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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE NÚCLEO DE TECNOLOGIA EDUCACIONAL PARA A SAÚDE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E SAÚDE REBECCA LOUISE GREENWOOD O COTIDIANO ESCOLAR PERMEADO PELO DIREITO À ALIMENTAÇÃO: um diálogo com os atores sociais da escola RIO DE JANEIRO 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE

NÚCLEO DE TECNOLOGIA EDUCACIONAL PARA A SAÚDE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E SAÚDE

REBECCA LOUISE GREENWOOD

O COTIDIANO ESCOLAR PERMEADO PELO DIREITO À

ALIMENTAÇÃO: um diálogo com os atores sociais da escola

RIO DE JANEIRO 2011

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Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisitos parcial à obtenção do título de Mestre em Educação

Rebecca Louise Greenwood

O COTIDIANO ESCOLAR PERMEADO PELO DIREITO À

ALIMENTAÇÃO: um diálogo com os atores sociais da escola

Orientador: Alexandre Brasil Carvalho da Fonseca

RIO DE JANEIRO 2011

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Greenwood, Rebecca Louise.

O cotidiano escolar permeado pelo direito à alimentação: um diálogo com os atores sociais da escola / Rebecca Louise Greenwood.– Rio de Janeiro: Nutes, 2011.

142 f. : il. ; 31 cm. Orientador: Alexandre Brasil Carvalho da Fonseca

Dissertação (mestrado) -- UFRJ, Nutes, Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Saúde, 2011.

Referências bibliográficas: f. 115-119 1. Educação em Ciências e Saúde. 2. Comportamento alimentar. 3. Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). 4. Merenda escolar. 5. Tecnologia educacional em saúde - Tese. I. Fonseca, Alexandre Brasil Carvalho da. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Nutes, Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Saúde. III. Título.

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Rebecca Louise Greenwood

O COTIDIANO ESCOLAR PERMEADO PELO DIREITO À ALIMENTAÇÃO: um diálogo com os atores sociais da escola

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Educação em Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Educação em Ciências e Saúde.

Aprovado em __________________________________

______________________________________________________

Prof. Dr. Alexandre Brasil Carvalho da Fonseca – UFRJ

______________________________________________________

Prof. Dr. José Arimatéa Barros Bezerra – UFC

______________________________________________________

Profa. Dra. Daniela Sanches Frozi – UERJ

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To Daddy & Mummy for your courage in coming to Brazil and making me a third culture kid, for loving and supporting me always.

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AGRADECIMENTOS

A Deus por me amar primeiro, pela certeza da sua constante presença e a paz que excede todo entendimento.

A minha família, Grandma pelas lembranças em oração, Kathryn por ser my little sunshine, Luke e Ania pelo carinho e conselhos, Daniel pelos

sorrisos.

Ao Alexandre Brasil por sempre questionar e me fazer refletir, me indicar os caminhos, mas me deixar andar por eles, pelos conhecimentos

compartilhados.

A Elliz Celestrini, agora Mangabeira, pelos momentos sentidos e vividos intensamente.

Aos amigos da Rio Vivo por me acolher e encorajar. Erika Sales, Lúcia Rabelo, Jonathan Nunn pelos cafés, os cinemas e as conversas.

A Daniela Frozi pela amizade, as portas abertas, a inspiração pessoal e profissional.

Aos amigos do laboratório pelos diálogos, as leituras e as artes. Eliana Gesteira e Ana Gabriela Fernandes por dividir comigo esta trajetória, Carolina Rangel e Juliana Casemiro pela companhia na interminável

revisão, Thais Salema pelas dicas e os diálogos.

Ao Geraldo Pereira por aceitar o desafio de produzir o vídeo, Haline Oliveira, nossa atriz, e Fernanda Dysarz pela dedicação, Hugo Cerqueira

pelo braço direito e esquerdo.

Aos alunos da Escola de tod@s por me receber e me permitir ver outra realidade. As merendeiras, aos professores e as diretoras pela

oportunidade de presenciar o cotidiano da escola.

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Ilustração elaborada no Dia do Diálogo, Escola de tod@s, 2010 (Alunos da Turma 94)

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RESUMO

Greenwood, Rebecca Louise. O cotidiano escolar permeado pelo direito à alimentação: um diálogo com os atores sociais da escola. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) - Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), presente nas

escolas da rede pública tem como princípio a garantia do direito à

alimentação. O presente estudo foi proposto com o objetivo de

investigar a presença ou a ausência da abordagem e conteúdos

relacionados aos direitos humanos nos conhecimentos compartilhados

pelos alunos na construção social da realidade da alimentação escolar

no cotidiano de uma escola municipal do Rio de Janeiro. Para tanto, foi

desenvolvido um estudo etnográfico com a descrição dos espaços e

tempos da escola e narrações das interações sociais em torno da

alimentação. Além disso, foi utilizada a metodologia dos Grupos de

Diálogo, a fim de revelar as opiniões dos alunos sobre o tema da

alimentação escolar. No cotidiano da escola observou-se diferenças

entre o tempo da alimentação dos alunos do 1º ciclo e do 2º ciclo do

ensino fundamental em relação à quantidade de escolares no

refeitório, a presença dos professores e de diversos alimentos vindos da

rua. A valorização dos grupos sociais durante a refeição, o prestígio

social conferido aos alunos, assim como o papel das merendeiras neste

espaço também foram elementos de destaque. Durante os Grupos de

Diálogo os alunos relacionaram a importância do PNAE à eliminação da

fome contínua e da fome do dia, ainda mais, relataram os motivos

pelos quais escolhem comer ou não na escola. Finalmente, pontua-se a

importância da opinião e da participação dos alunos na alimentação

escolar para a realização do direito humano à alimentação.

Palavras-chave: Alimentação Escolar; Direito Humano à Alimentação Adequada; Estudo do Cotidiano; Diálogo.

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ABSTRACT

Greenwood, Rebecca Louise. O cotidiano escolar permeado pelo direito à alimentação: um diálogo com os atores sociais da escola. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) - Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. The National School Feeding Programme (Programa Nacional de

Alimentação Escolar – PNAE) is present in all state-funded schools in

Brazil, one of its principals is to assure the students’ right to food. The

objective of this study was to investigate the presence or absence of

approaches and contents related to human rights within the knowledge

shared among students in the social construction of the reality of school

food in everyday life at a state school in Rio de Janeiro. To that end, an

ethnographic study describing the spaces and times of the school and

the social interactions involving food and eating. Furthermore, the

ChoiceWork Dialogue methodology was used reveal students’ opinions

on school feeding. In everyday life, differences between younger and

older students’ recreation times were observed in relation to the quantity

of students in the dining-hall, the presence of teachers and of foods from

outside of school. Other important aspects of this space include the

value conferred to social groups during meals, the association of social

prestige to students due to their snacks, as well as the role of the school

cooks at these times. During the ChoiceWork Dialogue students from the

last class of middle school bestowed importance to the PNAE because it

eliminates continuous hunger and the hunger of the day. The dialogues

revealed students’ reasons for eating or not at school, and amongst

them complaints and suggestions for changes were made. Finally, the

importance of students’ opinions and their participation in the

construction of knowledge on food and eating at school was pointed

out as central to the assurance of the human right to adequate food.

Key-words: School Feeding; Human Right to Food; Everyday Life; Dialogue.

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LISTA DE SIGLAS

APA Agente de Preparo do Alimento

CA Classe de Alfabetização

CAE Conselho de Alimentação Escolar

CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CEP Comitê de Ética em Pesquisa

COMLURB Companhia Municipal de Limpeza Urbana

CNA Comissão Nacional de Alimentação

CNME Campanha Nacional de Merenda Escolar

CONSEA Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

CRE Coordenadoria Regional da Educação

DHAA Direito Humano à Alimentação Adequada

ECA Estatuto da Criança e do Adolescente

ERICA Estudo de Riscos Cardiovasculares em Adolescentes

FAO Food and Agriculture Organization

FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação

GDs Grupos de Diálogo

GRES Grêmio Recreativo Escola de Samba

INAD Instituto de Nutrição Annes Dias

INAN Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição

INEP Instituto Nacional de Estudo e Pesquisas Educacionais

LEC Laboratório de Estudo da Ciência

LLM Laboratório de Linguagens e Mediações

LOSAN Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional

NUTES Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde

ONG Organização Não-Governamental

ONU Organização das Nações Unidas

PBF Programa Bolsa Família

PIBEX Programa Institucional de Bolsas de Extensão

PIDESC Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

PNAE Programa Nacional de Alimentação Escolar

PNAN Política Nacional de Alimentação e Nutrição

PSE Programa de Saúde na Escola

SAN Segurança Alimentar e Nutricional

SISAN Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro

UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...................................................................................................10010

1.1 Alimentação: um direito no espaço escolar ........................................................12

1.2 O cotidiano como revelador da realidade social............................................2223

2 OS PERCURSOS METODOLÓGICOS:

Observação Etnográfica e Grupos de Diálogo .........................................................26

3 UM OLHAR PELA PORTINHOLA: entrando no cotidiano da escola ............33

3.1 A Escola de tod@s: espaços e tempos do cotidiano ...........................................39

3.2 Os atores e suas equipes de representação .........................................................46

4 VIVENCIANDO O COTIDIANO DA ALIMENTAÇÃO. ...............................56

4.1 Arroz com feijão e “todos querem Coca”................................................................56

4.2 Café e Cafezinho .....................................................................................................71

4.3 Projetos, livros e murais: surgiu o direito à alimentação..............................8881

5 O DIA DO DIÁLOGO.............................................................................................88

5.1 Diálogos sobre a Alimentação Escolar.................................................................93

5.1.1 A presença das Fomes no cotidiano..................................................................94

5.1.2 Comer ou não comer: eis a questão ................................................................103

5.1.3 Finalizando o Diálogo.......................................................................................108

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................112

REFERÊNCIAS...........................................................................................................115

ANEXOS......................................................................................................................120

APÊNDICES ...............................................................................................................123

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1 INTRODUÇÃO

Ao aproximar-me da escola apenas os sons eram evidentes, risos,

gritos, correria, por trás de um grande muro. Um portão de ferro separava os

dois mundos, e pela portinhola pude ver aquilo que me esperava. Apareceu

o rosto de um menino, e perguntei “como eu entro?”. O presente manuscrito

traz um estudo do cotidiano das interações sociais em torno da Alimentação

Escolar de uma escola municipal do Rio de Janeiro.

Além de constituir um dos maiores programas de alimentação do

mundo, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) tem por

princípio garantir o direito do escolar à alimentação. Como componente dos

direitos humanos universais, o direito à alimentação adequada é

indispensável à sobrevivência, permite o direito à humanidade, ou seja, o

acesso à vida e à riqueza material, cultural, científica e espiritual produzida

pela espécie humana (VALENTE, 2002). A garantia deste direito perpassa o

conceito da segurança alimentar e nutricional, em que todo ser humano

tem acesso a alimentos de qualidade em quantidade suficiente sem

comprometer o acesso a outras necessidades. O PNAE contribui para esta

garantia à medida que provê alimentação aos estudantes da rede pública

de ensino fundamental e médio diariamente. No ano de 2010 cerca de 45,6

milhões de alunos se beneficiaram da alimentação na escola, um

investimento de 3,1 bilhões de reais.

Mas qual o significado que esta alimentação tem para aqueles que a

comem todos os dias? Os escolares percebem a Alimentação Escolar como

seu direito? Procurou-se respostas a estas questões no cotidiano da escola,

onde conhecimentos são compartilhados entre os atores sociais por meio de

suas falas, atitudes e reações na construção de sua realidade. O objetivo da

pesquisa descrita e narrada a seguir foi investigar a presença ou a ausência

da abordagem e conteúdos relacionados aos direitos humanos nos

conhecimentos compartilhados pelos alunos na construção social da

realidade da Alimentação Escolar no cotidiano de uma escola municipal do

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Rio de Janeiro. Para tanto, foi utilizada a observação participante na escola,

em que se participa de atividades enquanto se presencia a vida cotidiana

do grupo social. Além disso, foram realizados Grupos de Diálogo (GDs) com

os alunos de duas turmas do 9º ano na busca por sua opinião sobre a

Alimentação Escolar.

A escola em que foi desenvolvido o estudo foi selecionada devido a

sua parceria com uma organização não-governamental (ONG) que

promove a educação em direitos humanos em escolas públicas. Minha

inserção neste espaço se deu pela participação em alguns projetos em

andamento na escola. No início da pesquisa, a entrada em campo se

apresentou como um desafio, pois nesta são criadas as primeiras impressões

tanto sobre os atores sociais, quanto as deles sobre mim. As impressões

destes momentos iniciais podem ser encontradas no capítulo 3, assim como

a descrição dos espaços e tempos do cotidiano na escola que formam o

cenário do estudo. Nas interações entre os alunos e os professores foi possível

identificar os grupos sociais por eles formados que estão descritos também

neste capítulo, e foram importantes na percepção dos significados atribuídos

por eles ao comer e a comida.

No capítulo 4 serão narradas as interações nos espaços e tempos

marcados pela presença da alimentação na escola. Nestas foram

observadas as diferenças entre o recreio dos alunos mais novos e aquele dos

alunos mais velhos, nos comportamentos deles, na presença dos professores

no refeitório, e no papel das merendeiras neste espaço. O comer como

prática social e o valor atribuído ao grupo com o qual se une no momento

da alimentação também foram elementos importantes tanto no refeitório

como na sala dos professores.

Os Grupos de Diálogo foram realizados ao final da observação na

escola e estão descritos no capítulo 5. As falas dos alunos foram analisadas

considerando o contexto em que foram produzidas, a dinâmica dos grupos,

os argumentos usados para sustentar opiniões e as relações entre estas e os

conhecimentos compartilhados no cotidiano. Surgiram diferentes pontos de

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vista sobre a importância do Programa Nacional de Alimentação Escolar,

destacando-se dois tipos de fome presentes entre os alunos e a qualidade

da alimentação oferecida. Os participantes fizeram críticas sobre o

programa e sugestões de mudanças.

Ao sair desta realidade enriquecedora deixei algumas indicações de

como a percepção dos alunos e sua participação na construção dos

conhecimentos sobre a alimentação na escola podem contribuir para a

realização do direito à alimentação neste espaço.

1.1 Alimentação: um direito no espaço escolar

No dia 4 de fevereiro de 2010 a alimentação se tornou direito social

fixado no artigo 6º da Constituição Federal Brasileira pela promulgação da

Proposta de Emenda Constitucional nº 64.

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (BRASIL, 2010a).

Esta conquista reforça o compromisso do Estado brasileiro com a

garantia do direito à alimentação, alcançada por meio da mobilização de

grupos da sociedade civil organizada junto ao governo, que têm procurado

dar centralidade ao combate à fome nas políticas econômicas, sociais e de

desenvolvimento do país nos últimos anos (ALBUQUERQUE, 2009).

O termo Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) foi utilizado

pela primeira vez no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais (PIDESC) em 1966. Foi definido pela Organização das Nações

Unidas (ONU) da seguinte maneira:

O direito à alimentação adequada é um direito humano inerente a todas as pessoas de ter acesso regular, permanente e irrestrito, quer diretamente ou por meio de aquisições financeiras, a alimentos

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seguros e saudáveis, em quantidade e qualidade adequadas e suficientes, correspondentes às tradições culturais do seu povo e que garanta uma vida livre do medo, digna e plena nas dimensões física e mental, individual e coletiva (ONU, 2002 apud BURITY et. al., 2010).

De acordo com os tratados internacionais que conceituam o DHAA

existem duas dimensões indivisíveis deste direito: o direito de estar livre da

fome e da má nutrição e o direito à alimentação adequada (BURITY et. al.,

2010). Esse conceito envolve: (1) a disponibilidade de alimentos que pode ser

direta (terras produtivas ou outros recursos naturais) ou indireta (compra de

alimentos ou ações de provimento); (2) a adequação dos alimentos, ou seja,

alimentos ausentes de toxinas (poluentes agrícolas ou industriais, resíduos de

drogas veterinárias), com sabor, variedade e cor, que haja acesso financeiro

e físico, além da aceitabilidade cultural; (3) o acesso ao alimento: engloba o

acesso econômico (recursos financeiro para adquirir alimentos com

regularidade durante o ano) e acesso físico (para todos os grupos

populacionais mesmo habitando em áreas remotas); (4) a estabilidade no

fornecimento: alimentos adequados disponíveis e acessíveis durante todo o

ano.

Como direito humano, a alimentação também está presente na

Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), no artigo 25, na

afirmação que “todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de

assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação”. A

Declaração Universal foi elaborada a partir da compreensão de que todas

as pessoas nascem com vida e necessitam de elementos essenciais para

mantê-la, portanto, estes elementos constituem direitos de todos os seres

humanos. Também denominados direitos naturais, pois são instituídos desde

o nascimento e não dependem de legislação política. Os direitos humanos

são universais, ou seja, comuns a todos, e pretendem o reconhecimento,

proteção e promoção da dignidade humana (DALLARI, 2004).

Liberdade e igualdade são os princípios propulsores dos direitos

humanos. A igualdade não implica na uniformidade ou homogeneidade da

sociedade, porém pressupõe o direito à diferença, ou seja, a relação

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horizontal entre os seres humanos na compreensão de que todos nascem

diferentes, contudo um não tem mais ou menos valor que o outro. A

superioridade implica na hierarquia, uma criação humana que origina a

desigualdade (SOARES, 2004). De acordo com o novo imperativo cultural

cunhado por Boaventura de Souza Santos (2006, apud CANDAU, 2008)

“temos o direito a ser iguais, sempre que a diferença nos inferioriza; temos o

direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos caracteriza”. Assim,

afirmar a igualdade não implica em negar a diferença, mas reconhecer que

deve haver igualdade na diferença.

Além dos direitos humanos cada país possui direitos cidadãos, que no

Brasil pela Constituição Federal (BRASIL, 1988) são divididos em civis, sociais e

coletivos. Os direitos civis incluem a liberdade de locomoção, propriedade,

segurança, acesso à justiça, associação, opinião e expressão, crenças

religiosas e integridade física. Como citado anteriormente os direitos sociais

compreendem: educação, saúde, habitação, lazer, segurança, aqueles

ligados ao trabalho, e mais recentemente a alimentação. Os direitos

coletivos se referem à defesa ecológica, paz, desenvolvimento,

autodeterminação dos povos, partilha do patrimônio científico, cultural e

tecnológico (SOARES, 2004).

Assim, mesmo antes da Emenda Constitucional nº 64 o Governo

brasileiro tinha uma responsabilidade pelo direito à alimentação, pois

ratificou a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto

Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) entre

outros instrumentos internacionais relevantes a este direito. Ainda mais, a

nível nacional o direito à alimentação está presente em diversas leis, políticas

e programas públicos efetivos como a lei que reinstituiu o Conselho Nacional

de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), o Estatuto da Criança e do

Adolescente (ECA), a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional

(LOSAN) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) (BURITY et.

al., 2010). A importância da consolidação da alimentação como direito no

ordenamento jurídico brasileiro se concretiza a medida que surgem novas

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possibilidades de estabelecer políticas públicas e de integrar e articular

ações governamentais que lidem com as complexas questões associadas à

fome e desnutrição no país.

A compreensão do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA)

perpassa o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e sua

construção histórica, pois por meio de políticas públicas propostas pela

sociedade civil organizada, de responsabilidade do Estado e da sociedade

como um todo, este direito pode ser garantido a todos os cidadãos.

De acordo com o relato de Flavio Valente (2002), o conceito de

segurança alimentar começou a ser utilizado durante a Primeira Guerra

Mundial (1914-1918), referindo-se à segurança nacional e à capacidade de

cada país produzir alimentos suficientes para se manter de forma

independente resistindo, assim, a cercos políticos e militares que pudessem

impedir o acesso aos alimentos. A segurança alimentar foi reforçada na

década de 40 com a criação da Organização para a Agricultura e

Alimentação da Organização das Nações Unidas (FAO/ONU). Nesta época

foi associada à assistência alimentar por meio do fornecimento dos

excedentes de alimentos para os países subdesenvolvidos, pois acredita-se

que não havia disponibilidade suficiente de alimentos.

A Conferência Mundial da Alimentação em 1974, durante a crise de

escassez de alimentos, foi outro marco importante em que a insegurança

alimentar era vista como decorrência da produção insuficiente de alimentos

nos países mais pobres. De acordo com Valente (2002) este enfoque levou

ao afastamento do conceito de segurança alimentar da compreensão do

direito humano ao alimento, e relacionando-o à uma visão produtivista em

que a ênfase fica sobre o alimento e não sobre o ser humano. Neste

contexto estava instalada a Revolução Verde que impulsionou o aumento

da produtividade de alguns alimentos que eram dependentes do uso de

insumos químicos, por exemplo. A crescente produção de alimentos não

teve efeito significativo sobre a redução da fome no mundo, e,

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posteriormente foram identificadas as conseqüências devastadoras que os

insumos tiveram sobre o meio ambiente e a economia dos países envolvidos.

