O CORCUNDA DE AMSTERDÃO - Raymond Bernard
-
Upload
thamos-de-tebas -
Category
Documents
-
view
225 -
download
1
Transcript of O CORCUNDA DE AMSTERDÃO - Raymond Bernard
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
1/64
Raymond Bernard
O CORCUNDA DEAMSTERDO
www.espelhosdatradicao.blogspot.com
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
2/64
A todos aqueles que buscam...
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
3/64
ndice
INTRODUO................................................................................................ 4Captulo I: UM CORCUNDA... ........................................................................ 9Captulo II: A EXPERINCIA........................................................................ 18Capitulo III: UMA EXPLICAO................................................................... 34Capitulo IV: UNIDADE .................................................................................. 40Captulo V: O RELGIO............................................................................... 47Captulo VI: OS PLANOS PARALELOS....................................................... 53CONCLUSO............................................................................................... 59
DOCUMENTAO ANEXA.......................................................................... 62A AVENTURA DO TRIANON (Citada no Corcunda de Amsterd) ........... 62
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
4/64
O CORCUNDA DE AMSTERDO
INTRODUO
Hesitei em escrever O Corcunda de Amsterd. Alis, tenho de
reconhecer que sempre hesito em relatar certas aventuras, principalmente se
nelas eu desempenhei, querendo ou no, um papel pessoal.
Raros so os que, em sua existncia, no deparem, ao menos uma
vez, com circunstncias excepcionais, bizarras ou inslitas ou mesmo
extravagantes. Ora, tais circunstncias, as conheo com muito mais freqncia
que outras pessoas. talvez um privilgio, mas seguramente um estado de
esprito. Nesse itinerrio, que comeou em meu nascimento e que um dia,
fatalmente, ter um fim, para que minha alma possa desfrutar, maravilhada, de
um repouso talvez merecido, tenho considerado, tanto quanto me seja possvel
reportar-me a tempos j muito afastados, todos os meus companheiros de
jornada, jovens ou mais idosos, iniciados ou profanos, pobres ou ricos, cultos
ou, na pior das hipteses, analfabetos, bons ou pretensamente maus, tenho
considerado a todos como meus mestres, mestres poderosamente interessantes
que, por pouco que se saiba escut-los, esto sempre prontos para partilhar as
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
5/64
ricas experincias retiradas de seu prprio caminhar pelos acontecimentos da
vida.
Que gratido, na verdade, meu corao experimenta por esses
encontros de um dia, por vezes de uma hora, aqui ou ali, em terra, no mar ou
nos ares deste mundo que se tornou to pequeno, por esses amigos mais
prximos cujo pensamento bate no mesmo ritmo que o meu, por nossa me
Natureza, que murmura com pacincia sua sabedoria a seus filhos atentos e por
esse necessitado mundo de reinos que, muito precipitadamente, dizemos
inferiores ou inertes! Todos me ensinaram, todos me ensinam incessantemente,
e meus sentidos esto sempre alerta, vem, olham, cheiram, tocam, para que a
lio seja assimilada, compreendida, proveitosa. Oh! meus mestres deste
mundo, vs que acreditais vossa vida intil, desperdiada, triste e sem
finalidade, ou, ao contrrio, feliz e realizada, quanto enriquecestes meu ser!
Como poderia conhecer tanto se, por vossas experincias, no me houvsseis
permitido viver mil vidas em uma s que, sem vs, teria sido lamentavelmente
limitada.
Infeliz do homem que vaga ao longo dos dias, voltado para si
mesmo, em sua prpria contemplao, tendo por nicos guias suas
desconcertantes quimeras, suas falsas esperanas, suas enganadoras certezas,
sua indulgente avaliao de si mesmo e sua dolorosa vaidade! Sim, vs,
clebres ou ignorados, que at aqui fizestes a grande epopia da terra, e todos
vs que, desde que meu nascimento me ps no mundo, atravessastes minha
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
6/64
vida para formar sua trama e minha histria, recebei a humilde homenagem de
um aluno ignorado por vs e que, se quis ou soube melhor que outros aprender
vossas incomparveis lies, no teria sido sem vs seno miseravelmente ele
mesmo.
Tu que, leitor, curiosamente, participars dentro em pouco da
histria de um corcunda, tu sabes que, perto de ti, a cada instante de tua vida
consciente, um mestre se encontra pronto para instruir-te? Escuta, ou
simplesmente, v! teu pai, tua esposa ou teu amigo? o comerciante cujo
servio buscas to freqentemente, sem prestar maior ateno ao homem? o
empregado por quem passas, o chefe que crs conhecer, a multido onde te
perdes? V ou simplesmente escuta! O mundo inteiro teu mestre. Onde quer
que estejas, aonde quer que vs, ele est pronto para instruir-te, a entregar-te as
riquezas de sua vida secreta. Tu podes, por ele, ser milhares de vezes tu mesmo.
Ento, que esperas? Recebe dos outros o que tu mesmo me deste...
Eis por que, relatar acontecimentos, mesmo excepcionais, suscita,
sem cessar, em mim, difceis hesitaes, pois tais acontecimentos so apenas um
episdio do livro ainda inacabado cujo enredo formado por minha vida, as
folhas por minhas lembranas e a encadernao por minha memria. Ora, a
quem pertence esse livro, seno quele que, chegada a noite, quando meus
olhos fatigados se fecharem para sempre no mundo, avaliar as sentenas para
decidir se ele tem algum mrito ou se ele s traduz, ao contrrio, o vazio
horrvel de um lamentvel fracasso. Entretanto, se os outros so meus mestres,
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
7/64
porque no seria eu prprio um mestre para outros, e se um acontecimento de
minha existncia pode tornar-se um ensinamento para outrem, como no
proporcionaria esse presente a todos como reconhecimento pelo que todos no
cessam de me oferecer?
Todas as consideraes feitas, O Corcunda de Amsterd no o relato
de uma aventura pessoal. H, naturalmente, as circunstncias de meu encontro
com o corcunda e o fato de que ele me contou sua experincia, mas eu no
estive de modo algum envolvido nas peripcias de sua estranha histria. Isso
no quer dizer que eu recuse acreditar em sua narrativa. Se fosse esse o caso, eu
no cuidaria de escrev-la. Admito, com toda a f, seu relato como a experincia
vivida de uma verdade. Pouco me importa que essa verdade tenha sido vestida
com os costumes particulares que lhe confira uma reao emotiva prpria
quele que a encontra. Esse homem teve acesso a experincias absolutamente
nicas. Acontece que isso j ocorreu comigo, e isso me confere ainda um
privilgio, o de aceitar esse relato mais livremente que outros, ainda submissos,
independente de sua vontade, dvida paralisante de um raciocnio limitado
unicamente aos fenmenos enganadores de uma existncia, embora ela seja
supostamente voltada para valores mais elevados que a rotina do quotidiano.
Eu vi um homem, escutei-o, compreendi-o e acreditei nele. Eis a sua
histria. Meditai sobre ela e esforai-vos por compreend-la, como eu prprio o
fiz. Que em seguida vs acrediteis, ou no, nela, isso sem importncia. Sem
que saibais, ela ter cumprido sua misso: Em alguma parte de vosso ser, vossa
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
8/64
verdade a ter acolhido, e se um dia a experincia vos aproximar, estarei
preparado para ela. Afastando a surpresa e dominando a dvida, acolhereis
ento o conhecimento. Assim, sem temor intil, acompanhai-me a Amsterd. A
viagem vale a pena, pois era uma vez um corcunda...
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
9/64
Captulo I: UM CORCUNDA...
Amsterd no triste sob chuva. A chuva um de seus mantos, e
sem dvida o que ela prefere, pois lhe fica muito bem. Ele se harmoniza com as
muralhas acinzentadas, com a gua enturvada dos misteriosos canais, com as
fachadas secretas dos museus e, tambm, com a melancolia de um povo que
dissimula sua inquietude sob o vu de um individualismo excessivo,
contraditoriamente hospitaleiro.
Chove, pois, esta manh, em Amsterd, e isso no me desaponta.
Porque disponho hoje de momentos de lazer, vou confinar-me no quarto deste
hotel to prximo do centro, onde artsticas vitrinas oferecem aos olhos dos que
passeiam a esmo a diversidade de suas tentadoras promessas? Eu ainda no sei,
e deso para o vestbulo, onde me sento em confortvel poltrona; mas a
contemplao silenciosa de todo esse pequeno mundo que se agita diante de
mim cansa-me rapidamente. Deixo os empregados e sua obsequiosa espera, o
gerente e seu telefone, o porteiro e seu guarda-chuva, e saio de Hotel Carlton.
"Est chovendo, senhor" diz, voltando-se, um carregador com que
acabo de cruzar.
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
10/64
Lano um olhar para as pessoas que passam. Bem poucas esto de
capa. primavera e no faz frio. Certamente, muitas esto de guarda-chuva,
mas no me preocupei em pegar o meu para essa viagem.
", mas no vou longe". o que respondo ao carregador, resposta
to ridcula quanto a observao. Vejo bem que est chovendo... mas sempre
preciso conformar-se aos costumes deste mundo. De outra forma, a vida no
seria facilitada.
Viro para a esquerda, o sinal verde d passagem aos pedestres, e
continuo, lentamente, ao abrigo de arcadas cuja razo, pensando bem, no
compreendo... Ah! sim, a chuva! Eis ainda, esquerda, Singel e seu canal; pouca
gente. Tenho necessidade de misturar-me a uma multido, deixo as arcadas,
apresso o passo e, sem conceder um olhar torre em reforma, dirijo-me para a
Kalverstraat, longa rua estreita, vibrante de comrcio, reino dos pedestres,
senhores, aqui, tanto das caladas quanto do meio da rua. E ando, e ando ainda,
refugiando-me, por vezes, em alguma galeria protegida da chuva, atrado por
esta exposio, ignorando aquela, curioso, por fraqueza, pelos rostos que por
mim passam, interessado por isto, ocupado demais para examinar aquilo,
minha conscincia bem atenta, gravando o que no vejo... Praa Dam! O
inesquecvel carrilho canta mais uma hora... Consulto meu relgio: meio-dia, e,
como meio-dia, presto, finalmente, ateno s esperanas de meu estmago.
Observo que, se tivesse ignorado a hora, no teria percebido que estava com
fome. Curioso imprio do psiquismo... Ri de mim mesmo.
