O CORDEL FANTASMA - PerSe · 2013-04-18 · 6 menino, era o mito que a boca inventava pra mor de...

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1 O CORDEL FANTASMA MARCELO ROSA VIEIRA

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O CORDEL FANTASMA

MARCELO ROSA VIEIRA

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Copyright by: Marcelo Rosa Vieira

Capa: Arley Borges

Ilustrações: Arley Borges

Rafael Barbosa págs 50, 66

Todos os direitos reservados pelo autor.

Avenida Israel Pinheiro 184 centro

38550-000 Coromandel MG

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Lampião desceu a serra,

Deu um baile em Cajazeira

Botou as moças donzelas

Prá cantá mulé rendeira

Xaxado Popular

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O sertão, menino, já levou bastante chumbo e

estilhaço na cacunda. Eu mesmo dei testemunho: se não

tivesse esta carapuça de rocha espessa, este tapete

estendido de pedras brutas, já teria há tempos se

arrebentado. O que te conto é história antiga passada, a

quando se foi que o cangaço impunha a sua lei violenta e

selvagem por essas bandas. Dos dias que, pra se viver o

básico, natural, sujeito precisava mesmo era de um

quinhão mais precioso de sorte, de cautela, de reza e

proteção. Brabeza de macho se curava a sangue frio, bala

propositada, gratuita que só, na banalidade. O que os

matutos prezavam de fazer bem era vadiar pelas veredas

e trilhas do sertão em fora, folgando de extorquir e

saquear os pertences alheios, as demais propriedades,

povoados, palhoças. Ah que baita estrago que fez no

mundo a arruaça daqueles doidos!

Oxênte que era a rapina assim, no descaramento!

Um diabo de ruindade que alastrou, que pegou que nem

maleita das grave, contagiosa! E de repente o cabra, sem

mais sozinho, de pura opinião, escapole pra guerra

tresloucado, vai se meter com bandoleiro jagunço, na

espera de engrandecer ou o quê, desafiar a autoridade,

complicar a vida? O cangaço tinha lá os seus feitiços,

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menino, era o mito que a boca inventava pra mor de

entreter a imaginação, era a lenda contada, cantada

fabulosa, folclórica. Muito moleque vi eu com o brilho nos

olhos, rendido de encantos pelo Lampião.

A cabeça tem razões consigo, e imagina o normal

de herói e vilão misturado, estúrdio, sem conflitar a ideia.

Tempo contribui para tanto, que o personagem cangaceiro

é velho na história do Nordeste, remonta da época antiga

das sesmarias, tem origem se diz nos bandos

remanescentes da milícia paraibana, em jagunço pau-

mandado de coronel, nos bugres revoltosos com o

sistema de latifúndio, de colônia, mas sobre o tudo, é feito

resultado da seca, da fome e da miséria sertaneja – nossa

desgraça centenária. Vosmecê tem a experiência da

coisa: o se prolonga a aridez do mundo e é sinal de

pobreza certa, pobreza demasiada, periódica, triste de se

ver. Vixe que nas estradas só espiando o estrupício de

gente faminta, esqueleto de pessoa humana, o osso e a

adiposidade arruinada da carne. Região é ponto e ponto

final no mapa: sem remédio senão debandar, vosmecê

sabe e o próprio sol aconselha, sojigando feroz cada bicho

vivo alevantado da terra. Raiva de jagunço significa: é a

deserção sofrida destes esquecidos do Senhor, a massa

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proscrita de retirantes, desempregados, vivos, ruminando

o seu gosto de sede na língua, sem ter para onde ir senão

uma jornada incerta para o Sul. É de situação como esta

que medra a bandidagem – alternativa que sobra pra tanta

mão-de-obra largada assim, à toa, sem rumo, ociosa, no

árido deserto.

Desespero faz com a gente que nem espelho

partido: o de repente ele devolve ao mundo real as mil

faces ocultas, escondidas, a mesmíssima verdade

multiplicada. Sujeito se desconhece na dor: ara que

animal homem tem esperança, coisa que não se perde por

aí de graça, de graça, feito moeda na algibeira de tonto. O

que é o sentimento então de quem vê seca de perto? De

quem tem plantação perdida, família desfeita? De quem

cheira a carcaça de criação morta e ouve no céu o tatalar

de asa de urubu? A razão arrefece, por fim, e a opção é se

bandear caatinga adentro, saltear nas estradas, mendigar,

roubar. A família, desconjuntada, já não é mais o esteio.

