O CORPO QUE NÃO AGUENTA MAIS - David Lapoujade
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O CORPO QUE NÃO AGUENTA MAIS
David Lapoujade
“Naquele momento, na impossibilidade material de ir mais longe,
eu teria sido obrigado a deter-me, sem dúvida, pronto, a rigor, para
voltar a partir em sentido inverso, imediatamente ou muito mais
tarde, quando, de algum modo, eu me desatarraxasse de mim
mesmo depois de ter-me bloqueado. Isso teria constituído uma
experiência rica em interesse e novidade, se é verdade, como fui
levado a dizer sem que pudesse fazê-lo de outro modo, quemesmo o mais pálido caminho comporta um andamento
totalmente distinto, uma outra palidez, tanto ao retornar quanto ao
ir, e inversamente. Inútil tergiversar, sei um monte de coisas”.
Beckett
Evidentemente, a questão “que pode o corpo?”, se refere não à atividade
do corpo, mas à sua potência. É uma questão estranha, em certo sentido, pois
aquilo que pode o corpo se mede geralmente pela sua maior ou menor atividade,
pelos atos que é capaz. E, todavia, parece que a questão visa outra coisa: ela
visa a potência do corpo em si mesma, independente do ato pelo qual se exprime.
Mas, podemos interrogar a potência do corpo sem invocar o ato que exprimirá
esta potência? Como não examinar a questão a partir da distinção aristotélica
clássica entre a potência e o ato? Segundo esta concepção, a potência é
concebida como um ato virtual ou possível , e o ato, por sua vez, é concebido
como uma potência atualizada, quer dizer, como uma forma determinada . Como
se sabe, esta primeira distinção recorta uma outra distinção fundamental de
Aristóteles: a distinção entre a matéria e a forma, a matéria como simples
potência e a forma como ato puro. Mas isto quer dizer que o ato não tem
nenhuma eficácia por si mesmo, pois não passa de uma forma. É necessário,
portanto, um terceiro termo que aja a forma na matéria: tal termo será o agente. É
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o que ilustra o exemplo clássico do artesão, do oleiro que age a forma do vaso na
matéria da argila, ou o do atleta, que age o ato da corrida em um corpo que
possui a potência. Consequentemente, é depois do ato, ou melhor, depois do
agente, que a potência é revelada como tal. Neste sentido, a questão sobre a
potencial do corpo parece inseparável de uma resposta que afirma de direito a
superioridade do ato – e, portanto, do agente – em relação à potência do corpo.
Todavia, em oposição a esta concepção, há um Fato que, “nós modernos”,
devemos sempre nos lembrar, e que também pode ser uma resposta. Esse fato, é
que o corpo não aguenta mais. Não se trata nem de um postulado nem de uma
tese, mas de um fato. Basta considerar, por exemplo, o domínio da arte hoje em
dia, onde se multiplicam as posturas elementares: sentado, esticado, inclinado,imobilizado, os dançarinos que escorregam, os corpos que caem ou se torcem,
que se mutilam, que gritam, os corpos desacelerados, adormecidos. 1
Somos como personagens de Beckett, para os quais já é difícil andar de
bicicleta, depois, difícil de andar, depois, difícil de simplesmente se arrastar, e
depois ainda, de permanecer sentado. Como não se mexer, ou então, como se
mexer só um pouquinho para não ter, se possível, que mexer durante um longo
tempo? É, sem dúvida, o problema central dos personagens de Beckett, uma dasgrandes obras sobre os movimentos dos corpos, movimentos de si e entre os
corpos. Mesmo nas situações cada vez mais elementares, que exigem cada vez
menos esforço, o corpo não aguenta mais. Tudo se passa como se ele não
pudesse mais agir, não pudesse mais responder ao ato da forma, como se o
agente não tivesse mais controle sobre ele. Os corpos não se formam mais, mas
cedem progressivamente a toda sorte de deformações. Eles não conseguem mais
ficar em pé nem ser atléticos. Eles serpenteiam, se arrastam. Eles gritam,gemem, se agitam em todas as direções, mas não são mais agidos por atos ou
formas. É como se tocássemos a própria definição do corpo: o corpo é aquele que
não aguenta mais, aquele que não se ergue mais.