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
11/64
Bem! Um restaurante!... Dou meia-volta e minha ateno em alerta
concentra meu pensamento sobre o nico objetivo que lhe apontou o meu
apetite. As vitrinas perdem todo o interesse, os rostos me so indiferentes, se
me molho, pior... Quero um restaurante. No! este no, ontem j tive a
lamentvel idia de experiment-lo...
Chego quase ao incio da Kalverstraat, a meu ponto de partida. Devo
mais uma vez seguir o itinerrio conhecido, meditar diante da lista
impressionante de pratos enganadores? Ah! l adiante, esquerda, Vami! Hoje
pela manh passei diante desse restaurante e prometi a mim mesmo fazer nele
uma refeio... estranha atrao, ento. Curiosidade?
Entro. H muita gente, demais! Alguns esperam a vez, perto da
porta. Devo fazer o mesmo? Percebo uma seta luminosa que indica uma escada:
Restaurante. Ento, que esta sala onde me encontro? Entretanto, as pessoas
comem, talvez as pessoas apressadas. Eu no estou com pressa e dirijo-me
escada. No alto desta, penetro, esquerda, numa sala de medianas dimenses e
no vejo lugares vazios. Uma empregada da casa vem a mim e lhe fao
compreender que estou sozinho. Ela contempla por um momento a sala e me
pede que a siga at uma mesinha, onde j h algum instalado. Depois de
algumas explicaes em holands, o que compreendo como uma recusa de seu
interlocutor, acho que o melhor para mim ir a outro lugar.
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
12/64
"Lamento, senhorita!" e me disponho a partir, quando o mesmo que
acabava, to asperamente, de defender seu direito sua mesa, exclama em
francs:
"Senhor! Sente-se, por favor!" A empregada puxa uma cadeira e me
sento diante de meu... anfitrio, satisfeito porque a idia de algumas palavras
em francs incitou o homem a dar um testemunho da tradicional hospitalidade
de seus compatriotas. Enquanto agradeo com um sorriso quele que me
acolhe, examino-o atentamente. Seus olhos azuis so mais para pequenos; mas
talvez seja uma impresso causada pelos curiosos culos metlicos que ele usa.
Seus cabelos brancos e esparsos so puxados para trs e o rosto anguloso parece
desiludido. Seu terno cinza sem elegncia reala uma gravata azul, cujo motivo
de crculos inacabados surpreende.
Ele no usa leno no bolso da frente do palet, o que, para um
homem de sua idade ele deve ter passado bastante dos sessenta anos ,
negligncia neste pas. Mas por que mantm ele a cabea assim enfiada nos
ombros? S ento percebo que ele corcunda...
"Ento, o senhor francs..." Ele fala a lngua de maneira perfeita,
quase sem sotaque. Eu me espanto com tal observao, pois muitos franceses
vivem na Holanda e grande nmero deles, durante todo o ano, a fazem
freqentes passagens.
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
13/64
"Ento, o senhor francs" ele repete, e essa insistncia me
incomoda, mas aquieso, mais uma vez, com um sorriso.
"Gosto da Frana..." Isso poderia ser uma cortesia para comigo, ou
ento uma banalidade, palavras vazias. Entretanto, o tom de sua voz d vida s
suas palavras e esse homem, sem dvida alguma, fala neste momento para si
mesmo...
A empregada volta e escolho o que vou comer. Ele faz o mesmo e
deduzo que ele est ali h pouco tempo. Vou ter um companheiro de mesa e
esse companheiro parece decidido a conversar.
"Eu lhe sou reconhecido por me ter permitido ficar nesta mesa, senhor. De
incio tinha-me parecido que o senhor preferiria estar sozinho..."
"Aprecio a solido, mas nunca estou s comigo mesmo" responde ele.
Oh! Mas esse homem me interessa cada vez mais! Ele deve ter uma
rica experincia da vida. Sem dvida ele viajou muito.
Desdobro meu guardanapo e, quase ao mesmo tempo que ele,
comeo minha refeio. De repente, sinto seu olhar e levanto os olhos. Sem um
gesto, silenciosamente, ele fixa meu anel triangular, cujos diamantes, verdade,
devem ter chamado sua ateno. Essa curiosidade me aborrece e pergunto-me a
que concluses seu exame o conduz. Prefiro esclarec-lo logo para evitar uma
interpretao errnea:
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
14/64
"Sou o legado supremo da Ordem Rosacruz A.M.O.R.C, da Europa e,
ao mesmo tempo, o grande mestre dessa mesma organizao nos pases de lngua
francesa. Isso o emblema de minha funo mais alta. A.M.O.R.C. significaAntiga e
Mst ica Ordem R osae Crucis ; Ordem da Rosa-Cruz, se preferir!"
"... da Rosa-Cruz, da Rosa-Cruz! Ser possvel que, finalmente, tenho
diante de mim aquele que espero h tanto tempo? Ah! senhor... mestre!..."
Decididamente, a conversa toma um rumo que me desagrada. Eu o
interrompo:
"Sou apenas um discpulo entre muitos outros, o senhor sabe. Acontece
que estou assumindo uma funo magistral na orientao de uma grande comunidade,
mas isso no significa, de forma alguma, que tenha a pretenso de ter atingido a
perfeio absoluta do realizado! Se, por mestre, o senhor entender um encargo que se
realiza no temporal, de boa-vontade que o aceito; mas se o senhor subentender a idia
de Rabi, ento recuso o ttulo, pois est escrito: "No vos faais chamar Rabi." Em
compensao, aprovo de todo o meu corao a admirao que o senhor tem pela Rosa-
Cruz. Ela , por vezes, atacada pelo tolo ou pelo ignorante. Assim sendo, um elogio
sincero apreciado, embora a Rosa-Cruz, por sua natureza, seja insensvel tanto aos
ataques quanto aos elogios.
O senhor no pode saber a razo verdadeira de meu entusiasmo e de
minha profunda alegria! Perdoe esses excessos, se todavia eles assim podem ser
considerados. O senhor no juiz do que o senhor prprio . Que segue a lei secreta, sua
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
15/64
interrupo o prova e sua recusa o afirma. Mas no me repila! Meu corao sabe que o
senhor capaz de resolver o grande problema de minha existncia. Mesmo que o senhor
seja simplesmente um intermedirio, como o senhor admite implicitamente, sua situao
em relao ao alto e em relao ao que est embaixo lhe d a possibilidade de recolher e de
transmitir nos dois sentidos...
Alto e baixo, eis algo de inexato...
Digamos, ento, centro, com relao circunferncia; ou, se preferir,
crculo interior, com relao ao infinito dos crculos que se afastam do centro por graus.
As palavras tm pouca importncia!
Sem dvida, senhor. Lamento t-lo interrompido. Eu no podia supor que
o senhor tambm havia transposto algumas etapas da porta estreita e, o senhor v, meu
dever reagir vivamente diante de toda manifestao supersticiosa cujo culto pessoal
uma insidiosa faceta.
Eu transpus mesmo algumas etapas? Como sab-lo? O de que estou
absolutamente certo, que tive uma experincia rara, uma aventura excepcional da qual
resultou para mim uma transformao radical de minha existncia e, em todo caso, mais
felicidade interior, associadas a uma grande paz que meu rosto, o admito, nem sempre
reflete; e, se assim , porque uma questo fundamental continua formulada para mim,
em conseqncia desse acontecimento. Ora, minhas pesquisas so vs, as explicaeslivrescas recolhidas so incompletas e no me satisfazem. Como o senhor quer que meu
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
16/64
ser no salte quando tenho a sorte de t-lo aqui hoje, a minha mesa, e quando me sinto
penetrado pela certeza de que o senhor pode esclarecer-me!
Que que o senhor entende por experincia rara, aventura excepcional?
Para compreend-lo, o senhor deve escutar minha narrativa, e esteja certo
de que no ousaria faz-lo perder seu tempo para epilogar sobre simples conjeturas.
Nunca perco meu tempo com outra pessoa, senhor. Os outros esto
sempre prontos para dar e estou sempre pronto para receber.
Percebo o que o senhor entende por isso. Entretanto, minha histria to
incrvel, inverossmil, que o senhor o primeiro, e ser o nico, a quem a contarei. Aos
olhos da maioria, tal narrativa faria tachar seu autor de louco ou ento de sonhador.
Ora, nem sou louco nem sonhei...
Tenho todo o tempo que for necessrio e , creia-o, com o maior interesse
que eu me preparo para ouvi-lo, e tambm com a mais extrema simpatia. Se depois eupuder ser-lhe til e iluminar, ainda que pouco, seu caminho, saiba que pode contar
comigo.
Ah! eu sabia, sentia que este momento devia surgir. O simples fato de
poder relatar-lhe essa aventura ser para mim um real alvio. impossvel,
naturalmente, transmitir em poucas palavras uma experincia desse gnero, pois seria
necessrio, ao mesmo tempo, reproduzir o clima, tornar a dar vida s emoes do
instante vivido e imprimir s palavras o vigor do acontecimento. Farei o que puder. No
hesite em me interromper se uma explicao lhe parecer obscura. No fundo, meu relato
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
17/64
poderia ser resumido em algumas palavras que definissem uma brusca mudana de
universo, uma transferncia de um mundo a outro...
Na verdade, senhor, estou intrigado! Que entende o senhor por isso?
Qual , pois, essa experincia?"
Meu interlocutor empurra seu prato, cruza os braos sobre a mesa e,
indiferente a tudo que no seja ele e eu, inicia, com voz lenta e grave, seu
extraordinrio relato.
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
18/64
Captulo II: A EXPERINCIA
"O senhor acreditar em mim, ou, medida que se desenvolver minha
narrativa, o senhor ter a impresso que minha imaginao se perde no obscuro labirinto
onde a razo paralisada deixa os pensamentos errarem ao sabor de louca anarquia? O
senhor me ouve atentamente e sinto seu olhar sondar, atravs de mim, o domnio
misterioso em que todo o meu ser, neste instante, vibra, como se o presente encarnasse,
de repente, o acontecimento passado, a lembrana que agora toma forma em palavras, j
estando, inteira, viva em minha conscincia...
