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23/10/13 Imprimir: O conceito de violência em Hannah Arendt e sua repercussão na educação www.educacionenvalores.org/spip.php?page=imprimir_articulo&id_article=809 1/8 Educación en valores http://www.educacionenvalores.org/spip.php?article809 O conceito de violência em Hannah Arendt e sua repercussão na educação Waléria Fortes de Oliveira - Marcelo Rezende Guimarães terça-feira, 2 de Maio de 2006 A reflexão sobre violência perpassa a obra de Hannah Arendt, como conseqüência de seu pensar sobre a liberdade. Hannah Arendt já alertara para a falta de grandes estudos sobre o fenômeno da violência e a conseqüente banalização do conceito. Segundo esta autora, a violência caracteriza-se por sua instrumentalidade, distinguindo-se do poder, do vigor, da força e, mesmo, da autoridade. A política constitui-se o horizonte de interpretação da violência, que não é nem natural, pessoal ou irracional. A violência contrapõe-se ao poder: de forma que onde domina um absolutamente, o outro está ausente. A reflexão de Hannah Arendt sobre violência fornece um referencial teórico, a partir da filosofia política, para entender o fenômeno na sua complexidade e amplitude. Percebe-se, igualmente, como o pensamento de Arendt funda uma caminho de ação no campo da educação em vista de uma intervenção na realidade de violência social. Uma educação que não efetiva o discurso e a ação, onde os sujeitos não são protagonistas, isto é, detentores da palavra e autônomos em seu agir, é uma educação que perpetua e reitera a violência dentro e fora dela. O fenômeno da violência emergiu como um problema para os indivíduos e sociedades deste final de século. Embora, muitas vezes, não aprofundado e sujeito à influência da mídia, assumiu a proporção de um debate popular, expresso tanto na conversa cotidiana dos cidadãos e cidadãs, dos seus comportamentos e sentimentos, como na pauta das instituições que compõem a sociedade. As respostas a este fenômeno têm se mostrado múltiplas e diversas, abrangendo uma gama de medidas, nos mais diversos níveis: individual, comunitário, governamental. As pessoas se armam e cercam as casas. As comunidades fazem passeatas pedindo paz e o governo procura implementar medidas como a restrição à venda de armas. O tema da segurança é incluído na agenda do dia de muitos organismos e grupos. A Organização das Nações Unidas proclama 2000 como Ano Internacional de uma Cultura de Paz. Segundo estudo sobre violência e juventude no Brasil, “via de regra, tanto as análises sociais quanto a imagem divulgada pelos meios de comunicação têm privilegiado a adolescência e a juventude como momento de produção da violência, como agressora, destacando seu envolvimento com a delinqüência e a criminalidade, com os tráficos de drogas e armas, com as torcidas organizadas, com os espetáculos musicais nas periferias das grandes metrópoles” (WAISELFISZ, 1998, p. 11). Todavia, existem algumas investigações, como as realizadas pelo UNICEF (1995), por Cecilia Minayo (1994), pela equipe da CLAVES/FIOCRUZ, por Helena Mello Jorge (1998) e Jacobo Waiselfisz (1998), que apontam o jovem como vitima prioritária da violência. Já as pesquisas de Zaluar (1996) mostram estes jovens não apenas enquanto vítimas mas também como algozes. A violência aparece como um problema ligado à educação, percebido tanto em relação à escola quanto à cultura, e investigando[1] desde a percepção da questão, o estudo de suas causas e manifestações, até a proposição explícita de uma educação para a paz. Estes debates demonstram que, em relação a esta problemática, não há consenso entre os pesquisadores quanto as causas que produzem a violência nem mesmo quanto ao fenômeno em si. Isto confirma a constatação de Georges Sorel, um dos primeiros autores a tematizar a questão em nosso século: "os problemas da violência ainda permanecem obscuros" (Apud SV, p. 31).[2] Chauí, num artigo recente na Folha de São Paulo, denunciou esta contradição entre o alarme contra a violência e a ocultação da violência real por vários dispositivos.[3] Esse cenário nos convida a um aprofundamento deste fenômeno multifacetado, naquilo que Paul Ricoeur chama de “anatomia da guerra” e de “fisiologia da violência” (RICOEUR: s/d, p. 237). Para efetuar esta tarefa, propomo-nos a entender o conceito de violência em uma autora da filosofia política de nosso século, Hannah Arendt.[4] Ela mesma já alertara para a falta de grandes estudos sobre o fenômeno da violência e a conseqüente banalização do conceito: "Ninguém que se tenha dedicado a pensar a história e a política pode permanecer alheio ao enorme papel que violência sempre desempenhou nos negócios humanos, e, à primeira vista,

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Educación en valores http://www.educacionenvalores.org/spip.php?article809

O conceito de violência em Hannah Arendt e sua repercussãona educaçãoWaléria Fortes de Oliveira - Marcelo Rezende Guimarãesterça-feira, 2 de Maio de 2006

