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Com essa variedade, queremos apresentar várias facetas desse gênero literário aos nossos leitores, sem deixar de lembrar que esta edição vem acompanhada de um CD que traz uma coletânea de contos para você ouvir com os alunos e enriquecer o trabalho em sala de aula.

Mais e novas açõesSe 2010 é ano de Olimpíada é importante

dizer que 2009 foi o ano em que as equipes da Olimpíada de Língua Portuguesa Escre-vendo o Futuro realizou um grande número de ações de formação em todos os Estados brasileiros. As ações envolveram especia-listas de quase 30 universidades públicas em todas as 27 unidades da federação, além de centenas de técnicos e professores das secretarias estaduais e municipais de Edu-cação. Intenso trabalho conjunto, do qual participaram o Ministério da Educação, a Fundação Itaú Social e o Cenpec, para in-cluir mais escolas, professores e estudantes nas atividades da Olimpíada. Essas ações levaram ainda mais qualidade ao trabalho das escolas públicas do país.

E, para colaborar com todo esse processo, nós de Na Ponta do Lápis queremos conhecer a opinião de todos os professores que partici-pam da Olimpíada. Encartada nesta revista há uma carta-resposta que, depois de preenchi-da, deve ser postada no correio. Não é preciso pagar nada, o envio é gratuito. Para nós, é uma grande oportunidade de manter uma comuni-cação mais direta com você, educador, razão de ser desse grande projeto.

Boa leitura e bom trabalho!

2EnTREvISTa

Tatiana Belinky

6REpoRTaGEM

O tempo não para

8ESpECIaL

O conto se apresenta

10páGIna LITERáRIa

O mendigo Sexta-Feira jogando no Mundial

12TIRanDo DE LETRa

Experiência proveitosa

14DE oLho na pRáTICa

De conto em conto

30ÓCuLoS DE LEITuRa

Contos para “repassar” o tempo

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Como foi sua chegada ao Brasil? Tatiana – Nasci em Petrogrado, atual São Petesburgo, na Rússia, em 18 de março de 1919. Meus pais eram da Letônia, filhos de gente abastada. Meus avôs eram madeirei-ros, exportavam pinho-de-riga, madeira ven-dida para o mundo inteiro. Mas, em 1929, as dificuldades econômicas e políticas se agra-varam e a minha família resolveu emigrar. Viemos para o Brasil sem nada. Minha mãe era cirurgiã-dentista e veio com seus instru-mentos para trabalhar. Eu trazia um livro e uma correntinha de ouro com uma medalhi-nha de Moisés barbudo, que eu pensava ser meu avô. O livro era de contos do grande es-critor [Ivan] Turguenev. Tenho esse livro até hoje, está se desmanchando.

A primeira paixão, no Brasil, veio antes de o navio entrar no porto. Foi a visão panorâmi-ca do Rio de Janeiro: Copacabana, Pão de Açúcar, não havia a estátua [do Cristo Reden-tor]. Tudo natural, lindo! Eu conhecia o mar Báltico [na Letônia], bonito, com suas dunas e pinheirais. Mas o Rio de Janeiro era comple-tamente diferente, de cair o queixo. Ficamos uma semana, depois voltamos para o navio, que seguiu até Santos, onde pegamos o trem montanha acima, passando por túneis, que eu nunca tinha visto. Chegamos a São Paulo. Aqui havia pontes que não tinham água em-baixo, eu achava muito estranho. Onde morá-vamos, em Riga [capital da Letônia], da nossa janela víamos o rio por onde saía o pinho-de- -riga, nas barcas. Havia rios grandes e pontes. E aqui tinha pontes que não tinham água em-baixo. Era o Viaduto do Chá, todo iluminado à noite. Em certa época do ano as mariposas

eram atraídas para aquela iluminação, quei-mavam e atapetavam o chão. A gente pisava, eu me recordo, até crepitava. Imagine, para uma criança, como tudo isso foi curioso, ines-quecível.

E os livros? Sempre estiveram presentes em sua vida?Tatiana – Na minha casa todo mundo lia. Nunca vi meu avô e minha avó sem livro na mão. Jamais me vi sem livros. Aos 4 anos eu já sabia ler, primeiro em russo, depois em ale-mão. Meu pai lia e contava histórias, me ofe-recia cubos de letras. Brinquei muito com eles e logo comecei a perguntar: “O que é isso?”. Meu pai dizia: “B, A, juntando dá BA”. Era fas-cinante. Comecei a ler cedo. Lia todos os meus livros. Logo comecei a escrever tam-bém. Mas era canhota e espelhava as letras que eu conhecia, automaticamente. E meu pai nunca disse: “Não pode!”. Ele só disse para tentar com a outra mão. E eu tentei. Assim fiquei ambidestra. Mas escrevo com a direita até hoje, com a letra igual àquela da infância. As editoras aceitam meu manuscrito. Elas têm digitadores, sabem ler o que escrevo, e se não entendem alguma coisa me telefonam perguntando.

E o encantamento com a leitura?Tatiana – Desde criança meus pais me pro-porcionaram muito palco, muito teatro, mui-tos livros, muita poesia. Era leitura, ópera, balé, opereta, concerto de música, orques-tras. Então eu já tinha uma bagagem muito importante para a leitura: a estética, a ética, o humor, a poesia.

Tatiana Belinky recebeu Na Ponta do Lápis na casa em que vive há mais de cinquenta anos, no

bairro do Pacaembu, em São Paulo. Sem esperar a primeira pergunta, abriu seu baú de histórias.

Desde os 10 anos no Brasil, essa brasileira nascida na Rússia há noventa anos falou de sua

relação com a palavra, com a escrita, com o aprender, com as crianças, com os idiomas – ela fala

seis – e, lógico, com as histórias. A escritora foi respondendo às perguntas como quem narra

uma história, deixando os entrevistadores a imaginar paisagens da Letônia, do Rio de Janeiro

e de São Paulo de oitenta anos atrás. Sem falar das brincadeiras, jogos de palavras e outros

encantamentos também presentes nos livros que ela escreveu ou traduziu. Conheça então um

pouco da vida e das opiniões de uma das mais queridas autoras de histórias infantis do país.

Tantas palavras, tantas histórias...Luiz Henrique Gurgel

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Como disse aquele professor de literatura francês, Daniel Pennac: “O verbo ler não su-porta o imperativo. É uma aversão que com-partilha com outros: o verbo amar… o verbo sonhar…” (Pennac, Como um romance, 1996, p. 11). Há coisas que não se manda fazer, elas acontecem. Leitura não é tarefa, castigo. A lei-tura tem que ser prazer. Nos dez direitos do leitor, Pennac afirma que ele tem o direito de não ler se não quiser; de ler de trás para diante; de começar do meio, e por aí vai. O leitor é livre. Você lê para você mesmo, para seu diverti-mento, para sua emoção, não tem obrigação de coisa nenhuma. Você começa a ler e vai logo perceber que é bom. Uma história bem contada pode fazer alguém chorar, rir, prender o leitor.

E como foi seu contato com a língua por­tuguesa?Tatiana – A minha infância terminou em São Paulo. Quando cheguei aqui já era mocinha, pré-adolescente, e eu falava três línguas: o russo, o alemão e o letão. O português é a mi-nha quarta língua. Aqui aprendi português e logo depois o inglês e o francês, na escola. E quem já fala três línguas pega de letra, de ouvido, se adapta logo e não tem medo, nem bloqueio para a coisa. Não acha que é difícil falar outra língua.

Logo comecei a ler. Por estranho que pare-ça, o primeiro texto em português que caiu na minha mão foi de Monteiro Lobato. E eu nem sabia quem era, nem sabia que existia. Não era um livro. Era um folheto do Laboratório Fontoura sobre um medicamento. Monteiro Lobato escreveu um conto sobre aquele caipi-ra, o Jeca Tatuzinho, que ficava doente porque

andava descalço. Era uma história muito en-graçada. O caipira, o Jeca Tatuzinho, ficou tão convencido do problema que até nas galinhas ele punha botina. E quando fui para a televi-são fiz a adaptação desse conto. Nessa histó-ria a galinha andava de botina.

E depois do folheto do laboratório?Tatiana – Aí foi um livro atrás do outro, na biblioteca. A primeira escola que frequentei aqui era alemã. Meus pais achavam que era bom, eu sabia alemão, não ia perder a língua, e seria mais fácil antes de aprender o portu-guês. Eu gostei da biblioteca da escola. Li bons romances, poesia. Mas não gostei da es-cola. Eles batiam nas crianças, davam tapa.

Que negócio de dar tapa na cara de criança quando fazia alguma coisa que não devia? E meu irmãozinho, três anos mais novo que eu, estava aprendendo, era a primeira escola dele. E não sei o que ele fez de erra-do, algum pecado do tipo escrever com lápis em vez de tinta, qualquer coisa assim, e a professora o cha-mou e deu-lhe um tapa. No recreio, ele me contou, chorando. Eu disse: “Ah, ela fez? Amanhã nós não esta-remos aqui. Espera a próxima aula, você pega as suas coisas, nós va-mos para casa e não voltamos mais”. Dito e feito. Contei para o meu pai e para a minha mãe, que ficaram de cabelo em pé. Eles nunca levanta-

vam a mão para a gente. A voz, sim, porque a minha mãe tinha uma voz poderosa, mas meu pai era todo suave. Não voltamos no dia se-guinte e logo depois fomos parar na escola americana, no Mackenzie, que era um paraíso perto da outra. A primeira coisa que eu fiz quando cheguei lá foi correr para a biblioteca. Era enorme, um prédio de três andares. Entrei, escolhi dois livros para ler em casa. A biblio-tecária não deixou: “Não são livros de crian-ça”. Eu era criança, mas um tipo de criança que lê. “Isso não é bom para você, é impró-prio!” Aí eu disse: “Se é impróprio, como é que está numa escola?”. “Não é para meni-na”, ela respondeu. “Ah, tem livro de menino e de menina? Isso eu não sabia.” E eu só pude tirar livros de outra estante. Peguei outros, levei para casa e odiei: eram muito bobos, muito primários para mim. Em casa me quei-xei ao meu pai. Ele era o meu confidente: “Fui

Jamais me vi sem livros. Aos 4 anos eu já sabia ler, primeiro em russo, depois em alemão. Meu pai lia e contava histórias, me oferecia cubos de letras.

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obrigada a tirar livro numa estante de boba-gens, o que eu faço?”. Meu papai disse: “Você não faz, faço eu”. Sentou-se e escreveu, em perfeito português, um bilhete para a biblio-tecária e para a diretora: “Minha filha, Tatiana, está autorizada a escolher e levar qualquer li-vro da biblioteca que ela queira”. Foi um es-cândalo: “Como deixa a menina pegar livros impróprios?”. A última palavra foi do pai, nin-guém subestimou. Aprendi português assim. Estou falando a língua desde 1929.

A senhora tem dito que aprender é emo­cionante. O que isso significa?Tatiana – Uma vez, há muitos anos, uma gran-de professora de literatura da Universidade de São Paulo, Nelly Novaes Coelho, numa pa-lestra que eu estava fazendo, me perguntou: “Tatiana, por que você acha que as crianças não gostam de estudar?”. Eu disse: “Porque elas não querem estudar, elas querem apren-der, que é uma coisa muito diferente”. Não é estudando que você aprende. A criança quer aprender o mundo. Com ouvidos, olhos, mãos, com tudo. Aprender, aprender, aprender. Ela não quer ficar decorando. Isso é horrível.Eu vou contar uma historinha: “Quando meu neto mais velho tinha 4 anos – hoje tem 44 –, eu dei de presente a ele uns cubinhos com letras, como o meu pai deu para mim. Pensei, vamos ver o que é que ele faz. Eu não disse nada, apenas ofereci o brinquedo. No terceiro dia ele já estava perguntando o que era ba, be, bu. Logo ele estava formando palavrinhas: babá, nenê, papa, titia. Coisas simples. Depois de um mês, mais ou menos, eu quis fazer um teste.

