006, pp. 269-271).

Como físico Boltzmann é lembrado, por exemplo, pela teoria cinética dos gases e a

mecânica estatística. Diante dos acalorados debates que vinham ocorrendo no final do século XIX

(e que se estenderam pelo século XX) sobre qual ‘deveria ser o conceito e a missão’ da física,

Boltzmann notabilizou-se pela insistente defesa do atomismo e do pluralismo teórico. No entanto,

segundo Videira, o cientista austríaco nunca pretendeu elaborar uma teoria do conhecimento físico,

preferindo apenas defender seus pontos de vista sobre o assunto quando necessário (2006, p. 273).

Para Boltzmann, a hegemonia de determinada teoria em um domínio da física não deveria implicar

na exclusão das demais teorias relativas a este mesmo domínio. Ele acreditava que, assim como a

capacidade preditiva das construções teóricas não se constituía em condição suficiente para

garantir-lhes permanência e hegemonia, também a exposição dos limites de uma ‘teoria que já deu

bons resultados’ não seria motivo para excluí-la da ciência56 (VIDEIRA, 2006, p. 273). Além do

mais, sob o ponto de vista de Boltzmann, teorias são representações da natureza e como tais não

podem ter seu valor de verdade aferido pelo seu potencial de revelar a essência das coisas: “uma

teoria é “verdadeira” se, por meio de suas implicações (previsões, por exemplo), ela conduz a

resultados que correspondem à experiência” (Ibidem).

56 Ao invés de ser excluída, a teoria continuaria incorporada à ciência, desde que seus limites de aplicação fossem definidos. Seria o caso, por exemplo (um exemplo que Boltzmann certamente não poderia utilizar), quando são confrontadas as teorias de Newton e Einstein: “Na escala que vai desde um pouco acima da molecular até a escala do sistema solar, para velocidades do valor zero até os valores típicos dos movimentos planetários (< c/10.000), e para potenciais gravitacionais até os calores que ligam os planetas ao Sol, as teorias de Newton se aplicam com precisão quase perfeita” (CHAVES, A. S., Física: curso básico para estudantes de ciências físicas e engenharias. Rio de Janeiro: Reichmann & Afonsso, 2001.).

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Boltzmann admitia ‘vários modos de expressão em física’ ou vários modos de representação

dos fenômenos físicos e defendia que o atomismo poderia ser um deles (VIDEIRA, 1997, p. 59).

Para o cientista, além do valor científico, o átomo possuía valor ‘epistemológico’57 e heurístico.

Boltzmann acreditava que a hipótese atômica poderia ser deduzida dos princípios físicos e equações

matemáticas que compunham a estrutura de uma teoria:

De acordo com os fenomenólogos matemáticos, como, por exemplo, Kirchhoff, os sistemas de equações diferenciais poderiam ser elaborados (concebidos), formulados e resolvidos sem que fosse necessária qualquer referência ao atomismo. Para Boltzmann, os fenomenólogos estavam errados. Toda e qualquer equação diferencial, tal como a estabelecida por Fourier para a propagação do calor, se fundamentava na hipótese da existência de pequeníssimas partículas de matéria e do comportamento das mesmas. Tendo feito algumas hipóteses sobre o tamanho dessas partículas, toma-se o limite em que os intervalos de tempo e de comprimento tendem a zero. O mesmo acontece com as soluções dessa equação: o único procedimento rigoroso existente para resolvê-la lança mão da idéia de que o número dessas partículas é limitado, sendo somente a partir dessa aproximação que se deixa aumentar o seu número até o infinito (VIDEIRA, 2007, p. 274).

O átomo, portanto, tem, para Boltzmann a função de fornecer conteúdo semântico ao

cálculo. A validação empírica do conceito de átomo, assim deduzida, seria o próximo passo. Na

concepção de Boltzmann, qualquer teoria alijada de tal processo, isto é, que se visse obrigada a

abrir mão de elementos fictícios ou hipotéticos, se tornaria uma teoria vazia. As restrições impostas

por Mach e pelos fenomenologistas às construções teóricas são impossíveis de serem aplicadas

rigorosamente: nem todo elemento de uma teoria corresponde a um fenômeno ou a um conjunto de

fenômenos.

Segundo Videira (2006, pp. 274-275), ‘o caráter restritivo do critério proposto por Mach

não passou despercebido a Heinrich Hertz’ e este seria o principal ponto de convergência dos

pensamentos de Hertz e Boltzmann. Para Hertz, a utilização nas teorias de elementos que

correspondessem, única e exclusivamente, a percepções dos sentidos, mesmo que possível, não

evitaria os problemas referentes à permissibilidade lógica e à eficiência (adequação) das

representações. Para a abordagem desses problemas, Hertz propõe que na análise ou elaboração de

uma representação, deve-se considerar a coexistência, nesta representação, de dois níveis distintos:

um, representado por sua estrutura matemática, corresponderia ao ‘nível lógico ou sintático’, outro,

representado pelos seus possíveis modos de representação, corresponderia ao ‘nível empírico ou

semântico’ (D’AGOSTINO, 2004, p. 379; VIDEIRA, 2006, p. 275). A explicitação de um nível

semântico numa representação confere-lhe um grau de liberdade muito maior do que o concebido

por Mach.

57 Em nota, Videira (1997, p. 57) ressalta que usa o termo epistemologia no sentido de análise dos fundamentos de toda e qualquer teoria científica e não como teoria do conhecimento.

