O coronavírus, nosso contemporâneo O Dia Mundial da Língua … · 2020. 5. 12. · medida em que...

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6 a 19 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT 28 IDEIAS 6 a 19 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT COLUNA Q i ç l q e o c A P c l f r f v P d - a e l r n c i p o d n d o 1 m p p b c c u u o q d m c d d s g é c B O d SOCIEDADE BREVE Boaventura de Sousa Santos fim da história parece ter chegado ao fim. Segundo, o vírus converte o presente num alvo móvel, constituído não apenas pelo que podemos fazer ou planear agora, mas também pelo que de imprevisível nos pode acontecer. O presente abismo interpela, por exemplo, de modo radical, as empresas seguradoras na área da saúde. Se caminhamos para uma sociedade onde haverá cada vez mais riscos inseguráveis, por que é que a proteção contra os riscos seguráveis não está a cargo de quem nos protege quando os riscos inseguráveis se concretizam, isto é, o Estado? Não será mais eficiente e mais justo pagar impostos do que pagar prémios de seguro? Terceiro, o novo vírus dramatiza a medida em que o passado arcaico faz parte do nosso presente, tal como defendeu Pier Paolo Pasolini e, na esteira dele, defende Giorgio Agamben. Esse passado presente reside na atração pelos animais selvagens enquanto símbolo do desconhecido, pela apropriação e consumo ou domesticação do que nos é totalmente estranho e, por isso, tão ameaçador quanto sedutor. O presente surge como história anacrónica do tempo em que os animais eram, por definição, selvagens, e constituíam tanto ameaças imprevisíveis, como troféus ape- tecidos. O vírus é um reciclador que liga o presente a passados remotos. Finalmente, o coronavírus exacerba a pulsão apocalíptica (o presente como fim dos tempos) que tem vindo a ganhar terre- no, nomeadamente com a expansão das religiões fundamentalistas, tanto judaico- -cristãs como islâmicas. O apocalipticismo assenta na ideia de que mais tarde ou mais cedo um acontecimento catastrófico global porá fim à vida terrena tal como a conhe- cemos. No caso das religiões, o conhe- cimento esotérico em que tal previsão se baseia é um conhecimento revelado pelos mensageiros da divindade. Em algumas versões haverá uma luta entre o bem e o mal, e só os fiéis eleitos se salvarão. Mas o apocaliticismo também tem uma ver- são secular. Trata-se de um pessimismo histórico, por vezes moralista, por vezes nostálgico de um passado integro, um pessimismo politicamente ambíguo, já que tanto pode ser vertido em registo de extrema-esquerda (algum anarquismo) como em registo de extrema-direita (mais comum nos últimos tempos). Pode ser lido em Dostoiévski, Nietzsche, Artaud ou Pasolini. O coronavírus presta-se à ideia de um apocalipse latente, que não decorre de um saber revelado, mas de sintomas que fazem prever acontecimentos cada vez mais extremos, a que se junta a convicção de que a sociedade, por mais que se pro- ponha corrigir o curso das coisas, acaba sempre por seguir o caminho inelutável da decadência. A devastação causada pelo coronavírus como que aponta para um apocalipse em câmara lenta. O corona- vírus alimenta a vertente pessimista da contemporaneidade e isso deve ser tomado em conta no período imediatamente pós- -pandémico. Muita gente não vai querer pensar em alternativas de um mundo mais livre de vírus. Vai querer o regresso ao normal a todo o custo por estar convenci- do que qualquer mudança será para pior. À narrativa do medo haverá que contrapor a narrativa da esperança. A disputa entre as duas narrativas vai ser decisiva. Como for decidida determinará se queremos ou não continuar a ter direito a um futuro melhor. J O coronavírus, nosso contemporâneo O coronavírus é nosso contemporâneo no sentido mais profundo do termo. Não o é apenas por ocorrer no mesmo tempo linear em que ocorrem as nossas vidas (simultaneidade). É nosso contemporâneo porque partilha connosco as contradições do nosso tempo, os passados que não passaram e os futuros que virão ou não. Isto não significa que viva o tempo presente do mesmo modo que nós. Há diferentes formas de ser contemporâneo. O camponês africano é contemporâneo do executivo do Banco Mundial que foi avaliar as condições de investimento internacional no seu território. Nos últimos 50 anos acumulou-se um repertório extremamente diverso de problematizações da noção de contemporaneidade. Muito diferentes entre si, todas essas noções têm vindo a questionar as conceções dominantes de progresso e de tempo linear herdadas do Iluminismo Europeu dos séculos XXVIII e XIX. Essas conceções buscavam reduzir a contemporaneidade ao que coincidia com o modo de pensar e de viver das classes dominantes europeias, tudo o resto sendo considerado resíduo ou lixo histórico. O processo histórico que levou a pôr em causa esta conceção estreita de contem- poraneidade foi simultaneamente muito dramático e muito esperançoso. Incluiu, por um lado, o colonialismo histórico e a partilha de África, duas guerras mundiais e a bomba atómica e, por outro lado, as lutas de libertação anti-colonial, o socia- lismo como alternativa ao capitalismo, os movimentos sociais, a consolidação dos povos indígenas como sujeito histórico, a expansão do imaginário democrático e as lutas pela diversidade sexual e etnorracial, etc. De tudo isso, resultou uma constelação de conceções de contemporaneidade que, apesar de muito diferentes entre si, con- vergiam em superar a conceção estreita de contemporaneidade. Para a construção da conceção ampla de contemporaneidade contribuíram tanto o pensamento Nortecêntrico e ocidental, como o pensamento Sulcêntrico e oriental. Um tanto arbitrariamente, saliento, no pri- meiro, os trabalhos de Rosa Luxemburgo, Walter