De fato, embora aquilo que designamos sob o nome de Fato, na ausência
de um nome melhor, pareça “moderno”, é evidente que é desde sempre que o
corpo não aguenta mais. Heidegger dizia: “aquilo que mais dá o que pensar é que
nós ainda não pensamos”, para dizer que é desde sempre, e para sempr e, que
nós ainda não pensamos. 2 Ele via aí uma das condições do pensamento. Da
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mesma maneira, no momento em que se descobre que não se aguenta mais, se
descobre, ao mesmo tempo, que é desde sempre e para sempre.
Parodiando Heidegger, seria preciso dizer aqui: aquilo que no corpo mais
se faz sentir (mais dá o que sentir), é que nós não agüentamos mais. É a
condição mesma do corpo. Não irá mais erguer-se. Dito de outra maneira, o corpo
não pode erguer-se de sua condição de ser corpo. Nestas circunstancias, colocar
a questão: “que pode o corpo?”, quando sabemos desde sempre que não
aguentamos mais, parece um pouco deslocada. Esta afinidade entre o “Eu não
aguento mais” do corpo e o “Nós ainda não pensamos” do pensamento, é
implicitamente sublinhada por Deleuze quando diz, por exemplo, que “pensar é
apreender aquilo que pode o corpo não pensante, sua capacidade, suas atitudesou posturas”. E acrescenta: “O corpo não está jamais no presente; ele contém o
antes e o depois, o cansaço, a espera. O cansaço, a espera, mesmo o desespero,
são as atitudes do corpo”. 3 A impotência (L’impouvoir ) do pensamento é como o
avesso da impotência do corpo. Seria como as duas fórmulas nas quais se
misturam Espinosa e uma inspiração heideggeriana: “nós não sabemos o que
pode o corpo” e “o corpo não aguenta mais”.
Pois o campo filosófico não é, evidentemente, poupado por estedesmoronamento do corpo: vejam as descrições de Foucault, os corpos doentes
e dissecados do Nascimento da clínica , ou a descrição do corpo supliciado de
Damien que abre Vigiar e punir . Vejam as descrições do corpo masoquista ou os
corpos deformados das pinturas de Bacon, tal como as desc reve Deleuze: “... as
deformações de Bacon são raramente compelidas ou forcadas, não são torturas,
apesar do que se diga: ao contrário, são as posturas mais naturais de um corpo
que se reagrupa em função da força simples que se exerce sobre ele: vontade dedormir, de vomitar, de se revirar, de ficar sentado o maior tempo possível... etc.” 4
Mesmo em suas funções mais elementares, parece que, de agora em
diante, o corpo só pode aparecer diminuído, deformado, no limite da impotência.
Tudo se passa como se o corpo não tivesse mais agente para fazê-lo ficar direito,
organizado ou ativo. Não se pode falar aqui da potência do corpo justamente
porque o corpo não aguenta mais. A menos que se trate de outra coisa: será
preciso, talvez, aceder a outra definição da potência? Pois é evidente que todos
estes corpos são dotados de uma estranha potência, mesmo no esmagamento,
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uma potência sem dúvida superior àquela da atividade do agente. Talvez, então,
seja preciso conceber uma potência que não se define mais em função do ato
final que a exprime, uma concepção não-aristotélica da potência. E isto significa
encontrar uma potência própria ao corpo, uma potência liberada do ato.
“Eles me mataram mesmo, ao me deixarem ouvir que, não mais
podendo, eu não teria outro recurso senão desaparecer. Não mais
podendo! Seria preciso um segundo para fazer-me suportar, após
o quê eu manteria por toda a eternidade os dedos no nariz. Que
foram eles buscar como golpes duros”.
Beckett
Mas antes de determinar essa nova potência, uma primeira questão se
impõe: o que o corpo não aguenta mais (o que é que o corpo não aguenta mais)?
