O CORPO QUE NÃO AGUENTA MAIS - David Lapoujade

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O CORPO QUE N ÃO AGUENTA MAIS David Lapoujade “Naquele momento, na impossibilidade material de ir mais longe, eu teria sido obrigado a deter-me, sem dúvida, pronto, a rigor, para voltar a partir em sentido inverso, imediatamente ou muito mais tarde, quando, de algum modo, eu me desatarraxasse de mim mesmo depois de ter-me bloqueado. Isso teria constituído uma experiência rica em interesse e novidade, se é verdade, como fui levado a dizer sem que pudesse fazê-lo de outro modo, que mesmo o mais pálido caminho comporta um andamento totalmente distinto, uma outra palidez, tanto ao retornar quanto ao ir, e inversamente. Inútil tergiversar, sei um monte de coisas”.  Beckett Evidentemente, a questão “que pode o corpo?”, se refere não à atividade do corpo, mas à sua potência. É uma questão estranha, em certo sentido, pois aquilo que pode o corpo se mede geralmente pela sua maior ou menor atividade, pelos atos que é capaz. E, todavia, parece que a questão visa outra coisa: ela visa a potência do corpo em si mesma, independente do ato pelo qual se exprime. Mas, podemos interrogar a potência do corpo sem invocar o ato que exprimirá esta potência? Como não examinar a questão a partir da distinção aristotélica clássica entre a potência e o ato? Segundo esta concepção, a potência é concebida como um ato virtual ou possível , e o ato, por sua vez, é concebido como uma potência atualizada, quer dizer, como uma forma determinada . Como se sabe, esta primeira distinção recorta uma outra distinção fundamental de Aristóteles: a distinção entre a matéria e a forma, a matéria como simples potência e a forma como ato puro. Mas isto quer dizer que o ato não tem nenhuma eficácia por si mesmo, pois não passa de uma forma. É necessário, portanto, um terceiro termo que aja a forma na matéria: tal termo será o agente. É

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O CORPO QUE NÃO AGUENTA MAIS

David Lapoujade 

“Naquele momento, na impossibilidade material de ir mais longe,

eu teria sido obrigado a deter-me, sem dúvida, pronto, a rigor, para

voltar a partir em sentido inverso, imediatamente ou muito mais

tarde, quando, de algum modo, eu me desatarraxasse de mim

mesmo depois de ter-me bloqueado. Isso teria constituído uma

experiência rica em interesse e novidade, se é verdade, como fui

levado a dizer sem que pudesse fazê-lo de outro modo, quemesmo o mais pálido caminho comporta um andamento

totalmente distinto, uma outra palidez, tanto ao retornar quanto ao

ir, e inversamente. Inútil tergiversar, sei um monte de coisas”. 

Beckett

Evidentemente, a questão “que pode o corpo?”, se refere não à atividade

do corpo, mas à sua potência. É uma questão estranha, em certo sentido, pois

aquilo que pode o corpo se mede geralmente pela sua maior ou menor atividade,

pelos atos que é capaz. E, todavia, parece que a questão visa outra coisa: ela

visa a potência do corpo em si mesma, independente do ato pelo qual se exprime.

Mas, podemos interrogar a potência do corpo sem invocar o ato que exprimirá

esta potência? Como não examinar a questão a partir da distinção aristotélica

clássica entre a potência e o ato? Segundo esta concepção, a potência é

concebida como um ato virtual ou possível , e o ato, por sua vez, é concebido

como uma potência atualizada, quer dizer, como uma forma determinada . Como

se sabe, esta primeira distinção recorta uma outra distinção fundamental de

Aristóteles: a distinção entre a matéria e a forma, a matéria como simples

potência e a forma como ato puro. Mas isto quer dizer que o ato não tem

nenhuma eficácia por si mesmo, pois não passa de uma forma. É necessário,

portanto, um terceiro termo que aja a forma na matéria: tal termo será o agente. É

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o que ilustra o exemplo clássico do artesão, do oleiro que age a forma do vaso na

matéria da argila, ou o do atleta, que age o ato da corrida em um corpo que

possui a potência. Consequentemente, é depois do ato, ou melhor, depois do

agente, que a potência é revelada como tal. Neste sentido, a questão sobre a

potencial do corpo parece inseparável de uma resposta que afirma de direito a

superioridade do ato – e, portanto, do agente – em relação à potência do corpo.

