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O CORAÇÃO VALENTE: William Wallace e a reapropriação do espírito do guerreiro medieval MARIO MARCIO FELIX FREITAS FILHO Faculdade de Letras UFRJ 2017

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O CORAÇÃO VALENTE: William Wallace e a reapropriação do espírito do guerreiro

medieval

MARIO MARCIO FELIX FREITAS FILHO

Faculdade de Letras

UFRJ

2017

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O CORAÇÃO VALENTE: William Wallace e a reapropriação do espírito do guerreiro

medieval

MARIO MARCIO FELIX FREITAS FILHO

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de

Pós-Graduação em Ciência da Literatura da

Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio

de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para

a obtenção do Título de Mestre em Ciência da

Literatura (Literatura Comparada).

Orientador: Prof. Doutor Eduardo de Faria Coutinho.

Co-orientadora: Prof.ª Doutora Mônica Amim.

Rio de Janeiro

Agosto de 2017

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O CORAÇÃO VALENTE: William Wallace e a reapropriação do espírito do guerreiro

medieval

Orientador: Prof. Doutor Eduardo de Faria Coutinho.

Co-orientadora: Prof.ª Doutora Mônica Amim.

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência

da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

parte dos requisitos necessários para a obtenção do Título de Mestre em Ciência da

Literatura (Literatura Comparada).

Examinado por:

_________________________________________________________

Presidente, Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho – UFRJ (Orientador)

_________________________________________________________

Prof.a. Dra. Mônica Amim – UFRJ (Co-Orientadora)

_________________________________________________________

Profa. Dra. Maria Elizabeth Graça de Vasconcellos – UFRJ

_________________________________________________________

Profa. Dra. Teresa Cristina Meireles de Oliveira – UFRJ

_________________________________________________________

Prof. Dr. Flavio Pereira Senra – IFRJ (Suplente)

_________________________________________________________

Profa. Dra. Martha Alkimin de Araújo Vieira – UFRJ (Suplente)

Rio de Janeiro

Agosto de 2017

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À Beatriz, Bellatrix, Beatrice, por todos estes anos,

por sempre. “Me ensina a não andar com os pés no

chão, me diz se é perigoso a gente ser feliz”.

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AGRADECIMENTOS

À Beatriz dos Santos Oliveira, que a todos estes anos com amor e paciência vem

me ajudando a ser uma pessoa melhor. Você acreditou em mim quando era difícil que eu

mesmo acreditasse em mim e me mostrou como caminhar sem os pés no chão, foi minha

fortaleza, minha fortitude e meu alento. Obrigado por tudo, sempre, e a cada vez mais all

my loving to you.

À minha família, pelo abrigo, proteção e paciência. Obrigado pelos peixes de

incentivo.

À minha sogra, Ademilde, obrigado pelas abóboras e pelas palavras.

A Eduardo de Faria Coutinho, orientador, mestre e amigo cujo conhecimento, a

acessibilidade, a dedicação e a generosidade são fonte de inesgotável admiração e

inspiração profissional.

À Monica Amim, cujas palavras me faltam em agradecimento por ter me

resgatado no momento certo e ter, junto à Beatriz, me proporcionado uma verdadeira

transformação através de muita bronca e puxões de orelha, mas com amor. Obrigado pelo

exemplo, pela orientação, pela amizade. Gratidão, sempre.

Aos meus amigos, os quais sem seus ouvidos, seus gatos, chás e suas cervejas

seria um tanto quanto impraticável certas coisas. Rafael Ottati, Lia Evangelista, Charles

de Freitas, Eduardo Marques, Roger Takada, Domenica Mendes, Maury de Paula, Maria

Carolina Lohman, Tato Tarcan e Rafa Lohman, Paulo Carvalho, Euclides Camacho,

Francisco Jason Evangelista, Diego Soares e a todos vocês cujo nome me foge por causa

da pressão: muito obrigado. Força, sempre.

Obrigado a todos os mestres que passaram pelas minhas etapas de aprendizado.

Por fim, obrigado à minha casa, minha Faculdade de Letras, por todos esses anos

de altos e baixos. Mas, principalmente, obrigado por ser minha casa e por ter me dado

tanto.

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O mundo está mudando, posso sentir na água, posso

sentir na terra, posso sentir no ar. Muito do que havia

já se perdeu, pois não há mais ninguém vivo que se

lembre. (...) E algumas coisas que não deveriam ser

esquecidas, se perderam. A história tornou-se lenda,

a lenda virou mito.

J. R. R. Tolkien, O Senhor dos Anéis: O Retorno do

Rei

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RESUMO

FREITAS FILHO, Mario Marcio Felix. O CORAÇÃO VALENTE: William Wallace

e a reapropriação do espírito do guerreiro medieval. Rio de Janeiro, 2017. Dissertação

(Mestrado em Letras - Ciência da Literatura) - Faculdade de Letras, Universidade Federal

do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

A Idade Média contém o gérmen da construção de uma pós-modernidade e ela

continua a ser recontada de formas diversas e em diferentes mídias. Nosso objetivo foi

analisar a persona de William Wallace que, a partir da Primeira Guerra de Independência

da Escócia, foi reapropriado diversas vezes ao longo dos séculos. Sua vida foi recontada

em forma de poema épico, romance, música e película cinematográfica. Este fato nos

trouxe uma reflexão sobre a transformação de Wallace, cujos feitos são transfigurados a

partir da formação de um mito sócio-político-econômico visto por teóricos de diversas

áreas afins, como por exemplo, os estudos culturais e a teoria da literatura e do cinema.

Palavras-Chave: Estudos Culturais – Escócia – William Wallace – Mito – Cinema –

Poesia - Romance

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ABSTRACT

FREITAS FILHO, Mario Marcio Felix. O CORAÇÃO VALENTE: William Wallace

e a reapropriação do espírito do guerreiro medieval. Rio de Janeiro, 2017. Dissertação

(Mestrado em Letras - Ciência da Literatura) - Faculdade de Letras, Universidade Federal

do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

The Middle Ages contains the germ of the construction of a postmodernity and it

continues to be retold in different ways and in different media. Our aim was to analyze

the persona of William Wallace who, from the First War of Independence of Scotland,

has been reappropriated several times over the centuries. His life was retold in the form

of an epic poem, romance, music and film. This fact has brought about a reflection on the

transformation of Wallace, whose achievements are transfigured through the constitution

of a socio-political-economic myth seen by theorists of several related areas, such as

cultural studies, literature and film theory.

Keywords: Cultural Studies – Scotland – William Wallace – Mith – Cinema – Poetry –

Novel

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 11

CAPÍTULO I .................................................................................................................. 16

BREVE PANORAMA DA HISTÓRIA DA ESCÓCIA E O NASCIMENTO DE UM

MITO .............................................................................................................................. 16

CAPÍTULO II ................................................................................................................. 26

HARRY: O MENESTREL E SEU LEGADO ............................................................... 26

1- THE WALLACE E SEU AUTOR ......................................................................... 26

2 – A OBRA DE BLIND HARRY INSPIRANDO OUTRAS PRODUÇÕES .......... 29

CAPÍTULO III ............................................................................................................... 34

COM QUANTOS MITOS SE FEZ A REALIDADE? .................................................. 34

1 – O MITO E O MITO LITERÁRIO ........................................................................ 36

2 – O ARQUÉTIPO .................................................................................................... 37

3 – FIGURAS LITERÁRIAS E FIGURAS HISTÓRICAS ....................................... 40

CAPÍTULO IV ............................................................................................................... 42

WILLIAM WALLACE: AS DIFERENTES IDENTIDADES DE UM HERÓI

MULTIMIDIA ............................................................................................................... 42

1 – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE IDENTIDADE .. 42

2 – A MODERNIDADE COMO UM ESTADO TRANSCULTURAL .................... 44

3 – O CINEMA RESSIGNIFICA A IDADE MÉDIA ............................................... 46

4 - CORAÇÃO VALENTE: O HERÓI NA VISÃO DE RANDALL WALLACE ...... 49

5 – JACK WHYTE: OUTRA VISÃO SOBRE WILLIAM WALLACE ................... 58

CONCLUSÃO ................................................................................................................ 61

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 64

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INTRODUÇÃO

Entre os idos de 1296 e 1328, a Escócia passou pela sua Primeira Guerra de

Independência. Descendentes dos antigos guerreiros celtas (que barraram o avanço do

Império Romano sobre suas terras em 126 d.C.), os escoceses não admitiam viver sob o

jugo e a dominação de povos estrangeiros, somente obedecendo ao conselho de seus

próprios clãs.

Diante dessa realidade belicosa e pungente, surge uma figura histórica: William

Wallace. Por sua participação ativa e seu sacrifício pela causa escocesa, Wallace foi

eternizado não só nas páginas da História, mas também na literatura, nas telas de cinema

e, principalmente, no imaginário coletivo e mítico de uma nação. Assim, sobre ele

podemos dizer que o “futuro se torna passado, a premonição se torna reminiscência e a

realidade se torna mitologia”1.

Nascido nas terras de Elderslie, por volta de 1272, William Wallace foi uma figura

de destaque em toda a Escócia por lutar à frente da Primeira Guerra de Independência

Escocesa (1296-1328). Foi executado pelo rei Eduardo I da Inglaterra (Longshanks), em

1305, em Londres, após ser traído por um dos seus compatriotas na cidade de Robroyston.

Desde a sua morte, seu nome é celebrado como um ícone da luta contra a tirania inglesa

e inspirou diversas lutas e escritos ao longo dos séculos.

Porém, a história de Wallace esteve atrelada aos menestréis e jograis que, apoiados

por seus senhores, cantavam os admiráveis feitos do valente comandante. Infelizmente,

tal história somente seria compilada cerca de um século após os fatos ocorridos. Assim,

em meio ao séquito de admiradores dos feitos de Wallace, surge a figura de um Menestrel

da corte de Jaime IV da Escócia, que viveu entre os anos de 1440 e 1492. Seu nome era

Blind Harry ou Henry, The Minstrel. As fontes histórico-literárias que asseguram a sua

existência são: o Livro de Registros do Real Tesoureiro de Jaime IV, que de 1473 a 1492

registra lances de pagamentos a Blind Harry por seus serviços à corte e o famoso The

Lament for the Makaris do poeta William Dunbar (séc. XVI), onde ele é citado.

Henry foi o responsável por vivificar o mito de Wallace, cem anos após sua morte,

já que, como afirma Campbell, “os Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de

sentido, de significação, através dos tempos”. (CAMPBELL, 1990, p 16) Eles são os

responsáveis por fornecer modelos de vida e inspirar os corações humanos com um

1 “As future comes to past/Premonition comes to reminiscence/Reality to mythology.” Música:

LostRealms. Banda: Wuthering Heights (Tradução nossa).

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exemplo a ser seguido em um momento de dificuldade, onde o herói está no papel daquele

que já percorreu o caminho e voltou para contar como deu cabo dele.

É com esse espírito que Blind Harry escreve, 170 anos após a morte de William

Wallace, a obra mais famosa de todos os tempos na Escócia (perdendo em vendas

somente para a Bíblia Sagrada): uma série de 12 livros em forma de poema que

imortalizou um herói verídico do povo e elevou-o à categoria mítica.

O texto escrito em gaélico medieval, Os Atos e Feitos do Ilustre e Valente

Campeão Sir William Wallace2 (1477) é a celebração do heroísmo, das conquistas

militares e da vitória moral sobre a opressão do inimigo, não só de um Herói, mas de toda

uma nação que busca reaver seu bem mais precioso: a liberdade.

The Wallace é um texto de alto teor nacionalista. Sua estrutura leva o leitor a

percorrer os passos de Sir William Wallace desde a infância, onde algumas partes são

omitidas, até sua morte. Nessa jornada, o poeta apresenta os fatos e razões pelas quais

Wallace juntou-se à guerra pela independência de seu povo.

Tão grande importância possui a obra para o povo escocês que, por diversas vezes

ao longo dos séculos, a obra foi fonte de inspiração para uma sorte de autores. Dentre eles

cabe aqui citar os mais importantes: William Hamilton of Gilbertfield, que traduziu na

íntegra a obra para o inglês, em 1722, sob o título Blind Harry’s Wallace; Jane Porter,

que reescreveu a obra em forma de romance, no ano de 1810, sob o título de The Scottish

Chiefs; e finalmente Randall Wallace, que em 1994 roteirizou, baseando-se nesse livro, o

filme Coração Valente.

Diante de tão grande repercussão, fica o questionamento do motivo primordial de

esse personagem ter saído das páginas da história para ser imortalizado também nas

páginas da literatura. Para responder a esta indagação devemos trazer às nossas mentes

uma das funções primordiais da Literatura: ser alimento para o espírito humano.

Citando Campbell, “uma coisa que se revela nos Mitos é que, no fundo do abismo,

desponta a voz da salvação. O momento crucial é aquele em que a verdadeira mensagem

de transformação está prestes a surgir. No momento mais sombrio surge a luz.”

(CAMPBELL, 1990, p 50) E é nesse exato instante que surge aquele que realizará um

feito grandioso, pois suas façanhas começam por algo que foi usurpado ou proibido. Uma

característica comum importante apresentada pelas formas narrativas medievais é a

impossibilidade de se remontar com exatidão às suas origens, tendo em vista que elas se

2 The Actes and Deidis of the Illustre and Vallyeant Campioum Schir William Wallace.

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encontram diluídas no passado de uma longa tradição oral. Tal ideia pode ser corroborada

pelas palavras de N. Frye sobre o mito.

Para a crítica literária o sentido profundo de um mito se revela pela

fortuna literária posterior. Devemos ter claro também que o sentido

profundo de um mito, não importa qual, é aquele que ele possui no

apogeu da civilização que o ensejou, lembrando que uma narrativa ou

um tema mítico é um princípio estrutural basilar ou formativo da

literatura; quanto mais estudamos os prolongamentos literários de um

mito, mais aprofundamos nosso conhecimento sobre ele. (FRYE, 2014,

p 500)

Assim, quando estamos frente à figura do Herói, temos a certeza de que ele se

sacrificará em prol de uma causa, pois seu objetivo moral é defender uma pessoa, país ou

ideia. É nesse espírito que Wallace deixa a paz de sua propriedade e parte para a luta pela

libertação de sua pátria. Wallace, então, se sacrifica para salvar seu povo e morre

coincidentemente aos trinta e três anos, idade em que Cristo havia morrido para salvar a

humanidade.

Coincidindo com a proximidade das comemorações dos 700 anos da vitória da

Batalha de Stirling Bridge (1997), o filme Coração Valente (de 1995) retoma o tema da

luta pela liberdade frente à opressão, retratando a vida de William Wallace de forma

romântica, diferentemente do livro de Blind Harry – no qual o poeta procurava ser o mais

fiel possível aos fatos históricos. A maior crítica ao filme girou em torno da falta de

precisão histórica no que tange a alguns elementos retratados ao longo da ação. Tal

imprecisão resultou praticamente em uma piada nacional, pois, na Escócia, o filme foi

classificado como embaraçoso.

Porém, como podemos observar, apesar da película ter sido gravada em sua maior

parte na Irlanda, por um ator australiano, o filme, modernamente, cumpre o papel de

“reanimador” do Mito. Num momento em que, com o aumento desordenado da

quantidade de informações a que o homem moderno é exposto todos os dias, não há mais

a figura de um herói durável, no sentido de ser exemplo para a vida de um indivíduo e

seu grupo, a contemporaneidade exige um herói de cunho global, não mais local.

Tal resiliência se deve à força do exemplo de Wallace que, adaptado ao imaginário

contemporâneo, estimula o imaginário ocidental. Podemos verificar o fato através das

cenas finais da película: o grito de sofrimento do personagem diante da tortura que lhe

era infligida por seus algozes é um grito de liberdade, pois ele se recusou a renegar sua

crença até o instante final. Ele é amarrado e deitado em um local em formato de cruz de

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madeira. Dessa forma, seu sofrimento está conectado ao Cristo que morreu para a

libertação de muitos. Essa busca pelo herói que se assemelha a uma divindade representa

o retorno ao Mito etnorreligioso.

O roteirista Randall Wallace nos oferece uma figura que está lidando com um

grande problema humano, sonhando um sonho arquetípico, ou seja, um sonho que está

além das fronteiras temporais, raciais e nacionais: a liberdade. É um Herói útil para servir

de modelo em uma época na qual não há tempo suficiente para cristalizar uma informação

frente à rapidez das novidades.

Em tempos de economia globalizada e do desaparecimento das fronteiras físicas

propiciado por uma tecnologia veloz, o homem procura cada vez mais por um modelo a

seguir. Não um modelo midiático que surge e se extingue com a rapidez de um raio, mas

sim por um que possa servir de exemplo e guia para uma vida de dificuldades.

Diante de todas essas atribulações, o Herói surge, não mais como instrumento de

um povo, mas como uma oferta de ajuda e conselho para quando mais se precisa. Nesse

momento surge a figura mítica de Wallace que, através da história e por várias razões, é

relembrada de diversas formas para servir sempre ao seu propósito: aconselhar no

momento de dificuldade e guiar o seu povo para paragens mais seguras, ligando o

exemplo de heroísmo nato retratado na obra de Blind Harry à figura do libertador que se

assemelha à divindade cristã retratada no roteiro de Randall Wallace.

Tal ideal de liberdade, disseminado a partir dos atos heroicos de Wallace

sobreviveu no imaginário cultural popular através dos séculos, inclusive transpondo a

mídia física para a digital, em um movimento crescente de oralidade, livro, música, e

finalmente, filme. Todas estas formas épicas de contar e recontar o herói que se sacrifica

pelos seus possuem, em Wallace, sua força motivadora.

Para melhor discutir o tema proposto, utilizaremos textos de Teoria da Literatura,

Crítica Literária e Literatura Comparada de diversos teóricos, tais como Arnold Hauser,

Northrop Frye, Pierre Brunel, Paul Zumthor, Segismundo Spina e Chris Barker, para

refletirmos sobre a Literatura, o Mito e o imaginário do medievo e a tentativa de revivê-

los no imaginário ocidental contemporâneo.