Naquela noite, eu tinha decidido jantar no Caf Moderno. Esse
restaurante, situado naLeidseplein, perto do teatro, d para uma artria movimentada
e, nesse ms de junho, o espetculo de uma multido preguiosa que deseja acolher num
passeio tardio as promessas de uma estao mais clemente me era uma agradvel
companhia em minha refeio solitria. Eu mal ouvia o barulho da circulao intensa
que projeta constantemente, nesse cruzamento central, veculos grandes e pequenos,
alguns caminhes barulhentos e uma nuvem murmurante de bicicletas. Eu contemplava
a multido, abandonando-me aos estranhos sentimentos que suscita a vista de pessoas
diversas, elas prprias a presa de sua individualidade e de secretos pensamentos
ciosamente guardados.
Todos esto ss, dizia para mim mesmo; mesmo esse cujos braos se agitam
ao ritmo de palavras que ele destina mais a si mesmo do que quela que o acompanha;
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
19/64
mesmo aquele que acredita escutar e cujo pensamento j foi levado pelas lembranas que
uma palavra do outro fez brotarem nele! E eu mesmo estava s, numa solido infinita,
como todos eles; s...
Eu comia; meu corpo aceitava o alimento que lhe era proposto por gestos
mecnicos, pelo reflexo de um hbito distante. Naturalmente, tinha escolhido o que
comer, entre os alimentos que me agradavam e os absorvia sem a curiosidade ou a
surpresa, boa ou m, que um prato novo possa suscitar por comparao inconsciente
com outra coisa. Talvez meu gosto apreciasse o que o solicitava. Em todo caso, ele nada
recusava e., assim, eu me dava inteiramente ao espetculo da rua...
O grande relgio doAmerican Hot el iluminado, ao longe, marcava quase
vinte e uma horas quando, fixando nele o meu olhar, tomei conscincia do tempo. Minha
conta estava pronta. Sem esperar os centavos de troco, me levantei, passei pela porta e
desci os poucos degraus. Queria misturar-me multido, agora um pouco menos densa,
viver com ela, annimo no desconhecido dos outros, mesmo se, para eles, durante o
espao de tempo de um pensamento, devesse ser um corcunda que passava.
Atravessei a rua, louco para me entontecer com aquele barulho que, de todas
as partes, j me crivava com as pontas discordantes de seu ritmo terrificante. Como de
hbito, esqueceria no barulho os terrores de uma existncia torturada pela abjeta
companhia de uma deformidade nunca aceita.
Sim! A multido, o barulho... E de repente o silncio, o vazio, o nada! Um
silncio, um vazio, um nada impossveis de imaginar. Durante alguns instantes, nada!
Para conhecer o sentido dessa palavra to breve, preciso viv-lo, e o vivi!"
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
20/64
O senhor quer dizer que, bruscamente, a Leidseplein se esvaziara
de todos os seus ocupantes, da multido, dos veculos, dos...
" No havia mais Leidseplein, senhor! Havia o vazio, o vazio e nada
mais. Como eu poderia explicar-lhe isso?...
Suponha que, de repente, o senhor acordasse de um pesadelo barulhento e
movimentado e que o senhor se encontrasse, sozinho, num ambiente desconhecido, no
centro de um vazio absoluto, infinito, e o senhor ter uma compreenso nfima da
condio em que me encontrava.
Durante alguns instantes, pensei que estivesse desmaiado; at mesmo o
pensamento de que pudesse estar morto me veio mente, mas rapidamente percebi que
vivia dentro de, e com, meu corpo fsico. Por um momento, supus ter ficado louco, mas
no me ative a essa idia, pois raciocinava, meus pensamentos estavam perfeitamente
ordenados e estava em minha completa conscincia. Louco? No. Entretanto, esse
desconhecido em que me encontrava, essa solido nunca imaginada, que antes me dizia
solitrio, tudo isso me arrasava, me apavorava de forma a me fazer perder a razo.
Sentia que minhas foras deixavam meu ser transtornado, mas, num sobressalto, reagi
com toda a minha vontade, de tal forma est preso, em ns, nas circunstncias mais
dramticas, o desejo de sobreviver.
Que podia fazer? Permanecia imvel. Aonde teria ido, j que diante de mim
era o vazio sem fim, o vazio atrs de mim, de todos os lados! Nessa poca, no sabia
rezar e era pouco inclinado s consideraes religiosas. Entretanto, do fundo de meu ser,
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
21/64
um grito se elevava: " Meu Deus!" No era um apelo; era, antes, uma queixa, um
gemido de impotncia... Fechei os olhos."
Por quanto tempo o senhor ficou nesse estado de solido absoluta?
" Como poderia eu diz-lo? Alguns segundos, alguns minutos? Que
significam segundos e minutos quando se est diante do nada! Um segundo pode
incluir a experincia de toda uma vida! Tempo e espao! J no h espao, nem com que
medir o tempo quando se est s consigo mesmo e com encadeamento de impresses
puramente subjetivas!"
Compreendo, e depois?
" Depois, abrindo os olhos, comecei a tomar conscincia do que chamarei
um universo diferente. Conclu, a partir da, que minha conscincia, habituada
unicamente s percepes de nosso mundo, devia ter sido ofuscada, paralisada diante
das condies em que, de repente, tinha mergulhado. Meu corpo no reagira
imediatamente e minhas faculdades deviam ajustar-se a novas circunstncias antes de
poder transmitir uma impresso qualquer a meu pensamento. O mergulhador, durante
os breves instantes que seguem seu contato com a gua, experimenta uma impresso de
vazio interior. Em seguida, ele toma conscincia do meio em que se move e comea a
nadar. Mas o mergulhador sabe que vai mergulhar. Ele est preparado. Eu no estava, e
foi por isso, talvez, que minha tomada de conscincia foi mais longa, mas dramtica.Pelo menos, foi a explicao que achei mais plausvel."
Que entende o senhor por universo diferente?
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
22/64
" Na realidade, um mesmo universo que seria percebido de outra maneira,
sob um aspecto diferente.
Mas estou vendo por suas perguntas que, ao mesmo tempo que minha
narrativa, o senhor deseja as explicaes que minhas reflexes ulteriores me levaram a
dar s circunstncias que atravessei nessa experincia nica. Procurarei, pois, conjugar
as duas coisas relato e explicaes...
Lentamente, pareceu-me que emergia de um sonho, desse sonho em que tudo
era vazio e nada, onde eu estava s, isolado, no nada de que antes me referi.
Progressivamente, meu universo tomava forma, parecendo materializar-se a partir
do nada em que eu estava imerso at o momento. De fato, esse universo l estava e eu,
pouco a pouco, dele tomava conscincia. Minha surpresa era sem limites, pois l longe,
de onde vinha, era a noite, e aqui o dia resplandecia sob um sol fulgurante. Em suma,
deixando l a obscuridade de um mundo, eu nascia na claridade de um outro. Este
mundo era, desse ponto de vista, o outro mundo ao inverso. Talvez tambm percebesse
a claridade do segundo atravs da obscuridade do primeiro. Quem sabe? Eu aprendi
tanto nesses instantes que, em minha opinio, ou bem tudo miragem ou bem tudo
realidade, somente as interpretaes de nossa conscincia so irreais!
Na verdade, a Leidseplein se reconstitua diante de mim, mas uma
Leidseplein bem diferente daquela qual eu estava habituado desde minha infncia. A
praa era muito mais vasta e nenhum cruzamento ia dar nela. J no havia caminho
reservado aos bondes, a estao de txis tinha desaparecido, nenhuma sinalizao
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
23/64
luminosa aparecia nos pontos que, l longe, o mundo julgava perigosos para uma
circulao livre.
A Leidseplein ficava sombra de grande nmero de rvores, que
atapetavam, de um tom verde, esses lugares, agora, to calmos e repousantes para mim.
Do outro lado, eu devia encontrar-me no longe da banca de jornal, situada em frente ao
restaurante Moderno. Eu estava perto de uma rvore de galhos imensos, onde
brincavam os raios de um sol quente de vero. A parte exterior do banco, onde,
curiosamente, se reuniam os povos, cedia lugar a pequenas lojas de janelas abertas,
simtricas s que ocupavam, em frente, o imenso local da companhia de aviao de outrolugar.
Era a Leidseplein e no era mais ela. Os paraleleppedos substituam o
asfalto bem mantido da outra... Sim, a mesma praa e ao mesmo tempo uma praa
diferente, to limpa quanto a outra, mas de aspecto antigo para o homem moderno que
eu continuava sendo..."
Os habitantes?
"J chego l! Pouco a pouco, percebia que acidade era habitada. Cavalos
puxavam antigas carruagens, cujas rodas ressoavam sobre os estreitos paraleleppedos.
Os que as conduziam estavam estranhamente vestidos de largas calas furta-cores que
contrastavam com o palet uniformemente azul ou marrom.
medida que voltava conscincia e que retomava o uso de meus sentidos,
via melhor, ouvia completamente e a praa se enchia de uma multido barulhenta,
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
24/64
vestida como antigamente. A Leidseplein parecia o palco de um teatro fantstico onde se
apresentasse o drama extraordinrio da vida quotidiana em um sculo distante. Eu
percebia, na multido, muitos homens vestidos como os que, no caminho, cuidavam de
bem dirigir seus veculos olhando pelo percurso de cavalos fatigados pela carga que
puxavam. Numerosas mulheres usavam na cabea aquele ornamento rendado que, do
outro lado, inspirava certa nostalgia, perdido na massa de uma moda declarada mais
avanada. As longas saias bufantes faziam resplandecer o aventalzinho branco amarrado
ao corpo. Alguns homens estavam apertados num terno geralmente de cor escura, sobre
o qual aparecia, ao redor do pescoo, um cabeo de renda branca a se harmonizar com a
brancura da camisa que transpirava das mangas do gibo.
Foi ento que pensei em minha situao particular no meio dessas pessoas.
Eu devia parecer-lhes estranho em meu terno civilizado, com minha rala cabeleira
cortada curto, enquanto que aqui, os homens, jovens e velhos, usavam os cabelos to
longos que nossos modernos beatniks teriam tido grande inveja deles.
Baixei os olhos e me olhei, ficando estupefato. Estava vestido como eles!
Minhas mos foram ter a meu rosto: no estava com os culos habituais, mas com um
gnero de culos antigos muito grossos em metal simples, mas que ficavam
perfeitamente adaptados a minha vista. Toquei rapidamente meus cabelos e, sem
dificuldade, senti que estava de peruca.