Todavia, em oposição a esta concepção, há um Fato que, “nós modernos”,

devemos sempre nos lembrar, e que também pode ser uma resposta. Esse fato, é

que o corpo não aguenta mais. Não se trata nem de um postulado nem de uma

tese, mas de um fato. Basta considerar, por exemplo, o domínio da arte hoje em

dia, onde se multiplicam as posturas elementares: sentado, esticado, inclinado,imobilizado, os dançarinos que escorregam, os corpos que caem ou se torcem,

que se mutilam, que gritam, os corpos desacelerados, adormecidos. 1 

Somos como personagens de Beckett, para os quais já é difícil andar de

bicicleta, depois, difícil de andar, depois, difícil de simplesmente se arrastar, e

depois ainda, de permanecer sentado. Como não se mexer, ou então, como se

mexer só um pouquinho para não ter, se possível, que mexer durante um longo

tempo? É, sem dúvida, o problema central dos personagens de Beckett, uma dasgrandes obras sobre os movimentos dos corpos, movimentos de si e entre os

corpos. Mesmo nas situações cada vez mais elementares, que exigem cada vez

menos esforço, o corpo não aguenta mais. Tudo se passa como se ele não

pudesse mais agir, não pudesse mais responder ao ato da forma, como se o

agente não tivesse mais controle sobre ele. Os corpos não se formam mais, mas

cedem progressivamente a toda sorte de deformações. Eles não conseguem mais

ficar em pé nem ser atléticos. Eles serpenteiam, se arrastam. Eles gritam,gemem, se agitam em todas as direções, mas não são mais agidos por atos ou

formas. É como se tocássemos a própria definição do corpo: o corpo é aquele que

não aguenta mais, aquele que não se ergue mais.

De fato, embora aquilo que designamos sob o nome de Fato, na ausência

de um nome melhor, pareça “moderno”, é evidente que é desde sempre que o

corpo não aguenta mais. Heidegger dizia: “aquilo que mais dá o que pensar é que

nós ainda não pensamos”, para dizer que é desde sempre, e para sempr e, que

nós ainda não pensamos. 2 Ele via aí uma das condições do pensamento. Da

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mesma maneira, no momento em que se descobre que não se aguenta mais, se

descobre, ao mesmo tempo, que é desde sempre e para sempre.

Parodiando Heidegger, seria preciso dizer aqui: aquilo que no corpo mais

se faz sentir (mais dá o que sentir), é que nós não agüentamos mais. É a

condição mesma do corpo. Não irá mais erguer-se. Dito de outra maneira, o corpo 

não pode erguer-se de sua condição de ser corpo. Nestas circunstancias, colocar

a questão: “que pode o corpo?”, quando sabemos desde sempre que não

aguentamos mais, parece um pouco deslocada. Esta afinidade entre o “Eu não

aguento mais” do corpo e o “Nós ainda não pensamos” do pensamento, é

implicitamente sublinhada por Deleuze quando diz, por exemplo, que “pensar é

apreender aquilo que pode o corpo não pensante, sua capacidade, suas atitudesou posturas”. E acrescenta: “O corpo não está jamais no presente; ele contém o

antes e o depois, o cansaço, a espera. O cansaço, a espera, mesmo o desespero,

são as atitudes do corpo”. 3 A impotência (L’impouvoir ) do pensamento é como o

avesso da impotência do corpo. Seria como as duas fórmulas nas quais se

misturam Espinosa e uma inspiração heideggeriana: “nós não sabemos o que

pode o corpo” e “o corpo não aguenta mais”.