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Similaridades entre as concepções dos dois cientistas podem também ser encontradas nos

critérios adotados para a comparação de diferentes teorias:

Boltzmann substitui o conceito de “adequação" ao conceito de verdade enquanto critério para julgar o valor, ou o alcance, das teorias. A noção de verdade, em sentido estrito, não poderia ser o critério último, pois ela pressupõe que as teorias científicas determinam a realidade em si. A adequação significa simplesmente que uma teoria A é mais adequada que uma outra teoria B, caso ela torne inteligíveis certos fenômenos que escapam à segunda teoria. O critério de adequação permite, assim, afirmar que qualquer teoria científica é uma representação ou imagem (VIDEIRA, 2007, p. 275).

De acordo com Janik e Toulmin, a contribuição científica de Ludwig Boltzmann teve no

pensamento de Hertz uma importante referência58 e encontrou nos elementos kantianos nele

presentes o ponto de partida para algumas de suas próprias idéias científicas. Ainda segundo esses

autores, Boltzmann aproxima-se de Kant através da concepção de Hertz de que a mecânica definiria

“uma possível seqüência de eventos observados” (JANIK e TOULMIN, 1996, pp.143-144). A

partir dessa concepção, Boltzmann passou a analisar os sistemas físicos através do estudo das

relações de suas variáveis independentes num espaço multidimensional59, base da mecânica

estatística, fundamental na abordagem da termodinâmica e da física quântica.

Boltzmann, no entanto, adota preceitos darwinistas na constituição de sua concepção do

conhecimento e, ao fazê-lo, afasta-se não só da concepção de Hertz, como também da de Mach.

Boltzmann admite a existência de ‘leis do pensamento’, as quais seriam responsáveis pela formação

das imagens e representações mentais. No entanto, na sua concepção, tais leis não possuem um

caráter a priori, no sentido de Kant, representando apenas uma habilidade humana instintiva para

interagir com o meio ambiente. Uma vez que a espécie humana sofre modificações ao longo do

tempo, seu cérebro também se modificará, o que implica em mudanças nas características das

imagens mentais formadas. Como as variações orgânicas são casuais e não são pré-dirigidas ‘para a

forma mais favorável’, nada garante que a ciência – assim como a espécie humana ou a própria

organização social – esteja “evoluindo” para uma configuração ideal (VIDEIRA, 2007, pp. 275-

276). Ao atribuir à mente humana a capacidade de elaborar imagens e representações, e ao negar o

caráter teleológico do evolucionismo, Boltzmann se contrapõe a Mach. Da mesma forma, ao adotar

58 Janik e Toulmin afirmam que Boltzmann declarava-se um seguidor do trabalho de Hertz (1996, p. 145); Videira afirma que Boltzmann era um apreciador das teses epistemológicas de Hertz, embora o incluísse entre os ‘fenomenistas de fundamento físico-matemático’, perante os quais Boltzmann mantinha uma postura crítica (1997, p. 67). 59 “Ele [Boltzmann] o fez considerando que cada propriedade independente de um sistema físico definia uma coordenada individual num sistema multidimensional de coordenadas geométricas. Todas as possíveis posições de um determinado corpo do sistema físico, por exemplo, eram ordenados ao longo de três eixos de referência; todos os valores das temperaturas, por exemplo, ao longo de outro eixo; todos os valores de, por exemplo, pressão, ao longo de um quinto eixo e assim por diante. A totalidade dos pontos teóricos no sistema multidimensional de coordenadas resultante fornecia uma representação da ‘combinação dos estados possíveis’ do sistema físico em questão; e qualquer estado existente poderia ser definido pela especificação de um determinado ponto nesse ‘espaço multidimensional’, cujas coordenadas correspondiam aos valores existentes de todas as variáveis” (JANIK E TOULMIN, 1996, p. 143).

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uma ‘epistemologia de tipo evolucionária’, endossando a perspectiva de que as leis do pensamento

são modificadas ao longo da história, Boltzmann contraria a admissão, por Hertz, do caráter

imutável dos julgamentos a priori. Além do mais, o ponto de vista de Boltzmann de que, em

qualquer caso, as teorias devem ser julgadas quanto à adequação empírica contrapõe-se à

perspectiva de Hertz de que tais julgamentos a priori não são passíveis de confirmação ou refutação

por experiências futuras60 (ABRANTES, 1992, P. 371).

No entanto, Boltzmann aproxima-se novamente de Hertz quando defende que na elaboração

de representações da natureza não é possível ater-se à mera descrição fenomênica, sem fazer uso de

hipóteses ou preconceber uma teoria sobre a natureza (VIDEIRA, 1997, p. 71). Boltzmann encarava

o atomismo ‘como sendo uma visão de mundo’ (Ibidem). Mais do que isso, ele concebia a

postulação do átomo como uma ‘exigência lógica’:

O átomo deveria possuir alguma característica, que não podia ser apenas física, já que seu conteúdo físico era determinado pelos modelos e teorias onde era utilizado, o que o tornaria “plástico”, isto é, capaz de receber conteúdos diferentes. Essa capacidade, aos olhos de Boltzmann, fazia com que o átomo se transformasse em um conceito muito importante, o que lhe dava uma função epistemológica significativa. Boltzmann aceitaria a tese de Cassirer, segundo a qual o átomo não seria um conceito factual empiricamente determinado; na verdade, ele seria uma exigência lógica (VIDEIRA, 1997, pp. 70 - 71).