Alguma coisa em mim parecia diferente e eu tinha a impresso que era algo
de importante... Oh! certamente era importante e todo o meu ser estava tomado de uma
alegria intensa misturada a um alvio incrvel: minha corcunda, minha enorme
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
25/64
corcunda tinha desaparecido! Eu estava reto; a mais louca de minhas esperanas estava
realizada. Eu tinha vontade de chorar, de tal forma era poderosa a minha emoo,
gostaria de correr, de interpelar os transeuntes e de gritar-lhes: "Milagre!" Novamente,
o pensamento de que poderia eu estar sonhando me entristeceu, mas s por um breve
instante, pois o sentia, o via, tinha plena conscincia disso: estava acordado,
completamente acordado... E bem vivo.
Era preciso que eu falasse com algum. Atravessei a praa e dirigi-me a uma
pequena... digamos, taverna situada exatamente no local onde h um restaurante
clebre, atualmente, por suas especialidades em peixes. Desci os dois degraus que davamacesso sala de dimenses mdias, onde muitos de nossos decoradores amantes do antigo
teriam, estou certo, encontrado rica inspirao. Entretanto, no prestei muita ateno
aos lugares. Eu queria ter um interlocutor, e sentei-me a uma mesa cujo banco j estava
ocupado por um cliente.
empregada, pedi um Genivre. Ela me olhou, surpresa:
" De que pas vem o senhor? Que sotaque estranho o seu! Mesmo os
espanhis, to numerosos por aqui, falam melhor nossa lngua que o senhor!... Enfim,
umGenivre. Ento, o senhor tem um pouco de ns!"
Meu sotaque! Para mim, holands de nascimento, educado num dos
melhores colgios deste pas, comparar minha lngua ao falar de um espanhol de
passagem! Essa confuso me torturava. Ento nossa boa lngua neo-holandesa tinha
evoludo ao ponto de uma compatriota nela no reconhecer a pureza tradicional! Eu
meditava, diante de meu Genivre, sobre as estranhas diferenas que o tempo marca
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
26/64
entre o passado e o presente. O passado, o presente... mas ser que eu estava to
perturbado? To rapidamente me havia integrado nesse lugar para no mais me lembrar
que no havia, entre ele e o outro, qualquer relao de passado e presente, e sim
simultaneidade?
Constatei, de repente, que meu vizinho me observava com curiosidade. J
que queria um interlocutor, por que no esboar uma conversa com aquele?... Foi ele que
falou primeiro:
" verdade disse ele , seu sotaque estranho. menos rouco que o
nosso. O senhor emite certos sons com mais suavidade. Algumas palavras, no seu falar,
so abreviadas, mas suas frases so mais requintadas, sua construo menos abrupta
que a que usamos habitualmente. E tudo isso apareceu no pequeno nmero de palavras
que o senhor disse ainda agora. Entretanto, o senhor parece do pas. Eu o conheo bem e
h poucos lugares aonde no tenha ido. Na verdade, o senhor estranho, ou melhor, o
senhor fica estranho aqui! Permita que me apresente: Hans von Ploeg, notrio."
Murmurei meu nome, pouco certo de que ele o entenderia, mas ele pareceu
satisfeito. Em todo caso, estava feliz por ter o acaso feito com que encontrasse um
interlocutor certamente instrudo.
" O senhor mora aqui" perguntou-me ele.
Tive a presena de esprito de responder:
" Acabo de chegar! Uma longa viagem me reteve anos no estrangeiro."
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
27/64
" Ah! Isso talvez explique o seu sotaque!"
" Talvez! Acho a cidade bem mudada!"
Ele deu uma gargalhada sonora:
" Mudada! Amsterd mudada! Mas, senhor, Amsterd no muda,
Amsterd no mudar nunca..."
Nesse momento, era eu que retinha o riso. Se ele soubesse! Ao
menos, eu tinha uma certeza: estava mesmo em Amsterd!
" A Espanha deixa sua marca neste pas. Ns nunca nos livraremos disso.
Para onde vai nossa raa? Temo bastante que ela desaparea na onda vida de todos
aqueles que so atrados por nossa situao nica neste ponto da velha Europa..."
De que raa queria ele falar? Onde est nossa raa? Nenhuma raa na
Europa poderia reencontrar sua verdadeira origem, de tal forma houve
migraes diversas neste continente. A Espanha? Em que sculo se est aqui?
No ouso perguntar-lhe. Meu interlocutor pensaria estar
conversando com um desequilibrado e a conversa terminaria. Uma pergunta
dessas, e com meu sotaque!
" O senhor tem razo, sem dvida! E os meios de transporte atuais
favorecem ainda a vinda de estrangeiros..."
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
28/64
" Os meios de transporte? Que entende o senhor por isso? As diligncias,
os fiacres? Vamos, senhor! est brincando. Onde est a melhora? O cavalo, eis o meio
rpido e seguro. O senhor bom cavaleiro?"
" Hum!... E o futuro? No lhe passa pela cabea que um dia carros
podero movimentar-se sem cavalos, ou mesmo nos ares?"
Ele me olhou, estupefato:
" Carros sem cavalos, carros nos ares... mas o senhor est brincando! Ah!
compreendo! O senhor filsofo... O senhor est esquecendo o perigo de sustentar tais
heresias. Deus criou para o homem a terra, as diligncias, o cavalo e os veleiros para as
viagens por mar. Tudo mais divagao do esprito, sonho de filsofo."
" Certamente! Admito-o. O senhor to seguro de si, meu senhor!"
" Oh! Eu tambm acredito no progresso e reconheo o passo gigantesco
efetuado de algumas dcadas para c, mas voar nos ares! S esse pensamento j um
insulto ao Criador."
" Longe de mim a idia de insultar o Criador! Eu expressava uma idia
que outros, outrora, j alimentavam. No estou dizendo que isso v se realizar."
J estava em tempo de acabar com a conversa. Algumas palavras
imprudentes e seria perseguido por bruxaria ou opinies subversivas. Conheo mal a
histria de meu prprio pas e ignorava o tempo dessa aventura.
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
29/64
No momento em que a empregada me pedia o total de minha consumao,
percebi, com pavor, que no tinha dinheiro. Meu interlocutor pareceu compreender
minha situao embaraosa:
" O senhor foi meu convidado! Eu cuidarei disso! Adeus, senhor. Boa
volta ao caminho certo."
Eu lhe expressei minha gratido e sa. Lentamente, segui as ruelas estreitas
at os canais, j no prestando ateno s pessoas por quem passava, tendo meu
interesse concentrado nas antigas habitaes esparsas ao longo das ruas caladas. Era-
me necessrio tornar a travar conhecimento com minha cidade, pois s reconhecia os
canais. Eles continuavam os mesmos. Somente as pontes eram, por vezes, diferentes. Eu
olhava a gua lamacenta correr docemente ao longo das margens elevadas. Isso, ao
menos, me ligava s outras paragens...
Voltei pelo mesmo caminho at a Leidseplein. Estava preocupado. Sem
dinheiro, sem casa (onde estaria a minha?), perdido em minha prpria cidade, sem
amigos, sem conhecidos, desorientado. Que iria ser de mim? Sem dvida essa atmosfera
obsoleta me agradava, me inspirava e parecia-me que respirava melhor, um ar mais
puro. certo que minha corcunda to detestada j no me perturbava com sua presena
maldosa. Nada, entretanto, podia substituir o outro mundo, aquele onde tinha crescido,
onde tinha atravessado e superado muitas dificuldades, onde, apesar de tudo, tivera meu
quinho de alegrias. Aqui, seria preciso recomear do ponto de partida, e estava muito
velho para nutrir a mnima esperana. Eu estava simultaneamente em meu ambiente e
em outro. Nunca me adaptaria..."
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
30/64
Eu o interrompi:
O senhor se lembrava de forma completa do outro mundo, do outro
plano?
" Perfeitamente! Fisicamente, me tinha rapidamente adaptado a meu novo
meio, mas todo o meu ser, menos o meu corpo, estava em outro lugar, no plano que
havia deixado no sei como. A situao que tinha de viver fcil de compreender.
Imagine que o senhor transportado de repente para um pas onde os costumes, as
atitudes, o modo de vida sejam diferentes e onde ningum tenha nunca ouvido dizer que
possa haver condies de vida semelhantes s que o senhor conheceu. Como poderia o
senhor adaptar-se interiormente a tais circunstncias? O senhor se apressaria a voltar a
seu pas de origem. O senhor poderia faz-lo, mas eu, eu no o podia, pois no sabia
como proceder e no tinha qualquer meio de descobri-lo. O senhor compreende meu
estado mental naqueles instantes? Eu estava na mais completa angstia, diante do
impossvel."
Que se passou depois?
" Eu voltei, pois, Leidseplein e, esperando no sei que prodgio, fui
colocar-me exatamente no lugar onde me tinha acordado, e esperei, esperei... quando,
bruscamente, acreditei que ia morrer de pavor.
Vindo da esquerda, um corcunda avanava em minha direo; ele estava
vestido como eu e, medida que se aproximava, o reconhecia... Esse corcunda era eu
mesmo! Ento, pensei realmente haver perdido a razo. "Impossvel repetia para
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
31/64
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
32/64
esprito se tinha transformado e foi-me necessrio atingir os sessenta anos para aprender
a grande lei da vida:
"Onde ns estivermos e tal qual formos, o
conhecimento, a felicidade e a paz esto constantemente ao nosso
alcance. Basta, para atingi-los, vencer nossa egostica
concentrao em ns mesmos e sair de ns sem, para isso, ir para
outro lugar."
Dirigi rapidamente o olhar para o relgio iluminado. Eram 21h05min.
Minha aventura havia durado apenas cinco minutos!
Naturalmente, penso freqentemente nessa extraordinria experincia. Li
muitas obras sobre o assunto e sei que outras pessoas estiveram em estados semelhantes.
Minhas leituras nunca me satisfizeram plenamente. Quanto s narrativas de outros,
eles so pouca coisa para quem atravessou pessoalmente tal experincia. Estou
persuadido de que no sonhei, mas a verdadeira explicao ainda no me foi dada.
Muitas vezes desejei encontrar algum que pudesse trazer uma soluo vlida para os
problemas que me proponho.
O senhor conhece minha histria e s a contei ao senhor. Ser que o
senhor aquele que me trar alguma luz? Diz-se que um apelo sincero encontra
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
33/64
um dia, atravs do tempo e do espao, uma resposta. Ora, o senhor est aqui, e
no existe acaso..."
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
34/64
Capitulo III: UMA EXPLICAO
Devo responder a esse apelo e o fao:
" Meu senhor, no tenho a pretenso de ser onisciente. Como tantos
outros, sou seguramente um pesquisador, um mstico, talvez, um servo, tanto quanto
possa.
