O Conde e o Passarinho - Rubem Braga

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Este volume reúne meus dois primeiros livros., O Conde e o Passarinho, de 1936, e Morro do Isolamen-to, de 1944; o primeiro publicado por José Olympio com uma capa de Santa Rosa, o segundo impresso por uma editora natimorta que não chegou a distri-buí-lo e vendeu a edição à Brasiliense, que o lançoucom uma capa nova de Clovis Graciano.A rigor não suprimi nenhuma crônica. Do Conde tirei apenas o prefácio e a última composição, que era mais um artigo. O mesmo poderia dizer de quatro ou-tras, publicadas na Folha da Tarde de Porto Alegre, que risquei do segundo livro.Cortei também quatro poemas que passaram a lazer parte de meu Livro de Versos publicado em 1980 pelas. Edições Pirata, do Recife.Resisti à tentação de alterar o texto das crônicas ora reeditadas. Elas sofreram apenas uma revisão or-tográfica indispensável, mesmo porque não eram crô-nicas, eram "chronicas"!

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  • O CONDE E O PASSARINHO E

    MORRO DO ISOLAMENTO

  • OBRAS DO AUTOR

    AI DE TI, COPACABANA A BORBOLETA AMARELA CARTA A EL REY DOM MANUEL (verso moderna) DUZENTAS CRNICAS ESCOLHIDAS UM P DE MILHO O CONDE E O PASSARINHO A TRAIO DAS ELEGANTES

  • RUBEM BRAGA

    O C O N D E E O P A S S A R I N H O E

    M O R R O D O I S O L A M E N T O

    5 Edio

    EDITORA R E C O R D

  • Copyright (c) by Rubem Braga

    Capa de Floriano Teixeira

    Retrato do autor, na 4 capa: Maria Mynssen

    FICHA CATALOGRFICA CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte

    Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Braga, Rubem, 1913-B795c O Conde e o passarinho e, Morro do Isolamento

    / Rubem Braga. 5? ed. Rio de Janeiro : Re-cord, 1982.

    1. Crnicas brasileiras I. Ttulo II. Ttulo : Mor-ro do Isolamento

    CDD 869.93 82-0447 CDU 869.0(81)-94

    Direitos desta edio reservados pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIOS DE IMPRENSA S.A.

    Rua Argentina 171 20921 Rio de Janeiro, RJ

    Impresso no Brasil

  • ESTE VOLUME

    Este volume rene meus dois primeiros livros., O Conde e o Passarinho, de 1936, e Morro do Isolamen-to, de 1944; o primeiro publicado por Jos Olympio com uma capa de Santa Rosa, o segundo impresso por uma editora natimorta que no chegou a distri-bu-lo e vendeu a edio Brasiliense, que o lanou com uma capa nova de Clovis Graciano.

    A rigor no suprimi nenhuma crnica. Do Conde tirei apenas o prefcio e a ltima composio, que era mais um artigo. O mesmo poderia dizer de quatro ou-tras, publicadas na Folha da Tarde de Por to Alegre, que risquei do segundo livro.

    Cortei tambm quatro poemas que passaram a lazer parte de meu Livro de Versos publicado em 1980 pelas. Edies Pirata, do Recife.

    Resisti tentao de alterar o texto das crnicas ora reeditadas. Elas sofreram apenas uma reviso or-togrfica indispensvel, mesmo porque no eram cr-nicas, eram "chronicas"!

    R.B.

  • COMO SE FORA UM CORAO POSTIO

    Nasceu , na doce Budapeste, um menino com o cora-o fora do peito. Porm diz um Dr. Mereje no foi o primeiro. Em So Paulo, h sete anos, nasceu tambm uma criana assim. "Tinha o corao fora do peito, como se fora um corao postio."

    Como se fora um corao postio... O menino paulista viveu quatro horas. Vamos supor que tenha nascido s cinco horas. Cinco horas! Cinco horas! Um meu amigo, por nome Carlos, diria:

    ...a hora em que os bares se fecham e todas as virtudes se negam...

    Madrugada paulista. Boceja na rua o ltimo cida-do que passou a noite inteira fazendo esforo para ser bomio. H uma esperana de bonde em todos os pos-tes. Os sinais das esquinas vermelhos, amarelos,

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  • verdes verdes, amarelos, vermelhos borram o ar de amarelo, de verde, de vermelho. Olhos inquietos da madrugada. Frio. Um homem qualquer, parado por acaso no Viaduto do Ch, contempla l embaixo umas pobres rvores que ningum nunca jamais contem-plou. Humildes ps de manac, l embaixo. Pouqui-nhas flores roxas e brancas. Humildes manacs, em fi-la, pequenos, tristes, artificiais. As esquinas piscam. O olho vermelho do sinal sonolento, tonto na cerrao, pede um poema que ningum faz. Apitos l longe. Pas-sam homens de cara lavada, pobres, com embrulhos de jornais debaixo do brao. Esta velha mulher que vai andando pensa em outras madrugadas. Nasceu, em uma casa distante, em um subrbio adormecido, um menino com o corao fora do peito. Ainda noite dentro do quarto fechado, abafado, com a lmpada acesa, gente suada. Menino do corao fora do peito, voc devia vir c fora receber o beijo da madrugada.

    Seis horas. O corao fora do peito bate docemen-te. Sete horas o corao bate... Oito horas que sol claro, que barulho na rua! o corao bate...

    Nove horas morreu o menino do corao fora do peito. Fez bem em morrer, menino. O Dr. Mereje resmunga: "Filho de pais alcolatras e sifilticos..." Deixe falar o Dr. Mereje. Ele um mdico, voc o menino do corao fora do peito. Est morto. Os "pais alcolatras e sifilticos" fazem o enterro banal do anji-nho suburbano. Mas que anjinho engraado! diz Nossa Senhora da Penha. O anjinho est no cu. Est no limbo, com o corao fora do peito. Os outros anjinhos olham espantados. O que isso, seu paulista?

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  • Mas o menino do corao fora do peito est se rindo. No responde nada. Podia contar a sua histria: "o Dr. Mereje disse que.. ." mas no conta. Est rindo, mas est triste. Os anjinhos todos querem saber. Ento o menino diz:

    Ora, pinhes! Eu nasci com o corao fora do peito. Queria que ele batesse ao ar livre, ao sol, chu-va. Queria que ele batesse livre, bem na vista de toda a gente, dos homens, das moas. Queria que ele vivesse luz, ao vento, que batesse a descoberto, fora da priso, da escurido do peito. Que batesse como uma rosa que o vento balana...

    Os anjinhos todos do limbo perguntaram: Mas ento, paulistinha do corao fora do pei-

    to, pra que que voc foi morrer?

    O anjinho respondeu: Eu vi que no tinha jeito. L embaixo todo

    mundo carrega o corao dentro do peito. Bem escon-dido, no escuro, com palet, colete, camisa, pele, ossos, carne cobrindo. O corao trabalha sem nin-gum ver. Se ele ficar fora do peito logo ferido e morto, no tem defesa.

    Os anjinhos todos do limbo estavam com os olhos espantados. O paulistinha foi falando:

    E s vezes, minha gente, tem palet, colete, camisa, pele, ossos, carne, e no fim disso tudo, l no fundo do peito, no escuro, no tem nada, no tem corao nenhum... E quando eu nasci, o Dr. Mereje olhou meu corao livre, batendo, feito uma rosa que balana ao vento, e disse, sem saber o que dizia: "pa-

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  • rece um corao postio". Os homens todos, minha gente, so assim como o Dr. Mereje.

    Os anjinhos estavam cada vez mais espantados. Pouco depois comearam a brincar de bandido e mocinho de cinema e a, foi, acabou a histria. Porm o menino estava aborrecido, foi dormir. At agora, ele est dormindo. Deixa o anjinho dormir sono sossega-do, Dr. Mereje!

    So Paulo, novembro, 1933.

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  • FIFI

    Es t re la de cinema Fifi Dorsay contraiu npcias com o Sr. Maurcio Hill, filho de abastado industrial de Chicago. A cerimnia realizou-se na Igreja de So V-tor, em Hollywood, depois de um "ensaio de lua-de-mel" de trs semanas, que, segundo declaes da pr-ria atriz, deu "resultados plenamente satisfatrios".

    A minha posio diante de Hollywood apenas a de um inconsolvel basbaque. E Fifi me alegra. Wilde amava os poetas medocres, mas, naturalmente, para efeito de paradoxo. Eu uso apenas trs poetas, todos de primeira gua. Um deles Jesus Cristo, e os outros dois so Saceo e Vanzetti. Fora deste detalhe, sou um apaixonado da mediocridade. Gosto de fil com fritas e de chope, aprecio os bondes, as gravatinhas-borbole-tas, as penses familiares e vrios produtos nacionais.

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  • Este o meu mundo, e, se no o amasse, j teria me suicidado, porque no tenho foras para subir nem coragem para descer.

    Fifi medocre, dessa mediocridade que a fortu-na de Henry Ford, Getlio Vargas e outros artistas pan-americanos. Perdo, Fifi, se no posso amar-te. Apenas te venero. Venerao sem desejo nem arrepen-dimento, sem cuidados e sem crises. Eu te venero como o dinheiro que recebo no fim do ms, como a cadeira onde me sento para escrever, o garom do restaurante que me alimenta, a navalha que me faz a barba, a fo-lhinha onde conto os dias e o bar onde os esqueo.

    Se me encontrasse contigo no providenciaria um txi nem beijaria a tua mo. Seria intil e ridculo. Ja-mais te acostumarias com a minha vida. Havias de querer uma vitrola no apartamento, porque no sabes que eu s amo as vitrolas quando me encosto, para ou-vir um samba, porta de uma casa de msica. Podias ter o capricho de uma pequena biblioteca elegante, discreta e ornamental, porque no sabes que s amo os livros quando os leio no bonde ou na mesa de t raba-lho, entre um sanduche e um ttulo de telegrama. Ja-mais me entenderias, Fifi, por culpa minha e dos meus vencimentos. Nossa liaison seria um filmezinho banal, sem um gag a Chaplin e sem um hokum a Dietrich.

    Poderias querer um ensaio de lua-de-mel, porque no sabes que eu s amo o amor quando ele vem sem dmarches e sem intenes, a preos mdicos, na rua de qualquer madrugada, ou no meio de uma festinha familiar, entre um tango mal danado e uma frase sobre o calor. Eu acabaria me enforcando com uma

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  • gravatinha-borboleta, dessas de 1$600, e tu irias ao enterro de mau humor, e acharias lastimvel. Perdo, Fifi

    So Paulo, dezembro, 1933.

  • RUMBA

    " M a n i " . . . Ouvi novamente essa rumba j velha em um short

    magnfico, onde uma tresloucada e perfeita bailarina saltava diante de um jazz alucinado. Mani... A gente carece meditar bastante nessa msica e em todas essas msicas que a pobre Cuba vai exportando com mais proveito que o acar de suas usinas. Oh, a Prola das Antilhas! Havana, charutos de Havana, ruas lacres de Havana, desperdcios dos governos, palcios, cas-sinos de Havana. Os dlares rolam sobre as carreteras deslumbrantes, os embaixadores so odiados, o povo grita e mata, as revolues rebentam, como flores ru-bras e tropicais. Mani... A rumba continua. E uma rumba feita de sangue e de ideais desvairados, onde os sargentos viram generais, as greves estalam e de repen-

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  • te no h gua, no h luz, e as multides morenas comeam a marchar sob as fuzilarias sem explicao. Ento se afirma que dois navios de guerra encostaram ao porto com mil fuzileiros navais, e talvez os rebeldes inesperados desembarquem no meio da noite. O gover-no toma medidas enrgicas, envia tropas, probe, de-clara, proclama, foge, e as tropas vo e voltam, se en-contram, se matam. Os cartazes trucidam os plutocra-tas, as metralhadoras alvejam a emenda Platt, a Junta sc rene, os operrios se revoltam, as guarnies se desmantelam e h segredos terrveis que nunca sero revelados. Mani... Um padre apareceu assassinado, o terrorismo irrompe, mas s duas horas da madrugada

    se verifica que est reinando completa paz, enquanto um avio bombardeia no se sabe onde. Combina-se um decreto no Grande Hotel Nacional mandando fechar a Universidade, mas no se pode, porque os es-tudantes esto l dentro atirando heroicamente. Ento se reabre a Universidade, mas os estudantes esto nas trincheiras dos canaviais e os operrios trucidam os mercenrios, os jornais empastelados ressurgem e os telefones so cortados.