A partir dos anos de 1980 reconhece-se que a questão central da

segurança alimentar não era a produção de alimentos, e sim o acesso

econômico e físico a alimentos em quantidade suficiente, seja pelo acesso à

renda para aquisição dos alimentos ou pelo acesso ao território para a

produção destes. No início da década de 1990, são incorporados também

ao conceito de segurança alimentar a noção de acesso a alimentos seguros

(não contaminados biológica ou quimicamente), de qualidade (nutricional,

biológica, sanitária e tecnológica), produzidos de forma sustentável,

equilibrada, culturalmente aceitáveis e de acesso à informação sobre estes

alimentos. Com a agregação do aspecto nutricional e sanitário ao conceito,

este passa a ser denominado Segurança Alimentar e Nutricional (SAN).

No Brasil o conceito de SAN vem sendo debatido há mais de 20 anos

por grupos da sociedade civil organizada, e em especial o Conselho

Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). Um dos marcos

da construção deste conceito foi a elaboração da Lei Orgânica de

Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN) pelo CONSEA, que foi

sancionado em 2006. Nesta lei está inscrita a definição de SAN da seguinte

forma:

A Segurança Alimentar e Nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis (BRASIL, 2006).

Por meio deste conceito é possível visualizar a amplitude do direito à

alimentação e a indivisibilidade dos direitos humanos. Afinal, sem alimento

não há direito à vida, não há cidadania, não há direito à humanidade, isto

é, o direito de acesso à riqueza material, cultural, científica e espiritual

produzida pelo gênero humano. O alimento em quantidade suficiente é

necessário para manter a vida, no entanto, o direito não se resume a isto. O

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ser humano relaciona o ato de se alimentar à tradição, vida familiar,

amizade e celebrações coletivas. Além do aspecto fisiológico, estão

implicadas as questões sociais, culturais, espirituais e religiosos, que

fortalecem a saúde física e mental, assim como a sua auto-estima (VALENTE,

2002).

A LOSAN também colocou em evidencia a obrigação do Estado

brasileiro com o DHAA e sua relação com a SAN:

A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana, indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder político adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população (Brasil, 2006).

Além disso, com esta lei está prevista a criação do Sistema Nacional

de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) através da qual será

implementada uma Política Nacional de SAN que deve abranger desde a

garantia de acesso aos recursos necessários para o exercício do DHAA até a

intervenção em políticas de produção, comercialização e consumo de

alimentos. O SISAN foi constituído por meio da LOSAN, no entanto, o seu

processo de efetivação é um grade desafio que ainda não foi realizado

(BURITY et. al., 2010).

Nestes termos, o Governo tem as seguintes obrigações com relação

ao DHAA: (1) obrigação de respeitar: não pode adotar quaisquer medidas

que possam resultar na privação da capacidade de indivíduos ou grupos de

promover sua própria alimentação; (2) obrigação de proteger: impedir que

terceiros interfiram na realização ou atuem na violação do DHAA das

pessoas ou grupos populacionais; (3) obrigação de promover: criar

condições que permitam a realização efetiva do DHAA; (4) obrigação de

prover: prover alimentos diretamente a indivíduos ou grupos incapazes de

obtê-las por conta própria, até que alcancem condições de fazê-lo (BURITY

et. al., 2010).

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Neste estudo destacamos uma estratégia relacionada à SAN que

procura garantir o DHAA ao prover alimentos a um grupo populacional

específico, trata-se do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Desde antes da Emenda Constitucional nº 64, este programa possibilita que

os estudantes da escola pública brasileira tenham o direito à alimentação.

Como descrito por Bittencourt (2008) consistia de um “direito de terceira

geração”, pois por meio do direito social à educação estava previsto o

“atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas

suplementares, alimentação e assistência à saúde” (BRASIL, 1988 - artigo 208,

inciso VII).

O direito à educação é essencial, segundo Dallari (2004), para a

garantia dos outros direitos humanos, pois abre oportunidades para a

promoção da dignidade humana. Essa possibilidade se torna ainda mais

significativa com a presença do DHAA na escola, um direito inerente à

própria sobrevivência do ser humano. A educação possibilita o

desenvolvimento intelectual, obtenção e ampliação de conhecimentos,

ensinamentos sobre convivência e interação social. Neste contexto, o

professor exerce papel fundamental para a formação da consciência dos

direitos humanos, seus princípios e valores, promovendo a construção de

uma sociedade mais justa. Preparar para a cidadania implica em trazer a

consciência da dignidade humana, a necessidade da convivência e

respeito às diferenças, independente das condições sociais ou atributos

pessoais.

A preocupação com a melhoria da alimentação dos escolares

brasileiros surgiu anos antes da criação de um programa governamental

específico a esta questão. Relatos deste período descrevem as iniciativas de

oferta de alimentos aos escolares como “espíritos generosos, que comovidos

ante a contemplação da miséria fisiológica do escolar brasileiro,

movimentam-se para socorrê-lo, em geral, com seus próprios recursos”. Uma

destas estratégias era a chamada “Caixa Escolar” onde eram arrecadados

recursos financeiros no interior das escolas públicas para suprir as

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necessidades da escola e dos alunos, inclusive de sua alimentação. Estas

ações eram criticadas pelos especialistas da nutrição por se tratar da

“dádiva do rico ao menino pobre” constituindo, portanto, uma humilhação,

além de não fornecer os elementos nutritivos recomendados às

necessidades deste grupo populacional (PIPITONE, 1998).

A idéia da criação de um programa de assistência alimentar na escola

surge com a compreensão de que a desnutrição infantil estava associada à

reduzida quantidade de alimentos ingeridos pelas crianças em idade

escolar. Nas décadas de 1930 e 1940 eram propostos projetos nos quais os

escolares receberiam alimentos e educação nutricional, a fim de preparar

uma nova geração de brasileiros com desenvolvimento normal. Estas

propostas estavam relacionadas a uma política de reconstrução nacional

que visava a unidade cultural, assim era sugerida a “reconstrução nacional

através da alimentação” (SILVA, 1996).

A Campanha Nacional de Merenda Escolar (CNME) foi criada em 1955

pela Comissão Nacional de Alimentação (CNA). O início da Campanha foi

possível por uma série de acontecimentos a nível nacional e internacional,

entre as quais se destaca a presidência do médico nutrólogo, cientista social

e político brasileiro Josué de Castro na CNA, assim como na Organização

para a Agricultura e Alimentação (Food and Agriculture Organization - FAO)

da Organização das Nações Unidas (ONU). Josué de Castro também teve

papel essencial na criação da Campanha Mundial contra a Fome e de Luta

Pela Paz. Por meio de seu trabalho ele procurava demonstrar a relação

inseparável entre os aspectos políticos e sociais da fome, cobrando soluções

para o problema (VALENTE, 2002).

A FAO em conjunto com o Fundo Internacional de Socorro à Infância

foram responsáveis pela remessa dos alimentos no começo da CNME, sendo

o leite em pó o primeiro a ser distribuído nas escolas públicas. O

fornecimento dos excedentes agrícolas americanos se intensificou com a

campanha de “Alimentos para a Paz” de 1961, parte da “Aliança para o

Progresso”, uma estratégia para afastar a ameaça do exemplo da

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Revolução Cubana (SILVA, 1996). A aliança com as agências americanas foi

muito criticada, pois estabelecia ligações de dependência, a falta de

controle sobre o problema da pobreza e da fome no país, além de os

alimentos fornecidos serem inadequados para os hábitos alimentares e

cultura das regiões brasileiras beneficiadas (PIPITONE, 1998). Neste contexto,

a origem da Campanha Nacional de Merenda Escolar pode ser relacionada

com o momento histórico da segurança alimentar, a nível internacional na

década de 1940, em que era focada a assistência alimentar aos países

subdesenvolvidos.

O propósito da CNME era “atender ao problema da desnutrição

infantil” ao prever 15% das necessidades nutricionais diárias das crianças, no

oferecimento da alimentação suplementar, ou seja, uma merenda1 entre

duas refeições principais. Nesta época, acreditava-se que a desnutrição

tinha influência direta sobre a capacidade cognitiva do aluno, portanto, os

objetivos da Campanha envolviam a “melhoria da capacidade de

aprendizagem, redução dos índices de absenteísmo, repetência e evasão

escolar” (NOGUEIRA, 2005). Com isso, foi conferida à merenda a função de

atrair e manter os alunos na escola. Estes objetivos foram criticados,

principalmente por professores e diretores, pois a aprendizagem, a

frequência e a presença dos alunos são responsabilidade exclusiva do

projeto pedagógico da escola. Enquanto que à alimentação foi atribuída,

posteriormente, a função de suprir a “fome do dia”, potencializando o

desempenho dos alunos nos estudos (MOYSÉS; COLLARES, 1995).

Na década de 1960, a assistência alimentar do exterior foi reduzida

significativamente, período em que o Brasil experimentava um crescimento

econômico e industrial, e de instalação da ditadura militar de 1964. Com isso,

o governo brasileiro assumiu integralmente os custos da Alimentação Escolar.

Nesta mesma época foi lançado o “Programa do Almoço Escolar”, no qual

os pesquisadores e estudiosos nutrólogos recomendavam a Alimentação

1 Na definição de um dicionário merende é uma refeição leve, entre o almoço e o jantar, ou o que as crianças levam para comer na escola, em geral durante o recreio.

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Escolar ao invés da merenda, pois seria planejada para atender as

necessidades alimentares e nutricionais dos escolares (PIPITONE, 1998).

Com a mudança na alimentação servida aos escolares a CNME

passou a ser intitulada Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). O

Programa foi vinculado ao Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição

(INAN) em 1972, autarquia do Ministério da Saúde que visava o

estabelecimento de diretrizes para a Política Nacional de Alimentação e

Nutrição (PNAN), como um dos eixos desta política. Os objetivos do PNAE

também sofreram algumas alterações, direcionados mais precisamente ao

aluno: promover o crescimento e desenvolvimento, fomentar o processo

ensino-aprendizagem, influenciar o rendimento escolar e a formação de

hábitos alimentares saudáveis (SILVA, 1996).

Em 1994 estabeleceu-se uma política de descentralização do PNAE,

que teve experiências positivas em alguns municípios nos anos

antecedentes, e, assim, foi instalada a nível nacional. A partir de então o

gerenciamento do programa tornou-se responsabilidade dos municípios e

Secretarias de Educação de cada Estado e do Distrito Federal (BRASIL, 1994).

Ocorreram novas mudanças nos princípios, que atualmente constituem: o

direito humano à alimentação adequada, universalidade, equidade,

sustentabilidade e continuidade, respeito aos hábitos alimentares,

descentralização e participação social (BRASIL, 2009).

A I Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

aconteceu nesse mesmo ano, convocada pela Ação da Cidadania e pelo

Conselho Nacional de Segurança Alimentar. O relatório final da conferência

refletiu a preocupação do povo brasileiro com a concentração de renda e

de terra como principais determinantes da fome e da miséria no país. Foram

propostos quatros eixos de diretrizes básicas para uma política nacional de

SAN, entre elas destaca-se que no item: “assegurar saúde, alimentação e

nutrição a grupos populacionais determinados”, está incluso a ampliação do

Programa de Alimentação Escolar como uma das prioridades (BURITY et. al.,

2010).

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Pode-se perceber nos atuais princípios do PNAE a visão de

democracia participativa e popular, assim como a inclusão da perspectiva

dos direitos humanos, em especial o Direito Humano à Alimentação

Adequada, como norteadores do Programa. A inclusão desta perspectiva

implica em seu envolvimento na “tríade estrutura-processo-resultado”, ou

seja, o delineamento, planejamento, implementação e monitoramento do

programa (como é feito) torna-se tão importante quanto sua execução e

implementação (o que é feito) (ALBUQUERQUE, 2009; BURITY et. al., 2010).

Na democracia participativa e popular busca-se promover a

participação ativa dos cidadãos na construção da sociedade, uma vez que

estão envolvidos na supervisão do estabelecimento e funcionamento da

política pública, que no caso do PNAE perpassa a exigência do direito à

alimentação escolar. Nesta lógica expansiva e inclusiva, quanto maior

participação da sociedade nas decisões na esfera pública, maior o

surgimento de espaços para a defesa dos direitos e da democracia que, por

sua vez, fortalecem a cidadania (SOARES, 2004). Esta participação se

concretiza no controle social do Programa, que ocorre por meio dos

Conselhos de Alimentação Escolar (CAE), que são formados por um

representante do Poder Executivo, dois representantes dos professores ou

trabalhadores na área da educação, dois dos pais de alunos e dois

indicados por entidades civis organizadas, com o objetivo de acompanhar e

fiscalizar o cumprimento de seus princípios e diretrizes, fiscalizar a aplicação

dos recursos financeiros, zelar pela qualidade dos alimentos em especial as

condições higiênico-sanitárias e aceitabilidade dos cardápios oferecidos

(BRASIL, 2009).

Além disso, essa democracia se caracteriza pelo sufrágio universal, e

pela luta contra as exclusões de gênero, classe, educação e etnia

(SACAVINO, 2003), presentes na Alimentação Escolar por meio do princípio

da universalidade, que implica na inclusão de todos os alunos matriculados

na escola pública. A equidade, que combina os critérios de igualdade com

justiça, que como princípio garante ao escolar o acesso ao alimento de

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forma igualitária. A sustentabilidade e continuidade são concretizadas pelo

atendimento durante todo o ano letivo, e em conjunto com o respeito aos

hábitos alimentares, remetem ao conceito de Segurança Alimentar e

Nutricional (SAN).

A SAN também permeia as diretrizes do PNAE que incluem: o estímulo

ao exercício do controle social, respeito aos hábitos alimentares regionais e à

vocação agrícola, apoio ao desenvolvimento sustentável, oferta de

alimentação de boa qualidade a todos os escolares, inclusão da educação

alimentar e nutricional no processo de ensino aprendizagem, direito à

Alimentação Escolar e responsabilidade de todos os níveis de governo

(BRASIL, 2009).

Assim, conforme afirmação de Valente (2003), para a garantia do

direito humano à alimentação adequada é necessário muito mais que a

oferta de alimentos saudáveis. Envolve, também, o respeito aos hábitos

alimentares e a possibilidade de todos terem a capacidade de alimentar e

nutrir a si próprio e a família, com dignidade, a partir do seu trabalho no

campo ou na cidade. Neste aspecto destaca-se o apoio à agricultura local

e ao desenvolvimento sustentável, reforçado no PNAE por meio da resolução

nº 38 de 16 de julho de 2009, na qual o Fundo Nacional de Desenvolvimento

da Educação (FNDE)2 dispõe que o mínimo de 30% dos recursos financeiros

repassados deve ser utilizado na compra de gêneros alimentícios

diretamente da Agricultura Familiar e do Empreendedor Familiar Rural ou

suas organizações, dando prioridade aos alimentos orgânicos e

agroecológicos.

Neste contexto, a inclusão da educação alimentar e nutricional no

processo de ensino-aprendizagem na escola torna-se essencial, pois a

ingestão excessiva ou inadequada de alimentos por falta do acesso a

informações ou a alimentos de qualidade constitui violação do direito a

alimentação, e pode resultar no surgimento de problemas nutricionais e da

2 Autarquia do Ministério da Educação, responsável por prover os recursos e executar ações relacionadas ao PNAE (BRASIL, 2010b).

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saúde (VALENTE, 2003). A forma como esta inclusão ocorre é relevante a

medida que se conforma com a visão de participação social, evitando-se a

educação prescritiva e normativa na tentativa da mudança de hábitos que,

muitas vezes, é utilizada no campo da nutrição (CECCIM, 1995). Costa,

Ribeiro e Ribeiro (2001) pontuam que o espaço da Alimentação Escolar se

torna propício à produção de conhecimentos e aprendizagem, pela

promoção do diálogo com a comunidade escolar possibilitando o

questionamento de temas relacionados aos hábitos e práticas alimentares

diários. Este ambiente é construído nos processos de interação e

compartilhar de estratégias entre professores, merendeiras, nutricionistas e os

outros atores sociais da escola.

Em conclusão, a Alimentação Escolar, permeada pela Segurança

Alimentar e Nutricional e pelo direito à Alimentação Escolar, envolve diversas

dimensões e temáticas. As dimensões, seja da fome, dos aspectos

simbólicos, da construção cultural ou da vivência, são ressaltadas por

Ceccim (1995) na necessidade de novos olhares e escutas para capturá-las.

E as temáticas, desde a qualidade dos alimentos, aos meios de produção,

desenvolvimento sustentável e qualidade de vida da sociedade, constituem

um elo entre variadas esferas, como a biológica, econômica, social,

ambiental e cultural, o que pode viabilizar discussões transdisciplinares no

espaço escolar.

Nos últimos anos o Programa Nacional de Alimentação Escolar

continua a avançar com mudanças importantes. Em 2004, foi incluído na

estratégia Fome Zero no governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva. A

estratégia Fome Zero tem o propósito de “assegurar o direito humano à

alimentação adequada às pessoas com dificuldades de acesso aos

alimentos”, e se insere na “promoção da segurança alimentar e nutricional

buscando a inclusão social e a conquista da cidadania da população mais

vulnerável à fome”. O PNAE faz parte dos programas que possibilitam o

acesso ao alimento, é um dos mais importantes da estratégia, juntamente

com Programa Bolsa Família (PBF), pela sua abrangência e número de

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beneficiários (ROCHA, 2009). Em 2009 o programa foi ampliado, de 35

milhões de alunos das creches, pré-escolas e educação fundamental

pública para 45,6 milhões, com a inclusão dos alunos do ensino médio e dos

programas de educação de jovens e adultos. E em 2010 o valor repassado

pelo FNDE foi reajustado para R$0,30 por dia para cada aluno, totalizando

uma estimativa de 3,1 bilhões de reais (BRASIL, 2011).

Devido à crescente importância da Alimentação Escolar, a

quantidade de pesquisas desenvolvidas em torno desse tema também tem

aumentado. Em sua maioria, os estudos têm um olhar sobre a estrutura e o

funcionamento do PNAE numa percepção macrossocial, utilizando-se

principalmente de métodos quantitativos. Em contrapartida, Freitas e Pena

(2007) ressaltam a importância da compreensão dos aspectos culturais sobre

SAN presentes na vida cotidiana, que possibilita uma análise mais próxima da

realidade dos programas sociais. Na percepção de que a combinação das

abordagens macro e microssocial possibilita uma apreensão mais completa

da realidade estudada, buscou-se empregar a ancoragem teórico-

metodológica que se faz mais necessária no campo investigado (BRANDÃO,

2001). Portanto, propõe-se outro olhar sobre o tema, o estudo do cotidiano

de uma escola municipal, na busca por revelar os conhecimentos

compartilhados na construção social da realidade da Alimentação Escolar.

1.2 O cotidiano como revelador da realidade social

“O cotidiano é o que no dia-a-dia se passa quando nada se parece

passar”. Pais (2003) descreve o cotidiano como um “tecido de maneiras de

ser e estar” que é revelador dos processos de funcionamento e

transformação da realidade, cuja importância se iguala aos resultados e os

efeitos destes processos. O cotidiano da escola pública pode revelar a

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realidade da Alimentação Escolar, por meio do olhar sobre os indivíduos e

de suas interações.

Peter Beger e Thomas Luckmann (1976) propuseram a investigação da

vida cotidiana por meio da sociologia do conhecimento, que consiste do

estudo daquilo que determinada sociedade admite como conhecimento e

a forma pela qual um corpo de conhecimentos passa a ser estabelecido

como uma realidade. Os conhecimentos são elementos reveladores de

significados subjetivos, e a realidade consiste de fatos objetivos. Portanto, a

realidade é construída por meio do compartilhar de conhecimentos, e estes

conhecimentos também constroem a realidade, ambos são específicos de

cada grupo social. A fim de analisar a interiorização da realidade social, os

autores propuseram uma aliança entre a teoria sociológica do

conhecimento e a abordagem sócio-psicológica do interacionismo

simbólico proposta por George Herbert Mead (1982).

Assim, cada sociedade possui conhecimentos que são expressos por

meio de símbolos originados nos pensamentos de cada pessoa, e

identificados nas interações sociais. Nas rotas repetitivas e regulares do dia-a-

dia os símbolos se tornam reais e os seus significados podem ser

compreendidos. Portanto, na presente pesquisa, a fim de revelar a

realidade da Alimentação Escolar se faz necessário o olhar sobre a realidade

da escola, na busca de apreender os símbolos que emergem das interações

sociais e os significados que estes símbolos têm para os alunos. Neste

processo, o contexto dos indivíduos se torna essencial, uma vez que traz

determinados elementos do meio social como relevantes para interatuarem.

