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221 : V. 1 N. 2 | P. 221 - 228 | JUN-DEZ 2005 2 Rafael Vanzella O CONTRATO, DE ENZO A VINCENZO O que os reduz à unidade? O fato de que todos os três contribuem, cada qual de um específico ponto de vista, para traçar o quadro dos fatores de “crise” da tradicional figura e disciplina do contrato e (de modo todo embrionário) as linhas de um novo paradigma contratual, as quais emergem sobretudo da legislação setorial dos anos 90 do século XX: aqueles “dez anos que subverteram o contrato” e que nos consignam, nos albores do séc. XXI, um instituto em larga medida remodelado a respeito dos esquemas da tradição (da tradição mais longínqua, mas também daquela relativamente vizinha). Eis então o título: “O contrato do séc. XXI” [Il contratto del duemila, IX]. No crepúsculo dos anos 70 do século XX, Roppo firma-se como um autor fun- damental (cf. Orlando Gomes. A função do contrato. Novos temas de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 101-109) para se compreender as transformações RESENHA ROPPO, ENZO. IL CONTRATTO. BOLONHA: IL MULINO, 1977. TRADUÇÃO PORTUGUESA DE ANA COIMBRA E MANUEL JANUÁRIO COSTA GOMES. O CONTRATO. COIMBRA: ALMEDINA, 1988. CIT. O CONTRATO. ROPPO, VINCENZO. IL CONTRATTO. IN: IUDICA, GIOVANNI; ZATTI, PAOLO. TRATATTO DI DIRITTO PRIVATO. MILÃO: GIUFFRÈ, 2001. CIT. IL CONTRATTO. ROPPO, VINCENZO. IL CONTRATTO DEL DUEMILA. TURIM: GIAPPICHELLI, 2002. CIT. IL CONTRATTO DEL DUEMILA.

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Rafael Vanzella

O CONTRATO, DE ENZO A VINCENZO

O que os reduz à unidade? O fato de que todos os três contribuem, cada qual de um específico ponto de vista, paratraçar o quadro dos fatores de “crise” datradicional figura e disciplina do contrato e (de modo todo embrionário) as linhas de um novo paradigma contratual, as quaisemergem sobretudo da legislação setorialdos anos 90 do século XX: aqueles “dezanos que subverteram o contrato” e quenos consignam, nos albores do séc. XXI,um instituto em larga medida remodelado

a respeito dos esquemas da tradição (da tradição mais longínqua, mas tambémdaquela relativamente vizinha). Eis então o título: “O contrato do séc. XXI”[Il contratto del duemila, IX].

No crepúsculo dos anos 70 do séculoXX, Roppo firma-se como um autor fun-damental (cf. Orlando Gomes. A funçãodo contrato. Novos temas de direito civil. Riode Janeiro: Forense, 1983. p. 101-109)para se compreender as transformações

RESENHA

ROPPO, ENZO. IL CONTRATTO. BOLONHA: IL MULINO,1977. TRADUÇÃO PORTUGUESA DE ANA COIMBRA E MANUEL

JANUÁRIO COSTA GOMES. O CONTRATO. COIMBRA:ALMEDINA, 1988. CIT. O CONTRATO.

ROPPO, VINCENZO. IL CONTRATTO. IN: IUDICA, GIOVANNI;ZATTI, PAOLO. TRATATTO DI DIRITTO PRIVATO. MILÃO:GIUFFRÈ, 2001. CIT. IL CONTRATTO.

ROPPO, VINCENZO. IL CONTRATTO DEL DUEMILA. TURIM:GIAPPICHELLI, 2002. CIT. IL CONTRATTO DEL DUEMILA.

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do direito dos contratos. Este, segundo opróprio autor, consiste em um conjuntohistoricamente mutável de regras e prin-cípios, os quais exercem um duplo papel:de um lado, conformam o contrato, fun-cionalizando-o às operações econômicasefetivamente praticadas [O contrato, 9,11]; de outro lado, moldam essas mes-mas operações econômicas, submeten-do-as a um certo arranjo e aos interessesque, no âmbito de tais operações, busca-se tutelar e prosseguir. Chegava Roppo,assim, à sua definição de contrato: é, porum lado, a formalização jurídica da ope-ração econômica, a qual, se constitui seusubstrato imprescindível, pode e deve serregulada pelo direito (dos contratos);por outro, a construção da categoriacientífica idônea para tal fim, ou seja, oconceito (jurídico) elaborado para dotara linguagem de um termo capaz de resu-mir uma disciplina jurídica complexa [Ocontrato, 7, 11].