    No entanto, aquela bailarina baila, est danando demasiado viva e sensual, os seus braos so cobras sob as palmeiras que farfalham, nas suas veias corre um sangue que jamais deveria ser derramado, e o seu corpo moreno jamais deveria ficar imvel. Ela dana, e de seus cabelos assanhados sai o perfume dos ungen-tos violentos e seus lbios me parecem to vermelhos que o sangue estala sob a mucosa fina. Ainda bem,

    meu irmo, que nesta rumba no temos sossego para

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  • olhar bem seus olhos que talvez nos dissessem a verda-de sobre os abismos indizveis da ternura e do sonho. E ainda bem que ela no veio toda nua, porque a prpria rumba perderia o controle de seu corpo e de suas per-nas indgenas e alucinantes e de seus ps que so asas de fogo bronzeado bailando sobre o cho herico. Ain-da bem que ainda temos tamanhas esperanas de tomar parte em milhares de revolues.

    So Paulo, janeiro, 1934.

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  • CUSPIR

    Theodoro Kempers filsofo por necessidade profis-sional. Os filsofos, em geral, cospem. Filosofar , an-tes de tudo, cuspir. Theodoro Kempers tem uma funo obscura e proeminente na famlia dos trabalha-dores dos Dirios Associados. Cidado holands, de cara vermelha, olhos alcolicos, pince-nez doutorai e cabeleira comunista, Theodoro Kempers cospe. A culpa no sua. O destino fez de Theodoro Kempers chefe da seo de gravura dos Dirios paulistas. Sabeis, meu caro doutor Getlio Vargas, o que um chefe de seo de gravura? um homem que, por meio da magia violenta dos cidos e dos metais, pode tornar vossa excelncia orelhudo como um burro, gor-do como um suno, negro como um urubu, barbado como um bode, trombudo como um elefante. Ele pode

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  • destruir, com um s golpe, o sorriso cndido que cons-tantemente visita os lbios de vossa excelncia. Ele , em resumo, o diretor das caras. Padres, declamadoras, assassinos, estadistas, almirantes, poetas, todos os bichos da vaidosa fauna humana passam sob as lunetas de Theodoro Kempers. Eis por que Theodoro Kempers aprendeu a cuspir. A vida est cheia de clichs, a vida uma coleo de clichs, e Theodoro Kempers o Criador dos Clichs.

    No dia 29 do ms corrente, ele cuspiu. Cuspiu na terra maldita, povoada de clichs ridculos. O glorioso e sagrado asfalto bandeirante no reagiu. Mas ai! uma pequenina partcula da saliva do patrcio da rainha Guilhermina pousou sobre o pra-lama de um automvel que passava. O automvel parou, e dele sal-tou nada menos que uma autoridade policial. Nada menos que uma autoridade tremei, mundos! da Delegacia de Ordem Poltica. Theodoro Kempers foi preso e esbofeteado at perder os sentidos.

    Horrvel pecado cometeste, meu companheiro Theodoro Kempers! Um automvel da polcia um animal sagrado, como o bis e o elefante branco. Ns outros, pedestres e populares, devemos vener-lo. Res-piremos a fumaa que sai de seu escapamento como se fora um incenso divino. Ouamos a descarga de seus motores como se fora msica do infinito. Beijemos o rastro de seus pneumticos como se nossos lbios os-culassem a marca sagrada dos ps do Senhor. Nosso ideal supremo, nosso Nirvana, morrer um dia sob suas rodas sacrossantas. E tu cuspiste, Theodoro Kempers! Disseste que foi no cho. Cuspir no animal

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  • sagrado o mais horroroso e torpe dos pecados, o mais baixo e infamante dos crimes. Cuspir no cho m ao. Cuspir para o cu mau, porque a cusparada volta e estala sobre nossa cabea. Se quiseres cuspir, Theodoro Kempers, aprende comigo a cuspir dedica-damente na cara dos homens. Salvo em alguns, que so demasiado sujos para servir de escarradeira.

    So Paulo, janeiro, 1934.

  • AO RESPEITVEL PBLICO

    Chegou meu dia. Todo cronista tem seu dia em que, no tendo nada a escrever, fala da falta de assunto. Chegou meu dia. Que bela tarde para no se escrever!

    Esse calor que arrasa tudo; esse carnaval que est perto, que a vem no fim da semana; esses jornais lidos e relidos na minha mesa, sem nada interessante; esse cigarro que fumo sem prazer; essas cartas na gaveta onde ningum me conta nada que possa me fazer mal ou bem; essa perspectiva morna do dia de amanh; essa lembrana aborrecida do dia de ontem; e outra vez, e sempre, esse calor, esse calor, esse calor...

    Portanto, meu distinto leitor, portanto, minha en-cantadora leitora, queiram ter a fineza de retirar os olhos desta coluna. No leiam mais. Fiquem sabendo que eu secretamente os odeio a todos; que vocs todos

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  • so pessoas aborrecidas e irritantes; que eu desejo sin-ceramente que todos tenham um pssimo carnaval, uma horrvel quaresma, um infelicssimo ano em 1934, uma vida toda atrapalhada, uma morte estpida!

    Aproveitem este meu momento de sinceridade e no se iludam com o que eu disser amanh ou depois, com a minha habitual falta de vergonha. Saibam que o desejo mais sagrado que tenho no peito mandar vocs todos simplesmente s favas, sem delicadeza nenhuma.

    Por que ousam gostar ou aborrecer o que escrevo? O que tm comigo? Acaso me conhecem, sabem alguma coisa de meus problemas, de minha vida? Ento, pelo amor de Deus, desapaream desta coluna, Este jornal tem dezenas de milhares de leitores; por que que, no meio de tanta gente, vocs, e s vocs, re-solveram ler o que escrevo? O jornal grande, senhori-ta, imenso, cavalheiro, tem crimes, tem esporte, tem poltica, tem cinema, tem uma infinidade de coisas. Aqui nesta coluna, eu nunca lhes direi nada, mas nada de nada, que sirva para o que quer que seja. E no direi porque no quero; porque no me interessa; por-que vocs no me agradam; porque eu os detesto.

    Portanto, se a senhorita bastante teimosa, se o cavalheiro bastante cabeudo para me ter lido at aqui, pensem um pouco, sejam bem-educados e dem o fora. Eu fao votos para que vocs todos amanheam amanh atacados de febre amarela ou de tifo exante-mtico. Se houvesse micrbios que eu pudesse lhes transmitir assim, atravs do jornal, pelos olhos, fiquem

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  • sabendo que hoje eu lhes mandaria as piores doenas: tracoma, por exemplo.

    Mas ainda insistem? Ah, se eu pudesse escrever aqui alguns insultos e adjetivos que tenho no bico da pena! Eu lhes garanto que no so palavras nada am-veis; so dessas que ofendem toda a famlia. Mas no posso e no devo. Eu tenho de suportar vocs diaria-mente, sem descanso e sem remdio. Vocs podem virar a pgina, podem fugir de mim quando entende-rem. Eu tenho de estar aqui todo dia, exposto curio-sidade estpida ou indiferena humilhante de deze-nas de milhares de pessoas.

    Fiquem sabendo que eu hoje t inha assunto e os recusei todos. Eu poderia, se quisesse, neste momento, escrever duzentas crnicas engraadinhas ou tristes, boas ou imbecis, teis ou inteis, interessantes ou ca-cetes. Assunto no falta, porque eu me acostumei a aproveitar qualquer assunto. Mas eu quero hoje preci-samente falar claro a vocs todos. Eu quero, pelo menos hoje, dizer o que sinto todo dia: dizer que se eu os aborreo, vocs me aborrecem terrivelmente mais.

    Amanh eu posso voltar bonzinho, manso, jeito-so; posso falar bem de todo o mundo, at do governo, at da polcia. Saibam desde j que eu farei isto por-que sou cretino por profisso; mas que com todas as foras da alma eu desejo que vocs todos morram de erisipela ou de peste bubnica. At amanh. Passem mal.

    So Paulo, fevereiro, 1934.

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  • AS CARRASCAS

    D i z e m que a mulher parte fraca... No . Houve um concurso para carrasco em uma capital europia, e se apresentaram quatorze mulheres. Bonitas? Com certe-za, no. As bonitas fazem sua matana livremente, to-do o dia. Eu sou um antigo assassinado. H sorrisos que enforcam; outros guilhotinam, outros eletro-cutam. E navalham, atiram, envenenam, esfolam. Nas tardes velhas de Ouro Preto, Joana, Joana de Ouro Preto, me enforcava livremente. Eu no conseguia nunca saber se ela estava rindo ou sorrindo, se era doce ou amargo, de mim ou para mim. Sentia o enfor-camento no pescoo, e a voz morria, Joana! Joana desumana, ento, que se desandava a sorrir de outro jeito. Se um anjo do Aleijadinho visse aquele seu jeito, coitado do anjo. O capeta se instalava no seu corpinho

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  • gorducho e ele transferia sua residncia do limbo para o inferno, e ainda dizendo que era com muito prazer e muita honra.

    Joana era um pecado mortalssimo. Sua doura me arruinou. J Pierina venial, amplamente venial. Sei que ela tem muita e m danao, mas danao de purgatrio, perdovel. Ela me apunhala, essa carras-ca, e eu morro.

    Outras muitas me mataram. E todos ns, irmos, somos assassinados muitas vezes assim.

    Ora, pois, o que fazem as quatorze carrascas de Budapeste? Ser Budapeste? Sero quatorze! Li o telegrama, e havia um nome e um nmero. Minha memria se pegou ao fato e largou o nmero e o nome. No importa. Sejam quatorze, e sejam de Budapeste. Fossem noventa, e fossem de Sofia. So carrascas, ou querem ser carrascas, e eis o que interessa, e triste. Elas so feias. Eu as imagino pesadonas e ignbeis; ru-des e mesquinhas. So as quatorze piores mulheres de Buda e de Peste; as piores da margem direita e da margem esquerda do Danbio, desde a nascente foz; as piores das margens de todos os rios e das praias de todos os mares do mundo. Nunca merecero o adjetivo gentil. o adjetivo principal, que toda mulher carece merecer, o nico empregado por Casimiro nas estrofes de mais inspirao.

    No so gentis. So horrveis. Se alguma chegar a ser carrasca, eu prometo nunca ser condenado morte em Budapeste. Que Deus me d, na hora derradeira, um sorriso de mulher gentil para eu morrer em estado de graa. Morrer na forca, morrer olhando uma

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  • estpida megera, uma carrasca pesadona e feia, sentena que no cabe em nenhum crime.

    Carrascas de Budapeste ou de onde quer que sejais. Vs, mulheres da morte, desmoralizais as mu-lheres e a morte. Sois piores que monstros. Quando fordes para o inferno, o Diabo tremer de vergonha e de medo diante de vs. Ele se sentir desacatado, fe-char seu estabelecimento e fugir. Sois to ignbeis

    que, ao vosso lado, a me de Pierina me parece um anjo, o mais lindo anjo das janelas do Brs. O conde-nado que morrer em vossas mos ser perdoado de to-dos os pecados, e ficar de alma to limpa, que Deus lhe dar diploma de santo.

    Mas a vossa lembrana o tornar eternamente desgraado.

    Quereis ser mulheres fatais por concurso, e sob a proteo da lei. Ser esta a vossa vingana contra os homens que nunca soubestes fazer morrer com um sorriso gentil, qual o de Joana de Ouro Preto. Mas nem assim sereis mulheres fatais. Ningum mais ter cora-gem de cometer um crime em Budapeste; e se algum cometer, nenhum juiz ser bastante miservel para entregar o ru s vossas garras. Sereis bruxas funcio-nrias, assassinas burocratas, amanuenses da reparti-o da morte. Morrereis de raiva quando o condenado le matar na priso. Morrereis todas, pestes de Budapeste, pesteadas pela prpria pestilncia!