Na perspectiva de Boltzmann, antes de ser dogmaticamente descartado, o atomismo deveria

merecer a chance de mostrar sua capacidade heurística, ‘sua fecundidade preditiva’. Afinal, a

proposta atomista de Boltzmann não incluía o estabelecimento do átomo como uma entidade que

desvelasse a essência da natureza indisponível aos nossos sentidos. Segundo Videira, a atomística

procuraria ‘compreender a natureza sem fazer compromissos ontológicos definitivos sobre ela’

(1997, p. 72). Aqui, mais uma vez, vemos, trilhando o mesmo caminho, Boltzmann vislumbrando

imagens atômicas da natureza, e Hertz, que as entrevê sob a forma de massas ocultas em

movimento.

III. 3. 2. Heinrich Hertz e Ludwig Wittgenstein

Existe algum método para fazer pela linguagem-em-geral o que Hertz e Boltzmann haviam feito pela linguagem da física teórica? Existe alguma maneira de mapear de dentro (from within), exaustivamente, o alcance e os limites do “dizível” (sayable),

60 “§ 295. Como já foi estabelecido na nota introdutória (§ 1), nenhum apelo à experiência é feito nas investigações deste livro [Livro I]. Consequentemente, se na seqüência encontrarmo-nos novamente com os resultados aqui obtidos, devemos estar cientes de que eles não são obtidos da experiência, mas das leis de nossa intuição e pensamento, combinadas com uma série de enunciados arbitrários.” “É verdade que a formação das idéias e o desenvolvimento de suas relações só puderam ser obtidas tendo em vista experiências possíveis; não é menos verdade que somente a experiência pode decidir sobre o valor ou a inutilidade de nossas investigações. Mas a correção ou incorreção destas investigações não podem ser confirmadas ou refutadas por quaisquer possíveis experiências futuras” (HERTZ, 1956, p. 135).

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de tal forma que se possa ver, simultaneamente, como a linguagem descritiva em geral é utilizada para fornecer uma bildliche Darstellung no sentido hertziano de representação na forma de modelo matemático de tudo o que se refere aos fatos, e também o caráter “transcendente” de todas as questões éticas – o que as torna cômodas apenas para a “comunicação indireta” – ao mesmo tempo em que ela apresenta a si mesma como o subproduto da análise? (TOULMIN apud JANIK e TOULMIN, 1996, p. 166).

A questão levantada na citação acima sintetiza, segundo seu autor, o enfoque sob o qual a

intelectualidade vienense do final do século XIX passou a considerar o ‘problema central e mais

premente’ do qual vinha se ocupando desde os anos oitenta daquele século. Dentre aqueles que se

dedicaram a um estudo sistematizado dessa ‘preocupação presente na atmosfera de Viena’

(CONDÉ, 1998, p. 31) destaca-se o filósofo Ludwig Wittgenstein (1889 – 1951), que, em sua obra

Tractatus Logico-Philosophicus61 investiga a lógica da linguagem e mostra ‘os limites entre aquilo

que pode ser dito e aquilo que não pode ser dito’ (Ibidem). Apesar de não ser uma tarefa simples

identificar as influências deste autor – Abrantes (1992, p. 351) comenta que ‘Wittgenstein não é

nada pródigo em referências’ – pode-se afirmar, com base nas poucas referências a outras obras

mencionadas no Tractatus, que The Principles of Mechanics foi uma delas.62

O problema de Hertz em The Principles of Mechanics consistia em realizar uma crítica da

estrutura matemática da mecânica – ao invés de uma análise psicológica e histórica como a de Mach

– e explicar como a teoria de Newton era capaz ‘de formar um sistema matemático de axiomas e

deduções’ e, ao mesmo tempo, ‘descrever o mundo existente (actual) da natureza em contraste com

todos os mundos logicamente concebíveis’ (JANIK e TOULMIN, 1996, p. 180). O problema de

Wittgenstein no Tractatus Logico-Philosophicus era mostrar a possibilidade de uma linguagem

representacional – em contraste com o ceticismo de Mauthner, por exemplo – e desenvolver uma

‘teoria modelo da linguagem (Ibidem, pp. 179 - 181).

Wittgenstein era engenheiro, familiarizado com a física de Hertz63 e Boltzmann, e sabia que

os princípios teóricos da ciência funcionavam na prática, na construção de máquinas e

equipamentos. Considerava, ainda, que a estrutura matemática da ‘linguagem mecânica’ era a

garantia de sua univocidade e depuração de ambigüidades (JANIK e TOULMIN, 1996, p. 179). No

entanto, para que pudesse desenvolver uma ‘teoria modelo da linguagem’ que permitisse

generalizar o problema de Hertz, seria necessário o estabelecimento de uma ‘matemática da

linguagem’ (Ibidem, pp. 179 - 181). Para isto, Wittgenstein recorreu ao simbolismo lógico de

Russel e Frege, assimilando, particularmente, a concepção de ‘cálculo proposicional’ de Russel

61 A primeira publicação desta obra data de 1921. Neste trabalho utiliza-se a edição brasileira de 1993. 62 “§ 4.04 ...(Comparar com a “Mecânica” de Hertz, sobre modelos dinâmicos)” e “§ 6.361 Na terminologia de Hertz, poder-se-ia dizer: apenas conexões que se conformam a leis são pensáveis” (WITTGENSTEIN, 1993, pp. 173 e 271). 63 Janik e Toulmin descrevem Wittgenstein como um ‘entusiasmado hertziano’ (1996, p. 179).

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para a obtenção da lógica da linguagem de que necessitava. No Tractatus, a lógica é a essência da

linguagem (CONDÉ, 1998, p. 52).