A reflexão sobre violência perpassa a obra de Hannah Arendt, como conseqüência de seupensar sobre a liberdade. Hannah Arendt já alertara para a falta de grandes estudos sobre ofenômeno da violência e a conseqüente banalização do conceito. Segundo esta autora, aviolência caracteriza-se por sua instrumentalidade, distinguindo-se do poder, do vigor, daforça e, mesmo, da autoridade. A política constitui-se o horizonte de interpretação daviolência, que não é nem natural, pessoal ou irracional. A violência contrapõe-se ao poder: deforma que onde domina um absolutamente, o outro está ausente. A reflexão de HannahArendt sobre violência fornece um referencial teórico, a partir da filosofia política, paraentender o fenômeno na sua complexidade e amplitude. Percebe-se, igualmente, como opensamento de Arendt funda uma caminho de ação no campo da educação em vista de umaintervenção na realidade de violência social. Uma educação que não efetiva o discurso e aação, onde os sujeitos não são protagonistas, isto é, detentores da palavra e autônomos emseu agir, é uma educação que perpetua e reitera a violência dentro e fora dela.

O fenômeno da violência emergiu como um problema para os indivíduos e sociedades destefinal de século. Embora, muitas vezes, não aprofundado e sujeito à influência da mídia,assumiu a proporção de um debate popular, expresso tanto na conversa cotidiana doscidadãos e cidadãs, dos seus comportamentos e sentimentos, como na pauta das instituiçõesque compõem a sociedade.

As respostas a este fenômeno têm se mostrado múltiplas e diversas, abrangendo uma gamade medidas, nos mais diversos níveis: individual, comunitário, governamental. As pessoas searmam e cercam as casas. As comunidades fazem passeatas pedindo paz e o governo procuraimplementar medidas como a restrição à venda de armas. O tema da segurança é incluído naagenda do dia de muitos organismos e grupos. A Organização das Nações Unidas proclama2000 como Ano Internacional de uma Cultura de Paz.

Segundo estudo sobre violência e juventude no Brasil, “via de regra, tanto as análises sociaisquanto a imagem divulgada pelos meios de comunicação têm privilegiado a adolescência e ajuventude como momento de produção da violência, como agressora, destacando seuenvolvimento com a delinqüência e a criminalidade, com os tráficos de drogas e armas, com astorcidas organizadas, com os espetáculos musicais nas periferias das grandes metrópoles”(WAISELFISZ, 1998, p. 11). Todavia, existem algumas investigações, como as realizadas peloUNICEF (1995), por Cecilia Minayo (1994), pela equipe da CLAVES/FIOCRUZ, por Helena MelloJorge (1998) e Jacobo Waiselfisz (1998), que apontam o jovem como vitima prioritária daviolência. Já as pesquisas de Zaluar (1996) mostram estes jovens não apenas enquantovítimas mas também como algozes.

A violência aparece como um problema ligado à educação, percebido tanto em relação à escolaquanto à cultura, e investigando[1] desde a percepção da questão, o estudo de suas causase manifestações, até a proposição explícita de uma educação para a paz.

Estes debates demonstram que, em relação a esta problemática, não há consenso entre ospesquisadores quanto as causas que produzem a violência nem mesmo quanto ao fenômenoem si. Isto confirma a constatação de Georges Sorel, um dos primeiros autores a tematizar aquestão em nosso século: "os problemas da violência ainda permanecem obscuros" (Apud SV,p. 31).[2] Chauí, num artigo recente na Folha de São Paulo, denunciou esta contradição entreo alarme contra a violência e a ocultação da violência real por vários dispositivos.[3]

Esse cenário nos convida a um aprofundamento deste fenômeno multifacetado, naquilo quePaul Ricoeur chama de “anatomia da guerra” e de “fisiologia da violência” (RICOEUR: s/d, p.237).

Para efetuar esta tarefa, propomo-nos a entender o conceito de violência em uma autora dafilosofia política de nosso século, Hannah Arendt.[4] Ela mesma já alertara para a falta degrandes estudos sobre o fenômeno da violência e a conseqüente banalização do conceito:

"Ninguém que se tenha dedicado a pensar a história e a política pode permanecer alheio aoenorme papel que violência sempre desempenhou nos negócios humanos, e, à primeira vista,

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é surpreendente que a violência tenha sido raramente escolhida como objeto de consideraçãoespecial. (Na última edição da Enciclopédia de Ciências Sociais, a "violência" nem sequermerece menção.) Isto indica o quanto a violência e sua arbitrariedade foram consideradascorriqueiras e, portanto, desconsideradas; ninguém questiona ou examina o que é óbvio paratodos. Aqueles que viram apenas violência nos assuntos humanos, convencidos de que eleseram "sempre fortuitos, nem sérios nem precisos" (Renan), ou de que Deus sempre estevecom os maiores batalhões, nada mais tinham a dizer a respeito da violência ou da história.Quem quer que tenha procurado alguma forma de sentido nos registros do passado viu-sequase que obrigado a enxergar a violência como um fenômeno marginal" (SV, p. 16).