    So Paulo, maio, 1934.

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  • A CARTA

    Existe, no jornal em que trabalho, como existe em muitos jornais, um redator essencialmente agrcola. um homem encarregado de explicar diariamente aos seus leitores qual o melhor meio de plantar batatas. Recebe do interior misteriosos embrulhinhos registra-dos, contendo lagartas, pedacinhos de razes e punha-

    dos de terra, para opinar sobre esses objetos. E opina. um ofcio herico, remediar distncia a dor de bar-riga de um porco ou matar os insetos que atacam um p de abacate situado a novecentos e cinqenta quil-metros da redao do jornal.

    Na sua correspondncia de hoje, o meu colega re-cebeu uma carta que o deixou profundamente triste. Passou-a minha mesa, dizendo que eu devo respon-d-la. Na sua opinio, eu sou um literato, e a carta de

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  • literata. Veio de Lenis. Quem a assina j me dirigiu vrias cartas que no respondi. uma senhorita que, estando profundamente sem ter o que fazer, diverte-se escrevendo cartas annimas a todos os jornalistas. En-fim: uma senhorita sem carter, uma senhorita patife.

    Creio que mora em alguma fazenda, onde se en-trega contemplao da natureza e leitura de bons livros. Ela mandou dizer ao meu colega agrcola Fajardo da Silveira que est procurando se conso-lar, no campo, das mgoas que a cidade lhe causou. E pede conselhos minuciosos a respeito. Fajardo da Sil-veira esteve quase respondendo. Chegou mesmo a redigir algumas frases, e veio me consultar. Disse que ira "um assunto puramente humano" , do qual no entendia. E explica:

    Responda voc, literato, que entendido em senhoritas. Prometo ajud-lo quando o consultarem a respeito de vacas ou cebolas.

    Eu me neguei a atend-lo e ele passou a outras mesas da redao. O redator social declarou-lhe:

    Quando esta senhorita ficar noiva, casar, ou ti-ver um filho, eu tratarei dela.

    O reprter policial rugiu: Mate esta moa, ou pelo menos arranque-lhe a

    orelha esquerda. Eu publicarei o seu retrato no jornal. O crtico musical exigiu que ela tocasse harpa ou

    trombone; o reprter poltico sugeriu que ela fizesse um discurso, e o esportivo, que ela atravessasse o canal da Mancha.

    Fajardo da Silveira berrou: Trata-se de uma senhorita pacata, que jamais

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  • praticar violncia semelhante. Todavia, preciso que ela seja atendida. Tambm no posso fazer nada, porque ela no uma abbora nem uma euforbicea.

    Disse, ps a carta novamente sobre a minha mesa e postou-se em minha frente raivoso. Mas eu tambm no sei o que fazer com essa miservel senhorita litera-ta e rural. J estive ensaiando vrias respostas, mas nenhuma serve absolutamente. Fajardo da Silveira acaba de sair, desanimado e disposto a tudo. Deixou comigo as frases que redigiu e que ele mesmo no julgou boas para serem publicadas em sua seo de "Vida Agrcola".

    Eu as publico aqui, porque no tenho outra soluo. Ei-las:

    " I .F . Lenis Nesta seo, senhorita, no posso cuidar de literatura. A tristeza de sua alma, infelizmente, me interessa menos que a tristeza do gado vacum. Passe bem."

    Tambm acho que isto no delicado. No se deve falar em gado vacum quando se escreve a uma senhorita. Alm disso, aquele "passe bem" final tem um tom visivelmente feroz. Mas no se pode fazer nada razovel com uma senhorita que tem a mania de escrever aos jornais.

    So Paulo, maio, 1934.

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  • PEQUENAS NOTCIAS

    Dia do Trabalho... Houve uma reunio de operrios em So Paulo, mas havia tanto soldado de polcia que no se sabia se era uma reunio de operrios ou de toldados de polcia.

    A ordem foi mantida. Os operrios no permiti-ram que a polcia praticasse nenhum distrbio.

    Na vspera, em Roma, inaugurou-se um Congres-so Mundial do Leite. O Sr. Mussolini falou para repre-sentantes de quarenta e sete pases. Um orador, segun-do suponho, afirmou que, sob o regime fascista, e gra-as energia incomparvel do Sr. Mussolini, que tem ao seu lado, indiscutivelmente, todo o glorioso povo italiano, as vacas produzem mais leite. Em seguida os representantes de quarenta e sete pases beijaram a

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  • mo do Papa. O Papa fez um discurso em francs, aconselhando o mundo catlico a beber leite, porque leite sade, e mens sana in corpore sano, como di-ziam os gregos. O Congresso correu em perfeita or-dem, porque nenhum bezerro teve a idia de compare-cer para protestar contra a usurpao.

    No mesmo dia, Deibler, o carrasco francs, fez a sua 300 execuo. Festejou o acontecimento com uma pequena farra, e, falando aos jornais, declarou que es-tava aperfeioando um novo tipo de guilhotina, mas vai abandonar o ofcio. Ganhar 7.500 francos por execuo, num total de 2 milhes e 250 mil francos por trezentos pescoos.

    Sabedores disso, vrios sem-trabalho se dirigiram s autoridades, segundo suponho, declarando estarem dispostos a cortar pescoos, inclusive o do carrasco Deibler, por um preo muito mais baratinho.

    Disseram, mais, que lhes sendo facultada a esco-lha dos pescoos, trabalhariam inteiramente grtis.

    Em Nova York, uma estatstica apontou, durante o ano passado, vrios casos de nascimento por fecun-dao artificial. Trata-se de moas que, sentindo o su-blime desejo da maternidade, no quiseram, todavia, ter nenhum contato com homens. Algumas dessas jo-vens mes nem sequer viram a cara dos pais das crian-as. O fenmeno ocorreu por correspondncia. Essa notcia despertou muitos comentrios, sendo conside-rada um sinal do maravilhoso progresso da cincia na grande Repblica do Norte. Infelizmente o telegrama

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  • no divulga o nmero de jovens que, durante o ano passado, agiram em sentido exatamente contrrio, isto , a estatstica das crianas que no nasceram.

    So Paulo, maio, 1934.

  • ALADY

    "O comrcio" , de Cachoeira, Rio Grande do Sul, publicou o seguinte aviso:

    "Eu, abaixo assinado, peo ao pblico no cortar o cabelo de minha filha Alady, sem licena minha pes-soalmente, ficando, quem cortar, sujeito a pagar 2:000$000 de ris e mais outras despesas que houver pelo mesmo motivo. Neste caso no existe amizade nenhuma a quem quer que seja. Piquiri, 5 de abril de 1934. Carlos Victor Kochenberger."

    O aviso de 5 de abril e j estamos varando ju-nho. Nunca mais tive notcia nenhuma dos cabelos de Alady.

    Cabelos de Alady... Sero negros, brilhantes, emoldurando suas faces de neve? Sero castanhos ou

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  • dourados? Alady ser morena? E as tranas de Alady, e o perfume e a fita dos cabelos de Alady?

    Falei em tranas. Sim, naturalmente, haver tran-as. E o Sr. Kochenberger, fumando o seu cachimbo (o Sr. Kochenberger no pode deixar de fumar cachim-bo), sentado em sua varanda, nas tardes mansas de Piquiri, o Sr. Kochenberger se sentir feliz vendo as tranas de sua filha.

    Vem c, Alady. Alady chega perto do Sr. Kochenberger. O que , papai? Fica aqui, minha filha... E o Sr. Kochenberger passa a mo nas trancas de

    Alady. Lindas tranas, lindas tranas, pensa o Sr. Kochenberger. Parece a sua me, quando tinha dezes-seis anos... A mo direita do Sr. Kochenberger acaricia os cabelos de Alady. A mo esquerda segura o cachim-bo. E do bojo escuro do cachimbo sai um fio de fuma-a azulada. A luz do sol poente entra horizontal pela varanda, brilha na voluta azulada e nas tranas de Alady. E o Sr. Kochenberger pensa em outras tardes, em velhas tardes...

    Pobre Sr. Kochenberger! Alady tambm sonha. Mas os seus sonhos vivem em novas tardes, em manhs que ainda no nasceram, em dias que ainda no bri-lharam. Desculpe, Sr. Kochenberger, mas a pura verdade: Alady odeia essas tranas e odeia Piquiri. Alady quer cortar os cabelos, quer ir de baratinha a Cachoeira, quer passear em Porto Alegre, se casar em Montevidu, embarcar para Buenos Aires, voar para o Rio de Janeiro, e se divorciar em Hollywood. Perd3o,

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  • Sr. Kochenberger, mas a sua filha muito sapeca! Sei que ela tem jeito de santa e s vezes anda triste parecendo uma santa mesmo...

    Sr. Kochenberger, de minha parte o senhor pode ficar descansado. Eu no momento no disponho de dois contos de ris. E o senhor ainda fala em "outras despesas que houver pelo mesmo motivo". Natural-mente, o senhor me mataria, mataria Alady, se mata-ria, e eu teria de pagar todos os enterros e mais o preo da munio.

    Dois contos de ris por umas tranas no muito barato. Talvez as trancas de Alady valham mais. Talvez um cacho dos cabelos de Alady valha mais de cem contos de ris. Mas vamos devagar, Sr. Kochen-berger. O senhor est pondo sua filha em leilo. Amanh o senhor apregoar a ponta da orelha esquer-da de Alady; depois o dedo mindinho, depois a covinha do queixo, depois... Sr. Kochenberger, eu seria capaz de arrematar a sua filha inteira, inteirinha, inclusive a fita de suas trancas e o sinalzinho que ela tem no ombro. A sua filha, senhor, pode ser a mais linda chinita de todos os pampas, pode ser mais bonita que dona Iolanda Pereira, Miss Universo, mais bonita que a artista mais bonita do cinema. Pode ser tambm feia de doer, de se desmaiar de tanta feira. No tem importncia, Sr. Kochenberger, o que tem importn-cia que ela no objeto de leilo. Alady uma pes-soa viva, e o corpo de Alady pertence a Alady, porque ela ainda no o deu a ningum. Os cabelos de Alady pertencem a Alady, esto na cabea de Alady, descem em tranas pelas costas de Alady, sobre os ombros de

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  • Alady. No adianta o senhor gravar de imposto de consumo os cabelos de Alady. Alady tem corpo e alma. Alady tem corao. . . cuidado, Sr. Kochenberger, Ala-

    dy corao e corao de moa de tranas anda voando no ar como um periquito, chamando outro corao...

    So Paulo, junho, 1934.

  • O VIOLINISTA

    O homem me carregou para diante dos mapas e dos grficos. Olhando pela ampla janela do quarto andar, a gente poderia ver l na praa o Teatro Municipal de So Paulo, anunciando o maior violinista do mundo. No meio da praa a feira das flores brilhava ao sol. Mais para a frente o viaduto trepidava de homens e bondes ligando as duas praas rumorejantes. E os ar-ranha-cus se impunham no fundo azul do cu.

    O homem me carregou para diante dos mapas e dos grficos. E o homem disse:

    Nesta cidade h, seguramente, cinco mil tuber-culosos pobres. Contamos apenas com cem leitos em um hospital e mais cem em sanatrios particulares.

    E disse mais: Nesta cidade morre uma criana de duas em

    duas horas. Os bairros proletrios fabricam anjinhos

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  • sem cessar. Em cem mortos mais de trinta so crianas de zero a um ano.

    E eu perguntei: Qual a causa de tantas mortes? E o homem respondeu: Misr ia .

    E prosseguiu: Os hospitais e os asilos rejeitam diariamente a

    multido dos doentes e das crianas sem amparo. No h leitos. No h lugares. O governo d 1.418 contos anuais para 235 instituies de caridade do Estado. Is-so quer dizer que, para cada cama de hospital, o gover-no d, por dia, 600 ris. Portugal um pas que tem a mesma populao deste Estado. O governo de Portu-gal, em vez de 1.418 contos, distribui, todo ano, para o mesmo fim, 60 mil contos; e gasta atualmente mais 60 mil contos na construo de grandes hospitais.