Para Wittgenstein, há uma ‘ordem a priori no mundo, como também na linguagem’ e a

existência de ‘algo em comum’ entre linguagem e mundo nos possibilita ‘ pensar e falar sobre o

mundo’:64 este ‘algo em comum’ é a lógica (CONDÉ, 1998, p. 52). Falamos do mundo por meio de

proposições. As proposições têm a função de relacionar os nomes ou símbolos das coisas, os quais,

por si só, não têm sentido (JANIK E TOULMIN, 1996, pp. 185-186). ‘A proposição é uma

figuração da realidade tal qual a pensamos’ (WITTGENSTEIN apud CONDÉ, p. 52). Proposições

são, portanto, representações do mundo, elas não descrevem os objetos denotados por nomes ou

símbolos, mas as relações entre os objetos.

§ 4.04 Deve ser possível distinguir na proposição tanto quanto seja possível distinguir na situação que ela representa. Ambas devem possuir a mesma multiplicidade lógica (matemática). (Comparar com a “Mecânica” de Hertz, sobre os modelos dinâmicos.) (WITTGENSTEIN, 1993, pp. 171 e 173).

Procedendo, então, à comparação sugerida por Wittgenstein, destaca-se o seguinte trecho de

The Principles of Mechanics:

§ 428. Observação 2. A relação de um modelo dinâmico com um sistema do qual ele é considerado o modelo, é precisamente a mesma relação das imagens que nossas mentes formam das coisas com as coisas em si. Pois, se consideramos a condição do modelo como a representação da condição do sistema, então, as conseqüências desta representação, que de acordo com as leis desta representação devem aparecer, são também a representação das conseqüências que devem proceder do objeto original de acordo com as leis deste objeto original. A conformidade entre mente e natureza deve, portanto, ser semelhante à conformidade entre dois sistemas que são modelos um do outro, e nós podemos até mesmo contar com esta conformidade assumindo que a mente é capaz de produzir modelos dinâmicos reais das coisas e de trabalhar com eles (HERTZ, 1956, p. 177).

Se as considerações acima procuram mostrar a influência do pensamento de Hertz no

Tractatus Logico-Philosophicus, pode-se identificar nas ‘funções de valores de verdade’,65

elaboradas por Wittgenstein nesta mesma obra, a influência da concepção de Boltzmann de ‘espaço

de possibilidades teóricas’:66 ‘a soma dos estados de coisas subsistentes (isto é, estado de coisas

formados pela combinação de objetos – Fatos) e dos estados de coisas possíveis (isto é, daqueles

que não subsistem, mas podem vir a existir devido à possibilidade de combinação dos objetos)

constitui o espaço lógico (CONDÉ, 1998, p. 53).

64 Janik e Toulmin interpretam da seguinte forma esta concepção de Wittgenstein: “... existe um “isomorfismo” suficiente entre linguagem e realidade para permitir – e validar – todo nosso uso descritivo da linguagem” (1996, p. 185). 65 Sobre a teoria da função de valores de verdade, ver CONDÉ, 1998, p. 57-60. 66 Sobre o espaço de possibilidades teóricas, ver JANIK e TOULMIN, 1996, p. 144 e nota 59 do presente capítulo deste trabalho.

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Segundo Condé, o objetivo do Tractatus seria traçar, no interior da linguagem, os limites do

conhecimento (1998, pp. 42-43): a investigação dos limites do conhecimento corresponderia à

investigação sobre a lógica da linguagem (Ibidem, p. 48). Para Wittgenstein, a forma pela qual

Hertz efetivou sua crítica da mecânica, partindo da análise dos seus conceitos tal como estes eram

utilizados, permitia que esta crítica fosse realizada de dentro da própria teoria, definindo

internamente a natureza e os limites da mecânica, sem a necessidade de recorrer a uma teoria sobre

a mecânica, como foi feito por Mach. ‘O modelo (Bild) [de Hertz] simplesmente exibia as

limitações de suas próprias aplicações (JANIK e TOULMIN, 1996, pp. 141-142). A partir de uma

generalização da metodologia de Hertz, ‘poder-se-ia expor a natureza e os limites da linguagem em

termos de sua estrutura’ (Ibidem, p. 182), evitando-se as circularidades decorrentes da elaboração

de uma teoria sobre a linguagem.

Se no Tractatus Wittgenstein procura entender o que é a linguagem na tentativa de propor a

elaboração de uma linguagem ideal, em sua outra obra emblemática, Investigações Filosóficas, o

autor busca compreender como ‘se usam as palavras com as quais designamos as coisas’

(MARGUTTI PINTO, 1998, p. 14). O entendimento do como é possível através da noção de

gramática, na qual a significação das palavras é dada pelo seu uso em um dado contexto, no qual

estão envolvidos aspectos lingüísticos e pragmáticos. Ao conjunto de palavras e ações – aspectos

lingüísticos e pragmáticos – Wittgenstein dá o nome de jogos de linguagem67 (CONDÉ, 2004).

A gramática representa o conjunto de possibilidades de significação e está ligada às práticas

sociais, as quais, por sua vez, determinam nossa visão de mundo. Os critérios de nosso

conhecimento e julgamento estão, desse modo, assentados na gramática e nos jogos de linguagem,

sendo, portanto, diversos e dinâmicos. Mas não são, segundo Wittgenstein, impermeáveis:

Imagine que você chegue como pesquisador em um país desconhecido com um língua inteiramente desconhecida. Em que circunstâncias você diria que as pessoas ali dão ordens, compreendem-nas, seguem-nas, se revoltam contra elas, e assim por diante? O modo de atuar compartilhado pelos homens é o sistema de referência por meio do qual interpretamos uma linguagem estrangeira (apud CONDÉ, 2004).