O papel do estudioso da vida cotidiana envolve alcançar o extraordinário

do ordinário, descobrir as inovações do dia-a-dia (PAIS, 2003).

A sociedade é revelada nos tempos e espaços das interações. De

acordo com Pais (2003) “o tempo é o que dele fazemos e o espaço é um

lugar praticado”. No estudo sociológico, o vazio do espaço passa a ter

importância uma vez que as interações ocorrem nele. Da mesma forma, o

tempo tem seu valor nos acontecimentos corriqueiros, repetitivos ou inéditos.

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O cotidiano é vivido nos espaços e tempos centrais da vida, nas conversas

do cafezinho, nas risadas da sala de aula, nos passeios de final de semana e

no almoço de domingo.

A interação social no cotidiano mais real e completa é aquela que

acontece face a face, em que conhecimentos são compartilhados nos

gestos, atitudes, e pela linguagem. Nestas interações o foco da consciência

se situa no aqui do corpo, no espaço, e no agora do presente, no tempo. No

entanto, a realidade da vida diária não se limita ao aqui e agora, a

experiência de acontecimentos ocorre em diferentes graus de aproximação

e distanciamento. Desse modo, uma pessoa pode estar interagindo face a

face com outra, no entanto, sua consciência está em outro espaço e

tempo. Apesar de todas as formas de interação serem carregadas de

símbolos, a linguagem expressa pela voz constitui o sistema mais importante

da sociedade humana. A linguagem requer uma reposta imediata e

provoca uma aproximação intersubjetiva que nenhum outro sistema de

sinais no cotidiano pode produzir (BERGER; LUCKMANN, 1976).

Na interação face a face ocorre a influência recíproca dos indivíduos

sobre as ações dos outros. De tal modo, uma pessoa recebe informações da

outra por meio de símbolos verbais, atitudes, e sua aparência física, e reage

a estes símbolos. Sua reação cria na outra uma resposta de condiz com esta

atitude, e desta maneira é conduzida a interação. Por meio da atitude,

também é formada a percepção do eu como uma reflexão de espelho a

identidade própria é determinada a partir do outro. O conhecimento do eu,

também denominado “self”, ocorre pelas interações com o outro e da sua

representação na realidade social. Este processo de conhecimento do eu

constitui a formação da identidade social (GOFFMAN, 1995).

Uma das expressões humanas presentes no cotidiano é a alimentação,

carregada de símbolos e significados transmitidos por meio do preparar, do

servir, do comer, do pensar o alimento e das interações sociais em seu

derredor. Assim, alimentar-se não se ressume a uma necessidade vital do

cotidiano, também é ato social e cultural que constrói a realidade. Os

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alimentos podem ser compreendidos como mercadoria, símbolos de

momentos festivos, rituais religiosos, de saúde, de classes sociais, entre outros.

E como símbolos os alimentos transmitem também sentimentos como afeto,

saudade, culpa, preocupação etc. (CANESQUI; GARCIA, 2005).

Os espaços e tempos do comer são característicos dos diferentes

grupos sociais, e influenciam no que e no como será comido. Desse modo,

se alimentar, que muitas vezes pode ser um ato individualista, se torna uma

ação coletiva onde cada um come uma parte daquilo que é de todos,

constituindo uma refeição (SIMMEL, 2004). O sistema de símbolos formados

através do comer também é formador de identidades sociais. A

alimentação de uma pessoa é uma maneira de representação do eu, que a

identifica como integrante de um grupo social ou outro. “Dize-me o que

comes e te direi qual deus adoras, sob qual latitude vives, de qual cultura

nascestes e em qual grupo social te incluis” (BESSIS, 1995 apud CANESQUI;

GARCIA, 2005). O quê, como, onde, quando, com quem e porque se come

são questões que revelam o valor simbólico da alimentação.

A investigação do cotidiano no presente estudo se deu na escola, um

espaço sócio-cultural no qual cada pessoa é autora e sujeito na construção

coletiva da realidade por meio do compartilhar de conhecimentos e

atribuição de significados aos símbolos (DAYRELL, 1996). A Alimentação

Escolar é percebida como sistema de símbolos que compõe esta realidade,

e, portanto, possui significados diversos que são revelados nas interações

sociais. Os percursos metodológicos escolhidos para investigar estas

interações e desvelar os símbolos nelas presentes serão descritos no próximo

capítulo.

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2 OS PERCURSOS METODOLÓGICOS: Observação Etnográfica e Grupos de

Diálogo

A proposta de estudar o cotidiano de um grupo social veio

acompanhada pela escolha do método etnográfico, pois por meio dele é

possível descrever as crenças, costumes, comportamentos interpessoais e

produções materiais deste grupo, na busca do significado de sua cultura

(ANGROSINO, 2009). São diversas as orientações teóricas da pesquisa

etnográfica, dentre as quais se optou pelo Interacionismo Simbólico que é

norteada pela visão das pessoas como agentes ativos do cotidiano, que

interagem entre si e assim constroem a realidade. A interação social ocorre

no compartilhar de símbolos carregados de significado, estes símbolos

moldam as atividades humanas e formam a identidade pessoal, ou seja, o

“self”. O etnógrafo interacionista busca revelar o sistema de símbolos que

expressa os significados contidos nos pensamentos e ações das pessoas

dentro de seu contexto social.

No que se refere ao estudo etnográfico, Clifford Geertz (1989) em sua

obra sobre a análise interpretativa das culturas, afirma que esta pode ser

alcançada somente por meio do esforço intelectual de realizar uma

descrição densa. A cultura constitui sistemas entrelaçados de símbolos

interpretáveis, é o contexto dentro do qual os acontecimentos sociais, os

comportamentos, as instituições e os processos podem ser descritos com

densidade. Neste esforço, busca-se escrever o que é observado

minuciosamente, não apenas o fato cru. Mais do que dizer ao me ver

esperando, a diretora sorriu, o olhar etnográfico observa os detalhes e busca

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significados. No exemplo acima, a mesma situação poderia ter outra

descrição: ao sair da sala dos professores e me ver sentada na cadeira ao

lado da secretaria, a diretora arregalou os olhos, ergueu as sobrancelhas e

abriu um sorriso, demonstrando que me reconheceu, acelerou seus passos

para ir ao meu encontro.

De acordo com Geertz a descrição etnográfica é interpretativa e

microscópica. O que ela interpreta é o fluxo do discurso social, mantendo a

essência do que foi dito de forma a não alterar a realidade estudada,

porém colocando-o de maneira pesquisável. No aspecto microscópico da

descrição, há discussões sobre sua aplicação na elaboração de uma

paisagem cultural mais ampla. O autor critica a proposta de que a

descrição de uma pequena comunidade possa ser ampliada a fim de

caracterizar toda uma civilização ou nação. No entanto, a relevância das

densas descrições encontra-se em sua contribuição para a mente

sociológica, como que um alimento para novas análises. O material

detalhado produzido na pesquisa de campo possibilita maior sensibilidade

aos conceitos trabalhados, para que sejam pensados de forma realista e

concreta pelos estudiosos sociais. A tarefa do etnógrafo é descobrir as

estruturas conceituais que informam os atos dos sujeitos, e construir um

sistema de análise do que caracteriza estas ações humanas. Ou seja, a

teoria deve fornecer um vocabulário no qual possa ser expresso o que o ato

simbólico quis dizer sobre ele mesmo.

As descrições densas dos sujeitos, neste caso dos escolares, são

realizadas em termos das construções que o pesquisador imagina que eles

colocam em sua vida cotidiana, e a forma que eles usam para definir o que

lhes acontece. Assim, as descrições iniciam-se com as interpretações do que

pretendem os participantes, ou o que o pesquisador pensa que eles

pretendem, e depois estas passam a ser sistematizadas. A cultura pode ser

evidenciada nas ações humanas, portanto, é na observação detalhada do

fluxo de comportamento que podemos encontrá-la e descrevê-la.

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A fim de revelar o sistema de símbolos no contexto social da escola,

utilizou-se a observação participante, “um processo de aprendizagem por

exposição ou por envolvimento nas atividades cotidianas de quem participa

do cenário da pesquisa” (ANGROSINO, 2009). Para tanto, deve acontecer a

imersão do pesquisador em um determinado campo por um período de

tempo em que este interage face a face com as pessoas tornando-se tanto

observador quanto participante na sociedade em que se insere. O

“participante-como-observador” possui uma identidade e se envolve com as

pessoas no ambiente do estudo, estabelecendo relações e participando de

atividades cotidianas, mas ao mesmo tempo é reconhecido como

pesquisador. Mauss (2007), antropólogo considerado o pai da etnografia

francesa, aconselha que "um jovem etnógrafo ao entrar em campo deve ter

consciência daquilo que tem conhecimento, para poder trazer à luz aquilo

que ainda há de conhecer”, precisa conhecer todos os fatos e as relações

entre elas a fim de realizar uma investigação completa e com precisão.

O etnógrafo inscreve o discurso social, ou seja, ele o registra na forma

escrita. Ao fazê-lo, ele o transforma de acontecimento passado, que existe

apenas em seu próprio momento de ocorrência, em um relato, que existe

em sua inscrição e que pode ser consultado novamente. Ao desenvolver a

descrição densa da realidade observada no diário de campo, procurou-se

colocar em palavras as representações e interações do espaço escolar após

cada visita. Na opinião de Malinowski (1978), as primeiras descrições no

diário são de grande importância, considerando que acontecimentos que

impressionam enquanto são novidades, deixam de ser notados à medida

que se tornam familiares. Por outro lado, alguns fatos são percebidos após

mais tempo de estudo.

Durante o período de observação foram realizadas também

entrevistas não-estruturadas com alunos, alguns professores, merendeiras e

as diretoras dentro do contexto de sua realidade cotidiana quando foi

percebida a oportunidade e a necessidade de aprofundar os temas do

estudo. Segundo Fontana e Frey (2000) a entrevista não-estruturada é um

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instrumento essencial na observação participante, pois por meio desta

muitas das informações são recebidas. A entrevista não-estruturada tem sido

utilizada desde Malinowski, e se diferencia das outras formas de entrevista

por não partir de categorias pré-estabelecidas, mas ser direcionado pela

intenção de compreender comportamentos ou situações na sociedade

observada sem impor limites ao questionamento em campo.

Fonseca (1999) propôs uma estrutura para o método etnográfico, com

base nas recomendações de Malinowski, com a intenção de olhar para um

grupo social e analisar os comportamentos e interações dentro de seus

contextos, assim evitando a tendência do individualismo metodológico. A

autora ressalta que a partir do estudo etnográfico abre-se um “leque de

interpretações possíveis”, e que os resultados dependerão de diversos

elementos, inclusive do olhar que o pesquisador tem sobre seu objeto de

estudo. Assim, partindo da interpretação das situações particulares

investigadas o pesquisador poderá chegar a generalizações sobre o tema

estudado. A estrutura elaborada pela autora foi aplicada a presente

pesquisa, e é composta por quatro etapas. O estranhamento, processo que

se dá na entrada em campo, no surgimento dos enigmas. A

esquematização, sistematização das observações (falas, expressões,

ambientes) em esquemas que auxiliam na análise das informações. A

desconstrução dos pré-conceitos em relação ao tema, e no distanciamento

buscar olhar pelos olhos dos participantes. E a comparação, na qual as

observações são relacionadas com a literatura para o desenvolvimento das

análises.

Buscou-se desenvolver este manuscrito de forma condizente com as

bases teórico-metodológicas selecionadas para o estudo, na qual a

experiência da pesquisa é relatada em forma de narrativa, e as discussões

das temáticas são inseridas à medida que emergem no campo

(ANGROSINO, 2009). Nas interpretações das interações sociais e dos símbolos

presentes no cotidiano escolar considerou-se o contexto em que foram

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produzidas as ações, atitudes e falas, buscando desvendar os significados

que os atores atribuíram aos temas investigados.

A observação etnográfica compôs a primeira etapa da pesquisa, que

foi complementada pela metodologia dos Grupos de Diálogo (GDs) com

foco na temática da Alimentação Escolar. Os GDs foram selecionados

porque agem como lupas induzindo interações sociais semelhantes àqueles

que ocorrem no cotidiano, porém com foco maior. Assim, possibilitam a

ênfase em uma temática de interesse, que pode não emergir durante a

observação etnográfica, ou por fomentar um diálogo mais direto no assunto.

Nesta metodologia a autoridade associada, muitas vezes ao pesquisador,

pode ser diluída, pois os próprios participantes passam a dominar o espaço

do diálogo, revelando elementos que são pouco acessíveis nas falas

individuais, mas constituem a fala coletiva. Portanto, os grupos podem

facilitar a democratização do processo de pesquisa ao providenciar

interações mais dinâmicas na construção de textos com múltiplas vozes.

A metodologia dos Grupos de Diálogo foi recentemente adaptada à

realidade brasileira e utilizada, por exemplo, na pesquisa “Juventude

brasileira e democracia: participação, esferas e políticas públicas” (IBASE;

POLIS, 2006), fundamentada na ChoiceDialogue Methodology desenvolvida

por Daniel Yankelovich. A proposta da metodologia surgiu com a

inquietação do autor e seu grupo de estudo ViewPoint Learning, em relação

à lógica de dominação que perpassa as pesquisas de opinião no campo

das políticas públicas, onde não há espaço para que os cidadãos reflitam

antes de se posicionarem dentro do tema (YANKELOVICH et. al., 2006).

Os GDs consistem em um grupo de pessoas que são convidadas a

debater sobre uma determinada temática, a fim de proporcionar a

construção coletiva de opiniões por meio do diálogo. Paulo Freire (1997)

define diálogo como uma opção de comunicação e intercomunicação

com a finalidade de “conhecer e de mais conhecer”. Procura-se por meio

do diálogo chegar a um entendimento entre os participantes, na

compreensão de que cada um tem partes da resposta e que outras

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maneiras de pensar podem enriquecer um ponto de vista, e são importantes

para o processo de formação de opiniões.

Paulo Freire utilizou o diálogo em seus círculos de estudo de construção

coletiva da alfabetização crítica. Por meio destes, tinha o intuito de auxiliar

as pessoas a se sentirem em controle de suas palavras e serem capazes de

utilizá-las para exercer poder sobre as condições materiais e ideológicas de

suas vidas, desta forma, conscientizando e encorajando-os a engajar em

práticas e reflexões ligadas a ações políticas. De acordo com o autor, as

pessoas precisam emergir de seus engajamentos inconscientes no mundo,

refletir sobre eles e mudá-los. Em sua obra Pedagogia do Oprimido (1987), o

autor argumenta que o objetivo da educação é começar a conhecer o

mundo e reconhecer que somos sujeitos de nossas próprias vidas e narrativas

e não objetos das histórias de outros. Assim, os grupos tornaram-se espaços

de luta coletiva e transformação social.

O diálogo como princípio dos GDs proporciona nesta metodologia um

espaço onde o escutar é tão valorizado quanto o falar, envolvendo todos os

participantes no grupo. As idéias dos presentes são expostas, busca-se

escutar para entender e procurar bases para concordar com as falas,

possibilitando a descoberta de novas formas de pensar a temática central e

de aprender um com o outro. De tal modo, além de constituir um meio de

investigação, esta metodologia é compreendida como processo educativo

ampliado (SALVA; STECANELA, 2006; RIBEIRO; LANES, 2006).

Durante os Grupos de Diálogo procura-se analisar a percepção dos

participantes, assim como, a formação de suas opiniões sobre a temática

central. De acordo com Yankelovich e colaboradores (2006) o processo de

formação de opiniões acontece em três fases: a conscientização por meio

de informações e pensamentos dos outros, que evolve para o

processamento de soluções e suas conseqüências e lentamente se aproxima

da resolução à medida que as soluções propostas são reconciliadas com os

valores principais do individuo. Assim, as opiniões não são formadas apenas

pelo fornecimento de informações, mas por meio de um processo no qual

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são considerados os valores pessoais e a dificuldade de fazer escolhas. Os

espaços coletivos dos GDs tornam-se propícios para este processo a medida

que ocorre a troca de idéias, expressão dos pensamentos, o escutar os

pontos de vista e reflexão sobre valores e decisões. Os valores que são

acionados durante o diálogo com a intenção de expor os pensamentos e

justificar o ponto de vista também são elementos visados no processo (IBASE;

POLIS, 2006).

Os GDs podem ser considerados semelhantes à metodologia dos

grupos focais, pois constituem uma entrevista conjunta que resulta no

discurso coletivo. Porém, segundo os criadores da metodologia

ChoiceDialogue, diferem destes à medida que os participantes são capazes

de desenvolver pontos de vista em questões sobre as quais possivelmente

nunca antes tiveram reflexões (VIEWPOINT LEARNING, 2010). A fim de

alcançar este resultado, o diálogo, além de ser orientado por uma pergunta

central (Questão do Diálogo), conta com informações sobre as

possibilidades presentes na sociedade em torno da temática (Caminhos do

Diálogo). No momento do encontro os participantes recebem um panorama

destes caminhos, em forma de alternativas delimitadas a fim de estimular a

expressão de opiniões divergentes e fomentar os debates (IBASE, 2008). Estes

devem ser apresentados de forma equilibrada para não influenciar a

escolha do grupo, e desafiadora a fim de encorajar os participantes não

apenas a produzir uma resposta intelectual, mas também, a ação.

A compreensão de que os grupos focais podem proporcionar a

complexa articulação entre práticas e efeitos educativos, políticos e

empíricos, é explorada por Kamberelis e Dimitriadis (2000) ao pontuarem a

importância e as possibilidades destes na pesquisa qualitativa por meio de

suas três facetas – pedagogia, política e pesquisa. No campo da pesquisa os

grupos focais foram originalmente utilizados na área de marketing e

propaganda com o intuito de coletar a opinião dos consumidores como

técnica complementar nas investigações quantitativas. Porém, a partir da

segunda metade do século 20 pesquisadores passaram não apenas a

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enfocar o conteúdo expresso pelos grupos, mas a dinâmica destes

compreendendo que os significados que emergiam eram socialmente

construídos e associados às práticas da vida cotidiana. Assim, esta

metodologia tem sido valorizada por constituir espaço de dinâmicas e

interações face a face entre os participantes, produtores de significado

coletivo, elemento inalcançável na entrevista individual. Afinal, os problemas

sociais não podem ser resolvidos por um único indivíduo, requerem

fundamentos de ricos e complexos conhecimentos e práticas coletivas.

A temática central dos Grupos de Diálogo que foram realizadas neste

estudo é a Alimentação Escolar, e por meio desta metodologia buscou-se

criar um espaço onde os alunos que participaram do estudo etnográfico

pudessem expressar suas idéias e formar opiniões sobre esta temática,

enriquecendo assim as observações do cotidiano escolar. Os percursos da

pesquisa iniciam-se a seguir com as descrições das primeiras impressões da

escola, seus espaços, seus tempos, os atores sociais e as equipes formados

por eles.

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3 UM OLHAR PELA PORTINHOLA: entrando no cotidiano da escola

O estudo da vida cotidiana exige primeiramente desenvolver a

capacidade de “passear pelas multidões, para então misturar-se nelas”. Esse

passear é descrito por Pais (2003) como uma “investigação viajante”, para o

qual se faz necessário o “olhar de infância, liberto e espontâneo na

identificação e interpretação dos enigmas”. Como investigadora de primeira

viagem peço licença para narrar minhas impressões da aventura que foi

estudar uma realidade tão distante da minha. Distante, porque nunca

estudei em escola pública, cresci em uma cidade do interior paulista, onde

cheguei aos seis anos, vinda da Inglaterra, minha terra natal, nem brasileira

sou.

O interesse pelo estudo da Alimentação Escolar surgiu com minha

participação na pesquisa Mapeamento e delimitação da alimentação

escolar no Brasil: conhecendo e discutindo oportunidades no campo da

educação alimentar e nutricional, desenvolvida pelo Laboratório de Estudo

da Ciência (LEC) no Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde

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(NUTES), um núcleo local do Observatório da Educação (CAPES-INEP),

durante o mestrado. Na escolha do campo de pesquisa procurei unir

temáticas de educação em saúde e sociologia da alimentação, áreas que

poderiam ser relacionadas com minha formação em nutrição. Assim,

encontrei na escola pública um espaço de ensino-aprendizado com a

presença da comida e do comer, propício ao desenvolvimento do estudo

do cotidiano.