No tapete eu formei uma palavra grande com aqueles cubinhos. Várias sílabas, uma palavra comprida: Tatiana. “Roninho, você consegue ler esta palavra?” Eu não disse que era meu nome. Ele olhou a palavra, olhou para mim, apontou com o dedinho e leu: vovó.

Como nascem suas histórias?Tatiana – As crianças perguntam de onde tiro inspiração para tantas histórias e versinhos. Eu digo: “Olha, inspiração eu tiro do ar [Tatiana

inspira e solta o ar pelo nariz]. Porém, as ideias para escrever e contar algu-ma coisa, eu tiro só olhando para vo-cês.” Eu já tenho várias histórias na cabeça. Eu tenho um livro chamado Diversidade, que as crianças gostam muito, é todo em versinhos: “Um, pre-guiçoso/Outro, animado/Um é falan-te/Outro é calado/ Olho redondo/ Olho puxado/ Nariz pontudo/Ou arrebita-do”. Fala das diferenças, cabelo loiro, cabelo escuro, cabelo crespo, cabelo liso, nariz arrebitado, nariz achatado. Enfim, todas as diferenças. E no final eu dou a moral da história: tudo é bo-nito e diferente. Eu invento algumas coisas, mas, prin- cipalmente, eu observo muito. Em no-venta anos acumulei muito assun-

to e tenho boa memória. Qualquer coisa me lembra outra. Então, não fico aí procurando palavras no bolso. Estão prontas, rápidas. Eu funciono assim. Eu penso depressa, falo de-pressa, leio depressa, reajo depressa.

Em 1952, a senhora e seu marido, Júlio Gou­ veia, fizeram a primeira adaptação para a televisão da obra de Monteiro Lobato. Como foi essa experiência?Tatiana – Juntou a fome com a vontade de co-mer. Eu e Júlio gostávamos das mesmas coi-sas – teatro, música – e ele era admirador de Monteiro Lobato, como eu. Costumo dizer que nosso casamento foi a união de duas estan-tes: a dele com a minha. Ele também lia muito. Era poeta. Escrevia muito bem. Era feliz! Então tínhamos muito que conversar. E nosso namo-ro foi rápido. Comecei a me envolver com o Júlio, que era médico, psiquiatra e educador, e nos casamos em 1940. Monteiro Lobato não chegou a ver o nosso trabalho. Ele morreu em 1948. Antes, nós o conhecemos oficialmente. Estivemos na casa dele, ele esteve na nossa

A criança quer aprender o mundo. Com ouvidos, olhos, mãos, com tudo. Aprender, aprender, aprender. Ela não quer ficar decorando. Isso é horrível.

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casa. Quem nos deu a autorização para adap-tar a obra dele para a televisão – que era uma novidade – foi a dona Purezinha, a viúva, que nos conhecia, sabia quem éramos. Tentamos e deu certo. O Sítio do Picapau Amarelo, com mi-nha adaptação e realização do Júlio, ficou doze anos no ar, sem interrupção. Era ao vivo, como teatro mesmo, transmitido pela televi-são com três câmeras. Tinha afastamento, aproximação, recurso de cinema. Dava para fazer coisas que não eram possíveis no palco. Agora dá para fazer qualquer coisa.

Como os livros podem concorrer com a TV, a internet, ovideogame?Tatiana – Tudo concorre e não concorre. É pre-ciso dar oportunidade para as crianças porque tem lugar para tudo. Sempre chegam coisas novas, porque coisas boas não acontecem so-mente hoje. Eu li um artigo que dizia que a tele-visão atrapalhava um pouco, mas a internet não, já que lá as crianças escrevem e leem. Po-dem até escrever errado, mas escrevem e leem. Também vale lembrar que nem todos são iguais e gostam das mesmas coisas. Na mesma casa nós éramos três irmãos muito diferentes um do outro. Aliás, um dos meus filhos, quando tinha 8 anos, perguntou: “Você acha justo e de-mocrático” – com essas palavras – “tratar de modo igual filhos que não são iguais?”.

Quando cria suas histórias a senhora rees­creve muito o texto?Tatiana – Eu escrevo espontaneamente. Quan-do tenho uma ideia, escrevo como se escreves-se uma carta, um conto. Falo, as coisas vêm

fluindo sozinhas e a mão escreve. Aí guardo o texto na gaveta para pegar dali a uma semana. Então leio o que escrevi, vejo se acho bom, faço mudanças. Como diz o escritor russo Tchekhov, o texto, o teatro não se escreve, se reescreve. Sempre pode melhorar ou cortar. Eu guardo e releio. Ao reler, posso dizer isso com menos palavras, de um jeito melhor, mais compreensi-vo. Assim faço a minha apreciação. Então vou ao meu primeiro crítico, antigamente era o meu marido e ele não dava mole. Se não gostava, di-zia: “Eu não gostei disso, está demais, mas isso não está certo, não concordo”. Eu dizia: “Se você não concorda, vamos discutir”.

Hoje, meu crítico número 1 é meu filho Ricardo. Ele é escritor, tradutor e editor. Ele também não brinca em serviço. Se gosta, gosta; se não gosta, fala, corrige. Quando eu acho que está mais ou menos no ponto, ma-duro, mando para meu editor e espero.

Nossos leitores são professores de esco­las públicas. Trabalham com crianças e jovens o ensino da leitura e da escrita. Que recomendações a senhora pode dar a es­ses educadores?Tatiana – Diria: quer escrever? Isso eu falo também para as crianças que me perguntam como fazer para ser um escritor. Para começar, tem que aprender a escrever fluente. O impor-

tante é abrir os olhos, os ouvidos; sentir cheiro, prestar atenção em tudo. Não olhar para as coisas sem enxergá-las. Porque é isso que acon-tece com as pessoas: ouvem alguma coisa e não escutam nada. Ouvir e escutar, ver e enxergar são coisas di-ferentes. Tem que saber a diferença no sentido das palavras e absorver tudo em volta. Absorver e observar. Olha como dá para brincar com pala-vras, estou sempre brincando. É pre-ciso prestar muita atenção, ser curio-so, pensar no que você viu. A vida é tão instigante, o cotidiano, o que acontece à sua volta todos os dias. Tudo é interessante! Se você prestar atenção, usar a sua cabeça, ouvidos, olhos, dá até para um dia abrir a boca

e botar no trombone, se for preciso. Escrever é falar por escrito. Desenvolver o estilo vem mais tarde. De tanto ler você aprende quanta coisa pode fazer com sua majestade a palavra; sem ela, a gente não é gente.

Quando tenho uma ideia, escrevo como se escrevesse uma carta, um conto. Falo, as coisas vêm fluindo sozinhas e a mão escreve.

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O tempO nãO para

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Em 2009 milhares de professores passaram pelos cursos de formação que antecedem a 2ª- Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro.

A Olimpíada de Língua Portuguesa Escre-vendo o Futuro é realizada a cada dois anos. A próxima será agora em 2010. Mas não é por isso que entre um ano e outro as ações com os professores param. Pelo contrário, em 2009 ocorreram atividades de formação em vários meses do ano. Elas envolveram professores, educadores e técnicos das secretarias muni-cipais e estaduais de Educação. Durante encontros presenciais ou virtuais – por meio da Comunidade Virtual Escrevendo o Futuro, na internet (escrevendo.cenpec.org.br) –, mi-lhares de professores nas 27 unidades da fede-ração participaram de cursos de formação. “Sempre reafirmamos que o concurso é uma estratégia. Nosso objetivo é a formação e a qualificação dos professores”, afirma Sonia Madi, coordenadora pedagógica da Olimpíada.

A primeira ação do ano ocorreu em abril. Mais de cinquenta especialistas, entre técnicos de secretarias estaduais de Educação e profes-sores de universidades públicas de todo o Brasil, participaram de um seminário em São Paulo, promovido pela Fundação Itaú Social e pelo Cenpec. Além das discussões sobre a

formação dos professores, os participantes puderam conhecer, avaliar e debater os mate-riais didáticos utilizados. Também participaram da palestra “O ensino e a aprendizagem de gê-neros textuais: teoria e prática”, ministrada por Anna Rachel Machado, professora doutora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Lin-guística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUC-SP, que desenvolve pesquisa sobre ensino de língua pela perspectiva de gêneros em asso-ciação com a Universidade de Genebra, na Suíça.

Formação atinge todo o país O principal objetivo do seminário foi preparar os participantes para realizarem no segundo semestre, em seus Estados, encontros de for-mação presencial para técnicos multiplica-dores, com 40 horas de duração. Todos os do-centes são pesquisadores e professores de universidades públicas locais, especialistas em ensino e aprendizagem de gêneros textuais e formação de professores. Para Erineu Foerste, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito

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Santo, responsável pelos cursos de formação em seu Estado, a Olimpíada é “uma possibili-dade concreta de aproximar diferentes insti-tuições interessadas na formação de profes-sores”. Ainda segundo ele, “a formação do professor não prescinde do papel da universi-dade, mas também é preciso valorizar os saberes e as práticas produzidos na escola”.

Quando todos os encontros presenciais tiverem sido realizados, 1.592 técnicos estarão capacitados e serão os responsáveis pela mul-tiplicação da formação nos municípios. Todo o processo funciona em rede, criando ramifica-ções cuja meta é atingir 34,5 mil escolas do Brasil. Cada técnico recebeu uma “Maleta do formador” com os materiais de trabalho. Cada escola que realizar o processo de formação re-cebe a mesma maleta. “Esse conjunto de ações visa construir uma rede que estrutura a Olim-píada, disseminando a concepção adotada, que é trabalhar a língua por meio dos gêneros tex-tuais e sequências didáticas”, afirma Ana Guedes, coordenadora da Formação Presen-cial. Outro dado importante é que todo o traba-lho pode ser acompanhado de perto por meio de relatórios dos formadores disponibilizados no site específico da formação.

Para Sonia Madi, esse trabalho é importan-te porque envolve especialistas que conhecem as realidades de seus Estados. “São pessoas que conhecem a teoria e ao mesmo tempo atuam na prática, junto com os professores. Além disso, teremos a possibilidade de reava-liar nossos materiais com os relatórios e as propostas trazidas pelos representantes de todos os Estados do país”.

Comunidade Virtual multiplica as açõesOutra frente de formação a Comunidade Vir-tual da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro abriu cursos no segundo semestre de 2009 com 3 mil vagas para edu-cadores das secretarias de Educação. Os cursos são ministrados por 50 mediadores qualificados no ensino de língua e habili-tados para atuar na formação a distância. Tratam dos gêneros artigo de opinião, me-mórias literárias e poema. A expectativa é que os educadores que concluírem o curso também possam atuar como multiplicadores nas escolas. A meta é atingir 9 mil professo-res no final do processo.

Heloísa Amaral, coordenadora da Comuni-dade Virtual, afirma que participar dos cursos possibilita conhecer outros espaços virtuais. “Além da formação focada na perspectiva dos gêneros textuais, os participantes têm a oportunidade de ampliar seu letramento vir-tual. Eles vão praticar a leitura hipertextual típica da internet e aprenderão a utilizar me-lhor essa ferramenta”, explica. A Comunidade oferece links para artigos e entrevistas de re-nomados estudiosos da área.

Participando dos cursos, o professor fica automaticamente inscrito na Comunidade <www.escrevendo.cenpec.org.br> e pode uti -lizar e acessar todos os seus recursos e seções, além de conhecer e trocar infor ma-ções com professores de todas as partes do Brasil. A Comunidade Virtual já tem mais de 20 mil inscritos, com uma média de 22 mil acessos por mês.