Este ‘modo de atuar compartilhado’ – a que Wittgenstein denomina semelhanças de família –

não tem a pretensão de ser um fundamento comum, mas se justifica nas nossas interações de caráter

biológico e cultural com o mundo, sem conceder, nesta justificativa, privilégios a qualquer desses

aspectos.

67 Para uma abordagem mais detalhada das idéias de Wittgenstein em Investigações Filosóficas, ver CONDÉ, 1998; CONDÉ, 2004; CONDÉ, 2005.

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Embora o Tractatus Logico-Philosophicus e as Investigações Filosóficas sejam obras

concebidas sob diferentes perspectivas,68 Janik e Toulmin atribuem esta mudança de perspectiva à

‘lealdade’ de Wittgenstein ao pensamento de Hertz (1996, p. 225). Para estes autores, a seguinte

passagem de The Principles of Mechanics foi a principal inspiração para a mudança de enfoque de

Wittgenstein em relação ao problema da linguagem:

Por que é que as pessoas nunca se perguntam sobre a natureza do ouro ou sobre a natureza da velocidade? É a natureza do ouro mais bem conhecida do que a da eletricidade, ou conhece-se melhor a natureza da velocidade do que a da força? Podemos, por meio de nossas concepções, por meio de nossas palavras, representar completamente a natureza de alguma coisa? Certamente não. Aos termos “velocidade” e ouro associamos um grande número de relações com outros termos; e entre todas estas relações não encontramos qualquer contradição que nos incomode. Estamos, portanto, satisfeitos e não levantamos novas questões. Mas, em torno dos termos “força” e “eletricidade” acumulamos mais relações do que o possível para reconciliá-las entre si. Temos um sentimento obscuro sobre isso e desejamos esclarecer as coisas. Nosso desejo confuso encontra expressão na confusa questão sobre a natureza da força e da eletricidade. Mas a resposta que queremos não é realmente uma resposta para esta questão. Não é descobrindo mais e novas relações e conexões que isto pode ser respondido; e sim removendo as contradições existentes entre aquelas já conhecidas e, talvez, reduzindo seu número. Quando estas dolorosas contradições tiverem sido eliminadas, as questões referentes à natureza da força não terão sido respondidas; mas nossas mentes, livres de tormentos, cessarão de levantar questões ilegítimas (HERTZ, 1956, pp. 7-8).

Tal perspectiva, no entanto, deve ser considerada com cautela, uma vez que nas

Investigações Filosóficas, Wittgenstein passa a defender que a linguagem adquire seu (s)

significado (s) nos seus “usos” (CONDÉ, 1998, p. 137), ‘a linguagem não é mais uma

representação do mundo, mas uma forma de interagir com o mundo’ (CONDÉ, 2004, p.82). Na

segunda filosofia de Wittgenstein, o ‘paradigma da representação’ – ou seja, a perspectiva

semântica para a abordagem do problema da linguagem – é abandonada em favor de uma

‘concepção predominantemente pragmática’ (Ibidem, pp. 72 e 82).

III. 3. 3. Erwin Schrödinger e os modelos teóricos69

A distância temporal que separa a exposição da idéia de representação em Hertz da

introdução de novidades na Bild conception por Schrödinger (1887 – 1961) – cerca de sessenta anos

– não permite que se estabeleça uma relação direta entre os pensamentos destes dois cientistas. No

entanto, pode-se argumentar, como o faz D’Agostino (2004, p. 386) que a concepção de Bild de

Schrödinger esteja, de alguma forma, conectada a um ou mais fios da teia de idéias decorrentes das

68 De acordo com Condé (1998, p. 87), entre o Tractatus Logico-Philosophicus e as Investigações Filosóficas Wittgenstein ‘abandona uma posição predominantemente semântica para introduzir uma posição predominantemente pragmática’. 69 Esta subsecção se baseia em um artigo de Salvo D’Agostino (2004, pp. 372-389).

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discussões estimuladas pela concepção de representação de Hertz, que se estendeu em direção ao

século XX. À época de Schrödinger, os objetos e os problemas da teoria física não mais se reportam

primariamente a conceitos familiares como os de forças e energia. Discute-se, agora, a mecânica

ondulatória, a teoria de campo, a indistinguibilidade da partícula, o princípio da incerteza de

Heisenberg, o princípio da complementaridade de Bohr, etc. No entanto, algumas questões relativas

aos constructos teóricos assemelham-se àquelas que instigaram Hertz a refletir sobre a metodologia

da ciência: assim como Hertz problematizou a consistência lógica do conceito de força, Schrödinger

problematiza o conceito de partícula elementar; as discussões sobre a necessidade de

correspondência unívoca entre conceitos teóricos e observações empíricas, e da licitude da

manutenção de lacunas causais nas teorias continuavam em pauta.

As preocupações de Schrödinger referem-se a aspectos polêmicos e complexos da complexa

mecânica quântica.70 Sumariamente, poder-se-ia dizer que as principais preocupações do cientista

em relação ao assunto diziam respeito a aspectos, a seu ver, problemáticos, das interpretações, da

mecânica quântica a partir do princípio da incerteza de Heisenberg,71 do princípio da

complementaridade Bohr72 e da abordagem estatística da microfísica, e as implicações destas

interpretações para o conceito de partícula elementar, bem como para a completude de uma teoria.