Um dia, tinha ento dezesseis anos, encontrei meu Mestre, o primeiro. Ele
me tomou pela mo e, durante quatro anos, acompanhou meus primeiros passos ao
longo do perigoso caminho da iniciao. Depois, chegado o momento, ele me confiou a
outras mos, at que me foi permitido enfim! transpor os portes que o primeiro
havia anunciado e que o segundo havia aberto. Foi ento que me foram entregues os
preciosos instrumentos de trabalho que a Ordem Rosacruz A.M.O.R.C. prope
generosamente a quem quer que creia poder empreg-los, de maneira til, na construo
de sua morada.
Graas s lies de meus mestres passados, tive, talvez, a vantagem de saber
utilizar melhor que outros esses instrumentos, cujo valor reconhecia bem, antes" que
eles me tivessem sido emprestados, pois via o que, com eles, meus mestres tinham sabido
edificar. Portanto, constru mais rapidamente que outros, cinzelando a pedra bruta e
elevando, por graus, as paredes de minha casa.
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
35/64
No momento em que dava acabamento ao teto e em que acreditava, jovem
ainda, ter atingido o fim, meu trabalho foi interrompido e eu recebi ordem para velar por
outros, muitos outros, acolhendo-os, por minha vez, aos portes, e mostrando-lhes a
melhor maneira de se servir de seus instrumentos.
Assim, deixei minha prpria construo inacabada mas, aconselhando a
outros, examinando como eles construam sua morada, inspecionando seus
instrumentos, encorajando cada um deles, por vezes expulsando para longe dos portes a
quem pudesse prejudicar os bons operrios, com conselhos enganadores, e semear a
dvida em seu pensamento ou desencorajar seus esforos diante da tarefa a cumprir.Meu conhecimento foi burilado, e, do conjunto em construo, retirei uma concepo
viva de total unidade. Assim, meu prprio edifcio est mentalmente acabado e, quando
soar a hora, ajudado, se for necessrio, por todos aqueles que me esforcei por assistir
seno eficazmente, ao menos com boa vontade , o teto ser colocado, e minha obra,
concluda, submetida aprovao do grande proprietrio dos domnios.
Possa, ento, Este julgar, com benevolncia e misericrdia, minha obra. Se
Ele lhe conceder algum valor, no terei com isso qualquer orgulho, pois sei que s Sua
incomensurvel bondade ter feito com que Seu sublime olhar no visse as imperfeies
da obra, e s Seu paternal amor ter, em Sua onipotncia, cinzelado as pedras mal
esquadradas e harmonizado o conjunto.
Se o diploma me for concedido, que ele seja meu novo instrumento para
melhor servir ainda e mais, no total esquecimento de meu eu egosta; mas se, para a
perfeio da obra, dever ser adiado, ento que assim seja e, sem nenhuma tristeza, no
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
36/64
amor do Mestre Supremo, consciente de Sua infinita justia, retomarei humildemente a
tarefa desde as fundaes.
como est vendo, a um pesquisador como o senhor que o senhor pede que
resolva seu problema. Sei que, em certos casos, mais fcil para outros propor a justa
soluo a uma questo que nos perturbe. Pelo menos, outros podem trazer contribuies
a nossas prprias luzes e a chave pode surgir de uma palavra, como de um silncio.
Ora, acontece que, na edificao de minha morada, eu j ultrapassei o nvel
em que se situam as pedras de sua experincia. Portanto, estou capacitado a trazer-lhe
alguns esclarecimentos, mas lembre-se da reserva que fiz: o Mestre Supremo ainda no
julgou minha obra e ignoro se, precisamente, Ele no julgar que esse nvel deva ser
retomado e mais burilado. Se minhas explicaes encontrarem no senhor uma
ressonncia, h toda a razo para crermos que elas so fundadas. Se no for esse o caso,
perdoe, ento, ao operrio que sou. Isso significar que minha obra s satisfatria na
aparncia e que necessrio reexaminar a construo.
Entretanto, para ser justo para comigo mesmo, permita-me dizer-lhe, se isso
pode estimular sua confiana, que essa construo j foi, por vezes, inspecionada por
examina-dores que sei de toda a confiana do Mestre Supremo. Ora, eles no fizeram
qualquer observao sobre esse assunto em particular e tenho, assim, alguma razo para
crer que eles tenham ficado satisfeitos.
Portanto, j que esse o seu desejo, falemos dos planos paralelos. Esse ,
evidentemente, um assunto fascinante, mas, para compreend-lo bem, necessrio ter
em vista o conjunto, estabelecer um plano geral no qual, durante a explicao, ele se
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
37/64
integrar perfeitamente em seu lugar. Uma quantidade excessiva de detalhes a nada
levaria, salvo confuso. , na verdade, necessrio utilizar o intelecto e seus atributos.
Entretanto, se no formos alm deles, manter-nos-emos no estgio nico das associaes
de idia e a soluo, nesse caso, no pode ser esperada. Assim, consideremos o plano
universal em suas maiores linhas, em relao ao problema que o preocupa.
Em ltima anlise, tudo isso equivale a uma profisso de unidade, de uma
unidade que contm o todo e cada uma de suas partes componentes. Na realidade, na
unidade que reside a chave de sua experincia, mas essa unidade pode ser somente
sentida, e a experincia mstica ou apreendida pelo esprito, e o caminho doconhecimento o que ns devemos tomar juntos hoje.
O senhor no membro da Ordem Rosacruz A.M.O.R.C. Portanto,
concederei menos importncia terminologia propriamente dita, visando sobretudo a me
fazer bem entender pelo senhor. a um esforo de ltima sntese que o convido; mas
est claro que essa sntese ser para o senhor somente um jogo mental e uma especulao
intelectual enquanto o senhor no tiver voltado a ser como uma criancinha e no
tiver realizado, passo a passo, a pesquisa oculta necessria, desde o abecedrio do
mundo, manifestado at os mais elevados cumes enciclopdicos do conhecimento
universal. Tal a grande lei secreta; as mais vlidas teorias gerais so inteis para quem
a elas tem acesso sem ter experimentado e vivido cada uma das etapas que conduziram
formulao definitiva dessas teorias. A volta idia, sua aquisio e sua potncia
implicam um desenvolvimento progressivo, lento e ordenado a partir das idias
parciais recolhidas no estudo metdico dos arcanos da natureza e do cosmos.
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
38/64
Em suma, o postulante ao conhecimento se ala da simplicidade para uma
complexidade cada vez maior, para atingir, no fim do caminho, a simplicidade, que
guarda precisamente em seu seio a simplicidade e a complexidade. No h outro
desenvolvimento possvel, e nenhuma via rpida ou acelerada existe, capaz de levar
mais cedo realizao esperada. O aspirante deve transpor todas as etapas sem exceo
alguma e percorrer o caminho completo para chegar ao fim. Se ele no o fizer, ficar
ento na iluso. Ele acredita ter progredido. Ele tem, talvez, uma certa idia do
conhecimento, mas ele no o possui, pois, quando o cume realmente atingido, o
conhecimento e o adepto no ficam separados; o conhecimento encarnou-se no adepto,
eles formam apenas um e o adepto vive o conhecimento ao ponto em que a ltima
injuno calar-se no para ele uma obrigao, mas a conseqncia natural de seu
estado.
Naturalmente, para empreender tal pesquisa, preciso ter um guia seguro,
e, levando em considerao as circunstncias de nosso tempo, esse guia deve ser uma
organizao impessoal, e posso assegurar-lhe que a Ordem Rosacruz A.M.O.R.C.
desempenha, nesse aspecto, um papel eminente. O senhor deveria interessar-se por ela...
Entretanto, como j lhe disse, meu propsito situar sua experincia em seu contexto
geral. Para isso, ns devemos, o senhor e eu, situar-nos no cume e observar o
conhecimento do lado de fora, esperando que, um dia, esse conhecimento sendo o
senhor mesmo, possa viv-lo e no somente observ-lo como faremos hoje.
Em todo caso, se o senhor seguir bem minhas explicaes e principalmente se
eu for capaz de lhe expor de maneira suficientemente clara a verdade, esta lhe trar em
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
39/64
seguida, durante suas meditaes, luzes sobre muitos outros assuntos. Em particular, o
senhor compreender que monotesmo e pantesmo so falsos problemas."
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
40/64
Capitulo IV: UNIDADE
Devo prosseguir no mesmo assunto. Meu interlocutor evita
interromper-me, embora eu desejasse algumas perguntas que me permitiriam
dar exposio uma direo mais pessoal. Mas ele parece realmente
interessado e receptivo. Portanto, no perco tempo e continuo em voz muito
clara, marcando cuidadosamente cada slaba. No devo esquecer que, embora
falando admiravelmente bem o francs, meu interlocutor estrangeiro, e que
uma s palavra mal interpretada no lhe daria a compreenso que desejo
transmitir-lhe.
" Deus o incio e o fim, alfa e mega, a origem e o ltimo. Isso parece um
trusmo, mas essa verdade, sem cessar dita e repetida, contm tudo. Emprego a palavra
Deus, porque ela me parece a mais apropriada e porque nunca me senti atingido pelas
limitaes que lhe conferem certas filosofias religiosas ou sectrias. Uma palavra encerra
os atributos que a compreenso da pessoa capaz de lhe dar, mas se o senhor quiser
verdadeiramente atingir o conhecimento, o primeiro imperativo ser reconhecer nas
palavras seu valor autntico, mesmo se o abuso dessas palavras ou as caractersticas
errneas que, por outro lado, se puderam atribuir a elas limitarem para outros o seu
alcance. Minha definio de Deus no implica nada mais alm do que disse a respeito.
Em uma palavra, Ele o todo, e essa constatao incomensurvel em suas
conseqncias.
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
41/64
Se Deus, que tudo, ao mesmo tempo o incio e o fim, a origem e o ltimo,
isso significa, naturalmente, que Ele tanto o detalhe quanto o nico, tanto a
complexidade quanto a unidade, que Ele Ele mesmo at o infinito do complexo e a volta
a Ele mesmo, pois Ele o centro e a circunferncia.