Qual é essa impotência quase-imemorial que parece confundir-se com sua
própria condição? A resposta é dupla. Primeiro, ele não aguenta mais aquilo a
que o submetemos do exterior, formas que o agem do exterior. Essas formas são,
evidentemente, as do adestramento e da disciplina. As páginas essenciais de
Nietzsche, em A genealogia da moral, ou as descrições de Foucault, em Vigiar e punir , são decisivas a este respeito: trata-se de formar corpos e de engendrar um
agente que submeta o corpo a uma autodisciplina. Em Nietzsche, é um corpo
animal (que é preciso adestrar) e, em Foucault, um corpo anômalo (que é preciso
disciplinar). E, através das páginas esplêndidas de Nietzsche e Foucault, é todo
um sistema da crueldade que se impõe aos corpos. A crueldade não se confunde
como a abominação da tortura, se bem que ambas interroguem um aspecto
profundo do corpo: sua potência de resistir, sua resistência ao cansaço e ao
sofrimento. Ambas questionam: o que o corpo pode suportar?
E se as páginas consagradas ao sofrimento dos corpos parecem
atravessadas por uma força cômica, é porque, talvez, façam sentir a discreta
alegria de um corpo que possui, pelo menos, esta potência de resistir. Talvez
reencontremos este aspecto na descrição que Deleuze faz da vergonha: “A idéia
de que apesar de tudo o horror tem um fim vem de que a lama molecular é o
último estado do corpo e de que o espírito o contempla com uma certa atração,
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porque nele encontra a segurança de um último nível que não se pode
ultrapassar”. 5
Diremo-nos, talvez, que não aguentar mais é o signo de que não
resistiremos por muito mais tempo. Ao contrário, se como dissemos, é desde
sempre e para sempre que não aguentamos mais, se é desde sempre e para
sempre que resistimos, então esta resistência é um profundo fortalecimento a
constante de um limite ou de um “último nível”.
Todavia, não é menos evidente que o corpo não aguenta mais também
aquilo a que se submete de dentro. Pois estas mesmas formas passam para
dentro, se impõem ao dentro desde que se cria um agente para as agir. Neste
instante, a relação muda a natureza; ela deixa de questionar a resistência docorpo no adestramento e o transforma em assujeitamento. Como diz Nietzsche,
ela lhe cria uma alma: “Todos os instintos que não se liberam para o exterior, se
voltam para dentro – é o que chamamos de interiorização do homem: eis a origem
do que chamaremos mais tarde de sua “alma”. Todo este mundo do interior, tão
frágil originariamente, tendido entre duas peles, se desenvolveu, se amplificou,
adquirindo profundidade, largura, altura, na medida em que se impedia o homem
de se liberar para o exterior”.6
Vemos precisamente o que ocorre: é entravando a potência dos instintos,
voltando-os contra eles mesmos, que se pode criar uma alma que se tornará o
agente dessa interiorização. Mas se Nietzsche mostra como se cria uma alma
para o corpo, Deleuze e Guattari mostram, inversamente, como se cria um corpo
para esta alma. Seguindo uma inspiração de Artaud, eles sublinham justamente
que o agente constrói no corpo um organismo que pode subordiná-lo: “O juízo de
Deus, o sistema do juízo de Deus, o sistema teológico, é precisamente aoperação Daquele que faz um organismo, uma organização de órgãos que se
chama organismo [...]. Você será organizado, você será um organismo, articulará
seu corpo – senão você será um depravado [...]. Você será sujeito e, como tal,
fixado, sujeito de enunciação rebatido sobre um sujeito de enunciado – senão
você será apenas um vagabundo”. 7
Reencontramos aqui dois domínios onde a potência do corpo está
submetida aos atos do agente que nele se forma: organização e subjetivação. É
na sua resistência a estas formas vindas de fora, e que se impõe ao dentro para
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organizá-lo e lhe impor uma “alma”, que o corpo exprime uma potência própria. O
corpo sofre de um “sujeito” que o age – que o organiza e o subjetiva. Em outros
termos, trata-se não apenas de tornar doente nosso corpo, mas de nos tornar
doentes dessa doença, como se doença devesse se redobrar em nós. Assim é o
sistema do juízo de Deus, seguindo a fórmula que Deleuze e Guattari emprestam
de Artaud. Pois a verdadeira doença não é estar doente, mas, na cura, possuir
remédios que pertencem ainda à doença. 8
Que o corpo se organize e se subjetive sob a autoridade do sistema do
juízo, Nietzsche o mostra quando descreve a maneira como o padre judeu, e
depois o padre cristão, transformaram a dor em doença, e a doença em mal.