Pois o campo filosófico não é, evidentemente, poupado por estedesmoronamento do corpo: vejam as descrições de Foucault, os corpos doentes

e dissecados do Nascimento da clínica , ou a descrição do corpo supliciado de

Damien que abre Vigiar e punir . Vejam as descrições do corpo masoquista ou os

corpos deformados das pinturas de Bacon, tal como as desc reve Deleuze: “... as

deformações de Bacon são raramente compelidas ou forcadas, não são torturas,

apesar do que se diga: ao contrário, são as posturas mais naturais de um corpo

que se reagrupa em função da força simples que se exerce sobre ele: vontade dedormir, de vomitar, de se revirar, de ficar sentado o maior tempo possível... etc.” 4 

Mesmo em suas funções mais elementares, parece que, de agora em

diante, o corpo só pode aparecer diminuído, deformado, no limite da impotência.

Tudo se passa como se o corpo não tivesse mais agente para fazê-lo ficar direito,

organizado ou ativo. Não se pode falar aqui da potência do corpo justamente

porque o corpo não aguenta mais. A menos que se trate de outra coisa: será

preciso, talvez, aceder a outra definição da potência? Pois é evidente que todos

estes corpos são dotados de uma estranha potência, mesmo no esmagamento,

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uma potência sem dúvida superior àquela da atividade do agente. Talvez, então,

seja preciso conceber uma potência que não se define mais em função do ato

final que a exprime, uma concepção não-aristotélica da potência. E isto significa

encontrar uma potência própria ao corpo, uma potência liberada do ato.

“Eles me mataram mesmo, ao me deixarem ouvir que, não mais

podendo, eu não teria outro recurso senão desaparecer. Não mais

podendo! Seria preciso um segundo para fazer-me suportar, após

o quê eu manteria por toda a eternidade os dedos no nariz. Que

foram eles buscar como golpes duros”.

Beckett

Mas antes de determinar essa nova potência, uma primeira questão se

impõe: o que o corpo não aguenta mais (o que é que o corpo não aguenta mais)?

Qual é essa impotência quase-imemorial que parece confundir-se com sua

própria condição? A resposta é dupla. Primeiro, ele não aguenta mais aquilo a

que o submetemos do exterior, formas que o agem do exterior. Essas formas são,

evidentemente, as do adestramento e da disciplina. As páginas essenciais de

Nietzsche, em A genealogia da moral, ou as descrições de Foucault, em Vigiar e punir , são decisivas a este respeito: trata-se de formar corpos e de engendrar um

agente que submeta o corpo a uma autodisciplina. Em Nietzsche, é um corpo

animal (que é preciso adestrar) e, em Foucault, um corpo anômalo (que é preciso

disciplinar). E, através das páginas esplêndidas de Nietzsche e Foucault, é todo

um sistema da crueldade que se impõe aos corpos. A crueldade não se confunde

como a abominação da tortura, se bem que ambas interroguem um aspecto

profundo do corpo: sua potência de resistir, sua resistência ao cansaço e ao

sofrimento. Ambas questionam: o que o corpo pode suportar?

E se as páginas consagradas ao sofrimento dos corpos parecem

atravessadas por uma força cômica, é porque, talvez, façam sentir a discreta

alegria de um corpo que possui, pelo menos, esta potência de resistir. Talvez

reencontremos este aspecto na descrição que Deleuze faz da vergonha: “A idéia

de que apesar de tudo o horror tem um fim vem de que a lama molecular é o

último estado do corpo e de que o espírito o contempla com uma certa atração,

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porque nele encontra a segurança de um último nível que não se pode

ultrapassar”. 5 

Diremo-nos, talvez, que não aguentar mais é o signo de que não

resistiremos por muito mais tempo. Ao contrário, se como dissemos, é desde

sempre e para sempre que não aguentamos mais, se é desde sempre e para

sempre que resistimos, então esta resistência é um profundo fortalecimento a

constante de um limite ou de um “último nível”.