Isso estabelecido, aparece claramente que o real s real por Ele. Assim, tudo
que seja lei se resume numa lei: a lei divina. As leis csmicas e naturais, tais quais nos
aparecem em sua multiplicidade, so apenas a manifestao da lei nica em
circunstncias diferentes. Eu me explico:
A lei nica, aplicando-se de uma maneira particular no domnio das
vibraes, elas prprias engendradas por essa mesma lei de outra maneira em ao,
torna-se para ns a energia do esprito. Manifestando-se de uma outra maneira, ela nos
aparece como a fora vital, e assim por diante. Para compreender a lei nica, preciso,
ns o vimos, examin-la sob seus diversos aspectos e ir do complexo para a unidade.
Assim, em nosso exemplo, esprito e fora vital tornam-se para o adepto a
fora " nos" , que, segundo o seu campo de aplicao, toma, para ns, um ou outro
nome. Para me resumir:
"No que ns chamam os criao, tudo existe em
funo da lei nica e nada existe fora dela ."
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
42/64
claro que a lei nica , por essncia, onibondade, mas, agindo e criando
seus veculos, ela os torna, para assim me exprimir, transformadores, e o homem um
transformador. Como tal, ele deve transformara lei divina e aplic-la em seu reino,
para nele realizar o plano divino. Entretanto, o meio onde vive o homem uma outra
aplicao da lei nica. O homem deve assim veicularessa lei nica em sincronizao
em harmonia a palavra mais justa com esse meio. Se ele transforma
imperfeitamente, uma resistncia (outra manifestao da lei nica) se estabelece e o
homem deve ajustar seu papel ao do seu meio. A resistncia, sem dvida, o sofrimento
que, precisamente, uma inadaptao , seja em que nvel for. O que se chama as
injunes da conscincia o fluxo da lei nica, que procura exprimir-se atravs de
seu veculo humano, na direo da realizao de seu fim em um meio particular. Em
ltima anlise, a felicidade consiste, pois, para o homem, em ser o transformador perfeito
da lei divina, o que quer, mais uma vez, dizer, a estabelecer entre si e seu meio
uma harmonia absoluta.
A lei nica, Deus, se quiser, harmonia, e essa harmonia onipresente. No
nvel do homem, todas as aplicaes da lei nica tm por finalidade apenas manter,
estabelecer ou restabelecer essa harmonia e viv-la. Ele no tem outro caminho para a
felicidade e ele prprio cria as resistncias, portanto, os sofrimentos que ele encontra.
O grande iniciado So Paulo declara que em Deus ns temos a vida, o
mov imento e o ser. Deus e sua criao universal formam um corpo nico, composto de
milhes de clulas de diversas naturezas, e cujo papel bem definido. Usemos a lei de
analogia e comparemos esse corpo divino ao corpo humano. Este ltimo consiste em
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
43/64
milhes de clulas, cada uma em seu lugar e cada uma com seu papel a desempenhar.
Alm disso, cada clula , em si, uma entidade, uma individualidade com sua vida
prpria e mesmo com sua conscincia prpria. Ela nasce, vive e se transforma.
Entretanto, o corpo humano um. As clulas esto em harmonia umas com as outras e
cada qual cumpre sua misso harmoniosamente com todas as outras. Se a desarmonia
se estabelece, h dor, interveno do mdico que realiza uma ablao ou, em caso menos
grave, prescreve algum remdio para restabelecer a harmonia.
Transponha essa explicao para o nvel da coletividade humana, e o senhor
ter a rplica exata do que tem lugar para o corpo humano. Naturalmente, lembrando-seque tudo aplicao da lei nica, o senhor ver a conscincia celular subordinada
conscincia humana, esta subordinada conscincia coletiva, ela prpria subordinada
conscincia divina. Ou ento, o senhor preferir dizer e com razo que a lei nica,
aplicando-se aos graus da conscincia, produz suas diversas fases, das quais acabo de
falar. Mas a tambm a finalidade a harmonia em todos os nveis, e, se o senhor levar
em conta o que indiquei a respeito das resistncias, o senhor ter uma idia do que
possa ser o mal, de sua origem e de sua irregularidade, da mesma forma como o senhor
compreender a unidade de toda a criao. O senhor chegar tambm Intima certeza
da imanncia divina no universo infinito e a ltima concluso de que o corpo universal
o prprio corpo de Deus, no qual tudo tem sua razo de ser, sua finalidade e seu destino,
e no qual tudo, do gro de areia ao arcanjo, um reflexo do nico, perfeitamente em
concordncia com um outro reflexo, ou, se quiser, onde tudo indefinidamente o
microcosmo de um macrocosmo.
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
44/64
Certamente o senhor est querendo saber onde quero chegar com essa longa
explicao. Reconheo que talvez me tenha deixado levar por uma dissertao por demais
extensa, sobre um dos mais profundos assuntos da pesquisa mstica, mas, apesar das
aparncias, no me estou afastando do objetivo que seguimos, a saber, um a explicao
de sua experincia. Antes de continuar, o senhor tem alguma pergunta a fazer a respeito
das explicaes que acabo de dar?"
Meu interlocutor hesita alguns instantes antes de responder:
"No, acho que no. Pelo contrrio, penso que percebi o plano geral que o
senhor segue em suas explicaes o plano, nada mais, e estou fascinado pelas
perspectivas que o senhor me abre hoje. A unidade, tinha ouvido falar disso e li muito a
esse respeito. Entretanto, nunca a tinha sentido to tangvel quanto ao escut-lo, e
imagino as incalculveis conseqncias disso para a compreenso do criado. Mas,
vejamos, que vem a ser, ento, nesse contexto universal, a antiga constatao de que
tudo est em perptua t ransformao?"
" Isso continua sendo verdade e sempre o foi, visto do nvel humano. H
uma outra grande verdade ou, mais exatamente, uma outra formulao da verdade
nica, e a seguinte: tudo est comeado e tudo est acabado.
Eis a razo disso: Deus, segundo o Gnese, criou o mundo em seis dias e, no
stimo, descansou. Essa frase deve ser tomada em seu sentido simblico, naturalmente,mas, levando em conta o que ela implica literalmente, Deus criou o mundo, isso
significa precisamente que a criao est acabada. Ela ficou acabada no prprio instante
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
45/64
do que simboliza o Fiat, em outras palavras, quando o pensamento divino quis
manifestar o que trazia consigo. Portanto, no houve nem ciclo, nem perodo ou etapa.
O universo foi imediatamente. Os sete dias, dos quais um de repouso, simbolizam sete
graus ou nveis: seis de atividade e de movimento e um de imobilidade, ou melhor, um
esttico, incluindo, em essncia, os seis outros. Esses sete graus se reencontram no que
ns concebemos como as sete leis csmicas fundamentais, como os sete corpos etc.
O universo, na sua realidade, assim uma coisa terminada e perfeita que
no evolui. Agora, visto de baixo, isto , de acordo com a concepo humana, o universo
parece em evoluo, mas no o universo que evolui, a nossa compreenso douniverso, e assim, para ns, tudo est mesmo emperptua transformao.
Esse um dos grandes arcanos da sabedoria. A ttulo de comparao,
considere um edifcio, sua casa, por exemplo. Suas estruturas esto acabadas, sua planta
estabelecida, mas o senhor tem de tomar conhecimento, por assim dizer, do interior. O
senhor pode mesmo, interiormente, modificar seus detalhes para atingir uma ltima
perfeio cujas normas so preestabelecidas de acordo com a lei de harmonia. Sua casa
est acabada, mas o senhor toma conscincia do melhor que pode ficar e, talvez
tateando, o senhor estabelece, na realizao, sua realidade: em essncia, a harmonia
absoluta do edifcio era. O que o senhor fez foi apenas compreender essa harmonia para
melhor express-la, o senhor tomou conscincia dela. Esse exemplo, levado a sua mais
alta perfeio ea sua integralidade, representa o que est na realidade absoluta.
tempo, agora, de nos aproximarmos mais da explicao concernente a sua
experincia, e para isso preciso desvelar outros arcanos. Espero que as palavras
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
46/64
permitam apreend-los, mas bem difcil incorporar tal sabedoria nas limitaes do
vocabulrio. Entretanto, vou tentar."
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
47/64
Captulo V: O RELGIO
"Das explicaes precedentes, o senhor pode deduzir que, no universo
acabado, tudo concomitante. Na realidade, tudo existe desde sempre. Separao e
tempo so noes apenas humanas. O homem no pode perceber a permanncia e a
realidade do universo. Seus sentidos limitados, suas possibilidades mnimas de
concepo e de raciocnio reduzem-no a uma concepo fragmentria, s vezes ilusria e
sempre incompleta. Ele no percebe o universo em sua integralidade. Ele s percebe do
universo a imagem parcial de detalhes situados no nvel de suas faculdades perceptivas .
dado ao homem, naturalmente, conhecermais. Ele possui possibilidades
latentes, outros meios de percepo, mas, de modo geral, essas possibilidades e esses
meios so ignorados e, por conseguinte, inutilizados. Do universo completo, o homem s
percebe, pois, e muito imperfeitamente, o meio onde ele se move. Ele no tem conscincia
alguma da unidade; ele se manifesta em uma diversidade que ele conhece mal e da qual
ele no tem percepo imediata ou simultnea. Se ele fosse dotado das faculdades
necessrias e mesmo, numa certa medida, se ele fizesse pleno uso de todas as de que
dispe, seguramente ele teria um conhecimento muito mais extenso de seu estado.
Dessa forma, sem perder de vista o que , vamos considerar, ao mesmo
tempo, os fatos como eles nos aparecem. Tudo que criado, tanto o visvel quanto o
invisvel, existe de maneira concomitante, sustentado constantemente pelo fluxo do
pensamento divino que o corao do universo. Temos da que, tudo que parece ao
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
48/64
homem ter sido, nunca deixou e nunca deixa de ser. Em outras palavras, no h passado
nem futuro, mas um eterno presente que o homem, em conseqncia de suas limitaes
perceptivas, divide em perodos temporais ilusrios que so o passado, o presente e o
futuro.
Eis uma hiptese que pode ajud-lo a pressentir a verdade a esse respeito:
imagine a Criao sob a forma de um imenso relgio que, em vez de dar as horas, daria o
que ns chamamos pocas. Meio-dia seria o ano I da Criao, meia-noite seria o ano
2000. De meia-noite, o relgio marcaria cada etapa de cada ano compreendido entre 1 e
2000. Visto do plano humano, no ano de 1967, por exemplo, os ponteiros teriam quaseterminado a volta ao mostrador, e os anos anteriores seriam o passado, constituindo o
futuro os trinta e trs anos restantes a cobrir.