Sangue, quando ferve desesperançado, seca que nem o

sertão impiedoso, seca o coração da gente, menino. Não

justifica, mas o homem sabe que a natureza não pede

desculpa depois de nos trucidar. O homem se faz outro

assim feito uma coisa a mais na delinquência da terra:

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perigoso, inconsequente, torna-se mais um dos decretos

infernais da vida.

Caboclo assenta na profissão de cangaceiro pra ter

o que de comer e, súbito, deixa a fera desembestar, pouco

prazo e já é bandido graduado, cabeça-a-prêmio por

assalto, sequestro de fazendeiro, homicídio e outros

desmandos. Em Juazinda sucedeu de aportar um dia a

tropa cambada dos tais, dos de fama mais suja, justo

exato em data de celebração. O arraial era que só a

alegria linda efusiva da festa: domingo de santo padroeiro,

capelinha enfeitada pra romaria, as barraquinhas armadas

na rua principal. Os cabras chegaram logo cedinho, e era

um danado dum comboio numeroso, armas à vista,

carranca nada amistosa, desaforada. O resto, só artista

saltimbanco mesmo pra arremedar a cara de susto do

pessoal do lugarejo. Vosmecê ponha tento: a aparição

funesta na horinha sagrada do desjejum, com café ainda

fumegando na fornalha.

Diantava de não tomar providência na surpresa

geral que foi; passado-da-hora assim sábio é atinar com

os nervos: coitado do povo teve intuição do perigo, e se

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mexeu com o lábio foi só no palavreado formal,

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constrangido, de frase que trepida receosa de desagradar.

O querer se apressar pra longe, dar sumiço de si, era

coisa arriscada de morte: restava senão conter as pernas

espavoridas, evitar ação precipitada, esperar o menos

pior. Os mandriões pistoleiros tocaram direto pra feira,

vinham que vinham cansados de léguas no trote

compassado das bestas, careciam de comida, água,

provisão pra viagem, necessidades de gente itinerante. Tal

de comércio com freguês jagunço não vinga, menino,

lucro mesmo é só a sobrevivência. Olha que o bando fez

logo a coleta da mercadoria variada: queijo, rapadura,

farinha, iguaria cambuquira, quibebe, quiçamã, carne de

sol, linguiça, chouriço, a umbuzada e os quitutes de milho,

pé-de-moleque, doce de leite, cuscuz, tapioca, óleo de

catulé. Curto prazo e a invição dos sujeitos deu cabo de

tudo, deixando no prejuízo total os ambulantes ciganos

camelôs de feira. Os pândegos exerceram prestimosos a

sua flagelância: uns insolentes cuidaram de bulir na tenda

de quinquilharias, engraçando com os bibelôs, artefatos,

cristinhos e santos de barro, cerâmica, cruzes, amuletos;

outros arribaram pra bodega beber a sua aguardente.

Autoridade da vila julgou mais sensato exemplar de

humilde, manter prudente o silêncio obsequioso, obedecer

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a vontade dos bandidos sem pôr objeções. Assim

resolvido, resignou de entregar o valor de comida,

vestuário, animal de carga, munição, capital moeda

economizada – garantia pra ocasião. A condição que era

veio por enunciado do pároco, homem moço competente,

o qual exortou aos temíveis cangaceiros que, por

gentileza, dessem licença imediata da cidade, afinal, já

tinham próprio de seu com o que prosseguir, nômades,

caminho em diante pelo mundo. Situação arrochada das

tais que indivíduo presta conta de si, topetêia a atitude que

tem: onde foi que desengatou um tanto de atrevido o

padre, sujeito no comum pacato, de juízo. O receio veio de

pronto da reação: destratados daquele jeito, quase que

expulsos, aqueles homens perigosos, matadores. A

audácia, porém, repercutiu sem efeito, não produziu

comoção alguma na quadrilha ali apeada no meio da rua –

anos a fio na baderna da guerra, fartos de sertão no

lombo, rudes, ríspidos, os brutos já haviam esquecido há

muito o de ser de educação.