Pretendemos estabelecer uma comparação entre o ideal cavaleiresco do guerreiro

medieval e sua real apresentação, em certos momentos conflitantes, em que o Wallace

romanceadamente épico é questionado pelo Wallace histórico. Pensamos que assim

poderemos oferecer uma melhor visão histórica, mesmo que de forma breve e

generalizada, do medievo. Para tal, recorreremos a obras de medievalistas e especialistas

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em história da Escócia medieval, a saber: Jacques Heers, Georges Duby, Jacques Le Goff,

François-Louis Ganshof, Hilário Franco Jr., Sybil M. Jack e Gwenne Jones.

Com o intuito de verificarmos como a Idade Média vem sendo rotineiramente

apresentada pelo cinema nos séculos XX e XXI, utilizaremos textos de José Rivair

Macedo, Lênia Márcia de Medeiros Mongelli e Jacques Le Goff, entre outros.

Refletiremos também sobre as influências sociais oriundas do mito de William

Wallace na literatura e no cinema, perfazendo o caminho da evolução representativa do

Herói nos vários momentos da história, desde próximo ao seu martírio até as últimas

produções no século XXI que celebram sua memória e seus feitos. Aqui, serão utilizadas

as obras de Joseph Campbell e Pierre Brunel.

Nessa pesquisa, nosso foco estará direcionado principalmente para a obra de

Henry, The Minstrel e também suas traduções ao longo do tempo para um vernáculo mais

atualizado, e para suas influências na sociedade Ocidental, sejam elas literárias,

cinematográficas ou audiovisuais, procurando ver como a mídia dos séculos XX e XXI

utiliza o mito de William Wallace. Para isso, dividiremos nosso trabalho em 4 partes

distintas, porém complementares.

No primeiro capítulo, faremos um breve panorama histórico-cultural da Escócia

entre os séculos XIII e XVIII, englobando tanto a história quanto as produções literárias

da época para melhor situar nosso enfoque.

No segundo capítulo, teceremos considerações sobre Blind Harry e sua obra,

assim como suas principais reverberações através dos séculos subsequentes: a tradução

de William Hamilton of Gilbertfield, no século XVII; a romantização de Jane Porter, no

século XIX; a releitura de Jack Whyte, no século XX, e as interpretações das bandas de

folk rock do século XX.

No terceiro capítulo, apresentaremos algumas reflexões teóricas para analisar as

relações entre o Wallace histórico, o Mito, e o Mito Literário, considerando também as

questões arquetípicas pertinentes à proposta inicial.

No quarto capítulo, trabalharemos algumas questões surgidas nas reapropriações

existentes na multiplicidade de obras suscitadas pela figura de Wallace, optando pelo

comparatismo entre duas mídias distintas: a audiovisual, em Coração Valente e a escrita,

em Os Guardiões da Escócia.

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CAPÍTULO I

BREVE PANORAMA DA HISTÓRIA DA ESCÓCIA E O NASCIMENTO DE UM

MITO

Beyond the lochs of the blood of the children of men,

beyond the frailty of plain and the labour of mountain,

beyond poverty, consumption, fever, agony,

beyond hardship, wrong, tyranny, distress,

beyond misery, despair, hatred, treachery,

beyond guilt and defilement: watchful

heroic, the Cuillin is seen

rising on the other side of sorrow.3

Para melhor compreender os motivos que levaram o bardo Blind Harry a cantar

os bravos feitos de William Wallace e, nos séculos subsequentes, o fato de o nome de

Wallace e suas realizações sempre retornarem com força ao imaginário escocês,

precisamos revisitar mesmo que por um breve momento em nossa pesquisa, um recorte

da história escocesa. Tal recorte se faz necessário para que, ao “observar fenômenos

humanos a partir de um “exterior” – entendendo que uma perspectiva exterior é tão

prontamente criada quanto as nossas mais confiáveis perspectivas ‘interiores’”

(WAGNER, 2012, p 19) – nos sejam dadas as ferramentas basilares para mergulharmos

nas motivações de um povo. Escolhemos então, apresentar rapidamente a formação do

povo que habitou a região, fazendo nosso maior foco incidir sobre a Idade Média e os

poucos séculos subsequentes. Sendo assim, vejamos os fatos mais relevantes para o nosso

estudo ocorridos entre o século XIII e o século XVIII.

No dia 18 de dezembro de 1997, trezentos anos após sua dissolução, o Secretário

para os Assuntos Escoceses Donald Dewar lançou uma ousada emenda parlamentar na

Grã-Bretanha: a reativação do parlamento escocês. A rainha da Inglaterra continuaria a

ser a chefe de estado, porém, salvo matérias como segurança nacional, defesa estratégica

e relações internacionais, a Escócia teria autonomia para resolver seus próprios assuntos.

Neste capítulo, poderemos depreender que a Escócia e sua luta por retomar a autonomia

sobre seu próprio território é uma matéria antiga, que remonta ao medievo. As razões para

tal recorte histórico serão dadas a seguir.

As evidências das ocupações humanas na região que hoje entendemos como

Escócia remontam a um período que volta no tempo até aproximadamente 6000 a. C..

Estas terras eram ocupadas por povos que viviam da caça de animais como o veado-

3 The Cuillin - Sorley MacLean (1911–1996)

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vermelho, da coleta de plantas como alimento e da pesca. Por volta de 4.500 a. C. a

agricultura foi introduzida na Escócia. Os primeiros agricultores utilizavam ferramentas

e armas feitas de pedra e machados ou a fogo para limpar florestas e dar espaço aos

campos de cultivo. A semeadura consistia em trigo, cevada e centeio. Eles possuíam

criação de bovinos e ovinos para sua subsistência, e moravam em simples cabanas feitas

de pedra com telhados de grama ou palha.

Já na Idade do Bronze, entre 2000 e 600 a. C., temos o aparecimento de evidências

de uma sociedade de grau estrutural mais elevado, que dominava a produção de utensílios

de metal. À tal civilização é dado o nome de Pictos. Eles habitaram o norte do território,

enquanto tribos celtas ocuparam o sul. Os Pictos eram caçadores e pescadores hábeis; eles

construíam suas residências de maneira circular, utilizando madeira ou pedra com a

cobertura de colmo. Porém, alguns deles vivam em estruturas artificiais em lago,

chamadas crannogs, e tais estruturas eram plataformas que se assemelhavam a palafitas.

Os Pictos também eram ourives hábeis, ceramistas e entalhadores de figuras em pedra.

Após a conquista da Gália, entre 55 e 54 a. C., o Imperador romano Júlio César

voltou seus olhos para as ilhas britânicas e moveu seus exércitos para lá, após sufocar a

rebelião de Vercigentorix, montando a posteriori pequenos acampamentos militares

fortificados. Porém, somente sob o reinado do imperador Cláudio, quarto imperador da

dinastia Júlio-Claudiana, Roma decidiu expandir seus domínios nas ilhas ao avançar ao

leste e ao norte do território. O governador romano para a Britania, Agricola,

desembarcou suas tropas na região da Caledônia no ano de 80 d. C. Esta região era

formada por terreno montanhoso, e conhecida como Coed Celyddon, as florestas da

Caledônia. Devido a sua geografia escarpada, as terras não serviam para a agricultura

regular romana. Além disso, eram habitadas por espectros e “homens loucos” dos quais

o mais famoso é referido como Myrddyn Wylt, ou o Merlin, o Louco, pelo historiador

Tácito. Este refere-se aos habitantes das ilhas como Britanni, ou, os bretões.

Em 84 d. C., sob o comando de Agricola, os romanos derrotaram os Pictos em um

local chamado Mons Grapius, situado ao norte do território escocês. Decidindo não se

fixarem no território conquistado, as legiões romanas foram se retirando vagarosamente

do local. Acossados pelo espírito aguerrido das tribos celtas que habitavam as terras mais

ao norte, e não conseguindo mais adentrar no território, o imperador Adriano decidiu

construir uma muralha defensiva no ano de 123 d.C. para separar o território dito bárbaro

do romanizado. Com o tempo, os postos romanos foram sendo abandonados e as tropas

recuadas. No ano de 140 d. C. os romanos concluíram mais um avanço no território ao

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norte. Não podendo mais prosseguir, ergueram a muralha Antonina, que foi

desguarnecida em 196 d. C. Tais muralhas, unidas, deram formato ao que hoje

entendemos como fronteira do território escocês.

O princípio do registro documental histórico nas ilhas britânicas se deve aos

romanos, pois só temos notícia de textos completos de origem celta a partir do século IV

ou V d. C. Anteriormente, a escrita estava limitada a palavras ou frases em placas ou

tumbas. Com o tempo, a palavra Britanni passou a nomear os habitantes da parte sul da

ilha da Bretanha, Albion designava os habitantes da parte norte, os escoceses, e Ierne

designava os habitantes da ilha da Irlanda. Tanto Ierne quanto Albion ainda conservavam

a língua celta como língua principal.

Com a queda do Império Romano e a consequente desocupação das legiões, os

Escotos e os Pictos ocuparam as regiões antes dominadas pelos romanos. Esta área

compreende os territórios da Escócia e do País de Gales. Desde então, criou-se uma

separação etnocultural entre uma Bretanha romanizada e uma Escócia e o País de Gales

com o espírito céltico mais aflorado. De certa forma, este espírito se mantém vivo até

hoje no imaginário cultural destes povos e foi responsável por acirrar os ânimos entre as

partes nos séculos vindouros.

Com a chegada dos primeiros missionários cristãos por volta de 500 d. C., iniciou-

se o processo de catequização das tribos locais, em especial, dos Pictos. O responsável

pela catequese do sudeste da Escócia foi São Columba, monge irlandês, que foi ao

território escocês por volta de 563. São Columba fundou um mosteiro em Iona, que se

tornou muito importante na história do cristianismo na Grã-Bretanha. Durante os séculos

VI e VII o cristianismo se espalhou em toda a Escócia e no final do século VII, toda a

Escócia era cristã. Na parte romanizada, a recepção foi positiva, enquanto na parte que

mantinha a tradição celta, o trabalho de evangelização foi deveras custoso. Os símbolos

pagãos foram destruídos ou incorporados à nova tradição. O cristianismo céltico ou a

Igreja Céltica desenvolveu-se nos séculos V e VI ao redor do Mar da Irlanda, abarcando

tanto escoceses quanto irlandeses. Tal fato terá reflexo mais tarde nos conflitos entre

católicos e protestantes nas ilhas.

Em meados do século VI os Anglos invadiram o nordeste da Inglaterra, criando o

Reino da Nortúmbria. No início do século VII o reino expandiu-se para o sudeste da

Escócia, abarcando uma faixa territorial generosa, indo até as cidades de Dunbar e

Edimburgo. Somente em 843 d. C., Kenneth MacAlpin, que era o monarca do reino

escocês de Dalriada, formado por descendentes dos irlandeses, tornou-se também o rei

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dos Pictos que ocupavam o centro e o norte do território escocês. Então, Pictos e Escotos

fundiram-se em um único reino. No entanto, o novo Reino da Escócia era composto

somente das terras ao norte do Clyde e Forth. Os ingleses governaram o sudeste da

Escócia até 1018 d. C., quando os escoceses conquistaram o restante de seu atual

território. Nessa época, o sudoeste da Escócia e da Cúmbria, condado ao norte da

Inglaterra que faz fronteira com a Escócia, formaram um reino separado chamado

Strathclyde, que foi absorvido pacificamente.

No século VIII o território escocês fora ameaçado com a chegada dos Vikings,

que invadiram o mosteiro de Iona em 795 d. C. No início do século IX os Vikings

terminaram por se estabelecer nas ilhas de Orkney e Shetland e mais tarde, instalaram-se

nas ilhas Hébridas e em Caithness e Sutherland, bem como na costa ocidental da Escócia.

Duncan tornou-se rei da Escócia em 1034, sendo morto por Macbeth em 1040. Ao

contrário da personagem criada por Shakespeare, Macbeth foi um bom rei para a Escócia,

sendo morto em 1057 na batalha de Lumphanan, e o filho de Duncan subiu ao trono da

Escócia, sendo coroado como Malcolm III.

Os normandos conquistaram a Inglaterra em 1066. A influência normanda foi logo

sentida na Escócia. Em 1069, Malcolm casou-se com uma inglesa chamada Margaret, que

introduziu os costumes normandos na corte. Malcolm foi morto em uma batalha contra

os ingleses, a batalha de Alnwick, em 1093. Durante os reinados de seus três filhos —

Edgar, 1097-1107, Alexander I, 1107-1124 e David I, 1124-1153 — o modo de vida

normando foi gradualmente aumentando, inclusive com muitos normandos vindo a residir

no território. No fim do século XII, foram organizadas dioceses para os bispos e

construídos novos mosteiros, o governo foi reformado, muitas cidades foram fundadas a

partir do florescimento comercial e David I foi o primeiro rei escocês a cunhar sua própria

moeda. Porém os reis escoceses detinham pouco poder territorial. Durante os séculos XII

e XIII, a oeste e ao norte, os chefes de clãs frequentemente rebelaram-se contra o governo

real.

O clã, palavra de origem gaélica clann, que significa “crianças”, eram

organizações familiares de determinada região, principalmente nas Highlands, as terras

altas, que se uniam sob uma linhagem ancestral comum como forma de apoio mutuo em

uma região mais inóspita do território. Afirma-se que esta organização era a melhor

maneira de subsistência diante das intempéries.

O rei Alexandre III conquistou as Ilhas Ocidentais por volta do ano de 1265, pois

até então estas eram governadas pela Noruega. Através do Tratado de Perth promulgado

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em 1266, o rei norueguês formalmente cedeu todo o seu território à Escócia, exceto as

ilhas de Shetland e Orkney. Porém em 1286, Alexander III sofreu um acidente durante

uma cavalgada noturna, falecendo devido aos ferimentos sofridos na queda. Sua herdeira

era Margarida da Noruega, sua neta, que residia na corte da Noruega, pois sua mãe,

Margarida da Escócia, filha de Alexander III, falecera durante o parto. Mas a infanta

também veio a falecer em 1290 a caminho da Escócia para assumir o trono deixado por

seu avô. E sua morte levou a uma disputa pelo trono escocês: havia muitos pretendentes

ao trono, conta-se que por volta de 13 concorrentes.

Para evitar que houvesse uma guerra civil em solo escocês, o Bispo de St.

Andrews pediu ajuda a Edward I, rei da Inglaterra, para arbitrar a disputa pelo trono,

tornando-a assim, teoricamente, mais justa a todos. O rei Edward optou por John Balliol,

que foi coroado em 1292. Os outros dois maiores concorrentes ao trono eram Robert

Bruce, Conde de Annadale e John Hastings, Conde de Pembroke. Em 1295, alegando ser

soberano de toda a Escócia, Edward tentou forçar os escoceses a se juntarem a ele em

uma guerra contra a França. Mas Balliol, que até então servira como joguete nas mãos do

rei da Inglaterra, rebelou-se, formando uma aliança com os franceses. Em 1296 Edward,

então, invadiu a Escócia, e Balliol foi capturado e forçado a se render ao trono da

Inglaterra. Edward procurou reger a Escócia diretamente, sem um rei fantoche, forçando

muitos nobres escoceses e os proprietários a submeterem-se a suas regras. E, em uma

reunião em Berwick, colocou altos funcionários ingleses para governar a Escócia,

retirando-se do território, e retornando a seu castelo.

Entretanto os escoceses não eram de fácil jugo. Parte considerável de pequenos

proprietários de terra levantaram-se em uma rebelião, liderada por William Wallace.

Dentre as diversas ocorrências que culminaram na I Guerra de Independência Escocesa,

está o assassinato do xerife William Heselrig, representante inglês em Lanark. Este foi

um dos eventos chave, não foi um incidente isolado, mas acredita-se que Wallace tomou

parte no movimento rebelde a partir desta revolta. Em setembro de 1297, Wallace infligiu

uma severa derrota aos ingleses na Batalha da Ponte de Stirling. Mas em junho do ano

seguinte, os ingleses obtiveram a vitória em Falkirk. Os escoceses continuaram, no

entanto, a resistir, batalha após batalha. E Wallace foi capturado em Robroyston, nos

arredores de Glasgow em 1305, levado para a Inglaterra e executado. Faremos no capítulo

posterior uma melhor análise da figura de William Wallace.

Em 1306, Robert Bruce foi coroado o rei da Escócia e sob seu reinado a resistência

escocesa aumentava gradualmente. Edward I faleceu em 1307, após ter contraído

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disenteria na Batalha de Loudoun Hill, em seu acampamento na vila de Burgh by Sands.

Mas em 1314, os ingleses foram completamente derrotados na Batalha de Bannockburn.

Tal batalha, que consolidou a independência da Escócia, fora travada pelo herdeiro de

Edward I, Edward II. Somente após 14 anos, contudo, a independência escocesa fora

reconhecida pela Inglaterra, através do Tratado de Northampton em 1328.

Na Inglaterra havia alguns nobres escoceses que tinham sido destituídos de suas

terras na Escócia por apoiar os ingleses. Aproveitando que Robert Bruce falecera em 1329

e seu filho de 5 anos de idade tornara-se David II da Escócia, estes nobres invadiram o

território escocês pelo mar e derrotaram os soldados enviados em seu encalço. Tal atitude

foi tomada com o fim de destituir o filho de Robert para, em seu lugar, coroar Edward

Balliol, filho de John Balliol. O exército inimigo marchou para a cidade de Scone, onde

Edward Balliol foi coroado rei. E lá tentou obter o apoio do rei inglês, prometendo-lhe a

cidade de Berwick. No entanto Balliol fora logo derrotado e varrido para fora da Escócia.