    E o homem disse ainda: No interior do Estado h municpios onde a

    percentagem de mortes sem assistncia mdica de 100%. Desde o comeo da crise a natalidade diminuiu e a mortalidade infantil aumentou. O movimento do albergue noturno demonstra que... A sfilis... o cn-cer... a fome crnica...

    O homem ia falando, ia falando. L fora, para l da janela azul, a feira das flores era uma alegria ver-melha dentro da praa cinzenta. O Teatro Municipal de So Paulo anunciava o maior violinista do mundo. O viaduto estava repleto ligando as duas praas. Os arranha-cus se impunham no cu de anil.

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  • E outro: Amigo, tenho aqui esta mulher, este papagaio,

    esta sogra e algumas baratas. Tome nota de seus nomes, se quiser. Querendo levar todos favor.

    E outro: Eu? Tinha um amigo e um cachorro. O amigo

    se foi, levando minhas gravatas e deixando a conta da lavadeira. O cachorro est a, chama-se Lord, tem trs anos e meio e morde como um funcionrio pblico.

    E outro: Oh! sede bem-vindo. Aqui somos eu e ela, s

    ns dois. Mas ns dois somos apenas um. Breve, sere-mos trs. Oh!

    E outro: Dois, cidado, somos dois. Naturalmente o se-

    nhor no a v. Mas ela est aqui, est. A sua saudade jamais sair de meu quarto e de meu peito!

    E outro: Aqui moro eu. Quer saber o meu nome? Pro-

    cure uma senhorita loura que mora na terceira casa da segunda esquina, direita. O meu nome est escrito na palma de sua mo.

    E outro: Hoje no possvel, no h dinheiro nenhum.

    Volte amanh. Hein? Ah, o senhor do recenseamen-to? Uff! Quantos somos? Somos vinte, somos mil. Tenho oito filhos e cinco filhas. Total: quinze pestes. Mas todos os parentes de minha mulher se instalaram aqui. Meu nome? Ahn... Joo Loureno, seu criado. Jesus Cristo Joo Loureno. A minha idade? Oh! pergunte minha filha, pergunte. aquela jovem siri-

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  • gaita que est dando murros naquele piano. Ontem quis ir no sei onde com um patife que ela chama de "meu pequeno". No deixei, est claro. Ela disse que eu sou da idade da pedra lascada. Escreva isso, cava-lheiro, escreva. Nome: Joo Loureno; profisso: idio-ta; idade: da pedra lascada. Est satisfeito? No, no faa caretas, cavalheiro. Creia que o aprecio muito. O senhor pelo menos no parente da mulher. Isso uma grande qualidade, cavalheiro! a virtude que eu mais admiro! O senhor divino, cavalheiro, o senhor meu amigo ntimo desde j, para a vida e para a morte!

    So Paulo, julho, 1934.

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  • MATO GROSSO

    T r s Lagoas, ser Mato Grosso? Saltamos do trem e a poeira de nossas roupas poeira paulista; e este ci-garro que fumo foi aceso em So Paulo. Conversei com trs cidados de Trs Lagoas, e eram trs paulistas.

    Estamos rente fronteira. A fronteira o rio Pa-ran. Visito a Gazeta do Comrcio de Trs Lagoas e sinto que estou em Mato Grosso. O problema de que o jornal trata com mais insistncia, o maior problema municipal de Trs Lagoas, o grande problema mato-gressense. Falta de gente. Mato Grosso tem 0,2 habi-tantes por quilmetro quadrado; de modo que para po-vo-lo decentemente seria preciso que cada habitante tivesse um comprimento de cinco quilmetros e mil metros de largura.

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  • Examinando o problema sob outro aspecto, veri-ficamos que em um grupo de dez cidados mato-gros-senses faltam quarenta cidados. Se os dez fossem cin-qenta, Mato Grosso teria uma cabea humana por quilmetro quadrado. Nada disso acontece. Mato Grosso um palco procura de personagens. Trs La-goas possui terras timas, mas vive, ou vegeta, quase exclusivamente de gado.

    Basta saltar na estao e andar pela rua que fica na frente para sentir a grandeza desses problemas. A rua larga, larga, demasiado larga e boceja desespe-rada em sua largura de terra arenosa esperando os transeuntes que no aparecem. O contrrio da Rua Direita ou da Rua do Ouvidor que, mal recebem um transeunte, t ratam de maltrat-lo de todos os modos, jogando-o sobre outros transeuntes, aborrecendo-o com seu brouhaha, at expeli-lo na praa, a rua de Trs Lagoas vive esperando transeuntes. E quando aparece um, ela torna lenta a sua passagem, agarra-o em suas areias, aproveita-o o melhor possvel.

    Trs Lagoas precisa de gente. Trs Lagoas quer ser colonizada, aproveitada, movimentada. Trs La-goas espia l longe, margem dos mesmos trilhos da Noroeste, a bela Campo Grande toda orgulhosa e rica que, de to rica e orgulhosa, j anda querendo se sepa-rar de Mato Grosso, dizendo que o Norte do Estado explora o Sul, que o Sul deve deixar de ser Mato Gros-so para ser Maracaju, etc.

    espantoso esse problema de separatismo em Mato Grosso. O homem se revolta contra a terra que

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  • grande demais. O interventor federal l longe, infinita-mente longe, dentro do Palcio Alencastro, coca a cabea.

    Em Trs Lagoas ningum me falou mal de Mato Grosso. Eu apenas sacudi um pouco aquela poeira paulista de meu palet e olhei para o Oeste com vonta-de de rezar:

    grande e santo Mato Grosso! Eu sou um bi-chinho da beira da praia e aqui estou diante de vs, gi-gante das terras do centro. A vossa fora dorme ao longo de vossas planuras, no fundo de vossas florestas, nas barrancas de vossos rios sem fim. Sou um bicho covarde e voltarei daqui a quinze minutos para a beira da praia. Outros mais peitudos viro para vos povoar. Eu tenho apenas um lpis, que s sabe escrever bestei-ra. Outros viro com arados, mquinas e dinheiro; ho-mens de nossa raa e de outras raas levantaro casas em vossa terra e rudos em vossos ares. E crescero den-tro de vs, e vs crescereis com eles. E vosso nome e vossa fama e vosso esprito e vossa fora atravessaro os mares, Mato Grosso. E pelos mares viro gentes para vos ver. E assim vos vingareis dos mares que hoje ficam longe de vs e cujos clamores me chamam neste momento a mim, bichinho covarde da beira da praia.

    Assim rezei. E as rodas do especial regressaram sobre os trilhos bamboleantes da Noroeste.

    So Paulo, julho, 1934.

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  • ANIMAIS SEM PROTEO

    Mandaram-me para debulhar o decreto nmero 24.645, do Sr. Getlio Vargas, cujo artigo primeiro diz: "todos os animais existentes no pas so tutelados do Estado".

    Fica passvel de multa ou priso quem mantiver animais em lugares anti-higinicos ou priv-los de ar ou luz; abandonar animal doente, ferido ou extenua-do ou deixar de ministrar-lhe medicamentos; utilizar em servio animal ferido, enfermo ou fraco; conduzir animais de mos ou ps atados; ter animais encerrados juntamente com outros que os aterrorizem ou moles-tem, etc. e t c , etc.

    O artigo 3? diz que os animais sero assistidos em juzo pelos representantes do Ministrio Pblico.

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  • Ora, eis a uma lei excelente. So inacreditveis as barbaridades que sofrem os animais neste mundo. Levemos aos doutores promotores de justia material para denncias.

    Eu sei de animais que vivem em lugares anti-hi-ginicos, quase privados de ar e de luz. J vi vrias vezes esses estranhos animais. So magros e tristes e se parecem extraordinariamente com os homens. Vivem em cortios e pores, em casebres infectos e em casares imundos. Quando doentes ou extenuados, no podem contar com remdio e auxlio nenhum. Es-ses animais, que fisicamente, como j disse, so extre-mamente parecidos com os homens, so muitas vezes utilizados em servio quando fracos ou enfermos. H fmeas de cinqenta anos, tuberculosas e exaustas, que diariamente so obrigadas a trabalhar, se no quiserem morrer de fome. Machos de todas as idades, atacados de todas as doenas, so igualmente obriga-dos a prestar servios rudes e esgotantes para viver. At mesmo animais ainda de tenra idade se vem obrigados a suportar rudes tarefas. Todos esses ani-mais, se acaso se rebelam contra a sua sorte, so transportados imediatamente para jaulas apropriadas e mais infectas que quaisquer outras. O transporte feito em carroas fechadas e incmodas. Algumas vezes os animais vo com as mos atadas por ferros es-peciais, e quase sempre sofrem espancamento e toda espcie de maus-tratos.

    Uma das disposies da lei probe que se faa tra-balhar animais desferrados em ruas de calamento. Entretanto, inmeros desses animais a que me refiro

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  • acima andam desferrados. Os seus ps, que so muito parecidos com os ps humanos, no tm a proteo de nenhum calado.

    Creio mesmo que os animais citados no gozam de nenhuma das garantias do excelente decreto n 24.645. Desde o nascimento at a morte, eles sofrem toda espcie de misrias e tristezas. No gozam de sa-de nem de conforto. So pssima e parcamente alimen-tados e no dispem de nenhum cuidado higinico; por isso vivem sujos e magros. Tm de trabalhar du-rante a vida toda. Com esse trabalho, esses animais en-riquecem os homens e fazem prosperar os Estados que os exploram; e destes s se obtm algum favor se continuarem dispostos a trabalhar toda a vida para eles. Creio que no h, hoje em dia, nenhuma espcie animal to estupidamente explorada como essa.

    interessante notar que, devido a certas seme-lhanas, algumas pessoas pensam que esses animais so tambm homens. engano. Eles, de fato, tm al-guma parecena com os homens; mas no so homens, so operrios.

    So Paulo, agosto, 1934.

  • SENTIMENTO DO MAR

    Passo pela padaria miservel e vejo se j tem po fres-co. As jogadas e os camares esto aqui. Est aqui a garrafa de cachaa. Voc vai mesmo? Pensei que fosse brincadeira sua.

    Arranja um chapu de palha. Hoje vai fazer sol quente. Andamos na madrugada escura. Vamos cala-dos, com os ps rangindo na areia. Vem por aqui, a tem espinhos. Os mosquitos do mangue esto dormin-do. Vem. Arrasto a canoa para dentro da gua. A gua est fria. Ainda quase noite... O remo est mido de sereno, sujo de areia. Senta ali na proa, virada para mim. Olha a gua suja no fundo da canoa. Pe os ps em cima da poita. Eu estou dentro d 'gua at os joelhos, empurro a canoa e salto para dentro. Uma espumarada de onda fria bate na minha cara. Remo

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  • depressa, por causa da arrebentao. Fica sentada, no tem medo, no. Firma a. Segura dos lados. No se mexa! Firme! Ooooi... Quase! Outra onda d um balano forte e joga um pouco de gua dentro do bar-co. Estou remando em p, curvado para a direira, com esforo. A outra onda passa mansa, mansa, a proa bate n 'gua e avana. O remo est frio nas minhas mos. Eu o mergulhei dentro d'gua para limpar a areia. A gua que escorre molha as mangas de meu palet. O mar est muito calmo. Esse ventinho que est vindo e passando em seus cabelos o vento da ter-ra. O terral vem de longe, l do meio da terra, dos matos dormentes atrs dos morros. Vem da terra es-cura para o mar escuro. Ns iremos com ele.

    Levantei a vela encardida. O meu leme est quebrado, mas tenho o remo. Vamos um pouco bei-rando a praia para o norte. Agora o ventinho nos pega. A vela treme feito mulher beijada. Fica tmida feito mulher beijada. s vezes, a fora do vento diminui um pouco, e ela bambeia, amolece, feito mulher possuda. Olha l a sua casa. No est vendo, no? O po est bom? Se voc comer todo agora, vai ficar com fome l fora. Me d essa cuia, vou tirar a gua da canoa. Ras-po o fundo do barco, onde o cheiro forte e enjoado da maresia, esse cheiro que eu amo, embebeu para sem-pre o lenho. Viro um pouco a vela, sento, e passo o remo para a esquerda. O leme, assim como est, aju-da. Vamos cortando a gua maciamente... A gua est cinza, escura, pesada, como leo. O balanceio nos le-va. A praia pobre ficou l longe, com luzinhas piscan-do. Estamos quietos, e ela ri o po olhando a gua. A

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  • gua fala alguma coisa ao batelo, lambendo seu cor-po, numa ternura de velha amiga com velho amigo.