Segundo Schrödinger, tanto a abordagem estatística da mecânica quântica – na qual a

partícula perdia sua distinguibilidade e individualidade73 – quanto o princípio da incerteza de

Heisenberg – o qual interditava a possibilidade de se conhecer completamente todas as propriedades

da partícula – pressupunham uma ‘ontologia da partícula’ mas, ao mesmo tempo, a

70 Sobre o assunto, ver, por exemplo, PESSOA Jr, O., “O problema da medição em mecânica quântica: um exame atualizado”. In: Cadernos de História e Filosofia da Ciência (série 3) 2(2): 177-217, jul-dez 1992. 71 Uma explicação simplificada do princípio da incerteza de Heisenberg nos é dada por Hewit: “Sabemos, por exemplo, que se introduzimos um termômetro frio em uma xícara contendo café quente, a temperatura do café é alterada à medida que este perde calor para o termômetro. O dispositivo de medida altera a quantidade a ser medida....A contribuição quântica nesta alteração é, no entanto, completamente minimizada por incertezas clássicas e é negligenciável. Incertezas quânticas são significativas apenas no mundo atômico e subatômico....Se desejamos observar um elétron e determinar sua localização utilizando luz.... [isso] produz uma incerteza considerável tanto sobre sua posição [x] quanto sobre seu movimento [p].” Temos, então: p. x = h, onde p é a incerteza do momento do elétron,

x é a incerteza de sua posição e h = h/2p (h representa a constante de Panck). Assim, quanto maior a precisão com que se determina a posição de um elétron, maior a incerteza em relação ao seu momento e vice-versa. Sobre o assunto, ver HEWIT, P. G., Conceptual Physics, 8th ed., Addison Wesley, 1998, pp. 569-571. 72 Para ilustrar o princípio da complementaridade de Bohr, recorremos, mais uma vez, às palavras de Hewit: “O mundo da física quântica parece confuso. Ondas de luz que interferem e difratam entregam suas energias em pacotes quânticos [como se fossem partículas]. Elétrons que se movem através do espaço em linha reta e que colidem como se fossem partículas, distribuem-se espacialmente em padrões de interferência como se fossem ondas. Nesta confusão, há uma ordem subjacente. Os comportamentos da luz e dos elétrons são igualmente confusos! Luz e elétrons exibem características de onda e partícula.” “O físico dinarmaquês Niels Bohr, um dos fundadores da física quântica, formulou uma expressão para a generalidade inerente a este dualismo. Ele denominou sua expressão dessa generalidade de complementaridade. Na forma como Bohr a expressou, os fenômenos quânticos exibem propriedades complementares (mutuamente exclusivas) – apresentando-se como ondas ou partículas – dependendo do tipo de experimento realizado.” Sobre o assunto, ver HEWIT, P. G., Conceptual Physics, 8th ed., Addison Wesley, 1998, pp. 572-574. 73Ibidem nota 70, p. 187.

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descaracterizavam (D’AGOSTINO, 2004, pp. 383-384). Para o cientista, este e outros problemas

conceituais – como aqueles referentes à ‘famosa teoria das linhas espectrais de Bohr’74 – seriam

decorrentes da transferência das limitações ou incompletudes das medições experimentais para o

nível teórico. A chave para a solução deste e de outros problemas poderia ser encontrada na

utilização do ‘inevitável’75 conceito de onda e na adoção do princípio de continuidade:

O princípio de continuidade exclui ações à distância instantâneas, embora ele não prescreva um limite relativístico preciso para a velocidade de uma ação causal; ele demanda, apenas, que uma conexão causal tenha um significado não-ambíguo para distâncias espaço-temporais infinitesimais (causalidade local). Assim, a possibilidade de definir tais distâncias é um pré-requisito para uma definição não-ambígua de causalidade, de forma que o princípio de continuidade seja uma condição necessária (mas não suficiente) para uma conexão causal entre dois eventos (D’AGOSTINO, 2004, p. 383).

O princípio de continuidade sustenta nossa estrutura mental permitindo que estabeleçamos

conexões causais entre os fenômenos e elaboremos teorias precisas, lógicas e completas: ‘a partir

de uma descrição incompleta – de uma representação (picture) com lacunas no espaço e no tempo

– não se pode traçar conclusões claras e sem ambigüidade; ela conduz a pensamentos nebulosos,

arbitrários, obscuros...’ (SCHRÖDINGER apud D’AGOSTINO, 2004, p. 383). A incompletude

no nível empírico não impede a completude no nível teórico:

Quando um objeto familiar entra novamente em nosso campo de percepção, é usualmente reconhecido como uma continuação de aparecimentos prévios, como sendo a mesma coisa. A permanência relativa de peças individuais de matéria é a característica mais importante tanto da vida diária quanto da experiência científica. Se algo familiar, digamos uma moringa de barro, desaparece de nossa sala, teremos quase a certeza de que alguém a carregou. Se após um certo tempo ela reaparece, poderemos ficar em dúvida se é a mesma moringa ou não - objetos frágeis em tais circunstâncias frequentemente não são. Podemos não ser capazes de decidir a questão, mas devemos não ter dúvida de que a questionável similaridade tem um significado indisputável - a de que há uma resposta não ambígua à nossa pergunta. Tão certa é a nossa crença na continuidade das partes não observadas das seqüências!76

O nível teórico tem exigências próprias, i.e. não é dependente das eventuais incompletude e

lacunas causais do nível empírico, e tais exigências podem ser atendidas através da utilização de um

modelo conceitual ou Bild e, assim, a ‘linguagem do nível teórico representa um papel meramente

74 Bohr afirmava na referida teoria que “o átomo sofre uma transição repentina de um estado ao outro....mas nenhuma informação sobre o átomo durante esta transição pode ser fornecida” (SCHRÖDINGER apud D’AGOSTINO, 2004, p. 384). 75 Para Schrödinger, o conceito de onda era ‘inevitável’ na investigação da difração tanto de elétrons quanto de fótons, mostrando-se adequado ao princípio da superposição em experimentos sobre difração com fendas duplas, o que não ocorria quando se tentava explicar o mesmo fenômeno com o conceito de partícula (D’AGOSTINO, 2004, p. 383). 76 SCHRÖDINGER apud KRAUSE, D. e BECKER, J., “Hume, Schrödinger e a individuação de objetos físicos”. In: Revista Eletrônica de Informação e Cognição, v.5, n.2, p.59-71, 2006. ISSN:1807-8281.