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Olá!Não, não adianta olhar ao redor: você não

vai me enxergar. Não sou uma pessoa como você. Sou, vamos dizer, uma voz. Uma voz que fala com você ao vivo, como estou fazen-do agora. Ou então que lhe fala dos livros que você lê.

Não fique tão surpreso assim: você me co-nhece. Na verdade, somos até velhos amigos. Você me ouviu falando de Chapeuzinho Ver-melho e do Príncipe Encantado, de reis, de bruxas, do Saci-Pererê. Falo de muitas coisas, conto muitas histórias, mas nunca falei de mim próprio. É o que eu vou fazer agora, em homenagem a você. E começo me apresentan-do: eu sou o Conto. Sabe o conto de fadas, o conto de mistério? Sou eu. O Conto.

Vejo que você ficou curioso. Quer saber coisas sobre mim. Por exemplo, qual a minha idade.

Devo dizer que sou muito antigo. Porque contar histórias é uma coisa que as pessoas fazem há muito, muito tempo. É uma coisa na-tural, que brota de dentro da gente. Faça o se-guinte: feche os olhos e imagine uma cena, uma cena que se passou há muitos milhares de anos. É de noite e uma tribo dos nossos ante-passados, aqueles que viviam nas cavernas, está sentada em redor da fogueira. Eles tem medo do escuro, porque no escuro estão as fe-ras que os ameaçam, aqueles enormes tigres, e outras mais. Então alguém olha para a lua e pergunta: por que é que às vezes a lua desapa-rece? Todos se voltam para um homem velho, que é uma espécie de guru para eles. Esperam que o homem dê a resposta. Mas ele não sabe o que responder. E então eu apareço. Eu, o Conto. Surjo lá da escuridão e, sem que nin-guém note, falo baixinho ao ouvido do velho:

— Conte uma história para eles. E ele conta. É uma história sobre um gran-

de tigre que anda pelo céu e que de vez em quando come a lua. E a lua some. Mas a lua não é uma coisa muito boa para comer, de modo que lá pelas tantas o grande tigre bota a lua para fora de novo. E ela aparece no céu, brilhante.

O COntO se apresentaMoacyr Scliar

No começo, portanto, é assim que eu existo: quando as pessoas narram histórias – sobre deuses, sobre monstros, sobre criaturas fan-tásticas. Histórias que atravessam os tempos, que duram séculos. Como eu.

Aí surge a escrita. Uma grande invenção, a escrita, você concorda? Com a escrita, eu não existo mais somente como voz. Agora estou ali, naqueles sinais chamados letras, que permitem que pessoas se comuniquem, mesmo a distância. E aquelas histórias – sobre deuses, sobre monstros, sobre criatu-ras fantásticas – vão aparecer em forma de palavra escrita.

E é neste momento que eu tenho uma grande ideia. Uma inspiração, vamos dizer assim. Você sabe o que é inspiração? Inspiração é aquela descoberta que a gente faz de repente, de re-pente tem uma ideia e muito boa. A inspiração

Todos escutam o conto. Todo mundo: ho mens, mulheres, crian-ças.Todos estão encantados. E felizes: antes havia um mistério: por que a lua some? Agora, aquele mis-tério não existe mais. Existe uma história que fala de coisas que eles conhecem: tigre, lua, comer – mas fala como essas coi-sas poderiam ser, não como elas são. Existe um conto. As pessoas vão lembrar esse conto por toda a vida. E quando as crianças da tribo crescerem e tiverem seus próprios filhos, vão contar a história para explicar a eles por que a lua some de vez em quando. Aquele conto.

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Moacyr Jaime Scliar [Porto Alegre (RS), 1937]. Romancista, cronista, contista e autor de livros infantis e juvenis. Em 1962, formou-se em medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, especializando-se em saúde pública, e lançou Histórias de um médico em formação. Publicou, em 1968, o que considera seu primeiro livro, O carnaval dos animais, de contos, e quatro anos depois estreou no roman-ce com A guerra no bom fim. Desde 1972 colabora intensamente em jornais e revistas brasileiros, com contos, crônicas e ensaios.Tem mais de setenta livros publicados nos mais diversos gêneros, trabalhos que o levaram, em 2003, a ser eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Sua obra tem raízes no questionamento da tradição judaico-cristã e passeia pelas fábulas e pelo imaginário fantástico.

Num primeiro momento, ele fica surpreso, assim como você ficou. Na verdade, ele já ha-via pensado nisso, em escrever uma história. Mas tinha dúvidas: ele, escrever uma história? Como aquelas histórias que todas as pessoas contavam e que vinham de um passado? Ele, escrever uma história? E assinar seu próprio nome? Será que pode fazer isso? Dou força:

— Vá em frente, cara. Escreva uma histó-ria. Você vai gostar de escrever. E as pessoas vão gostar de ler.

Então ele senta, e escreve uma história. É uma história sobre uma criança, uma história muito bonita. Ele lê o que escreveu. Nota que algumas coisas não ficaram muito bem. En-tão escreve de novo. E de novo. E mais uma vez. E aí, sim, ele gosta do que escreveu. Mos-tra para outras pessoas, para os amigos, para a namorada. Todos gostam, todos se emocio-

nam com as histórias.E eu vou em frente. Procuro

uma moça muito delicada, mui-to sensível. Mesma coisa:

— Escreva uma história.Ela escreve. E assim vão

surgindo escritores. Os con-tos deles aparecem em jornais,

em revistas, em livros.Já não são histórias sobre deu-

ses, sobre criaturas fantásticas. Não, são histórias sobre gente co-mum – porque as histórias sobre as pessoas comuns muitas vezes são

mais interessantes do que histórias sobre deu-ses e criaturas fantásticas: até porque deuses e criaturas fantásticas podem ser inventados por qualquer pessoa. O mundo da nossa imagi-nação é muito grande. Mas a nossa vida, a vida de cada dia, está cheia de emoções. E onde há emoção, pode haver conto. Onde há gente que sabe usar as palavras para emocionar pessoas, para transmitir ideias, existem escritores.

Era uma vez um conto. São Paulo: Companhia das Le-

trinhas, pp. 5-9. Coleção Literatura em minha casa.

não vem de fora, não; não é uma coisa misterio-sa que entra na nossa cabeça. A boa ideia já es-tava dentro de nós; só que a gente não sabia. A gente tem muitas boas ideias, pode crer.

E então, com aquela boa ideia, chego perto de um homem ainda jovem. Ele não me vê. Como você não me vê. Eu me apresento, como me apresentei a você, digo-lhe que estou ali com uma missão especial – com um pedido:

— Escreva uma história.

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Lhe concordo, doutor: sou eu que invento minhas doenças. Mas, eu, velho e sozi-nho, o que posso fazer? Estar doente é minha única maneira de provar que estou vivo. É por isso que freqüento o hospital, vezes e vezes, a exibir minhas maleitas. Só nes-ses momentos, doutor, eu sou atendido. Mal atendido, quase sempre. Mas nessa infi-nita fila de espera, me vem a ilusão de me vizinhar do mundo. Os doentes são minha família, o hospital é o meu tecto e o senhor é o meu pai, pai de todos meus pais.

Desta feita, porém, é diferente. Pois eu, de nome posto de Sexta-Feira, me apre-sento hoje com séria e verídica queixa. Venho para aqui todo desclaviculado, uma pancada quase me desombrou. Aconteceu quando assistia jogo do Mundial de Fu-tebol. Desde há um tempo, ando a espreitar na montra** do Dubai Shoping, ali na esquina da Avenida Direita. É uma loja de tevês, deixam aquilo ligado na montra para os pagantes contraírem ganas de comprar. Sento- me no passeio, tenho meu lugar cativo lá. Junto comigo se sentam esses mendigos que todas sextas-feiras invadem a cidade à cata de esmola dos muçulmanos. Lembra? Foi assim que ganhei meu nome de dia da semana. Veja bem: eu, que sempre fui inútil, acabei adquirindo nome de dia útil.

É ali no passeio que assisto futebol, ali alcanço ilusão de ter familiares. O passeio é um corredor da enfermaria. Todos nós, os indigentes ali alinhados, ganhamos um tecto nesse mo-mento. Um tecto que nos cobre neste e noutros continentes.

Só há ali um no entanto, doutor. É que sou atacado de um senti-mento muito ulceroso enquanto os meus olhos apanham boleia para a Coreia do Sul. O que me inveja não são esses jovens, esses fintabo-listas, todos cheios de vigor. O que eu invejo, doutor, é quando o jogador cai no chão e se enrola e rebola a exibir bem alto as suas queixas. A dor dele faz parar o mundo. Um mundo cheio de dores verdadeiras pára perante a dor falsa de um futebolista. As minhas mágoas que são tantas e tão verdadeiras e nenhum árbitro manda parar a vida para me atender, reboladinho que estou por dentro, rasteirado que fui pelos outros. Se a vida fosse um relvado, quantos penal-ties eu já tinha marcado contra o destino?

Eu sei, doutor, lhe estou roubando o tempo. Vou directo no assunto do meu om-bro. Pois aconteceu o seguinte: o dono da loja deu ontem ordem para limpar o passeio. Não queria ali mendigos e vadios. Que aquilo afastava a clientela e ele não estava para gastar ecrã em olho de pobre. Recusei sair, doutor. O passeio é pertença de um alguém? Para me retirarem dali foi preciso chamar as forças poli-ciais. Vieram e me bateram, já eu estendido no chão e eles me ponteavam, com raiva como se não me batessem em mim, mas na sua própria pobreza. Proclamei que hoje voltaria mais outra vez, para assistir ao jogo. É que jogam os africanos e eles estão a contar comigo lá na assistência. Não passam sem Sexta-Feira. O dono da loja me ameaçou que, caso eu insistisse, então é que seria um festival de por-rada. O que eu lhe peço, doutor, é que intervenha por mim, por nós os espectadores do passeio da Avenida Direita. O proprietário do Dubai Shoping não vai dizer não, se for um pedido vindo de si, doutor.

O mendigo Sexta-Feira jogando no Mundial*

Mia Couto

* Neste conto optou-se por manter a grafia do português de Moçambique.

** Montra: substantivo feminino, mostruário de casa comercial, vitrina, mostrador. Regionalismo: Portugal.

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Pois eu, conforme se vê, vim ao hospital não por artimanha, mas por desgraça real. O doutor me olha, desconfiado, enquanto me

vai espreitando os traumatombos. Contrariado, ele lá me coloca sob o olho de uma máquina radiográfica. Até me atrapalho com

tanta deferência. Até hoje, só a polícia me fotografou. Se eu soubesse até me tinha preparado, doutor, escovado a dentuça

e penteado a piolheira.Quando me mostram a chapa, porém, me assalta a vergo-

nha de revelar as minhas pobres e desprevenidas intimida-des ósseas. Quase eu grito: esconda isso, doutor, não me

exiba assim às vistas públicas. Até porque me passa pela cabeça um desconfio: aqueles interiores não eram os meus. E o doutor não fique espinhado! Mas aquilo não são ossos: são ossadas. Eu não posso estar assim tão

cheio de esqueleto. Aquela foto grafia é de chamar saliva a hienas. Sem ofensa, doutor, mas eu peço que se

deite fogo nessa película. E me deixe assim, nem vale a pena enrolar-me as ligadu-ras, aplicar-me as pomadas. Porque

eu já vou indo, com as pressas. Não esqueça, por favor. Foi por esse pe dido

que eu vim. Não foi pelo ferimento.E logo me desando, já as ruas desá-

guam. Chego à loja dos televisores e me sento entre a mendigagem. Veja bem:

ti nham-me guardado o lugar em meu res-peito. Isso me comove. Afinal, o doutor sem-

pre telefonou, sempre se lembrou do meu po-bre pedido. Ainda há gente neste mundo!