Transformar a doença em mal é o seu remédio, mas um remédio que pertence àdoença, que a reforça para torná-la coextensiva à vida. A religião tem por função
essencial fazer da doença a condição da vida . Como sublinha Bárbara Stiegler,
em um profundo estudo sobre Nietzsche e a biologia, a religião “interpreta a dor
como mal e nos torna doentes de nosso sofrimento. O padre responde àquele que
sofre: tu sofres porque tu és culpado (tu te sentes mal porque o mal está em ti) e
tu deves continuar a sofrer para te punires (por teres este mal em ti)”. 9
A invenção da culpa nos Cristãos tem por objetivo tornar o doente aindamais doente. Tudo é pensado no cristianismo a partir do corpo mártir que toma
sobre si os sofrimentos sem nenhuma reação nem exteriorização, mesmo que
adiada. Desde então, o sofrimento se torna sacerdócio, missão, fardo. O cristo é o
homem doente, cercado de doentes compadecidos. 10 É a revelação tardia
conhecida pelo Cristo de D. H. Lawrence diante da sacerdotisa egípcia: “Eu pedia
a todos que me servissem com o cadáver de seu amor. E no final ofereci-lhes
apenas o cadáver do meu amor. Este é meu corpo... tomai e comei... meucadáver... Fui morto, e me entreguei à morte... “11 Da cruz como mesa de
dissecação. Tudo se passa como se nem Judas nem Roma tivessem matado
Jesus, mas sim seus primeiros fiéis, quer dizer, em suma, o cristianismo vindouro.
Jesus é a primeira vítima do sistema do juízo cristão. Tudo culmina, portanto,
segundo a expressão de Lawrence, em uma “doença da morte”.
“Mas a época da qual falo acabou com esta vida ativa, não me
agito nem me agitarei jamais, a menos que seja sob o impulso de
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um terceiro. Com efeito, do grande viajante que fui, de joelhos nos
últimos tempos, depois arrastando e rolando, resta tão-somente o
tronco (em miserável estado) encimado pela cabeça que se
conhece, eis à parte de mim cuja descrição eu apreendi e retivemelhor. Embora eu não ande exatamente na linha, a polícia me
tolera”.
Beckett
Parece-me, portanto, que o corpo, longe do sistema da crueldade próprio
ao adestramento, só pode escolher entre uma doença (que assume a forma do
ressentimento) 12 e uma anestesia que é seu inverso, a “narcose” de que fala
Nietzsche a respeito do cristianismo. A vida como interminável neurastenia,
quando a felicidade se torna “essencialmente narcose, engorda, repouso, paz,
“sabat”, alívio da alma e relaxamento do corpo, ou seja, passividade.”13
Conservar e redobrar o sofrimento na doença, ou então se tornar
insensível, “anestésico”. Tornar a vida doente ou desvitalizá-la: eis as alternativas
que, nos dois casos, retiram toda potência do corpo e a transferem ao agente, a
uma “alma” que não passa, finalmente, de um sintoma dessa doença durável. E
frequentemente as duas se associam; é ao mesmo tempo em que se está doente
da vida e insensível a seus próprios sofrimentos. E é justamente este o paradoxo:
tornar a vida doente para separá-la do sofrimento. Todo o problema consiste,
então, em encontrar uma saúde no sofrimento: ser sensível ao sofrimento do
corpo sem adoecer. Parece-me ser a mesma questão em Nietzsche e em
Deleuze: que o sofrimento não seja mais uma doença, que ele se torne um meio
para a saúde (não médica) e para a salvação (não-teológica). Para isso, é preciso
tornar a partir da questão do sofrimento e perguntar mais uma vez: que pode o
corpo? O que é o corpo que sofre?
A primeira coisa, é que o sofrimento não é um estado particular do corpo.