Durante a Baixa Idade Média, os reis escoceses exerciam pouco poder de

comando, e seus barões, às vezes, exerciam poder independente em seus territórios. Por

um lado, a Escócia sofria pela descentralização de seu governo, por outro, seus burgos e

cidades floresciam e prosperavam. A universidade de St. Andrews, primeira da Escócia,

foi fundada em 1413. Mas durante os séculos XIV e XV as batalhas entre ingleses e

escoceses continuaram.

No século XV o rei James IV (1488 - 1513) restaurou a ordem na Escócia através

do Tratado de Ayton de 1496. Este foi um primeiro passo para que em 1502, fosse

assinado o Tratado de Paz Perpétua com Henrique VII da Inglaterra. O reinado de James

foi um reinado de grande desenvolvimento para a Escócia e propício à literatura, pois

além da fundação da Universidade de Aberdeen em 1495, a primeira prensa escocesa foi

instalada em Edimburgo em 1507. O monarca primou pela educação dos nobres e

senhores de terras de seu reino, baixando um decreto em que obrigava que seus filhos

mais velhos fossem enviados às escolas.

Tal qual o restante da Europa, no século XVI a Escócia foi sacudida pela Reforma

Protestante. As ideias pregadas pelo protestantismo espalharam-se gradativamente até

que, em 1557, um grupo de nobres, tendo contato mais aprofundado com tais ideias,

assinou um pacto para defender o protestantismo no território escocês.

A figura de destaque na Reforma Escocesa foi John Knox (1505-1572). Em 1559

ele retornou de Genebra, onde aprendera os ensinamentos de João Calvino. As pregações

de Knox levaram à conversão de muitos. No ano de 1560 o Parlamento Escocês cortou

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todos os laços com o Papa Pio IV. A partir de então, o Parlamento também proibiu a missa

católica ou qualquer doutrina ou prática contrária a uma confissão de fé elaborada por

Knox. A reforma escocesa fora bem-sucedida e a Escócia era, agora, um país protestante.

No ano de1561, após a morte de seu marido, Mary I retorna da França. Apesar de

Mary professar o catolicismo, ela foi forçada a aceitar a Reforma Escocesa, mas se

manteve fiel à sua antiga religião. Em 1565, Mary casou-se com seu primo, também

católico, Henry Steward, Lorde Darnley. No entanto, Darnley ficou com ciúmes do

Secretário italiano de Mary, David Riccio, e, em março de 1566 Darnley e seus amigos

assassinaram Riccio. Mary nunca perdoou Darnley. Assim, no ano seguinte, uma casa

onde Darnley estava hospedado foi explodida, e, quando encontraram seu corpo, foi

constatado que ele havia sido estrangulado pouco tempo antes da explosão. Pouco após o

episódio, Mary desposou o Conde de Bothwell.

Enfurecidos com a situação, os nobres protestantes promoveram um levante e

capturaram Mary, forçando-a a abdicar do trono em favor de seu filho, que se tornou

James VI. Mary escapou das mãos dos nobres e ergueu um exército, mas foi derrotada na

batalha de Langside, fugindo para a Inglaterra. A Escócia foi governada por regentes até

que James tivesse idade suficiente para governar. Em 1589, James casa-se com Ana da

Dinamarca. Então, em 1603, com a morte da rainha Elizabeth da Inglaterra, ele se torna

o rei James I da Inglaterra, bem como o rei James VI da Escócia. Durante a crise da

Invencível Armada em 1588, guerra entre a Espanha e a Inglaterra, James garantiu a

Isabel, rainha da Espanha, seu apoio como "seu filho natural e compatriota de seu país".

Tal correspondência e apoio fora fundamental para que, após a morte de Elizabeth, que

não deixou herdeiros, James pudesse ascender ao trono inglês. Sua mãe, Mary I, fora

decapitada em 1587 na Inglaterra.

Em relação à doutrina da Igreja Anglicana, vertente protestante fundada por

Henrique VIII, a Igreja Escocesa diferia em suas práticas e algumas doutrinas. O filho de

James, Charles (1625 – 1649), tentou unificar as duas igrejas, impondo uma liturgia única.

Mas, tal ato desagradou aos escoceses.

Em janeiro de 1649 os ingleses decapitaram Charles I. Os escoceses

imediatamente proclamaram seu filho Charles II como o rei Charles II. Assim como seu

pai, Charles, e seu avô James VI, Charles II era episcopal. Ele acreditava que os Bispos

deveriam reger a igreja. No entanto, para ganhar o apoio dos escoceses, ele concordou

em aceitar o presbiterianismo na Escócia. Em junho de 1650, ele foi para a Escócia e foi

coroado rei em Scone em janeiro de 1651. Entretanto, em julho de 1650 outro exército

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inglês invadiu a Escócia, ocupando a cidade de Edimburgo. No verão de 1651 o exército

escocês foi derrotado em Inverkeithing. Então, o exército escocês invadiu a Inglaterra,

esperando o apoio dos monarquistas ingleses. Tal apoio não aconteceu e novamente os

escoceses sofreram derrota na cidade de Worcester em setembro de 1651. Charles II,

então, fugiu para o exterior e o exército inglês ocupou toda a Escócia. No entanto, a

ocupação inglesa terminou em 1660, quando Charles II foi coroado rei de Inglaterra e da

Escócia.

Charles II restaurou os Bispos da Igreja da Escócia, levando a cerca de um terço

dos ministros do parlamento a resignar-se. Muitos escoceses, especialmente no sudoeste,

reuniram-se, então, secretamente para tratar de assuntos religiosos. Essas reuniões eram

chamadas conventículos. Gradualmente, o governo tratou-os mais duramente. Em 1679,

o Arcebispo de St Andrews foi assassinado e a agitação espalhou-se pelo reino. O governo

enviou tropas para sufocar as agitações e os conventículos foram derrotados na batalha

de Bothwell Brig. Porém, os conventículos continuaram a resistir e o governo continuou

a persegui-los, fazendo a década de 1680 ser conhecida como o tempo da matança.

Charles II morreu em 1685 e seu irmão James tornou-se o rei James II, que era

católico romano e inglês. Os escoceses temiam que James restaurasse o catolicismo

romano, por isso, depuseram-no em 1688. Após a deposição de James, William e Mary

tornaram-se rei e rainha da Escócia. O Parlamento escocês restaurou o presbiterianismo.

No entanto, nem todos os escoceses congratularam-se pelos novos monarcas.

Highlanders, sob o comando do Visconde de Dundee, revoltaram-se, sendo vitoriosos em

Killiecrankie no ano de 1689, mas seu líder foi morto e os Highlanders se dispersaram.

O novo governo estava determinado a retomar o comando das terras. Por isso,

ordenou a todos os chefes dos clãs um juramento de lealdade ao rei William até o último

dia de 1691. Mas, o chefe do clã MacDonald de Glencoe chegou tarde e só fez o juramento

em 6 de janeiro de 1692. Mesmo diante do atraso de alguns dias, o governo decidiu fazer

dele um exemplo. Tropas lideradas pelo Capitão Robert Campbell de Glenyon foram

enviadas para Glencoe e alojadas em uma estalagem. Os MacDonalds trataram-nos com

hospitalidade. Porém, no alvorecer de 13 de fevereiro, Campbell e os seus homens caíram

sobre os MacDonalds, que ainda dormiam. Eles foram de casa em casa matando os

habitantes e, em seguida, queimando as casas. No total de 38 pessoas foram assassinadas,

incluindo o chefe do clã. A este terrível massacre foi dado o nome de Massacre de

Glencoe.

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Percebendo que o rei deposto poderia retornar à Escócia para reclamar seu trono,

o rei William incitou uma União entre a Inglaterra e a Escócia. Sua sucessora, a rainha

Anne, fez o mesmo. Os negociantes escoceses vislumbraram vantagens econômicas nesta

união e, em 1706, concordaram em abrir negociações. Os escoceses queriam uma União

Federal, mas o Parlamento Inglês recusou. Ainda em 1706 foi redigido um tratado onde

as duas nações compartilhariam uma bandeira e um Parlamento, mas a Escócia manteria

sua própria igreja e seu próprio sistema jurídico. O Parlamento escocês aceitou o Tratado

de União em 1707. E o Reino Unido passa a existir formalmente em 1 de maio de 1707.

A impopularidade do Ato de União crescia cada vez mais entre muitos escoceses.

Enquanto isso James II, o rei que fora deposto em 1688, faleceu em 1701, mas seu filho

James Edward estava ansioso por recuperar o trono escocês. Seus seguidores eram

chamados Jacobitas, nome dado porque, do latim, James era traduzido como Jacobus. Ele

possuía muitos adeptos nas Highlands. Em 1715, o Conde de Mar proclamou-o rei,

denunciando a nulidade do ato de União.

Os Highlanders reuniram-se para se juntar ao Conde de Mar e em setembro de

1715 suas forças capturaram Perth. No entanto, nas cidades ao sul o Tay permaneceu fiel

ao governo. Em 13 de novembro, os Jacobitas lutaram contra as tropas do governo em

Sheriffmuir, perto de Dunblane, mas a batalha terminou hesitante. Em 22 de dezembro

de 1715, James Edward desembarcou em Peterhead, porém os Jacobitas se retiraram de

Perth, diante das forças governamentais, e isso fez com que James Edward desanimasse

e, em 4 de fevereiro de 1716, ele e o Conde de Mar deixaram a Escócia. Tal ato arrefeceu

a rebelião até que ela foi dissipada. Entretanto os Highlanders permaneceram como uma

ameaça constante ao governo.

Algumas medidas foram tomadas pelo governo para prevenir uma nova rebelião

e reforçar o controle nas Highlands. O Fort Augustus foi construído em 1716. Entre 1725

e 1736, o General Wade construiu uma série de estradas nas Highlands para facilitar o

deslocamento das tropas governamentais. Em agosto de 1745, Charles Stuart, neto do rei

que fora deposto em 1688, desembarcou na Escócia, na esperança de recuperar o trono.

Em setembro de 1745, “Bonnie Prince Charlie” capturou Edimburgo, persuadindo alguns

dos montanheses a apoiá-lo. Eles então foram cercados por uma tropa do exército do

governo em Prestopans. Os Jacobitas em seguida marcharam ao sul e em dezembro

chegaram a Derby. Os ingleses falharam em apoiar Charles e algumas das suas tropas das

Highlands desertaram. Assim, em 6 de dezembro de 1745 os Jacobitas começaram uma

retirada. Charles Stuart, posteriormente, fugiu para a França.

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Após a derrota da rebelião Jacobita, o governo aprovou leis para destruir o modo

de vida e tradições dos Highlanders. Em 1746 uma lei proibiu o kilt e a gaita de foles. As

terras pertencentes aos Jacobitas foram confiscadas e as “Jurisdições Hereditárias” — o

direito dos chefes de clã para segurar os tribunais e julgar certos casos — foram abolidas.

Apesar das rebeliões Jacobitas, a economia da Escócia cresceu rapidamente

durante o século XVIII. Os proprietários estavam ansiosos para melhorar suas

propriedades e foram introduzidos novos métodos de agricultura. Nabos e batatas foram

introduzidas na Escócia. Infelizmente essa anulação cultural das Highlands causou muito

sofrimento. Na década de 1760, os latifundiários foram despejados e os arrendatários

foram obrigados a entregar suas terras ao gado ovino. Muitos dos despossuídos migraram

para a América do Norte e outros mudaram-se para as cidades, onde a indústria crescia

ferozmente.

Em nosso próximo capítulo teceremos considerações acerca de Blind Harry e sua

obra, assim como de algumas de suas reapropriações que receberam maior destaque ao

longo dos séculos. Este capítulo será basilar para a melhor discussão da importância do

mito de Wallace não só para o povo escocês, mas como uma herança cultural partilhada.

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CAPÍTULO II

HARRY: O MENESTREL E SEU LEGADO

Of such, I say, I’ll brag and vaunt so long

As I have pow’r to use my pen or tongue;

And sound their praises in such modern strain,

As suiteth best a Scot’s poetic vein.4

A tradição literária escocesa é tão variada e rica quanto a produzida nos demais

reinos que compõem as Ilhas Britânicas. Suas obras primas foram produzidas em três

línguas: inglês, gaélico e scots. O inglês garantiu sua primazia como língua franca para a

comunicação nos reinos das Ilhas Britânicas; é a língua do dominador que mesmo assim

foi submetida a uma variação própria, chamada Scottish Standard English. O gaélico ou

gaélico escocês é a língua falada nas Terras Altas, que remonta ao século V de nossa era,

quando os celtas provenientes do norte de Irlanda se instalaram nessas terras. O gaélico

aos poucos foi substituindo a língua falada pelos Pictos. Já o scots é uma língua germânica

falada nas terras baixas da Escócia, originada do inglês médio da Nortúmbria.

Quando refletimos sobre a literatura escocesa medieval, dois principais nomes se

apresentam: John Barbour e seu poema The Bruce e Blind Harry com The Wallace. John

Barbour foi Arquidiácono de Aberdeen, e escreveu sua obra prima baseada na vida de

Robert Bruce na década de 1370. Por essa obra, Barbour é considerado como o pai da

poesia escocesa e influência de autores como Chaucer e Harry. Tanto The Bruce quanto

The Wallace são ficções históricas, versando sobre a Primeira Guerra de Independência

da Escócia, cada qual focando no personagem cujo título evidencia. Tais obras são

escritas buscando uma verossimilhança histórica, mitificando os heróis através de suas

aventuras e desventuras.

1- THE WALLACE E SEU AUTOR

O interesse por uma obra de arte é despertado no ser humano, muitas das vezes,

pela atualidade de seu tema. Apesar de The Wallace ser uma obra largamente difundida

na Escócia e largamente estudada, pouco se sabe acerca de seu autor. Não podemos

precisar o local exato de seu nascimento, sabe-se apenas que viveu entre 1470 e 1492. O

filósofo e historiador escocês John Major foi o primeiro estudioso a pesquisar e obter a

4 The Wallace. Book 1, Chapter 1, p 1.

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confirmação, ainda no século XVI, de que os versos sobre William Wallace foram escritos

por um homem chamado Harry ou Henry, de cujo sobrenome não havia evidências,

apenas uma alcunha que versa sobre a sua possível cegueira. Podemos arrolar como

registros de sua existência ao menos dois textos: o poema Lament for the Makaris, de

William Dunbar – citando a recente morte do poeta - e as Contas do Real Tesouro do Rei

James IV, entre os anos de 1473 e 1492. Nessa época, existem cinco lançamentos

destinados a Harry e a outros menestréis da corte. Acredita-se que Harry seja conhecido

como Blind Harry para diferenciar-se de algum outro autor que fosse seu contemporâneo.

Acredita-se que Harry completou a escrita de seu poema por volta do ano de 1488, pois

neste mesmo ano um escriba chamado John Ramsay realizou sua cópia em língua latina.

Este manuscrito está preservado na Biblioteca Nacional da Escócia - Biblioteca dos

Advogados -, em Edimburgo, sob o número de catálogo Adv. MS. 19.2.2 (ii). Esta cópia

está guardada sob o título Vita Nobilissimo Defensoris Scotie Wilelmi Wallace Militis.

O poema original foi escrito em gaélico medieval. Isto pode evidenciar uma

conotação de certa resistência cultural, pelo fato de não ter sido escrito em SSE (Scottish

Standard English) ou no latim usado na corte, mas em vernáculo. Esta também pode ser

uma provável evidência de falta de educação formal de Harry. Este poema épico foi

descrito como biografia romântica (MCKIN: 2003, p viii), em 11.877 estrofes, divididas

em 12 livros. Segundo Scheps (1970), este poema é o primeiro poema medieval escocês

a utilizar pares de versos decassílabos. Assim como seus contemporâneos, Harry, em suas

estrofes, faz uso de rimas estruturadas no estilo aabaabbab em estrofes de nove linhas.

Eternaile God, qhy suld I thus wayis de,

Syne my belief all haile remanys in Thee,

At Thin awn will full worthily was wrocht?

Bot Thou rademe, na liff thai ordand me.

Gastlye fadyr that deit apon tre,

Fra hellis presoune with thi blud us bocht,

Quhi will thou giff thi handewerk for nocht,

And mony worthy in to gret payne we se,

For of my lyff ellysnothing I roucht?5

5 “Eterno Deus, porque devo eu morrer,/Até agora tenho mantido minha confiança em vós,/Vale a pena isso

a que serei totalmente digno?/Mas vós me redimistes, e a isso decretastes em minha vida./Pai Espiritual que

morrestes na cruz,/Com vosso sangue nos tiraste da prisão do inferno,/Por que vós tivestes este trabalho de

graça,/E nenhuma riqueza vale este grande sofrimento que vemos,/Por minha vida a qual barganho?”

(Tradução Nossa) The Wallace, Livro 2 verso 180 a 189.

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Tal recurso, segundo Mckim (2003, p xi.), foi utilizado por Chaucer, em seu

poema Anelida and Arcite (década de 1370), por Robert Henryson em The Testament of

Cresseida (século XV), por William Dunbar em The Goldyn Target (1508) e ainda por

Gavin Douglas em The Palice of Honour (1501). Existe uma exceção no poema,

localizado no Livro I, verso 104, onde Harry, a exemplo de Chaucer em The Monk’s Tale,

utiliza uma estrofe de oito linhas em verso decassílabo, cuja rima compreende a estrutura

ababbcbc.

In this samyn tyme to him approchit new

His lusty payne, the quhilk I spak of ayr.

Be luffis cas he thocht for to persew

In Laynryk toune and thidder he can fayr;

At residence a quhill ramaynit their

In hyr presence as I said of befor.