A escola municipal escolhida para o trabalho de campo foi

selecionada devido ao envolvimento da diretora e muitos dos professores

em um movimento de educadores em direitos humanos, tema que me

interessou durante a graduação, associado a uma organização não-

governamental (ONG). Assim, buscou-se estudar como a Alimentação

Escolar, proposta pelo governo brasileiro como direito do aluno da rede

pública de ensino, é percebida pelos atores sociais de uma escola que se

propõe a ensinar sob a ótica dos direitos humanos. A ONG foi fundada em

1991, desenvolve suas atividades com professores/as, especialmente de

sistemas públicos de ensino, e educadores em geral, buscando aprofundar

as análises e os debates sobre a realidade latino-americana atual em uma

perspectiva multidisciplinar, multiétnica e multicultural. Seu objetivo é:

Promover a construção da democracia como estilo de vida e a participação na sociedade civil, e estimular o reconhecimento e valorização das diferentes culturas, através da promoção de processos educativos e culturais orientados à formação de diferentes agentes sociais multiplicadores, prioritariamente pertencentes a grupos populares e excluídos3.

Um evento festivo em novembro de 2009, momento de reencontro

entre amigos e compartilhar experiências, marcou minhas primeiras

impressões da ONG. No início desse encontro, algumas pessoas da

organização falaram sobre o planejamento para 2010 e fizeram o

lançamento do lema do ano: “Educar em Direitos Humanos: democracia em

ação”. Estavam presentes professores, diretores e coordenadores 3 Informações retiradas da página da ONG na internet, que não será citada a fim de manter

o anonimato desta.

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pedagógicos de diversas escolas públicas do Rio de Janeiro e cidades

vizinhas, como Duque de Caxias, São João de Meriti, Mesquita, entre outros.

Houve um momento para cada escola compartilhar suas experiências

daquele semestre, os professores levaram cartazes com fotografias dos

projetos e os materiais desenvolvidos pelos alunos. Uma das moças da

coordenação do evento me apresentou a diretora de uma das escolas,

porque nesta haviam muitas atividades ligadas ao movimento. Inicialmente

me impressionou a receptividade da diretora4, mal sabia os objetivos da

minha pesquisa, mas logo me convidou para realizá-la em sua escola,

disponibilizando a coordenadora pedagógica e os professores para me

ajudar. Combinei com ela um dia para que eu pudesse conhecer a escola

municipal e conversar sobre o estudo que eu pretendia desenvolver. O

encontro da ONG aconteceu em um sábado de manhã e foi encerrado

com um almoço de confraternização.

No primeiro dia em que visitei a escola, cerca de três meses após ter

conversado com a diretora, tive a impressão de ser muito distante, depois de

dois metrôs e um ônibus cheguei a Rocha Miranda. Um bairro da zona norte

do Rio de Janeiro, onde as casas são de alvenaria, algumas bem acabadas,

outras com cimento e tijolos à vista, não há prédios com mais de cinco

andares, as ruas são amplas e asfaltadas, mas com poucas árvores. A

ausência de casas pintadas com cores diversas e de vegetação, assim

como a poluição desse lugar, criam a impressão de um ambiente cinza e

sem vida. Em uma das principais avenidas do bairro, ao lado de um hospital,

cuja calçada todo dia é povoada por longas filas de pacientes, estava a

escola municipal.

Rocha Miranda, conhecido como o bairro das pedras preciosas no

tempo do garimpo no Rio das Pedras que cruza a região, herdou seu nome

da família que promoveu seu loteamento no século XX. As pedras se foram,

mas os nomes como Topázios, Diamantes, Ônix, Ametistas e Rubis ficaram

4 As descrições das diretoras, professores e merendeiras da escola encontram-se no Quadro

1 (Apêndice A).

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registrados em suas ruas. Atualmente o bairro é completamente urbanizado,

uma área principalmente residencial com população permanente de 41.253

(2000). A Praça 8 de maio é referência na vizinhança, nomeada em

homenagem ao fim da segunda guerra mundial, e por onde andou a velha

guarda do Grêmio Recreativo Escola de Samba (GRES) Unidos do Uraiti, que

continua a desfilar nos carnavais cariocas. Existem dez escolas municipais em

Rocha Miranda, com 7240 escolares matriculados da pré-escola ao ensino

fundamental, colocando-o na 25ª posição em número de alunos entre os

159 bairros cariocas (2009). Encontra-se na 52ª colocação em relação ao

número de pais de escolares sem instrução, sendo que a taxa de

alfabetização do bairro estava entre 94 e 96% no Atlas Escolar de 2000. De

acordo com a análise do rendimento mensal médio do responsável pelo

domicílio, Rocha Miranda fica no grupo daqueles com 5 à 9 salários mínimos

(2000), não diferente da maioria dos bairros da região norte do município

(BRASIL, 2010c).

Na primeira visita, a intenção era explicar à diretora sobre a pesquisa e

combinar os detalhes práticos da minha presença na escola. Sentamos

frente a frente, uma pequena mesa entre nós, ela tinha um caderno e

caneta nas mãos, porém não escreveu. Depois da explicação, perguntei se

ela tinha sugestão de alguma turma do segundo ciclo5 que eu poderia

acompanhar. Indicou uma do 9º ano, turma 94, que “não é a melhor da

escola”, mas é uma turma “com muita diversidade, tem alunos da

comunidade que são mais pobres e que vivem em situação de risco,

aqueles que são pobres, mas vivem em casas melhores e os que vivem aqui

embaixo, ao redor da escola”, por estes motivos considerou ser interessante

para o meu estudo. Durante a conversa busquei uma forma de inserção nas

atividades da escola, para que tivesse um papel, e não fosse apenas

observadora, mas fizesse uma observação participante. Em se tratando de

saúde e alimentação, a diretora explicou entusiasmada sobre os projetos

5 O 1º ciclo do ensino fundamental é composto pela classe de alfabetização (CA) e do 2º ao 5º ano. E o 2º ciclo engloba do 6º ao 9º ano.

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que o professor de Artes desenvolvia em parceria com o hospital vizinho da

escola. Assim, concordamos que eu poderia acompanhá-lo em suas

atividades.

A diretora me mostrou uma pasta com inúmeras folhas plastificadas

onde todos os projetos desenvolvidos na escola em 2009 estavam descritos e

havia fotografias dos eventos. Estava registrado também o lema da ONG

daquele ano: “Somos muitos, somos diferentes, construímos cidadania”.

Assim como as oficinas pedagógicas por esta desenvolvida, descritas como

“um espaço de intercâmbio e confronto de experiências desenvolvido

pelos/as educadores/as com seus alunos e alunas”. Os tópicos das oficinas

foram: “a tensão entre igualdade e diferença: construindo cidadania; o

olhar da escola para as diferenças; assumindo as diferenças: e agora, o que

fazer?; somos muitos, somos diferentes, construímos cidadania”.

Esperava-se que as atividades desenvolvidas na escola ligadas a ONG

pudessem fomentar discussões em torno dos direitos humanos, e

possivelmente envolver o Direito Humano à Alimentação Adequada. No

entanto, estas temáticas pouco surgiram durante a investigação em campo.

Desse modo, foi proposta a metodologia dos Grupos de Diálogo como

maneira de estimular um diálogo sobre a Alimentação Escolar, possibilitando

aos alunos expressarem opiniões relacionadas ao tema.

A pesquisa na escola estava planejada para começar em março de

2010, considerando que a imersão em campo seria de 4 à 5 meses, duração

que foi definida com base em dois estudos recentes. José Arimatea Bezerra

(2009), em seu estudo sobre a merenda escolar em Fortaleza, observou cada

turma durante cinco meses em quatro dias da semana. Misako Nukaga

(2008), em sua pesquisa etnográfica com base no Interacionismo Simbólico e

enfoque na alimentação em duas escolas americanas, esteve presente de

uma a três vezes semanais por um período de cinco meses. Além disso,

considerou-se o tempo disponível para a pesquisa durante o programa de

mestrado e o período letivo das escolas públicas. No entanto, antes da

entrada em campo era necessário que o projeto fosse aprovado por um

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Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) (Anexo A) e pela Coordenadoria

Regional da Educação (CRE) (Anexo B). O processo de avaliação do projeto

que tinha previsão de durar no máximo 45 dias, se estendeu, e após 70 dias

de espera foi possível iniciar a investigação.

A pesquisa de campo teve início em abril de 2010. Durante uma

semana frequentei a escola diariamente, com a intenção de observar as

diferenças na rotina de cada dia. Depois minha frequência foi de duas ou

três vezes na semana, preferencialmente nos dias em que o professor de

Artes lecionava. Nos primeiros três meses acompanhei a turma 94 durante

todas as aulas de manhã e no recreio, com a intenção de me aproximar dos

alunos, conhecer seus grupos sociais e investigar os conhecimentos

compartilhados sobre a alimentação na escola. Nos outros dois meses,

percebeu-se a necessidade de examinar os outros espaços onde a

alimentação se fazia presente. Em alguns dias ficava nos pátios com os

alunos antes do início da primeira aula, em outros entrava na sala dos

professores ou sentava em uma das cadeiras no corredor. Geralmente

observava ambos os recreios, e algumas vezes permaneci no refeitório

durante todo o período da manhã conversando com as merendeiras. A

pesquisa foi encerrada em setembro do mesmo ano.

No estudo etnográfico, a entrada em campo é um momento de

grande importância, considerando que um dos objetivos centrais é

estabelecer a situação de membro e um ponto de vista de dentro. Em

especial na escola o pesquisador é percebido como o outro e muitas vezes

não é bem aceito. Assim, torna-se preciso o conhecimento das linguagens e

dos gestos deste espaço, e o estabelecimento de uma posição social bem

delimitada (TURA, 2003). Como minha intenção inicial era me aproximar dos

alunos optei por vestir roupas que se assemelhassem àquelas usadas por eles:

calça jeans, camiseta branca ou azul e tênis. No primeiro dia da pesquisa, o

momento da apresentação era muito importante, pois os atores sociais da

escola buscariam informações de imediato em relação ao que poderiam

esperar de mim, e o que eu esperava deles. Na apresentação, as

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informações recebidas não são apenas aquelas transmitidas

intencionalmente, como os símbolos verbais, no entanto, são também

informações emitidas por meio da aparência e ações que são interpretadas

por aqueles que as observam criando a primeira impressão (GOFFMAN,

1995).

Nesse dia eu estava aguardando no corredor, em pé ao lado da

secretaria, pelo início da primeira aula. A coordenadora pedagógica, com a

qual não havia conversado antes, veio em minha direção, olhando por cima

dos óculos que estavam na ponta do nariz, com uma lista das turmas e

horários nas mãos. Ela me apresentou à professora Carmem6, que havia

parado ao seu lado, dizendo que eu era estudante de mestrado e iria

realizar uma pesquisa na escola. Os outros professores não precisaram de

apresentação, sabiam da minha presença na escola, apenas me

cumprimentavam no inicio de cada aula, e ao final faziam perguntas sobre

o tema, a duração, e as atividades que iria realizar durante a minha

pesquisa.

Quando se conhece alguém pela primeira vez uma tipificação desta

pessoa é formada, trata-se de um padrão que conduz as interações sociais

após este encontro. A tipificação faz com que sejam esperadas certas

atitudes, qualidades ou defeitos, que nem sempre estão presentes nas

pessoas (BERGER; LUCKMANN, 1976). Como por exemplo, Carmem,

professora de Matemática, inicialmente pareceu ser atenciosa com os

alunos e exigente em relação à sua disciplina. Ela sabe o nome da maioria

dos alunos da turma, durante suas aulas há poucas conversas paralelas.

Costuma andar em meio às fileiras para verificar se os exercícios estão sendo

resolvidos, e ao preencher a lista de presença geralmente pergunta sobre os

alunos faltosos.

Depois da apresentação, acompanhei Carmem até a sala de aula da

turma 94. Escolhi me sentar no fundo da sala na lateral direita, pois dali

6 Foram utilizados pseudônimos para todos os participantes da pesquisa a fim de evitar que

sejam identificados.

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poderia ver todos os alunos. Além disso, ficaria próxima a um grupo de

meninas, e com base na experiência de outra mestranda do LEC que

também desenvolveu um estudo etnográfico em uma escola pública

(PORTRONIERI, 2010), considerei que seria mais fácil aproximar-me delas no

começo da pesquisa. A professora me apresentou à turma dizendo apenas

meu nome e que eu iria acompanhá-los durante todas as aulas. Muitos

alunos viraram a cabeça para me olhar rapidamente, curiosos. Esta falta

inicial de informação levou alguns alunos a me procurarem em outros

momentos para fazer perguntas sobre meu papel na escola.

As primeiras impressões formadas por estes e outros alunos estavam

presentes nas perguntas que me fizeram. “Você é aluna nova?” geralmente

era a primeira questão, de certa forma parte do grupo dos alunos. No

entanto, ao falar as primeiras palavras logo perguntavam “de onde você

é?”. Minha aparência e o sotaque paulista criavam ao mesmo tempo um

distanciamento, ao perceberem que eu era diferente, e uma curiosidade

que os motivava a continuar a conversa. A reação de uma aluna à minha

resposta foi contar que tem um amigo em São Paulo e que “ele é branco

como eu e você” enquanto passava a mão em seu braço estendido. A

próxima pergunta era relacionada ao meu papel na escola, ao qual

respondia que iria auxiliar nos projetos das aulas de Artes, o que pareceu ter

satisfeito a curiosidade deles. Minha idade vinha em seguida, e todos que

perguntaram tiveram a impressão inicial que eu era mais nova. Algumas

meninas tentaram adivinhar onde eu morava, e citaram apenas bairros da

zona sul da cidade, região turística, com praias, ocupada, em sua grande

parte, pelas classes sociais mais privilegiadas. Uma delas perguntou se eu era

“patricinha”, a resposta de outra foi “ela tem olho claro, mas não parece

patricinha”.

Catarina, uma das meninas da turma 94, foi minha principal informante

durante o início da pesquisa em campo. Ela geralmente se senta nas

cadeiras da frente da sala de aula, presta atenção nos professores, às vezes

responde as suas perguntas e tira boas notas nas provas. Catarina também

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conversa com a maioria dos alunos da turma, disse gostar de música popular

brasileira, de cinema, e deseja assistir a uma peça de teatro, mas não

encontra companhia para isto. Tem 15 anos, seu cabelo é preto, longo e

ondulado, seu caderno e estojo são cor de rosa. Seus pais se separaram

recentemente, ela mora com o pai e a irmã mais velha porque sua casa é

mais próxima da escola. Muitas das situações observadas que eu não

compreendia ou queria conhecer melhor foram explicadas por ela, nas

várias conversas que tivemos.

Nos primeiros dias, tive também impressões iniciais sobre a rotina da

escola, como as pessoas se comportavam em cada espaço e as atividades

que desenvolviam. De acordo com Pais (2003) o cotidiano é percorrido pelas

mudanças dos espaços e tempos por meio dos quais os grupos sociais são

revelados. A seguir serão descritos os espaços e os tempos da escola,

observados no dia-a-dia, no decorrer dos quais se enfoca a presença

alimentação nas interações sociais.

3.1 A Escola de tod@s: espaços e tempos do cotidiano

Todo Aluno tem o Direito de ter união entre os alunos, subtração das bagunças e multiplicação do aprendizado.

Todo Aluno tem o dever de cuidar + do que lhe pertence e dos materiais que a escola lhe dá, subtraindo o vandalismo.

Todo Aluno tem o Direito de Adicionar cada vez mais o respeito aos professores, Direção, Funcionários, e COLEGAS de turma.

Todo Aluno tem o dever de respeitar o próximo dentro ou fora da Área escolar, respeitando seus ângulos, discutindo e dividindo suas opiniões, subtraindo os preconceitos.

A escola é de tod@s nós. A gente aqui é +!

(Frases de um projeto de Matemática no mural da sala de aula da turma 94) [Grifos e letras maiúsculas congruentes com o original].

No caminho para a Escola de tod@s7, no período da manhã, fico no

contra fluxo dos trabalhadores que se direcionam a estação de metrô e aos

7 Nome presente nos murais da escola onde foi desenvolvida a presente pesquisa para descrevê-la, e, portanto também utilizada neste manuscrito.

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pontos de parada dos ônibus na avenida. Nas padarias as pessoas em pé

encostadas no balcão, tomam café no copo de vidro, uma moça posiciona

os jornais novos em uma mesa que ocupa a calçada e o açougueiro expõe

os peitos de frango no balcão refrigerado. Ao aproximar-me da escola

percebo diversos lugares onde há alimentos disponíveis. Na esquina da

avenida, um senhor senta-se em uma cadeira de plástico ao lado da mesa

onde vende biscoitos, salgadinho Chips, balas, e em um isopor grande

guarda refrigerante, guaraná natural e água. Do lado oposto da avenida, o

“Ponto da fé” uma pequena venda com a porta aberta pela qual se pode

ver apenas o balcão, e um anúncio com as palavras “sorvete” e

“promoção: salgado + refresco”. Alguns passos antes do portão de entrada

da escola um homem expõe bananas, caquis e outras frutas em uma

barraca, e, ao lado, uma mulher vende refresco, coxinhas e pão de queijo.

Todos os dias os alunos chegam alguns minutos antes do convite para

entrar na escola e esperam do lado de fora. Os meninos à beira da calçada

ou no encontro dela com a rua, com as mãos nos bolsos, olhando em

direção ao prédio. As meninas em grupos de duas ou três, ficam próximas ao

muro conversando. No pátio de entrada, uma área pequena cercada pelos

muros de cor salmão, os adultos aguardam com seus filhos, netos, e

sobrinhos pequenos. Alguns dos alunos mais novos tomam seu café da

manhã agachados no chão deste pátio, ainda com as mochilas nas costas,

comem pão de queijo ou coxinha de frango embrulhados em guardanapos

de papel e tomam refresco com cores diversas ou café em copos

descartáveis.

No canto esquerdo do pátio de entrada tem uma grande amendoeira

erguida em meio ao chão de concreto. Suas amêndoas ameaçam os

alunos distraídos, e quando no chão servem como bola na brincadeira de

futebol dos mais novos. Algumas mães e avós sentam-se nos dois bancos de

cimento e conversam sobre a escola, seus filhos e netos, sobre a vida. À

direita delas, separado por uma grade de listras amarelas, azuis e vermelhas,

um pequeno parque com balanços e um escorregador onde nenhuma

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criança se aventura a brincar. Ao entrar pelo portão alaranjado de ferro os

pequenos alunos se reúnem próximos à grade que separa o pátio de

entrada do pátio principal, este fica fechado até o toque do sinal.

Às 7h15 soa o sinal, porém quem marca o tempo de início das aulas, é

a diretora, vice-diretora ou coordenadora pedagógica que em pé ao lado

da entrada do prédio com o microfone na mão, pede para todos os alunos,

desde a pré-escola até o 9º ano incluindo a classe dos alunos especiais8,

“formarem” filas de acordo com suas turmas dentro dos limites do pátio

principal e virados para o prédio da escola. Escolares até o 6º ano dividem-

se nas respectivas filas e aguardam conversando, os mais velhos, por outro

lado, mantém suas rodas de conversa, obedecendo somente quando a

ouvem dizer o número da turma e “pode entrar”.

O convite da direção para entrar na escola pode ser descrito como

símbolo que procura criar na comunidade escolar a impressão de casa, que

segundo DaMatta (1991) pode ser o espaço íntimo e privado da pessoa ou

um espaço social público, ao qual se deseja proporcionar um significado de

familiaridade. Outro elemento que cria esta impressão é o cartaz que

recepciona as pessoas ao entram no corredor da escola com o título “A

escola é de tod@s” coberto por fotos de eventos com os professores e

alunos, momentos festivos com pessoas sorridentes. A união entre os atores

sociais da escola é reforçada pelo cartaz na parede da sala dos professores

iniciando com a frase: “eu acredito é na rapaziada, que segue em frente e

enfrenta o leão”. Em seguida, os nomes dos professores, das secretárias, das

diretoras, da coordenadora pedagógica e as palavras “responsáveis” e

“alunos”. Entre cada nome um sinal de mais (+) e a última frase era: “Na

Escola de tod@s é assim... um + um é sempre + que dois”. Não havia os

nomes das merendeiras no cartaz.

8 Na escola há duas classes especiais, de acordo com uma das professoras, formadas principalmente por alunos com autismo. Apesar da iniciativa do Ministério da Educação de incluir os alunos com necessidades especiais nas turmas regulares, esta inclusão só pode acontecer com a autorização do responsável, caso não queira o aluno continua na classe especial (BRASIL, 2010d).

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No espaço casa podem estar presentes também elementos da rua,

como, por exemplo, a sala de visitas onde se recebe pessoas que vem de

fora. O pátio de entrada que é separado do restante da escola por uma

grade, e da rua por um muro alto e um portão, pode ser equiparado a uma

varanda descrita pelo autor. Através dela os alunos e seus acompanhantes

acessam a escola e a rua, e em pé nos seus bancos de concreto, durante o

recreio, os alunos se comunicam com aqueles da rua. Por meio deste

espaço alunos “fogem” da escola e alimentos entram, entregues aos

escolares por cima muros pelos vendedores ambulantes.