Benjamin, eodor Adorno, Ernst Bloch, Michel Foucault, Reinhart Koselleck, Giorgio Agamben, Bruno Latour, Johannes Fabian, Marx Augé. No segundo gru- po, saliento os trabalhos de José Carlos Mariátegui, Leopold Senghor, Mahatma Gandhi, Aimé Cesaire, Franz Fanon, Amilcar Cabral, Joseph Ki Zerbo, Ngugi Wa iongo, Dipesh Chakrabarty, Oyèrónkẹẹ Oyèwùmí, Silvia Rivera Cusicanqui, Enrique Dussel. Este segundo grupo tem a virtualidade de incluir conhecimentos orais, anónimos, africanos, indianos, indí- genas, camponesas, feministas, populares, etc. É uma constelação imensa de conce- ções entre as quais ainda está por fazer uma tradução intercultural e diálogos ou ecologias de saberes e de temporalidades. O que é característico da nova conceção de contemporaneidade é uma visão holista sem ser unitária, diversa sem ser caótica, que aponta em geral para a copresença do antinómico e do contraditório, do belo e do monstro, do desejado e do indeseja- do, do imanente e do transcendente, do ameaçador e do auspicioso, do medo e da esperança, do indivíduo e da comunida- de, do diferente e do indiferente, e da luta constante para procurar novas correlações de força entre os diferentes componentes do todo. Da contemporaneidade passou a fazer parte a reinvenção permanente do passado e a aspiração sempre incompleta do futuro de que são feitas as tarefas que concebemos como “o presente”. Agentes sociais tão diversos como os artistas e os povos indí- genas foram mostrando que o presente é um palimpsesto, que o passado nunca passa ou nunca passa totalmente e que olhar para trás e refletir a partir das experiências acumuladas pode ser uma forma eficaz de encarar o futuro. É certo que durante muito tempo as epis- temologias do Norte procuraram suprimir, desvalorizar ou invisibilizar essa imensa riqueza, mas progressivamente e à medida que as epistemologias do Sul foram fazendo o seu caminho, foi-se tornando mais fácil adotar uma conceção ampla de contempo- raneidade. Como se deduz do anterior, esta conceção está bem consciente das ideologias dominantes que a alimentam e dos modos modernos de dominação económica, social e política, sobretudo capitalismo, colonia- lismo e patriarcado. Ser contemporâneo é estar consciente de que a grande parte da população do mundo é contemporânea da nossa contemporaneidade pelo modo como tem de a sofrer ou suportar. NESTA AMPLA CONSTELAÇÃO DE CON- TEMPORANEIDADES o novo coronavírus assume atualmente um valor hípercontem- porâneo. Sermos contemporâneos do vírus significa que não podemos entender o que somos sem entender o vírus. O modo como o vírus emerge, se difunde, nos ameaça e condiciona as nossas vidas é bem fruto do mesmo tempo que nos faz ser o que somos. São as nossas interações com animais e so- bretudo com animais selvagens que o tornam possível. Espalha-se no mundo à velocidade da globalização. Sabe monopolizar a atenção dos media como o melhor perito de comu- nicação social. Descobriu os nossos hábitos e a proximidade social em que vivemos uns com os outros para melhor nos atingir. Gosta do ar poluído com que fomos infestando as nossas cidades. Aprendeu connosco a técnica dos drones e, tal como estes, é insidioso e im- previsível onde e quando ataca. Comporta-se como o 1% mais rico da população mundial, um senhor todo poderoso que não depende dos Estados, não conhece fronteiras, nem limites éticos. Deixa as leis e as convenções para os mortais humanos, hoje mais mortais que antes precisamente devido à sua inde- sejada presença. É tão pouco democrático quanto a sociedade que permite tal concen- tração de riqueza. Ao contrário do que pare- ce, não ataca indiscriminadamente. Prefere as populações empobrecidas, vítimas de fome, de falta de cuidados médicos, de condições de habitabilidade, de proteção no trabalho, de discriminação sexual ou etnorracial. Ser indesejado não o torna menos contem- porâneo. A monstruosidade do que repudia- mos e o medo que ela nos causa é tão nossa contemporânea quanto a utopia com que nos confortamos e a esperança que ela nos dá. A contemporaneidade é uma totalidade heterogénea, internamente desigual e combi- nada. Considerar o vírus como parte da nossa contemporaneidade implica ter presente que, se nos quisermos ver livres do vírus, teremos de abandonar parte do que mais nos seduz no modo como vivemos. Teremos de alterar muitas das práticas, dos hábitos, das leal- dades e das fruições a que estamos acostu- mados e que estão diretamente vinculados à recorrente emergência e crescente letalidade do vírus. Ou seja, teremos de alterar a matriz da contemporaneidade, sendo certo que desta fazem parte as populações que mais sofrem com as formas dominantes da contempora- neidade. A hipercontemporaneidade do novo vírus assenta em algumas características parti- cularmente instigantes. Primeiro, o novo vírus interpela tão profundamente a nossa contemporaneidade que é legítimo ver nele uma mega fratura abissal, um novo Muro de Berlim. Um muro que desta vez não separa dois sistemas sociais e políticos, mas antes dois tempos: o antes e o depois do coronaví- rus. Saber se as mudanças serão para melhor ou para pior é questão em aberto. Mas serão certamente significativas. O curto período do Decameron (Pasolini, 1971) "o novo vírus dramatiza a medida em que o passado arcaico faz parte do nosso presente, tal como defendeu Pier Paolo Pasolini " Sermos contemporâneos do vírus significa que não podemos entender o que somos sem entender o vírus. O modo como o vírus emerge, se difunde, nos ameaça e condiciona as nossas vidas é bem fruto do mesmo tempo que nos faz ser o que somos Implica ter presente que, se nos quisermos ver livres do vírus, teremos de abandonar parte do que mais nos seduz no modo como vivemos