Meus olhos brilham olhando não o jogo, mas as pessoas que olhavam a montra. Quem disse que a televisão não fabrica

as actuais magias?O que eu vi num adocicar de visão foi isto, sem mais

nem menos: eu e os mendigos de sexta-feira estamos no mundial, formamos equipa com fardamento brilhoso. E o doutor é o treinador. E jogamos, neste momento preciso. Eu sou o extremo esquerdo e vou dominando o esférico, que é um modo de dominar o mundo. Por trás, os aplausos da multidão. De repente, sofro carga do defesa contrário.Jogo perigoso, reclamam as vozes aos milhares. Sim, um cartão amarelo, brada o dou-tor. Porém, o defesa continua a agressão, cresce o protesto da multidão. Isso, senhor árbitro, cartão vermelho! Boa decisão! Haja no jogo a justiça que nos falta na Vida.

Afinal, o vermelho é do cartão ou será do próprio sangue? Não há dúvida: necessito assistência, lesionado sem fingimento. Suspendessem o jogo, expulsassem o agressor das quatro linhas. Surpresa minha – o próprio árbitro é quem me passa a agredir. Nesse momento, me assalta a sensação de um despertar como se eu saísse da televisão para o passeio. Ainda vejo a matraca do polícia descendo sobre a minha cabeça. Então, as luzes do estádio se apagam.

O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 81-84.

António Emílio Leite Couto, Mia Couto, biólogo, professor universitário e escritor, nasceu na Cidade da Beira, em Moçambique, em 1955. Atualmente, dedica-se a estudos de impacto ambiental. É considerado um dos nomes mais importantes da nova geração de escritores africanos de língua portuguesa. Vencedor de vários prêmios, tem sua obra traduzida em alemão, castelhano, francês, inglês, italiano, norueguês e sueco. A escrita tem sido uma paixão constante, desde a poesia, na qual estreou em 1983, com “A raiz de orvalho”, até a escrita jornalística e a prosa de ficção.

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Guardamos na memória heróis, vilões, objetos mágicos e forças sobrenaturais que povoavam contos maravilhosos, de aventura, de mistério, lidos e ouvidos ao longo da vida. Os contos fazem pensar, intrigam, trazem descobertas, pro-vocam susto, riso, encantamento.

Lemos para saber, para compreender, para re-fletir. Lemos também pela beleza da linguagem, para nossa emoção, para nossa perturbação. Lemos para compartilhar. Lemos para sonhar e para aprender a sonhar.

José Moraes. A arte de ler. São Paulo: Unesp, 1996, p. 12.

Cabe à escola o papel de aproximar crianças e jovens de boas obras literárias, ampliando suas experiências de letra-mento. Por essa razão, sugerimos algumas atividades que trabalham principalmente as habilidades de leitura e de ora-lidade. Você, professor, pode adequá-las às capacidades e interesses de seus alunos para que eles possam interagir e apropriar o sentido do texto.

“Porque todo mundo gosta de história e de poesia. Não há sociedade sem narrativa. O homem é um animal narrativo. Homo narrador. Todo mundo quer ouvir histórias. Contamos histórias desde o amanhecer até a hora de dormir. Senta num táxi, história; entra em um ônibus, história; vai para a escola, história; dá uma topada, história; briga com o namorado, história. Todas as situações da vida propiciam acontecimentos narráveis e vivemos desse entrelaçamento de narrativas.”

David Arriguci Jr. (Entrevista para a revista de cultura da Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo.)

Organize o acervo de livros de contos Selecione no acervo da escola bons livros

de contos. Escolha um espaço atraente para organizar os livros em sala de aula. Disponi-bilize-os em caixas, pastas, estantes colori-das, varais, sacolas transparentes, identifi-cando-os com etiquetas – por autor, obra ou gênero textual – para facilitar o acesso e atrair a atenção dos alunos. Se possível, troque quinzenalmente o acervo para manter vivo o interesse pela leitura. Incentive o empréstimo de livros na rotina semanal. Monte um painel

com dicas de leitura: resenhas que apresentam autores e obras. Convide os alunos a deixar registradas no mural as indicações e comen-tários sobre os livros lidos.

Aproveite a ocasião para ampliar a expe-riência de leitura da turma. Faça uma visita monitorada à biblioteca da escola ou da cida-de; percorra suas dependências, explique aos alunos a forma como os livros estão catalo ga-dos, dispostos nas estantes, e como eles podem inscrever-se para retirá-los e lê-los em casa.

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Quem quiser que conte outroPrepare a leitura ou a audição de um conto

Esse quadro de registro – além de documentar a proximidade, ou não, dos alunos com o gênero – permite ao professor fortalecer a conversa sobre os recursos narrativos – escolha de linguagem, estrutura e elementos que o autor usa para envolver o leitor na trama, tornando o conto inesquecível. Podem também, caracterizar as personagens de cada conto, comparar os con-flitos, analisar os diferentes ambientes, os períodos em que as ações ocorrem, o foco narrativo.

Escolha um conto adequado à faixa etária de seus alunos, que possa envolvê-los, des-pertando o interesse pela leitura. O primeiro passo é estudar o texto, recolhendo informa-ções que apontam como essa história pode ser lida ou contada. Você pode utilizar o CD encartado nesta revista e apreciar a leitura em voz alta. Se você escolher uma história de

medo, por exemplo, pode escurecer a sala e acender uma vela ou uma lamparina. Se for ler um conto maravilhoso, pode pendurar lenços, cangas e panos pela sala, de modo que o es-paço lembre uma tenda. Um baú, uma más-cara, uma foto, uma música podem suscitar mistério. Esses recursos externos devem dia-logar, estar a serviço da história.

Dentro do conto tem...Investigue o que os alunos já sabem sobre conto

Converse com os alunos sobre o signifi-cado da palavra “conto”. Esclareça que o conto (do latim contare = falar) é uma narra-tiva breve de um fato real ou fantasioso, desenrola-se com poucas personagens, apre-senta apenas um drama, tem espaço e tempo restritos, privilegia o diálogo e possui uma linguagem objetiva.

Diga-lhes ainda que por meio da leitura do conto podem-se descobrir outros lugares, outros tempos, outras formas de agir e ser, outra ética.

Para facilitar a interação, organize os alunos em círculo. Instigue-os com algumas ques-tões que possibilitem mapear o que eles já sabem sobre contos. Quais contos costuma-vam ouvir quando eram pequenos? De quais ainda se lembram para recontar aos colegas? Há algum conto marcante? Qual o nome do autor? Quem são as personagens principais? Onde e quando os episódios se sucedem? Como é a trama? Há conflito? O professor anota na lousa ou em uma folha de papel pardo os co-mentários dos alunos. Por exemplo:

Título do conto Autor Personagens Espaço Trama

O patinho feio Hans Christian Andersen

O peru de Natal Mário de Andrade

A revolta das palavras José Paulo Paes

Um apólogo Machado de Assis

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Prepare o grupo para a leitura do conto. Crie um espaço aconchegante, propício para essa aprendizagem. Ambiente pronto, converse so -

Jacob (4/1/1785) e Wilhelm Grimm (24/2/1786), os Irmãos Grimm, nasceram na Alemanha, estudaram direito, mas se dedicaram à pesquisa e ao estudo da língua. Para preservar as histórias tradicionais do seu povo, escreviam as narrativas que ouviam de paren-tes, amigos e camponeses; assim, reuniram grande quantidade de contos e lendas populares.Os primeiros contos recolhidos pelos Irmãos Grimm foram publicados em 1812. A obra chamava-se His-tórias das crianças e do lar e apresentava 51 contos. Os textos por eles publicados espalha ram-se logo pelo mundo, ganharam outras versões e fascinaram pesso-as de diferentes línguas e culturas.

O VoadorIrmãos Grimm

Era uma vez um lenhador que, entrando em uma floresta para caçar, ouviu um choro de criança. Aproximou-se do lugar de onde vinha o som, avistou, no alto

de um pinheiro, uma criancinha que para lá fora levada por uma ave de rapina, que a arrancara dos braços da mãe, que adormecera debaixo da árvore.

O lenhador subiu na árvore e salvou a criança. Ao constatar que era um menino, decidiu levá-lo para casa e criá-lo, junto com sua filhinha Nina.

O menino foi chamado Voador, já que fora encontrado no alto de uma árvore.Voador e Nina gostavam tanto um do outro, que se entristeciam quando tinham

de se separar. O lenhador tinha uma cozinheira que todas as tardes pegava dois jarros e ia

buscar água, e não ia uma só vez, mas muitas vezes, ao poço. Nina teve curiosidade e perguntou à cozinheira, que se chamava Morgana:

— Por que trazes tanta água?— Eu lhe direi, se prometeres não contar a ninguém — disse Morgana. Ela prometeu não contar, e a cozinheira disse: — Amanhã bem cedo, vou ferver a água toda que eu trouxer, em um jarro muito

grande, e jogar Voador dentro. Na manhã seguinte, o lenhador saiu bem cedo, deixando as crianças ainda na

cama. E Nina disse a Voador: — Se nunca me deixares, eu também nunca te deixarei. — Nem agora nem em tempo algum te deixarei — replicou Voador. — Vou dizer-te então — falou Nina. — Ontem, vendo a velha Morgana trazer

para casa muitos jarros de água, perguntei-lhe por que estava fazendo aquilo, e ela, depois de me fazer prometer que não contaria a ninguém, disse que hoje cedo ferveria água suficiente para encher uma grande tina e jogaria você dentro da tina com água fervendo. Mas nós vamos nos levantar rápido, vestirmos e sairmos daqui juntos.

bre o autor, época, finalidade do texto, informa-ções que contextualizam a obra, estreitando o diálogo do autor com o leitor. Inicie apresen-tando os autores Jacob e Wilhelm Grimm.

Em seguida, mobilize o conhecimento dos alu nos apresentando o título do conto: “O voador”.

O que sugere esse título? Qual será o tema do conto? E a finalidade dessa narrativa: emo-cionar, divertir, informar, instruir?

É possível, com base no título e no autor, imaginar o cenário, as personagens, a trama do conto? Peça aos alunos que registrem suas hipóteses para que possam comparti-lhá-las e conferi-las no decorrer da leitura do texto.

Um conto puxa... Incentive o gosto pela leitura

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E assim o fizeram. Quando a água estava fervendo, a cozinheira foi ao quarto procurar Voador para jogá-lo dentro da tina com água fervendo, e não o encon-trando, assim como Nina, ficou alarmada, perguntando a si mesma: “O que farei quando meu patrão voltar para casa e descobrir que as crianças saíram? Tenho de mandar alguém imediatamente atrás delas”.

Deu ordem, então, a três criados de saírem em perseguição às crianças e tra-zê-las de volta. Elas estavam descansando e, quando viram de longe os três criados correndo, Nina disse a Voador:

— Se nunca me deixares, eu também não te deixarei. — Nem agora nem em tempo algum te deixarei. — replicou Voador. — Vais virar uma roseira e eu a rosa da roseira — decidiu Nina.Quando os três criados chegaram à floresta, não viram nem sinal das crianças,

apenas uma roseira com uma rosa. Certos de que nada se poderia fazer ali, os cria-dos voltaram para casa e anunciaram o fracasso, explicando que nada mais tinham visto de novidade, a não ser uma roseira com uma rosa:

— Idiotas! — exclamou a cozinheira, furiosa. — Deveríeis ter cortado a roseira, colhido a rosa e trazido para cá. Ide fazer isso, imediatamente.