Desenvolveremos nossa pesquisa em três momentos. Primeiramente, considerando o conjuntoda obra de Hannah Arendt, analisaremos o surgimento e o desenvolvimento das suas idéiassobre a violência, procurando delinear os momentos em que se expressa e apontando parasua continuidade e coerência. Em segundo lugar, explicitaremos o seu conceito de violência noquadro de sua reflexão sobre o poder e a política. Finalmente, procuraremos discutir aspossíveis relações com a educação, destacando como este pensar a violência auxilia nacompreensão do fenômeno na educação e intervenção nesta realidade.

1. A reflexão sobre a violência na obra de Hannah Arendt

Para apreendermos o conceito de violência na obra de Hannah Arendt ou qualquer outroaspecto que decorra do seu pensamento, é preciso tomar consciência do ângulo a partir doqual ela percebeu o trabalho de filosofia política que se propôs realizar. Em “Entre o passadoe o futuro”, este ponto nos é dado quando ela afirma que “para as questões da Política, oproblema da liberdade é crucial” (EPF, p, 191). De fato, o tema da liberdade não apenas éprivilegiado em sua obra, mas constitui-se em chave hermenêutica de seu pensamento.[5]

O pensar a liberdade e seus desdobramentos constitui-se o horizonte hermenêutico no qualdevemos situar a violência, a qual, embora não se constitua seu objeto temático, é abordadano conjunto de sua reflexão política. Por esta razão, o conceito de violência em Arendt vai setransformando na mesma medida em que desenvolve seu pensamento.

Em 1951, no contexto do pós-guerra, publicou seu primeiro grande trabalho, “As origens doTotalitarismo”. Em seus três capítulos - anti-semitismo, imperialismo e totalitarismo -delineiam-se alguns temas fundamentais, entre os quais liberdade e poder, que servirão dereferência para sua reflexão posterior. Nesta obra, Arendt explicita o escopo fundamental deseu projeto de pesquisa:

“O anti-semitismo (não apenas o ódio aos judeus), o imperialismo (não apenas a conquista) eo totalitarismo (não apenas ditadura) - um após o outro, um mais brutalmente que o outro,demonstraram que a dignidade humana precisa de nova garantia, somente encontrável emnovos princípios políticos e em nova lei na Terra, cuja vigência desta vez alcança toda ahumanidade, mas com força limitada, pois, ao mesmo tempo, gerada por novas entidadesterritoriais e controladas por elas” (ST, p. 11).

No ano de 1957, a partir da experiência dos grandes progressos da pesquisa científica etecnológica, como o lançamento da primeira nave espacial, publicou “A condição humana”,considerado por muitos como o seu trabalho mais significativo, propondo-se a uma“reconsideração da condição humana à luz de nossas mais novas experiências e nossostemores mais recentes” (CH, p. 13).

Neste trabalho, aprofundando o tema da “vita activa”, isto é, do “que estamos fazendo”(Idem), faz a distinção essencial entre labor, trabalho e ação, como expressões “dascondições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na Terra” (CH, p. 15). Porlabor, entende o processo biológico do corpo humano enquanto que liga o trabalho aoartificialismo da existência humana. A ação, compreendida como um segundo nascimento, nãoimposto nem pela necessidade nem pela utilidade, relaciona-se a atos e palavras mediante osquais os seres humanos revelam, ativamente, suas identidades pessoais (CH, p. 188-193).

Arendt, nesta obra, mesmo en passand e de forma pulverizada, faz algumas consideraçõesimportantes sobre o tema da violência. Inicialmente, considerando o processo histórico damudança do privado para o público, caracteriza a violência como elemento pré-político ouanterior ao surgimento da pólis (CH, p. 36-40). Ao tratar do trabalho humano e do processo dereificação, constata a existência de elementos de violência no processo de fabricação: “...ohomo faber, criador do artifício humano, sempre foi um destruidor da natureza” (CH, p. 152).No capítulo sobre a ação, quando aborda “o espaço da aparência e do poder”, relacionaviolência com a deterioração do político e com a ausência de ação e de diálogo, expressõesefetivas de poder (CH, p. 212-216).

Em 1961, no contexto das incertezas provocadas pela guerra fria, Arendt publicou “Entre opassado e o futuro”, que contém todo o temário de sua obra e o conjunto de inquietações a

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partir do qual ela iluminou a reflexão política do século XX, entre as quais a liberdade, aautoridade, bem como a crise na educação e na cultura. Nele, especialmente no primeirocapítulo, quando analisa o pensamento moderno em relação à tradição da filosofia política,constata a existência de “a antiga confusão de poder com violência” (EPF, p. 49). É nesta obraque apresenta sua crítica ao pensamento marxista da violência como parteira da história - quechama de “glorificação da violência”-, por sua “negação do logos, do discurso, a forma derelacionamento que lhe é diametralmente oposta e, tradicionalmente, a mais humana” (EPF, p.50). Também estabelece a distinção entre autoridade e violência, obediência e coerção (Cf.EPF, p. 129).