    Ela est quase deitada. O frio do fim da noite, o ar cheio de gua, com um cheiro mido, me faz abrir as narinas, apaga o meu sono. Na penumbra imensa seus cabelos parecem midos sobre a testa morena. Ns avanamos no bamboleio manso, conversando com moleza. A sua voz me vem, atravessando o vento fraco, entre a voz da gua na beira da canoa. Seu cor-po, na proa, sobe e desce no horizonte... Ela est vira-da para mim. Contempla l atrs a terra que vai mor-rendo no escuro, que apenas um vago debrum sujo alm da gua. Eu olho a gua. Tenho vontade de beijar a gua. Beijar de leve a flor salgada da gua, de-pois beijar com lbios midos, com pureza, de manso, aquela boca sob os olhos negros, sob a testa morena. Mas isso apenas um desejo -toa sem fora nenhu-ma, um desejo que sabe que veio toa e que vai toa.

    Acendo um cigarro e pergunto: Voc quer fumar? A minha amiga no fuma, e ri. Ri muito, como se

    eu tivesse ficado triste muito tempo e de repente tives-se dito uma coisa engraadssima. Ri... Seu riso que-bra, parte, destri o encanto molengo da madrugada. como se estivssemos em terra e, por exemplo, fizes-se sol, em uma tarde comum, ou ns andssemos depressa pela rua. Seu riso rasga a calma do mar es-curo, como se o mar no estivesse soluando sob a canoa.

    Uma claridade pastosa, dbil, vem l do fundo so-bre o qual o seu corpo deitado se balana. E ns con-

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  • versamos animadamente, como se estivssemos em um bonde, fssemos a um cinema. No estamos sozinhos no mundo, em uma canoa no meio do mar. A nossa vida no apenas esta velha canoa, esta vela encardida e pequena, este remo mido. Somos gente da terra, sem nenhuma evaso nem mistrio. Conversamos. Eu conto histrias do mar, como se fosse um velho pesca-dor. Ela me interrompe para contar uma coisa uma coisa terrena, acontecida na terra, dentro de uma casa na terra, com lmpada eltrica, onde os homens se atormentam. E eu ouo, me interesso. Desci a vela. Vou remando, remando to bestamente como se os msculos de quem rema no tivessem alma, como se a gua rompida pelo remo no tivesse msculos e alma, como se eu jamais tivesse sentido pulsar, nas minhas veias rolando ondas, a vertigem calma do mar. Remo, no h mais encanto nenhum. Tudo vai clareando no ar e na gua. Remarei, pescarei. Pedirei a ela que se levante para que eu possa descer a pedra pela proa, at sentir bater na lama. Pescarei. Se ela estiver cansada, se ela achar cacete, voltarei para terra conversando. Ela achar cacete. Ela da terra, est viciada pela ter-ra, e no poderia lhe ensinar meu sentimento. Meu sentimento intil, eu converso conversas da terra com essa filha da terra. Eu pescarei e assobiarei um samba. Eu remarei para a terra logo que ela estiver cansada do mar.

    Rio, janeiro, 1935.

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  • A EMPREGADA DO DR. HEITOR

    E r a noitinha em Vila Isabel... As famlias jantavam. Os que ainda no haviam jantado chegavam nos ni-bus e nos bondes. Chegavam com aquela cara tpica de quem vem da cidade. Os homens que voltam do tra-balho da cidade. As mulheres que voltam das com-pras na cidade. Caras de bondes, caras de nibus. As mulheres trazem as bolsas, os homens trazem os ves-pertinos. Cada um entrar em sua casa. Se o homem tiver um cachorro, o cachorro o receber no portozi-nho, batendo o rabo. Se o homem tiver filhos, os filhos o recebero batendo palmas. Ele dar um beijinho mole na testa da mulher. A mulher mandar a empre-gada pr a janta, e perguntar se ele quer tomar banho. Se houver rdio, o rdio ser ligado. O rdio to-car um fox. Ouvindo o fox, o homem pensar na pres-

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  • tao do rdio, a mulher pensar em outra besteira idntica. O homem dir empregada para dar comida s crianas. A mulher dir que as crianas j come-ram. A empregada servir a mesa. Depois lavar os pratos. Depois ir para o porto. O homem conversa-r com a mulher dizendo: "mas, minha filha, eu no tive tempo.. ." A mulher ficar um pouco aborrecida e como nenhum dos dois ter nimo para discutir ela dir: "mas , meu bem, voc nunca tem tempo. . . " Ento o homem, para concordar com alguma coisa, concor-dar com o seguinte: a empregada atual melhor que a outra. A outra era muito malcriada. Muito. Era de-mais. Essa agora boazinha. Depois, sem propsito ne-nhum, o homem dar um suspiro. A mulher olhar o relgio. O homem perguntar que horas so. A mulher olhar outra vez, porque no tinha reparado.

    Oito e quinze... No relgio da sala de jantar do vizinho sero qua-

    se oito e vinte. Em compensao a famlia maior. O velho estar perguntando ao filho se o chefe da repar-tio j est bom. Na vspera o filho dissera ao pai que o chefe da repartio estava doente. O velho aposen-tado. O filho est na mesma repartio onde ele esteve. A filha est em outra repartio. Eles tm um amigo que importante na Prefeitura. Todos os trs gostam de conversar a respeito da repartio. Talvez mesmo no gostem de conversar a esse respeito. Mas conver-sam. A casa da famlia uma repartio. O velho est aposentado, no assina mais o ponto. A moa saiu com o namorado que quase noivo e que a levar ao Boule-vard, Praa 7 de Maro, ao cinema. Eles vo acom-

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  • panhados da menorzinha. A moa na repartio ga-nha 450, mas s recebe 410 miliquinhentos, e se julga independente. A sua tia costuma dizer aos conhecidos: ela tem um bom emprego. O emprego to bom que ela s vezes at trabalha. Ela um dia se casar e ser muito infeliz. Perder o emprego por causa de uma in-justia e negcios de poltica, quando mudar o prefei-to e o amigo de seu pai for aposentado. Depois do pri-meiro filho ficar doente e morrer. A criana tambm morrer. Tambm, coitadinha, viver sem me no vale a pena. A tia chorar muito e comentar: coitada, to moa, to boa... E continuar vivendo. Alis, a vida muito triste. Essa opinio defendida, entre outras pessoas, pela cozinheira da casa, que j est velha e nunca vai ao porto porque no tem nada que fazer no porto. uma mulata desdentada e triste, que h quinze anos responde mesma dona-de-casa: "eu j vou, dona Maria ." E h quinze anos vai fazer o que dona Maria manda. E que nunca teve uma idia interessante, por exemplo: matar dona Maria, incen-diar a casa. Est to cansada de viver que nem sequer mais quebra os pratos. Um dia ficar mais doente. Com muito trabalho, e por ser um homem de bom corao, o seu patro arranjar para ela um leito na Santa Casa, onde ela falecer. Seu corpo ser aproveitado no Insti-tuto Anatmico, mais escuro e mais feio pelo formol.

    As luzes esto acesas em todas as casas daquela rua quieta de Vila Isabel. Um homem dobra a esqui-na: vem do Boulevard. Outro homem dobra a esquina: vai ao Boulevard. Algumas empregadas amam. Algu-mas famlias vo ao cinema.

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  • De longe vem um rumor, um canto. Vem chegan-do. Toda gente quer ver. So quinze, vinte moleques. Devem ser jornaleiros, talvez engraxates, talvez mole-ques simples. Nenhum tem mais de quinze anos. uma garotada suja. Todos andam e cantam um sam-ba, batendo palmas para a cadncia. Passam assim, cantando alto, uns rindo, outros muito srios, todos se divertindo extraordinariamente. O coro termina, e uma voz de criana canta dois versos que outra voz completa. E o coro recomea. Eles vo andando de-pressa como se marchassem para a guerra. O batido das palmas dobra a esquina. Ide, garotos de Vila Isa-bel. Ide batendo as mos, marchando, cantando. Ide, filhos do samba, ide cantando para a vida. que vos se-parar e vos humilhar um a um pelas esquinas do mundo.

    O menino, filho do Dr. Heitor, ficou com inveja, olhando aqueles meninos sujos que cantavam e iam li-vres e juntos pela rua. A empregada do Dr. Heitor disse que aqueles eram os moleques, e que estava na hora de dormir. A empregada do Dr. Heitor de cor parda e namora um garboso militar que uma noite no vir ao porto e depois nunca mais aparecer, deixan-do a empregada do Dr. Heitor sua espera e espera de alguma coisa. De alguma coisa que ser um mole-quinho vivo que cantar samba na rua, marchando, batendo palmas, desentoando com ardor.

    Rio, fevereiro, 1935.

  • MISTURA

    N a d a sei, nada sei desse caso. Apenas sei que Alice muito branca e muito loura. A sua me se chama Ro-sa. Tudo isso veio em um telegrama que tem exata-mente cinco linhas. Alice tem um corpo muito branco, de neve, um corpo que tem a cor da espuma purssima, levssima, que o vento da tarde espalha sobre as ondas do alto-mar. Seus cabelos so louros e seus olhos... ai! seus olhos no constam do telegrama. Isso no quer dizer que Alice no os possua, ou seja caolha. Os olhos esto subentendidos no telegrama, e devem ser perfeitos e lindos. Devem tambm ser verdes. E sendo verdes, de que verdes ho de ser? Estudei longamente olhos verdes, e principalmente dois dentre eles. Eram estriados de no sei que traos de ouro, felinos, fulvos, ruins. H verdes lmpidos, esse verde que vemos nas

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  • folhas molhadas das rvores adolescentes, quando a chuva passa e o sol fraco da tarde brilha muito louro, com meiguice. H verdes marinhos, verdes minerais, verdes escuros que so castanhos sob a luz eltrica, ne-gros dentro de uma sala, verdes, verdssimos quando a luz natural os beija de lado. E por que no seriam azuis os olhos de Alice? H por a um azul clarssimo e suavssimo, como aquele que vemos em certos recantos esquecidos do cu, tardinha. um azul singelo e an-tigo, cor de roupa de brim azul muitas vezes lavada.

    H tantos olhos de cores tantas olhando esta vida! At vermelhos h muitos, vermelhos de chorar. Que os olhos de Alice fiquem sendo para vs, leitor, lmpidos, belos, bem rasgados, da cor de vossa preferncia. Eu por mim, que os amo verdes, afirmo em face da lamen-tvel omisso do telegrama que eles so verdes, to verdes como o selo de imposto de consumo nacional.

    Alice, a ebrnea Alice (ebrnea quer dizer: bran-quinha), Alice tinha um defeito e uma virtude, resumi-dos em uma s pessoa: a sua me. Dona Rosa, me de Alice, pode ser considerada uma virtude de Alice, por-que uma excelente senhora; e pode ser considerada um defeito de Alice, porque tem idias muito esquisi-tas.

    A sua idia mais esquisita coube na quarta linha do telegrama: ela disse ao delegado que "Alice mere-cia um bacharel, to alva e loura que era". Disse isso debulhada em lgrimas. Alice fugira com Jos Cndi-do. Jos Cndido um brasileiro de cor negra. Isso desgostou dona Rosa, e dona Rosa berra como s as verdadeiras mes sabem berrar:

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  • E l a merecia um bacharel! Calma, dona Rosa, Alice fugiu com um Jos que

    no bacharel e que preto. A senhora, dona Rosa, treme de vergonha ao pensar que uma dura carapinha espeta o mesmo travesseiro em que repousam os cabe-los de seda loura de sua filha. Chora de amargura ao pensar que um corpo rude e preto de homem se junta ao corpo alvo e fino de Alice. Essa confuso de carnes brancas e pretas faz a senhora desesperar; e em seu de-sespero a senhora diz que as carnes alvas de Alice me-reciam carnes de bacharel.