Todavia, não é menos evidente que o corpo não aguenta mais também

aquilo a que se submete de dentro. Pois estas mesmas formas passam para

dentro, se impõem ao dentro desde que se cria um agente para as agir. Neste

instante, a relação muda a natureza; ela deixa de questionar a resistência docorpo no adestramento e o transforma em assujeitamento. Como diz Nietzsche,

ela lhe cria uma alma: “Todos os instintos que não se liberam para o exterior, se

voltam para dentro  – é o que chamamos de interiorização do homem: eis a origem

do que chamaremos mais tarde de sua “alma”. Todo este mundo do interior, tão

frágil originariamente, tendido entre duas peles, se desenvolveu, se amplificou,

adquirindo profundidade, largura, altura, na medida em que se impedia o homem

de se liberar para o exterior”.6

 Vemos precisamente o que ocorre: é entravando a potência dos instintos,

voltando-os contra eles mesmos, que se pode criar uma alma que se tornará o

agente dessa interiorização. Mas se Nietzsche mostra como se cria uma alma 

para o corpo, Deleuze e Guattari mostram, inversamente, como se cria um corpo 

para esta alma. Seguindo uma inspiração de Artaud, eles sublinham justamente

que o agente constrói no corpo um organismo que pode subordiná-lo: “O juízo de

Deus, o sistema do juízo de Deus, o sistema teológico, é precisamente aoperação Daquele que faz um organismo, uma organização de órgãos que se

chama organismo [...]. Você será organizado, você será um organismo, articulará

seu corpo  – senão você será um depravado [...]. Você será sujeito e, como tal,

fixado, sujeito de enunciação rebatido sobre um sujeito de enunciado  – senão

você será apenas um vagabundo”. 7 

Reencontramos aqui dois domínios onde a potência do corpo está

submetida aos atos do agente que nele se forma: organização e subjetivação. É

na sua resistência a estas formas vindas de fora, e que se impõe ao dentro para

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organizá-lo e lhe impor uma “alma”, que o corpo exprime uma potência própria. O

corpo sofre de um “sujeito” que o age – que o organiza e o subjetiva. Em outros

termos, trata-se não apenas de tornar doente nosso corpo, mas de nos tornar

doentes dessa doença, como se doença devesse se redobrar em nós. Assim é o

sistema do juízo de Deus, seguindo a fórmula que Deleuze e Guattari emprestam

de Artaud. Pois a verdadeira doença não é estar doente, mas, na cura, possuir

remédios que pertencem ainda à doença. 8 

Que o corpo se organize e se subjetive sob a autoridade do sistema do

  juízo, Nietzsche o mostra quando descreve a maneira como o padre judeu, e

depois o padre cristão, transformaram a dor em doença, e a doença em mal.

Transformar a doença em mal é o seu remédio, mas um remédio que pertence àdoença, que a reforça para torná-la coextensiva à vida. A religião tem por função

essencial fazer da doença a condição da vida . Como sublinha Bárbara Stiegler,

em um profundo estudo sobre Nietzsche e a biologia, a religião “interpreta a dor

como mal e nos torna doentes de nosso sofrimento. O padre responde àquele que

sofre: tu sofres porque tu és culpado (tu te sentes mal porque o mal está em ti) e

tu deves continuar a sofrer para te punires (por teres este mal em ti)”. 9 

A invenção da culpa nos Cristãos tem por objetivo tornar o doente aindamais doente. Tudo é pensado no cristianismo a partir do corpo mártir que toma

sobre si os sofrimentos sem nenhuma reação nem exteriorização, mesmo que

adiada. Desde então, o sofrimento se torna sacerdócio, missão, fardo. O cristo é o

homem doente, cercado de doentes compadecidos. 10 É a revelação tardia

conhecida pelo Cristo de D. H. Lawrence diante da sacerdotisa egípcia: “Eu pedia

a todos que me servissem com o cadáver de seu amor. E no final ofereci-lhes

apenas o cadáver do meu amor. Este é meu corpo... tomai e comei... meucadáver... Fui morto, e me entreguei à morte... “11 Da cruz como mesa de

dissecação. Tudo se passa como se nem Judas nem Roma tivessem matado

Jesus, mas sim seus primeiros fiéis, quer dizer, em suma, o cristianismo vindouro.