Os criados chegaram à floresta, mas as crianças os viram de longe. Nina disse então:

— Se nunca me deixares, eu também jamais te deixarei.— Nem agora nem em tempo algum te deixarei — replicou o Voador.— Então, vais virar uma igreja e eu o candelabro da igreja.Assim foi feito, de modo que, quando os três criados lá chegaram, coisa alguma

encontraram, a não ser a igreja com um candelabro. Voltaram para junto da cozi-nheira para se desculparem, dizendo então que só haviam encontrado uma igreja com um candelabro.

Idiotas! — esbravejou a cozinheira. — Por que não derrubastes a igreja e trou-xestes o candelabro?

Então a cozinheira dispensou os três criados e assumiu a perseguição aos fugi-tivos. Estes, porém, avistaram de longe a aproximação de Morgana. Nina, mais uma vez, disse a Voador:

— Se nunca me deixares, eu também não te deixarei.— Nem agora nem em tempo algum te deixarei — replicou Voador.

— Serás uma lagoa e eu serei um pato nadando nela — disse a menina.

E de fato assim aconteceu.A cozinheira não tardou a chegar e, quando viu a

lagoa, deitou-se junto dela para saciar a sede que o calor e a caminhada haviam provocado.

Então, o pato pousou em sua cabeça e com fortes bicadas empurrou-a para dentro da água, até que a velha Morgana se afogou.

As crianças voltaram para casa, satis-feitíssimas, e assim continuaram, e, se ainda não morreram, estão vivas até hoje.

Adaptação do conto “O Voador”, dos Irmãos Grimm.

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Antes de iniciar a leitura, pergunte aos alunos se eles conhecem o escritor Luis Fer-nando Veríssimo ou se já leram algum texto escrito por ele. Ouça o que a turma tem a di-zer e complemente com mais informações so-bre o autor .

Apresente o título do conto: “O diamante”. Instigue os alunos a pensar sobre o que esse título sugere. Do que vai tratar esse conto?

Leia o conto para a classe. Em seguida, divida os alunos em pequenos grupos e lance algu-mas questões para aquecer a conversa sobre a narrativa.

Vocês gostaram do texto? Por quê? O tí-tulo é adequado? Por quê? Que palavras causam estranheza? Foi preciso recorrer ao dicionário ou a leitura deu conta de resolver? Quem narra? De que jeito? O narrador parti-cipa da história como protagonista? Ou tem função meramente narrativa?

Alguém já viveu ou conheceu alguma situa-ção parecida com a da personagem Maria? Isso acontece apenas em ficção?

O que vocês acham do desfecho do conto? Vocês poderiam escrever um desfecho dife-rente?

O diamanteLuis Fernando Veríssimo

Um dia, Maria chegou em casa da escola muito triste.— O que foi? — perguntou a mãe de Maria.

Mas Maria nem quis conversa. Foi direto para o seu quarto, pegou o seu Snoopy1 e se atirou na cama, onde ficou deitada, emburrada.

A mãe de Maria foi ver se Maria estava com febre. Não estava. Perguntou se Maria estava sentindo alguma coisa. Não estava. Perguntou se estava com fome. Não estava. Perguntou o que era, então.

— Nada — disse Maria.A mãe resolveu não insistir. Deixou Maria deitada na cama, abraçada com o seu Snoopy,

emburrada. Quando o pai de Maria chegou em casa do trabalho, a mãe de Maria avisou:— Melhor nem falar com ela...Maria estava com cara de poucos amigos. Pior. Estava com cara de amigo nenhum.Na mesa de jantar, Maria de repente falou:— Eu não valo nada.O pai de Maria disse:— Em primeiro lugar, não se diz “eu não valo nada”. É “eu não valho nada”. Em

segundo lugar, não é verdade. Você valhe muito. Quer dizer, vale muito.— Não valho.— Mas o que é isso? — disse a mãe de Maria. — Você é a nossa filha querida. Todos

gostam de você. A mamãe, o papai, a vovó, os tios, as tias. Para nós, você é uma pre-ciosidade.

1. Snoopy é o nome de uma personagem de história em quadrinhos, criada pelo americano Charles Schulz. É um cachorro inteligente, que gosta de ficar deitado no telhado de sua casinha, mas acompa-nha as crianças em tudo, como se fosse gente. Faz parte da turma do Charlie Brown.

Luis Fernando Veríssimo nasceu em 26 de setembro de 1936 em Porto Alegre (RS). É conhecido por seus contos e crônicas de humor, publicadas diariamente em vários jornais brasileiros. Veríssimo é também cartunista, tradutor, além de roteirista de televisão, autor de teatro e romancista. Já foi publicitário e co-pydesk de jornal. É ainda músico, tendo tocado saxofo-ne em alguns conjuntos.Com mais de sessenta títulos publicados, é um dos mais populares escritores brasileiros contemporâneos. É filho do também escritor Érico Veríssimo. Acesse <http://literal.terra.com.br/veríssimo> e saiba mais sobre a vida e a obra do escritor

Outro conto...

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Mas Maria não se convenceu. Disse que era igual a mil outras pessoas. A milhões de outras pessoas.

— Só na minha aula tem sete Marias!— Querida... — começou a dizer a mãe. Mas o pai interrompeu.— Maria — disse o pai —, você sabe por que um diamante vale tanto dinheiro?— Porque é bonito.— Porque é raro. Um pedaço de vidro também é bonito. Mas o vidro se encontra em

toda parte. Um diamante é difícil de encontrar. Quanto mais rara é uma coisa, mais ela vale. Você sabe por que o ouro vale tanto?

— Por quê?— Porque tem pouquíssimo ouro no mundo. Se o ouro fosse como areia, a gente ia

caminhar no ouro, ia rolar no ouro, depois ia chegar em casa e lavar o ouro do corpo para não ficar suja. Agora, imagina se em todo o mundo só existisse uma pepita de ouro.

— Ia ser a coisa mais valiosa do mundo.— Pois é. E em todo o mundo só existe uma Maria.— Só na minha aula são sete.

— Mas são outras Marias.— São iguais a mim. Dois olhos, um nariz...— Mas esta pintinha aqui nenhuma delas tem.— É...— Você já se deu conta de que em todo o mundo só existe uma você?— Mas, pai...— Só uma. Você é uma raridade. Podem existir outras parecidas. Mas você, você

mesma, só existe uma. Se algum dia aparecer outra você na sua frente, você pode dizer: é falsa.

— Então eu sou a coisa mais valiosa do mundo.— Olha, você deve estar valendo aí uns três trilhões...Naquela noite a mãe de Maria passou perto do quarto dela e ouviu Maria falando

com o Snoopy— Sabe um diamante?

O santinho. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

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Uma fábula sobre a fábulaMalba Tahan

Allahur Akbar! Allahur Akbar! (Deus é Grande). Quando Deus criou a mulher, criou também a fantasia. Um dia, a Verdade resolveu

visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harum Al-Raschid.

Envoltas as lindas formas num véu claro e transparente, foi ela bater à porta do rico palá-cio em que vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas.

Ao ver aquela formosa mulher, quase nua, o chefe dos guardas perguntou-lhe:— Quem és?— Sou a Verdade! — respondeu ela, com voz firme. — Quero falar ao vosso amo e senhor,

o sultão Harum Al-Raschid.O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, apressou-se em levar a nova ao

grão-vizir: — Senhor — disse, inclinando-se humilde —, uma mulher desconhecida, quase nua, quer

falar ao nosso soberano, o sultão Harum Al-Raschid, Príncipe dos Crentes.— Como se chama?— Chama-se a Verdade!— A Verdade! — exclamou o grão-vizir, subitamente assaltado de grande espanto. — A Ver-

dade quer penetrar neste palácio! Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Verdade aqui entrasse? A perdição, a desgraça nossa! Diz-lhe que uma mulher nua, despu-dorada, não entra aqui!

Voltou o chefe dos guardas com o recado do grão-vizir e disse à Verdade:— Não podes entrar, minha filha. A tua nudez iria ofender o nosso califa. Com ares impu-

dicos não poderás ir à presença do Príncipe dos Crentes, o nosso glorioso sultão Harum Al-Raschid. Volta, pois, pelos caminhos de Allah!

Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou muito triste a Verdade, e afas-tou-se lentamente do grande palácio do magnânimo sultão Harum Al-Raschid, cujas portas se fecharam à diáfana formosura!

Mas. Allahur Akbar! Allahur Akbar!Quando Deus criou a mulher, criou também a obstinação. E a Verdade continuou a alimen-

tar o propósito de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harum Al-Raschid.

Cobriu as peregrinas formas de um couro grosseiro como os que usam os pastores e foi novamente bater à porta do suntuoso palácio em que vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas.

Converse com o grupo sobre o autor Malba Tahan e pergunte se já leram algum livro des-se autor.

Em seguida, apresente o título do conto “Uma fábula sobre a fábula” e pergunte: O que sugere esse título? O que é uma fábula? Quais fábulas conhecem? Que personagens fazem parte dessas narrativas? Conhecem o povo e a cultura árabe?

Reserve um tempo para que os alunos pos-sam compartilhar suas opiniões e conferi-las no decorrer da leitura do conto.

mais outro conto... Júlio César de Mello e Souza – Rio de Janeiro (RJ), 6/5/1895 – Recife (PE), 17/5/1974. Exímio contador de histó-rias, o escritor árabe celebrizou-se como Malba Tahan, nasceu na aldeia de Muzalit, península Arábica, perto da cidade de Meca, um dos lugares santos da religião muçul-mana, o islamismo. Na verdade, essa personagem nunca existiu; tratava-se de um pseudônimo do inventivo escritor e matemático Júlio César de Mello e Souza. O nome Tahan foi tirado do sobrenome de uma de suas alunas (Maria Za-chsuk Tahan) e significa “moleiro”. O nome Malba signifi-caria oásis. Publicou inúmeros livros Minha vida querida, Mil histórias sem fim, Lendas do deserto, entre outros. Mas o mais conhecido é O homem que calculava, uma coleção de problemas e curiosidades matemáticas, apresentadas sob a forma de narrativa de aventuras de um calculista persa à maneira dos contos de Mil e uma noites.

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Ao ver aquela formosa mulher grosseiramente vestida com peles, o chefe dos guardas perguntou-lhe.

— Quem és?— Sou a Acusação! — respondeu ela, em tom severo. — Quero falar ao vosso amo e

senhor, o sultão Harum Al-Raschid. Comendador dos Crentes.O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, correu a entender-se com o grão-vizir.— Senhor — disse, inclinando-se humilde —, uma mulher desconhecida, o corpo envolto em

grosseiras peles, deseja falar ao nosso soberano, o sultão Harum Al-Raschid. — Como se chama? — A Acusação!— A Acusação? — repetiu o grão-vizir, aterrorizado. — A Acusação quer entrar neste

palácio? Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Acusação aqui entrasse! A perdição, a desgraça nossa! Diz-lhe que uma mulher, sob vestes grosseiras de um zagal, não pode falar ao Califa, nosso amo e senhor.

Voltou o chefe dos guardas com a proibição do grão-vizir e disse à Verdade:— Não podes entrar, minha filha. Com essas vestes grosseiras, próprias de um beduíno

rude e pobre, não poderás falar ao nosso amo e senhor, o sultão Harum Al-Raschid. Volta, pois, em paz, pelos caminhos de Allah.

Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou ainda mais triste a Verdade e afas-tou-se vagarosamente do grande palácio do poderoso Harum Al-Raschid, cuja cúpula cinti-lava aos últimos clarões do sol poente.