Ao chefão criminoso sucedeu de assentir com a

exigência dada: refletiu de si que, bolso cheio, barriga

satisfeita, não havia mais mesmo que fazer no arraial. Deu

reparo, entretanto, na formosura de festa que ali prometia:

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os adereços de cor nas casinhas e sobrados, a vilazinha

trajada domingueira, paramentada de alegre, boniteza

feito de noiva no altar. Ocorreu foi que o cabra quedou

embasbacado, o de repente nem cuidou de montar na

cavalgadura nem nada, deu, decerto, com as ideias

avessas: pelo que disse aos seus de vontade repentina de

ficar, apreciar, um dia que fosse, os folguedos e danças,

os violeiros cantadores, o divertido que há, de súbita

inspiração. Alfredo, que era a graça de seu vigário, cogitou

de dissuadi-lo na mesma da hora, astuto, cancelando os

preparativos do evento. Não tinha mais não o que

comemorar, pensou, com a indesejável presença daqueles

ladrões estraga-prazeres, o que valia melhor zelar pela

segurança de mulher, criança, ancião, a gente de bem que

residia em Juazinda.

O resolvido então, infeliz, surtiu foi de dar zanga

real nos malfeitores, os quais trataram de sacar de toda

parafernália bélica de que dispunham: revólver, carabina,

facão e lâmina peixeira, mais a careta de quem não

gostou nada do que ouviu. O chefe deles lá se teve de

caluniado, bravejou que havia por que havia de ter

festança, quermesse e até baile; ora que o mando da

decisão se constituía assim: dedo no gatilho para matar,

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seu argumento definitivo. Situação que ia, piorava: era das

tais de beata benzer enganosa, de mão esquerda, o seu

cristo-santinho! Seu vigário não cuidou de recorrer a tanto,

o arrepio percorreu-lhe de fora a fora a espinha, mas

soube que se conteve: sua voz tensa, embargada, custou

de sair, assoprada afobada pro ar, com cuspe e tudo.

– Vossemecê nos perdoe a aporrinhação, senhor,

por favor, que carecemos de recursos para realizar a dita,

ainda mais convosco, convidados que sois de honra. Não

arrepare não que não é de arbítrio próprio que

cancelamos de celebrar festa pro nosso padrinho do céu,

protetor de gente oprimida, no seu dia tão benfazejo

abençoado. Não é de feitio nosso cometer heresia pagã –

Deus que nos livre disso. Os festeiros estão aí, de

aguardo na capelinha modesta de pobre, todavia

decorada bonita pra novena. Mas o que sucede do fato é

que ficamos desprovidos de fundo pra custear com as

despesas, vossemecê imagine, coisa desagradável, de

vexar de verdade, principal minha pessoa, representante

que sou de nossa santa Igreja Católica.

Discussão ia que ia mais longe no gogó, povo

pressentiu tranquilizado, que o esperto Alfredo dotava de

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psicologia, mostrava-se raposo velho no negociar. Mas a

história que se conta afamada por aí não é exatamente

esta, menino. Vosmecê se alerte que no meio dos

cangaceiros havia unzinho lá de intenção pior de patifaria.

O cheiro de fêmea mulher nas redondezas, ali perto dele,

acabou por atiçar-lhe imenso a safadeza. Ora, pronto, que

o sujeito farejou ensandecido o rocio que vinha vindo,

perfumoso, no vento. Era, para ele, odor de carne lisa,

apetitosa. Daí qu’inhantes mesmo do prestes acordo que

estava por se estabelecer na discórdia, atroou no outro

canto da vila o tiroteio: estava feito.

O disgramado respondia por Geôrgiano de nome, e

era dos pestes, vil salafrário, um traquinas dado à

bandidagem de jagunço apenas por cumprir impune a sua

covardia, por de quem ele abusava mesmo era em cima

dos velhos e dos mais fracos. Ao de chegar de vez na

cidade, Geôrgiano arrastou consigo mais dois

companheiros de bando pro botequim: vinham eles com

uma danada duma sede viril, aumentada de viagem, tal

que não arredaram pé do balcão até esgotar a sua

primeira garrafa de cachaça amarela, alambicada, diluída

em casco de cascavel. O figura bebia, cêbesta, e danava

de vantajar ficção de acontecido, blasonava de aventuras

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e valentias passadas, desfiava lorota, o fajuto, besteirava

brincava com a língua, convertia, desde, os seus possíveis

de ser. O boato crescia de sua boca, tomava reputação, a

qual é que os demais jagunços fiavam na falácia dita,

creditavam ao mentiroso a fama de matador cruel,

consumado, ele que, no fácil dos dizeres, já tombou

tumbou centenas de almas, tinha enchido de próprio

punho um cemitério.