Sob a inspiração de um seminário intitulado “Os Estados Unidos e o espírito revolucionário”escreveu “Da Revolução”, publicada no ano de 1962. A partir da oposição entre violência epalavra, qualifica a violência como “um fenômeno marginal no campo político; pois o homem,na medida em que é um ser político, está dotado do poder da fala” (DR, p. 15-16).

A revolta estudantil de 1968 e os movimentos de libertação da América e África intervieramcomo elemento provocador para sua sistematização sobre o tema. “Sobre violência”, publicadaem 1969, é por ela definida como uma investigação acerca “da natureza e das causas daviolência” (SV, p. 45).

O livro organiza-se em três partes. Na primeira, Arendt preocupa-se em mostrar que amultiplicação dos meios de violência pela revolução tecnológica fez com que as antigasverdades a respeito da violência e do poder se tornassem “inaplicáveis” (SV, p. 17). Analisatambém aquilo que chamou de “glorificação da violência”, apontando para a fragilidade destaargumentação e fundamentação teórica. Na segunda parte, busca compreender o queconstitui a essência do poder e da criatividade da ação. Para isto, procede uma série dedelimitações conceituais: violência, poder, vigor, autoridade, comando, obediência, construindoum quadro referencial sólido. Na terceira, faz um confronto com as diversas explicações sobrea violência, como as de base biológica e ideológica , reafirmando a especificidade própria docampo político e a sua pertinência hermenêutica para explicar os fenômenos do poder e daviolência.

2. O conceito de violência em Hannah Arendt

2.1. A delimitação conceitual

Um aspecto importante da contribuição de Arendt para a reflexão sobre a violência é suadelimitação conceitual, num campo geralmente afeito a muitas implicações e confusões. Elamesmo assim constata: “Penso ser um triste reflexo do atual estado da ciência política quenossa terminologia sobre violência não distinga entre palavras-chave tais como “poder”(power), “vigor” (strenght), “força” (force), “autoridade” e, por fim, “violência” - as quais sereferem a fenômenos distintos e diferentes” (SV, p. 36).

Não se trata, no seu entender, de apenas uma questão de imprecisão na linguagem, mas deuma forma de impostar a própria política e seu significado e transcendência. Os termos poder,vigor, força, autoridade e violência são tomados como sinônimos porque têm, na compreensãocomum, a mesma função, isto é, indicar “quem domina quem”. É necessário uma mudança depercepção - deixar de reduzir o público à questão do domínio - para que a precisão conceitualse manifeste (SV, p. 36).

Poder, conceito chave no seu pensamento político, “corresponde à habilidade humana nãoapenas para agir, mas para agir em concerto” (SV, p. 36). Pertence a um grupo e permanecesomente na medida que o grupo conserva-se unido, desaparecendo quando este desaparece.

O vigor “designa algo no singular, uma entidade individual” (SV, p. 37), constituindo-se em“propriedade inerente a um objeto ou pessoa e pertence ao seu caráter, podendo provar-se asi mesmo na relação com outras coisas ou pessoas, mas sendo essencialmente diferentedelas” (SV, p. 37)

Quanto à palavra força, "deveria ser reservada, na linguagem terminológica, às “forças danatureza” ou à “força das circunstâncias” (la force des choses), isto é, deveria indicar aenergia liberada por movimento físicos ou sociais” (SV, p. 37), não podendo, assim, serconfundida com vigor.

Em relação aos usos e abusos conceituais, menciona que o mais freqüente ocorre com o termoautoridade, que “é comumente confundida como alguma forma de poder ou violência” (EPF, p.129).

A essência da autoridade, no seu entender, é o reconhecimento inquestionável, constituindo-se o desprezo seu maior inimigo e a risada o meio eficiente para destruí-la (SV, p. 37). Assim,a autoridade é incompatível tanto com a utilização de meio externos de coerção - onde a força

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é usada, a autoridade em si mesmo fracassou -, tanto com a persuasão, a qual pressupõeigualdade e opera mediante um processo de argumentação (EPF, p. 129).

A violência, no pensamento arendtiano, distingue-se por seu caráter instrumental. Meios,implementos, instrumentos, ferramentas, são alguns dos substantivos usados pela autora.Assim, com o propósito de multiplicar o vigor natural, a violência aproxima-sefenomenologicamente do vigor (SV, p. 37).

Embora a autora faça estas distinções, entendendo-as como não sendo arbitrárias, diz quenão se referem a “compartimentos estanques no mundo real (...). Assim, o poderinstitucionalizado em comunidades organizadas freqüentemente aparece sob a forma deautoridade, exigindo reconhecimento instantâneo e inquestionável; nenhuma sociedadepoderia funcionar sem isso” (SV, p. 38).

2.2. A desmistificação da violência

Além da revisão conceitual, outra contribuição do pensamento arendtiano para o conceito deviolência é o processo de desmistificação, que pode ser compreendido em três dimensões: adesnaturalização, a despersonificão e a desdemonização.