Mas. Allahur Akbar! Allahur Akbar!Quando Deus criou a mulher, criou também o capricho.E a Verdade entrou-se do vivo desejo de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio

palácio em que morava o sultão Harum Al-Raschid.Vestiu-se com riquíssimos trajes, cobriu-se com joias e adornos, envolveu o rosto em

um manto diáfano de seda e foi bater à porta do palácio em que vivia o glorioso senhor dos árabes.

Ao ver aquela encantadora mulher, linda como a quarta lua do mês de Ramadã, o chefe dos guardas perguntou-lhe:

— Quem és?

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Finalizada a leitura, organize os alunos em duplas. Peça-lhes que leiam silenciosamente o texto. Se eles tiverem dificuldade de compreensão do sentido de algumas palavras, oriente-os a consultar o glossário.

A seguir, proponha que as duplas respondam às questões:

Beduíno: árabe do deserto. Indivíduo selvagem, intratável, brutal.

Califa: título do soberano muçulmano.

Diáfana: que permite a passagem da luz; trans-parente, límpida. Muito magra.

Grão-vizir: o primeiro-ministro do Império Oto-mano.

Impudico: impudente. Que revela ou sugere falta de pudor, cinismo, impureza.

Magnânimo: que tem grandeza na alma; genero-so, liberal. Próprio de alma nobre e generosa.

Mavioso: afável, afetuoso, terno. Piedoso, com-passivo. Brando,suave, doce, harmonioso.

Muçulmano: islamita, mouro, seguidor da doutri-na pregada por Maomé.

Obstinação: persistência, tenacidade, perseve-rança, teima, birra.

Ramadã: nono mês, de trinta dias do calendário islâmico, durante o qual os muçulmanos devem jejuar do levantar ao por do sol, é um tempo de renovação da fé.

Sultão: antigo título do imperador da Turquia; se-nhor absoluto. Príncipe de grande poder.

Zagal: Pastor, apascentador de gado; pegureiro. Ajudante ou subalterno em uma fazenda de gado. Rapaz de compleição vigorosa, robusta.

Glossário

— Sou a Fábula — respondeu ela, em tom meigo e mavioso. — Quero falar ao vosso amo e senhor, o generoso sultão Harum Al-Raschid.

O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, correu, radiante, a falar com o grão-vizir.

— Senhor — disse, inclinando-se, humilde —, uma linda e encantadora mulher, vestida como uma princesa, solicita audiência de nosso amo e senhor, o sultão Harum Al-Raschid.

— Como se chama?— Se chama Fábula!— A Fábula! — exclamou o grão-vizir, cheio de alegria. — A Fábula quer entrar neste pa-

lácio! Allah seja louvado! Que entre! Bem-vinda seja a encantadora Fábula: Cem formosas escravas irão recebê-la com flores e perfumes. Quero que a Fábula tenha, neste palácio, o acolhimento digno de uma verdadeira rainha!

E abertas de par em par as portas do grande palácio de Bagdá, a formosa peregrina entrou.

E foi assim, sob o aspecto da Fábula, que a Verdade conseguiu aparecer ao poderoso califa de Bagdá, o sultão Harum Al-Raschid, Vigário de Allah e senhor do grande império muçulmano.

Minha vida querida. Rio de Janeiro: Conquista, 1957, pp. 93-98.

O que vocês sabem sobre a verdade? E o que diz o grão-vizir sobre a verdade?

E a acusação, o que vocês têm a dizer sobre ela? E o que o sultão fala sobre a acusação?

Quem conseguiu autorização do grão-vizir para entrar no palácio? Por quê?

O que as três personagens que tentaram entrar no palácio têm em comum?

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Identifique os elementos que constroem a narrativa

Divida os alunos em pequenos grupos. Di-ga-lhes que vão ouvir um conto de Cora Cora-lina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas. Converse com eles sobre a grande poeta e contista goiana.

Verifique se os alunos sabem a importân-cia de um título de livro ou de história. Expli-que-lhes que o título pode fisgar, atrair o leitor para a leitura, ajudá-lo a levantar hipóteses, intuir sentidos, evocar outros textos de seu repertório.

Leia para os alunos o título do conto: “Medo”. Peça a cada grupo que faça uma lista das emo-ções, sentimentos, impressões que essa pa-lavra desperta: susto, pavor, temor, receio, horror, ameaça. A seguir, proponha aos grupos que prevejam acontecimentos, fatos, ações,

personagens da narrativa. Vale lembrar que o objetivo dessas antecipações é envolver os alu-nos, trazendo o contexto da história a ser lida e ajudando-os a compreender seu sentido.

Medo de quê?

Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas – Goiás (GO), 1889; Goiânia (GO), 1985]. Poeta, contista e cronista. Impe-dida de frequentar regularmente a escola, descobriu a lite-ratura lendo os almanaques encontrados em sua casa. Publicou seus primeiros poemas no jornal O Paiz, em 1910, e adotou o pseudônimo Cora Coralina. Mudou-se para Ja-boticabal (SP), onde permaneceu até meados da década de 1920, e depois se transferiu para a cidade de São Paulo. Nesse período publicou artigos no jornal O Democrata, no periódico Notícia Goiana e colaborou no jornal O Estado de S. Paulo. No ano de 1936, conheceu o editor José Olympio (1902-1990) e passou a trabalhar como vendedora de livros da editora dele. Nessa mesma época foi para Penápolis (SP) e trabalhou como colaboradora no jornal O Penapo-lense. Posteriormente instalou-se na cidade de Andradina (SP) e publicou artigos e poesias no Jornal da Região. Em 1954 mudou-se novamente para a cidade de Goiás e apre-sentou seus poemas para Antonio Olavo Pereira (1913- -1993), representante da Editora José Olympio em São Pau-lo, que, em 1965, publicou o livro de estréia de Cora, Poemas dos becos de Goiás e outras histórias mais. Medo

Cora Coralina

Viajava uma jardineira, expresso ou perua, como se diz, de Goiânia para Goia-nópolis. Levava na coberta, entre malas e trouxas, um caixão vazio de defunto,

destinado para uma pessoa falecida naquele distrito.Logo adiante na estrada, um homem parado, dá sinal e a perua para.

[...]

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Anote em um cartaz ou no quadro-negro as ideias destacadas pelo grupo. Ouça o CD ou leia o conto em voz alta, realçando as vozes do narrador da história e da personagem. Anime a classe fazen do perguntas que se relacionem com os registros iniciais, para compará-los com o enredo do conto lido:

Dentro, tudo cheio. O homem que precisava seguir viagem aceitou de viajar na coberta com os volumes e o caixão vazio. Subiu. O tempo tinha se fechado para chuva e logo começou a pingar grosso. O sujeito em cima achou que não seria nada de mais ele entrar dentro do caixão e ali se defender da chuva. Pensou e melhor fez. Entrou, espichou bem as pernas, ajeitou a cabeça na almofadinha que ia dentro, puxou a tampa e, bem confortado, ouvia a chuva cair.

Mais adiante, dois outros esperavam condução. Deram sinal e a perua parou de novo; os homens subiram a escadinha e se acocoraram no alto. Iam conversando e molhados com a chuva fina e insistente.

Passado algum tempo o que ia resguardado escutando a conversa ali em cima le-vantou devagarinho a tampa do caixão e perguntou de dentro, só isto: “Companheiro, será que a chuva já passou?”. Foi um salto só que os dois embobados fizeram correndo. Um quebrou a perna, o outro partiu braços e costelas e ficaram ambos estatelados do susto e sem fala, na estrada.

Deixa que eu conto. 1ª- ed. São Paulo: Global, 2003.Coleção Literatura em minha casa, v. 2. Conto. Vários autores.

Quem narra os fatos? E quem participa do conto?

Observe os verbos empregados pelo narrador. Em que pessoa estão as formas verbais?

Como as personagens são caracterizadas?

Onde e quando se passam os fatos? Que palavras o autor usa para descrever o ambiente onde vai se desenrolar a narrativa?

Que recursos ele usa para criar suspense, incutir um clima de temor no leitor?

Há algum fato que causa maior tensão na história? Qual?

Se você fosse o autor, como você escreveria esse momento de complicação que provoca mudança no rumo do conto?

Como é o desfecho? Traz solução ao conflito? Ou o final é aberto para que o leitor faça a conclusão dele?

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Um conto, duas versõesAnalisar diferentes versões de um mesmo conto

Inicie perguntando aos alunos se já ouviram ou leram diferentes versões sobre um mesmo fato, acontecimento, conto. Ouça o que o gru-po tem a dizer sobre esse assunto. Informe a eles que os contos estão presentes em todas as sociedades; ultrapassam fronteiras, épo-cas, e, por onde passam, sofrem adaptações, ganham marcas da cultura de cada povo.

Organize os alunos em círculo para facilitar a interação. Apresente as duas versões popu-lares do conto A Gata Borralheira: “Bicho

de Palha” e “Capa de Junco”. Esclareça que o conto “Bicho de Palha” faz parte da tradi-ção oral do Rio Grande do Norte e foi escrito por Luís da Câmara Cascudo em 1956, que o conheceu por intermédio de sua esposa Dhalia Câmara Cascudo, que, quando criança, costumava ouvi-lo de sua babá. Já a versão do conto “Capa de Junco” é de origem in-glesa. Informe que há tam bém uma terceira versão – “Pele de Asno” –, escrita pelo francês Charles Perrault em 1694.

Bicho de Palha

Bicho de Palha era o apelido dado a Maria pelos criados com quem ela tra-balhava no palácio de um príncipe elegante e muito bonito. Ninguém sabia

quem ela era realmente e de onde viera e por que saíra de sua casa. Chama-vam-na assim porque ela vivia coberta por uma capa de palha trançada, que lhe deixava à mostra somente os olhos. No palácio real, ela limpava os aposentos e os banheiros dos criados. A jovem vivia calada, pouco conversava com as pes-soas com quem convivia. Mas amava, a distância, o príncipe. E, como era traba-lhadeira e não se importava com a vida alheia, deixavam-na ficar assim, anônima.

Mas o que ninguém sabia era que Maria, este era o verdadeiro nome de Bi-cho de Palha, era filha de um rico comerciante que se casara novamente com uma viúva que também tinha uma filha da mesma idade da enteada. E, para es-capar dos maus-tratos da madrasta, a jovem enteada resolveu fugir de casa. Antes, porém, seguindo o conselho de uma velhinha de feições muito bondosa e serena, com quem se encontrava sempre que ia lavar roupas no rio, ela fez uma capa de palha trançada, cobriu-se com ela, apanhou umas poucas roupas, fez uma trouxa com essas, pegou a varinha de condão que a bondosa senhora lhe deu, para ser usada em caso de muita necessidade, e foi-se para o outro lado da cidade, onde estava o palácio do príncipe. Como lá precisavam de alguém para limpar os aposentos e banheiros dos criados, foi logo empregada. Lá, como já se informou, ganhou o apelido de “Bicho de Palha”.

Um dia, o príncipe, que já estava em idade de casar-se, resolveu, de comum acordo com a rainha sua mãe, dar, durante três noites seguidas, um grande baile. Na última noite, escolheria, entre as jovens presentes, sua futura espo-sa. Assim sendo, todas as jovens do reino, sem distinção de classe social, foram convidadas.

A notícia agitou todos os moradores da redondeza, principalmente as jovens casadoiras. Não foi diferente com as que trabalhavam no palácio do príncipe. Apenas Bicho de Palha mantinha-se quieta e indiferente no seu canto.

O dia do grande baile chegou, com muita movimentação e expectativa por parte de todos. As outras criadas, bem antes do pôr do sol, já se haviam retira-do para seus aposentos para se prepararem para a festa. Somente Bicho de

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Palha ficou disponível para servir ao príncipe. Ele lhe pediu que lhe trouxesse uma bacia com água, a fim de banhar-se e vestir-se para o baile.