Jesus é a primeira vítima do sistema do juízo cristão. Tudo culmina, portanto,

segundo a expressão de Lawrence, em uma “doença da morte”.

“Mas a época da qual falo acabou com esta vida ativa, não me

agito nem me agitarei jamais, a menos que seja sob o impulso de

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um terceiro. Com efeito, do grande viajante que fui, de joelhos nos

últimos tempos, depois arrastando e rolando, resta tão-somente o

tronco (em miserável estado) encimado pela cabeça que se

conhece, eis à parte de mim cuja descrição eu apreendi e retivemelhor. Embora eu não ande exatamente na linha, a polícia me

tolera”. 

Beckett

Parece-me, portanto, que o corpo, longe do sistema da crueldade próprio

ao adestramento, só pode escolher entre uma doença (que assume a forma do

ressentimento) 12 e uma anestesia que é seu inverso, a “narcose” de que fala

Nietzsche a respeito do cristianismo. A vida como interminável neurastenia,

quando a felicidade se torna “essencialmente narcose, engorda, repouso, paz,

“sabat”, alívio da alma e relaxamento do corpo, ou seja, passividade.”13 

Conservar e redobrar o sofrimento na doença, ou então se tornar

insensível, “anestésico”. Tornar a vida doente ou desvitalizá-la: eis as alternativas

que, nos dois casos, retiram toda potência do corpo e a transferem ao agente, a

uma “alma” que não passa, finalmente, de um sintoma dessa doença durável. E

frequentemente as duas se associam; é ao mesmo tempo em que se está doente

da vida e insensível a seus próprios sofrimentos. E é justamente este o paradoxo:

tornar a vida doente para separá-la do sofrimento. Todo o problema consiste,

então, em encontrar uma saúde no sofrimento: ser sensível ao sofrimento do

corpo sem adoecer. Parece-me ser a mesma questão em Nietzsche e em

Deleuze: que o sofrimento não seja mais uma doença, que ele se torne um meio

para a saúde (não médica) e para a salvação (não-teológica). Para isso, é preciso

tornar a partir da questão do sofrimento e perguntar mais uma vez: que pode o

corpo? O que é o corpo que sofre?

A primeira coisa, é que o sofrimento não é um estado particular do corpo.

Sofrer é a condição primeira do corpo. Sofrer é a condição de estar exposto ao 

fora. Um corpo sofre de sua exposição à novidade do fora, ou seja, ele sofre de

ser afetado. Como diz Deleuze, um corpo não cessa de ser submetido à erupção

contínua de encontros, encontro com a luz, com o oxigênio, com os alimentos,

com os sons e palavras cortantes etc. Um corpo é primeiramente encontro com

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outros corpos. Compreende-se porque Deleuze define a sensação como uma

síntese passiva pela qual o corpo encontra forças agindo sobre ele. É a própria

diferença, o desigual ou o desequilíbrio da própria diferença, a repartição de

singularidades no seio de um corpo que mal as suporta, que cria seu equilíbrio a

partir deste Desigual. Para retomar os termos de Nietzsche, também podemos

dizer que o corpo é “originariamente o sofrimento da impressão e o

reconhecimento de uma potência estrangeira.” 14 

E, como lembra Bárbara Stiegler, Nietzsche estudará de perto os biólogos

de sua época que definiam a vida como irritação ou excitação, quer dizer, não

como espontaneamente ativa, mas originariamente passiva. Pode-se dizer que as

filosofias de Nietzsche e Deleuze são filosofias da alegria, da afirmação, mas issoé inseparável de uma patologia do corpo, do afrontamento de um fora que

assimilamos e do qual nos tornamos senhores (Nietzsche) ou que tentamos

igualar envolvendo-o (Deleuze). Há uma patologia originária, uma passividade

primeira e fundamental do corpo.