    Calma, dona Rosa. Se a senhora quer carnes de bacharel para sua filha, aqui esto as minhas. Eu as ofereo. So fracas e mofinas, mas brancas e jurdicas. Porm, falando francamente, no creio que valha a pena.

    H dois problemas a considerar: o problema da cor e o problema do ttulo. Jos Cndido no tinha nem a cor nem o ttulo convenientes sua filha. Mas ele raptou Alice, e as mocinhas no so raptadas facil-mente como um deputado paraense. As mocinhas, quando no querem ser raptadas, esperneiam e fazem um berreiro medonho. Alice foi porque quis. Uniu seu brao alvo ao brao preto de Jos e partiu. As moci-nhas partem assim, e no h remdio, no h.

    Calma, dona Rosa. Alice est passeando no Pas das Maravilhas. E se aquele pas, pelo qual todas as mocinhas suspiram, gostoso e bom, que importa a cor do cicerone?

    Neste pas, dona Rosa, muitos brancos amaram muitas pretas. Se a senhora no acredita, eu lhe mos-

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  • trarei as provas. As provas andam a por toda parte, so dengosas e excelentes e se chamam, na linguagem corrente, mulatas.

    Calma, dona Rosa, calma, dona Rosa. Alice est no Pas das Maravilhas. E quem sabe se ela no volta-r de l um dia para a sua casa, trazendo pelo brao uma criancinha mulata de olhos verdes? E a senhora no acha lindas, dona Rosa, as mulatinhas de olhos verdes?

    Rio, fevereiro, 1935.

  • CANGAO

    E rguere i hoje minha dbil voz para louvar o Sr. Getlio Vargas. Aprovo de corao aberto o veto que ele deu a uma lei que mandava abrir um crdito de mil e duzentos contos para a campanha contra o cangacei-rismo.

    O presidente vetou porque no h recursos, isto , por falta de dinheiro. Eu vetaria por amor ao cangao.

    Lampio, que exprime o cangao, um heri po-pular do Nordeste. No creio que o povo o ame s por-que ele mau e bravo. O povo no ama toa. O que ele faz corresponde a algum instinto do povo. H algum pensamento certo atrs dos culos de Lampio; suas alpercatas rudes pisam algum terreno sagrado.

    Brbaro, covarde, ele . Dizem que conseguiu ser to brbaro e covarde como a polcia a polcia que o

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  • persegue em todas as fronteiras. Mas preciso lembrar que ele est sempre em guerra; e na guerra como na guerra. Retirai de seu aconchego doce qualquer de nossos ilustres e luxuosos generais; colocai-o frente de um bando, mandai-o lutar uma luta rude, dura, de morte, atravs dos dias, das semanas, dos meses, dos anos. Ele se tornar tambm brbaro e covarde.

    O cangao no um acidente. uma profisso. Nasce, vive e morre gente dentro dessa profisso. O tempo corre. Filhos de cangaceiros so cangaceiros, sero pais de cangaceiros. Eles no esto organizados em sindicatos nem em associaes recreativas: esto organizados em bandos.

    Ora, a vida do cangao no pode ser muito suave. uma vida cansativa e dura de roer. Quando centenas de homens vivem essa vida, preciso desconfiar que no o fazem por esporte nem por excesso de "maus instintos".

    O cangaceiro um homem que luta contra a pro-priedade, uma fora que faz tremer os grandes se-nhores feudais do serto. Se alguns desses senhores se aliam aos cangaceiros, apenas por medo, para pode-rem lutar contra outros senhores, para garantirem a prpria situao.

    Ora, para as massas pobres e miserveis da popu-lao do Nordeste, a ao dos cangaceiros no pode ser muito antiptica. E at interessante.

    As atrocidades dos cangaceiros no foram inven-tadas por eles, nem constituem monoplio deles. Eles aprenderam ali mesmo, e em muitos casos, aprende-ram prpria custa. De resto, a acreditar no que Jos

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  • Jobim, um rapaz jornalista, escreveu em Hitler e Seus Comediantes, agora em segunda edio, os cangacei-ros so anjinhos ao lado dos nazistas.

    Os mtodos de Lampio so pouco elegantes e nada catlicos. Que fazer? Ele no tem tempo de ler os artigos do Sr. Tristo de Atade, nem as poesias do Sr. Murilo Mendes. estpido, ignorante. Mas se o povo o admira que ele se move na direo de um instinto popular. Dentro de sua misria moral, de sua inconsci-ncia, de sua crueldade, ele um heri o nico heri de verdade, sempre firme. A literatura popular, que o endeusa, cretinssima. Mas uma literatura que nas-ce de uma raiz pura, que tem a sua legtima razo so-cial e que s por isso emociona e vale.

    Vi um velho engraxate mulato, que se babava de gozo lendo faanhas de Antnio Silvino. Eu percebi aquele gozo obscuro e senti que ele t inha alguma ra-zo. Todos os homens pobres do Brasil so lampiezi-nhos recalcados; todos os que vivem mal, comem mal, amam mal. Dar mil e duzentos contos para combater o heri seria uma tristeza. Eu por mim (quem est falan-do e suspirando aqui o rapazinho mais pacato do permetro urbano) confesso que as surtidas de Lam-pio me interessam mais que as surtidas do Sr. Ant-nio Carlos.

    No sou cangaceiro por motivos geogrficos e mesmo por causa de meu reumatismo. Mas dou que-les bravos patrcios o meu inteiro apoio moral ou imoral, se assim o preferis, minha ilustre senhora.

    Rio, fevereiro, 1935.

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  • BATALHA NO LARGO DO MACHADO

    C o m o vos apertais, operrios em construo civil, em-pregados em padarias, engraxates, jornaleiros, lavadei-ras, cozinheiras, mulatas, pretas, caboclas, massa torpe e enorme, como vos apertais! E como a vossa marca-o dura e triste! E sobre essa marcao dura a voz do samba se alastra rasgada:

    "Implorar S a Deus Mesmo assim s vezes no sou atendido. Eu amei.. ." um profundo samba orfenico para as amplas

    massas. As amplas massas imploram. As imploraes no sero atendidas. As amplas massas amaram. As amplas massas hoje esto arrependidas. Mas amanh outra vez as amplas massas amaro.. . As amplas mas-

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  • sas agora batucam... Tudo avana batucando. O batu-que uniforme. Porm dentro dele h variaes brus-cas, sapateios duros, reviramentos tortos de corpos no apertado. Tudo contribui para a riqueza interior e in-tensa do batuque. Uma jovem mulata gorducha pin-tou-se bigodes com rolha queimada. Como as vozes se abrem espremidas e desiguais, rachadas, ritmadas, e rebentam, machos e fmeas, muito para cima dos fios eltricos, perante os bondes paralisados, chorando, altas, desesperadas!

    Como essas estragadas vozes mulatas estalam e se arrastam no ar, se partem dentro das gargantas verme-lhas. Os tambores surdos fazem o mundo tremer em uma cadncia negra, absoluta. E no fundo a cuca ge-me e ronca, nos puxes da mo negra. As negras es-to absolutas com seus corpos no batuque. Vede que vasto crioulo que tem um palet que j foi dlm de soldado do Exrcito Nacional, tem gorro vermelho, cala de casimira arregaada para cima do joelho, bo-tinas sem meia, e um guarda-chuva preto rasgado, a boca berrando, o suor suando. Como so desgraados e puros, e aquela negra de papelotes azuis canta como se fosse morrer. Os ranchos se chocam, berrando, se rebentam, se misturam, se formam em torno do surdo de barril, base de cucas, tamborins e pandeiros que batem e tremem eternamente. Mas cada rancho um ntegro, apenas os cordes se dissolvem e se reformam sem cessar, e os blocos se bloqueiam.

    Meninas mulatas, e mulatinhas impberes e p-beres, e moas mulatas e mulatas maduras, e madu-ronas, e estragadas mulatas gordas. Morram as raas

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  • puras, morrssimam elas! Vede tais olhos ingnuos, tais bocas de largos beios puros, tais corpos de bronze que brasa, e testas, e braos, e pernas escuras, que mil escalas de mulatas! Vozes de mulatas, cantai, con-denadas, implorai, implorai, s a Deus, nem a Deus, noite escura arrependidas. Pudesse um grande sol se abrir no cu da noite, mas sem deturpar nem iluminar a noite, apenas se iluminando, e ardendo, como uma grande estrela do tamanho de trs luas pegando fogo, cuspindo fogo, no meio da noite! Pudesse esse astro terrvel chispar, mulatas, sobre vossas cabeas que ba-tucam no batuque.

    O apito comanda, e no meio do cordo vai um senhor magro, pobre, louro, que leva no colo uma criana que berra, e ele canta tambm com uma voz que ningum pode ouvir. As caboclas de cabelos pesa-dos na testa suada, com os corpos de seios grandes e duros, caboclos, marcando o batuque. Os negros e mu-latos inumerveis, de macaco, de camisetas de seda de mulher, de capa de gabardine apenas, chapus de palha, cartolas, caras com vermelho. Batucam!

    Vai se formar uma briga feia, mas o cordo ber-rando o samba corta a briga, o homem fantasiado de cavalo d um coice no soldado, e o cordo empurra e ensurdece os briguentos, e tudo roda dentro do samba. Olha a clarineta quebrada, o cavaquinho oprimido, o violo que ficou surdo e mudo, e que acabou rebentan-do as cordas sem se fazer ouvir pelo povo e se mudando em caixa, o pau batendo no pau, o choca-lho de lata, o tambor marcando, o apito comandando, os estandartes danando, o bodum pesando.

  • Mas que coisa alegre de repente, nesses sons pe-sados e negros, uma sanfoninha cujos sons tremem vi-vos, nas mos de um moleque que possui um olho fu-rado. Juro que iam dois aleijados de pernas de pau no meio do bloco, batendo no asfalto as pernas de pau.

    Com que foras e suores e palavres de barquei-ros do Volga esses homens imundos esticam a corda defendendo o territrio sagrado e mvel do povo glo-rioso da escola de samba da Praia Funda! No espao conquistado as mulatas vestidas de papel verde e ama-relo, barretes brancos, berram prazenteiras e graves, segurando arcos triunfais individuais de flores verme-lhas. Que massa de meninos no rabo do cortejo, meni-nos de oito anos, nove, dez, que jamais perdem a ca-dncia, concebidos e gerados e crescidos no batuque, que batucaro at morrer!

    De repente o lugar em que estais enche demais, o suor negro e o soluo preto inundam o mundo, as caras passam na vossa cara, os braos dos que batucam es-premem vossos braos, as gargantas que cantam exi-gem de vossa garganta o canto da igualdade, liberda-de, fraternidade. De repente em redor o asfalto se esva-zia e os sambas se afastam em torno, e vedes o cho molhado, e ficais tristes, e tendes vontade de chorar de desespero.

    Mas outra vez, no pra nunca, a massa envolve tudo. Pequenos cordes que cantam marchinhas es-goeladas correm empurrando, varando a massa densa e ardente, e no coreto os clarins da banda militar esta-lam.

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  • Febrnio fugiu do Manicmio no chuvoso dia de sexta-feira, 8 de fevereiro de 1935... Foi preso no dia 9 tarde. Neste dia de domingo, 10 de fevereiro pela manh, o Dirio de Notcias publica na primeira pgi-na da segunda seo:

    "A sensacional fuga de Febrnio, do Manicmio Judicirio, onde se achava recolhido, desde 1927, constituiu um verdadeiro pavor para a populao ca-rioca. A sua priso, ocorrida na tarde de ontem, veio trazer a tranqilidade ao esprito de todos, inclusive ao das autoridades que o procuravam."

    Que reprter alarmado! Injuriou, meus senhores, o povo e as autoridades. Encostai-vos nas paredes, po-pulao! Mas eis que na noite do dia chuvoso de do-mingo, 10 de fevereiro, ouvimos:

    "Bicho Papo Bicho Papo Cuidado com o Febrnio Que fugiu da Deteno...". Isso ouvimos no Largo do Machado, e eis que o

    nosso amigo Miguel, que preferiu ir batucar em Dona Zulmira, l tambm ouviu, naquele canto glorioso de Andara, a mesma coisa. Como se esparrama pelas massas da cidade esparramada essa improvisao de um dia? As patas inumerveis batem no asfalto com desespero. O asfalto porventura no vosso eito, es-cravos urbanos e suburbanos?