O coisa-ruim era que só a doideira: a aguardência

na boca e o desatino no cérebro. Ora que Geôrgiano se

assuntou com os outros dois se haviam reparado, na vila,

o eflúvio gostoso de flor – presença certa que certa de

mulher. A intenção do cabra se via pelo olhar lascivo

luxurioso, a voz que usava para reclamar de forte

precisão, a urgência braba, animal, “que esta sina de ir-se-

com-Deus trechar estrada, meses a rodo sem ver mulher,

deixa a gente na necessidade tremenda”, e isto contava

não lhe saía da cabeça, obsessão que nada remedeia

senão um corpinho gracioso de fêmea, nuazinha na cama,

pra acarinhar. Ara que ele não se aguentava mais de

vontade, confessava, vixe que sozinho no mato de noite,

às vezes, caçava o jeito de se satisfazer. Mas o enquanto

que dava relato de sua situação privada, o falso

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cangaceiro fazia registro sutil de seu querer, sugeria

oportuno a ação escabrosa que tinha matutado, em

segredo, na ideia. Os companheiros de gole, já ébrios

desajuizados, consentiram de prestar ajuda na coisa:

Geôrgiano havia de invadir casa de família adentro,

armado periculoso, e possuir ali mesmo moça virgem

inocente, qual o desejo manda. Com o plano em mente

estabelecido, determinaram de ir arrematá-lo, os três, de

porta em porta nas imediações.

O menino não há de crer, porém, que a gente

roceira de lá primava, por Deus, de precaução, velhaca e

suspeitosa de tudo, ponto de adivinhar a imundície capaz

provável de suceder. De jeito que os pais de rapariga

donzela, bonita, cuidaram de ocultar as filhas no em

debaixo das camas e armários, nos esconderijos caseiros:

quintais, grotas, porões – subúrbios remotos do lar. Foi a

prestes prevenção mal a notícia de bandoleiro correu

célere, avisada de espanto em espanto na cidade. O fato

se deve que Geôrgiano teve a decepção tamanha,

inesperada, de topar só com casal de pessoa adulta,

amadurecida, de detrás da soleira da porta, a primeira e a

segunda que arrombou. O assim se repetiu em seguida,

tal que o bandido, enfezado, pirraçou de cometer a dita

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criminosa no improviso, em esposa dona doméstica

mesmo, datada de mais velha experiente, a qual que

servisse pro seu apetite insano, apressado. Decisão

tomada, ocorreu de lhe dar agrado na vista uma

senhorazinha de lá, bem-apessoada, que estava na

companhia do filho, moço novo adolescente. O peste

encantoou então a mulher no tabique no passo de tempo

que os comparsas deram de sova pancada no rapazinho,

sem modo de resistir.

Era o escândalo, o despeito, ôxe, de doer nos

ouvidos da vizinhança, vosmecê imagine. Eu podia que

queria estar lá na maldita da hora: humor da gente sabe

se irrita indignado, inda mais que o caso deveria ainda de

piorar. A mulher teve, súplice chorosa, de implorar que não

machucassem o seu garoto, que ela, de pronto, intercedia

de se entregar sem protesto, sem lamúria, calada

renunciada da vida. O brutamontes estuprador não se fez,

tal, de rogado, que sem-vergonhou de agarrar a vítima

indefesa, foi fungando excitado e porco no cangote dela,

babando de satisfeito, jubiloso. Em no momento de antes,

porém, do crápula arriar as calças, folgar de indecência ali

na frente dos outros, a menina filha da mulher deu

presença repentina no recinto, desesperou de surgir

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aparecer assim, sem mais nem menos, de onde que

estava escondida. A pobrezinha que podia fazer senão

chorar e gritar? Veio de bem-intencionada, verdade, mas

na pura aflição, admitiu de si com o que lhe ia ao

pensamento impotente: o de poder talvez socorrer sua

mãe. A pequena mal sabia, coitadinha, que a mulher

dispunha-se de doar o corpo, e de bom grado até a alma,

para protegê-la.

Geôrgiano pôs reparo na rapariga, a vista dirigida

pro seu corpinho moreno mirrado, um diminuto de gente,

mas que aprazia de formosa delicada, os olhos verdinhos

que nem vidraça de catedral. Surtou então de proferir

nova sentença, cedendo a mãe em troca da filha aos dois

parceiros: “Opa que desta quiserem se esbaldar, meus

chapas, que eu procedo de ficar é com a virgem cabritinha

aqui, deliciosa que só!” Mas homem que é homem não

permite que crime do tipo desses se perpetre assim, feito

fácil, gratuito, igual de indiferença que tem por nós a

natureza. Sucedeu que, sorrateiro, tratou de se organizar

às pressas o motim de valentes que havia no vilarejo: uma

turma de cabras arretados, de boa índole, pacíficos mas

com coragem de sobra de não afinar na hora da briga.