Dito de outra forma, a questão: que pode o corpo? só é possível e só faz

sentido a partir desse sofrimento primeiro. O cristianismo sabe bem quem nos

torna doentes de não agir este sofrimento. Pois a questão é: que pode o corpo emface desse sofrimento que é sua própria condição? Ou se preferirmos: como um

corpo devém ativo? A primeira condição, como já vimos, consiste em sentir este

sofrimento, o “Eu sinto” que é um “Eu não aguento mais”, pois esta exposição ao

fora é insuportável. O corpo deve primeiro suportar o insuportável, viver o inviável.

É o sentido do corpo-sem-órgãos em Deleuze: que o corpo passe por estados de

torção, de dobramentos que um organismo desenvolvido não suportaria. 15 Todos

os textos sobre o Corpo-sem-órgãos são, no fundo, textos de embriologia. Há emDeleuze uma verdadeira embriologia transcedental : o corpo como ovo. 16 Como

suportar, então, o insuportável, como viver o inviável (quer dizer, como criar para

si um Corpo-sem-órgãos?), o que significa, evidentemente, uma outra maneira de

perguntar: que pode o corpo?

A resposta é dupla.

Desde já, é evidente que o corpo deve montar mecanismos de defesa. É o

nascimento da dor  em Nietzsche. 17 Nós interpretamos defensivamente estas

exposições como dores. “A excitação mais violenta não é em si mesma uma dor:

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mas neste movimento que sentimos, o centro nervoso projeta a dor até o lugar da

excitação. Esta projeção é uma medida defensiva e de projeção.”4 

Nosso corpo se protege contra os ferimentos que sofre, tanto pela fuga,

pela insensibilidade, como pela imobilização (fingir-se de morto), ou seja, por

processos de fechamento, de enclausuramento. O corpo não pode mais suportar

certas exposições (tornar-se imperceptível, em Deleuze, participa desses

mecanismos de defesa). De certa maneira, reencontramos aqui a resistência ou o

embrutecimento que o corpo manifesta contra os mecanismos de adestramento.

Mas estes inseparáveis processos de defesa contra o sofrimento devem ser

inseparáveis de uma exposição ao sofrimento, que aumenta a potência de agir

dos corpos. Nietzsche diz que sofremos excitações. Mas como diz BárbaraStiegler, “as excitações de que fala Nietzsche não são objetos que controlamos,

que nos deixam indenes. São ferimentos que nos afetam no mais fundo de nós

mesmos e que nos dão nossa potência de assimilação.” Ela cita, em seguida, um

texto muito importante de Nietzsche: “Crescimento da potência lá onde houve

abundância de feridas mais sutis, através das quais aumenta a necessidade de

apropriação”. 19 

A apropriação vem do fato de que o corpo não suporta a ferida, de que elenão aguenta mais. A potência do corpo (aquilo que ele pode) se mede pela sua

exposição aos sofrimentos ou às feridas. Mas Nietzsche diz: as feridas são as 

mais sutis. Isto quer dizer que a exposição do corpo se faz no interior dos

mecanismos de defesa... e que o protegem das feridas mais grosseiras. Sutil,

aqui, não suficientemente para que eu tenha acesso à profundeza e à violência de

uma ferida sutil – ou, inversamente, que eu tenha acesso à sutileza que esconde

uma ferida grosseira. “Você é muito grosseiro a meu ver: você não sabedesaparecer vivendo pequenas experiências”. 20 

Aquele que vê na ferida sutil algo sem importância é precisamente aquele

que já não sente nada, “que erigiu um sistema de defesa que o impede de

apreender a variedade de afecções, reduzindo-as a uma resposta uniforme.” 21 É

aquele que nos envia sempre às feridas mais grosseiras, ironizando a sutileza de

nossas feridas, a nossa enorme sensibilidade ou delicadeza, dizendo que não é

grande coisa, que há coisas mais sérias na vida. É aí justamente que se exerce a

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força dos fracos, daqueles que sentem o menos possível, pois já se separaram de

sua sensibilidade, ainda piedosos.