O prédio da escola tem três andares com muros de cor salmão, oito

janelas grandes, uma porta larga e uma grade, que ficam abertos durante o

período das aulas. A sala que contém a direção e a secretaria fica à direita

de quem entra no prédio, e a sala dos professores à esquerda. À frente é

possível visualizar o corredor das salas de aula do primeiro andar, a

escadaria de acesso ao segundo andar e ao lado desta uma porta de saída

do prédio. Os professores das turmas de Educação Infantil até o 6º ano ficam

à frente de suas respectivas filas no pátio e guiam os alunos até suas salas de

aula. As turmas de Educação Infantil sobem até as duas salas no terceiro

andar, onde também se localiza a “sala de leitura” com estantes de metal

cinza preenchidos por livros, em três das paredes e uma mesa retangular de

seis lugares no centro. Os alunos da classe de alfabetização (CA) e do 2º

ano se direcionam pela porta de saída para as três salas que ficam do outro

lado do prédio, junto a uma área onde os professores estacionam seus

carros. Os corredores são ocupados pelas turmas do 3º ao 9º ano, o primeiro

contém seis salas de aula, e o segundo dez. As duas classes especiais ficam

nas salas anexas ao prédio no final do lado esquerdo do corredor do

primeiro andar.

As turmas que não são direcionadas pelos professores, aguardam nos

corredores até que estes cheguem com as chaves para abrir a porta da sala

de aula. A turma 94 assiste às aulas na última sala do lado esquerdo do

corredor no segundo andar. Aproximadamente 40 carteiras e cadeiras

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ocupam o centro da sala, as paredes são pintadas de marrom claro na

parte inferior e a superior na cor creme. Duas janelas largas ocupam toda a

parede oposta à porta de entrada. Na frente da sala há um quadro branco,

um ventilador de parede acima deste e uma mesa de madeira utilizada

pelos professores. Outro ventilador igual fica no fundo da sala. Em raras

ocasiões os alunos levam alimentos para a sala de aula como biscoitos

recheados, salgadinhos Chips e guaraná natural, os quais compartilham

apenas com os amigos.

Dentro da sala de aula os espaços se modificam de acordo com cada

professor que entra, ou pela ausência deles. O tempo da primeira aula é

mais calmo, os alunos ainda estão despertando, a maioria fica em silêncio.

Já em relação à postura diante dos professores, no caso da aula de História,

independente do período, quando o professor entra na sala cada aluno está

na sua carteira, cada carteira em sua fileira. Ouve-se poucas conversas

paralelas, os alunos se debruçam sobre as carteiras ou com a cabeça

abaixada olham fixamente o caderno, falam com o tom de voz baixo ao

responder às perguntas do professor. Na aula de Geografia, o espaço

continua como no tempo de ausência do professor, a música, a dança, o

andar pela sala, a conversa, os risos permeiam este espaço. Os alunos

parecem não ouvir as tentativas do professor em atrair sua atenção para a

aula.

As atitudes dos alunos também se modificam de acordo com sua

posição na sala. Nas carteiras da frente os alunos assumem o papel de

interessados e estudiosos, enquanto que no fundo sentam-se os

conversadores. No papel de estudiosos ficam com a postura reta na

cadeira, virados para frente, com o caderno aberto e os olhos no quadro. Os

conversadores viram para o lado, os pés sobre a carteira, o celular

encostado no ouvido e em algumas aulas não se vê seus cadernos. Em

certos momentos os alunos são forçados pelos professores a saírem de seus

lugares e a ocuparem as cadeiras na frente da sala, e com isso são

obrigados a assumir o papel de estudiosos.

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A frente da sala é marcada pela presença do professor. Na aula de

História isto significa que nenhum aluno transita neste espaço. Por outro lado,

na aula de Francês, a frente é utilizada pelos alunos da mesma forma que o

fundo. O restante da sala pode ser percorrido pelo professor, para

inspecionar as tarefas dos alunos, como em Matemática, ou oferecer ajuda

nas atividades, como em Artes. Este espaço é demarcado também por

grupos sociais, que podem ser visitados por alguns alunos, mas não por

outros. Por exemplo, Sofia9 uma aluna que conversa pouco, usa tênis velhos

e roupas surradas, chegou atrasada na primeira aula e colocou seu fichário

em cima de uma carteira vazia ao lado da Cátia, que geralmente se senta

no fundo da sala, com as costas encostadas na parede, conversa com as

amigas ou escuta música, são poucas as aulas em que abre o caderno para

copiar os exercícios do quadro. Ela olhou para Sofia, com uma expressão de

inconformada, e abanando o braço, expulsou-a dali, dizendo que não

podia sentar porque não era “o lugar dela”.

Após três aulas de 50 minutos cada, os alunos do segundo ciclo vão

até o pátio principal para o recreio que tem duração de 25 minutos. O pátio

principal é coberto por um telhado de cerâmica apoiado em quatro

colunas, e possui duas formas de acesso, pelo pátio de entrada ou pelo

portão lateral, uma entrada para alunos atrasados e saída àqueles

dispensados antes do término das aulas. No fundo do pátio fica a entrada

para o refeitório, separada por uma grade que permanece aberta no

período das aulas. De cada lado desta grade existem pequenas escadarias

com seis degraus que dão acesso a duas portas que ficam fechadas. De

acordo com a inspetora da escola estas portas dão acesso ao auditório em

cima do refeitório, porém este é utilizado apenas como depósito de material,

pois está inadequado para uso devido a uma reforma incompleta.

Nesse recreio, os escolares do 6º ao 9º ano formam diversas rodas de

conversas, divididos entre meninos e meninas, contudo uns visitam os grupos

dos outros. Os mais novos correm pelo pátio, os meninos chutam copos ou

9 A descrição dos alunos da turma 94 está no Quando 2 (Apêndice B).

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garrafas vazias, jogam dominó, poucos comem e outros dançam ao som da

“rádio escolar”. A cada semana dois alunos diferentes sentam em uma

pequena sala ao lado do refeitório, ocupado pelo equipamento de som, e

selecionam as músicas, geralmente Pop ou Rock nacional e internacional,

que soam dos alto-falantes no pátio principal, criando um tempo de

descontração no recreio, por eles chamado de “rádio escolar”. Quando

alguém leva uma bola para a escola os meninos mais velhos dominam o

pátio de entrada com sua partida de futebol. Os alimentos que alguns

alunos levam para o recreio são biscoitos recheados, salgadinho Chips,

guaraná natural e refrigerante.

O espaço onde a alimentação mais se faz presente é o refeitório,

separado do pátio principal por um muro com cerca de um metro de altura,

e um pequeno portão alaranjado com barras verticais. As paredes têm

azulejos brancos na parte inferior e são pintadas na cor creme na superior.

Numa delas há um quadro branco pequeno onde é escrito diariamente em

vermelho o cardápio da refeição escolar. Existem vinte mesas quadradas,

brancas, com pernas de ferro pretas, que são agrupadas para formar seis

mesas longas. Outras três mesas mais baixas são unidas para formar a mesa

onde os alunos mais novos geralmente sentam. Cerca de cinqüenta

cadeiras amarelas de plástico ficam ao redor das mesas, mas há muitas

outras que não são usadas, ficam empilhadas e encostadas na parede do

lado direito de quem entra no refeitório. Nesta parede também tem um

bebedouro de água metálico com seis torneiras, uma porta para a pequena

sala onde os funcionários da limpeza e as merendeiras guardam seus

pertences, e outra porta que dá acesso ao depósito do material de

educação física.

Na parede oposta à entrada existem três portas de metal alaranjado,

com dois degraus largos abaixo destas, pois ficam a um nível mais elevado

do que o chão. A primeira porta possui a parte superior de vidro, e duas

janelas, uma de cada lado que iluminam o refeitório. Ao olhar pela porta a

primeira vez eu pude ver um pequeno espaço, com cerca de três metros

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quadrados de grama cercado pelo muro da escola e as paredes do

refeitório. Fiquei pensando na possibilidade de se plantar uma horta nequele

lugar, pois não existe uma na escola. As duas outras portas são depósitos,

uma com produtos de limpeza, material de cozinha, e um congelador

horizontal com duas portas. E na outra há uma placa escrito “gêmio

estudantil”, onde ficam armazenados materiais de arte como potes de tinta,

papéis coloridos e quadros com pinturas empilhados. Todas as portas ficam

trancadas com cadeados.

Durante o período da manhã ocorrem três momentos de refeições

coletivas no refeitório. A primeira às 9h40 no recreio das turmas do 2º ciclo,

em seguida é a vez dos alunos do 1º ciclo juntamente com aqueles da

classe especial às 10h20, e por fim o almoço dos professores, merendeiras e

funcionários da limpeza por volta das 11h50. Todas as refeições são

preparadas na cozinha, cujo único acesso é pela porta que fica do lado

esquerdo de quem entra no refeitório. Ao lado da porta há uma grande

lixeira metálica sem tampa. Acima desta existe um desenho de um

hexágono vermelho e por dentro um prato fundo cheio de macarrão, com

um garfo espetado e as frases: “que delícia!” e “não desperdice o alimento”.

No alto desta parede fica também a janela estreita do almoxarifado de

alimentos, um ventilador, e as duas aberturas pelas quais se pode ver o

interior da cozinha. Um balcão térmico contendo cinco cubas metálicas

com tampas onde são colocadas as preparações, pode ser alcançado pela

primeira abertura na parede. Na segunda há um balcão de mármore onde

são devolvidos os pratos depois das refeições.

Na cozinha as paredes são cobertas por azulejos brancos, com uma

faixa de desenhos coloridos de frutas contornando-as na metade de sua

altura. Apesar se ser um espaço pequeno é equipado com: um fogão

industrial de quatro bocas, outro fogão comum também de quatro bocas,

um multiprocessador de alimentos, um liquidificador industrial e uma balança

eletônica grande. Existem três pias espaçosas de metal, suas torneiras são

altas possibilitando a lavagem de panelas grandes, e uma delas geralmente

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é utilizada para higienizar alimentos. Duas janelas estreitas no alto da parede

iluminam o interior da cozinha, e próxima à porta tem uma mesa quadrada

com duas cadeiras, em cima da qual ficam os papéis dos pedidos de

compras, do recebimento de alimentos, os cardápios, o manual de

manipulação de alimentos e outros. Esta mesa às vezes é utilizada como

apoio no pré-preparo de legumes e frutas, ou para a refeição das

merendeiras.

O recreio foi o tempo mais difícil dos meus primeiros dias na escola. Os

minutos pareciam avançar lentamente, e foi o momento em que me senti

mais tensa e envergonhada. Durante as aulas podia me esconder entre a

representação coletiva dos alunos, sem precisar de uma encenação própria

muito elaborada, porém no recreio havia uma platéia muito grande e todos

pareciam estar ansiosos pela minha encenação. Todavia, no decorrer da

pesquisa percebi que este era o tempo mais importante da investigação,

pois neste pude conversar com os alunos, observar a rotina da Alimentação

Escolar e da sala dos professores. Os alunos e seus grupos sociais, assim como

suas interações com os professores estão descritos na próxima seção.

3.2 Os atores e suas equipes de representação

Erving Goffman, sociólogo estudioso das interações sociais no

cotidiano, descreve a vida como uma representação teatral onde todos são

atores e estão, conscientemente ou não, representando um papel. Na

descrição teatral da realidade escolar existem diversos palcos de

representação como a sala de aula, o refeitório, a sala dos professores, o

pátio principal e outros. Estes também podem se tornar espaços onde são

combinadas as encenações, ou seja, os bastidores. O público das

encenações varia de acordo com o cenário e os atores que estão

representando. No contexto da escola, os professores são facilmente

identificados pela diferença de idade em relação aos alunos, sua estatura, a

forma como se vestem, os espaços que ocupam, assim como, pela sua

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influência sobre seu público. Porém, no presente estudo enfocou-se a

representação que os alunos tiveram em torno da Alimentação Escolar.

Um importante elemento da encenação é a fachada pessoal, ou seja,

os itens de equipamento expressivo que são identificados de um modo mais

íntimo com o próprio ator, que naturalmente espera-se que estejam com ele

em todo momento. Alguns destes veículos de transmissão de sinais são

permanentes, como os aspectos físicos, outros são mutáveis, as expressões

faciais. Os meninos do 9º ano, por exemplo, apresentam uma fachada em

comum, algumas características que os identificam em seu papel de alunos

mais velhos da escola: camisetas embaixo do uniforme, tênis de marcas

reconhecidas, o corte e a cor do cabelo (moicano, trancinhas, cabelo

espetado, tingido de loiro), piercings no rosto, brincos de strass, pulseiras da

equipe de futebol favorita, e os celulares nos quais ouvem música a maior

parte do tempo, principalmente Funk. Eles utilizam os diferentes elementos

desta fachada para encenações tanto na sala de aula, quanto no pátio,

variando os recursos conforme o tempo. Por exemplo, quando jogam futebol

no pátio de entrada alguns retiram a camiseta do uniforme mostrando

aquela que está por baixo, ou quando na troca de aulas a música do celular

começa a tocar.

Na encenação, muitas vezes, a fachada pessoal de um personagem é

compartilhada por um grupo de pessoas que aceita ou até mesmo acentua

suas características. Assim, quando uma encenação é mantida pela

cooperação de um grupo social, forma-se uma representação coletiva.

Goffman (1995) denomina estes grupos de “equipes de representação”. Os

alunos da turma 94 possuem características em comum que os distinguem

como equipe diante do restante da escola. A turma é formada por 41

alunos, porém muitos deles faltam às aulas. Assim, na sala é comum ter

apenas cerca de 25 alunos a cada dia. São alguns dos alunos mais velhos

da escola, e como tal, competem pela dominação dos espaços comuns a

todos apenas com a outra turma do 9º ano. Durante o recreio existem

espaços que somente eles ocupam, como as escadarias ao lado do

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refeitório. Na maior parte do tempo os alunos da turma 94 não interagem

com os alunos mais novos, com exceção de algumas situações em que eles

intervêm em suas atividades. Por exemplo, quando os meninos mais velhos

separaram uma briga entre dois alunos do 7º ano. Entre os membros desta

equipe foi possível observar a delimitação de outras equipes de

representação, pelos seus posicionamentos e as interações entre eles

durante as aulas (Apêndice C, D e E).

Catarina, Cátia, Carla, e Beatriz formam um grupo de alunas que se

destacam por serem extrovertidas e conversarem com a maioria dos

colegas da turma. A este grupo escolheu-se denominar de meninas

populares. Elas vestem camisetas e calça jeans mais justas que as outras

alunas, usam maquiagem, brincos grandes e pulseiras coloridas. Sentam-se

juntas durante as aulas e no recreio formam o círculo mais visitado pelos

meninos. No primeiro dia da pesquisa, elas me deram um papel com as

palavras “seja bem-vinda”, mostravam sua caligrafia para que eu indicasse

a mais bonita. Pediram que eu escrevesse meu nome, para avaliarem minha

letra, depois escreveram seus nomes acima e abaixo do meu. O nome da

Cátia é escrito com “K”, porém para ficar com primeira letra igual ao nome

da Catarina ela substituiu por “C”. Catarina é a protagonista da equipe,

influência as outras meninas nas decisões de onde e quando comer, nas

conversas pessoais geralmente as aconselha e nas atividades em grupo

durante as aulas ela se posiciona como líder. Durante uma conversa, ela e

Cátia, se referiram a outro grupo de meninas como o “bonde das feiosas”.

Durante o tempo do recreio as equipes de representação se

destacam, pois não encenam apenas para a sua turma, mas para todos os

alunos da escola. Ficou evidente a divisão entre as meninas da turma 94 no

dia em que sentadas na escadaria do auditório, Isadora, Emília e Janaína

observavam e comentavam sobre o grupo das meninas populares que

conversava com um menino de outra turma do 9º ano. As três procuravam

saber o assunto da conversa, mas estavam muito distantes para ouvi-la,

então começaram a discutir sobre quem falaria com uma das meninas, “vai

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você Emília, a Cátia gosta de você”. Finalmente Emília se levantou e andou

até o outro lado do pátio onde estava o grupo das meninas populares, Cátia

olhou para ela e ouviu o que dizia, porém sem responder virou de costas

para Emília, e continuou a conversa com suas amigas.

Apesar de não ser da equipe das populares, Jaqueline recebe muita

atenção dos meninos da turma. Apelidada por eles de “Michael Jackson”

devido a sua estrutura física, ela tem o cabelo preto, que no início do

trabalho de campo era crespo, e depois ficou liso com uma franja curta

acima dos olhos expressivos pintados com lápis preto. No pátio, na sala de

aula, e até mesmo no caminho para casa depois das aulas, ela fica junto da

Deise, que é considerada “chata” por muitos alunos da turma e recebe o

apelido de “papagaio” por falar demais. No entanto, em mais de uma

ocasião as duas se separaram porque Jaqueline conversava com outras

meninas da turma.

Adriano, Pablo, Murilo e Mateus compõem a equipe dos meninos mais

populares da turma. Não são tão unidos quanto as meninas, no entanto, se

destacam em várias atividades. Adriano e Mateus geralmente têm as

respostas aos questionamentos dos professores nas aulas, Pablo e Murilo se

destacam no futebol e os quatro ficam de flerte com as meninas. Pablo

possui prestígio entre eles, assim como entre os outros alunos, devido à sua

posição de representante de turma e seu poder de influência. Mateus, por

outro lado, tem o “status sociométrico” (HARGREAVES, 1975) mais elevado,

por ser o mais conversador, contar piadas dos quais os colegas riem e

aquele que mais parecem gostar.

No pátio principal, às vezes, os meninos formavam um círculo e

começavam a chutar a bola, passando-a de um para o outro, um deles no

centro tentando tomar a bola dos outros. Na brincadeira de futebol alguns

se destacavam, por ficar mais tempo com a bola, driblarem, baterem

balãozinho mostrando suas habilidades esportivas. Esta é uma forma de

representação em que alguns tentam assumir o papel de protagonista, se

exibindo para os jogadores e em especial a platéia, os outros alunos e alunas

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do recreio. Na aula de Francês, os meninos falavam sobre o jogo de futebol

da tarde anterior, Mateus caçoava de Márcio dizendo que jogava muito

mal. Renato, que geralmente senta na fileira do meio com Lúcio e Lucas,

sentou-se atrás de Pablo e Adriano, discutindo as melhores cenas do jogo. O

desempenho de destaque que Renato teve durante o jogo, pareceu

permitir sua aproximação temporária da equipe dos meninos populares.

Ingrid, Fabíola, Luciano e Wagner constituem uma equipe mista, os

laços de amizade são mais fortes entre as duas meninas e os dois meninos.

Luciano e Wagner sentam juntos nas aulas e não se importam em debruçar

a cabeça sobre o braço do outro ou caminhar abraçados no recreio. Um

dia Ingrid me contou que Luciano havia a visitado em sua casa para

perguntar se queria namorá-lo, mas ela recusou porque disse que não

confiava nele. Wagner e Ingrid também se abraçam, andam de mãos

dadas, fazem carinho um na cabeça do outro. Ingrid reclama com Fabíola

quando ela almoça com as meninas populares, e às vezes deixa de

conversar com ela durante o restante do dia. Outra equipe de

representação mista é a de Hugo, Ester e Valéria, os três moram na

comunidade que fica atrás da escola, sentam próximos à mesa do professor,

e geralmente conversam somente entre eles.

Nas primeiras semanas da pesquisa nenhum menino falava comigo,

apenas olhavam curiosos. Assim, surpreendi-me na aula de Geografia em

que Hugo sentou na carteira ao meu lado. Nesta aula os alunos geralmente

formam duplas, unindo suas carteiras lado a lado. Em silêncio, ele começou

a se mover na minha direção, sem se levantar da cadeira, arrastando pouco

a pouco até que nossas carteiras se uniram. Ele abaixou a cabeça e dormiu.

Hugo tem o cabelo raspado, olhos grandes e cílios compridos, geralmente

comenta sobre os jogos de futebol do time para o qual torce, mas não

costuma jogar com os outros meninos da turma, ele não usa celular na

escola. O professor de Geografia estava escrevendo sobre o tema da aula

no quadro. Alguns minutos depois Hugo acordou, levantou a cabeça, olhou

para frente, abriu o caderno e começou a procurar uma caneta. Olhou

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para mim e perguntou se eu não copiava a matéria, expliquei que estava na

escola para fazer uma pesquisa, e que não envolvia o conteúdo das aulas.

Depois Ester colocou uma cadeira ao lado dele, conversaram até o final da

aula, me incluindo nos assuntos em alguns momentos. Na saída caminhei

com os dois e Valéria até a avenida, onde seguimos caminhos diferentes.