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6 a 19 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT28 � IDEIAS IDEIAS � 296 a 19 de maio de 2020 JORNALDELETRAS.PT

COLUNA CRÓNICA

A PAIXÃO DAS IDEIASGuilherme d’Oliveira Martins

Quando, em 25 de novembro de 2019, a Conferência Geral da UNESCO decidiu adotar o 5 de maio como Dia Mundial da Língua Portuguesa, esse reconheci-mento significou uma extraordinária responsabili-dade partilhada por todos os que no mundo usam a mesma língua como meio de comunicar, de pensar, de criar, de exprimir sentimentos, de cultivar as artes, de partilhar conhecimentos, de refletir ou de inovar. A língua é essencial para a afirmação das

identidades, mas também para enriquecer pelo diálogo as culturas e civiliza-ções. É verdade que, segundo alguns, os povos primitivos criaram diferentes línguas para poderem preservar os seus segredos, mas também é verdade que as diferentes línguas foram sofrendo um longo processo de intercâmbio e de enriquecimento mútuo, recebendo vocábulos, ideias, construções de outros que fortaleceram a comunicação entre os povos e a partilha de valores comuns.

Como afirma Fernando Venâncio, em Assim Nasceu uma Língua – Sobre as Origens do Português, o nosso idioma projetou-se em todos os continentes. E segundo Ivo de Castro “a história da língua portuguesa pode ser resumida numa frase: falamos uma língua que nasceu fora do nosso ter-ritório e cujo futuro será em larga medida decidido fora das nossas mãos. A língua portuguesa, numa visão temporal ampla, acha-se de passagem por Portugal”.