Aqui é preciso seguir o que diz Bárbara Stiegler sobre o paradoxo da

fraqueza do forte. O que faz a fraqueza do forte é que ele se esforça para

perseverar, e mesmo aumentar, sua vulnerabilidade, controlando seu grau de

exposição às feridas do fora; se protegendo das agressões mais grosseiras, ele

pode se abrir às feridas mais sutis. “Se defender do que é estrangeiro, não deixar 

agir a excitação como uma força formadora, lhe opor uma pele dura, um

sentimento hostil: para a maioria essa é uma necessidade vital para sua

conservação. Mas no domínio moral, a livre amplitude da vista atinge seu limite lá

onde não sentimos mais a excitação estrangeira como uma excitação estimulante ,mas apenas como um prejuízo.” ²² 

E este movimento se encontra em Deleuze, talvez acrescido: seu

estoicismo exige que estejamos à altura do acontecimento. É preciso igualar o

desigual da diferença (o que não quer dizer igualá-lo), igualar o que nos acontece.

É esta toda a questão: como estar à altura do mais sutil ou do mais baixo, à altura

do protoplasma ou do embrião, estar à altura de seu cansaço ao invés de

ultrapassá-lo em um endurecimento voluntarista, ou seja, estar à altura do Corpo-sem-órgãos, embrião ou larva.

Ser forte consiste primeiro em estar à altura de sua fraqueza. “Só se cavam

espaços, só se precipitam ou desaceleram tempos à custa de torções e

deslocamentos que mobilizam e comprometem todo o corpo... Portanto, há sem

dúvida atores e sujeitos, mas são larvas, porque são os únicos capazes de

suportar os traçados, os deslizamentos e rotações... E é verdade que toda Idéia

nos faz larvas... As larvas trazem as Idéias em sua carne...”²³ Não se trata maisde se fazer sujeito ou “agente”, mas, ao contrário, de re-devir “larva” seguindo

uma estranha involução criadora reclamada por Deleuze. Nos encontramos aqui

diante de um corpo sem agente.

Não saímos ainda do paradoxo inicial: de um lado, um “Eu não aguento

mais” (tudo aquilo de que devo me defender, daquilo que meu corpo sofre e me

faz sofrer), do outro, um “Eu sinto (no sentido em que nos abrimos a tudo aquilo

que advém sob o regime do sutil). Se fechar para se abrir é o paradoxo da

prudência, enunciado por Nietzsche e Deleuze. Mas este paradoxo é

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primeiramente o paradoxo da relação entre nossa receptividade e nossa

espontaneidade que, juntas e inseparavelmente, testemunham aquilo que pode o

corpo. É o próprio daqueles a quem Nietzsche chama de homens superiores: “Os

homens superiores são os que mais sofrem com a existência  – mas possuem

também as maiores forças de resistência.”   24 

O “eu não aguento mais” não é, portanto, o signo de uma fraqueza da

potência, mas exprime, ao contrário, a potência de resistir do corpo. Cair, ficar

deitado, bambolear, rastejar são atos de resistência. É a razão pela qual toda

doença do corpo é, ao mesmo tempo, a doença de ser agido, a doença de ter

uma alma-sujeito, não necessariamente a nossa, que age nosso corpo e o

submete às suas formas.

“Ei, é uma idéia, mais uma, talvez à golpes de mutilações, eu

quase chegaria, daqui a uma quinzena de gerações de homens, a

me figurar entre os passantes.” 