Thocht Inglismen was grevyt at his repayr,

Yeit he desyrd the thing that sat him sor.6

No início do poema, Harry refere-se à obra como ‘Wallace Lyf’. O termo lyf ou

life é comumente usado, na Idade Média, como indicativo de biografia. Tal fato repete-se

no manuscrito Ramsey, onde seu copista utiliza a palavra latina vita. A partir da quarta

edição, que data de 1630, o termo life é substituído por life and acts, ou seja, a vida e os

feitos. Sua narrativa percorre uma trajetória linear, que vai desde o nascimento de Wallace

até a sua execução.

Os feitos de William Wallace são matéria de lendas antes mesmo de Harry

eternizá-los em seu poema. Alguns anos antes de Harry, o historiador John of Fordun

menciona tais feitos em sua Gesta Annalia (1285) – capítulos 98 a 103 – e,

posteriormente, em sua Chronica Gentis Scotorum (os primeiros 5 volumes entre 1124 e

1153 e um volume póstumo em 1385). Acredita-se que tais textos foram a base das

crônicas de Andrew of Wyntoun e Walter Bower no século XV.

A obra de Harry é considerada a celebração da vida de William Wallace, pois ele

eterniza, ao modelo do bardo, seu heroísmo, seus feitos militares e sua vitória moral sobre

o inimigo. O poeta divide seu épico em 12 livros para que possa ser declamado na forma

de episódios, cujo propósito é inspirar, encantar e guiar o ouvinte ou leitor a um processo

catártico de autoafirmação diante de um problema, através da imitação das qualidades

morais do herói.

6“Nesta mesma época ele retorna/À sua prazerosa dor, àquela [sobre] a qual mencionei em Ayr./Para

prosseguir de acordo com a chance do amor/Pode retornar à fazenda em Lanark;/Lá permaneceu por algum

tempo/Em sua presença como havia dito./Apersar dos ingleses estarem aguardando sua chegada,/Ainda sim

desejava àquilo que lhe causava maior problema.” (Tradução Nossa) The Wallace. Livro 6, verso 17 a 24.

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29

But I go on with faithful pen and true,

And candidly my purpouse persue:

Wallace, tho’ young as yet for sword or spear,

Did grieve, and groan, such injuries to hear:

“Ah! Should my country suffer such distress,”

Said he, “and South’ron daily thus increase;

O had I but ten thousand at my back,

And were a man, I’d gar their curpins crack.”

(…)

That they to Scots might give no more offence,

Wherewith his priest most freely did dispense:

Absolv’d the sin and did remit the guilt

Of South’ron blood so innocently split.7

2 – A OBRA DE BLIND HARRY INSPIRANDO OUTRAS PRODUÇÕES

Em estudos sobre a literatura contraposta às demais formas de ciências e

engenhos, Lyra faz a seguinte afirmação: “Sendo o homem um animal cultural, misto de

raciocínio e sentimento, alguma prática cultural teria que abrigar o componente afetivo

do ser humano. A ciência e a filosofia podem esgotar o campo cognitivo, mas deixam

aberto todo o campo emocional.” (LYRA: 1984 p 18) A função essencial do fazer

artístico, especialmente o fazer literário, é ser ao mesmo tempo representação e crítica. A

Mimesis, representação da realidade na arte, pode apresentar uma cena reconhecível a

todos. Articular este cenário de representação de uma forma estética é também estabelecer

uma distância da realidade vivida: a pintura tem seu próprio quadro e espaço do

espectador; as páginas de uma impressão têm suas capas de livros ou revistas; a própria

página é realizada em um espaço de interpretação do leitor. O leitor trabalha para

percorrê-lo e tem prazer em realizar tal trabalho. A música executada possui em si um

efeito de fruição que é ampliado, contemporaneamente, com o advento dos tocadores

individuais. A imersão em mídia televisiva e/ou cinematográfica é um marco de uma

escalada significativa no grau em que o espaço não-crítico é ocupado por fórmulas

prontas. Há menos trabalho em interpretar, menos prazer em desfrutar e menos choque

no pensamento. Por essa razão, a literatura é um dos mais valiosos recursos da

humanidade. Ela ainda possui uma capacidade de choque. Ela pode tanto mostrar a

humanidade em sua pior face, quanto na sua melhor.

7 Mas eu prossigo com a fiel e verdadeira pena,/E candidamente persigo meu propósito:/Wallace, apesar de

ainda jovem para espada ou lança,/Se afligiu e murmurava tais impropérios para se ouvir:/"Ah! Deveria

minha terra sofrer tal angústia"/Disse ele, "e diariamente aumentarem os Sulistas;/Tivesse eu mais de dez

mil às minhas costas,/E fossem homens, eu quebraria suas espinhas."/(...)/Que os escoceses não possam

mais ofender,/Com o seu sacerdote dispensar mais livremente:/Absolveu os pecados e remiu a culpa/Do

sangue dos Sulistas tão inocentemente derramado. Tradução Nossa. The Wallace. Cap 1, Livro 3, p. 6,7.

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O receptor da obra literária pode possuir dentro de si um desejo de recolher, na

obra lida, um conjunto de informações que questione sua existência e venha a modificar

seu pensamento ou o desejo pela simples fruição da obra. Tal prazer encerra-se em si

mesmo. Assim, como todo poema épico que, através da história, tece influência sobre

diversos povos em diversas épocas, The Wallace percorre o mesmo caminho ao inspirar

diversos autores e autoras através dos séculos. Dentre todos, citaremos aqui aqueles mais

relevantes para a revivificação do mito. Assim, ao longo dos séculos subsequentes,

diversos autores foram tocados pela história épica de The Wallace e produziram ecos

desta em diversas mídias.

Na literatura, William Hamilton of Gilbertfield traduziu o épico para o inglês

moderno no século XVII e, entre os séculos XIX e XXI, diversas obras foram produzidas

em diferentes momentos. Todas elas se atêm ora ao teor nacionalista, ora ao teor de

resistência ante um inimigo. Entre diversos trabalhos, podemos destacar Sir Walter Scott

e Miss Jane Porter no século XIX; Nigel Tranter no século XX e Jack Whyte no Século

XXI.

Sir Walter Scott foi poeta, romancista e editor escocês, filho de um jurista e de

Anne Rutherford, filha de um médico e professor universitário. Descendente de famílias

famosas da fronteira escocesa, Scott nasceu em 1771, em Edimburgo, e faleceu em 1832.

Frequentou o liceu e a Universidade. Por causa de sua ascendência escocesa, desde a

infância, Scott sentia-se atraído para as histórias dos clãs fronteiriços da Escócia. Tal

paixão chegou até nós através das suas lendas e baladas. Dentre seu prolífico fazer

literário, escreveu Exploits and Death of William Wallace, the "Hero of Scotland".

Jane Porter foi uma romancista que nasceu na Escócia em 1776. Sua residência

era frequentemente visitada por Sir Walter Scott, amigo de sua família, em Edimburgo.

Em 1810 transformou The Wallace em um romance histórico chamado The Scottish

Chiefs, sendo considerada uma pioneira na confecção de romances históricos junto a Sir

Walter Scott. Conta-se que sua tradução para o francês fora proibida por Napoleão, pois

seu cunho nacionalista era elevado, como observado no trecho:

Wallace took up the open list which Edwin had dropped; he saw the

name of Lord Ruthven’s amongst the prisoners; and folding his arms

round this affectionate son, "Compose yourself" said he, "it is to Ayr I

am going: and if the God of justice be our speed, your father, and Lord

Dundaff shall not see another day in prison."8

8 The Scottish Chiefs. Capítulo 29 - The Barns of Ayr . Wallace pegou a lista aberta que Edwin havia

deixado cair; Ele viu o nome de Lord Ruthven entre os prisioneiros; E dobrando os braços para este filho

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Nigel Trenter foi um autor e historiador escocês, que viveu entre 1909 e 2000.

Seus escritos versaram sobre arquitetura e histórias dos castelos e romances históricos

que cobrem diversos séculos da história da Escócia. Entre suas diversas novelas

históricas, destacamos The Wallace (1975) e Robert the Bruce Trilogy - The Steps to the

Empty Throne (1969), The Path of the Hero King (1970) e The Price of the King's Peace

(1971). Todas estas dizem respeito aos principais personagens da Primeira Guerra de

Independência da Escócia. A presença destes personagens históricos pode ser observada

através da fala de William Wallace no trecho:

'God aiding me, the men who did this evil thing will go to answer for it.

To a higher court than Edward Plantagenet's!' he said, deep voiced,

'And, thereafter, we will seek to cleanse this good land of, of...' The

deep voice cracked and broke. He could not go on. Nor required to. He

swung away abruptly. 'So be it', John Blair took him up, quietly. 'In the

name of the Father, the Son and the Holy Spirit. Amen.'9

Jack Whyte é um escritor escocês, nascido em 1940, radicado no Canadá, que

possui uma vasta produção literária baseada em ficção histórica ocorrida no Reino Unido.

Dentre seus principais trabalhos, destacamos as Crônicas Camulod - série de oito livros

escritos entre 1992 e 2005, que contam desde a retirada romana das Ilhas Britânicas até a

trajetória do Rei Artur - e a trilogia The Guardians of Scotland, escrita entre 2010 e 2014,

cujos livros The Forest Laird, The Renegade e The Guardian contam as histórias de Sir

William Wallace, de Sir Robert the Bruce e de Sir James "The Black" Douglas,

respectivamente. Como especificaremos no capítulo 4, cada obra é responsável por

focalizar sua escrita especificamente em cada personagem, tecendo um relato

pormenorizado de suas vidas.

No que tange à produção audiovisual, em 1995 a história de William Wallace foi

roteirizada para as telas de cinema através de Randall Wallace. Estrelado por Mel Gibson,

o filme foi rodado na Escócia e na Irlanda e recebeu pesadas restrições por parte dos

críticos escoceses. Tais críticas e formas da representação de William Wallace serão

abordadas nos capítulos vindouros.

afetuoso, "Componha-se", disse ele: "É para Ayr, eu vou: e se o Deus da justiça for nossa velocidade, seu

pai e Lorde Dundaff não verão outro dia na prisão". 9 The Wallace. Parte 1, Capítulo 1. "Deus me ajudando, os homens que fizeram esse mal é responderão por

isso. Para um tribunal superior do que o de Edward Plantagenet! Ele disse, expressado profundamente: "E,

depois disso, procuraremos limpar esta boa terra de ..." A voz profunda quebrou e quebrou. Ele não podia

continuar. Nem é necessário para. Ele se afastou abruptamente. "Então seja", John Blair levou-o,

calmamente. 'Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.'

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Na música, a vertente do Rock, denominada Metal, foi responsável por reacender

o interesse pelos folclores nacionais na Europa. O estilo nasceu, na década de 1990, da

mistura entre o Heavy Metal e a Folk Music, uma espécie de música popular com raiz

celta, eslava, escandinava, védica etc. Para que a banda seja considerada uma banda de

Folk Metal, ela deve fazer uso de instrumentos folclóricos como a gaita de foles, harpa,

violino e/ou flauta. Seu ritmo e sua melodia devem ser mesclados com os instrumentos e

modo de tocar do Metal, com uma linha vocal típica da música Folk. As letras devem

apresentar temas folclóricos e mitológicos, como heróis, fadas, duendes e guerreiros, bem

como as sagas. Das bandas precursoras do gênero, destacamos Skyclad e seu Irish Folk,

Bathory e sua Mitologia Nórdica, Cruachan com o tema pagão e Tuatha de Danann,

banda brasileira de Folk Metal influenciada pelo folclore celta.

Seguindo a temática do Folk Metal, destacamos duas bandas que se utilizaram da

temática da Guerra de Independência da Escócia e seus principais personagens para

produzir suas músicas, conservando assim as tradições do gênero folk e, mais uma vez,

revivificando o mito de Wallace e seus companheiros. As bandas são Saor Patrol (1999)

e Skitron (2004).

Saor Patrol é uma banda escocesa formada em 1999 em Kincardine. Seu nome

está escrito em gaélico escocês e significa Patrulha da Liberdade. Todas as suas músicas

são acompanhadas da tradicional gaita de foles das Higlands e do bumbo. Seus membros

são voluntários de uma organização sem fins lucrativos denominada The Clanranald Trust

for Scotland, cujo objetivo é preservar e disseminar a herança cultural escocesa através

da educação e do entretenimento. Seu padrinho é o ator Russel Crowe. Dentre sua vasta

discografia, destacamos o álbum de 2010 intitulado The Stomp-Scottish Pipes and Drums

Untamed, em que o poema de Robert Burns, Scots Wha Hae, é executado. Este poema

em homenagem a Wallace, composto em 1793, foi considerado durante séculos como o

hino não oficial da Escócia.

Pioneira no folk metal na América do Sul, a banda argentina Skiltron tem como

tema de suas músicas a Escócia medieval, com especial atenção ao substrato celta. Seu

nome Skiltron é derivado da palavra Schiltron, advinda do Old English como uma

corruptela de shield-troop, cujo termo significa um corpo compacto de tropas preparado

para a batalha. O termo é associado o mais frequentemente com as formações escocesas

do pique durante as guerras da independência no final do século XIII e meados do século

XIV. Dentre sua modesta discografia, destacamos o segundo álbum Beheading the Liars

(2008), com a música “The Vision of Blind Harry”.

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Tendo em vista a repercussão da obra de Blind Harry, percebemos que os dois

componentes basilares mais relevantes - o ideal de luta e a resistência ao dominador -

ainda permanecem como aspectos fortemente presentes nas obras posteriores. A questão

da obra original é transposta para diversas mídias, evidenciando a necessidade de

adaptação às necessidades de um novo tempo. Aliás, além da palavra escrita e da tradição

da palavra falada, também possuímos a tradição da palavra cantada para a propagação de

ideais, pois como afirma André Bueno, “se a gente não quiser assumir a posição típica do

pequeno-burguês intelectualizado, que tem acesso à cultura livresca (...) é bom entender

que existem, historicamente, literaturas orais e literaturas escritas.” (BUENO: 1984 p 50)

No próximo capítulo discutiremos algumas reflexões de diferentes teóricos sobre os

conceitos de mito, mito literário e arquétipo.

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CAPÍTULO III

COM QUANTOS MITOS SE FEZ A REALIDADE?

O mytho é o nada que é tudo.

O mesmo sol que abre os céus

É um mytho brilhante e mudo –

O corpo morto de Deus,

Vivo e desnudo.

Este, que por aqui aportou,

Foi por não ser existindo.

Sem existir nos bastou.

Por não ter vindo foi vindo

E nos creou.

Assim a lenda se escorre

A entrar na realidade,

E a fecundal-a decorre.

Em baixo, a vida, metade

De nada, morre.10

Não podemos abordar o mito literário de William Wallace e seu significado para

o Ocidente sem antes abordar a questão do Mito propriamente dito. Isto, de forma alguma,

significa que o Mito Literário seja tão somente o mito inserido na Literatura. Para isso,

trataremos de questões como Mito, Mito Literário, Arquétipo, Figuras Literárias e Figuras

Históricas.

No início do século XVIII, na Europa, a Era Clássica entra em crise, resultando

no seu declínio. A partir de tal declínio temos o início do movimento Romântico na

Alemanha, na Inglaterra e na França. A contemporaneidade Ocidental procura, sempre

que possível, apoiar-se em sua herança medieval para iluminar a sua compreensão e sua

auto-interpretação identitária. Esta ressignificação da Idade Média faz parte da matriz de

inteligibilidade do Ocidente proposta por Umberto Eco, quando afirma que a Idade Média

representa o crisol da Europa e da civilização moderna. (ECO, Umberto, 1989)

Enquanto a Inglaterra e o restante da Europa viviam essa Era Clássica, “a literatura

popular escocesa que existira até os fins do século XVI agora se reduzia à transmissão

oral. Tudo, razões políticas e literárias, convidava a uma rebelião que visasse a instaurar

o prestígio dessas velhas lendas e canções que corriam na voz do povo”. (MOISÉS, 1960,

p. 13) O primeiro autor escocês a rebelar-se contra o verso clássico foi Allan Ramsay,

10 Ulysses. In: Mensagem, Fernando Pessoa

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que em 1724 publica uma antologia de velhos poemas escoceses intitulada The Evergreen

e uma coletânea de velhas canções baseadas no sentimento da natureza The Teatable

Miscellany, e em 1725, publica The Gentle.

Seguindo a proposta de Ramsay - da “Escola do Sentimento” -, contra a “Escola

da Razão”, surgem escritores como James Thomson (1700-1748), autor de The Seasons

(1726-1730), e Edward Young (1683-1745), autor de The Complaint, or Night Thoughts

on Life, Death and Immortality (1742-1745), dando início à poesia com motivos fúnebres.

Já na prosa, temos Samuel Richardson (1689-1761), que é considerado o precursor do

romance ao publicar seus três romances epistolares: Pamela: ou, a virtude recompensada

— 1740; Clarissa: ou a história de uma jovem — 1748 e A História de Sir Charles

Grandison — 1753.

Alimentando os mitos escoceses, em 1760, o poeta James Macpherson (1736-

1796), prolífico colecionador de poemas em gaélico, começou a publicar a tradução em

prosa dos poemas supostamente escritos por Ossian, um velho bardo escocês do século II

d. C. Moisés (1960) nos evidencia a forte repercussão da poesia Ossiânica:

A impressão causada foi a de espanto e surpresa, e logo alguns trechos

foram traduzidos para outras línguas, sobretudo os referentes a “Fingal”

e “Temora”. Embora aguardassem vinte ou mais anos para ser

inteiramente traduzidas, as baladas e canções de Ossian se beneficiaram

em pouco tempo de generalizado aplauso em toda a Europa culta do

tempo. E em meio ao unânime elogio, ouviam-se raras vozes

discordantes: não poucos elevaram o bardo gaélico ao nível de Homero

e Virgílio, quando não acima. (MOISES, 1960, p. 114)

Assim, a literatura escocesa dos séculos XVIII e XIX “projetou no Medievo seus

mitos de origem para a construção de narrativas identitária” (BACCEGA, 2015, p. 35)

nos quais o objeto de nosso estudo, William Wallace repousa, como “uma história da

criação e do uso das imagens que fazem uma sociedade agir e pensar”. (LE GOFF, 2009,

p. 13)

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1 – O MITO E O MITO LITERÁRIO

A história do pensamento europeu ocidental é permeada pela exegese do Mito,

iniciada por Aristóteles, onde em sua Poética, teoriza a definição sobre o Mito Trágico.