Resumidos de ação, os sujeitos assomaram heróicos às

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portas e janelas da casa invadida: garrucha na mão, a

pontaria encaminhada pra testa dos bandidos, advertiram

ordem de soltar de imediato a família refém, sem prévias

condições. Mas cangaceiro de si por si não é de acatar

ameaça, menino; dito pinguço, então, o diabo atenta que o

dedo lhe coça de vontade de romper, de vez, a artilharia.

O estrondo que se ouviu de longe, na turbamulta da

negociação na rua, era tiro disparado ali para matar.

Caso extremo precipitado, mas olha que um dos

safados estupradores ensaiou de sacar rápido da pistola,

dar pronta reação ao cerco que tinha em volta de si. Este

encerrou alvejado direto no pescoço – estava feito. O

outro, aturdido de susto, deu bandeira de socar na frente

de novo projétil, o qual outro que vinha vindo danoso,

daninho, sem pedir licença. O Geôrgiano maluco ainda

meteu mão de faca pra esgoelar a pequena, quando em fé

que recebeu disparo certeiro bem no arrebito que exibia

por dentro das calças, o cafajeste. Estava feito, meu Deus!

A família, salva, se abraçou lacrimosa, soluçando,

serenada de alívio, que apertura de morte dessas, cruz-

credo, abala com a ansiedade na gente. Foi por bem que

ninguém pisou no chão encharcado de sangue dos

bandidos, o que é de mau agouro e sério desrespeito aos

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mortos, nosso Padim Cisso vele por nós: que defunto é

defunto não importa o tipo de vida que levou. Entretanto,

cabia aos salvadores alertar aviso de novo perigo,

próximo, iminente, que a circunstância pesava que

recrudescia de grave, pro donde que devia vir pela rua,

sem demora, o restante da tropa criminosa. Isto que os

homens, uns dez, assentaram de entrar no refúgio

completo da casa, taramelar de tranca portas e janelas,

dar tombo de trincheira na mobília, recarregar munição,

esperar, rezar.

– As senhoras, o menino, é bom que se aviem

depressa pros fundos do terreno, aproveitar de fugir pelo

muro, o Senhor esteje, que os demônios jagunços não

hão de deixar barato o desfalque no seu bando.

Mal que falou um dos mais assisados, choveu bala

pra dentro pra confirmar: a mulher e as crianças sofreram

de correr em meio aos estilhaços de vidro, alvenaria,

fumaça, poeira, lascas de madeira da sala atingida.

Do em diante do abrigo vinha a tonitruância de

galope rouco, furioso, de dezenas de cavalos: convergia

de comparecer em massa a guarnição inteira dos

jagunços, tomando posição, mira, estratagema de guerra,

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descarregando no alvo o completo de suas carabinas,

revólveres, espingardas: a munição recém-adquirida no

próprio arraial. Deveras que no cangaço o negócio se

resolve decisivo, menino, arrenega de saber o faro que os

bandidos tinham pra pólvora e pra sangue, donde foi que

acudiram rápidos ao local, sentenciosos de morte, empós

da sua vingança. A fuzilaria deles lá concluiu de derrubar

num átimo as toscas paredinhas da casa, fissurando,

ferindo, reduzindo fatal o mísero número de homens ali

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sitiados, sem chance de defesa, réplica ou fuga, na bela

da enrascada onde foram se meter. A imagem que era era

de puro pó, destruição, fumaça preto-cinzenta alevantada:

o diacho que os canalhas pistoleiros aprouveram de

cometer. O telhado da casa assim foi que ruiu abaixo feito

sepultura de gente viva – a de nossos mártires-heróis. O

resto, vide consulte talvez – determinação do destino: fez

o rombo devastador a quantidade de balas disparadas,

estourando, explodindo, enterrando os de dentro num só

monturo de escombros e destroços, até eis que, afinal,

deram pausa de silêncio os canudos de ferro para o alvo

dali apontados. Às ordens do chefe cangaceiro, o fogo

apagou da fuzilaria. Os carrascos então que viram a

barafunda que haviam aprontado. Tinham humilhado que

bastava, chega, aquela derrota.