Goffman (1995) considera que a socialização é realizada no contexto

de representação do eu, porém o processo de aprendizagem do ator

amador não se dá na compreensão exaustiva de um único papel, e sim no

conhecimento de uma quantidade suficiente de formas de expressão para

que seja capaz de encenar qualquer papel social que lhe seja dado. Os

alunos podem desempenhar papéis que lhe são conferidos apenas entre a

sua equipe de representação, por toda a comunidade social da qual fazem

parte, ou podem assumir papéis que não lhe pertencem. Como por

exemplo, no recreio em que Pablo atravessou o pátio com a chave do

portão na mão, outros alunos o seguiam e ele abriu o portão para saírem.

Continuou com a chave da escola, permitindo a entrada e saída das

pessoas. Olhei para o menino que desempenhava o papel de juiz da partida

de futebol no pátio, substituindo a professora, com seu apito repreendia um

jogador. As chaves do portão e da sala de aula, assim como o apito na

educação física, são objetos que parecem proporcionar temporariamente

aos alunos um papel de autoridade. Tanto Pablo, quanto o outro aluno

desempenharam falsas representações ao assumirem papéis de outros

atores para conseguir vantagens sobre sua platéia.

Um papel reconhecido pela escola que pode atribuir prestígio social

ao ator é o de representante de turma. A escolha deste na turma 94

aconteceu no início de uma aula de Matemática. A professora descreveu

um bom representante como aquele que “se dá bem com a turma”, é

responsável e não é faltoso. Em seguida perguntou quem gostaria de se

candidatar, os alunos olharam uns para os outros, então Pablo, Mateus e

Murilo levantaram as mãos. A professora colocou os nomes no quadro e

cada aluno dizia o nome do candidato no qual gostaria de votar. Nenhuma

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menina se candidatou, e me chamou a atenção que Adriano, mais

conhecido como “magrão”, o menino mais alto da turma, que

frequentemente fica cercado por meninas no recreio, não levantou a mão.

Por ser uma posição de prestígio social, pensei que os alunos mais populares

da turma iriam se candidatar, porém nem todos quiseram esta função. Pablo

venceu com vários votos a mais, a maioria dos quais era de meninos. Mateus

ficou como vice-representante, com muitos votos de meninas. E poucos

alunos escolheram Murilo, quase todos os seus votos vieram de meninos.

Algum tempo depois, eu estava conversando com Catarina e ela se

mostrou inconformada por Pablo ser o representante da turma “ele tem

aquele tamanho todo, mas é um malandrinho”. Disse que a única função

que ele exerce é abrir e fechar a porta da sala, mas quando tem desordem

na turma ele não intervém. Pensou melhor e chegou à conclusão que se ele

fosse um bom representante ela também não poderia “bagunçar”. “Ah! Não

sei o que eu acho!” ela exclamou. Em uma aula de Português, a professora

Margarida se irritou com as conversas de Adriano e Pablo, disse que naquele

dia era a primeira vez que estava conseguindo ensinar na turma 94 e o

representante estava atrapalhando. Pablo reclamou dizendo “não tava

fazendo nada”, mas se retirou da sala a pedido dela. Outro dia, a professora

de Matemática, que é responsável pelos representantes de turma, chamou

a atenção do Pablo e do Mateus porque não haviam participado da

reunião no dia anterior. Além de alguns alunos, como Catarina, os

professores também se mostraram insatisfeitos com o desempenho dos

representantes da turma 94. Juntamente ao destaque que esta função os

confere entre os colegas, existe a responsabilidade da função, que

aparentemente não estava sendo assumida por eles.

Catarina, minha principal informante durante os primeiros dois meses

da pesquisa, me explicou que estudava na Escola de tod@s porque sua irmã

disse que “dá pra zoar bastante”. Porém após alguns meses descobriu que

se os alunos estivessem dispostos a se dedicar aos estudos, também era uma

boa escola para isto. Falou que gostaria de fazer parte do turno da tarde

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para não precisar levantar cedo, como sua irmã que estuda em outra

escola. No entanto, disse ser uma decisão difícil, pois a fama dos alunos no

turno da tarde é de “repetentes vagabundos” e aqueles da manhã, de

“maconheiros”. No início de junho, Catarina pediu transferência para o turno

da tarde, e porque “ela estava mais avançada que a turma 94” como

explicou Beatriz, ela mudou para outra turma. A partir de então o grupo das

meninas populares ficou disperso, Beatriz passou a sentar na frente da sala,

disse que precisava estudar para entrar em uma escola melhor no próximo

ano, Cátia e Carla continuaram a ouvir música no celular durante as aulas e

faltavam bastante.

No decorrer das observações percebi que a equipe de representação

da turma 94 era tratada de forma diferenciada pelos professores, em

relação às outras turmas do 9º ano. Isto ficou evidente em uma conversa

com as professoras Carmem e Andréia um dia na sala de informática.

Andréia é professora de Ciências, descrita por uma das alunas como “a

professora cheinha de cabelo enroladinho”. Muitas vezes tem que gritar para

ser ouvida nas aulas, pois os alunos não correspondem ao seu pedido por

silêncio. Quando está na sala dos professores conversa sobre vários assuntos

com seus colegas de trabalho. Ela me perguntou como estava a pesquisa e

o que eu achava da turma 94. Carmem, a professora de Matemática, disse

que eles são “limitados”, com o tom de pena, “porque a gente passa as

coisas num dia e no outro não lembram”. Andréia completou dizendo que os

acha preguiçosos. Durante o recreio, outro dia, Catarina me perguntou por

que escolhi acompanhar a turma dela, e ficou surpresa quando disse que a

diretora a havia indicado. Ela falou que é a “pior turma”, a sala dos

“repetentes” e “bagunceiros”. Perguntei por que ela acha isso e respondeu

“os professores falam que nós somos”.

A percepção dos professores em relação a essa turma ficou evidente,

por exemplo, no início de uma aula em que Carmem foi até o fundo da sala

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onde eu estava sentada e me mostrou, orgulhosa, os livretos com cordéis10

de Matemática. A atividade havia sido proposta para os alunos do 9º ano

aprenderam conceitos de Geometria. Folheei cada um deles, eram quatro,

e reparei que ao final não estava, entre os nomes das turmas, a 94. Depois

conversei com ela sobre os trabalhos e questionei por que esta turma não

havia participado. Ela explicou que não era possível desenvolver atividades

escritas com eles, “tem que dar atividades que eles conseguem fazer”.

Porém, um dos meninos, Fernando, que se destaca nas aulas de Artes, faz

desenhos nos cadernos e braços dos outros meninos e é bom jogador de

futebol, havia feito um desenho sobre a importância da Matemática, e ela

iria utilizá-lo em uma feira de ciências. O desenho, no formato de história em

quadrinhos, continha as seguintes imagens: (1) um liquidificador era no

centro, uma caixa com as palavras “leite Êlege” e números que caiam da

caixa para dentro do liquidificador; (2) uma mão com um relógio no punho

segurava um copo no qual estava sendo despejado o conteúdo do

liquidificador; (3) a cabeça de um menino que estava bebendo o líquido

numérico do copo e havia números no cérebro dele; (4) o cérebro dele

estava maior do que na imagem anterior e com mais números.

O professor de Artes, Juliano, também desenvolve projetos com a

turma. Ele é um jovem de vinte e poucos anos, tem os cabelos em rastafári e

veste roupas coloridas de algodão, sandálias de couro e um colar feito com

casca de coco. Popular entre os alunos, em especial as meninas e, muitas

vezes, domina as conversas entre os professores. A sua percepção da turma

94 é diferente daquela das professoras. Seus projetos foram citados entre os

aspectos que levaram Catarina a gostar da escola. Ela contou que no ano

anterior, participou de um que envolvia peças de teatro e danças com

temas relacionados à saúde que os alunos apresentaram no hospital

municipal para as crianças e seus pais. Além disso, no início daquele ano, o

10 De acordo com um dicionário cordel é um romanceiro popular nordestino, que se distingue em dois grandes grupos: o da poesia improvisada, cantada nas "cantorias", e o da poesia tradicional, de composição literária. Contida em folhetos artesanalmente impressos e vendidos a baixo preço nas feiras, esquinas e mercados do Nordeste.

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professor coordenou um debate em sala de aula sobre as propostas de

Paulo Freire, que foi filmado por uma emissora de televisão. Durante uma de

suas aulas, enquanto propunha um novo projeto de teatro aos alunos,

explicou que geralmente escolhia a turma 94 para participar destas

atividades, porque era uma turma “criativa” e “com potencial”.

A percepção que o professor tem dos alunos pode ter efeito positivo

ou negativo sobre eles. De acordo com Hargreaves (1975), nossas

percepções de uma pessoa criam fundamentos para desenvolvemos

predições e expectativas de atitudes futuras. Estas expectativas podem

influenciar o desencadear dos eventos. No relato sobre a professora

Carmem, apesar de desenvolver atividades criativas com seus alunos, a

percepção dela em relação à turma 94 a impede de envolvê-los nestas,

influenciando, com isso, a forma como este grupo de alunos é percebido por

outros professores e colegas na escola. Por outro lado, o incentivo do

professor Juliano provocou nos alunos a determinação de realizar as

atividades sugeridas, proporcionando seu envolvimento em futuros projetos.

As interações sociais entre alunos e professores se diferenciam daquela

observada em outros contextos. Geralmente uma interação é iniciada pelo

desejo de ambos os atores ou equipes engajarem em uma encenação. Os

alunos, no entanto, não têm escolha, entram na sala de aula e não têm

liberdade de deixá-la fisicamente (HARGREAVES, 1975). Assim, eles muitas

vezes buscam mecanismos de fuga das aulas, como pelos pensamentos em

outros espaços e situações, os cochilos nas carteiras, as conversas com os

colegas e as músicas no celular.

Outro aspecto de distinção deste tipo de interação é a significante

diferença de poder social entre os atores. Alunos são submetidos a longos

períodos de convivência com pessoas em posição de domínio da situação.

As aulas de História são um exemplo característico desta diferença entre os

atores. O professor Mauro geralmente inicia suas aulas com um discurso em

tom de bronca com duração de cinco a dez minutos, nos quais os alunos

permanecem em silêncio, com o olhar fixo sem foco ou com a cabeça

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inclinada para baixo. A expressão facial do professor transmite a impressão

de estar mal humorado, tem sobrancelhas escuras e grossas, e a testa

enrugada. Suas falas são permeadas por afirmações fechadas que deixam

poucas oportunidades para as colocações ou questionamentos dos alunos,

e em muitos momentos faz comentários sarcásticos. Durante o discurso ao

final de uma das aulas, dizia que ele não é amigo dos alunos e não precisa

do afeto deles, ele é o professor, e por isso tem controle sobre a turma,

“vocês têm que entender isso”.

O professor de Artes tem outra postura. Durante uma de suas aulas, um

dia, o professor Juliano teve dificuldade em manter os alunos atentos e

encorajá-los a se envolverem nas atividades. Pediu a colaboração deles

repetidas vezes, dizendo que ele procura tratá-los de “igual para igual”. Ao

final da aula, após suas tentativas frustradas, ele ameaçou mantê-los na sala

durante o recreio, afinal “não tenho fome, nem pressa”, Pablo gritou “eu

tenho fome!”.

Quando em sala de aula cada professor é uma equipe de uma única

pessoa, pois segue os padrões morais determinados pelo grupo de

professores da escola apesar de os outros não estarem presentes. O professor

de Artes chegou enquanto o de História ainda estava na sala, e, portanto,

esperou encostado na porta com seu material nos braços. O outro encerrou

sua encenação, ao apagar o quadro branco, reunir seus livros, e sair da sala.

Os dois professores não poderiam compartilhar do mesmo palco naquele

momento, pois apesar de formarem uma equipe a sala de aula pertence a

um professor por vez.

No entanto, a equipe dos professores também assume a

responsabilidade da “representação coletiva” não somente perante os

alunos, mas diante dos responsáveis pelos alunos e a direção da escola.

Entre seus membros cria-se uma familiaridade em que todos têm

conhecimento da encenação que fazem para a platéia, um ator é

cúmplice do outro, e o desacordo entre a equipe ou abandono por parte

de qualquer um dos personagens pode comprometer a realidade por eles

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representada (GOFFMAN, 1995). Por exemplo, o professor de História ao

entrar na sala na primeira aula do dia e ver o ventilador funcionando,

apontou em sua direção com um sorriso no rosto. Tratou com ironia a

relação entre o concerto do ventilador e a visita da secretária municipal da

educação à escola naquele dia, alguns alunos sorriram e participaram dos

comentários. Nesta situação o professor decidiu não ser cúmplice dos

membros de sua equipe, ao criar uma má impressão da escola para sua

platéia de alunos.

Além dos alunos e professores, outra “equipe de representação” de

destaque neste estudo é a dos manipuladores de alimentos. Mais

conhecidas como merendeiras11, esta equipe é formada por Raquel, Cíntia,

Samara e Ivo. Eles se restringem ao cenário do refeitório e da cozinha, e tem

sua principal encenação no momento da refeição. Raquel é a protagonista

da equipe, responsável pelas atividades de preparo dos alimentos na

cozinha. Cíntia, a merendeira que mais conversa com os alunos, geralmente

serve as refeições. Todas as vezes em que Samara me via no refeitório

perguntava, em tom de brincadeira, se minha pesquisa envolvia o trabalho

de limpeza da cozinha, e quando limpava as mesas do refeitório cantava

músicas cristãs. Ivo, o único homem, conversa pouco, e geralmente recebe

tarefas difíceis como carregar as panelas cheias ou cortar as carnes. As

merendeiras têm papel essencial no cotidiano da Alimentação Escolar, que

serão descritos a seguir, assim como, suas interações com os outros atores

sociais, e os espaços onde a alimentação se faz presente na escola.

11 Os alunos se referem aos manipuladores de alimentos da escola como “merendeiras” ou “tias”, portanto, optou-se por utilizar o termo merendeiras no decorrer da dissertação, mesmo que a Alimentação Escolar não consista mais de uma merenda, mas de uma refeição. Apesar de haver um homem nesta função, utilizou-se a palavra no feminino em consideração à maioria que são mulheres.

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4 VIVENCIANDO O COTIDIANO DA ALIMENTAÇÃO

4.1 Arroz com feijão e “todos querem Coca”

O cheiro de feijão temperado com louro acompanhava o canto da

panela de pressão. Eram sete horas da manhã na pequena cozinha da

escola. Duas merendeiras vestidas com suas calças e camisetas brancas

com o emblema da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (COMLURB),

galochas também brancas e as toucas de cozinheira envolvendo os

cabelos, preparavam a alimentação do dia. A merendeira Raquel me

explicou que ela e Cintia iniciam o trabalho às seis horas. Ivo e Samara

chegam uma hora depois e também deixam o trabalho mais tarde.

Na verdade, os quatro são Agentes de Preparo do Alimento (APAs),

pois assim são chamados os manipuladores de alimentos que trabalha para

a COMLURB. De acordo com a diretora da escola os APAs são melhores que

as merendeiras porque não faltam e aqueles que precisam se afastar da

função são repostos, “as merendeiras têm vida útil muito curta porque

carregam muito peso e ficam sobrecarregadas quando são poucas” ela

explicou. Antigamente o número reduzido de manipuladores de alimentos

não era tão problemático, pois uma única preparação era produzida por

dia, por exemplo, arroz com peixe. Hoje em dia com a necessidade de

preparar uma refeição completa (arroz, feijão, carne e legumes) fica inviável

que a cozinha funcione com menos de quatro funcionários. Durante todo o

ano anterior a escola funcionou com o número de merendeiras insuficiente

para produzir a refeição, uma delas se aposentou e a outra estava de

licença por questões de saúde, assim com apenas duas funcionárias tiveram

que recorrer à “refeição emergencial”. Eram servidos alimentos que não

necessitavam de preparo, como biscoitos, iogurte, e sucos em embalagens

individuais.

Raquel trabalhou durante 30 anos como cozinheira chefe em uma

cozinha industrial que produzia cinco mil refeições por dia, e como parte de

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suas atribuições ela fazia o pedido de compras e recebimento dos alimentos.

Porém, na escola esta responsabilidade é da diretora, que faz o pedido de

acordo com o cardápio da semana e as quantidades per capita estipulados

pelo Instituto de Nutrição Annes Dias (INAD)12. A escola possui cerca de 1200

alunos, e são produzidas entre 500 e 600 refeições por dia, ou seja, refeições

para mais ou menos 50% do número de alunos. Segundo a diretora as

escolas em “regiões mais complicadas” ou “nas comunidades carentes”

geralmente solicitam alimentos para a totalidade dos alunos matriculados,

porém a maioria das escolas cobre no máximo 80%.

As entregas de alimentos não perecíveis acontecem toda segunda-

feira, e das frutas e hortaliças nas quartas-feiras, pelas quais a Raquel é

responsável. Em uma das minhas conversas com a diretora ela mostrou

preocupação em relação às condições de recebimento dos alimentos, pois

não existe uma entrada especificamente para este fim. Ela dizia que não

deveriam recebê-los pelo refeitório “os caixotes que passam pelo

supermercado, os caminhão, não deveriam entrar no refeitório, muito menos

na cozinha”. Em 1936, quando a escola foi fundada, a cozinha e o refeitório

ficavam no terceiro andar do prédio principal, onde agora existem duas

salas de aula. A diretora explicou que era uma área muito pequena, e não

havia ventilação adequada, portanto foi construída a estrutura em anexo,

que constitui o refeitório atual, porém a cozinha não foi planejada e

continua tendo problemas em seu funcionamento.

As quatro empresas que fornecem alimentos para a escola são

selecionados por meio de licitação e são aprovados pelo INAD. Perguntei

para a diretora se as frutas e hortaliças também eram fornecidas por estas

empresas ou se havia algum envolvimento da agricultura familiar, “essa coisa

de agricultura familiar só tem no interior, na cidade não tem” ela respondeu.

Apesar de constar na Resolução nº 38 de 2009 do PNAE, a aquisição de

12 Órgão normativo e regulador do Município do Rio de Janeiro para ações de alimentação e nutrição, com a missão de conceber, implementar, acompanhar e avaliar a Política de Alimentação e Nutrição no Município (BRASIL, 2010e).

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alimentos da agricultura familiar ainda não é realidade em muitos

municípios, inclusive no Rio de Janeiro.

Triches e Schneider (2010) destacam esta iniciativa do governo como

marco nas políticas públicas relativas à Segurança Alimentar e Nutricional. O

apoio aos pequenos produtores rurais implica no incentivo a um modelo de

produção e consumo de alimentos mais sustentável, distanciando-se do

agronegócio e da produção com elevada utilização de produtos químicos

que resulta em graves conseqüências ao meio ambiente e à saúde. Este

modelo possibilita a aproximação entre a cidade, onde os alimentos são

consumidos, e o campo, onde são produzidos, com a reconexão da cadeia

alimentar. Além de encorajar um modelo de produção sustentável por meio

da legislação do PNAE, a forma de aquisição destes alimentos também

rompeu com o tradicional processo de licitação que favorece aos grandes

produtores rurais. A dificuldade de concretizar esta iniciativa, segundo

pesquisa desenvolvida pelos autores, está relacionada às exigências legais e

sanitárias da aquisição dos alimentos que impede o acesso dos agricultores

familiares, possivelmente também seja o caso no Rio de Janeiro.

A preparação das primeiras refeições se inicia assim que as

merendeiras chegam à escola, e são servidas no recreio das turmas do 2º

ciclo e no recreio do 1º ciclo. Em seguida começam o preparo para as

refeições que são servidas no recreio do turno da tarde. De acordo com

Raquel o procedimento correto é pré-preparar todos os alimentos no dia em

que serão servidos, porém por causa do horário do almoço não há tempo

hábil para isto. Portanto, eles cortam as carnes e alguns dos legumes no dia

anterior, deixando-os na geladeira durante a noite. Por isso, o cardápio da

segunda-feira é composto por pratos que exijam pouco pré-preparo: em

uma semana é servido peixe e na outra, ovos. Samara explicou que na outra

cozinha em que ela trabalhou utilizava diversos temperos como coentro,

curry e manjericão, mas na escola temperam a comida apenas com alho e

sal porque as crianças não gostam dos sabores diferentes.