Quando falamos da língua portuguesa, consi-deramos uma longa história, a partir do galaico--português, referimos uma língua antiga, que cedo alcançou uma assinalável maturidade, certamente em virtude do Rei D. Dinis tê-la tornado cedo língua dos tabeliães em lugar do latim – o que favo-receu a afirmação do idioma como modo de comu-nicar do povo e dos letrados. Foi na Galiza que tudo começou, desenvolvendo-se a língua a partir das influências que os portugueses imprimiram, multi-plicaram e também sofreram. Mas o nosso idioma e o espanhol tiveram géneses diferentes e separa-das, como se vê no banimento das consoantes, no desenvolvimento do ditongo ão e na redução das sibilantes. De facto, o português ou o espanhol jamais foi dialeto um do outro, sem prejuízo de um encontro do português e do espanhol por volta de 1400, no momento do “ofuscante esplendor” da cultura vizinha. A partir da matriz galega, temos uma diversidade de influências, como a dos moçárabes, principal veículo transmissor de um grande número de vocábulos árabes para o nosso léxico, pela parte bilingue da população, além dos caracteres próprios adquiridos com a cultura quinhentista…

Eis por que temos falado de uma língua de várias culturas e uma cultura de várias línguas, o que dá razão a Ivo de Castro quanto à complexa evolução de um idioma partilhado num mundo global. Falamos de várias culturas, pela natureza própria da diversidade política, como língua de unidade nacional, como língua segunda, ou como língua inte-gradora num complexo mosaico étnico e geográfico – tudo isto en-contramos, ora em África, ora no Brasil. E quando referimos várias

línguas, reportamo-nos ao desenvolvimento dos crioulos, de raiz portugue-sa, com uma vida própria, designadamente pela diversidade arquipelágica. De facto, sem idealizações ou simplificações, e muito menos paternalismos, a partir de exemplos concretos, trata-se, no fundo, de uma língua que deve ser vista como uma realidade em movimento. Como disse Rui Knopli a língua tenderá a ser um denominador comum de vários espaços africanos, asiáticos, brasileiros, europeus, numa espécie de “pátria coincidente”. E para o compreender, basta lermos a literatura da língua portuguesa contempo-rânea – Mia Couto, Germano Almeida, Pepetela, Rubem Fonseca, Ondjaki, Djaimilia Pereira de Almeida, António Lobo Antunes, Lídia Jorge…

Numa fórmula feliz, António Sampaio da Nóvoa, representante perma-nente de Portugal junto da UNESCO, fala-nos (na última edição do JL) da “criação de um movimento que vá muito para além do dia 5 de maio, que simbolicamente é apenas a data, o lugar onde inscrevemos a nossa vonta-de de uma promoção internacional da Língua Portuguesa” e propõe uma estratégia a seguir, sintetizada em EC ao cubo, que integra Ensino, Cultura,

Conhecimento e Comunicação. E a esta proposta, temos de ligar o especial empenhamento do em-baixador português, em dois importantes projetos no seio da UNESCO, as reflexões sobre o futuro do ensino e a exigência de uma ciência aberta e da partilha de dados e de conhecimento.

São linhas de ação cruciais que certamente empenharão a Conferência Geral da organização de 2021 e constituirão a demonstração de que a língua portuguesa pode ser um dos catalisadores nas áreas de ação da UNESCO. E a afirmação de Sampaio da Nóvoa de que a UNESCO deve centrar--se na situação de África é essencial e tem de ser ouvida na organização e na cena internacional. Importa assegurar um diálogo efetivo entre as áreas universitárias e científicas, capaz de mobilizar e enriquecer a cooperação entre os Países de Língua Portuguesa, mas também de favorecer um diálogo global, designadamente com as outras áreas lin-guísticas, compreendendo que o multilinguismo é cada vez mais importante e que é nessa perspetiva que teremos de trabalhar no conhecimento e na investigação científica. A língua inglesa é indubita-velmente fundamental nos vocabulários científi-

cos, mas temos de assegurar o diálogo interlinguístico, designadamente no âmbito das ciências sociais, nas quais a diversidade da comunicação tem de ser compreendida, sob pena de desvirtuarmos o conhecimento.