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interpretativo’ (D’AGOSTINO, 2004, p. 383). Os modelos assim concebidos não têm a pretensão

de fornecer a descrição dos fatos nem de estabelecer uma correspondência unívoca com eles:

Devemos fornecer uma descrição completa, contínua no espaço e no tempo, sem deixar lacunas, conforme o ideal clássico – a descrição de algo. Mas não exigimos que este “algo” seja o fato observado ou os fatos observáveis... As lacunas, eliminadas da representação ondulatória [wave picture], referem-se às conexões entre a representação ondulatória e os fatos observáveis. Estes últimos não guardam uma correspondência unívoca com a primeira... ... não exigimos que este “algo” [o modelo ou Bild] seja o fato observado ou observável; e, menos ainda, afirmamos que, assim, descrevemos o que a natureza (matéria, radiação, etc.) realmente seja. De fato, usamos esta imagem (a assim chamada representação ondulatória) inteiramente conscientes de que ela não é nenhuma coisa nem outra. (SCHRÖDINGER apud D’AGOSTINO, 2004, p. 384).

Para que servem então os modelos físicos? Os modelos ou imagens dos fenômenos são

ferramentas do pensamento para a elaboração de teorias completas cuja fecundidade para um

programa de pesquisa depende de sua clareza e adequação. Um modelo conceitual ou Bild não tem

a capacidade de descrever a realidade da natureza por que

percebemos que a natureza se comporta de maneira inteiramente diferente do que observamos nos corpos visíveis e palpáveis à nossa volta....Um modelo completamente satisfatório deste tipo é não só praticamente inacessível, mas mesmo impensável. Ou, para ser mais preciso, podemos, naturalmente, pensá-lo, mas qualquer que seja a forma em que o pensemos, ela está errada; talvez não tão sem sentido como um “círculo triangular”, mas como algo assemelhado a um “leão alado” (SCHRÖDINGER apud D’AGOSTINO, 2004, p. 384).

Schrödinger, portanto, concebe uma distinção parcial entre teoria e observação, segundo a

qual as representações teóricas guardam uma certa independência em relação às observações

empíricas, e defende a continuidade descritiva no nível teórico, mesmo que esta continuidade não

possa ser observada experimentalmente. Para D’Agostino, ‘sua concepção de Bild representa,

então, uma continuação da concepção de Bild de Hertz, também discutida por Boltzmann (2004, p.

386). Na concepção dos dois cientistas, os constructos teóricos ou representações cumprem um

papel interpretativo dos fenômenos observados, mas vão além disso, estabelecendo uma visão de

mundo físico sob a qual se pode não só descrever os fenômenos – sem revelar sua essência –, mas

também aprender sobre a natureza, refletir sobre possíveis experiências e comparar teorias sobre um

mesmo domínio de fenômenos. No entanto, a liberdade teórica apregoada por Hertz e simbolizada

pela introdução das massas ocultas em movimento em sua representação da mecânica, é

intencionalmente limitada pela transposição “isomórfica” das imagens do mundo macrofísico para o

mundo microfísico, enquanto Schrödinger asseverava a impossibilidade de uma transposição deste

tipo, devido ao caráter dicotômico da relação entre a linguagem puramente teórica e a linguagem da

observação.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

...podemos encontrar leis históricas específicas governando o desenvolvimento das idéias, isto é, fenômenos históricos característicos concernentes à história do conhecimento, que se tornam evidentes para qualquer um que examine este desenvolvimento. Por exemplo, muitas teorias atravessam dois períodos: um período clássico, durante o qual tudo está em evidente acordo, seguido por um período durante o qual as exceções começam a aparecer (FLECK, 1979, p. 9).

Com o objetivo de confirmar a relevância da proposta filosófico-metodológica exposta em

The Principles of Mechanics, procurei ambientar o pensamento de Hertz na cena científica e

intelectual do final do século XIX, um período em que, sob um ponto de vista retrospectivo, o

processo de transição entre a física clássica e a física moderna vai se tornando mais nítido. A

ambientação histórica ajuda-nos a identificar os problemas mais proeminentes de que vinha se

ocupando a comunidade científica daquela época, bem como as perspectivas disponíveis para a

abordagem destes mesmos problemas.

A insinuação de que a física newtoniana encontrara seus limites de aplicação e a

possibilidade de abordagem dos fenômenos naturais por outros métodos que não os de Newton,

enredaram a questio disputata central sobre o conhecimento físico à época: que concepção

metodológica deveria ser adotada pelos cientistas diante de uma natureza que se lhes apresentava

cada vez mais diversa? Para os principais personagens desta disputa, a argumentação em favor de

um método científico implicava na defesa de uma teoria do conhecimento. Helmholtz encetou uma

concepção kantiana do conhecimento confirmada, a seu ver, por investigações fisiológicas e optou

pela representação dos ‘fatos e leis físicas’ exclusivamente por sistemas de equações diferenciais.