Nesse emaranhado das noções dedireito (positivo), economia e institutojurídico (contrato), não se poderia mani-festar senão a demonstração de que odireito (dos contratos) consiste menos emnormas ditadas pela razão e mais na inter-venção positiva e deliberada das forçaspolíticas que exprimem o (os três poderesdo) Estado, satisfazendo certos interessese sacrificando outros que lhes sejam con-flitantes [O contrato, 22]. Em poucas pala-vras, o direito dos contratos é produto deuma decisão política, a qual lhe imputaobjetivos políticos; inevitavelmente, asmudanças daquela decisão determinam astransformações do direito dos contratos[O contrato, 23, 24]. É, enfim, a passagem

de um direito dos contratos que persegue(é posto por um Estado que tem) objeti-vos (políticos) liberais para um direitodos contratos que persegue (é posto porum Estado que tem) objetivos (políticos)sociais que constituíam o cerne das preo-cupações do jovem Roppo: o Roppo dadécada de 70 do século XX, quando entãose apresentava à comunidade acadêmico-jurídica como “Enzo”.

Passados mais de vinte anos – e,neste intervalo, atento a outras tantasmudanças dos objetivos políticos doEstado e, por conseqüência, do direitodos contratos –, Roppo, já não tãojovem, desloca o centro de suas atençõespara o que denomina “novo paradigmacontratual”: por trás dele, a transferên-cia de funções do Estado para o merca-do [Il contratto del duemila, 5] e o corres-pondente ordenamento jurídico cadavez mais informado pela lógica de priva-tização e liberalização [Il contrato del due-mila, 38]. O Roppo da década de 70 doséculo XX vai sendo, dessarte, superadopelo Roppo do século XXI, o que sedeflagra alegoricamente pela mudançade seu prenome, ao menos no seio desuas obras, para “Vincenzo”. Com isso,seu livro Il contratto daqueles anos 70 ésubstituído por outro homônimo, masmuitíssimo alterado tanto no plano deexposição e na extensão do texto quan-to nos temas abordados. Feito tomo doTrattato di diritto privato cuidado por G.Iudica–P. Zatti, o novo Il contratto éacrescido pelo pequeníssimo volume Ilcontratto del duemila, publicado poucodepois, cujos três ensaios servem comosua introdução. O que fica de Enzo é a

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mesma preocupação com o substratosocioeconômico em relação às normasjurídicas postas, seus mútuos influxos, omesmo modelo de compreensão do ins-tituto jurídico contratual lastreado nodevir histórico, com sérias reservas àlinha da continuidade acrítica, tãocomum a alguns civilistas. Mas o enfo-que das transformações dos objetivospolíticos do direito dos contratos deixade ocupar o primeiro plano de sua aná-lise para ceder lugar ao estudo imediatode questões dogmáticas advindas de ummodo diferente de regulação jurídica,que redefine o direito dos contratos e opróprio instituto contratual. Que estaregulação pressupõe certos objetivospolíticos, isso Roppo não descarta. Aênfase agora se dá, entretanto, nas con-seqüências que o desarranjo do Estado-nação provoca nas técnicas contratuaistradicionais, tanto as forjadas no con-texto do Estado liberal quanto no doEstado social.