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O som do sinal avisando o início do recreio quase não pode ser ouvido

da sala de aula, mas para quem aguarda este momento durante três aulas,

não há dúvidas. Todos os alunos saem rapidamente da sala, acompanhados

pelos membros de sua equipe. Aqueles que vão comer a refeição da escola

logo se direcionam ao refeitório, os outros formam seus círculos no pátio

principal. Uma fila é formada em frente ao pequeno portão, e uma das

merendeiras controla a entrada dos alunos para que não haja fila no balcão

térmico. Geralmente Raquel é a primeira a servir a comida para cada aluno,

ela segura o prato e o garfo com uma das mãos, e com a outra coloca uma

concha de feijão e depois uma escumadeira de arroz, sem perguntar a

quantidade. A próxima merendeira coloca “a mistura”, por exemplo, carne

ao molho de tomate, e quando o legume é uma preparação separada,

pergunta se o aluno quer, porém a maioria recusa. A fruta fica em uma

caixa plástica branca própria para alimentos, alguns a pegam junto com o

prato, outros comem a refeição e depois se levantam para buscá-la. Os

alunos se sentam em grupos às mesas, é pouco comum ver alunos solitários

no refeitório.

A refeição é servida em pratos fundos de vidro marrom, e os alunos

comem apenas com um garfo, por isso, todas as preparações contêm as

carnes picadas e os legumes picados, ralados ou em purê. Comer sem usar

faca além de não ser hábito dos alunos, não é preferência deles. Certa vez,

Fabíola estava sentada ao meu lado no refeitório e disse que não gostava

de comer somente com o garfo “não sei o que fazer com essa mão!” e

balançou a mão esquerda, depois inclinou o prato e continuou a comer. Ao

final do recreio dos mais novos assisti um menino, o único aluno ainda no

refeitório, tentando pegar com o garfo os últimos grãos de arroz que

restavam no prato que ele inclinava de um lado para o outro. Beatriz

também reclamou do garfo dizendo que até prefere comer com uma

colher. De acordo com a diretora, a recomendação de não disponibilizar

facas aos alunos provém da Secretaria Municipal da Educação e é comum

a todas as escolas públicas.

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Na rotina da Alimentação Escolar, existem algumas regras que os

alunos precisam observar, estipuladas pelas merendeiras. Ao terminar a

refeição, cada um leva seu prato para a bancada na abertura menor da

cozinha. Se tiver restos de comida, estes devem ser jogados no lixo “se não a

tia briga” como Cátia, uma das meninas populares, me explicou em uma

das primeiras vezes em que comi no refeitório. A prática de “jogar fora” os

restos de comida do prato é bastante comum entre os alunos,

especialmente as meninas que não consomem todo o alimento que é

colocado em seu prato pelas merendeiras, porque ficam satisfeitas ou não

gostam da comida. Na mesa das meninas populares quando uma se

levanta para devolver o prato vazio, geralmente se oferece para levar o

prato das outras também. Os alunos permanecem no refeitório até que

todos do seu grupo tenham terminado de comer, e então, vão até o pátio

onde permanecem o restante do recreio.

A entrada no espaço do refeitório é permitida somente àqueles que

vão comer. Em um determinado recreio, eu estava sentada a mesa e me

chamou a atenção um menino da turma 93 que tentava entrar no refeitório,

porém a merendeira Cíntia não o deixava passar pelo pequeno portão.

Devido à distância em que estava não podia ouvir o que diziam, mas ele

começou a apontar para o balcão térmico, então Cíntia abriu o portão e

seguiu o menino com os olhos. Ele pegou um pedaço de mamão no balcão

e sentou-se ao lado de três meninos, olhou na direção da Cíntia e percebeu

que ela não o olhava mais, então trocou o pedaço de mamão pela casca

de um dos meninos e ficou conversando com eles durante algum tempo.

Aparentemente Cíntia autorizara a entrada do aluno porque sabia que não

iria comer a refeição, e ele a ludibriou para poder sentar com seus amigos

durante o recreio.

Antes de entrar no refeitório os alunos geralmente olham para o

quadro branco na parede para verificar o cardápio. Nas vezes em que

presenciei alguns desistindo de comer, o prato do dia era sopa. No mês de

junho e julho havia sopa pelo menos uma vez por semana. Sopa paulista que

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consistia de macarrão com pedaços de carne, feijão preto, cenoura e

batata picadas ou a sopa de macarrão com feijão preto, abóbora picada e

carne desfiada. Os cardápios que pareciam atrair mais pessoas para o

refeitório eram aqueles com frango, como o dia em que foi servido arroz

branco, feijão carioquinha, frango em cubos ao molho sugo e abóbora em

pedaços refogados, porém essa não compôs o prato de muitos dos alunos.

Ou arroz com cenoura ralada, feijão preto, frango em cubos com vagem e

tomate picados. A sobremesa alternava entre banana e mamão, e raras

vezes maçã ou laranja. De acordo com as merendeiras, dos alunos que

fazem a refeição diariamente, cerca de metade do número de alunos na

escola, muitos comem apenas a fruta do dia.

Alguns alunos vão para o refeitório com a mochila nas costas, de

acordo com Mateus, para guardar uma fruta e levar para casa, porque

“não tem o que comer em casa”. As meninas da turma 94, todavia, me

deram outro motivo, disseram que os meninos ficam com o material por

perto o tempo todo por medo que alguém roube seus pertences. Certo dia,

observava o tempo da merenda, quando dois meninos entraram com

mochilas nas costas e se sentaram para comer, um tirou a mochila e colocou

na mesa ao seu lado e o outro tirou os braços de dentro das alças, deixando

a mochila entre seu corpo e a cadeira.

Era hora do recreio, numa quinta-feira. Havia uma fila comprida de

alunos em frente ao pequeno portão. A maioria parecia ser do 6º ano, um

empurrava o outro, ansiosos para entrar no refeitório. Samara estava

controlando a entrada deles, “não precisa empurrar, tem para todos!” falou

com a voz firme, a testa enrugada e a mão estendida na direção deles. O

cardápio do dia era polenta, feijão carioquinha, carne moída e couve

mineira refogada. Uma menina que estava ao lado da fila me perguntou

“tia, o que é polenta?”, fiquei surpresa, porque a pergunta dela me fez

pensar que ela nunca havia comido polenta. Então, tentei explicar a

polenta para alguém que a desconhecia “é uma comida feita com milho, é

mole, amarelo”, ela virou e foi repetir a minha explicação para a amiga dela

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que já estava na fila. Fiquei do lado de fora do refeitório observando os

alunos por cima do muro. Duas meninas estavam comendo e uma disse

“não gosto do angu com este feijão, prefiro com o preto”. Logo percebi

porque a menina havia me perguntado sobre a polenta. Quando ela saiu

do refeitório me perguntou “tia, porque que você não disse que era angu!”.

O refeitório é o principal espaço da alimentação dos alunos, e, além

das professoras de educação física que o atravessavam para pegar os

equipamentos no depósito para suas aulas, geralmente não é utilizado para

outras atividades. A não ser no dia em que o refeitório se transformou em

sala de aula. Não havia salas suficientes para todos fazerem as provas, e,

portanto, os alunos do 4º ano sentavam-se às mesas onde geralmente

comem, respondendo as questões de Português. Ivo não deixou que eles

entrassem para fazer a prova até que a diretora viesse e desse a sua

autorização para a mudança no espaço.

No recreio dos alunos mais velhos, tanto o refeitório quanto a cozinha

são compreendidos como espaços das merendeiras, onde elas controlam a

entrada dos alunos, servem as refeições, regulam o comportamento. Apesar

da ausência dos professores, as merendeiras não os substituem, pois não

desempenham o mesmo papel. Na sala de aula os professores têm

influência direta sobre as interações entre os alunos, estipulando os tempos

de conversa, de silêncio, de exercícios de leitura e escrita, de saída do

espaço. No refeitório, por outro lado, os alunos interagem mais uns com os

outros e não tem seu tempo tão determinado.

Observei que neste espaço a presença das equipes dos alunos era

mais evidente que na sala de aula. Algumas falas e comportamentos deles

revelaram que comer no refeitório é uma atividade a ser feita em grupo.

Como no recreio em que Emília me perguntou se a comida daquele dia

estava “gostosa”, eu respondi que sim e questionei porque não havia

comido. Sua resposta foi “ninguém quis ir comigo”. Outro dia, Ingrid deixou

de almoçar porque as meninas não a convidaram: “se soubesse tinha ido

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com vocês”, falou com a expressão séria, os braços cruzados e permaneceu

em silêncio o restante do recreio.

No tempo do recreio as equipes de representação são demarcadas

pelos espaços que ocupam. Assim, se alguns membros, especialmente o

protagonista, escolhem não comer no refeitório os outros o acompanham.

No caso das meninas populares, todas comem a Alimentação Escolar e sua

equipe ocupa uma das mesas, à qual raramente outro aluno se une. Uma

espera até que a outra termine sua refeição e saem juntas para formar um

círculo no pátio. Dos quatro meninos mais populares da turma 94, apenas

Pablo e Murilo comem no refeitório, sentam-se lado a lado, mas muitas vezes

compartilham a mesa com outros meninos e apesar de entrarem juntos, nem

sempre saem ao mesmo tempo. Em diferentes ocasiões, eu encontrei Julia

próxima ao muro baixo do refeitório esperando Denise, Deise e Sofia

terminarem de comer para poder se unir ao grupo delas no pátio durante o

restante do recreio.

Julia me explicou que não come a alimentação oferecida pela escola

porque “não gosta” e prefere almoçar em casa. Nem sempre ela é aceita

por este grupo de meninas, e nem por outros de sua turma. No dia da prova

de Matemática a professora me disse que Julia tem “dificuldade de

aprendizagem” e que não é a primeira vez em que estuda no 9º ano. Em

muitas de nossas conversas, Julia citou sua idade (22 anos) como motivo

pelo qual os alunos da turma não a incluíam em suas atividades. Mas,

mesmo com a possibilidade de se sentar com uma equipe durante a

refeição em alguns dias, o motivo pelo qual ela rejeita a Alimentação Escolar

tem mais valor em sua decisão, a levando a abdicar desta oportunidade.

Denise também não integra uma equipe de representação, mas conversa

com muitas das meninas da turma. Ela geralmente se senta sozinha no pátio

durante o recreio escutando músicas com o fone de ouvido e disse gostar

de bandas de Rock nacional.

Raramente se observa entre os alunos do 6º ao 9º ano alimentos ou

bebidas que vem de fora da escola. No pátio principal alguns dias um aluno

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ou outro bebe sucos industrializados, guaraná natural, ou come biscoitos

recheados ou salgadinho Chips. Todavia, uma bebida se destaca no

cotidiano pelas mudanças nas interações sociais por esta causadas, trata-se

da Coca-Cola. A aquisição desta bebida acontece da seguinte maneira:

um aluno ou aluna vai até a portinhola no portão lateral da escola, onde

geralmente ficam dois ou três meninos que aparentam ter entre 16 e 18

anos. O aluno entrega dinheiro a um deles, depois de alguns minutos surge

por cima do muro uma garrafa de 2 litros de Cola-Cola.

A primeira vez em que vi a Coca-Cola no refeitório, Pablo e Murilo

entraram com uma garrafa e todas as meninas populares olharam em sua

direção. Carla correu até eles e começou a pedir um pouco, voltou com um

copo descartável que deu a volta na mesa e quando me ofereceram

Beatriz disse “claro que ela quer, todos querem coca!”, eu aceitei. Outro dia,

durante a aula de Geografia, Cátia perguntou se eu iria almoçar com elas e

disse que “se você tivesse aqui ontem tinha Coca” e olhou para Fabíola. No

início do meu tempo na escola Fabíola se sentava sozinha à mesa no

refeitório, ou com Ingrid quando ela decidia comer. Porém, em determinado

recreio Fabíola sentou-se com uma garrafa de Coca-Cola nas mãos,

Catarina e Cátia, depois de pegarem seus pratos, foram se sentar ao lado

dela. Sem dizer nada, ela abriu o refrigerante e encheu três copos, um para

cada. Depois disso, repetidas vezes observei Fabíola comprando Coca-Cola

e se juntando as meninas populares.

Fabíola é muito sorridente e brincalhona, fala alto, e ouve músicas

durante as aulas. Em uma conversa, ela me disse que a Coca-Cola que

compra dos vendedores ambulantes por cima do muro custa cinco reais e

que considerava a escola “burra”, porque se tivesse uma cantina poderia

ganhar dinheiro e seria melhor para os alunos. Ao comprar o refrigerante,

Fabíola garantia sua aceitação pelo grupo das meninas populares durante o

recreio, podendo se unir a esta equipe por tempo limitado. Além delas,

Ricardo, aluno que senta ao lado de Catarina na sala de aula e algumas

vezes andou de mãos dadas com ela, pede Coca-Cola para Fabíola.

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Geralmente ele fica em pé ao lado da mesa delas, ouvindo a conversa, e

depois de alguns minutos pede o copo da Catarina. Ao final de uma

refeição ainda havia metade da garrafa de refrigerante, Cátia disse que

não beberam tudo porque Ricardo tinha faltado naquele dia. “Ele toma

assim” ela fez o formato do copo com a mão e levou até a boca

rapidamente várias vezes. Nos outros dias em que sobrou Coca-Cola, depois

de comer, Fabíola a entregou aos meninos populares, e outra vez ofereceu

à Deise, Jaqueline e Denise.

A valorização desse refrigerante ficou mais perceptível no dia em que

Emília estava bebendo um copo de água que busquei na sala dos

professores a pedido dela. Ela disse que fazia tempo que não bebia água,

porque em sua casa havia somente Coca-Cola: “todo mundo é viciado em

Coca”. De acordo com a aluna, quatro garrafas do refrigerante ficam

abertas em sua geladeira simultaneamente. Quando Isadora foi visitá-la

pediu um copo de água, “água!” exclamou Emília, ela disse que abriu a

geladeira e só tinha refrigerante. “Pode ser Coca? É mais gostoso!”,

perguntou Emília.

Apesar de todos quererem Coca, nem todos podem beber. Um dos

dias em que Fabíola comprou o refrigerante, uma menina mais nova que

estava sentada na outra ponta da mesa onde ela e as meninas populares

estavam, pediu um copo e ela negou. Além de incluí-la no grupo social no

qual desejava estar, a aquisição da Coca-Cola possibilitava à Fabíola

escolher os alunos com quem compartilhava a bebida. Neste contexto, o

refrigerante parecia simbolizar a relação de amizade entre aquele que dá e

o que recebe. Receber a Coca-Cola que sobra na garrafa depois da

refeição revela uma tentativa de aproximação, afinal, não é entregue a

qualquer pessoa, mas aos grupos da mesma turma que Fabíola. No entanto,

esta aproximação não é tão importante quanto àquela das alunas que

recebem os primeiros copos de Coca-Cola.

Além da Coca-Cola outro alimento conferiu prestígio social à

Jaqueline durante uma aula de Francês. Adriano encontrou um pacote de

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biscoitos recheados debaixo da carteira da Jaqueline, ergueu o pacote no

ar e disse que queria um. Sem esperar a resposta, enfiou um biscoito inteiro

na boca e voltou para sua carteira, deixando Jaqueline com um coro de

vozes pedindo biscoitos. Depois de dar um para Mateus, que estava sentado

à sua frente e outro para Isadora que correu até ela pedindo, escondeu o

restante do pacote embaixo da carteira. Os biscoitos recheados trouxeram

uma popularidade para Jaqueline, o que não aconteceu com Cátia no

próximo dia, quando levou um pacote de salgadinhos Chips e apesar de

oferecer para alguns colegas, não causou o mesmo alvoroço.

Alguns alimentos são percebidos pelos alunos como formas de

presentear. Por exemplo, durante uma conversa, Catarina se lembrou do

aniversário da Cátia em que fez uma festinha na escola para ela com

“Danone” e biscoitos. Neste caso, o alimento foi utilizado como recurso no

reforço de uma amizade. Balas e gomas de mascar são oferecidas e

requisitadas durante vários momentos da aula, especialmente no início.

Instantes depois da minha primeira conversa com Jaqueline, que aconteceu

durante o recreio, ela voltou e me ofereceu uma bala, talvez uma forma de

aproximação, eu aceitei. Recebi balas de outras alunas na sala de aula,

decidi aceitar todas as vezes que alguém me oferecesse.

Ao final do recreio do 2º ciclo, a turma 94 aguardava no corredor para

entrar na sala de aula, quando os alunos do 3º ano saíram de sua sala

enfileirados, seguindo a professora. Catarina, Cátia, Carla, Ingrid e Fabíola

formaram uma fila, e uma com as mãos nos ombros da menina à sua frente,

começaram a seguir os alunos menores, dançando e cantando

“merendinha, merendinha, vou comer, vou comer, pra ficar fortinho, pra

ficar fortinho e crescer, e crescer”. No recreio das turmas dos alunos mais

novos, o pequeno portão na entrada do refeitório fica aberto e ninguém

controla a entrada dos alunos. As professoras saem do prédio principal da

escola seguidas por seus alunos, mais de a metade dos quais carregam

consigo algum alimento: salgadinho tipo Chips, biscoitos recheados,

salgados (coxinha ou rissole), iogurte, bolos industrializados, e bebidas:

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guaraná natural, refrigerantes em garrafas de 100ml, ou sucos

industrializados. Alguns alunos seguem suas professoras até o refeitório e

outros ficam no pátio principal. No caso das turmas da educação infantil, se

algum aluno sai da fila, ou anda à frente da professora, ela pára e espera

até que retornem aos seus lugares. Chegando ao refeitório, muitas vezes, as

professoras anunciam qual é o cardápio do dia.

A rotina para servir a refeição é muito semelhante ao recreio anterior.

Porém, Raquel e Cíntia geralmente perguntam aos alunos, antes de colocar

o alimento no prato, “você quer feijão?” e assim fazem com todas as

preparações, enquanto os alunos falam ou sinalizam com a cabeça se

aceitam ou não. Elas também colocam cerca de metade da quantidade

de comida em relação aos pratos dos alunos mais velhos. Ao sentarem às

mesas, meninos e meninas se misturam mais do que no outro recreio. Muitas

vezes, as meninas sentam em duplas ou trios, mas não formam mesas

exclusivamente de um sexo. As professoras das duas turmas de educação

infantil aguardam ao final do balcão térmico e recebem o prato das mãos

da merendeira, depois, acompanhadas por seus alunos o colocam no lugar

de sua escolha. Uma delas coloca todos os alunos de sua turma numa única

mesa, a outra coloca os meninos em uma mesa e as meninas em outra, e

pedem para que eles não se levantem de seus lugares.

Alguns alunos recebem os pratos com as duas mãos, e andam

lentamente até as mesas, olhando para o prato no caminho. Outros, um

pouco mais velhos, pegam os pratos, e como quem tem pressa começam a

colocar garfadas de comida na boca enquanto andam em direção à

mesa. Da mesma forma, no caminho para devolver o prato, andam e

terminam de comer ao mesmo tempo, correndo para o pátio principal assim

que o prato estiver no balcão da cozinha. Os mais novos não precisam jogar

os restos de comida no lixo antes de devolverem os pratos, como fazem os

alunos do 2º ciclo. Num dos dias em que a sobremesa era banana, observei

que alguns pegavam a fruta no momento da devolução dos pratos,

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andavam até o lixo, descascavam a banana, jogavam a casca no lixo, e

comia em pé ao lado do lixo antes de sair do refeitório.

A maioria dos alunos fica na fila para receber a refeição, mas alguns

encontram um lugar para sentar logo que entram no refeitório para

comerem os alimentos que trouxeram de fora. Algumas meninas estendem

pequenas toalhas em cima da mesa e depois posicionam seus alimentos.

Biscoitos, salgadinhos Chips e iogurtes frequentemente são divididos entre os

alunos. O dono do alimento oferece aos colegas que estão sentados ao seu

lado, e raramente um ou outro pede algum alimento. Eu estava sentada nos

degraus do refeitório observando, quando duas meninas sentaram à mesa

na minha frente. Uma delas estava com um saco de papel pardo com

manchas de umidade no fundo, colocou-o sobre a mesa e abriu. Dentro

havia um rissole, que ela dividiu ao meio com as mãos, e cada uma comeu

uma metade. Um menino que estava tomando guaraná natural ofereceu a

outro que estava sentado ao seu lado “não quero mais, você quer?”, o

segundo menino aceitou e bebeu o restante usando o mesmo canudo.

Outro aluno sentava-se à mesa com um pacote de biscoitos recheados

sabor chocolate na mão direita, e na mão esquerda tinha o garfo com o

qual comia a Alimentação Escolar. Quando terminou a refeição, devolveu o

prato e saiu do refeitório, o pacote de biscoitos ainda estava fechado. Assim

como ele, observei outros alunos que levavam alimentos para o refeitório,

mas não os consumiam. Possivelmente os tinham no caso de não gostarem

do cardápio do dia, ou os comiam em outro momento.