Luz do céu conduza doravante as almas daqueles

bravos da cidade, que metade deles era ido, pois, no

derradeiro dos jaz, que sangue vital, sabe, a gente verte é

uma só vez. Contudo ilesos, sobrevividos do ataque,

escaparam ainda o Chico, o Pedro Simões, o Malazarte, o

Raul Monjolinho, logo salvo-soterrados debaixo da pedra

desabada. Pesar de favor da sorte, ôa que padeciam da

complicada da situação: na estreiteza de espaço entre os

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entulhos, sofriam de respirar a custo a rala porção de ar

que entrava poluída pelos orifícios; do lugar que estavam

mal que podiam se aluir, aprisionados detidos no sufoco,

na ruína, incapazes de prestar a si mesmos o socorro que

tinham outrora planejado. O retardo de tempo deu

suficiente pra salvação da família, a qual há de crer que se

escafedeu, esgueirada fugida pro meio do mato. O

povoado Juazinda, porém, não usufruiu do mesmo

benefício, que pagou com juro abundante de alto o serviço

obrado pelos salvadores. Atende na escuta, menino, que

dou notícia do fato passado posterior, o em depois que os

biltres bandoleiros concordaram de promover provocar de

mais intensa aquela fuzarca. Provocar que digo no sentido

daqueles: sacana provocador – de ferir com o amor-

próprio da gente. O modo vulgar, qual foi, de sujeito

desfeitear, irônico, acinte ofensa com a dignidade dos

outros:

– Odônde então que se acovardou o resto de

frouxos natais desta terra? Ara que deram de galudos, no

então? Empina a testa, que sim, que vos obrigo é de arcar

com as consequências!

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Isto gritado, mão furtiva de perversa acendeu,

abrupta, o incêndio nas barraquinhas de câmbio, no que a

faísca de fogo alastrou-se feroz pelas casas e sobrados

de madeira em redor.

Ordem proferida pelo próprio chefe, insolente, que

com voz de desafio profanava, de vez, a paz no arraial,

dava a amostra de sua imponência, licencioso de não

poupar, sequer, cidadão humilde inocente que ali vivia. A

multidão de povo, apavorada, concorreu de fugir em meio

das chamas, tossindo de fumaça preta, o lambido de fogo

que cangaceiro cruel, cada vez mais, inflamava. De

zombar da desgraceira dos outros, o bando ainda que

empinava relinchava os cavalos, urra-vaiava pela rua, ria

de capricho, exagero, estralava pro céu o berreiro da sua

artilharia. O escarcéu realizado de pronto, tarefa cumprida

feita satisfeia, foram debandando pro norte, aos poucos, a

manada ruim daqueles predadores nocivos: praga

proliferada pelo sertão. Galoparam velozes os danados

em volta de sua jornada sem rumo, marginais esquecidos,

foras-da-lei, em fora pros campos ermos longínquos, perto

quiçá do horizonte. O rasto o de sempre deixado

lembrava, que coisa, que o inferno também é na terra.

Assim o sentiu a população assustada, acoitada

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escondida, no trauma do pensamento. Juazinda

cerimoniou o seu feriado, aflita, no velório em memória

dos mortos daquele dia, debulhou seu ramalhal de flores,

chorou copiosamente a sua dor. A pobre gente se conta

que suou trabalhou duro pra se recuperar, levantar das

cinzas a cidade queimada cremada, à força, naquele dia.

Desta maneira de jeito é que se escrevia, menino,

a biografia dita, ao vivo, do sertão nordestino. Caso que

narrei era o comum corriqueiro da terra, gente agreste

costumada que nem nós com as agruras de ser, digo,

espécie humana de diversa, diferente de bicho. Oxênte

que se aplicou aqui o castigo dissabor do mundo, que

quando homem, animal, dá a sua ingrisia de maldade,

prima mesmo de ruim, de egoísta feito criança mutilando

cabeça de inseto, ateando fogo em cachorro dormido vira-

lata, na brincadeira morte de se divertir – anomalia talvez

da natureza. Lamento de dizer da tristeza que nos

espreita, ora tragédia que tutela, maliciosa, a existência.

De anjo da guarda desses, cruzes, que me dispenso de

companhia e trato, a vida urge, vosmecê entende, e dianta

de nada esperançar no além, que sujeito quer mesmo é

ser inquilino demorado, eterno, na coisa conhecida que

existe – matéria de se pegar. Cuida de não vexar de