Como no princípio a arte, a religião e as ciências estavam amalgamadas, o mito pode

mesmo ser considerado uma primeira tentativa de racionalização sobre o mundo, pois, no

princípio, não havia a distinção entre o mytos e o logos, a razão e a palavra; esta separação

somente se deu entre os séculos VIII e IV a. C.

Os primeiros mitos florescem a partir da projeção imaginativa que o homem fez

das funções essenciais de sua vida, que são o nascimento, o amor e a morte; a

maternidade, a paternidade e a virgindade. Estas categorias sintetizam tudo aquilo que o

homem, mediante a sua inteligência e o seu sentimento, conseguiu conquistar, em face

das adversidades dispostas por uma vida que este não solicitou, de uma morte que o

amedronta, de uma paixão que o domina e de uma doença cujos fenômenos o atemorizam

ou o destroem.

Adriana Monfardini em O Mito e a Literatura11 cita o filósofo Jean-Pierre Vernant

ao nos lembrar que “Na e pela literatura escrita instaura-se esse tipo de discurso onde o

logos não é mais somente palavra [como o mythos], onde ele assumiu o valor de

racionalidade demonstrativa e se contrapõe, nesse plano, tanto pela forma quanto pelo

fundo, à palavra mythos”. (Vernant 1992, p 174)

Para Vernant existe uma oposição fundamental entre o mito e a história pois, para

ele, o mito está inserido no passado remoto, longínquo demais para ter comprovação,

sendo uma época do fabuloso; já a história está no passado recente, testemunhado e com

existência real, onde esta história se pretende verdadeira.

Já Mircea Eliade explicita que nas sociedades ditas arcaicas, o mito é a

representação de uma história verdadeira e desempenha uma função dentro dessas

sociedades. Para o filósofo “o mito conta uma história sagrada; ele relata um

acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio. Em outros

termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade

passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha,

uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição”. (Eliade, 1978, p. 11)

Assim depreendemos que o mito nos conta uma narrativa, um acontecimento

ocorrido nos tempos do começo. O mito revela o ser, revela o deus, é uma história sagrada

11 Terra roxa e outras terras. in Revista de Estudos Literários

Volume 5 (2005)

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encarnada em uma tradição. Dentro desses mitos genéticos – também conhecidos como

os mitos de origem – podemos destacar os Mitos Cosmogônicos, que são os mitos

relativos à origem do mundo e da natureza em sua totalidade; os Mitos Antropogônicos,

relacionados à origem do homem e da humanidade; os Mitos Teogônicos, voltados à

origem e às vicissitudes primordiais de figuras divinas; Mitos de Fundação Heroica e

Cultural, relacionados aos bens culturais materiais e espirituais e a um "herói cultural",

um protagonista mítico que é diferente das figuras divinas; Mitos de Fundação e

Introdução da Morte, que narram os acontecimentos a partir do fim da vida humana.

Neste trabalho observamos a literatura como um verdadeiro conservatório dos

mitos, pois estes nos chegam envoltos em literatura. Dentro do panorama da criação

literária, o mito intervém na relação entre o escritor e seu público, pois entende-se que ele

não é algo pessoal, mas de toda uma coletividade. O escritor somente exprimirá as suas

experiências ou convicções através destas imagens simbólicas que podem ser

reconhecidas por seu público como imagens fascinantes.

O mito literário não pode ser comparado a uma alegoria, pois este é quase sempre

produto de uma criação espontânea. O mito literário não pode ser comparado ao conto,

pois o conto não é sacralizado como o mito. O mito literário não pode ser comparado a

uma utopia, pois ele não contém um futuro idealizado. Por fim, o mito literário não pode

ser comparado às lendas, pois são caracterizados por uma origem histórica.

O mito literário sofre alguns altos e baixos. Um mito não é identificável com um

texto e um texto literário não é em si mesmo um mito; este pode ganhar ou perder segundo

a recepção de um público em determinada época. Podemos utilizar como exemplo o mito

de Tristão e Isolda, reconhecido e admirado no século XII por uma pequena parte da

aristocracia cortesã que nele se reconhecia, mas desprestigiado nos séculos XV e XVI,

quando cede lugar para imagens relacionadas à Antiguidade Clássica.

2 – O ARQUÉTIPO

A questão arquetípica presente nos estudos literários tem suas raízes em filósofos

neoplatônicos como Plotino. Este termo era utilizado por eles para designar as ideias

como modelos de todas as coisas existentes. Segundo esta concepção filosófica existe um

universo no qual tudo é permanente e imutável, povoado por ideias originais. Assim, no

mundo das percepções sensíveis, tudo é uma reprodução de tudo aquilo que existe na

esfera superior. Pela confluência entre as ideias neoplatônicas e o cristianismo, o termo

Arquétipo chegou à filosofia cristã, sendo utilizado por Agostinho de Hipona.

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Em 1919 o psiquiatra Carl Gustav Jung utiliza pela primeira vez a palavra

Arquétipo para designar as imagens primitivas inseridas no inconsciente coletivo desde

os primórdios do ser humano. Jung propõe que tais imagens evocam o objetivo dos

instintos. Os arquétipos são percebidos como comportamentos externos, especialmente

aqueles que se aglomeram em torno de experiências basilares e universais da vida, tais

como nascimento, casamento, maternidade, morte e separação. Esta miríade imagética é

necessária para que a humanidade caminhe rumo à sua individuação, ou seja, na direção

de sua mais perfeita finalização, para que um dia possa se unir novamente ao seu eu-

próprio.

Os símbolos arquetípicos são encontrados nos chamados mitos de origem ou de

fundação. Tais mitos são a base das mais variadas religiões e de lendas que fazem parte

de uma bagagem cultural coletiva, os quais marcam tanto a consciência como a esfera do

inconsciente humano. Segundo a teoria Junguiana, existe uma infinidade de imagens

arquetípicas. Porém, as figuras básicas que mais nos chamam a atenção são a figura

materna, a imagem do pai, a imagem da criança, o herói e o divino. Tais figuras

constituem, para a psicologia Junguiana, manifestações imateriais que modelam os

principais eventos psíquicos da humanidade.

Seguindo a proposição de Jung, estudiosos como Erich Neuman e James Hillman

nos chamam a atenção por seu pensamento sobre a teoria arquetípica. Erich Neumann,

em 1954, observou que os arquétipos são recorrentes em cada geração e, a cada geração,

adquirem uma história de formas baseada em uma ampliação da consciência humana. Já

James Hillman, o fundador da escola da Psicologia Arquetípica, cita em 1975 o conceito

de arquétipo como a mais profunda premissa do funcionamento da psique humana,

funcionando como delineador do modo pelo qual percebemos e nos relacionamos com o

mundo.

Então, voltando o nosso pensamento para a questão literária, percebemos que o

mito assinala uma história exemplar onde ela própria está cristalizada, em suma, em uma

imagem prestigiosa e dinâmica. Tal imagem ao mesmo tempo reúne e resume o espírito

mais profundo de uma determinada cultura, pois toda a narrativa é uma imagem digna de

uma expressão literária, a qual remonta a um ou a vários arquétipos pois, como cita Régis

Boyer, “em matéria de mitos literários, o arquétipo está sempre no final da investigação”.

(BOYER, 2005, p.90)

O ser humano, como animal simbólico por excelência, sempre está em busca de

uma ideia primeira, arquetípica, simbolizando o início de um tempo. Por essas figuras

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temos, por exemplo, o Jardim do Éden para a criação da humanidade cristã; a Völuspá,

ou A Profecia da Vidente, para a criação da mitologia nórdica e outros mitos criacionais.

É através deste pensamento que acessamos a primeira das três condições propostas por

Boyer para a matéria do arquétipo na literatura12. Para ele, o mito é “o primeiro elemento

real na crítica histórica de textos e de manuscrito arquétipo, ou imaginário, sem que uma

apreciação de ordem qualitativa se prenda necessariamente à coisa”. (BOYER, 2005, p.

90)

Seguindo o pensamento de Boyer, observamos que como acepção de modelo ideal

ou idealizado, o arquétipo é legitimado a partir de um julgamento de valores que é

matizado através de uma simples qualidade inicial e paradigmática, pois, para ele, “Todo

herói, todo guerreiro digno de memória, se encontra justificado por um Hércules, um

Gilgamesh, um Boewulf, um Cuchulain ou um Kullervo.” (BOYER, 2005, p. 91) Todos

estes heróis trazem em si, no modelo agnóstico que lhes é próprio, características pelas

quais se admirar, jamais esgotando os recursos de nosso próprio engenho.

Por fim, Boyer aborda o arquétipo literário como um tipo supremo, a perfeição e

o absoluto que transcende todas as dimensões temporais ou éticas. Seja qual for o seu

domínio, o arquétipo – religioso, mítico ou fictício – vai direto ao essencial, ao idealizado.

Para Boyer, o Verbo e a Palavra chegam a “restabelecer, não estabelecer [a comunicação

entre o arquétipo e a humanidade] pois eles supõem uma realidade transcendente que eu

chamo de tipo supremo quando se trata de pessoas (de nosso Anjo, visível em toda mulher

amada, ou em razão de uma admiração imperiosa, do herói civilizador, o culture hero,

que sempre encontramos), uma narrativa perfeita ou um arquitexto, no sentido apenas de

narrativa”. (BOYER, 2005, p. 92)

Lembremos, então, que tudo aquilo a que costumamos nos referir como

imaginário transcendental ou inconsciente coletivo é de uma espécie de reservatório

espiritual acessível a todos os indivíduos de uma determinada civilização e, de certa feita,

a todo ser humano. Este imaginário nos é acessível, como nos ensina Jung, de forma mais

inconsciente que lúcida através de sonhos, delírios e mitos que alimentam toda religião e

toda literatura.

12 Dicionário de Mitos Literários. Pierre Brunel (Org.)

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3 – FIGURAS LITERÁRIAS E FIGURAS HISTÓRICAS

Em nosso primeiro capítulo, abordamos de forma breve a figura histórica de

William Wallace, sua representatividade nas guerras de independência escocesa e seus

desdobramentos. Retraçamos seus passos para pavimentar nossas análises de um Wallace

refigurado em mito literário, pois, como nos relembra Nicole Ferrier – Caverivière, Denis

de Rougemont em sua obra L’Amour et l’Occident “um mito é uma história, uma

fabulação simbólica, simples e impressionante, que se resume a um número infinito de

situações mais ou menos análogas. O mito permite apreender de um só golpe de vista

certos tipos de relações constantes e destacá-los do tumulto das aparências cotidianas”.

(CAVERIVIÈRE apud ROUGEMONT, 1988, p. 385)

Dentro de nosso entendimento, a elevação de Wallace à categoria de figura mítica

no âmbito político heroico se dá pelo fato de que “o mito político é fabulação, deformação

ou interpretação objetivamente recusável do real. Mas, como narrativa legendária, é

verdade que ele exerce também uma função explicativa, fornecendo certo número de

chaves para a compreensão do presente”. (GIRARDET, 1987, p. 13) Esta feita se dá em

função da ampla rememoração dos atos heroicos de Wallace em momentos de precisão.

A história e o real não são, em si, míticos. Esta transformação se dá quando um

grande acontecimento histórico ou a atitude de uma grande figura aparece para romper

com a trama da época, com a normalidade do comportamento social de um grupo e desafia

as leis do quotidiano. Nessa perspectiva, a morte de Wallace representou um momento

privilegiado para a eclosão de um mito pois “nesse momento, de fato, em que toda vida

torna-se destino, em que um recuo apropriado é tomado em relação ao formigamento da

realidade, a imaginação coletiva sabe transformar a história para faze-la atingir o mundo

grandioso e simplificado, significativo e sagrado do mito”. (CAVERIVIÈRE apud

ROUGEMONT, 1988, p. 386) É nesse momento que o suspiro final de Wallace adquire

um valor mitificado e inesgotável. Ele clama por tantas interpretações que a história cede

lugar ao mito.

Entretanto o mito político-heroico não necessita da morte de uma personagem

para surgir; este toma forma desde o aparecimento da personagem. Na verdade este mito

é uma expressão da pulsão advinda da psique coletiva que possui em seu íntimo um

conjunto de antigos símbolos, esperanças ou ódios que estão à espera de uma

oportunidade para transformarem-se em realidade. Quando tal personagem surge a partir

desta oportunidade, investido de certo poder – como o Wallace comandante de tropas

escocesas para libertar seu povo – ele cristaliza imediatamente estas esperanças, ódios e

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sonhos pois, como Rougemont, citando Dumézil e sua obra Mythe et Epopée, lembra, “os

mitos [...] não são invenções dramáticas ou líricas gratuitas, sem nexo com a organização

social ou política, sem nexo com o ritual, com a lei ou com o costume; sua função é, pelo

contrário, justificar tudo isso, expressar em grandes imagens as grandes ideias que

organizam e sustentam tudo isso.” (DUMEZIL apud ROUGEMONT, 1988, p. 386)

O mito político-heroico permanece ligado aos acontecimentos que o geraram para

que, em seguida, possa transcendê-los ou até mesmo deformá-los, pois sua expansão se

dá através de sua propaganda. Este impulso inicial é crucial para sustentá-lo e alimentá-

lo para que, de tempos em tempos, este seja conjugado a novos impulsos. A propaganda

pode ser participante, simultaneamente, de um fenômeno artístico sofisticado e de um

fenômeno popular. De fato temos observado a reverberação do mito de Wallace, que

ressurge de tempos em tempos através de sua releitura, pela necessidade sócio-política e

em consonância com elas, em diversas mídias como o romance, o cinema e a música onde

“todo mito literário é suscetível de variar em função das conjunturas políticas, sociais e

econômicas e até mesmo dos problemas espirituais de uma coletividade, que não são

necessariamente idênticos nas diferentes etapas de sua história”. (CAVERIVIÈRE apud

ROUGEMONT, 1988, p. 387)

O mito literário de Wallace tem valor demiúrgico, de forma que em algumas de

suas reapropriações, distingue-se de sua saga onde há um enraizamento histórico. Tal

autonomia em relação à história caracteriza o mito, diferenciando-o de um mero conto

fantástico, pois, apesar de suas concessões ao maravilhoso, remete ao quotidiano e extrai

deste a sua substância alimentadora primordial. “Por sinal, os personagens de contos

acham-se dotados de uma psicologia muito em conformidade com aquela do homem

comum. Os heróis míticos, pelo contrário, totalmente desprovidos dessa psicologia e

obedientes às leis do imaginário, simbolizam forças, realidades fundamentais.”

(CAVERIVIÈRE apud ROUGEMONT, 1988, p. 389)

Por fim, devemos lembrar que um mito político-heroico pode, inclusive, perder

sua força e esvanecer. Porém, seu enraizamento no sonho humano é tão profundo que ele

sempre despertará quando houver necessidade de um motor de retomada de uma herança

cultural para representar um fenômeno de cultura.

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CAPÍTULO IV

WILLIAM WALLACE: AS DIFERENTES IDENTIDADES DE UM HERÓI

MULTIMIDIA

I am not an Earth nor an adjunct of earth,

I am the mate and the companion of people,

all just as immortal and fathomless as myself,

(They do not know how immortal, but I know.)13

1 – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE IDENTIDADE

O conceito de identidade é uma das forças que movem os Estudos Culturais.

Anteriormente, discutimos alguns conceitos basilares à noção do Mito, do Arquétipo e

das Figuras Literárias e Históricas. Todo este arcabouço teórico culmina na noção de

identidade discutida por teóricos dos Estudos Culturais como Stuart Hall e Raymond

Williams pois “o anseio em falar sobre identidade é um sintoma da pós-modernidade”.

(MERCER, 1990, p. 35)

A Identidade é formada pela interação entre o eu e a cultura de um determinado

grupo social. Assim, a essência do indivíduo é (re)criada em um diálogo polissêmico e

contínuo com os mundos culturais exteriores. Vejamos as palavras de Hall:

As identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições de

sujeito que as práticas discursivas constroem para nós. Elas são o

resultado de uma bem-sucedida articulação ou “fixação” do sujeito ao

fluxo do discurso (...). Isto é, as identidades são as posições que o

sujeito é obrigado a assumir, embora “sabendo”, sempre, que elas são

representações. (HALL, 2000, p. 111-112)

Neste capítulo retomamos o nosso pensamento crítico sobre algumas das

manifestações culturais inspiradas pela obra de Blind Harry, assim como suas motivações

pois, como afirma M. G. C. Jacques, “a importância conferida ao estudo da identidade foi

variável ao longo da trajetória do conhecimento humano, acompanhando a relevância

atribuída à individualidade e às expressões do eu nos diferentes períodos históricos”.

(JACQUES, 1998, p. 159) Tal fato é observado por Hall, pois ele afirma que esta

aceleração advinda dos processos de globalização, leva o indivíduo a perceber que o

13 Eu não sou a Terra nem um adjunto da terra,/Eu sou o parceiro e o companheiro das pessoas, tudo

tão/imortal e incompreensível quanto eu mesmo/(Eles não sabem o quão imortal, mas eu sei.). A Song of

Myself – Walt Whitman

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mundo é menor que as distâncias mais curtas e que os eventos em um determinado lugar

gerarão um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distância.