Arendt discute, especialmente com Niezstche e Bergson, acerca do que ela chama dajustificação biológica da violência (SV, p. 54). Estes pensadores atribuem ao poder umadimensão expansionista natural e uma necessidade interna de crescer. A ação violenta, nestecontexto, é explicada como uma estratégia para conceder ao poder novo vigor e estabilidade.A autora contesta esta posição, afirmando que “nada poderia ser teoricamente mais perigosodo que a tradição do pensamento organicista em assuntos políticos, por meio da qual poder eviolência são interpretados em termos biológicos” (SV, p. 55). Sustenta que “nem a violêncianem o poder são fenômenos naturais, isto é, uma manifestação do processo vital, elespertencem ao âmbito político dos negócios humanos, cuja qualidade essencialmente humana égarantida pela faculdade do homem para agir, a habilidade para começar algo novo” (SV, p.60).

Assim, Arendt descarta as metáforas orgânicas da violência como doença da sociedade (SV, p.55). A desnaturalização do fenômeno da violência em Hannah Arendt é sua recusa em associaro processo histórico com a luta pela sobrevivência e a morte violenta no reino animal e deabrir mão do significado da política enquanto determinação do humano (SV, p. 55).

Além da desnaturalização, Arendt contribui, igualmente, para despersonificar a violência, umavez que não atribui a ela nem uma potencialidade de sujeito, mas apenas instrumental. “Elanão promove causas, nem a história, nem a revolução, nem o progresso, nem o retrocesso;mas pode servir para dramatizar queixas e trazê-las à atenção pública” (SV, p. 58). É,essencialmente, reação ao decréscimo do poder e não princípio de ação.

Como instrumental e mediática, a violência é detentora de uma certa racionalidade, à medidaque é eficaz em alcançar o fim que deve justificá-la. Em virtude de sua instrumentalidade, aviolência perde o caráter mágico ou demoníaco que comumente lhe é atribuída. “A violêncianão é nem bestial nem irracional - não importa se entendemos estes termos na linguagemcorrente dos humanistas ou de acordo com teorias científicas” (SV, p. 47). Arendt constata queo fato de agir com rapidez deliberada não torna o ódio ou a violência irracionais.

“Pelo contrário, na vida privada como na vida pública, há situações em que a própria prontidãode um ato violento pode ser um remédio apropriado. O ponto central (...) é que, em certascircunstâncias, a violência - o agir sem argumentar, sem o discurso ou sem contar com asconseqüências - é o único modo de reequilibrar as balanças da justiça. (...) Neste sentido, oódio e a violência que às vezes - mas não sempre - o acompanha pertencem às emoções“naturais” do humano e extirpá-las não seria mais do que desumanizar ou castrar o homem”(SV, p. 48).

2.3. A violência em contraposição com a política e o poder

É o ponto mais original da reflexão sobre violência de Hannah Arendt, que não se limita arevisar conceitos ou afastar compreensões equivocadas, mas propõe, um núcleo estável capazde aniquilar ou diminuir o efeito da violência: o poder e a política.[6]

Arendt reluta em associar violência com o poder ou com o Estado: “O poder é de fato aessência de todo o governo, mas não a violência” (SV, p. 40). Desta maneira, recusa todatradição anterior em equacionar o poder político com a organização dos meios de violência e oconsenso em aceitar que a violência é a mais flagrante manifestação de poder. Suaargumentação se processa no sentido de refutar afirmações como a de Wright Mills ("Todapolítica é uma luta pelo poder, a forma básica de poder é a violência"), de Max Weber (“Odomínio do homem pelo homem baseados nos meios de violência legítima”) ou de Bertrand de

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Jouvenel (“"Para aquele que contempla o desenrolar das eras, a guerra apresenta-se comouma atividade que pertence à essência dos Estados") (SV, p. 31).

Criticando a associação, própria da história da filosofia política, entre vontade de poder evontade de obedecer, ela faz uma nova distinção, desta vez entre poder e comando: “Se aessência do poder é efetividade do comando, então não há maior poder do que aqueleemergente do cano de uma arma, e seria difícil dizer "em que medida a ordem dada por umpolicial é diferente daquela dada por um pistoleiro" (SV, p. 32).

É na análise da gênese histórica do político - a concepção grega de poder - que encontra oargumento mais sólido para dissolver os nexos entre poder e comandar, poder e obedecer:“Se fosse verdade que nada é mais doce do que dar ordens e dominar os outros, o senhorjamais teria abandonado o seu lar” (SV, p. 34). Na isonomia grega e na civitas romana, oconceito de poder não se assentava na relação mando-obediência e não identificava poder edomínio. Viver numa pólis tinha o significado de decidir mediante palavras e persuasão e nãoatravés da força ou da violência. Forçar alguém mediante violência, ordenar ao invés depersuadir, constituíam em modos pré-políticos de lidar com as pessoas, próprios do lar e davida em família, “na qual o chefe da casa imperava com poderes incontestes e despóticos, ouda vida nos impérios bárbaros da Ásia, cujo despotismo era freqüentemente comparado àorganização doméstica” (CH, p.36). Assim, a autora, não apenas diferencia poder e política deviolência, mas coloca-os em espaços contraditórios: “Poder e violência são opostos; onde umdomina absolutamente, o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em risco,mas, deixada a seu próprio curso, ela conduz à desaparição do poder” (SV, p.44).