Mach engendrou uma depuração do aparato conceitual da física por meio de um filtro histórico,

fundamentada em sua concepção biológica ou psicofísica do conhecimento, para justificar a adoção

de uma metodologia cujo objetivo se resume à reprodução da dependência mútua entre os

fenômenos por meio de sistemas de equações. Hertz, por sua vez, apoiou-se no pensamento de Kant

na proposição de sua concepção da física como uma representação da natureza. De qualquer forma,

a crença em um método científico que conduzisse à verdade não mais encontrava repercussão: as

funções que relacionam os fatos machianos ou as imagens hertzianas têm em vista evitar qualquer

tipo de interpretação ontológica.

O traço distintivo no pensamento de Hertz, no entanto, destaca-se da sua desconfiança na

possibilidade de se fazer ciência confiando-se apenas naquilo que nos é dado pelos sentidos. Ou,

melhor dizendo, Hertz percebe a inevitabilidade da introdução, consciente ou inconsciente, de

elementos ou generalizações hipotéticos nas construções teóricas. Mais do que isso, esta percepção

pode ser confirmada pela aplicação de sua proposta filosófico-metodológica na construção de

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representações alternativas, as quais propiciam uma análise comparativa das representações

tradicionais de um mesmo domínio da física. Tal análise não visa à eliminação total dos elementos

hipotéticos ou das relações supérfluas incluídas em uma representação científica, mas a supressão

de elementos obscuros e relações inconsistentes que possam vir a prejudicar a coerência lógica das

imagens dos fenômenos.

Além do mais, Hertz havia aprendido em suas pesquisas experimentais que o papel de uma

teoria científica não se limita à conformidade “passiva” com os dados empíricos. Ela deve fomentar

e guiar novos experimentos, estabelecer um programa de pesquisas, apresentar valor heurístico. A

partir da comparação experimental das teorias eletromagnéticas de Helmholtz e Maxwell, Hertz

estabeleceu uma convergência entre os fenômenos eletromagnéticos e luminosos, e determinou ‘a

propagação no tempo das supostas ações a distância’.

A pressuposição de um isomorfismo entre pensamento e natureza não garante uma relação

unívoca entre as imagens e os fenômenos e, portanto, não é capaz, por si só, de evitar a

multiplicidade de representações científicas referentes a um mesmo grupo de fenômenos. As

características da nossa maneira de representar não permitem que formemos imagens livres de

relações supérfluas ou vazias, pois nossa razão kantiana ‘progride irresistivelmente até perguntas

que não podem ser respondidas por nenhum uso da razão na experiência’. Mas, para Hertz, estes

aspectos de nosso modo de representar não são necessariamente problemáticos. Eles são partes

integrantes do processo de atividade teórica e devem ser submetidos a uma análise lógica que

propicie a escolha da imagem mais adequada: aquela por meio da qual – ou de modelos dela

derivados – possamos ‘chegar às conseqüências que no mundo externo só surgiriam em um espaço

de tempo muito longo ou como resultado de nossa própria interferência’. Eis aqui a concepção

hertziana da missão das teorias ou representações científicas. Se nos lembrarmos que a segunda

metade do século XIX assiste à institucionalização da física teórica, podemos sugerir que Hertz

estaria estabelecendo uma concepção para o desenvolvimento desse ramo da física.

Os modelos matemáticos presentes nas representações hertzianas cumprem uma dupla

função: é por meio deles que se perfaz a análise lógica das representações – distinção entre os seus

elementos que derivam da necessidade lógica e aqueles arbitrariamente incluídos – ao mesmo

tempo em que se apresentam como sua parte empiricamente testável. Dessa forma, uma teoria física

não deve ser vista como a unidade indivisível de sua estrutura matemática e seu modo de

representação. Diferentes modos de representação podem comportar a mesma estrutura matemática,

desde que obedeçam às ‘leis do nosso pensamento’.

Os modelos matemáticos ou sistemas de equações não são para Hertz um fim, mas um meio

para se obter teorias científicas fecundas e conceitualmente claras e pressupõem pré-concepções de

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mundo físico que devem ser traduzidas pelos modos de representação dessas teorias. Hertz elaborou

seu modelo a partir de uma imagem de natureza em que todos os fenômenos poderiam ser

representados pelos movimentos relativos de massas entre as quais existe um vínculo geométrico.

Uma natureza unificada por uma nova representação da mecânica capaz de ‘preencher as lacunas

existentes’ nas representações tradicionais e de ‘fornecer uma apresentação completa e definitiva

das leis da mecânica’ que fosse consistente com o estado do conhecimento físico à sua época, mas,

principalmente, que pudesse antecipar eventos futuros. Para tanto, Hertz, contrariando o estilo de

pensamento da comunidade científica em que se formou, mas coerentemente com sua concepção de

conhecimento, inclui em sua representação a hipótese de massas ocultas em movimento.

Parece claro que as preocupações de Hertz para com a filosofia da ciência tiveram origem

nas suas investigações sobre os fenômenos eletromagnéticos e miravam a reconciliação entre estes

fenômenos e a física clássica. Nesse processo, Hertz lançou mão de algumas das ferramentas que

estavam disponíveis – a mecânica clássica, as reconstruções axiomáticas, o pensamento de Kant,

etc. – ampliando, no entanto, as possibilidades de utilização dessas ferramentas. A lição exposição

dos limites da física newtoniana havia deixado, ao menos para Hertz, uma lição: ao elaborar uma

representação que não atribui aos fatos ‘qualquer aparência de necessidade, ela nos torna capazes

de reconhecer que tudo poderia ser diferente’.

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