Como insistia Vasco Graça Moura, nenhum de nós quer uma língua única, totalitária. Tem de se abrir espaço para a diversidade linguística, estabelecendo pontes entre os vários idiomas e as várias culturas. Veja-se a importância crescente das línguas asiáticas (mandarim ou hindi) e atente-se ao grande interesse das universidades da China na aprendizagem da língua portuguesa, exatamente num contexto de multilinguismo. E não podemos esquecer que as chamadas Humanidades irão ganhar uma configuração cada vez mais fortemente relacionada com todas as disciplinas científicas. Como investigar as literaturas e as artes sem considerar a diversidade de culturas e idiomas?

Vergílio Ferreira dizia, por isso, que não se pode pensar fora das possi-bilidades da língua em que se pensa. Infelizmente, há quem julgue que a avaliação académica deve ser uniformizada e redutora, o que é contrário da compreensão da diversidade. E não se pense que a tendência futura é para a existência de uma única língua franca. De facto, a lógica unificadora do Esperanto desvaneceu-se com o tempo. E nós, falantes da língua portu-guesa, sabemos bem do que falamos, porque tivemos no Índico e na Ásia uma língua franca, de mercadores e missionários, o “papiar cristão”… Num mundo globalizado, não falamos da língua portuguesa como uma realida-de fechada, mas de uma realidade aberta e em movimento, e aí estão a sua riqueza e as suas virtualidades. J

O Dia Mundial da Língua Portuguesa

Num mundo globalizado, não falamos da língua portuguesa como uma realidade fechada, mas de uma realidade aberta e em movimento, e aí estão a sua riqueza e as suas virtualidades

António Sampaio da Nóvoa

SOCIEDADE BREVEBoaventura de Sousa Santos

fim da história parece ter chegado ao fim. Segundo, o vírus converte o presente

num alvo móvel, constituído não apenas pelo que podemos fazer ou planear agora, mas também pelo que de imprevisível nos pode acontecer. O presente abismo interpela, por exemplo, de modo radical, as empresas seguradoras na área da saúde. Se caminhamos para uma sociedade onde haverá cada vez mais riscos inseguráveis, por que é que a proteção contra os riscos seguráveis não está a cargo de quem nos protege quando os riscos inseguráveis se concretizam, isto é, o Estado? Não será mais eficiente e mais justo pagar impostos do que pagar prémios de seguro?

Terceiro, o novo vírus dramatiza a medida em que o passado arcaico faz parte do nosso presente, tal como defendeu Pier Paolo Pasolini e, na esteira dele, defende Giorgio Agamben. Esse passado presente reside na atração pelos animais selvagens enquanto símbolo do desconhecido, pela apropriação e consumo ou domesticação do que nos é totalmente estranho e, por isso, tão ameaçador quanto sedutor. O presente surge como história anacrónica do tempo em que os animais eram, por definição, selvagens, e constituíam tanto ameaças imprevisíveis, como troféus ape-tecidos. O vírus é um reciclador que liga o presente a passados remotos.

Finalmente, o coronavírus exacerba a pulsão apocalíptica (o presente como fim dos tempos) que tem vindo a ganhar terre-no, nomeadamente com a expansão das religiões fundamentalistas, tanto judaico--cristãs como islâmicas. O apocalipticismo assenta na ideia de que mais tarde ou mais cedo um acontecimento catastrófico global porá fim à vida terrena tal como a conhe-cemos. No caso das religiões, o conhe-cimento esotérico em que tal previsão se baseia é um conhecimento revelado pelos mensageiros da divindade. Em algumas versões haverá uma luta entre o bem e o mal, e só os fiéis eleitos se salvarão. Mas o apocaliticismo também tem uma ver-são secular. Trata-se de um pessimismo histórico, por vezes moralista, por vezes nostálgico de um passado integro, um pessimismo politicamente ambíguo, já que tanto pode ser vertido em registo de extrema-esquerda (algum anarquismo) como em registo de extrema-direita (mais comum nos últimos tempos). Pode ser lido em Dostoiévski, Nietzsche, Artaud ou Pasolini.