Entretanto, considerando-se do nvel da realidade, os ponteiros que marcam
o tempo para o conhecimento humano no teriam qualquer existncia real. Eles s
seriam para o homem e para sua percepo ilusria. Em compensao, nesse nvel, cada
perodo existiria de modo simultneo com todos os outros; o ano 1 ou 25, por exemplo,
sendo to real e atual quanto o ano de 1967, embora a conscincia humana limitada s
percebesse sua poca, ou melhor, seu momento de percepo. Mas, se ela pudesse
ultrapassar-se a si mesma e conceber o conjunto, a realidade, ento ela teria
conhecimento de todas as pocas e viveria, digamos, o ano 10, ou 25, ou 50, tanto quanto
o ano 2000 e, naturalmente, o ano de 1967, entrando na escala de seu tempo. O homem
viveria ento no ritmo da criao inteira. Sua conscincia seria universal .
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
49/64
Acho que esse exemplo lhe permite compreender parcialmente sua
experincia.
O senhor no deixou de pertencer poca em que se manifesta, atualmente,
a nossa conscincia, mas, durante alguns instantes, o senhor teve conhecimento de
uma outra poca do relgio, to real quanto a nossa e existindo simultaneamente com a
nossa..."
O corcunda, h um instante, me olha, apavorado Seu rosto expressa a
tempestade interior que minhas explicaes provocam. Assim, no fico surpreso com sua
interrupo:
" Eu o segui perfeitamente at agora diz ele , compreendo o
simbolismo do relgio. Admito a simultaneidade das pocas, o carter concomitante do
que ns, humanos, chamaramos planos. Entretanto, no momento em que o senhor
chega a minha experincia, para inclu-la em sua tese, meu raciocnio se rebela, pois,
enfim, o senhor esquece que eu me encontrava na Leidseplein, na confuso de um trfego
entontecedor, dirigindo-me para uma multido barulhenta, e que, de repente, foi nessa
mesma praa que eu me encontrei, mas numa poca diferente? Como essas duas pocas
podem existir no mesmo momento e no mesmo lugar sem se perturbar uma outra. Os
cavalos que eu via, os transeuntes pelos quais eu passava, a taberna onde entrei, tudo
isso estava na Leidseplein, onde, ao mesmo tempo, outros acontecimentos tinham lugar e
onde outras atividades se desenrolavam em presena de outros seres. Meu raciocnio no
pode encarar outra poca seno sob uma forma diferente... um fantasma..."
Eu replico:
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
50/64
" Seu raciocnio est errado, senhor! Por que quer o senhor que a outra
poca seja um fantasma em relao sua? Quem pode provar que no a sua poca que
fantasma em relao outra? Est cientificamente reconhecido que tudo vibrao,
inclusive seu corpo fsico. Meu raciocnio, se ele confiar em meus sentidos, no pode
demonstrar-me que o senhor vibraes. As clulas do corpo mudam inteiramente a
cada sete anos. O senhor nunca percebeu que isso se passava e no percebeu essa
transformao radical de seu ser. Que pensa disso o seu raciocnio?
Eu lhe esclareci que minhas explicaes lhe permitiriam aprender a verdade.
Eu no declarei que elas lhe provariam fatos cuja natureza essencialmente subjetiva e
que podem ser interiormente sentidos como verdadeiros sem nunca serem
objetivamente demonstrados.
Considere esta tese, para empregar a designao escolhida pelo senhor, como
uma base de trabalho . Medite sobre ela e veja a que concepo do universo ela o
conduz. abraando os fatos que o senhor poder dar-lhes vida por si mesmo. Se seu
raciocnio quiser intervir onde, precisamente, ele deve ficar em silncio, nenhuma
teoria, to verdadeira quanto ela possa ser, lhe convir. Somente as aquisies
percebidas pelos sentidos tero algum valor, e o senhor ficar no nvel de uma iluso
mais enganadora do que as concepes mais audaciosas s quais o senhor seria levado
por livres dedues..."
Eu j no tinha minha corcunda...
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
51/64
" O senhor est certo disso? E mesmo que assim fosse, por que o senhor
quer que a corcunda de que padece seu corpo aqui seja da mesma forma real em outro
lugar! Seus culos tambm j no eram estes; seus cabelos eram diferentes. Seu eu era o
mesmo, mas poderia o senhor afirmar que seu corpo era mesmo o que o senhor tem no
presente momento?"
Hum!... No creio, mas o de que estou certo que eu tinha um corpo! Eu
o sentia, eu o tocava...
" O senhor o sentia como? Com que meio de percepo o senhor o tocava?
Seguramente, o senhor dispunha de sentidos perceptiv os, mas o senhor seria incapaz
de dizer que parte da escala das vibraes esses sentidos podiam perceber .
O que certo, que esses sentidos eram idnticos, em essncia, aos de seu
corpo fsico. A diferena reside no fato de que eles percebiam uma gama vibratria que
no entra na gama geralmente percebida por seus sentimentos habituais. Essa gama
estava talvez para c de sua percepo normal, talvez para l, mas me inclinaria mais
para a primeira hiptese.
Assim, seu corpo, para tomarconscincia num nvel diferente, tinha se
revestido de uma natureza diferente concedida a esse nvel, o senhor tinha passado de
um plano para um outro, de forma completamente involuntria do ponto de vista
objetivo, mas criando, preliminarmente, sem perceber, as condies necessrias ao estadoque o senhor devia conhecer depois. Em suma, o senhor aplicou ento
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
52/64
inconscientemente, em algum momento, um dos princpios msticos mais secretos, j
que eles s so conhecidos por raros adeptos dentre os mais avanados.
Seja o que for, posso afirmar-lhe que sua experincia era real, que o senhor a
atravessou com seu corpo e que tudo que o senhor viu e sentiu no era de forma alguma
subjetivo, mas absolutamente verdadeiro. Digamos que, para o senhor, durante alguns
instantes, o vu se rasgou e que o senhor teve pleno acesso a um plano paralelo..."
Acho que compreendo constata meu interlocutor e suas explicaes
anteriores sobre a unidade e a lei divina em ao essa mesma lei nos aparecendo
diferente em suas aplicaes fazem-me admitir a possibilidade desses planos paralelos
com sua existncia simultnea. Como as clulas do corpo de que o senhor falava, esses
planos esto em harmonia, em concordncia uns com os outros na perfeio da unidade.
Eles tm sua razo de ser no plano universal, pois nada existe que no tenha seu lugar
na ordem das coisas para a realizao do desgnio divino. O senhor poderia me dar ainda
algumas luzes sobre esses planos paralelos?
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
53/64
Captulo VI: OS PLANOS PARALELOS
O assunto interessa-me e sinto grande satisfao em conversar com
um interlocutor atento. No hesito, pois, em levantar um pouco mais o vu do
grande mistrio para ele:
" O qualificativo paralelo, de fato inexato. Ele parece definir uma
superposio de plano e isso no correto. O exemplo do relgio, precedentemente, tinha
por objetivo facilitar a sua compreenso, mas tambm no exato. Tendo percebido o
mecanismo pela imagem das palavras, o senhor dever, em seguida, ultrapassar essa
imagem para adquirir a noo autntica do que , e, por noo autntica, entendo viver,
sentiro conhecimento. Isso ningum pode fazer pelo senhor...
No h separao entre os planos, suas vibraes esto misturadas umas
com as outras. Ora, so as vibraes, sua freqncia, que distinguem um plano de um
outro. Todas as vibraes de um mesmo plano formam a natureza, as caractersticas, se
prefere, desse plano. O plano fsico, por exemplo, tal qual ele nos aparece, no outra
coisa seno uma massa vibratria de freqncia coletiva nica que nossa percepo
unifica e torna compacta por nossa conscincia. O mundo existe fora de ns mas ns no
o vemos como ele . Ns o vemos como devemos v-lo para a realizao de nossa funo
humana, e assim acontece com os outros planos ditos paralelos, com suas
particularidades, sua vida prpria e suas atividades distintas.
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
54/64
Ns vivemos, assim, no meio de planos mltiplos to reais quanto o nosso e
esses planos no podem ser percebidos pelo homem, salvo em certas condies conhecidas
por raros iniciados, ou ento por acaso, se se quiser, por essa expresso, dizer que as
condies necessrias so preenchidas sem o conhecimento da conscincia objetiva por
aquele que de repente passa pela experincia de um outro mundo.
Eu gostaria tambm de lhe apresentar os fatos de outra maneira. O homem
um ser total, reflexo do universo. Criado imagem de Deus, ele um todo que
representa o Criador e a criao. Nele se reencontra o conjunto das caractersticas
universais que esta exposio mencionou. Em contato com o plano em que devemanifestar-se o mundo fsico , ele est tambm, sem disso ter conscincia, ligado a
todos os outros nveis e a todas as particularidades da criao universal, do
infinitamente grande ao infinitamente pequeno. Assim, ele tem a possibilidade de
comungartanto com o todo quanto com uma das partes. o milagre da conscincia
despertada ou, para melhor dizer, a descoberta e o emprego de uma faculdade interior
latente em cada homem, que lhe permite guiar o ponteiro de sua percepo total ao ponto
desejado da escala da infinita conscincia da qual e]e um dos suportes. Essa faculdade
interior acha sua correspondncia grosseira na vontade humana; ela comporta suas
qualidades, mas ela concorda principalmente com a vontade suprema, a que, na origem,
se incorporou no Fiatcriador.
O homem, por conseguinte, vive simultaneamente em seu mundo e nos
mundos paralelos, assim como ele vive no que ele reconhece como o visvel e no que
para ele o invisvel. Se ele s conhece o parcial, por sua prpria culpa. O todo lhe
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
55/64
acessvel, mas esse sonhador tacha de sobrenatural o que est alm de seu
entendimento limitado e, no conhece-te a ti mesmo, ele s aceita considerar seu
invlucro fsico, atribuindo-lhe uma realidade que ele est longe de possuir. Ele quer
provas exteriores para aquilo que s pode ser provado por experincia interior, e ele
persegue, ansioso, seu sonho de estranhas peripcias, sem jamais ousar quebrar o sono
em que se compraz e entreabrir os olhos para a luz que pode dissipar as sombras de suas
quimeras, descobrindo, diante de sua conscincia ofuscada, os sublimes arcanos da
realidade.