Arendt aprofunda esta oposição, conferindo à violência, em virtude de sua naturezainstrumental apenas justificação pelo fim que almeja, mas nunca legitimação, própria do poderporque derivado de comunidades políticas:

“O poder emerge onde quer que as pessoas se unam e ajam em concerto, mas sualegitimidade deriva mais do estar junto inicial do que de qualquer ação que então possaseguir-se. A legitimidade, quando desafiada, ampara-se a si mesma em um apelo ao passado,enquanto a justificação remete a um fim que jaz no futuro. A violência pode ser justificável,mas nunca será legítima. Sua justificação perde em plausibilidade quanto mais o fim almejadodistancia-se no futuro” ( SV, p. 41).

Ao tratar poder e violência como mutuamente exclusivos, de forma que onde domina umabsolutamente, o outro está ausente, Arendt chama a atenção para a instrumentalização daação e a degradação da política (CH, p. 242).

A instrumentalização da ação significa a transferência do processo de fazer, determinado pelacategoria meio-fins, próprio do trabalho, para o campo político da ação. Em virtude da condiçãohumana da pluralidade, a ação é sempre imprevisível e incerta. Substituindo-a pela fabricação,a humanidade abandona a fragilidade dos negócios humanos para a solidez da tranqüilidadee da ordem. A violência desempenha papel importante no pensamento e planos políticosbaseados na interpretação da ação como fabricação. Porém a esfera da ação política nãotrabalha com meios e fins.

No entanto, “a instrumentalização da ação e a degradação da política jamais chegaram asuprimir a ação, a evitar que ela continue a ser uma das mais decisivas experiências humanasnem a destruir por completo a esfera dos negócios humanos” (CH, p. 242). Desta forma,mesmo reconhecendo a fragilidade do poder em face da violência, Hannah Arendt dá à aqueleuma lugar insubstituível face a esta: “A violência é capaz de destruir o poder, mas nunca desubstituí-lo” (CH, p. 214). Nem mesmo poderá reconstrui-lo ou recuperá-lo: “A violência nãoreconstrói dialeticamente o poder. Paralisa-o e o aniquila” (SV, p. 9).

3. A reflexão sobre a violência e sua repercussão na educação

3.1. Elementos para análise da violência na educação

A reflexão de Hannah Arendt sobre violência, assim como se articula e se desenvolve noconjunto de sua obra, converte-se, em primeiro lugar, num instrumental de análise para acrítica da compreensão da violência na educação, fazendo-nos formular questões quedeveriam ser consideradas como hipóteses para estudos posteriores.

Em primeiro lugar, perguntamos como é impostado o tema da violência na educação? Comoum mito, levantado, geralmente, diante de casos sensacionalistas, ou como um problema a sertrabalhado pela educação, alvo de políticas públicas e objeto de estudo e reflexão? Comoabordagem simplificada ou procurando entender que se trata de um fenômeno complexo? Deforma parcial, destacando um nós e um eles, ou percebendo como um fenômeno de sociedadee de civilização? Como um fenômeno apenas de hoje ou numa visão mais ampla, entendendoque “a história humana é uma história das violências e que os vencedores tem seu nome

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escritos nas placas de ruas e ensinados nas escolas” (SERPAJ, s/d, p. 1).

Trata-se de perguntar pelos referenciais teóricos usados pelos educadores que investigam eanalisam a problemática da violência. Estes não podem, em suas análises, prescindir dascontribuições de outras áreas de conhecimento, como a antropologia e a sociologia, e,especialmente, a filosofia política, sob o risco de não entender este fenômeno na suacomplexidade e amplitude.

Além disso, esses discursos sobre violência na educação procedem a mixagens semânticas,confundindo, por exemplo, violência com agressividade ou com força, não fazendo a distinçãoconceitual que a autora utiliza por compreender estes fenômenos de forma diferenciada.Muitas das falas, nesta área, personificam e entificam a violência, com afirmações do tipo “Aviolência na educação está crescendo ou fazendo isto...”,[7] sem considerar suficientementesua instrumentalidade.

Sobretudo, é preciso perguntar em que medida os discursos e as análises trabalham, nãoapenas a violência expressa na educação, mas a violência produzida pela educação,ultrapassando o discurso descritivo sobre a violência (nos meios de comunicação, em sala deaula, na juventude, etc.) e abrindo espaço para uma crítica e autocrítica da própria educaçãocomo instrumento de violência.

3.2. Elementos para ação na educação em vista de uma superação da violência

Em segundo lugar, é importante perceber como o pensamento de Arendt funda uma caminhode ação no campo da educação em vista de uma intervenção na realidade de violência social.

Grande parte das políticas educacionais sobre violência detém-se na tentativa de represar,amenizar e conter a onda da violência, administrando seus efeitos. A autora, com suainsistência na contraposição violência e poder, nos faz apostar no incremento da vida política eno estreitamento da política com a educação enquanto alternativa.