Sofrer é a condição primeira do corpo. Sofrer é a condição de estar exposto ao
fora. Um corpo sofre de sua exposição à novidade do fora, ou seja, ele sofre de
ser afetado. Como diz Deleuze, um corpo não cessa de ser submetido à erupção
contínua de encontros, encontro com a luz, com o oxigênio, com os alimentos,
com os sons e palavras cortantes etc. Um corpo é primeiramente encontro com
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outros corpos. Compreende-se porque Deleuze define a sensação como uma
síntese passiva pela qual o corpo encontra forças agindo sobre ele. É a própria
diferença, o desigual ou o desequilíbrio da própria diferença, a repartição de
singularidades no seio de um corpo que mal as suporta, que cria seu equilíbrio a
partir deste Desigual. Para retomar os termos de Nietzsche, também podemos
dizer que o corpo é “originariamente o sofrimento da impressão e o
reconhecimento de uma potência estrangeira.” 14
E, como lembra Bárbara Stiegler, Nietzsche estudará de perto os biólogos
de sua época que definiam a vida como irritação ou excitação, quer dizer, não
como espontaneamente ativa, mas originariamente passiva. Pode-se dizer que as
filosofias de Nietzsche e Deleuze são filosofias da alegria, da afirmação, mas issoé inseparável de uma patologia do corpo, do afrontamento de um fora que
assimilamos e do qual nos tornamos senhores (Nietzsche) ou que tentamos
igualar envolvendo-o (Deleuze). Há uma patologia originária, uma passividade
primeira e fundamental do corpo.
Dito de outra forma, a questão: que pode o corpo? só é possível e só faz
sentido a partir desse sofrimento primeiro. O cristianismo sabe bem quem nos
torna doentes de não agir este sofrimento. Pois a questão é: que pode o corpo emface desse sofrimento que é sua própria condição? Ou se preferirmos: como um
corpo devém ativo? A primeira condição, como já vimos, consiste em sentir este
sofrimento, o “Eu sinto” que é um “Eu não aguento mais”, pois esta exposição ao
fora é insuportável. O corpo deve primeiro suportar o insuportável, viver o inviável.
É o sentido do corpo-sem-órgãos em Deleuze: que o corpo passe por estados de
torção, de dobramentos que um organismo desenvolvido não suportaria. 15 Todos
os textos sobre o Corpo-sem-órgãos são, no fundo, textos de embriologia. Há emDeleuze uma verdadeira embriologia transcedental : o corpo como ovo. 16 Como
suportar, então, o insuportável, como viver o inviável (quer dizer, como criar para
si um Corpo-sem-órgãos?), o que significa, evidentemente, uma outra maneira de
perguntar: que pode o corpo?
A resposta é dupla.
Desde já, é evidente que o corpo deve montar mecanismos de defesa. É o
nascimento da dor em Nietzsche. 17 Nós interpretamos defensivamente estas
exposições como dores. “A excitação mais violenta não é em si mesma uma dor:
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mas neste movimento que sentimos, o centro nervoso projeta a dor até o lugar da
excitação. Esta projeção é uma medida defensiva e de projeção.”4
Nosso corpo se protege contra os ferimentos que sofre, tanto pela fuga,
pela insensibilidade, como pela imobilização (fingir-se de morto), ou seja, por
processos de fechamento, de enclausuramento. O corpo não pode mais suportar
certas exposições (tornar-se imperceptível, em Deleuze, participa desses
mecanismos de defesa). De certa maneira, reencontramos aqui a resistência ou o
embrutecimento que o corpo manifesta contra os mecanismos de adestramento.