A escolha de Wallace como objeto de representação por determinados grupos é a

construção simbólica e intersubjetiva que auxilia estes sujeitos a entender o contexto no

qual estão inseridos. Tal contexto advém da negociação entre os aspectos objetivos,

sociais e subjetivos a partir dos quais a identidade é construída. O sentido e a construção

da representação desta identidade são feitos através de uma narrativa que confere ao

sujeito, simultaneamente, causalidade e ordenamento pois, como nos afirma Stuart Hall:

Elas [as identidades] têm a ver com a questão da utilização dos recursos

da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que

nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Têm a ver não tanto com

questões “quem nós somos” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais

com as questões “quem nós podemos nos tornar”, “como nós temos sido

representados” e “como essa representação afeta a forma como nós

podemos representar a nós próprios”. (HALL, 2000, p. 108)

O indivíduo na Modernidade está frequentemente em busca desta questão

identitária. Zygmunt Bauman em seu conceito de Identidades Líquidas afirma que a crise

do sujeito é fruto da crise do pertencimento do indivíduo e do esforço que se desencadeia

para a recriação da realidade à semelhança da ideia preconcebida de identidade que ele

possui. Esta pode ser atribuída a uma constante mudança nos quadros de referência, que

davam aos indivíduos estabilidade no mundo social. Atualmente, a identidade tornou-se

um aspecto crucial, pois sua significação permanece em crise, tendo sua experiência

imersa em um estado perene de dúvida e incerteza, buscando um sentido mais genuíno

para a existência do sujeito que está imerso em um mundo cada vez mais globalizado.

Bauman lançará mão de uma anedota para ilustrar sua posição na liquidez identitária do

homem contemporâneo: “Seu Cristo é judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é italiana.

Sua democracia, grega. Seu café, brasileiro. Seu feriado, turco. Seus algarismos, arábicos.

Suas letras, latinas. Só o seu vizinho é estrangeiro.” (BAUMAN, 2005, p. 32) Tal impacto

do fenômeno global reflete, também, na compreensão que os sujeitos modernos têm de si

e das fronteiras de sua própria nação. Neste viés, temos o autor Jack Whyte, radicado no

Canadá e a banda Skiltron, de origem sul-americana.

Sob a ótica de Hall, de Bauman e dos Estudos Culturais, elencamos Wallace nesta

categoria arquetípica de mito político-heroico ele transcende o imediato e o momentâneo;

ele carrega características que o tornam atemporal e não é um simples herói da

modernidade pois, como afirma o próprio Bauman a respeito do herói na modernidade,

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O “herói da modernidade” não poderia ser um colecionador, já que para

ele só contava o “aqui e agora”, a fugacidade do momento. (...) A

estratégia de carpe diem é uma reação a um mundo esvaziado de valores

que finge ser duradouro. (BAUMAN, 2005, p. 59)

2 – A MODERNIDADE COMO UM ESTADO TRANSCULTURAL

O processo iniciado com as Grandes Navegações intensificou a circulação global

do indivíduo e permitiu o surgimento de novas zonas de contato com a diferença. Assim,

como afirmou G. Canclini “aumentou-se o conjunto dos processos sociais de produção,

circulação e consumo da significação na vida social”. (CANCLINI, 2005, p.41),

permitindo um fluxo permanente e uma maior reorganização do inventário cultural de

toda a humanidade, ultrapassando as fronteiras nacionais. A desterritorialização proposta

por G. Canclini é o processo das migrações multidirecionais para realçar a frequência

cada vez maior de uma realidade diaspórica.

Com a Desterritorialização a cultura perde sua visão tradicional patrimonialista, e

assim, passa a adotar uma postura de mobilidade e ação. Apesar de Canclini trabalhar

com o cenário latino-americano, conseguimos extrapolar esta hibridização observada no

mito de Wallace para outros locais como a própria América do Norte, tanto com o Livro

de Jack Whyte quanto com o filme de Randal Wallace, e completamos o circuito

retornando ao ponto teórico de Canclini com a América Latina de bandas de folk metal

como a Skiltron pois, segundo o sociólogo brasileiro Octávio Ianni, a explicação para este

processo é centrada na noção de quebra e mescla das diferentes expressões que organizam

os sistemas culturais em um processo de globalização:

Há momentos, principalmente quando ocorrem rupturas históricas de

amplas proporções, que abrem horizontes surpreendentes para o

conhecimento e a fabulação. (...) Pode-se dizer que o grande

acontecimento histórico, neste caso uma ruptura que cria impasses e

abre horizontes, permite reler o passado, como se fosse uma narração

da qual se conhecem apenas alguns fragmentos. (IANNI, 1999:49-50)

Tal processo de hibridação cultural é possibilitado pela maior circulação de bens

simbólicos. Este fenômeno transclassista aumenta o processo de hibridação entre as

culturas, gerando em si novas formas de identidade social. Tal processo é reforçado a

partir da visão de Octávio Ianni, segundo a qual “o sujeito do conhecimento não

permanece no mesmo lugar, deixando que seu olhar flutue por muitos lugares, próximos

e remotos, presentes e pretéritos, reais e imaginários”. (IANNI, 1996, p.169) Este é um

aspecto que observamos no mito de Wallace, que é a importância das lutas sociais. Tais

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lutas sociais não são vistas apenas como modo de resistência, mas como um modo

positivo e plural: um exercício de negação de dominação, uma configuração sintética do

poder, uma síntese da revolta e da resistência.

A partir deste conceito de hibridismo cultural postulado por G. Canclini,

percebemos a movimentação dos bens culturais cujo movimento natural e necessário

pode ser observado a partir da transculturação proposta por Fernando Ortiz em seu livro

El contrapunteo cubano del azúcar y del tabaco, e consolidada por Angel Ramas em seu

livro Transculturación narrativa en America Latina. Em seu postulado, Rama dialoga

com o leitor sobre a transculturação literária, limitando a descrição de transculturalidade

a três momentos: o primeiro, de parcial desconstrução, que ocasiona a perda de

componentes culturais e literários obsoletos; o segundo, de incorporação de componentes

ou de elementos advindos da cultura ou literatura estrangeira; e o terceiro, o esforço de

recomposição e recombinação dos elementos originais e os vindos de fora.

O processo de Transculturação ocorre quando um indivíduo adota outra cultura,

implicando um tipo, mas não necessariamente, de perda cultural. Tal "perda" é o que

observamos como a transformação dos padrões do próprio indivíduo a partir de elementos

externos. Assim, somente alguns traços são transmitidos e incorporados à cultura

receptora. Esta cultura, por sua vez, realiza o processo de doação em relação à cultura

introduzida que incorpora a seus próprios padrões, hábitos e costumes que, até então, lhe

eram estranhos. Neste processo, o próprio Ortiz afirma que:

Entendemos que o vocábulo Transculturação expressa melhor as

diferentes fases do processo de transição de uma cultura para a outra,

porque não se trata somente de adquirir uma cultura, que é o que, a

rigor, indica a voz da aculturação anglo-americana, mas o processo

também necessariamente implica a perda ou o desenraizamento de uma

cultura anterior, o que poderia dizer-se uma aculturação parcial e,

ademais, significa a consequente criação de novos fenômenos culturais

que poderiam ser chamados de Neoculturação. (ORTIZ Apud. RAMA,

1982, p. 32)14

Os elementos que compõem os aspectos culturais ligados ao mito de Wallace

permitem mostrar que este está conectado à vida humana em uma espécie de estado

dinâmico. Neste estado, o mito está constantemente se desenvolvendo, se aperfeiçoando

14 Entendemos que el vocablo transculturación expresa mejor las diferentes fases del proceso transitivo de

una cultura a otra, porque éste no consiste solamente en adquirir una cultura, que es lo que a rigor indica la

voz angloamericana aculturación, sino que el proceso implica también necesariamente la pérdida o el

desarraigo de una cultura precedente, lo que pudiera decirse una parcial desculturación, y, además, significa

la consiguiente creación de nuevos fenómenos culturales que pudieran denominarse neoculturación. –

Tradução nossa.

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e se modificando. Esta dinamicidade é justamente o que contribui para seu

enriquecimento por meio de novas criações da própria sociedade, permitindo sua

aquisição por parte de novos grupos.

3 – O CINEMA RESSIGNIFICA A IDADE MÉDIA

Em fins do século XIX, os irmãos Lumière realizaram o antigo desejo do homem

de registrar o movimento. A partir deste momento, a humanidade, mesmo estando sentada

em uma sala escura, teria a habilidade de viajar sem sair do mesmo lugar, de conhecer

novos lugares e culturas, de compactar histórias inteiras em poucas horas. Na civilização

industrial, o cinema nasce como registro e documento, como uma fonte histórica de

memória social.

Tal exaltação levou o fotógrafo tcheco Boleslav Matuszewski a escrever, em 25

de março de 1898, apenas dois anos após a primeira exibição pública dos irmãos Lumière,

um manifesto chamado Uma Nova Fonte Histórica. Neste manifesto, Boleslav via o

cinema como sendo algo que:

de simples passatempo, a fotografia em movimento se tornará então um

método agradável para o estudo do passado; ou, mais ainda, uma vez

que ela trará a visão direta, ela suprimirá, ao menos para certos pontos

que têm sua importância, a necessidade de investigação e de estudo.

(MATUSZEWSKI 2001)15

Robert Rosenstone afirma que “no final da década de 1910, houve o surgimento

de uma outra tradição de filmes históricos que não hesitam em fazer perguntas e

apresentar interpretações sérias sobre o significado do passado”. (ROSENSTONE, 2010,

p. 29) Assim, o novo método de entretenimento ganha força, gerando diversos debates

sobre a apropriação do conhecimento erudito pelo cinema pois, até então, a nova arte era

vista apenas como uma arte voltada às camadas populares, como um entretenimento

inocente que é esvaziado de qualquer elemento metodológico histórico. Sob o preconceito

de ter nascido nos porões de um café em Paris, o cinema amargou -durante muito tempo-

este fardo por ter seu público formado majoritariamente por operários. Segundo o próprio

Rosenstone, tal barreira foi derrubada a partir da terceira geração da École des Annales,

através de teóricos como Jacques Le Goff, Georges Duby, Pierre Nora e Marc Ferro, que

possibilitaram “um clima que permitiu que os acadêmicos passassem a levar a cultura

15 Publicado em Contracampo Revista de Cinema, Nº 34, 2001. Disponível em

http://www.contracampo.com.br/34/frames.htm Acessado em 15/04/2017.

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popular mais a sério e começassem a observar mais de perto a relação entre filme e

conhecimento histórico”. (ROSENSTONE, 2010, p. 29) Nesse período,

significativamente, um volume expressivo da produção cinematográfica tem a Idade

Média como fonte de inspiração.

O fascínio despertado pela Idade Média no cinema nos remete às origens da

civilização ocidental, a uma época onde se organizam lendas e mitos que fazem parte do

imaginário popular. Nela revisitamos épocas famosas como a das cruzadas, que

ocorreram entre os séculos XI e XIII e revivificamos as lendas arturianas como seus

famosos Cavaleiros da Távola Redonda com seu ideal de cavalaria. Cabe ressaltar que

nem todos os acontecimentos relatados nas obras cinematográficas corresponderão a uma

abordagem acurada do período histórico, mas sim ao imaginário solidificado sobre este

período.

Lembremo-nos então que tal imaginário foi construído, conforme afirma Macedo,

no inconsciente Ocidental a partir do movimento romântico europeu dos séculos XVIII e

XIX.

Tal acontecimento marcado pelo foco no individualismo e na emoção,

na volta à natureza, ao contrário da razão iluminista, (...) trouxe o

interesse e a busca pelas raízes nacionais, bem como uma visão

folclórica da Idade Média ao resgatar costumes populares. (MACEDO,

2009, p. 15)

Nesse sentido, autores como William Blake (1757-1827), Sir Walter Scott (1771-

1832), Samuel Coleridge (1772-1834) e Lord Byron (1788-1824) contribuíram para a

criação de uma aura mística em torno desta nova busca pelas raízes medievais de uma

nação. A ficção de cunho medieval é utilizada como pretexto para exprimir um passado

nostálgico, centrado em uma época utópica e quimérica, composta por, em tese, uma

sociedade mais homogênea. Assim, passamos a entender a medievalidade no cinema

como:

(...) uma mera referência associada à Idade Média, por vezes muito

estereotipada, como os imponentes castelos que encontramos nos mais

diversos filmes, que geralmente trazem mais traços modernos que

efetivamente medievais, e as imagens do maravilhoso, representado por

magos, dragões, feiticeiros, bruxas, monstros e guerreiros em busca do

Graal. (OLIVEIRA, 2016, p. 34)

É evidente que a motivação da criação de vários destes estereótipos surge a partir

das referências medievais. Acreditamos que tais personagens e fatos mitificados e

mistificados advêm do fato de o cinema não ter a intenção de aprofundar o conhecimento

factual do espectador sobre a Idade Média, mas de apenas suscitar uma reflexão a partir

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de um ponto de vista sobre a época, principalmente quando “o que está em discussão é a

necessária distinção entre uma Idade Média propriamente histórica, objeto de estudo dos

medievalistas, e uma Idade Média vista em retrospectiva, isto é, uma certa ideia do

passado medieval visto pela posteridade.” (MACEDO, 2009, p. 14)

Em sua obra intitulada Heróis e Maravilhas da Idade Média (2009), Le Goff nos

apresenta a definição de Patlagean sobre o que ele percebe ser o domínio do imaginário

medieval por diversos diretores de filmes. Le Goff diz que:

O domínio do imaginário constitui-se pelo conjunto das representações

que ultrapassam o limite imposto pelas constatações da experiência

vivida e pelas deduções correlatas que ela autoriza, o que equivale a

dizer que toda cultura, portanto toda sociedade e mesmo todos os níveis

de uma sociedade complexa, possui o seu imaginário. (PATLAGEAN,

2005 apud LE GOFF, 2009, p. 11)

Assim, é evidente o cuidado que devemos ter ao representar o efeito do real em

um passado longínquo. Veremos tal problemática surgir, mais à frente, quando tratarmos

do filme O Coração Valente.

Ao tratar de filmes de reconstrução histórica, Macedo (2009) parte da proposta

tríplice de François de la Bretecque que diz que os filmes de temática medieval são

encaixados em pelo menos três eixos: filmes de historiadores, filmes de personagens

históricos e filmes de aventura.

Os Filmes de Historiadores são aqueles em que a ficção pretende ilustrar um ponto

de vista a respeito do passado, com base na erudição. Macedo exemplifica como filmes

de historiadores Decameron (1971), As Mil e uma Noites (1974) e Os Contos de

Canterbury (1972), - todos três de Pasolini; O Sétimo Selo (1959) de Ingmar Bergman e

Andrei Rublev (1966), de Andrei Tarkovski.

Os Filmes de Personagens Históricos são aqueles onde a época é enfocada, tendo

como base o protagonista do enredo. Entre diversos filmes com esta temática, Macedo

cita Joana D’Arc (1999), de Luc Besson, Henrique V (1989), de Kenneth Branagh e

Coração Valente (1995), de Randal Wallace.

Por fim, os Filmes de Aventura são aqueles em que a ação transcorre em um

passado distante, tendo seu contexto apenas um papel secundário. A melhor expressão de

tal gênero é encontrada no filme Coração de Cavaleiro (2001), de Brian Helgeland.

Pensamos que fica evidente que as medievalidades retratadas no cinema

contribuíram para a preservação do nosso imaginário identitário ocidental e cristão em

momentos conturbados onde é necessária a revivificação do mito. Assim, como proposto

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por Oliveira (2016), ao nos depararmos com certas adaptações cinematográficas que

retratam o medievo, devemos sempre nos questionar sobre o “por que certas imagens,

ações e personagens foram escolhidos?; a que contexto este material se refere?; em que

momento ele foi produzido?; e, finalmente, em que contexto ele foi lançado e exibido?”

(OLIVEIRA, 2016, p. 38)

4 - CORAÇÃO VALENTE: O HERÓI NA VISÃO DE RANDALL WALLACE

O autor, produtor e diretor Randall Wallace passou a ter certo

reconhecimento na indústria cinematográfica após seu roteiro ter sido dirigido e encenado

pelo ator e diretor Mel Gibson em 1995. A partir de seu primeiro Filme de Personagem

Histórico, Coração Valente, o roteirista passou a produzir diversos filmes desta mesma

temática. Em 1998 escreveu o roteiro do Homem da Máscara de Ferro, adaptação do

livro homônimo de Alexandre Dumas; em 2001 escreveu o roteiro de Pearl Harbour e,

em 2002, escreveu o roteiro de Fomos Heróis.

Pouco antes de escrever o roteiro de O Homem da Máscara de Ferro, Randall

Wallace obteve sua inspiração para escrever Coração Valente a partir de uma viagem à

Escócia, onde ele observou diversas estátuas homenageando William Wallace por onde

passava. Após uma breve explanação de um guia local sobre a história de William,

Randall ficou fascinado pelo tema e decidiu escrever o roteiro do que seria um filme

épico.

Coração Valente foi produzido com um orçamento de $72 milhões, os quais

convertidos para a taxa de inflação atual seria algo em torno de $115 milhões. Tal

investimento foi prontamente recuperado, pois logo na primeira semana de exibição nos

Estados Unidos, o filme arrecadou $10 milhões. O filme foi nomeado para dez categorias

na cerimônia do Oscar, obtendo premiação em cinco: Melhor Filme, Melhor Diretor,

Melhor Fotografia, Melhor Edição de Som e Melhor Maquiagem.

Nesta parte do capítulo pretendemos comparar crítica e brevemente a vida de

William Wallace retratada nas fontes históricas ao retratado no filme Coração Valente,

de 1995, estrelado pelo ator australiano Mel Gibson. Em determinados momentos, tais

pontos de vista tendem a divergir, pois, como visto anteriormente, os Filmes de Heróis

para consumo popular tendem a possuir algumas lacunas em seu roteiro. Além disso, a

imagem de William Wallace construída no imaginário do homem contemporâneo é

mitificada.