Bastaria lembrar, nesse sentido, dacrescente influência que as diretivas daComunidade Européia exercem tantono ordenamento jurídico interno quantona cultura jurídica italiana. Com efeito,ao passo em que as leis especiais dosanos 70 e 80 do século XX – materialempírico dos trabalhos de Enzo – emba-savam as reflexões sobre descodificaçãoe microssistema, o último decênio desteséculo assiste a um salto de qualidade dalegislação: as “leis especiais de últimageração” têm origem no ambientesupranacional e comunitário e se refe-rem, outrossim, à disciplina de determi-nados setores do mercado, predispondo

regras sobre a relação entre seus prota-gonistas institucionais, quais sejamempresários e consumidores. São exem-plos as leis sobre cessão de créditos daempresa, contratos celebrados fora dosestabelecimentos comerciais, contratosbancários e de crédito ao consumo, con-trato de venda e compra de pacotesturísticos, contratos de seguro de vida ede danos, contratos relativos à prestaçãode serviços financeiros, contratos paravenda de multipropriedade, contratosde subfornecimento, contratos a distân-cia, entre outros [Il contratto del duemila,9-11]. Além disso – e por isso –, osmodelos normativos, frutos do laborcientífico alienígena, passam a ser inter-namente adotados de modo acelerado eviolento, sem assimilação cultural, namedida em que deixam de experimentaro trabalho intelectual para serem impos-tos pela decisão política incorporada nasdiretivas [Il contratto del duemila, 12].

Mas, na verdade, para tratar do“contrato do século XXI” sob a efeméri-de do desarranjo do Estado-nação,Vincenzo vai muito além. Traça, comode rigor e sem olvidar das novidades, arelação entre contrato e fonte do direi-to: se por um lado reforçam-se, no iní-cio do século XXI, as evidências empí-ricas do contrato como norma jurídica– tendência já apontada por Enzo nosfenômenos da estandardização e doscontratos normativos [O contrato, 331-326] – configurando, com nítidas dife-renças para com a anterior, uma novalex mercatoria [Il contratto del duemila, 6-7], por outro a sociedade e a economiaglobalizadas exigem um contrato cuja

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flexibilidade superponha-se aos valoresde certeza e estabilidade [Il contratto delduemila, 7]. Reaparece, revigorada pelaanálise econômica do direito, a teoriada efficient breach: o contrato não maisconstitui obrigação de adimplir, senãoum poder (formativo) de escolha entreadimplir e não-adimplir/ressarcir; res-peitar ou violar os deveres (relativos)contratuais torna-se indiferente doponto de vista axiológico, mas relevan-te se se aprecia sua conveniência econô-mica, pois neste caso é privilegiada aopção que garanta a melhor alocação derecursos [Il contratto del duemila, 7].

Seria o fim do corolário do direitodos contratos pacta sunt servanda, em queo aspecto moral se sobressai? Enzo nãochegou a enveredar sua análise nessadireção; deteve-se no significado ideoló-gico – e nas alterações – dos temas daliberdade de contratar, da igualdadejurídica dos contratantes, da autonomiada vontade, da teoria da vontade. Nãodeixou de afirmar, porém, que a desco-berta do sentido oculto em tais dogmasdo direito contratual liberal levava àadmissão de que o contrato (e os dog-mas do direito dos contratos) não passa-va de mecanismo objetivamente essen-cial ao funcionamento de todo o sistemaeconômico [O contrato, 25]. A próprianoção de autonomia privada, sucedâneaà noção de autonomia da vontade, jáindicava que a supremacia da vontadeindividual cedera lugar à legitimação daliberdade econômica, da liberdade deprosseguir no lucro ou de atuar segundoas conveniências de mercado. As trans-formações no direito dos contratos

caminhavam, pois, menos na linha deuma adaptação ética do que naquela danecessidade de torná-lo mais funcionalàs novas condições do capitalismo [Ocontrato, 310-311]. Todavia o coroláriopacta sunt servanda não era relativizado,senão reforçado, porquanto revelava queo respeito aos compromissos assumidosseria pressuposto para que as operaçõeseconômicas se desenvolvessem confor-me uma lógica própria, de modo a viabi-lizar e não frustrar os cálculos dos agen-tes econômicos [O contrato 24-25].