Mas estes inseparáveis processos de defesa contra o sofrimento devem ser
inseparáveis de uma exposição ao sofrimento, que aumenta a potência de agir
dos corpos. Nietzsche diz que sofremos excitações. Mas como diz BárbaraStiegler, “as excitações de que fala Nietzsche não são objetos que controlamos,
que nos deixam indenes. São ferimentos que nos afetam no mais fundo de nós
mesmos e que nos dão nossa potência de assimilação.” Ela cita, em seguida, um
texto muito importante de Nietzsche: “Crescimento da potência lá onde houve
abundância de feridas mais sutis, através das quais aumenta a necessidade de
apropriação”. 19
A apropriação vem do fato de que o corpo não suporta a ferida, de que elenão aguenta mais. A potência do corpo (aquilo que ele pode) se mede pela sua
exposição aos sofrimentos ou às feridas. Mas Nietzsche diz: as feridas são as
mais sutis. Isto quer dizer que a exposição do corpo se faz no interior dos
mecanismos de defesa... e que o protegem das feridas mais grosseiras. Sutil,
aqui, não suficientemente para que eu tenha acesso à profundeza e à violência de
uma ferida sutil – ou, inversamente, que eu tenha acesso à sutileza que esconde
uma ferida grosseira. “Você é muito grosseiro a meu ver: você não sabedesaparecer vivendo pequenas experiências”. 20
Aquele que vê na ferida sutil algo sem importância é precisamente aquele
que já não sente nada, “que erigiu um sistema de defesa que o impede de
apreender a variedade de afecções, reduzindo-as a uma resposta uniforme.” 21 É
aquele que nos envia sempre às feridas mais grosseiras, ironizando a sutileza de
nossas feridas, a nossa enorme sensibilidade ou delicadeza, dizendo que não é
grande coisa, que há coisas mais sérias na vida. É aí justamente que se exerce a
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força dos fracos, daqueles que sentem o menos possível, pois já se separaram de
sua sensibilidade, ainda piedosos.
Aqui é preciso seguir o que diz Bárbara Stiegler sobre o paradoxo da
fraqueza do forte. O que faz a fraqueza do forte é que ele se esforça para
perseverar, e mesmo aumentar, sua vulnerabilidade, controlando seu grau de
exposição às feridas do fora; se protegendo das agressões mais grosseiras, ele
pode se abrir às feridas mais sutis. “Se defender do que é estrangeiro, não deixar
agir a excitação como uma força formadora, lhe opor uma pele dura, um
sentimento hostil: para a maioria essa é uma necessidade vital para sua
conservação. Mas no domínio moral, a livre amplitude da vista atinge seu limite lá
onde não sentimos mais a excitação estrangeira como uma excitação estimulante ,mas apenas como um prejuízo.” ²²
E este movimento se encontra em Deleuze, talvez acrescido: seu
estoicismo exige que estejamos à altura do acontecimento. É preciso igualar o
desigual da diferença (o que não quer dizer igualá-lo), igualar o que nos acontece.
É esta toda a questão: como estar à altura do mais sutil ou do mais baixo, à altura
do protoplasma ou do embrião, estar à altura de seu cansaço ao invés de
ultrapassá-lo em um endurecimento voluntarista, ou seja, estar à altura do Corpo-sem-órgãos, embrião ou larva.
Ser forte consiste primeiro em estar à altura de sua fraqueza. “Só se cavam
espaços, só se precipitam ou desaceleram tempos à custa de torções e
deslocamentos que mobilizam e comprometem todo o corpo... Portanto, há sem
dúvida atores e sujeitos, mas são larvas, porque são os únicos capazes de
suportar os traçados, os deslizamentos e rotações... E é verdade que toda Idéia
nos faz larvas... As larvas trazem as Idéias em sua carne...”²³ Não se trata maisde se fazer sujeito ou “agente”, mas, ao contrário, de re-devir “larva” seguindo
uma estranha involução criadora reclamada por Deleuze. Nos encontramos aqui
diante de um corpo sem agente.
Não saímos ainda do paradoxo inicial: de um lado, um “Eu não aguento
mais” (tudo aquilo de que devo me defender, daquilo que meu corpo sofre e me
faz sofrer), do outro, um “Eu sinto (no sentido em que nos abrimos a tudo aquilo
que advém sob o regime do sutil). Se fechar para se abrir é o paradoxo da
prudência, enunciado por Nietzsche e Deleuze. Mas este paradoxo é
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primeiramente o paradoxo da relação entre nossa receptividade e nossa
espontaneidade que, juntas e inseparavelmente, testemunham aquilo que pode o
corpo. É o próprio daqueles a quem Nietzsche chama de homens superiores: “Os
homens superiores são os que mais sofrem com a existência – mas possuem
também as maiores forças de resistência.” 24
O “eu não aguento mais” não é, portanto, o signo de uma fraqueza da
potência, mas exprime, ao contrário, a potência de resistir do corpo. Cair, ficar
deitado, bambolear, rastejar são atos de resistência. É a razão pela qual toda
doença do corpo é, ao mesmo tempo, a doença de ser agido, a doença de ter
uma alma-sujeito, não necessariamente a nossa, que age nosso corpo e o
submete às suas formas.