    A cuca ronca, ronca, ronca, estomacal, horrvel, um ronco que um soluo, e eu tambm soluo e can-to, e vs tambm fortemente cantais bem desentoados com este mundo. A cuca ronca no fundo da massa es-

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  • cura, dos agarramentos suados, do batuque pesado, do bodum. O asfalto est molhado nesta noite de chu-voso domingo. Ameaa chuva, um trovo troveja. A cuca de So Pedro tambm est roncando. O cu tam-bm sente fome, tambm ronca e solua e sua de amargura?

    Nesta mormacenta segunda-feira, 11 de fevereiro, um jornal diz que "a batalha de confete do Largo do Machado esteve brilhantssima".

    Reprter cretinssimo, sabei que no houve l nem um s miservel confete. O povo no gastou nada, exceto gargantas, e dores e almas, que no custam di-nheiro. Eis que ali houve, e eu vi, uma batalha de ron-cos e soluos, e ali se prepararam batalhes para o car-naval nunca jamais "a grande festa do Rei Momo" porm a grande insurreio armada de soluos.

    Rio, fevereiro, 1935.

    m>.

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  • O CONDE E O PASSARINHO

    Acontece que o conde Matarazzo estava passeando pelo parque. O conde Matarazzo um conde muito velho, que tem muitas fbricas. Tem tambm muitas honras. Uma delas consiste em uma preciosa medalhi-nha de ouro que o conde exibia lapela, amarrada a uma fitinha. Era uma condecorao.

    Ora, aconteceu tambm um passarinho. No par-que havia um passarinho. E esses dois personagens o conde e o passarinho foram os nicos da singular histria narrada pelo Dirio de So Paulo.

    Devo confessar preliminarmente que, entre um conde e um passarinho, prefiro um passarinho. Toro pelo passarinho. No por nada. Nem sei mesmo ex-plicar essa preferncia. Afinal de contas, um passari-nho canta e voa. O conde no sabe gorjear nem voar. O

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  • conde gorjeia com apitos de usinas, barulheiras enor-mes, de fbricas espalhadas pelo Brasil, vozes dos operrios, dos teares, das mquinas de ao e de carne que trabalham para o conde. O conde gorjeia com o dinheiro que entra e sai de seus cofres, o conde um industrial, e o conde conde porque industrial. O passarinho no industrial, no conde, no tem fbricas. Tem um ninho, sabe cantar, sabe voar, apenas um passarinho e isso gentil, ser um passarinho.

    Eu quisera ser um passarinho. No, um passari-nho, no. Uma ave maior, mais triste. Eu quisera ser um urubu.

    Entretanto, eu no quisera ser conde. A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu no preten-der ser conde. No amo os condes. Tambm no amo os industriais. Que amo eu? Pierina e pouco mais. Pierina e a vida, duas coisas que se confundem hoje, e amanh mais se confundiro na morte.

    Entendo por vida o fato de um homem viver fumando nos trs primeiros bancos e falando ao mo-torneiro. Ainda ontem ou anteontem assim escrevi. O essencial falar ao motorneiro. O povo deve falar ao motorneiro. Se o motorneiro se fizer de surdo, o povo deve puxar a aba do palet do motorneiro. Em geral, nessas circunstncias, o motorneiro d um coice. Ento o povo deve agarrar o motorneiro, apoderar-se da manivela, colocar o bonde a nove pontos, cortar o motorneiro em pedacinhos e com-lo com farofa.

    Quando eu era calouro de Direito, aconteceu que uma turma de calouros assaltou um bonde. Foi um assalto imortal. Marcamos no relgio quanto nos deu

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  • na cabea, e declaramos que a passagem era grtis. O motorneiro e o condutor perderam, rpida e violenta-mente, o exerccio de suas funes. Perderam tambm os bons. Os bons eram os smbolos do poder.

    Desde aquele momento perdi o respeito por todos os motorneiros e condutores. Aquilo foi apenas uma boa molecagem. Pacincia. A vida tambm uma imensa molecagem. Molecagem podre. Quando pode-rs ser um urubu, meu velho Rubem?

    Mas voltemos ao conde e ao passarinho. Ora, o conde estava passeando e veio o passarinho. O conde desejou ser que nem o seu patrcio, o outro Francisco, o Francisco da Umbria, para conversar com o pas-sarinho. Mas no era o Santo Francisco de Assis, era apenas o conde Francisco Matarazzo. Porm, ficou en-cantado ao reparar que o passarinho voava para ele. O conde ergueu as mos, feito uma criana, feito um santo. Mas no eram mos de criana nem de santo, eram mos de conde industrial. O passarinho desviou e se dirigiu firme para o peito do conde. Ia bicar seu corao? No, ele no era um bicho grande de bico forte, no era, por exemplo, um urubu, era apenas um passarinho. Bicou a fitinha, puxou, saiu voando com a fitinha e com a medalha.

    O conde ficou muito aborrecido, achou muita graa. Ora essa! Que passarinho mais esquisito!

    Isso foi o que o Dirio de So Paulo contou. O passarinho, a esta hora assim, est voando, com a medalhinha no bico. Em que peito a colocareis, irmo passarinho? Voai, voai, voai por entre as chamins do

  • conde, varando as fbricas do conde, sobre as mqui-nas de carne que trabalham para o conde, voai, voai, voai, voai, passarinho, voai.

    Rio, fevereiro, 1935.

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  • A LUA E O MAR

    A lua domina o mar. Quando a lua cheia, a mar baixa vai mais baixo do que nunca. A praia no tem palmeiras, e isso faz uma falta muito triste. Ns pos-suamos antigamente dois coqueiros. Ficavam atrs das canoas. Em noites de lua cheia as suas folhas de prata verde danavam na areia branca. Mas o capito em f-rias gostava de fazer exerccios de tiro ao alvo. Atirou nas palmeiras. Atirou no peito das duas palmeiras ir-ms. Elas durante duas noites ainda agitaram suas palmas no ar, ainda reagiram contra o vento. Mas a seiva do peito escorria pelos troncos longos. As balas do capito poderiam ter ferido aqueles troncos. As pal-meiras nada sofreriam. Poderiam ter cortado a haste de uma palma. Uma palma despencaria danando ao vento e o vento ainda a arrastaria sobre a areia branca

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  • e solta, at que as folhas fossem enterradas na areia morena e molhada. Mas o capito atirou no peito da palmeira mais alta.

    A bala penetrou ali como em carne tmida. A seiva veio escorrendo do fundo do peito. Quem nunca estudou botnica sabe que palmeira da beira da praia tem um corao verde.

    A seiva branca invade aquele corao e o corao verde palpita. A palmeira mais alta, aquela que mais de perto sabia danar para a lua, que mais longe fazia danar na areia alva a sua sombra, a palmeira mais alta teve o corao malferido. As palmas altivas que lutavam contra o nordeste mais bravo, e onde o terral que ia noite para o meio do mar dava o ltimo beijo na vida da terra, pouco a pouco enfraqueceram e mur-charam. O tronco alto e fino no teve mais vida para continuar erguido, e o sudoeste o derrubou numa tar-de de chuva. A palmeira menor acompanhou sua irm, que tambm ela tinha o corao ferido.

    Agora ali os pescadores vo estender suas redes. atrs do pouso das canoas velhas. O capim cheio de espinhos agoniza na areia salgada. Ali podereis ver ainda dois pequenos tocos. Ali tnhamos duas palmei-ras. E elas danavam para a lua.

    A lua cheia. Armando me fala da lua do Cear. Armando jamais voou sobre as ondas em jangada, em noite de lua. Porm, ele fala com mgoa da lua do Cear. Ele tem uma namorada muito loura e fina. A namorada mora em uma rua sossegada. Rua de bairro sossegado do Rio de Janeiro. Armando, em noite de lua, conversou com a namorada na rua dormente. As

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  • pequenas rvores urbanas, habitualmente to prosai-cas, to funcionrias, estavam lricas. Armando idem. Os cabelos louros da namorada de Armando, que tal-vez fossem apenas de um louro vneto, estavam plati-nados sob o luar. Muito, muito raro, passava um pas-sante. Os cabelos eram de prata, eram de leite, eram de ouro, de seda? Cintilavam, o luar escorria neles, e eles beijados pelo luar se cercavam de um doce nimbo. A conversa foi longa e tmida. Armando disse tanta coisa sobre a lua do Cear. O Cear tem uma lua especial. No h nenhuma gua no cu, a lua brilha no ar seco, as estrelas se multiplicam por mil e se dividem por um e assim formam uma espcie de luar suple-mentar. Armando pretendia que na lua nova o brilho das estrelas fazia sombra ntida na praia. Eu indaguei se eram assim to claras as estrelas cearenses. Arman-do suspirou dizendo que a lua do Cear brilhava tan-to e tanto ai! que em chegando a lua nova ainda havia no ar um resto do luar da lua cheia. Seria, tal-vez, delrio de Armando. Mas no o acuseis, criatu-ras. A sua namorada ao seu lado na rua dormente era loura e t inha o talhe da palmeira como Iracema e Sula-mita. Mas a sua pele no tinha a cor trigueira do corpo de Iracema, de Sulamita e das palmeiras da Bblia e do Brasil. A sua pele tinha a cor da seiva das palmeiras, era muito alva, a cor do luar. E preciso perdoar Ar-mando, criaturas, pois sua namorada estava vestida de azul. Assim em delrio ele disse que a jangada voava sobre as ondas. As velas pandas voavam nas espumas para o mar alto. A jangada tanto deslizou que come-ou a se erguer das guas e foi voando no ar, voando pelo cu. Parecia uma gara que voasse no alto-mar

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  • entre o mar e a lua. Mas ai! as garas voam de preferncia sobre os brejos.

    A jangada de velas brancas est voando. Arman-do est na rua dormente namorando, e a conversa longa e tmida, e a namorada se vestiu de azul, e seus cabelos so de ouro desmaiado, espuma de leite, prata, seda?

    O fato que, quanto a ns, j no possumos ne-nhuma palmeira. Apenas l vereis dois pobres tocos, no pouso das canoas velhas, onde os pescadores esten-dem suas redes e o capim cheio de espinhos agoniza na areia salgada.

    Mas a lua sempre lua. A mar comeou a descer j noite. A praia cresceu tanto que parece infinita. A mar to baixinha solua longe entre pedras cobertas de algas. Como est clarssima de luar a praia! Que mar humilde e distante!

    A lua domina o mar. Ela domina tudo. Armando sabe coisas a respeito de sua magia. Armando, me empresta esses olhos lricos, no fundo dessas olheiras, que eu preciso de magia. Eu quero ver ao luar as palmeiras mortas se erguerem na minha praia. Se erguerem piedosamente ao luar, at que as palmas de prata verde bem altas possam danar para a lua. Eu quero essa viso das palmeiras irms ressuscitando no cu da noite enluarada.

    doloroso constatar, Armando, que isso impos-svel no momento. Voc agora tem de ir dar o planto no hospital e eu, depois deste, preciso escrever outro artigo, para ganhar tem-tem.

    Rio, maro, 1935.

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  • CONTO HISTRICO

    E l e acabou se hospedando em uma penso do Catete. A rua comeava na praia e ia findar para l da Rua do Catete, em Bento Lisboa, debaixo do morro. O quarto tinha gua corrente e era muito quente pela tarde. A janela dava para um muro.

    Morava sozinho naquele quarto. Em vista disso logo se disse, na penso, que ele devia ser estudante, fi-lho de algum fazendeiro rico. Era estudante, no tinha pai nem me, e no era rico, era remediado. Freqen-tava a Faculdade de Direito, em um pardieiro sujo e escuro da Rua do Catete.