Essa mesma constatao se aplica, alis, aos outrosplanos do relgio, poisaqueles que a conhecem sua manifestao consciente tm de se defrontar com uma
situao semelhante. Para a maioria, nada existe fora de seu plano e sua Leidseplein
to verdadeira para eles quanto a sua o para o senhor. Para quem quer que viva num
plano, esse plano a sua realidade e todos os outros planos o sonho. O senhor v, pois,
que, em todos os lugares, o dever o mesmo: acordar para a realidade.
A histria relata experincias comparveis sua, embora, por vezes,
diferentes em seu desenrolar. O encontro no Trianon de duas inglesas com um plano
paralelo conhecido demais para que o relate. Outros mais recentes so objeto de estudos
especializados com concluses no raro curiosas para quem tenha escolhido a soluo da
unidade...
O senhor compartilhou de um insigne privilgio, j que, para o senhor, os
planos paralelosj no so uma especulao intelectual, mas uma certeza nascida de
sua prpria aventura. Desejo ter dado a suas meditaes futuras bases filosficas
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
56/64
suficientes para lev-lo longe na pesquisa de sua realidade pessoal. Talvez, em sua
busca, o senhor chegue ao corao da unidade. Em todo caso, certo que dela o senhor se
aproximar. Duvido que o senhor a chegue sozinho. Seguramente, seus esforos sero
recompensados, mas quantas decepes e atrasos o senhor evitaria ligando-se a uma
organizao tradicional vlida: a Ordem Rosacruz A.M.O.R.C., por exemplo, que
muito pode fazer pelo senhor..."
Ele exclama:
" O senhor pensou em minha idade?"
Respondo:
" O senhor sabe bem que nunca tarde demais... A lei da reencarnao,
admitida por mais da metade da populao mundial, abre ao seu caminho infinitos
horizontes, pois a doutrina da unidade em nada contraditria com os outros grandes
princpios universais, sendo a prpria lei do carma ou da compensao uma aplicao da
lei nica a um domnio particular. Mas seria preciso que tivssemos horas para dissertar
sobre essas novas questes e chegado o momento de nos separar..."
" Como posso agradecer-lhe..." diz ele.
S posso concluir:
" Eu tirei tanto proveito quanto o senhor de nossa conversa. Agora o
senhor tem de refletir e de situar melhor sua experincia em seu contexto da unidade.
Por minha vez, meditarei ainda sobre sua aventura. Ela comporta algumas
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
57/64
caractersticas particulares que, certo, em nada influem sobre a explicao que lhe dei,
mas que trazem interessantes elementos ao estudo da desmaterializao e s altas
experincias de invisibilidade de que trata a Ordem Rosacruz A.M.O.R.C., em seu
ltimo grau de iniciao. Um encontro como este til para as duas partes e, se o
senhor me agradecer, ter de aceitar meus prprios agradecimentos. No! Sejamos antes
ns dois agradecidos grande lei da unidade; por ela, ns somos todos semelhantes sob
nossas manifestaes diversas e, durante estas poucas horas, ns estivemos, o senhor e
eu, reunidos no essencial.
Planos paralelos? Por que no, senhor, um plano nico que se exprime sobmltiplos aspectos compreenso parcial das criaturas que povoam o pensamento
divino? Pois, no fundo, a que ns estamos; esse o reino que ns nunca abandonamos,
apesar do sonho que nos conduziu a estes lugares onde ns acreditamos estar, a este
domnio enganador feito de tempo e de espao de onde somente a verdade pode afastar-
nos.
Assim, adeus, senhor; nossos caminhos diferentes terminaro num mesmo
destino. Ns devamos encontrar-nos hoje, e muito apreciei estes momentos."
Ele se levanta e segura longamente minha mo entre as suas, seus olhos
fixos nos meus. Sinto intensa emoo invadir-me ao perceber as lgrimas que seguem os
sulcos de seu rosto crispado. De todo o meu ser, lhe grito, no silncio de nossa
comunho: "Paz, amigo." Ele compreende, sorri e o deixo, lanando-lhe, da porta, um
ltimo olhar...
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
58/64
Na coorte de excepcionais encontros que povoam o domnio secreto
de minha estranha existncia, ele tem, desde ento, seu lugar, esse pioneiro
privilegiado de mundos desconhecidos, e, quando, chegada a noite, deixo que
meu pensamento corra ao encontro de lembranas fiis, no me surpreendo
absolutamente se um quadro, de repente, o encanta e retm: um pas baixo,
depois um corcunda... o corcunda de Amsterd.
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
59/64
CONCLUSO
"Aquele a quem fala o verbo eterno est desligado das crenas mltiplas,
tudo de um verbo nico e todas as coisas exprimem a unidade, " o princpio que,
por ele, nos fa la " . Ningum, sem ele, compreende ou julga com retido.
Aquele para quem tudo unidade, que leva tudo unidade, que v o todo
em um, pode ser firme em seu corao e viver, pacfico, em Deus."
(Imitao de J.C., livro primeiro, captulo III,
traduo literal de O. Sporeys.)
O Corcunda de Amsterd poderia acabar neste hino unidade, j que a
unidade encerra tudo. Entretanto, os cumes pressentidos num vo mstico da
alma so apenas uma percepo momentnea do objetivo a atingir, e preciso
penar, antes, num vale difcil, depois, em ridas subidas, antes de poder
permanecer para sempre no reino da verdade recuperada. Que a paz para
quem nunca conheceu o tormento, a alegria para quem nunca sofreu, a verdade
para quem no compartilhou o erro e a unidade para quem ignorou a
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
60/64
diversidade? Como santo o mergulho no abismo, sem o qual nenhum
conhecimento teria presidido vida nica, pois que felicidade experimenta
aquele que, depois de ter errado na floresta do engano, sai, de repente, ao sol da
conscincia csmica!
"Tomar conscincia", as palavras vm facilmente caneta, mas de
quantos anos e encarnaes necessita este brusco despertar, entretanto
inelutvel, para quem quer que tenha nascido para a existncia, antes de nascer,
cedo ou tarde, para o ser! Assim, est traado o caminho que preciso,
inevitavelmente, tomarmos um dia, mesmo que uma interrupo, por vezes,
deva suspender nossa marcha. Desse caminho, o guia que escolhemos para ns,
a Ordem Rosacruz A.M.O.R.C. e no foi por acaso , conhece cada etapa.
Visvel, ele nos abriu os portes, ele nos incita a segui-lo em um ritmo estudado
ao longo de seus graus, encorajando-nos a superar nossas falhas e esperando-
nos, se for necessrio, para levar-nos mais longe, mais alto. Do cume, os que
chegaram ao estado supremo esperam e velam, mostrando, do outro lado deles
mesmos, o invisvel que eles representam e do qual testemunham. Desde as
Casas Secretas da Rosacruz, alguns deles espalham sobre o discpulo sincero as
promessas de seu pensamento poderoso.
Ah! rosacruzes da A.M.O.R.C, como grande vosso privilgio!
Vamos, tomai vossos instrumentos! O mau escolar tem sempre reprimendas
para com sua caneta. Sede bons operrios, apreciai o instrumento que vos
confiado, e obra! Onde outros chegaram, podeis a eles unir-vos, e l "todos so
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
61/64
um pelos laos do amor, eles sentem da mesma maneira e todos amam-se em um... Nada
h que possa desvi-los ou abaix-los, j que, cheios da vida eterna, eles queimam do fogo
do amor, que nunca se apaga". (Imitao, livro III, captulo 58.)
No h, para a histria do corcunda de Amsterd, concluso mais
apropriada que esta sublime esperana.
FIM
Villeneuve-Saint-Georges,
Domnio da Rosa-Cruz,
2 de novembro de 1967, Dia dos Mortos.
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
62/64
DOCUMENTAO ANEXA
A AVENTURA DO TRIANON (Citada no Corcunda de Amsterd)
No dia 10 de agosto de 1901, um sbado, duas senhoritas britnicas
andam, como turistas, pelos jardins do Petit Trianon. Miss Eleanor Jourdain est
chegando aos quarenta anos e trabalha no ensino; o cargo que ela acaba de
aceitar coloca-a diretamente sob as ordens de Miss Anny Morberly, diretora de
Saint Hugs Hall, com quem ela vive h algum tempo. Qinquagenria de
feies sem graa, Miss Morberly filha do bispo de Salisbury, Miss Jourdain,
filha de um pastor.
As duas senhoritas andam lentamente, faz calor, elas sentem-se
cansadas depois da visita ao Castelo de Versalhes. Sempre andando, elas caem
num estado semi-depressivo, tm a impresso de que se enganaram de
caminho, enquanto que, em torno delas, o cenrio se torna inslito e desagradvel.
Elas vo encontrar, sucessivamente, dois homens vestidos de
uniformes esverdeados e usando pequenos tricrnios, um homem de rosto
sinistro, sombrero na cabea e capa nos ombros, um outro grande e belo, de cabelos
cacheados, uma mulher e uma meninazinha e, depois, numa casa quadrada, elas
vo ver uma mulher nada jovem, cuja indumentria as espanta um chapu de
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
63/64
sol... seu vestido leve era drapeado nos ombros como um xale , outros personagens
se mostraram ainda. Diversos edifcios chamam tambm sua ateno, entre os
quais um chal e um gnero de quiosque, pequena construo de pilastras, um
rochedo, pequenos caminhos, uma pontezinha, um carrinho de mo etc. ...
Finalmente, um homem jovem coloca-as no caminho e elas voltam para o Petit
Trianon. Oito dias mais tarde, Miss Morberly pergunta a Miss Jourdain: "Voc
acha que o Trianon assombrado? Acho que sim", responde ela.
Esta narrativa est naturalmente extremamente resumida; ela
apresentada de maneira integral num livro intitulado Os Fantasmas do Trianon,
edio do Rocher, 1959, com um prefcio de Jean Cocteau.
Deve-se observar que a pesquisa qual se entregaram mais tarde
Miss Jourdain e Miss Morberly levou-as a concluir que elas tinham visto os
elementos de um cenrio depois desaparecido em virtude de diversas
transformaes, ignorado agora de todos e principalmente por elas, que pouco
sabiam sobre a revoluo francesa e sua histria.
Apesar da explicao encontrada por Miss Jourdain e Miss Morberly,
de acordo com seu grau de compreenso, por que no, simplesmente, um plano
paralelo?...
-
8/7/2019 O CORCUNDA DE AMSTERDO - Raymond Bernard
64/64
Raymond Bernard
(1923-2006)
www.espelhosdatradicao.blogspot.com