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Sabemos que Wallace nasceu em Elderslie, uma pequena vila localizada a

sudoeste de Glasgow, porém o ano exato é objeto de dúvidas. Consta que Wallace

provavelmente nasceu entre os anos de 1262 e 1277. O poema de Blind Harry não cita o

local de nascimento de Wallace, porém, tece sua árvore genealógica:

Wich gallant race, to make my story brief,

Sir Thomas Wallace represents as chief.

So much for the brave Wallace’ father’s side,

Nor will I here his mother’s kindred hide:

She was a lady most complete and bright,

The daughter of that honourable knight,

Sir Ranald Crawford, high sheriff of Ayr,

Who fondly doted on his charming fair.16

A ocupação inglesa, ou pelo menos uma parte dela, iniciou-se no ano de 1291 com

a disputa de ao menos quatro pretendentes ao trono escocês por ocasião da morte do Rei

Alexander III. O Rei Edward I foi convidado a mediar este conflito para que se evitasse

uma guerra civil na Escócia. A ocupação total se deu em 1296, após os fatos narrados no

primeiro capítulo deste trabalho. Sobre este episódio, Harry escreve:

Wherefore, to ‘void a bloody civil war,

The Scottish estates esteem’d it better far,

The two contendants should submit the thing

To the decision of the English King,

Who greedily the ref’rence did embrace,

But play’d his cards with a dissembling face;

Yea, so politic was the crafty king,

For his self ends, things about to bring

(...)

Thinking to make (so big his hopes were grown)

The Scottish crown pay homage to his own.17

Assim sendo, o fato de o filme Coração Valente sugerir em seu início, através de

cenas dramáticas, a morte dos pais do jovem Wallace no episódio dos "Celeiros de Ayr"

16Que galante raça, para tornar minha história breve,/Sir Thomas Wallace representa como chefe./Tanto

para o bravo lado do pai de Wallace,/Nem eu vou aqui esconder os parentes de sua mãe:/Ela era uma

senhora mais completa e brilhante,/A filha daquele honrado cavaleiro,/Sir Ranald Crawford, alto xerife de

Ayr,/Que amou afetuosamente no seu justo charme /HARRY, Book 1, Chapter 1. Tradução nossa. 17Portanto, para evitar uma guerra civil sangrenta,/As propriedades escocesas estimaram melhor,/Os dois

contendantes devem submeter a coisa/À decisão do Rei inglês,/Que avidamente a referência abraçou,/Mas

jogou suas cartas com um rosto dissimulado;/Sim, então político era o astuto rei,/Para seus próprios fins,

coisas a ponto de trazer/(...)/Pensando em fazer (tão grande suas esperanças foram cultivadas)/A coroa

escocesa homenageia a ele /HARRY, Book 1, Chapter 1. Tradução nossa.

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é um tanto inacurado, pois o domínio total do território se deu tempos após o retratado no

filme.

Na película, Wallace, agora órfão, é acolhido por seu tio Argyll. De fato, para

tornar o filme mais familiar à audiência, seu roteirista procura utilizar nomes de locais

que sejam de fácil acesso mnemônico. Porém o Condado de Argyll, segundo John

Bourke, foi estabelecido em 1457 pois James II é dado a Colin Campbell. Ou seja, o

primeiro ascendente identificado do 1º Conde de Argyll nasceu por volta de 1280.18

(BOURKE’S PEERAGE, 1999, p. 104) Não há registros que sugiram que o clã Wallace

tenha se conectado aos ancestrais do clã Campbell. À época, o Clã Wallace estava mais

bem estabelecido que o clã Campbell. Já Harry afirma que Wallace foi enviado para a

cidade de Dundee:

He was brought up with his old uncle there;

Who to Dundee him carefully does send

For education, but behold the end:

There continuous in his tender age,

Till more adult, then he does ramp and rage,

To see the Saxon blood in Scottland reign.19

A passagem de tempo aplicada no filme suprime a infância e a juventude de

Wallace, que reaparece apaixonando-se por uma amiga de infância na ocasião de seu

retorno à aldeia de origem. Tal informação é vista no poema de Blind Harry, onde este

afirma que Wallace reaparece aos dezessete anos de idade.

Yet ere he was full seventeen winters old,

He was both seemly, strapping, stout, and bold;

Was with the South’ron freequently strife,

And sometimes twin’d them of their precios life.20

Ao retornar a sua cidade natal, Wallace presencia uma festa de casamento. A

comemoração é interrompida pela chegada de um nobre local que carrega a noiva para

seu castelo. Nesse momento, o primeiro passo para a rebeldia de Wallace seria dado a

partir de um fato inexistente — O jus prima nocte, ou seja, o direito à primeira noite (a

noite de núpcias) pelo senhor feudal. Esta suposta relação de suserania-vassalagem foi

18 The earliest identified antecedent of the 1st Earl of Argyll was born in about 1280. Tradução nossa. 19Ele foi criado lá com seu velho tio;/Quem para Dundee ele cuidadosamente envia/Para educação, mas

observe o fim:/Continua em sua tenra idade,/Até mais adulto, então ele se enfurece e se encoleriza,/Para

ver o sangue Saxão no reino da Escócia. Tradução nossa. /HARRY, Book 1, Chapter 1. 20Ainda que ele tivesse dezessete invernos completos,/Ele era bem parecido, robusti, forte e

corajoso;/Estava com o conflito frequentemente sulista,/E, às vezes, os retorcia de sua preciosa vida.

Tradução nossa. /HARRY, Book 1, Chapter 1.

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utilizada como ponto de dramaticidade. Tal "direito" já fora tratado anteriormente em

algumas obras, como por exemplo, As Bodas de Fígaro (1784) de Beaumarchais e Mozart

e o filme O Senhor da Guerra (1965) de Walter Seltzer. Este recurso advém da corruptela

do jus prima fructis, o direito à primeira vindima. Neste costume comum à Idade Média

Tardia, os primeiros frutos do primeiro ano da plantação deveriam ser pagos ao senhor

feudal ou à autoridade eclesiástica. Porém, através da comoção causada pelo jus prima

nocte, na película, Wallace foi capaz de reunir homens para lutar a seu lado.

Em adição ao episódio da prima nocte e como contribuição para aumentar o

ressentimento dos escoceses em relação aos ingleses, o filme mostra um soldado do xerife

de Lannark tentando forçar um relacionamento sexual com a esposa de Wallace. Dias

antes, Wallace havia se casado em segredo com Marion Braidfoot, também conhecida

como Miranda na tradução de William Hamilton of Gilbertfield. Marion era filha de

landholders, ou seja, sua família detinha algumas propriedades na vila de Wallace.

A maid approach’d, who, from the fair one came,

(For love had fir’d her breasts with hidden flame,

And brought this message from the beauteous dame,)

“Miranda sends, to honest fame well known,

Fond to behold her country’s bravest son.”

The chief amazed, impatient of delay,

“I go”, he cried, and bade her urge her way.21

Ao ver o que acontecia, Wallace correu em socorro à sua esposa e combateu os

soldados, fazendo dele um homem procurado. Após saber deste ataque aos seus homens,

o xerife de Lannark, em retaliação, ordena a estes que queimem algumas casas na cidade

– com seus moradores dentro – e dêem cabo da esposa de Wallace com suas próprias

mãos, na praça da cidade, para que isso sirva de exemplo aos insurrectos. Esta, segundo

o filme, foi a situação detonadora do estopim para que Wallace se juntasse formalmente

à luta. Porém, como nos informa Michel Prestwitch:

“As fontes primárias do ressentimento escocês sobre a ocupação inglesa

parecem ter sido causada pelos impostos que Edward I procurou exigir

na Escócia, juntamente com o recrutamento compulsório de homens

para seus exércitos. Ambos eram necessários para suas guerras

europeias”22. (PRESTWICH, 1988, p. 476)

21Uma criada se aproximou, que, do justo, veio/(Pois o amor tinha inflamado seu peito com chama

escondida,/E trouxe esta mensagem da bela dama,)/"Miranda envia, para uma fama honesta bem

conhecida,/Afetuosamente para observar o filho mais corajoso de seu país."/O chefe, maravilhado,

impaciente de atraso,/"Eu vou", ele gritou, e ordenou que ela tomasse seu caminho. Tradução nossa.

Harry, Book 5. 22 The primary sources of Scottish resentment of the English occupation seem to have been the taxes which

Edward I sought to exact in Scotland, and the compulsory recruitment of men for his armies. Both were

needs of his European wars. Tradução e adaptação nossa.

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A morte do xerife inglês pelas mãos de Wallace angariou um número considerável

de partidários, porém, ele não era o único líder da resistência escocesa à época. Sir

Andrew Murray era um cavaleiro que havia sido capturado pelos ingleses na derrota da

batalha de Dunbar e, apesar de feito cativo, conseguiu escapar para as terras de seus

familiares em Moray. Lá, ao norte, levantou rebelião enquanto Wallace atacava ao sul:

Now Biggar’s plains with armed men are crown’d,

And shining lances glitter all arround;

The sounding horn and clarions all conspire

To raise the soldiers breast, and Kindle up his fire.23

Apesar de estarem em menor número, Murray e Wallace uniram-se para combater

as forças inglesas - sob o comando do Conde de Surrey - em Stirling Bridge, no dia 11 de

setembro de 1297. Havia alguns nobres escoceses lutando ao lado dos ingleses, entre eles,

o Conde de Lennox. A batalha foi decidida a partir de um erro cometido pelos ingleses,

que decidiram se arriscar sobre uma ponte estreita de madeira. Após sua passagem, esta

fora destruída pelos homens de Wallace, impedindo assim a fuga dos soldados inimigos.

Em pânico, a guarnição era atacada por soldados escoceses que saíam de esconderijos no

terreno repleto de colinas. Sir Andrew Murray faleceu em novembro de 1297 das feridas

sofridas na batalha e desde a capitulação das forças inglesas em Irvine, Wallace passou a

ser o único líder escocês disponível na região. Apesar de uma descrição detalhada da

batalha de Stirling Bridge, o filme cometeu dois equívocos basilares: Sir Andrew Murray

não foi representado ou mencionado na batalha e, tão importante quanto a presença deste

outro comandante, não há ponte retratada na batalha.

“Great fates we have performed in the field,

With smaller force, and stronger foe made yield.”

“Who fight”, said Wallace, “for just, righteous ends,

God unto them assistance Always sends;

Then though the enemy were tem Thousand more,

Let’s up and beat them as we’ve done before.

Near Stirling bridge I purpose for to be,

There to contrive some subtle jeopardy;24

23 Agora, as planícies de Biggar com homens armados são coroadas,/E as lanças brilhantes resplandecem

por toda parte;/O chifre sonoro e os clarões conspiram/Para elevar o peito dos soldados, e aumentar seu

fogo. Tradução nossa./Harry, Book 6, Chapter 1. 24 "Ótimos destinos que realizamos no campo,/Com força menor, e o inimigo mais forte produziu

rendimento."/"Quem luta", disse Wallace, "por razões justas e corretas,/Deus para eles sempre envia

assistência; /Então, embora o inimigo fosse dez mil a mais,/Vamos levá-los e vencê-los como já fizemos

antes./Perto da ponte de Stirling, meu propósito é ser,/Lá realizar algum perigo sutil; Tradução nossa. Harry,

Book 7, Chapter 4

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Williams em sua enciclopédia digital A Brief History of Scottland diz que os

ingleses deveriam cruzar uma ponte estreita para chegar ao outro lado do rio Forth para

combater Wallace e seus homens. Quando os ingleses aceleraram o passo para cruzar a

ponte, Wallace sinalizou a seus homens para destruir a ponte e dividir o exército inglês

em dois. Os homens de Wallace travaram combate contra os ingleses que conseguiram

cruzar a ponte, mas estes, confundidos, não puderam opor resistência. O exército inglês

que ficou sem cruzar a ponte assistiu ao massacre dos homens que haviam chegado ao

outro lado. Assim, recuaram, fugindo para a Inglaterra. Wallace manteve essa posição por

aproximadamente 300 dias.

A cunning carpenter, by name John Wright,

He quickly calls, and falls to work on sight

Caus’d saw the boards immediately in two,

By the mid trest then none might over go,25

Cobrindo o período compreendido entre outubro e novembro de 1297, o filme

mostra Wallace atacando e capturando a cidade de York. Porém, registros históricos

mostram que ele nunca passou por esta cidade. York é um nome que soa familiar a um

público não-britânico. É provável que o roteirista tenha preferido um lugar que soasse

familiar à Carlisle ou New Castle, as quais originalmente foram as cidades-alvo de

Wallace neste período.

Then unto York they march’d without delay,

No sin they thought it there to burn and slay;

For South’ron had commited the same thing,

When they as tyrantsdid in Scotland reign.

Forts and small castles, Wallace did throw down.26

Ao retornar ao solo escocês em dezembro de 1297, Wallace foi convocado à uma

assembleia na Floresta de Kirk, na cidade de Selkirkshire. A reunião havia sido convocada

por William Douglas e outros principais membros da nobreza escocesa que ainda não

haviam sido capturados por Edward I. Nesta reunião, Wallace foi eleito Governador da

Escócia com a anuência do rei John Baliol, e ele governaria o país na ausência do rei, pois

Wallace se recusava a aceitar a deposição de Baliol por Edward I. Como Governador da

25Um carpinteiro astuto, por nome John Wright,/Ele rapidamente chama e cai para trabalhar à vista/Porque

viu as placas imediatamente em duas/Pelo trono médio, então ninguém poderia ir, Tradução nossa. /Harry,

Book 7, Chapter 4. 26Então, para York eles marcharam sem demora,/Sem pecado, eles pensaram, para queimar e matar;/Porque

os sulistas tinham cometido a mesma coisa,/Quando eles, como tiranistas, no reino da Escócia./Fortes e

pequenos castelos, Wallace derrubou. Tradução nossa. /Harry, Book 8, Chapter 3.

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Escócia, sua administração foi vigorosa e efetiva, conseguindo expulsar os últimos

ingleses das terras escocesas e levantando recursos financeiros para a resistência.

When Wallace’ actions we to light produce,

We’ll find him not inferior to bruce:

But ‘cause the Bruce was of our kingdom heir,

Wallace, therefore, with him we’ll not compare.

Yet by his courage and his conduct wise,

As we have heard, he rescu’d Scotland thrice,

Unto nation’s universal joy,

The time he was the Baliol’s viceroy27

Durante o filme, observamos uma breve aparição de um personagem que se

identifica a Wallace como John Baliol, que afirma ser o legítimo detentor do trono

escocês. Porém, nenhum registro histórico demonstra que ambos haviam se encontrado

pessoalmente. Além disso, na tríplice disputa pelo trono, Wallace nunca reconhecera

Robert the Bruce como pretendente legítimo, e inclusive atacou algumas de suas posições

em Galloway.

Patrick and Beik away with Bruce do ride;

Who with five Thousand took the readiest way

To Norham house, with all the speed they may.

The Scots who were both able, Young, and tight,

Pursued and kill’d great number in the flight.

(…)

Wallace returns from Norham without more,

But for the Bruce his heart was might sore,

Whom he had rather seen the Crown enjoy,

Than master been of all gold in Troy.28

Após estes acontecimentos, em julho de 1298, Edward I lançou seus homens

contra Wallace na Batalha de Falkirk. Os escoceses, apesar de estarem posicionados em

um terreno elevado, estavam em menor número e com equipamento inferior ao dos

ingleses. A batalha foi dura e os escoceses foram forçados a fugir. Fora imprimida em

Wallace a sua primeira grande derrota. No filme, a Batalha de Falkirk é encenada

diferentemente com dois grandes exércitos perfilados, encarando-se mutuamente. O

Historiador Andrew Fisher afirma, em seu livro William Wallace (1986), que não há

27Quando as ações de Wallace que produzimos iluminarem,/Nós o descobriremos não inferior a Bruce:/Mas

porque Bruce era nosso herdeiro do reino,/Wallace, portanto, com ele, não vamos comparar./No entanto,

por sua coragem e sua sábia conduta,/Como ouvimos, ele resgatou a Escócia três vezes,/O tempo em que

ele era o vice-rei da Baliol. Tradução nossa. Harry, Book 1, Chapter 3. 28Patrick e Beik afastaram-se com Bruce;/Quem com cinco mil tomou o caminho mais fácil/Para a casa de

Norham, com toda a velocidade que podem./Os escoceses, ambos capazes, jovens e justos,/Perseguiram e

mataram grande número em voo./(...)/Wallace volta de Norham sem mais,/Mas, para Bruce, seu coração

estava dolorido,/A quem ele preferia ver a Coroa gozar,/Que o mestre feito de todo o ouro em Troia. Harry,

Book 8, Chapter 2. Tradução Nossa

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provas de que Robert the Bruce estava presente na Batalha de Falkirk e que é provavel

que ele não estivesse. Fisher menciona que muitos cronistas ingleses listaram pelo nome

os escoceses presentes em ambos os lados e, caso Bruce estivesse presente, seria

improvável não ser mencionado pelos cronistas devido à sua importância à época.

(FISHER, 1986, p. 82) Após a derrota, Wallace renunciou à sua posição como

Governador da Escócia.

“My Lords”, said he, since over all your force,

You made me gen’ral, both of foot and horse,

(…)

My office therefore freely I resign.

No gift I ask as my reward or free;

I’ve purchas’d honour, that’s enough for me.29

Apesar de Fisher afirmar incerteza sobre a presença de Bruce na Batalha de

Falkirk, o filme coloca-o ao lado dos ingleses, lutando contra Wallace. Durante a batalha,

ambos cruzam-se e começam a pelejar. Wallace é superior a Bruce e derrota-o, mas poupa

sua vida por reconhecer nele o futuro rei da Escócia. Não há registros que afirmem o

apoio de Wallace a Bruce, pois caso houvesse tal encontro em campo, o desfecho haveria

de ser diferente, pois não era usual que Wallace poupasse qualquer escocês que lutasse

ao lado dos ingleses.