    Fazia calor. Ele vestia a roupa de banho compra-da na vspera, o roupo novinho. Naquele tempo, em 1935, era muito animado o banho no Flamengo. A

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  • prainha entre o muro e o mar ficava espremida, cheia de gente. Uma prainha pssima. Sempre a gua suja de leo, um leo preto e pesado que pegava na pele. Devido posio do lugar na baa ventava pouco: quem tomava banho de sol ficava suado. A areia era suja e aos domingos era to difcil andar pela praia sem pisar em algum banhista. As mulheres vinham pa-ra o banho vestidas com a vestimenta ento em voga, denominada mai. Essa vestimenta deixava-lhes as pernas livres, mas vedava o corpo at acima dos seios. Os homens usavam simples cales de l. Alis para o trnsito das casas para a praia era exigido pela polcia de ento o uso de grossos roupes. As pessoas mais pobres, podiam, entretanto, usar palets de pijamas.

    A praia era de tal modo acanhada que, quando acontecia haver grande concorrncia e a mar estar re-lativamente alta, havia dificuldade para se deixar o roupo em um lugar seguro,

    Pedro no conhecia ningum e estava sentado na areia com um ar aborrecido, pois o mormao o obriga-va a apresentar a cara em estado de careta permanen-te, os olhos apertados. Um sujeito passou sacudindo o roupo sujo de areia e jogou areia em seus olhos. Um menino que tinha sado d 'gua respingou nele. Um dos quatro rapazes que jogavam uma pequena bola de borracha acertou com a bola o seu nariz. Esses inci-dentes fizeram com que Pedro tivesse a impresso de ser um intruso indesejvel naquela praia.

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  • 81

    Olhava as mulheres. Duas moas de maio preto, uma de chapu de palha, conversavam encostadas ao muro. Naquele tempo existiam as chamadas "moas" . Eram mulheres que, embora j fossem aptas para a vida normal, se conservavam em recato durante mui-tos anos. Isso era devido ao hbito do casamento, um dos mais curiosos e brbaros costumes da poca. Quem quiser estudar mais detidamente essa questo pode ler as obras de nosso jovem historiador Wells, que procura retratar com fidelidade o atraso daqueles recuados tempos.

    As " m o a s " assim se conservavam at os vinte e mesmo vinte e cinco anos. A histria de ento registra casos de mulheres que, embora fossem ss e bem pro-porcionadas, assim permaneciam toda a vida, por superstio religiosa ou motivos econmicos.

    Entre os homens j no havia semelhante hbito, embora eles fossem vtimas de muitas restries mo-rais. Disso decorria que o nmero de homens teis era sempre muito superior ao nmero de mulheres teis. preciso no esquecer ainda que o chamado casamento era perptuo, o que agravava ainda mais as ridculas condies da vida humana naqueles tempos. As mu-lheres eram muito procuradas pelos homens, que para isso usavam de variados e engraados artifcios. Os ho-mens ricos ( preciso recordar que naquele tempo havia homens ricos e pobres. Os primeiros eram donos das terras, das casas e das mquinas, e os segundos vi-

  • viam em condies miserveis. Assim sendo, os primei-ros tinham grande interesse em manter o estado de coisas, e para isso faziam e executavam leis como a chamada "Lei Rao" de 1935, no Brasil) os homens ricos podiam dispor com facilidade das mulheres, pois para isso tinham no apenas o chamado "dinheiro", como as mquinas, ainda rudimentares, denomina-das automveis, muito do agrado das mulheres.

    Pedro olhava as mulheres. Em sua frente uma adolescente, sentada na areia com os braos para trs, deixava entrever, pelo decote do mai, grande parte do seu pequeno seio esquerdo, muito alvo, em contraste com as coxas, o rosto, a garganta e o colo tostados pelo sol. Pedro sentiu uma pequena moleza pelo corpo e por isso que esticou o corpo e se deitou. O sol aparece-ra entre as nuvens leitosas e pesadas. Ele olhou para o cu. Meio tonto, com a vista escura, o corpo suado, os cabelos sujos de areia, levantou-se.

    Sem saber, Pedro amava o seu Catete. No Catete florescia e se agitava uma pequena burguesia instvel e inquieta. Todas as penses, absolutamente familiares e suspeitas. Um autor da poca assim descreve o am-biente:

    "O Catete o nosso bairro mais nitidamente pe-queno-burgus. Nele temos famlias, penses e rendez-

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  • vous. Quando faz muito calor no Catete, noite, as mulheres saem para as ruas, e ficam assanhadas para c e para l, como baratas. A comparao prpria porque h muitas baratas nas penses do Catete. Fun-cionrios, professores, pequenos comerciantes, estu-dantes, mulheres dbias, toda essa gente vive com uma certa tristeza. H maridos enganados. A os bondes es-trondam com mais fora pela rua coalhada de cafs pelas esquinas, casas sujas, vendas de mveis, engra-xates, garagens, lojas apertadas e quitandas cheias de frutas, galinhas fedendo em capoeiras, verduras, ovos e moscas. Nas vilas discretas as famlias vivem sob o patrocnio dos algarismos romanos: I, II, III, IV e assim por diante.

    A vida medocre, mas tem vida. H histrias tristes e cmicas, e todas as histrias do Catete tm um sabor especial, um sabor prprio do clima do Catete. Os estudantes pem no prego os seus smokings, rece-bem 35$ e pagaro 42$ quando chegar a mesada. H mulheres de trinta e quatro anos que so tristes e sem-vergonhas e que vivem sempre em dificuldades. H mulheres srias que esperam o bonde sem olhar para os lados. Porteiros e garons de hotis, moas que tm um namorado na vizinhana e outro em Botafogo e telefonam noite e dia. Os telefones do Catete esto sempre ocupados. H aougues com anncios em gs non vermelho, rdios nas salas de jantar das penses, cadeiras de vime nos pequenos parques dos hotis remediados. H uma falta e principalmente uma insuficincia de dinheiro crnica em todas as ruas. O Catete um bairro intermedirio. Seus habitantes sen-

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  • tem-se satisfeitos porque esto perto da cidade e perto do mar. s 7 ou s 7,30 o Catete janta e janta mal, pratinhos com um ar importante e de fraco poder ali-mentcio, pratinhos bestas das penses familiares.

    s vezes, se faz calor, o Catete fermenta com uma grande e mesquinha fermentao humana. Falta gua nos chuveiros. Os estudantes esforam-se para conse-guir convites para os bailes nos clubes. Na madrugada dos domingos e segundas-feiras, os estudantes vindos dos bailes saltam dos bondes no Largo do Machado, vestidos de smoking. O smoking que est com um sem-pre do outro. Quase todos trazem os colarinhos duros desbotados e os laos das gravatinhas pretas desfeitos, e vo comer no Lamas ou em botequins sujos. So ri-dculos e bomios assim vestidos na madrugada que agoniza com as lmpadas eltricas, comendo fils, be-bendo cerveja. J no se pode arranjar mulata nenhu-ma em nenhuma esquina. Os que beberam cerveja ba-rata sentem um lirismo fermentando diante da rua escura. Longe vem um bonde iluminado e barulhento. Na esquina h um poste com o sinal vermelho, sangue na penumbra grossa. Alguns estudantes caminham at a praia, para ver o sol nascer. Na praia j esto alguns banhistas, os que querem ser atletas, os que trabalham desde s 7 horas, os que acreditam que o banho de mar cedinho faz muito bem sade. s 7 horas chegaro famlias de judeus com cara de sono. Mas os estudan-tes que foram ver o sol nascer voltam enjoados, cansa-dos, antes do sol nascer. As guas das ondas fracativas e doces mugem debaixo das pedras do Flamengo. O mar parece um boi acordando e espelha os primeiros

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  • vermelhes do cu do outro lado da baa, dos lados de Jurujuba, das montanhas e morros baixos do litoral."

    Essa interessante narrativa da poca ajudar o leitor a compreender o ambiente em que Pedro vivia.

    Sobre a questo de transportes convm assinalar, na transcrio acima, o trecho que diz "o Catete um bairro intermedirio". que o Catete ficava entre a cidade e outros bairros. No era "fim de l inha".

    As pessoas menos remediadas de Laranjeiras, Botafogo, guas Frreas e Gvea passavam em bon-des, vindas tambm dos bairros elegantes de fora da baa. Outras passavam para a cidade em nibus e au-tomveis, que duas vezes por semana atropelavam um habitante do Catete ou do Flamengo.

    Essas informaes, to exatas quanto possvel, colhemos em jornais e livros da poca. Elas serviro aos leitores para verificarem o interesse que deve ter a histria sobre A Vida de um Homem em 1935, que publicaremos breve, edio do Centro de Estudos His-tricos.

    Rio, maro, 2035.

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  • CHEGOU O OUTONO

    N o consigo me lembrar exatamente o dia em que o outono comeou no Rio de Janeiro neste 1935. Antes de comear na folhinha ele comeou na Rua Marqus de Abrantes. Talvez no dia 12 de maro. Sei que estava com Miguel em um reboque do bonde Praia Verme-lha. Nunca precisei usar sistematicamente o bonde Praia Vermelha, mas sempre fui simpatizante. o bonde dos soldados do Exrcito e dos estudantes de Medicina. Raras mulatas no reboque; liberdade de co-locar os ps e mesmo esticar as pernas sobre o banco da frente. Os condutores so amenos. Fatigaram-se natu-ralmente de advertir soldados e estudantes; quando acontece alguma coisa eles suspiram e tocam o bonde. Tambm os loucos mansos viajam ali, rumo do hosp-cio. Nunca viajou naquele bonde um empregado da

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  • City Improvements Company: Praia Vermelha no tem esgotos. Oh, a City! Assim mesmo se vive na Praia Vermelha. Essenciais so os esgotos da alma. Nossa pobre alma inesgotvel! Mesmo depois do corpo dar com o rabo na cerca e parar no buraco do cho para ficar podre, ela, segundo consta, fica esvoaando pra c, pra l. Umas vo ouvir Francesca da Rimini decla-mar versos de Dante, outras preferem a harpa d Santa Ceclia. A maioria vai para o Purgatrio. Outras perambulam pelas sesses espritas, outras meia-noi-te puxam o vosso p, outras no firmamento viram es-trelinhas. Os soldados do Exrcito no podem olhar as estrelas: lembram-se dos generais. L no cu tem trs estrelas, todas trs em carreirinha. Uma minha, outra sua. O cantor tem pena da que vai ficar sozinha. Que faremos, meu grande e velho amor, da estrela disponvel? Que ela fique sendo propriedade das almas errantes. Nossas pobres almas erradas!

    Eu ia no reboque, e o reboque tem vantagens e desvantagens. Vantagem poder saltar ou subir de qualquer lado, e tambm a melhor ventilao. Desvan-tagem o encosto reduzido. Alm disso os vossos joelhos podem tocar o corpo da pessoa que vai no ban-co da frente; e isso tanto pode ser doce vantagem como triste desvantagem. Eu havia tomado o bonde na Praa Jos de Alencar; e quando entramos na Rua Marqus de Abrantes, rumo de Botafogo, o outono in-vadiu o reboque. Invadiu e bateu no lado esquerdo de minha cara sob a forma de uma folha seca. Atrs dessa folha veio um vento, e era o vento do outono. Muitos passageiros do bonde suavam.

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  • No Rio de Janeiro faz tanto calor que depois que acaba o calor a populao continua a suar gratuita-mente e por fora do hbito durante quatro ou cinco semanas ainda.

    Percebi com uma rapidez espantosa que o outono havia chegado. Mas eu no tinha relgio, nem Miguel. Tentei espiar as horas no interior de um botequim, na-da conseguindo. Olhei para o lado. Ao lado estava um homem decentemente vestido, com cara de possuidor de relgio.

    O senhor pode ter a gentileza de me dar as ho-ras?

    Ele espantou-se um pouco e, embora sem nenhum ar gentil, me deu as horas: 13,48. Agradeci e mur-murei: chegou o outono. Ele deve ter ouvido essa frase to lapidar, mas aparentemente no ficou comovido. Era um homem simples e tudo o que esperava era que o bonde chegasse a um determinado poste.

    Chegara o outono. Vinha talvez do mar e, passan-do pelo nosso reboque, dirigia-se apressadamente ao centro da cidade, ainda ocupado pelo vero. Ele no vinha soluando les sanglots longs