Beckett

Tradução: Tiago Seixas Themudo

Revisão: Daniel Lins

As citações de Beckett foram gentilmente traduzidas por Luiz Orlandi.

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Referências bibliográficas

1 Ver as descrições de C. JACQUET em Le corps, PUF, 2001, sobretudo as

descrições do trabalho de performance corporal de Abramovic.

² Qu’appelle-t-on penser(int), Paris, PUF, p.22.

³ DELEUZE, Gilles. L’image-temps. Paris, Minuit, cap.8, p.246.4 DELEUZE. Francis Bacon. Logique de la sensation. Paris: Éditions de la

Difference, 1981, p.41.5 DELEUZE, G. Crítica e clínica. São Paulo, Ed. 34, 1997, p.140.

6 NIETZSCHE, F. A Généalogie de la morale , II - 16.7 DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs, vol 3, São Paulo, Ed. 34, 1996, p. 21-

22. Deleuze e Guattari invocam uma terceira forma de assujeitamento do corpo: a

interpretação.8 É o que já dizia Nietzsche quando analisava o caso Sócrates em O crepúsculo 

dos ídolos, “O problema de Sócrates”, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000, p.

23, “Imaginar a possibilidade de escapar da décadance  através do

estabelecimento de uma guerra contra ela é já um modo de iludir a si mesmocriado pelos filósofos e moralistas. O escape está além de suas forças: o que eles

escolhem como meio, como salvação, não é senão uma nova expressão da

décadance.”  9 Bárbara Stiegler. Nietzsche et la biologie. Paris, PUF, col. “Philosophies”, 2001,

p.117. As análises que fazemos de Nietzsche, assim como certas citações que

utilizamos, devem muito a esta admirável obra.10

D. H. LAWRENCEL. O homem que morreu, In: Apocalipse, Cia. das letras, SãoPaulo, 1990. As palavras do Cristo de Lawrence sobre seus discípulos: “Tentei

compeli-los a viver, por isso eles me compeliram a morrer. É sempre este o efeito

da compulsão.” (p. 142) 11 D. H. LAWRENCEL. Idem., p. 166-168.12 Cf. A importante frase de Nietzsche em Ecce homo, - 6 : “Estar doente é já uma

espécie de ressentimento”.13 La Genealogia de la morae, I, - 10.14 STIEGLER, Stiegler, idem., p.36.

5/6/2018 O CORPO QUE NÃO AGUENTA MAIS - David Lapoujade - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/o-corpo-que-nao-aguenta-mais-david-lapoujade 13/13

 

15 Cf. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Graal, Rio de

Janeiro, 1988, cap. IV, p. 207. “As proezas e o destino do embrião consistem em

viver o inviável como tal, a amplitude de movimentos forçados, por exemplo, que

quebrariam todo o esqueleto ou romperiam os ligamentos.16 Neste sentido, a descoberta do corpo-sem-órgãos já está presente nos textos

sobre o embrião em Diferença e repetição, especialmente nas páginas 283-284

da edição francesa.17 Sobre este ponto, STIEGLER, p. 35-36, e FRANK, Didier a importante análise

da cócegas em Nietzsche, Nietzsche et l’ombre de Dieu. Paris, PUF, 1998, p.202-

207.

18 STIEGLER. Idem. IBID.19 Idem. p. 72. Trata-se do FP 1883, 7, [95].20 Fragmentos póstumos, vol. IX 1882-1884, 5[1] 253.21 STIEGLER. Idem., p.105.22 Citado por Bárbara Stiegler, p. 40. Trata-se do FP 1883, 7 [195].23 Diferença e repetição, IV, p. 211.24 Fragmentos póstumos, vol. X, p. 67.

Publicado em:

Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo / organizadores Daniel Lins e Sylvio Gadelha.  – Rio de

Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria da Cultura e Desporto, 2002. P.81-90.