Para Vincenzo, porém, não precisa-mente o fim, mas sim a relativização dopacta sunt servanda é o cerne do “novoparadigma contratual”. Como Enzo,também em tema de proteção do con-tratante mais fraco, assume esta comoum dado normativo imposto nãosomente por questões de eqüidade e jus-tiça, mas sobretudo pela tutela do pró-prio funcionamento do mercado:empresários eficientes devem prevalecernão pelo abuso de posição dominante, esim pelo melhoramento da qualidade ediminuição do preço dos produtos, pelainovação tecnológica, pela redução doscustos internos e pela racionalização dosprocessos produtivos e distributivos [Ilcontratto, 904]. Entretanto, a noção deproteção do contratante débil, por terorigem na força expansiva do regimedos contratos do consumidor, implicaum modelo ao qual um número cada vezmaior de situações fáticas pode serreconduzido. Da proteção à posição(institucional) de consumidor passa-se àproteção à posição (institucional) decontratante débil, independentemente

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do papel que o agente econômicodesempenha no mercado [Il contratto delduemila, 27, 52-53]. Não é mais a quali-dade socioeconômica do contratante,mas sim a circunstância concreta na qualele se encontra que determina a incidên-cia de regras protetivas. No suporte fáti-co destas, não as qualidades subjetivas,não uma debilidade definida legalmenteex ante, e sim a assimetria de poder contra-tual. E esse modelo, que tem por base ospoderes (formativos) de denúncia darelação contratual pelo simples arrepen-dimento e de decretação da nulidade docontrato por requisitos de validade queextrapolam o rol do direito comum,apresenta uma certa unidade das conse-qüências de sua aplicação, qual seja oenfraquecimento do vínculo contratuale também do princípio da intangibilida-de do equilíbrio contratual [Il contrattodel duemila, 27, 34]; vale dizer, do coro-lário pacta sunt servanda.

O que isso significa exatamente? Emprimeiro lugar, que o regime dos contra-tos do consumidor derroga a disciplinado direito comum dos contratos [Il con-tratto del duemila, 34]. Em segundo lugar,que esse regime apresentou, na prática,uma força expansiva, a ponto de mesmoos princípios Unidroit consagrarem aproteção do contratante débil [Il contrat-to del duemila, 55]. Em terceiro lugar – e é aqui que se delineia o novo paradig-ma contratual –, a contemplação domodelo de assimetria de poder contra-tual, caracterizado pela circunstância deum dos contratantes estar em situaçãode desequilíbrio por não poder exercerseu poder (formativo) de estabelecer

o clausulado contratual, o qual é fixadounilateralmente pela outra parte contra-tante [Il contratto del duemila, 56].

Neste ponto se identifica o novoRoppo. Enzo, conquanto conteste a fór-mula “do contrato ao status” [O contrato,26-27] – inversa portanto àquela de H.S. Maine –, não deixa de se referir àsposições de superioridade ou inferiori-dade econômica e social das partes con-tratantes [O contrato, 327], o que é muitopróximo da idéia de classe e de status.Roppo não havia, então, se livrado dasamarras de um modelo que considera ascaracterísticas subjetivas dos contratan-tes, tanto que privilegia um controle daliberdade contratual ex ante, por meio deações neutralizadoras do legislador [Ocontrato, 327-334].Vincenzo rompe comesse vacilo e, na verdade, reajusta a dog-mática do direito contratual à fórmulade H. S. Maine, desprezando por com-pleto a idéia de posição socioeconômicados contratantes. O fundamental, nomodelo de Vincenzo, é a assimetria depoder contratual verificada em concre-to, apreciável com maior ou menor dis-cricionariedade caso por caso pelo juiz[Il contratto del duemila, 44].

Uma última questão permaneceria,contudo, a tirar o sono dos leitores deRoppo. Como diz Vincenzo, a noção devínculo contratual – que, reitere-se, selastreia no corolário pacta sunt servanda –cumpre uma função que acaba por deter-minar o caráter institucional do contrato:se o contrato não estabelecesse vínculo,ninguém poderia contar com a certeza ea efetividade das próprias posições jurídi-cas subjetivas ativas contratuais, ligadas à

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estabilidade dos efeitos contratuais, poistodos os contratantes estariam sujeitosao arbítrio da contraparte [Il contratto,533]. Assim, a nada serviria o contrato.Estar-se-ia, então, com o enfraquecimen-to do pacta sunt servanda, diante do defini-tivo declínio da figura do contrato, idéiarepelida por Enzo nos anos 70 do séculoXX [O contrato, 335-348]?