Arendt, a partir do pensamento grego, caracteriza a vida política por dois elementosestruturantes: “a ação (práxis) e o discurso (lexis) dos quais surge a esfera dos negócioshumanos (ta ton anthroopon pragmata, como chamava Platão), que exclui estritamente tudo oque seja apenas necessário e útil” (CH, p. 34).

O discurso e a ação possuem, assim, um caráter constitutivo da relação das pessoas umascom as outras e destas com o mundo circundante. É somente através deles que os “sereshumanos se manifestam uns aos outros, não como meros objetos físicos, mas enquantohomens” (CH, p. 189). Ao mesmo tempo, com palavras e atos nos inserimos no mundohumano, realizando “como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fatooriginal e singular do nosso aparecimento físico original (CH, p. 190).

Além disso, ambos originam o próprio fato político: “o espaço da aparência passa a existirsempre que os homens se reúnem na modalidade do discurso e da ação, e portanto precedetoda e qualquer constituição formal da esfera pública e as várias formas de governo, isto é, asvárias formas possíveis de organização da esfera pública” (CH, p. 211-212).

Nesta linha de raciocínio, a educação pode se contrapor, verdadeiramente, à violência seefetiva o discurso e a ação, compreendidos como realidades que interagem reciprocamente ecriam novos discursos e ações. Na reflexão exemplar de Hannah Arendt:

“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras nãosão vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velarintenções mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, maspara criar relações e novas realidades” (CH, p. 212).

Uma educação que não efetiva o discurso e a ação, onde os sujeitos não são protagonistas,isto é, detentores da palavra e autônomos em seu agir, é uma educação que perpetua ereitera a violência dentro e fora dela.

3.2.1. Educação e espaço público

Hannah Arendt, analisando o mundo grego, constata uma oposição entre a organizaçãopolítica e a associação natural, cujo centro é a casa e a família. O que distinguia a esferafamiliar era que nela as pessoas viviam juntas por necessidade, enquanto a esfera da pólisera a esfera da liberdade. “A pólis diferenciava-se da família pelo fato de somente conheceriguais, ao passo que a família era o centro da mais severa desigualdade. Ser livre significavaao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida, nem ao comando de outro etambém não comandar. Não significava domínio como também não significava submissão.Assim, dentro da esfera da família a liberdade não existia, pois o chefe da família, seudominante, só era considerado livre na medida em que tinha a faculdade de deixar o lar e

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ingressar na esfera política, onde todos eram iguais” (CH, p. 41-42).

Desta forma, o lar privado caracteriza-se como espaço pré-político, sujeito à necessidade,onde “a força e a violência são justificadas nesta última esfera por serem os únicos meios devencer a necessidade - por exemplo, subjugando escravos - e alcançar a liberdade” (CH, p.40). Assim, a violência não acontece no espaço público, mas é própria do espaço privado.

A vida pública, em contraposição, oferece ao ser humano uma outra experiência, jamaisproporcionada pela vida familiar:

“Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que todos vêem e ouvem de ângulosdiferentes. É este o significado da vida pública, em comparação com a qual até mesmo a maisfecunda e satisfatória vida familiar pode oferecer somente o prolongamento ou a multiplicaçãode cada indivíduo, com os seus respectivos aspectos e perspectivas. A subjetividade daprivatividade pode prolongar-se e multiplicar-se na família; pode até tornar-se tão forte que oseu peso é sentido na esfera pública; mas este “mundo” familiar jamais pode substituir arealidade resultante da soma total de aspectos apresentados por um objeto a uma multidãode espectadores. Somente quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas, numavariedade de aspectos, sem mudar de identidade, de sorte que os que estão à sua voltasabem que vêem o mesmo na mais completa diversidade, pode a realidade do mundomanifestar-se de maneira real e fidedigna” (CH, p. 67).

Na educação, como se configura atualmente entre nós, o mundo público está encolhido ousubmetido à tutela do privado. Denominar a professora de tia ou designar de “maternal” umdos ambientes educativos são resquícios e sinais de que a educação ainda é compreendidacomo extensão do mundo familiar e, portanto, como espaço da violência.

A diminuição da violência na escola e através da escola está ligada à sua caracterização comoespaço público, político, de manifestação da liberdade, de relação entre iguais.

Isto tem uma implicação interna, numa completa revisão de como se estruturam as relaçõeseducacionais, geralmente organizadas em torno do comandar e do obedecer, para relaçõesque se aproximem de igualitárias.

Traz como conseqüência, também, uma total restruturação da própria maneira de entender ofluxo educação e sociedade, visto atualmente como capacitação para o mercado de trabalho,para um estreitamento da relação educação e cidadania, definindo-se firmemente contribuir naformação, não de consumidores, mas de cidadãos.

3.2.2. Educação e ação

Se a educação quer ser um espaço público - e a escola poderá ser verdadeiramente chamadade pública - é essencial analisar as condições para potencializar a ação dos seus sujeitos.