Mal o jovem saiu, Bicho de Palha pegou a varinha de condão que a bondosa velhinha lhe dera, quando saiu da casa do pai, e, comandando-a como a senhora lhe instruíra, pediu-lhe que lhe desse um vestido cor do campo com todas as suas flores. Bem vestida e calçada, foi ao baile em uma vistosa carruagem. Sabia que o encantamento terminaria à meia-noite em ponto. Portanto, não poderia atrasar-se para retornar aos seus aposentos.

O príncipe, mal a viu, apaixonou-se, pois não havia moça mais bonita e mais bem vestida que ela. Quando ele lhe perguntou onde morava, ela lhe respondeu: “Moro na Rua das Bacias”. E assim foram as outras duas noites restantes: na segunda, ao preparar-se para a festa, o príncipe pediu a Bicho de Palha que lhe levasse uma toalha, e, na terceira e última noite, um pente. E ela compareceu aos bailes, cada noite com um vestido diferente. E a cada uma dessas o príncipe lhe perguntava onde morava. E ela lhe respondia: “Moro na Rua das Toalhas” (segunda noite do baile) e: “Moro na Rua dos Pentes” (terceira noite).

Na terceira e última noite, atrasou-se alguns segundos para sair da festa, e, na pressa, perdeu um dos sapatinhos de cristal. Um dos criados do príncipe o achou e o levou a Sua Alteza, que imediatamente ordenou que procurassem a misteriosa dona do sapatinho por todo a reino e região.

Finalmente, Bicho de Palha foi encontrada exatamente no palácio do prín-cipe. Sua identidade foi revelada, e ela se casou com o seu amado. E a varinha de condão, cumprida sua missão, voou para o Céu, para a bondosa velhinha de feições meigas, que era Nossa Senhora, a madrinha e protetora de Maria.

Luís da Câmara Cascudo. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: Global.

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Capa de Junco

Cordélia era uma jovem que trabalhava como ajudante de cozinha em uma rica mansão. Por estar sempre vestida com uma capa de junco trançado, que lhe deixava à mostra apenas os

olhos, seus amigos a chamavam de Capa de Junco. O que ninguém sabia é que ela era filha de um senhor muito rico que morava com suas três herdeiras em um dos países vizinhos. Amava a todas, mas sua preferida era a terceira, o que provocava o ciúme da mais velha e o da segunda. Certo dia, Capa de Junco, foi expulsa de casa pelo próprio pai, que a julgara desnaturada e sem coração, quando ele, querendo dividir seus bens entre as três filhas e desejando deixar a maior parte àquela que o amasse mais que as duas outras, fez a cada uma delas esta pergunta : “O quanto você gosta de mim, minha querida?”. Como Cordélia lhe respondeu que o amava tanto como a carne fresca ama o sal, o ancião sentiu-se desprezado pela caçula, amaldiçoando-a, e colocou-a dali para fora.

Triste e lamentando o modo como o pai interpretara suas palavras, a jovem partiu trajando três dos seus vestidos mais belos, um sobre o outro, e com suas joias mais valiosas, mas tendo o cuidado de cobrir-se com uma capa feita de junco trançado, para não chamar a atenção e não ser reconhecida por ninguém. E assim estranhamente vestida e disfarçada foi até um dos reinos vizinhos, onde logo arrumou serviço como ajudante de cozinha em uma mansão de um rico se-nhor, pai de um rapaz muito bonito e em idade de casar-se. Ali, ela foi aceita como empregada encarregada de preparar as refeições e arrumar a cozinha.

Da janela da cozinha da mansão, via o jovem seu patrão, que não lhe dava a mínima atenção. Ela era somente uma das suas criadas. Aos poucos, Capa de Junco – sem revelar a ninguém sua verdadeira identidade – foi-se apaixonando pelo jovem rico.

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Um dia, a mãe do rapaz decidiu dar uma festa na mansão. Seriam três dias de danças e banquetes. Todos os reis e pessoas influentes daquela localidade e dos países vizinhos foram convidados. O jovem, que já estava em idade de casar-se, deveria escolher, entre as moças pre-sentes, sua futura esposa.

Toda a mansão se movimentou para a grande festa. Capa de Junco trabalhou muito durante os preparativos para os três dias de baile. Mas havia decidido participar das festas. Assim, quando, na primeira noite de baile, terminou suas tarefas na cozinha, rapidamente se dirigiu aos seus aposentos, banhou-se e escolheu um dos vestidos que levara quando deixou a casa pa-terna. Com ele, com algumas de suas joias e com um diadema nos cabelos, ninguém a reconhe-ceria como Capa de Junco.

Logo que chegou ao baile, atraiu a atenção do jovem patrão, que dançou com ela a noite toda. O rapaz estava encantado com a misteriosa dama que, antes da última badalada da meia-noite, desapareceu como que por encanto.

Inutilmente o jovem procurou pela encantadora jovem com quem dançara na noite anterior. Por melhor que a descrevesse, ninguém sabia dar-lhe notícias dela.

Nas duas noites seguintes, os fatos sucederam-se como os do primeiro baile: Capa de Junco esperou todos se dirigirem ao salão de festas e, ficando sozinha, foi para os seus aposentos, onde se arrumou e dirigiu-se, em seguida, para o salão. Deslumbrante, como sempre!

Na última contradança do terceiro e último baile programado, o jovem deu-lhe de presente um anel de brilhantes e lhe disse que “morreria se não a visse novamente”.

No dia seguinte, em vão o rapaz procurou pela misteriosa jovem, mas nem sinal dela! Nin-guém sabia quem era e nem onde morava. Amargurado, o jovem foi se deixando abater até cair enfermo. Inutilmente, seu pai e seus amigos faziam de tudo para erguer-lhe o ânimo. Nada con-seguia devolver-lhe a vontade de viver. E o rapaz se tornava, a cada dia, mais deprimido. Um dia pediu que a cozinheira preparasse um mingau para o filho que se encontrava bastante debilita-do. Capa de Junco, que estava na cozinha, ouviu o pedido e insistiu com a cozinheira para que a deixasse fazê-lo. Preparou-o e ao colocá-lo no prato deixou cair o anel de brilhantes que o jovem lhe dera. Quando o rapaz foi comer o mingau engasgou-se com o anel. Logo reconheceu-o como o que havia dado à misteriosa jovem por quem se apaixonara. Ordenou, então, que chamassem a cozinheira, e esta, com medo de ser castigada, contou-lhe que o mingau fora feito por Capa de Junco, a moça que a ajudava na cozinha. Radiante, o rapaz mandou que Capa de Junco fosse à sua presença. Ela atendeu ao chamado, mas, antes, vestiu-se como na terceira noite de baile e colocou a capa por cima.

Na presença do rapaz e da mãe dele, esclareceu-lhes quase tudo, menos o nome de seu pai. Foi marcado, então, o dia do casamento. Todos os nobres e pessoas abastadas das cidades vizi-nhas foram convidados. Também o pai de Capa de Junco.

Chegou o dia das bodas. Por solicitação de Capa de Junco, as carnes que seriam servidas durante o banquete não foram temperadas com sal. A cozinheira estranhou muito esse pedido e esse costume, mas, como, dali para a frente, Capa de Junco seria sua patroa, calou-se e fez como ela lhe pedira.

Durante o banquete, ao serem servidas as carnes, ninguém conseguia comê-las: estavam insípidas, sem sabor. Muito aborrecido, o rapaz e o pai dele queriam castigar a cozinheira, mas Capa de Junco assumiu a culpa e confessou que a empregada assim agira por ordem dela. En-quanto falava, lágrimas rolavam dos olhos daquele que era seu pai.

Quando o rapaz perguntou ao rico senhor por que chorava tanto, ele lhe respondeu que era de saudade e remorso pelo que fizera à sua filha caçula. Ele a expulsara de casa porque ela lhe res-pondera que o amava tanto quanto a carne fresca ama o sal. E ele, julgando-a ingrata e sem amor filial no coração, cometera o erro de mandá-la embora. Somente agora compreendia o significado daquela comparação feita pela filha, mas, tarde demais, porque, talvez, ela já estivesse morta.

Capa de Junco, então, penalizada com o sofrimento do pai, abraçou-o e revelou ser a filha que ele julgava ter perdido. Perdoou-o, e todos foram felizes para sempre.

Adaptação de um conto do folclore inglês.

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Depois dessa análise, prepare um quadro com a síntese do que foi observado. Esta é apenas uma sugestão. Você, por certo, vai encontrar sua própria forma de organizar essas informações.

Peça aos alunos que leiam silenciosamente as duas versões. Proponha-lhes algumas perguntas que os ajudem a conhecer os contos:

SEMELHANÇAS

Nas duas versões do conto há um narrador-observador que sabe de tudo e conta a história.

As protagonistas:

São humildes trabalhadoras em um palácio suntuoso.

Desconhecem a origem abastada do pai.

Saem de casa (fugindo da maldade da madrasta/desentendendo-se com o pai).

Usam capas (palha/junco) como disfarce da verdadeira identidade.

Seus apelidos (Bicho de Palha e Capa de Junco) dão título aos contos.

Embelezam-se e dançam com o príncipe nos três dias do baile.

Perdem o encantamento à meia-noite.

Têm a verdadeira identidade revelada no desfecho e se casam com o amado príncipe.

DIFERENÇAS

Bicho de Palha Capa de Junco

Varinha de condão entregue por uma bondosa senhora veste a personagem.

Usa os vestidos trazidos de sua casa.

Destaca o local de moradia: Rua da Bacia; Rua do Pente; Rua das Toalhas (nomes dos objetos que ele havia solicitado à personagem).

Não há detalhes sobre a mansão onde mora o príncipe.

Sapatinho de cristal. Anel de brilhante.

No desfecho do Bicho de Palha a varinha de condão volta ao céu e encontra “Nossa Senhora”, madrinha e protetora da protagonista.

O príncipe adoece por não encontrar Capa de Junco, que prepara o mingau que restabelece a saúde do príncipe.

Quais são as personagens principais?

O que acontece na história?

Em que tempo e lugar se passa a história narrada?

De quem o autor está falando?

Compare as narrativas, destacando as semelhanças e diferenças (personagens, ambiente, enredo, complicação, desfecho) entre os contos.

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“Fabular é precisoexistir não é preciso”

Eu gosto demais da palavra “fabulação”1, não apenas pelo meu ofício de escritor que, como todos os outros escritores, vive fabulan do ou contando histórias para dar mais sentido à vida – nosso tema constante e maior –, mas também porque fabular, regis­trando, criando ou mesmo lendo narrativas para os outros, é uma maneira de ser muito particular e especial da existência humana, desde o seu passado mais remoto, quando o homem sentiu a necessidade de inventar e narrar um universo fabulado, buscando preen­cher os vazios da realidade, decifrar os seus mistérios ou simplesmente celebrar o que a experiência de viver tem de mais vivo, de mais fantástico e de mais real.

“Contar” sempre foi uma tendência natu­ral das pessoas ou dos grupos de extrair do imaginário fatos fabulosos, inventar histó­rias exemplares ou extraordinárias, fazer ficções, e o conto, na sua forma breve, concisa e concentrada num acontecimento preciso, se tornou um correlato perfeito do sonho ou da fantasia essencial que habita o “sono” e compõe uma feliz junção entre o mundo con­creto e o mundo imaginado, a ponto de o professor Antonio Candido afirmar, num ensaio primoroso, que, por esta premência e urgência da “fabulação”, a literatura é um direito de todos2.

É exatamente por isso que “fabular” é preciso porque se torna manifestação ne­cessária e tem um norte no tempo da arte e “existir” não é preciso porque acontece ao acaso e nem sempre segue uma rota no tem­po da vida.