Não, certamente. Às previsões apo-calípticas, Roppo – ambos aliás – objetasempre com tendências outras do pró-prio sistema, aparentemente contraditó-rias, mas que, em verdade, acabam porredefinir o contrato, de modo não asucumbi-lo, e sim a revalorizá-lo. Emprimeiro lugar, caberia afirmar que nãoé em todos os contratos que se apresen-ta assimetria de poder contratual. Emsegundo lugar, aponta Vincenzo que aspróprias nulidades com que se sancio-nam contratos econômica ou normativa-mente desequilibrados ou que, ainda,violem deveres secundários são, em sen-tido atécnico, “relativas”: tanto subjeti-vamente, pois só o contratante débilpode invocá-las, quanto objetivamente –quando “contamina” somente uma partedo contrato, apenas das cláusulas nulas éque se decreta a invalidade, cabendo asuplementação ex lege da lacuna combase em parâmetros normativos pró-contratante débil [Il contratto del duemila,32-33]. Ocorre, destarte, uma conten-ção das conseqüências da invalidade, emfunção da preservação do vínculo con-tratual. E, em terceiro e último lugar,conforme já no século passado sustentouEnzo – quem não é, absolutamente, des-prezado por Vincenzo –, verifica-se,

cada vez mais constantemente, a “recu-peração da contratualidade”: em diver-sos fenômenos assume o contrato a fun-ção de instrumento de mediação social,retomando para sua lógica situações quenela ingressariam só de forma distorcidase não fossem as modificações do pró-prio direito dos contratos, e, outrossim,conquistando espaços novos [O contrato,337]. Reaparece o problema da relaçãoentre contrato e fonte do direito. Equanto a isso chama a atenção Vincenzopara um fato que passa constantementedespercebido no contexto da marketregulation, baseado nas autoridadesadministrativas independentes: ditarnormas para a regulação de um determi-nado setor do mercado implica não raroa edição de normas para regular – eassim também eleger como instrumentomediador da regulação – os próprioscontratos celebrados no âmbito daquelesetor [Il contratto del duemila, 20; Il con-tratto, 903-904]. Leis e regulamentoscedem lugar, pois, ao contrato, atémesmo no sentido de que, segundoEnzo, são cada vez mais “contratados”: asações legislativas e administrativas nãosão mais do que formalizações de “acor-dos” ou “entendimentos” de partes polí-ticas interessadas às quais subjazemlobbys extremamente poderosos [O con-trato, 338]. Volta à baila a tormentosarelação entre política e direito dos con-tratos, conquanto esse ponto já não sejatão crucial a Vincenzo. Seria por que onovo Roppo destaca com mais facilidadeo contrato dos domínios da política e daeconomia, vendo agora com uma certaautonomia o direito dos contratos?

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Em última análise, a leitura dos doisRoppo por meio de suas obras Il contrat-to de Enzo, Il contratto e Il contratto delduemila, ambas de Vincenzo, revela seuassento comum: uma sofisticada dogmá-tica do direito contratual feita compatí-vel com a compreensão do institutomediante um método interdisciplinar eque privilegia o devir histórico. Noséculo XXI, a advertência de Enzo sobreeste ponto se mantém inalterada e, maisdo que isso, é – e precisa ser – reforça-da [O contrato, 347-348]:

Sabemos que qualquer instituto jurídico,longe de ser governado por leis absolutas,

está sujeito a um princípio de relatividadehistórica: postular uma “essência” docontrato (e encontrá-la, em concreto,no exercício incondicionadamente livre da vontade individual e dos impulsossubjetivos das partes) significa destacar, demodo arbitrário, uma fase historicamentecondicionada e circunscrita da evolução doinstituto contratual (admitindo – o que éduvidoso – que também aquela fase tenhacorrespondido perfeitamente à pureza domodelo). Mas isto é ideologia: a verdade éque não existe uma “essência” histórica docontrato; existe sim o contrato, navariedade de suas formas históricas e dassuas concretas transformações.

Rafael VanzellaPESQUISADOR DA DIREITO GV

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