Edward I tentou envolver seu filho, Edward of Caernarfon - o Príncipe de Gales,

nas campanhas contra a Escócia. Assim, levou-o na campanha de 1301 e confiou-lhe a

submissão da parte sudoeste da Escócia, expressando assim o seu desejo de que seu filho

e futuro rei Edward II tivesse a “honra de domesticar o orgulho dos escoceses.” (FISHER,

1986, p. 103)

Apesar de descrito no filme como homossexual por causa de sua proximidade com

Piers Gaveston, Edward of Caernarfon performou seu dever real e teve quatro filhos com

sua esposa, princesa Isabelle, filha do rei de França. Além disso, na película é sugerido

um relacionamento amoroso entre a suposta princesa de Gales - título nunca possuído por

Isabelle - e William Wallace. Edward I supostamente havia enviado Isabelle à Escócia

para negociar os termos reais com Wallace, em uma tentativa de enganá-lo, no ano de

1298. O filme mostra a princesa rendendo-se aos encantos masculinos de Wallace,

reforçando o perfil sexual ambíguo de seu marido e insinua um romance em decorrência

29 "Meus Senhores", disse ele, já que com toda sua força,/Você me fez general, tanto a pé e a cavalo,/(...)/De

meu ofício, portanto, livremente renuncio./Nenhum presente eu peço como recompensa ou livre;/Eu adquiri

honra, isto é suficiente para mim. Tradução nossa. Harry, Book 11, Chapter 1.

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do qual a princesa engravidaria de Wallace, sendo o futuro rei Edward III filho de William

Wallace. Porém, segundo Fisher (1986), devemos perceber que o futuro rei Edward III

nasceu em 13 de novembro de 1312, 7 anos após a morte de Wallace.

Wallace fora capturado nas proximidades de Glasgow, em 3 de agosto de 1305.

(FISHER, 1986, p. 119) Após sua captura, foi enviado à Londres, diretamente para o

Palácio de Westminster, onde foi julgado no famoso Westminster Hall, a parte mais antiga

do palácio. Construído em madeira, no ano de 1097, o Westminster Hall servia a várias

funções, uma delas a de ser o tribunal de apelações. Lá, além de Wallace, foram julgadas

figuras históricas como o rei Charles I, Thomas More, Cardeal John Fisher, Guy Fawkes

e o Conde de Stratford.

Julgado no dia seguinte por Peter Mallory, juiz nomeado por Edward I, Wallace é

declarado fora da lei e culpado pelos crimes contra a Inglaterra. Muitos dos participantes

do julgamento haviam lutado contra Wallace em Falkirk. Durante o julgamento não houve

nenhuma testemunha, júri ou apelação. Wallace fora condenado sumariamente e levado

à execução ao final do pleito. Segundo Fisher (1986, p. 128), ele foi enforcado,

esquartejado ainda vivo e decapitado. Sua cabeça fora colocada em um poste na Ponte de

Londres e seus restos espalhados pelas cidades de Newcastle, Berwick, Perth, e Aberdeen

ou Stirling. Edward I viveu mais dois anos após o julgamento e execução de Wallace,

falecendo em 7 de julho de 1307. Ele foi sucedido por seu filho, que se tornara Edward

II. Edward casou-se com Isabelle em 25 de janeiro de 1308. A esta época, Isabelle contava

12 anos.

A encenação do suplício final de Wallace é acurada, exceto pelo "racking" - o ato

de ter suas juntas tracionadas por cavalos, cujo acontecimento não fora registrado. A

execução, porém, recebe um efeito dramático extremo quando o oficial encarregado

estimula Wallace a reconhecer sua culpa e o direito do Rei, beijando o emblema real, o

que levaria a um imediato termo de sua dor. O emblema oferecido para o beijo é uma rosa

da dinastia Tudor, que não se tornou um emblema real até o reinado de Henrique VII,

dinastia Tudor, em 1485.

Ao contrário da morte histórica, a película nos mostra um Wallace recebendo seu

suplício em uma estrutura em formato de cruz cristã. Sua figura é assemelhada ao Cristo,

tanto pelos cabelos supostamente longos que possuía, quanto pelo símbolo de sua

execução. Assim como a tradição afirma sobre Cristo, Wallace fora executado aos trinta

e três anos de idade, em uma cena que fora eternizada nas telas com o famoso grito de

liberdade.

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Diante da morte do herói, Blind Harry possivelmente decidiu manter um relato

mais simples de sua execução, dando um termo rápido e digno à figura de Wallace. Do

ponto de vista do poeta, a execução de Wallace foi rápida e limpa:

Then quickly came the executioner, who

Gave him the fatal and mortal blow.

Thus in defence, that hero end his days,

Of Scotland’s right, to his inmortal praise;30

5 – JACK WHYTE: OUTRA VISÃO SOBRE WILLIAM WALLACE

Indo na contramão do filme de Mel Gibson, Jack Whyte nos oferece uma outra

visão sobre a história da vida de William Wallace. Sua história é narrada através dos olhos

de seu primo James Wallace – também chamado Jamie ou padre James. Por ser um

romancista, Whyte pode abrir mão de algumas fontes históricas para descrever um

Wallace mais humano e de personalidade complexa. Através desta narrativa, o autor quer

nos lembrar que existe uma diferença entre o Wallace como herói mitificado e o Wallace

humano, visto pelos seus entes mais próximos. É o que nos narram as palavras da

personagem Jamie:

Para mim é doloroso ouvir as pessoas dizerem que William Wallace

morreu um rebelde, um patriota heroico com um grito de liberdade nos

lábios, porque isto é mentira. (...) Sir William Wallace, guardião da

Escócia, meu amigo, meu primo de sangue e minha nêmese de toda a

vida, nunca mais atormentaria outra alma. (WHYTE, 2012, p.11)

Apesar de afirmar ter feito uma extensiva pesquisa histórica para o livro, Whyte

afirma que seu romance é um romance especulativo. O autor somente incorporou algumas

das mais recentes interpretações históricas sobre a figura de Wallace. Apesar de

preocupado em ser comparado ao filme, Whyte não parece incomodado com a

comparação de sua obra aos seus antecedentes literários, o romancista Nigel Tranter,

autor de novelas históricas como The Wallace (1975) e Jane Porter, novelista, autora de

The Scottish Chiefs.(1811) O Rebelde (2010), de Whyte, é tão extenso quanto o romance

de Miss Porter e tão conflituoso e meditativo quanto o de Tranter, porém Whyte imprime

um caráter mais humano ao protagonista, diferentemente dos outros autores.

Whyte inicia sua obra em uma Nota do Autor, na qual discute a dificuldade de

escrever sobre a figura histórica de Wallace, principalmente após o filme Coração

30 Então rapidamente veio o executor, que/Deu-lhe o golpe fatal e mortal./Assim, em defesa, esse herói

termina seus dias,/De direito da Escócia, ao seu louvor imortal; Tradução nossa. Harry, Book 12, Chapter

6.

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Valente. Segundo o autor, a pergunta que ele mesmo deveria se responder era “Onde está

a Escócia de Wallace, e como encontrá-la?” (WHYTE, 2012, p. 8), fato que seria um

pouco mais complicado de se estabelecer após a obra cinematográfica. Whyte temia ser

acusado de plagiar o roteiro. Com este temor em mente, o autor resolveu descrever

Wallace como sendo um arqueiro qualificado e um homem comum. Tal argumento sobre

a arquearia é bem aceito, uma vez que a complexidade particular de Wallace é bem

explorada. Durante a leitura da obra de Blind Harry não conseguimos detectar qualquer

menção ao uso de arco por parte de Wallace. Desta forma, a escolha feita por Whyte pode

ter sido possível para que o autor possa fugir de um possível “plágio” da obra de Harry.

O romance procura caracterizar e tornar mais conhecidas as pessoas que cercam

Wallace. Pessoas como sua esposa Marion Braidfoot - chamada Mirren no romance -,

Andrew Murrey, o Bispo Whishart, John Baliol e outras figuras históricas recebem papel

maior. O Rebelde inclusive soma-se ao movimento escocês para o maior reconhecimento

do papel de Murray na Primeira Guerra de Independência da Escócia.

A obra se inicia com Wallace aguardando sua execução em Londres, 1305. Ele é

visitado em sua cela por seu primo o Padre Jamie, ou James Wallace. É através deste

dispositivo que a obra se desenrola. Lançando mão de uma técnica de flashback, Whyte

conta como ambos os Wallace olham para trás e refletem acerca dos eventos de suas vidas

atribuladas e as causas que os levaram àquele último encontro.

William Wallace e seu primo Jamie são então duas crianças que fogem de

soldados ingleses que assassinaram sua família. Ambos fogem a pé pelas planícies

onduladas de Paisley, encontrando santuário sob os cuidados de Ewan Scrymgeour, que

os conduz até Sir Malcolm Wallace, parente dos meninos. Sir Malcolm cuida do bem-

estar e da educação dos meninos e os coloca sob a responsabilidade de Scrymgeour, que

lhes ensina a arte da arquearia.

Ao entrarem na adolescência, James opta por entrar para a Abadia de Paisley e

William torna-se guardião das terras de seu tio Malcolm. Nessa época, Wallace conhece

Mirren Braidfoot, filha de um fazendeiro de Lanarkshire. Mirren possuía um pretendente,

porém se apaixona por Wallace e, ao serem descobertos, ele é declarado fora da lei.

Ambos fogem para a Floresta de Selkirk e instalam-se na região.

A relação entre Wallace e Mirren é um dos temas centrais do romance pois, ao

contrário do poema de Blind Harry e do Filme de Mel Gibson, Whyte retrata Mirren como

a verdadeira parceira de Wallace durante seu tempo de fora da lei na floresta de Selkirk.

Seu casamento e seu posterior filho com Mirren causam grande impacto quando do

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assassinato de sua família mais tarde. O romance desempenha um papel fundamental ao

retratar muitos aspectos da vida escocesa no século XIII. A vida de James na Abadia de

Paisley é bem retratada, mostrando toda a situação do jogo político-eclesiástico por trás

dos choques entre Escócia e Inglaterra. Os personagens de romances históricos

demonstram sempre a preocupação em levar uma vida pacífica ao lado de seus entes

queridos. Porém, Wallace tem seu desejo interrompido bruscamente quando os soldados

ingleses invadem sua casa e assassinam sua família. É assim que Wallace é chamado à

aventura.

Nesta parte em especial, como vimos anteriormente, o poema de Harry assemelha-

se mais ao filme de Mel Gibson que ao livro de Jack Whyte, pois Marion é morta pela

ordem do xerife de Lanark. O sexto livro da obra de Blind Harry é dedicado ao casamento

de Wallace e à sua vingança pela morte da esposa:

None can dictates of his soul control

While his high conuests urge his rapid soul.

Swift to fais Scotia’s plains he bands his way,

By fate reserv’d for Biggar’s glorious day.31

Com a disputa pelo trono da Escócia, a presença de tropas inglesas torna-se mais

comum e alguns confrontos são inevitáveis. Wallace somente entra na disputa após

pequenas escaramuças onde é descoberto e tem sua mulher e filho assassinados pelos

ingleses. Wallace assume o papel sempre encorajado pelo Bispo Wishart e reúne seus

homens para combater a favor da Escócia. Wishart é descrito como um homem

nacionalista. Assim, Wallace une suas forças às de Baliol. O desenrolar da história e seu

termo seguem a sequência proposta pelo filme e pelo poema.

31 Ninguém pode ditar seu controle da alma/Enquanto seus altos desejos exaltam sua alma

rápida./Rapidamente para as planícies de Scotia, ele liga o seu caminho,/Pelo destino reservado para o dia

glorioso de Biggar. Tradução nossa. Harry, Book 6, Chapter 1.

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CONCLUSÃO

Observamos no desenvolvimento de nosso trabalho que a Idade Média é um

período regularmente revisitado ao longo dos séculos subsequentes. Parece-nos que um

dos motivos para a importância dada ao medievo, na contemporaneidade, está relacionada

à busca de raízes sólidas em tempos líquidos. Ao traçarmos brevemente um panorama de

alguns momentos da história escocesa, observamos que desde sua fase formadora

inúmeras batalhas pela posse deste território são travadas e, cada um que domina a região

por determinado período, deixa fragmentos do seu legado cultural que, mais tarde, serão

componentes essenciais do modo de vida escocês.

Apesar da tradição literária escocesa ser rica e variada, escolhemos nos debruçar

sobre a obra de Blind Harry – The Wallace - por ela ser o ponto de partida de um mito

que, desde sua epigênese, já é matéria de resistência. Tal resistência se observa a partir

da língua selecionada para a obra, o gaélico, a língua falada nas terras altas e de herança

dos celtas vindos do norte da Irlanda, sendo rejeitado o inglês por ser a língua do invasor.

A escolha de Harry pelo poema épico às outras formas de representação se deve,

provavelmente, por alguns motivos. Retomamos algumas considerações sobre o mito – o

mito advém da projeção imaginativa das funções essenciais do homem, o mito habita a

época do fabuloso, o mito conta uma história sagrada, o mito revela o ser –, onde

percebemos que o mito literário não pode ser comparado a uma alegoria, pois este é quase

sempre de uma criação espontânea; o mito literário não pode ser comparado ao conto,

pois o conto não é sacralizado como o mito; o mito literário não pode ser comparado a

uma utopia, pois ele não contém um futuro idealizado; o mito literário não pode ser

comparado às lendas, pois são caracterizadas por uma origem histórica.

A obra de Blind Harry é fundamental para a propagação do mito de Wallace por

ser o conservatório da essência desse mito, um legado estendido à coletividade onde são

expressos o amálgama da convicção de uma sociedade e de sua época. É uma imagem

simbólica plenamente reconhecida por todos aqueles que procuram um modelo de

resistência frente ao opressor, por romper com a trama da época, com a normalidade do

comportamento social de um grupo, e desafiar as leis do quotidiano, pois, como

observamos em Jung anteriormente, o homem é um animal que está em busca de símbolos

que identifiquem sua própria existência.

Entendemos o mito de William Wallace, amparado pela visão de Girardet, como

um mito político-heroico. E como tal, o mito transcrito por Blind Harry é transcendente.

Ele ressurge, de tempos em tempos, relido pela necessidade sócio-política de uma

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determinada época. Contemporaneamente ele ressurge recontado em diversas mídias

como o romance, o cinema e a música. Assim, entendemos que todo mito literário é

suscetível de variar em função das conjunturas políticas, sociais, econômicas e até mesmo

dos problemas espirituais específicos de uma coletividade que busca por ele. De tempos

em tempos o mito político-heroico de Wallace perde sua força e desvanece, como todo

mito. Porém, como todo mito, ele está enraizado profundamente no imaginário humano

e retornará quando houver necessidade de retomar uma herança cultural.

Entendemos também que o mito de Wallace é transcultural, pois a noção de

identidade proposta por Stuart Hall nos elucida que os mitos são pontos de apego

temporários, são apenas posições que o sujeito é obrigado a assumir por um determinado

período de tempo, pois passamos por um processo de globalização acelerado no qual, a

partir das Grandes Navegações, o indivíduo percebe que o mundo e suas distâncias estão

cada vez menores. Ao alinharmos nosso pensamento ao de Zygmunt Bauman,

percebemos que as identidades globalizadas propostas por Hall são complementadas pela

noção de liquidez social proposta por Bauman. Assim, podemos perceber que o mito de

Wallace viaja espaço-temporalmente da Escócia para a Grâ-Bretanha, América do Norte

e América do Sul. Além desta viagem espaço-temporal, o Mito de Wallace flana através

das mídias, transpondo a tradição oral para o papel, para uma película e depois para a

música.

William Wallace não é somente uma figura histórica como muitas outras que, após

sua breve passagem por este plano existencial, evanesceu e caiu no esquecimento dos

registros puros e simples. Não é ele somente um nome e duas datas - a de nascimento e a

de morte. Wallace é um arquétipo mítico, um mito político-heroico de transcendência

atemporal. Wallace também não é um simples herói da modernidade líquida e efêmera.

Mesmo após sete séculos Wallace é um mito retomado nos movimentos de lutas

sociais. A cada releitura, a história de Wallace pode variar levemente, pelo fato de ser

uma figura histórica antiga. O próprio Blind Harry é uma figura sobre a qual pouco

sabemos. Porém, a essência deste mito permanece viva, inclusive nos últimos

acontecimentos do Referendo escocês para a separação formal da Escócia, que ocorreu

em 2014 e o BREXIT (Brittish Exit), um referendo para saber se a Grã-Bretanha deixaria

o mercado comum europeu, denominado União Europeia. Wallace retorna como

elemento de resistência às ideias inglesas de separação de um mercado que beneficia e

Escócia, tanto que a Escócia votou por sua permanência. A saída do Reino Unido da

União Europeia tem sido um objetivo político perseguido por vários indivíduos, grupos

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de interesse e partidos políticos desde o ano de 1973, quando o Reino Unido ingressou na

Comunidade Econômica Europeia (CEE). Porém, quanto ao referendo de 2014, Wallace

foi utilizado como elemento de protesto pois, à época, a maioria da população escocesa,

por medo de uma queda brusca em sua economia, resolveu permanecer no Reino Unido.

Um novo referendo será convocado até 2019.

Por fim, nosso objetivo principal nesta pesquisa foi mostrar que o espírito da

medievalidade continua presente na contemporaneidade e é recontado através de bardos

como Blind Harry. Este animador de mitos nos traz uma reflexão de nosso próprio tempo

ao contar-nos a história de William Wallace. Para isso, o mito é transfigurado e

retransmitido em diversas mídias.

Inúmeros modelos sócio-político-econômicos estabelecidos na Idade Média estão

presentes na contemporaneidade, bem como invenções e descobertas que foram

importantes para a humanidade. Sendo assim, devemos questionar porque ainda se vê este

período como algo retrógrado e, homens como Blind Harry, cada vez mais nos mostram

que na verdade, a Idade Média é o gérmen de uma pós-modernidade.

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