O coronavírus presta-se à ideia de um apocalipse latente, que não decorre de um saber revelado, mas de sintomas que fazem prever acontecimentos cada vez mais extremos, a que se junta a convicção de que a sociedade, por mais que se pro-ponha corrigir o curso das coisas, acaba sempre por seguir o caminho inelutável da decadência. A devastação causada pelo coronavírus como que aponta para um apocalipse em câmara lenta. O corona-vírus alimenta a vertente pessimista da contemporaneidade e isso deve ser tomado em conta no período imediatamente pós--pandémico. Muita gente não vai querer pensar em alternativas de um mundo mais livre de vírus. Vai querer o regresso ao normal a todo o custo por estar convenci-do que qualquer mudança será para pior. À narrativa do medo haverá que contrapor a narrativa da esperança. A disputa entre as duas narrativas vai ser decisiva. Como for decidida determinará se queremos ou não continuar a ter direito a um futuro melhor. J

JOSÉ

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O coronavírus, nosso contemporâneo

O coronavírus é nosso contemporâneo no sentido mais profundo do termo. Não o é apenas por ocorrer no mesmo tempo

linear em que ocorrem as nossas vidas (simultaneidade). É nosso contemporâneo porque partilha connosco as contradições do nosso tempo, os passados que não passaram e os futuros que virão ou não. Isto não significa que viva o tempo presente do mesmo modo que nós. Há diferentes formas de ser contemporâneo. O camponês africano é contemporâneo do executivo do Banco Mundial que foi avaliar as condições de investimento internacional no seu território. Nos últimos 50 anos acumulou-se um repertório extremamente diverso de problematizações da noção de contemporaneidade. Muito diferentes entre si, todas essas noções têm vindo a questionar as conceções dominantes de progresso e de tempo linear herdadas do Iluminismo Europeu dos séculos XXVIII e XIX. Essas conceções buscavam reduzir a contemporaneidade ao que coincidia com o modo de pensar e de viver das classes dominantes europeias, tudo o resto sendo considerado resíduo ou lixo histórico.

O processo histórico que levou a pôr em causa esta conceção estreita de contem-poraneidade foi simultaneamente muito dramático e muito esperançoso. Incluiu, por um lado, o colonialismo histórico e a partilha de África, duas guerras mundiais e a bomba atómica e, por outro lado, as lutas de libertação anti-colonial, o socia-lismo como alternativa ao capitalismo, os movimentos sociais, a consolidação dos povos indígenas como sujeito histórico, a expansão do imaginário democrático e as lutas pela diversidade sexual e etnorracial, etc. De tudo isso, resultou uma constelação de conceções de contemporaneidade que, apesar de muito diferentes entre si, con-vergiam em superar a conceção estreita de contemporaneidade.

Para a construção da conceção ampla de contemporaneidade contribuíram tanto o pensamento Nortecêntrico e ocidental, como o pensamento Sulcêntrico e oriental. Um tanto arbitrariamente, saliento, no pri-meiro, os trabalhos de Rosa Luxemburgo, Walter Benjamin, Theodor Adorno, Ernst Bloch, Michel Foucault, Reinhart Koselleck, Giorgio Agamben, Bruno Latour, Johannes Fabian, Marx Augé. No segundo gru-po, saliento os trabalhos de José Carlos Mariátegui, Leopold Senghor, Mahatma Gandhi, Aimé Cesaire, Franz Fanon, Amilcar Cabral, Joseph Ki Zerbo, Ngugi Wa Thiongo, Dipesh Chakrabarty, Oyèrónkẹẹ Oyèwùmí, Silvia Rivera Cusicanqui, Enrique Dussel. Este segundo grupo tem

a virtualidade de incluir conhecimentos orais, anónimos, africanos, indianos, indí-genas, camponesas, feministas, populares, etc. É uma constelação imensa de conce-ções entre as quais ainda está por fazer uma tradução intercultural e diálogos ou ecologias de saberes e de temporalidades.

O que é característico da nova conceção de contemporaneidade é uma visão holista sem ser unitária, diversa sem ser caótica,

que aponta em geral para a copresença do antinómico e do contraditório, do belo e do monstro, do desejado e do indeseja-do, do imanente e do transcendente, do ameaçador e do auspicioso, do medo e da esperança, do indivíduo e da comunida-de, do diferente e do indiferente, e da luta constante para procurar novas correlações de força entre os diferentes componentes do todo. Da contemporaneidade passou a fazer parte a reinvenção permanente do passado e a aspiração sempre incompleta do futuro de que são feitas as tarefas que concebemos como “o presente”. Agentes sociais tão diversos como os artistas e os povos indí-genas foram mostrando que o presente é um palimpsesto, que o passado nunca passa ou nunca passa totalmente e que olhar para trás e refletir a partir das experiências acumuladas pode ser uma forma eficaz de encarar o futuro.