A ação, ao contrário do labor e do trabalho, é a única atividade que se exerce sem a mediaçãodas coisas ou da matéria. Seu único requisito é a condição humana da pluralidade. “Aocontrário da fabricação, a ação jamais é possível no isolamento. Estar isolado é estar privadoda capacidade de agir” (CH, p. 201). Por essa razão, a faculdade para a ação é o que faz doser humano um ser político: “ela o capacita a reunir-se a seus pares, agir em concerto ealmejar objetivos e empreendimentos que jamais passariam por sua mente, deixando de ladoos desejos de seu coração, se a ele não tivesse sido concedido este dom - o de aventurar-seem algo novo” (SV, p. 59).

Assim, agir tem o significado de “tomar iniciativa, iniciar (como indica a palavra archein,“começar”, “ser o primeiro” e, em alguns casos, “governar), imprimir movimento a alguma coisa(que é o significado original do termo latino agere)” (CH, p. 190). Por sua novidade, a ação seequipara à condição da natalidade e se distingue do mero comportamento ou preservação(SV, p. 59).

Hannah Arendt está convencida que a deterioração da ação política relaciona-se com ocrescimento da violência: “Muito da presente glorificação da violência é causada pela severafrustração da faculdade da ação no mundo moderno” (SV, p. 60). Esta degradação da açãopode tanto se dar por sua substituição pelo processo de fabricação, tal como explicitado noitem 2.3., como pela imposição da sociedade seus membros de um certo tipo decomportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas elas com intenção de “normalizá-los” (CH, p. 50).

E é justamente na tendência a entender a educação como processo de normalização ouadaptação dos indivíduos ou como espaço de transmissão de conhecimento técnico - na linhado incremento da fabricação - que se funda a tradição pedagógica do ocidente. Nela, afaculdade da ação tem tido, até há pouco tempo, espaço reduzido e, justamente por isso, tem

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sido portadora e transmissora de violência..

A prática educativa corrente entre nós tem mascarado a ação política: o agir em concerto ésubstituído por um coletivo ou justaposição de indivíduos isolados e a ação criadora de novo étrocada por uma coletânea de atividades pré-determinadas - copiar, escrever, desenhar, etc. -que se aproximam mais do eterno retorno do mesmo do que da condição de natalidade ecriatividade. Tem-se a ilusão da ação, mas não a ação propriamente.

As experiências educativas mais conseqüentes, aquelas que têm obtido um resultado maiseficaz nas alternativas à violência, são exatamente aquelas que estão conseguindo criarespaço de ação política em seu próprio seio.

3.2.3. Aprender a dizer sua palavra

Como a ação, o discurso é que faz do ser humano um ser político (CH, p. 11).

Tanto a ação como o discurso baseiam-se na condição humana da pluralidade. No entanto,enquanto a ação efetiva a pluralidade reunindo os humanos para agir em concerto, o dizeruma palavra possibilita o viver como ser distinto e singular entre iguais (CH, p. 191).

A palavra é, exatamente, aquilo que torna relevante e significativa a ação:

“Sem o discurso, a ação deixaria de ser ação pois não haveria ator; e o ator, o agente do ato,só é possível se for, ao mesmo tempo, o autor das palavras. A ação que ele inicia éhumanamente revelada através de palavras; e, embora o ato possa ser percebido em suamanifestação física bruta, sem acompanhamento verbal, só se torna relevante através dapalavra falada na qual o autor se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer” (CH, p.191).

Dizer uma palavra constitui, assim, uma ação, não apenas porque quase todas as açõespolíticas são realmente realizadas por meio de palavras, mas também porque o ato deencontrar as palavras adequadas no momento certo, independentemente da informação oucomunicação que transmitem, constitui uma ação" (CH, p. 35).

A partir disto, a violência é definida como o agir sem argumentar e o império do silêncio: "ondequer que a violência domine de forma absoluta, como por exemplo, nos campos deconcentração dos regimes totalitários, não apenas as leis - les lois se taisent - mas tudo etodos devem permanecer em silêncio" (DR, p. 195). Neste sentido, “somente a pura violência émuda” (CH, p. 35).

Esta reflexão da autora fornece uma chave interpretativa para compreender a violência, tantona educação como no conjunto da sociedade, como uma forma de expressão dos que não têmacesso à palavra, como a crítica mais radical à tradição autoritária. Quando a palavra não épossível, a violência se afirma e a condição humana é negada.

Neste sentido, a reversão e a alternativa à violência passa pelo resgate e devolução do direitoà palavra, pela oportunidade da expressão das necessidades e reivindicações do sujeitos,pela criação de espaços coletivos de discussão, pela sadia busca do dissenso e da diferença.

Comentarios:

> O conceito de violência em Hannah Arendt e sua repercussão na educação, Alan, 7 de Novembro de 2006

Bom Dia na verdade não venho comentar o texto, mas fazer uma ressalva, gostariade saber a origem das referências, pois estou fazendo uma pesquisa sobre o tema egostaria de aprofundar, ficarei grato se me responderem hoje ainda, para o emailbrasil.alan@gmail. Grato desde já, ALAN BRASIL