“Ei, é uma idéia, mais uma, talvez à golpes de mutilações, eu
quase chegaria, daqui a uma quinzena de gerações de homens, a
me figurar entre os passantes.”
Beckett
Tradução: Tiago Seixas Themudo
Revisão: Daniel Lins
As citações de Beckett foram gentilmente traduzidas por Luiz Orlandi.
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Referências bibliográficas
1 Ver as descrições de C. JACQUET em Le corps, PUF, 2001, sobretudo as
descrições do trabalho de performance corporal de Abramovic.
² Qu’appelle-t-on penser(int), Paris, PUF, p.22.
³ DELEUZE, Gilles. L’image-temps. Paris, Minuit, cap.8, p.246.4 DELEUZE. Francis Bacon. Logique de la sensation. Paris: Éditions de la
Difference, 1981, p.41.5 DELEUZE, G. Crítica e clínica. São Paulo, Ed. 34, 1997, p.140.
6 NIETZSCHE, F. A Généalogie de la morale , II - 16.7 DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs, vol 3, São Paulo, Ed. 34, 1996, p. 21-
22. Deleuze e Guattari invocam uma terceira forma de assujeitamento do corpo: a
interpretação.8 É o que já dizia Nietzsche quando analisava o caso Sócrates em O crepúsculo
dos ídolos, “O problema de Sócrates”, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000, p.
23, “Imaginar a possibilidade de escapar da décadance através do
estabelecimento de uma guerra contra ela é já um modo de iludir a si mesmocriado pelos filósofos e moralistas. O escape está além de suas forças: o que eles
escolhem como meio, como salvação, não é senão uma nova expressão da
décadance.” 9 Bárbara Stiegler. Nietzsche et la biologie. Paris, PUF, col. “Philosophies”, 2001,
p.117. As análises que fazemos de Nietzsche, assim como certas citações que
utilizamos, devem muito a esta admirável obra.10
D. H. LAWRENCEL. O homem que morreu, In: Apocalipse, Cia. das letras, SãoPaulo, 1990. As palavras do Cristo de Lawrence sobre seus discípulos: “Tentei
compeli-los a viver, por isso eles me compeliram a morrer. É sempre este o efeito
da compulsão.” (p. 142) 11 D. H. LAWRENCEL. Idem., p. 166-168.12 Cf. A importante frase de Nietzsche em Ecce homo, - 6 : “Estar doente é já uma
espécie de ressentimento”.13 La Genealogia de la morae, I, - 10.14 STIEGLER, Stiegler, idem., p.36.
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15 Cf. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Graal, Rio de
Janeiro, 1988, cap. IV, p. 207. “As proezas e o destino do embrião consistem em
viver o inviável como tal, a amplitude de movimentos forçados, por exemplo, que
quebrariam todo o esqueleto ou romperiam os ligamentos.16 Neste sentido, a descoberta do corpo-sem-órgãos já está presente nos textos
sobre o embrião em Diferença e repetição, especialmente nas páginas 283-284
da edição francesa.17 Sobre este ponto, STIEGLER, p. 35-36, e FRANK, Didier a importante análise
da cócegas em Nietzsche, Nietzsche et l’ombre de Dieu. Paris, PUF, 1998, p.202-
207.
18 STIEGLER. Idem. IBID.19 Idem. p. 72. Trata-se do FP 1883, 7, [95].20 Fragmentos póstumos, vol. IX 1882-1884, 5[1] 253.21 STIEGLER. Idem., p.105.22 Citado por Bárbara Stiegler, p. 40. Trata-se do FP 1883, 7 [195].23 Diferença e repetição, IV, p. 211.24 Fragmentos póstumos, vol. X, p. 67.
Publicado em:
Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo / organizadores Daniel Lins e Sylvio Gadelha. – Rio de
Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria da Cultura e Desporto, 2002. P.81-90.