É certo que durante muito tempo as epis-temologias do Norte procuraram suprimir, desvalorizar ou invisibilizar essa imensa riqueza, mas progressivamente e à medida que as epistemologias do Sul foram fazendo o seu caminho, foi-se tornando mais fácil adotar uma conceção ampla de contempo-raneidade. Como se deduz do anterior, esta conceção está bem consciente das ideologias dominantes que a alimentam e dos modos modernos de dominação económica, social e política, sobretudo capitalismo, colonia-lismo e patriarcado. Ser contemporâneo é estar consciente de que a grande parte da população do mundo é contemporânea da nossa contemporaneidade pelo modo como tem de a sofrer ou suportar.

NESTA AMPLA CONSTELAÇÃO DE CON-TEMPORANEIDADES o novo coronavírus assume atualmente um valor hípercontem-porâneo. Sermos contemporâneos do vírus significa que não podemos entender o que somos sem entender o vírus. O modo como o vírus emerge, se difunde, nos ameaça e condiciona as nossas vidas é bem fruto do mesmo tempo que nos faz ser o que somos. São as nossas interações com animais e so-bretudo com animais selvagens que o tornam possível. Espalha-se no mundo à velocidade da globalização. Sabe monopolizar a atenção dos media como o melhor perito de comu-nicação social. Descobriu os nossos hábitos e a proximidade social em que vivemos uns com os outros para melhor nos atingir. Gosta do ar poluído com que fomos infestando as nossas cidades. Aprendeu connosco a técnica dos drones e, tal como estes, é insidioso e im-previsível onde e quando ataca. Comporta-se como o 1% mais rico da população mundial, um senhor todo poderoso que não depende dos Estados, não conhece fronteiras, nem limites éticos. Deixa as leis e as convenções para os mortais humanos, hoje mais mortais que antes precisamente devido à sua inde-sejada presença. É tão pouco democrático quanto a sociedade que permite tal concen-tração de riqueza. Ao contrário do que pare-ce, não ataca indiscriminadamente. Prefere as populações empobrecidas, vítimas de fome, de falta de cuidados médicos, de condições de habitabilidade, de proteção no trabalho, de discriminação sexual ou etnorracial.

Ser indesejado não o torna menos contem-porâneo. A monstruosidade do que repudia-mos e o medo que ela nos causa é tão nossa contemporânea quanto a utopia com que nos confortamos e a esperança que ela nos dá. A contemporaneidade é uma totalidade heterogénea, internamente desigual e combi-nada. Considerar o vírus como parte da nossa contemporaneidade implica ter presente que, se nos quisermos ver livres do vírus, teremos de abandonar parte do que mais nos seduz no modo como vivemos. Teremos de alterar muitas das práticas, dos hábitos, das leal-dades e das fruições a que estamos acostu-mados e que estão diretamente vinculados à recorrente emergência e crescente letalidade do vírus. Ou seja, teremos de alterar a matriz da contemporaneidade, sendo certo que desta fazem parte as populações que mais sofrem com as formas dominantes da contempora-neidade.

A hipercontemporaneidade do novo vírus assenta em algumas características parti-cularmente instigantes. Primeiro, o novo vírus interpela tão profundamente a nossa contemporaneidade que é legítimo ver nele uma mega fratura abissal, um novo Muro de Berlim. Um muro que desta vez não separa dois sistemas sociais e políticos, mas antes dois tempos: o antes e o depois do coronaví-rus. Saber se as mudanças serão para melhor ou para pior é questão em aberto. Mas serão certamente significativas. O curto período do

Decameron (Pasolini, 1971) "o novo vírus dramatiza a medida em que o passado arcaico faz parte do nosso presente, tal como defendeu Pier Paolo Pasolini "

Sermos contemporâneos do vírus significa que não podemos entender o que somos sem entender o vírus. O modo como o vírus emerge, se difunde, nos ameaça e condiciona as nossas vidas é bem fruto do mesmo tempo que nos faz ser o que somos

Implica ter presente que, se nos quisermos ver livres do vírus, teremos de abandonar parte do que mais nos seduz no modo como vivemos