1. Emprego o termo “fabulação” não só no sentido de contar fábulas, mas também e sobretudo como força do imaginário que está na origem do homem, na fonte da vida, na aventura do conto.

2. Antonio Candido. “Direitos humanos e literatura”, in: Di-reitos humanos e... São Paulo: Brasiliense, 1989.

CONTOS PARA “REPASSAR” O TEMPO

Jorge Miguel Marinho

“Quem conta um conto acerta no ponto”

Se é certo dizer que “quem conta um conto aumenta um ponto” ler e especialmente reler um conto é encontrar o ponto exato para ver e rever a vida – não só a vida individual do leitor que se busca e quer se ver espelhado nessas breves narrativas, mas a história de vida do homem brasileiro representada no período de 150 anos, marcando aqui como início – pelo critério de qualidade expressiva na arte de contar e não apenas pelo valor histórico que remete à publicação de alguns poucos contos anteriores – A noite na taverna de Álvares de Azevedo, composto de narrativas que se en­trelaçam em clima de desvario e paroxismo sob o signo da morte, tema tão caro ao autor em prosa e poesia.

Como se pode constatar com raro prazer, lendo e relendo essas nossas primeiras his­tórias ou historietas, a longa trajetória do conto brasileiro já surge com uma voz defi­nida na originalidade macabra desse nosso poeta dos mais românticos, seguida das inú­meras narrativas de Machado de Assis vol­tadas para a complexidade da alma humana, outras de Aluísio de Azevedo preocupadas em denunciar até o caráter patológico do ho­mem vitimado pela miséria social e tantas outras de Lima Barreto, Alcântara Machado e até Graciliano Ramos, que elege o “desva­lido” como herói predestinado a nunca des­frutar o final feliz da história.

Nessa viagem onde a velocidade bem tra­mada e algo ainda aconchegante do tempo das narrativas se encontra e faz um acordo com a vida cada vez mais rápida dos leitores que se descobrem e se reconhecem numa ga­leria infinita de personagens, entram em cena Mário de Andrade com o tema da solidarie­dade e dos encantos e desencontros afeti­vos, Osman Lins com o sentido tocante da saudade de tempos ainda nem sequer vividos, José J. Veiga com seu lirismo e sentimento de acolhida da raça humana, paradoxalmente

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presentes em situações onde o que impera é a estranheza e o absurdo das relações entre as pessoas.

Evoluindo assim, em termos de qualidade estética e volume de produção, o conto brasi­leiro vai se instaurar, especialmente na mo­dernidade dos anos 1960, enquanto expressão depurada na vocação de ser contista com uma trupe de escritores que experimentam uma enorme variedade de temas e formas de

ver o mundo como é a disciplina do amor e a presença do mistério nas “coisas” mais sim­ples em Lygia Fagundes Telles, a sedução e o espanto do “ser” que vive uma súbita des­coberta interior na rotina mais familiar do co­tidiano em Clarice Lispector, a solidão e a incomunicação quase como um destino em Carlos Drummond de Andrade, a paixão e a compaixão no exercício de viver e de sobrevi­ver em Fernando Sabino, Ivan Ângelo, Luiz Vilela, a religiosidade com gestos de terno erotismo em Adélia Prado, o grito amorosa­mente ousado e quase feroz da mulher que cobra face a face o homem impossível e tan­tos outros contistas que vão do realismo ao fantástico, da denúncia social ao clima de alma, das aventuras e desventuras ao relato poético, do terror das histórias às histórias de amor, do factual ao abstrato, do suspense ao humor.

Por tudo isso e muito mais, não é exagero entender e acolher o conto como memória te­legráfica e igualmente “profunda” dos tem­pos esparsos e mais reveladores da história subjetiva do leitor e dos tempos da história co­letiva de um grupo, de uma geografia humana, de um país, pelo seu conforto e precisão cen­trados na brevidade “enxuta” dos elementos que compõem a explanação envolvente e sen­sivelmente expressiva de um acontecimento. Como um relâmpago de significações para usar uma imagem justa do ritmo e do traço iluminador dessa peculiar forma narrativa, o conto conta e parece prestar contas, por meio de flashes e porções precisas da reali­dade, do tempo da vida de cada um e do tempo

da arte de todos, nos dois sentidos espe­lhando e repassando aos olhos de quem es­creve e de quem lê esta nossa matéria tão viva, que talvez seja uma das poucas formas de vivenciar qualquer coisa de absoluto na própria transitoriedade do tempo: ler para guardar na memória e mais do que tudo para “nunca esquecer”.

Pois é esta experiência tão humana que o conto promove, sem nunca ter a presunção de contar dando conta de tudo – o conto apenas se entrega à concisão, à brevidade e à preci­são de contar o que fomos, o que estamos sendo e o que podemos ser nos limites e nas transgressões da experiência única de viver.

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“O prazer de ser nocauteado por um conto”

É claro que, sendo o encontro entre texto e leitor sempre meio imprevisível e sendo a leitura um acordo ou não das expectativas afetivas de quem lê com as ideias que uma história oferece, para cada pessoa existe o conto bom e o conto ruim, o conto eterno e o passageiro, o conto expressivo e o superfi­cial. Entretanto, inúmeras narrativas curtas têm a força poética de “nocautear” a grande maioria de leitores, como tão certeiramente o escritor Julio Cortázar pontuou, para si­tuar com a exatidão de crítico intuitivo “essa explosão de energia espiritual que ilumina repentinamente algo que vai muito além da pequena e às vezes banal história que conta”3.

E é verdade: um conto – como um relâm­pago de memória para insistir um pouco mais nessa imagem – ilumina uma realida­de muito mais ampla do que o mundo ime­diato no que ele tem de previsível e de im­previsível, de esperado e de inesperado, de visível e de invisível, porque ele é incisivo, concentrado, excitante, provocador, “mor­dente”, lembrando o atributo mais identifi­cador do conto para Cortázar.

Para este escritor único e sensível leitor, o conto não é novela nem noveleta que podem se alongar fazendo digressões ou se dando o direito de ramificar os conflitos – estas outras histórias ganham o leitor por pontos ou fios narrativos; o conto pela concentração de um polo de atenção norteado por um tema preci­so, sem nada a mais nem nada a menos, tudo no ponto.

Daí vem o prazer do “nocaute” que, meta­foricamente no universo da leitura, quer dizer um “soco” de significações muito bem trama­das e amarradas que conquistam o leitor, des­de as primeiras linhas, para uma viagem entre a vigília e o devaneio. Mais precisamente o leitor vivencia um tipo de felicidade repentina e espraiada de leitura como se estivesse no espaço contido, enquadrado e “maravilhosa­mente” desafiador de um ringue que se abre para o imaginário de mundos conhecidos e desconhecidos, sendo que este imaginário – exercício feliz do conhecimento – não tem tempo de duração.

3. Julio Cortázar. Valise de cronópio. São Paulo: Perpectiva, 1993, p. 153.

Quando essa iluminação ocorre, e não é raro ocorrer para quem se entrega ao fascínio que a literatura é capaz de exercer em cada um de nós, uma história puxa outra e muitos contos podem surgir e naturalmente se multi­plicar para o leitor passar e “repassar” o tem­po, feliz e contemplado com a “graça” de ler.

São muitos os nocautes provocados por um conto que conta uma história no ponto, e aqui apenas dá para vislumbrar alguns.

É a dona de casa aparentemente tranquila dentro de um certo desconforto com marido, filhos e “lar” que, voltando das compras de bonde, subitamente vê um cego mascando chicletes e tem, pela primeira vez, a sensação de se ver sendo vista por dentro, o que desen­cadeia nela uma profunda revolução interior. Não por acaso esse conto se chama “Amor” e é de Clarice Lispector.

Ou é o operário do conto “Primeiro de maio” que ingenuamente acorda bem cedo, toma banho, põe até gravata para celebrar o seu dia e encontra um mundo cerrado e deser­to, vigiado por policiais que estão alertas para evitar uma possível manifestação trabalhista, depois algumas aglomerações impessoais e, por fim, este suposto protagonista, do entu­siasmo de ser um herói trabalhador, acaba

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vivendo o sentido do anonimato, do medo e da solidão. Ou é o poético conto fantástico “Tele­co, o coelhinho” de Murilo Rubião, onde o nar­rador acolhe e leva para casa um coelhinho que progressiva e aceleradamente vai se transfor­mando nos mais diferentes bichos, numa ten­tativa dramática de preservar alguma singula­ridade num mundo impessoal e automatizado, até virar “uma criança nua e encardida”, reve­lando a fatalidade de viver numa realidade onde não é mais possível ter algo de original.

São muitos também os focos de atenção e são muitas as visadas de mundo presentes nos contos. É o sentimento instantâneo de ser herói numa viagem de avião em que o nar­rador recupera a sua força de “homem”, antes algo entediado, amparando uma mulher teme­rosa pelo voo no conto “Um braço de mulher” de Rubem Braga. É o sentido da opressão e de ser “diferente” num conto fantástico de Julio Cortázar, “Carta a uma senhorita em Paris”, onde acontece de o personagem vomi­tar coelhinhos, todos eles ternos e lindos no seu mundo segredado e clandestino, mas que acabam levando o narrador a um gesto ex­tremado quando o fato se torna público e ele é condenado precisamente pelo que tem de melhor. É também o sentimento de exílio

voluntário e de desistência do convívio huma­no de um velho que resolve passar o resto da vida numa canoa que persiste quase imóvel em “A terceira margem do rio” de Guimarães Rosa e, aos olhos sensibilizados e contempla­tivos do filho, vai definhando sem o menor de­sejo de retornar. É o tema do amor tocante e sempre indecifrável de Lygia Fagundes Telles, o sentido da obstinação e da paixão extre­mada em Caio Fernando de Abreu, o humor corrosivo e humanamente insatisfeito diante dos afetos e desafetos daqueles que vivem à margem em quase todos os contos de Dalton Trevisan e de Marcos Rey, a solidariedade poe ticamente estranhada daqueles que vivem ensimesmados na implacável solidão e se tor­nam cúmplices e até amigos na arte de viver e de morrer em “Dois corpos que caem” de João Silvério Trevisan, a descarga poética com rasgos de lirismo muito comungados com a voz da poesia em toda a obra de Mia Couto e aqui especialmente no conto pleno de en­canto – “O mendigo Sexta­Feira jogando no mundial” – em que o personagem confessa e até se compensa da sua miséria pelo fato de “estar doente” como única prova de ainda “estar vivo”, e mais tantas outras histórias que de forma breve, concisa e sempre carre­gada da mais funda expressividade humana só pensam nas dores, amores, sonhos, lutas, inquietações, ternuras, venturas e desventu­ras da condição humana e se oferecem como um modo privilegiado de recuperar os tempos individuais e coletivos da vida, felicidade esta tão oportuna para viver e reviver esses nos­sos tempos de cada dia.

E por fim, para pôr provisoriamente um ponto final neste artigo que acredita na arte de contar como criação imprescindível da arte de viver, vale lembrar que, pela natureza entu­siasmada dos contos que é a sua motivação maior de leitura, a memória assimilada dessas breves histórias resulta em matéria utópica, fazendo o leitor acreditar num tempo muito melhor e mais generoso para cada um de nós passar e “repassar” o tempo como um modo cada vez mais significativamente humano de “estar” dentro da arte e dentro da vida.

Jorge Miguel Marinho é professor de literatura, escritor, ator e roteirista. Entre suas obras publicadas citam­se Te dou a lua amanhã, prêmio Jabuti; Na curva das emoções, prêmio APCA; O cavaleiro da tristíssima figura, prêmio HQMIX; Lis no peito, prêmio Jabuti.