Assim como no recreio dos alunos mais velhos, a refeição servida pela

escola não era compartilhada pelos alunos do 1º ciclo. Cada um tinha o seu

prato, e quando o aluno não comia todos os alimentos, estes eram

dispensados. A diferença entre o compartilhar das merendas e da refeição

pode ser associada ao uso de utensílios, pois ao oferecer os biscoitos ou os

salgadinhos o outro aluno usa as mãos para pegá-los, enquanto que no

prato os alimentos teriam que ser apanhados com o garfo do próprio aluno

ou outro. Também está relacionado à disponibilidade da Alimentação

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Escolar para todos os alunos, extinguindo a necessidade de partilhar o

alimento, pois cada um tem acesso à quantidade que quiser. O alimento

que é doado aos alunos, não é doado por eles a outros. Contudo, o

alimento que lhes pertence, ou seja, as merendas que trazem de casa, pode

ser doado. A fruta, por outro lado, tem limite em sua quantidade, cada

aluno tem direito a um pedaço. Durante duas ocasiões de recreio,

presenciei alunos pegarem a fruta no balcão e ao chegar à mesa

entregarem para outro.

Do mesmo modo que a Coca-Cola e os biscoitos recheados da turma

94, as merendas dos alunos mais novos recebem um valor maior que a

refeição escolar, pois aquele que as possui tem a possibilidade de

compartilhar ou não esses alimentos. No cardápio da escola as refeições são

compostas diariamente por arroz e feijão. A “mistura” varia, porém se repete

pelo menos a cada duas semanas. As merendas que os alunos trazem são

diferentes entre si e apresentam embalagens coloridas, e, às vezes, adesivos

que podem ser colecionados. Estes alimentos atraem a atenção dos alunos,

principalmente dos alunos mais novos, proporcionando prestígio social

àqueles que os levam à escola.

Os alunos mais novos escolhem cuidadosamente o lugar onde sentam

e a sua companhia. Os degraus de acesso às portas dos depósitos de

material no fundo do refeitório ficam ocupados por um grande grupo de

meninas. Descobri isto no dia em que estava sentada num dos degraus, sete

meninas correram na minha direção e tentaram se sentar ao meu lado, se

apertavam para que todas coubessem. Muitas delas tinham salgados

embrulhados em sacos de papel pardo, e curiosa, perguntei se haviam

trazido da casa delas, falaram “não, a gente comprou na rua quando

chegamos”. Outro dia, um menino e uma menina estavam sentados nos

degraus com os pratos nas mãos comendo. A professora, que estava

sentada à mesa com as outras, chamou-os dizendo “na mão não, vem

sentar na mesa!”, e eles foram.

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Os alunos da classe especial têm seu recreio junto com o 1º ciclo,

geralmente sentam à mesa juntos. Um dia uma das meninas desta turma

pegou sua refeição e sentou ao lado daquela em que estavam os alunos de

sua classe. Então duas de suas colegas se levantaram e mudaram de mesa,

sentando-se com ela. Havia uma aluna nova nessa classe, ela pegou o prato

e sentou-se no lugar de uma menina que estava na fila para repetir a

refeição. Quando esta voltou, reclamou com a menina nova falando para

sair do seu lugar, suas duas amigas a apoiavam, mas a aluna nova

continuou olhando para frente, como se não estivesse ouvindo o que elas

diziam. Depois de alguns minutos de reclamação, a aluna que estava sem

lugar pegou uma cadeira de outra mesa e colocou-a ao lado de suas

amigas, apesar de ter outros lugares vazios na mesa, e todas continuaram a

comer.

Quando terminam de comer muitas das crianças começam a brincar

no refeitório, um corre atrás do outro, alguns se escondem embaixo da

mesa, gritam, riem, conversam. Os alunos da educação infantil não podem

sair do refeitório sem acompanhar suas professoras, os alunos de outras

turmas correm para brincar no pátio. O recreio dos alunos mais novos parece

mais barulhento e agitado que o primeiro, pois neste os alunos formam rodas

de conversas, e o único momento em que se vê correria é no jogo de

futebol dos meninos.

As professoras permanecem no refeitório durante o recreio, algumas

comem a Alimentação Escolar, outras levam alimentos consigo. No dia em

que foi servida a sopa primavera, apenas uma das professoras estava

comendo a refeição, outra pegou um pedaço de mamão, a terceira havia

levado um iogurte ao qual acrescentou aveia de um pequeno pote de

plástico e com uma colher de chá que também trouxera na sacola de

supermercado começou a comer, a quarta professora tinha uma coxinha de

frango e suco industrializado. As quatro estavam sentadas na ponta de uma

das mesas, conversavam e, de vez em quando, olhavam para seus alunos e

chamavam a atenção deles em voz alta. Todas as vezes em que observei

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esse recreio uma das professoras, aquela que comeu a sopa primavera,

esperava em pé até que os alunos da sua turma pegassem o prato, e depois

pegava o seu e sentava-se entre eles à mesa. Geralmente quando as

professoras terminam de comer, ou percebem que seus alunos terminaram,

elas se levantam e chamam suas turmas, eles formam filas em frente delas e

seguem-nas para fora do refeitório. Os alunos que estão no pátio principal se

unem à fila e juntos seguem para a sala de aula.

Os alunos da educação infantil também têm a opção de tomar leite

de manhã. Às 7h50 eu estava conversando com a merendeira Raquel

quando uma professora entrou no refeitório com uma fila de crianças

pequenas atrás dela. Ela abriu o portão, os alunos entraram correndo e se

enfileiraram em frente ao balcão térmico. Samara colocou uma panela

grande que continha canecas de plástico azuis sobre o balcão e com um

bule alto começou a despejar leite nas canecas, uma por vez, enchendo

até a metade e entregando para a criança em sua frente. Os alunos

olhavam atentamente para ela enquanto ela os servia, alguns com as mãos

sobre o balcão, outros com as mãos atrás das costas. Pegavam a caneca, a

maioria com as duas mãos, e cuidadosamente andavam até a mesa e

sentavam-se numa das cadeiras. Alguns procuravam sentar ao lado de um

amigo, mas outros apenas sentavam na cadeira que estava vazia. Alguns

beberam seu leite antes do restante da turma e retornaram para pedir mais.

Outros terminavam, levantavam-se e deixavam as canecas vazias no balcão

onde os pratos são devolvidos no recreio. A professora não tomou leite, mas

sentou-se com os alunos à mesa. Quando ela se levantou as crianças fizeram

o mesmo e formaram uma fila em frente dela. A turma, que tem cerca de 20

alunos, saiu seis minutos depois de terem entrado no refeitório.

A próxima turma, com mais ou menos o mesmo número de alunos,

chegou às 8h03. Três meninos sentaram-se à mesa sem pegar a caneca, a

professora perguntou se não iriam tomar leite, um deles enrugou o nariz com

a expressão de desgosto, balançou a cabeça e disse “não”. Outro menino

se uniu a eles, e a professora disse “depois você vai querer e a gente não vai

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te esperar!”, ele se levantou e voltou para a fila. Ao andar na direção da

mesa com sua caneca um aluno disse “chocolate!”, e quando outro

derramou o leite sobre a mesa, pude ver que era leite com chocolate em

pó. A professora chamou a atenção de um dos alunos que conversava,

“toma logo seu leite!”. Nenhum desta turma repetiu o leite, e eles ficaram

cinco minutos no refeitório. Depois de saírem, duas merendeiras beberam

leite na caneca azul dentro da cozinha em pé, uma delas acrescentou mais

chocolate em pó com uma colher. A inspetora entrou em seguida e

perguntou se havia sobrado leite, Samara colocou o restante em uma

caneca e lhe entregou. Ela tomou em pé ao lado do balcão, quando

terminou, colocou o copo no lugar de devolução e voltou ao prédio

principal.

Em meio às diferenças entre os dois tempos de recreio, destaca-se

primeiramente a maior quantidade de alunos no refeitório durante o recreio

dos alunos mais novos. A presença das professoras pode influenciar um maior

número de alunos a comer a Alimentação Escolar, especialmente os alunos

mais novos que obrigatoriamente permanecem no refeitório. O fato de

grande parte dos alunos deste ciclo levar alimentos de fora da escola para

comer no refeitório, do mesmo modo aumenta a quantidade de escolares

neste espaço. Sturion e colaboradores (2005) também relataram a presença

maior de crianças mais novas no refeitório da escola, assim como de alunos

com algum comprometimento nutricional e menor renda familiar.

Tanto a participação de professores quanto merendeiras nos tempos e

espaços da Alimentação Escolar deve ser elemento de discussão quando se

trata das propostas educativas acerca do tema na escola. A importância

desta participação foi destacada por Nugaka (2008), em sua pesquisa

etnográfica sobre as interações sociais durante as refeições em dois colégios

americanos, na qual observou que a comida representa um importante

instrumento na construção de relações entre diferentes etnias e gêneros, por

meio das trocas de alimentos realizadas de três formas: presentear,

compartilhar e trocar. De acordo com a autora, a alimentação na escola é

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uma rica oportunidade para os professores aprofundarem sua compreensão

dos alunos, além de exercerem papel essencial na mediação das interações

entre eles, como momento de ensino-aprendizagem. O papel das

merendeiras neste processo é destacado por Costa, Ribeiro e Ribeiro (2001),

que afirma ser necessário o respeito à merendeira na peculiaridade de sua

função e o estimulo ao diálogo entre os responsáveis pela alimentação e

outros atores sociais da escola.

No entanto há de se considerar, como ressaltado por Hargreaves

(1975), que existem diferenças nas interações entre crianças e professores,

adolescentes e professores. Os mais novos estão em fase de transição do ser

filho, o papel mais significativo até então, para o ser aluno, e aprender este

novo papel, portanto seu relacionamento com o professor é mais próximo.

Na adolescência ocorre um afastamento, uma busca por autonomia em

representar os papéis por eles conhecidos e descobrir novos. Além disso, o

recreio representa, especialmente aos adolescentes, um momento de

liberdade na qual não estão submetidos à influência direta dos professores, e

podem agir de acordo com sua vontade, dentro de alguns limites. Assim,

enquanto a presença de professores pode valorizar os tempos e os espaços

da Alimentação Escolar, se torna necessária uma reflexão sobre como se

dará esta presença e como potencializar a sociabilização dos atores por

meio das interações sociais.

Durante minha observação-participante na escola não me foi

associado o papel de professora pelos alunos, referiam-se a mim como

“estagiária” na compreensão de ser estudante em uma universidade. Em

diferentes momentos tive a impressão que a minha presença influenciava a

atitude dos alunos em relação à Alimentação Escolar. Durante um recreio

sentei-me em uma cadeira ao fundo do refeitório, pois tinha a intenção de

observar com mais detalhe a rotina daquele espaço. Quando todos os

alunos haviam saído, Cíntia veio falar comigo e com um sorriso no rosto disse

que eu poderia ficar todos os dias no refeitório, pois os alunos acharam que

eu estava vigiando o que eles faziam e por isso se comportaram melhor. As

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meninas da turma 94 me convidavam para almoçar com freqüência e

queriam que sentasse à mesa com elas. Sofia, que em outras situações não

interagia com as meninas populares, sentou-se ao meu lado quando estava

na mesa delas. Emília, a qual eu não havia visto no refeitório até então, veio

me perguntar se a comida era “gostosa”, e no dia seguinte estava

almoçando também.

4.2 Café e Cafezinho

O refeitório também é espaço do almoço de alguns dos professores,

entre eles Juliano, Andréia, o professor de Geografia, de Francês e uma das

professoras da Educação Infantil. Na sala dos professores ao final das aulas,

Andréia perguntou qual era o cardápio do dia, nenhum dos professores

sabia responder. Mas Juliano a convidou para almoçar no refeitório mesmo

assim, ela e outros o seguiram. Uma das merendeiras destampou as cubas

do balcão térmico, cada professor pegou um prato e se serviu. O cardápio

era arroz com cenoura ralada, feijão preto, frango com vagem e tomate

picados, mamão de sobremesa. Algumas vezes a vice-diretora também

almoçou na escola. Sempre que a via ela tinha uma expressão facial séria,

chamava a atenção dos alunos com freqüência e ficava a maior parte do

tempo na sala da direção trabalhando com diversos papéis em sua mesa.

Naquele dia sentou-se em uma mesa que estava vazia, abriu um pote

plástico contendo arroz branco, feijão preto e carne assada, pegou um

garfo no balcão e começou a comer. A secretária e a professora de Francês

tinham duas embalagens de alumínio que aparentemente vieram de um

restaurante, e duas latas de Coca-Cola Zero (sem açúcar), sentaram-se com

a vice-diretora e começaram a comer com talheres de plástico. Os

professores ocuparam outra mesa, uma delas tinha um pote de plástico com

salada que acrescentou ao seu prato, e ofereceu aos outros.

As merendeiras sentam em torno da mesa que fica mais próxima à

porta da cozinha, separadas dos professores. Elas se servem dentro da

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cozinha e tiram seus aventais para sentar, Raquel também retira a touca de

sua cabeça. Colocam uma jarra grande de alumínio com água no centro

da mesa, e bebem usando as canecas azuis, as mesmas do leite dos alunos

da educação infantil. Alguns dias os funcionários da limpeza que também

trabalham para a COMLURB sentam-se com elas para almoçar, noutros eles

levam a refeição para a pequena sala onde guardam seus pertences e

comem ouvindo o rádio. Em mais de uma ocasião observei Ivo comer duas

vezes, uma refeição em pé na cozinha depois do segundo recreio e uma na

hora do almoço junto com as outras merendeiras. Geralmente as

merendeiras comem a mesma refeição que os professores, mas um dia

Samara saiu da cozinha com um prato cheio de pastéis de carne em

formato de meio circulo, elas os comeram no prato junto com a

Alimentação Escolar.

No dia em que estava acontecendo a paralisação dos professores da

rede pública para reivindicar a questão do reajuste no valor da

aposentadoria, havia poucos professores na escola. Eu estava conversando

com um deles no corredor, quando a secretária veio perguntar se eu

pretendia almoçar na escola, porque estavam planejando um almoço

“diferente”, estrogonofe. Seria no horário em que os professores geralmente

almoçam e quem quisesse teria que contribuir com R$1,50, pois precisavam

comprar creme de leite e outras coisas, contudo usariam a carne da

Alimentação Escolar. Mais tarde perguntei se era comum fazerem refeições

diferenciadas para os professores. A secretária explicou que depois que os

Agentes do Preparo dos Alimentos (APAs) começaram a trabalhar na escola

tornou-se raro, mas antes as merendeiras frequentemente preparavam

alimentos diferentes, às vezes faziam bolo também. No refeitório perguntei

para a Cíntia se iriam manter a refeição do dia, pois com a paralisação

havia poucos alunos na escola. Ela explicou que foram avisadas

anteriormente, e, por isso, estavam preparando metade da quantidade de

refeições. Em relação ao almoço especial para os professores, ela disse que

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atrapalhava a rotina delas, porque uma teve que deixar de ajudar com a

refeição principal.

Além do refeitório, outro espaço importante da alimentação dos

professores na escola é a sala dos professores. Na primeira vez em que entrei

nesta sala tive a percepção de que não era um espaço que qualquer

pessoa na escola poderia ocupar. Os alunos, por exemplo, passam por esta

para ter acesso à sala de informática, mas antes de entrar pedem licença

ou quando precisam falar com algum professor param à porta para chamá-

lo. Apenas quando um dos professores pede que os alunos o acompanhem,

eles têm permissão para permanecer neste espaço. Como eu convivia mais

com os alunos, não me sentia à vontade para entrar nessa sala, a não ser

acompanhada pela diretora. Mas estar neste espaço significava naquele

momento uma aproximação dos professores e uma oportunidade para

observar como a alimentação se fazia presente entre eles.

Neste dia eu estava com dificuldade de prestar atenção no que

acontecia na sala de aula. A professora de Matemática, percebendo a

minha distração, perguntou se eu gostaria de tomar café na sala dos

professores, e, assim, respondendo ao convite entrei neste espaço. A

cafeteira fica em cima de uma pequena mesa à esquerda da porta de

entrada e afixado na parede acima desta tem um dispensador de copos

descartáveis. Peguei um copo e coloquei o café, que estava quente e sem

açúcar, sentei-me em uma das cadeiras de madeira que ficam encostadas

na parede ao lado da pequena mesa. Depois de alguns minutos, a inspetora

da escola entrou na sala, sorriu olhando para mim e disse “bom dia”. Em

seguida a coordenadora pedagógica entrou, também disse bom dia e falou

que frequentemente me confunde com os alunos no pátio.

A fala da coordenadora reforçou minha preocupação em relação à

anormalidade da minha presença na sala dos professores, permaneci ali por

pouco tempo naquele dia. Nos dias seguintes procurei atividades que

dessem motivos para minha permanência na sala dos professores. Solicitei à

diretora para ver as pastas dos projetos da escola, a pasta contendo os

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documentos referentes à merenda e auxiliei a professora de Matemática na

organização do material do grêmio estudantil. Assim, os professores

passaram a não estranhar tanto minha presença no espaço deles, e a

continuar sua rotina normalmente.

O tempo do recreio das turmas do 2º ciclo é aquele em que há mais

professores na sala. A maioria deles senta nas cadeiras de madeira ou em

frente a um dos três computadores, onde se tem acesso à internet. A mesa

quadrada que fica no centro da sala e tem capacidade para quatro

pessoas raramente é utilizada pelos professores para comer, porém é

ocupada por livros, papéis e pastas daqueles que preparam suas próximas

aulas. Alguns professores comem na sala durante o recreio. No entanto, na

maioria das vezes, a alimentação neste espaço é uma atividade individual

em que cada professor leva o seu alimento e em algumas ocasiões este é

compartilhado. Os alimentos chegam nas bolsas dos professores e alguns são

guardados na geladeira até o tempo do recreio. A geladeira fica atrás da

porta de entrada da sala, do lado direito, e é de uso exclusivo dos

professores, das secretárias e da inspetora. Apenas uma vez observei um

aluno da classe especial guardando uma garrafa de suco concentrado na

geladeira a pedido de sua professora.

Um professor das turmas do 6º e 7º anos geralmente leva um copo de

iogurte e uma colher pequena para comê-lo, ou uma fruta (maçã ou

goiaba). A professora de Português das mesmas turmas, leva em sua bolsa

um pacote de biscoitos doces ou salgados, frequentemente oferece para

aqueles presentes, a maioria aceita. Para os professores que não levam

alimentos de casa, outra opção é sair no tempo do recreio e comprar algo

nas lanchonetes ou barracas nas calçadas próximas à escola. Em mais de

uma ocasião a professora de Educação Física entrou na sala dos professores

com uma coxinha de frango e uma lata de Coca-Cola. No primeiro recreio

em que observei isso, ela tinha consigo três sacos de papel pardo de

padaria, entregou um para o professor Lourenço, retirou uma coxinha de

frango de dentro de outra e começou a comer. Depois ofereceu a última

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coxinha para Juliano, ele hesitou, mas aceitou. Ao entrar, Andréia exclamou:

“coxinha de novo!”, mas aceitou uma mordida e disse “vocês estão me

levando para o mau caminho”. Outra alternativa de aquisição de alimentos

foi indicada pelo professor Juliano, no dia em que entrou na sala dos

professores e perguntou para a inspetora se ela tinha alguma coisa para

vender porque ele estava “morto de fome”, ela disse que não. Depois ela

explicou que prepara sanduíches e salgados para vender para os

professores no recreio.

Outros alimentos comercializados na sala dos professores são os queijos

de um ex-aluno. Certo dia, próximo ao final do período de aulas, esse rapaz,

o qual não havia visto antes na escola, se levantou e foi até uma caixa

grande de papelão que estava no chão. Ele começou a tirar pedaços

grandes de queijos embalados e colocá-los em cima da mesa da sala.

Havia muitos tipos de queijo: minas, bola, muçarela, de búfala, com ervas;

em vários tamanhos e formatos. Ele me disse que estudou na Escola de

tod@s e depois de formado passou a vender queijos para os professores todo

mês. Abriu um dos queijos, “requeijão em barra”, colocou em uma bandeja,

cortou um pedaço e me ofereceu. Quando as aulas terminaram os

professores começaram a entrar na sala, muitos provaram um pedaço do

requeijão e alguns compraram os queijos.

Na sala dos professores um alimento se destaca por ser coletivo, o

café. O café, patrimônio nacional, é um alimento importante na maioria dos

ambientes de trabalho. Simboliza um momento de descanso dos afazeres

para alguns, um estímulo para outros e a socialização entre os colegas de

trabalho. Na escola não é diferente, muitos dos professores ao chegarem à

escola tomam meio copo de café antes de entrarem na sala de aula. Eles

geralmente enchem um terço do copo descartável com café, em seguida

entornam o pote de açúcar deixando-o sair pelo bico sem mensurar a

quantidade, usam o palito de plástico descartável para misturar, mexem os

copos em movimentos circulares para esfriar, e tomam o café em pé

rapidamente antes de saírem da sala dos professores. Algumas das mulheres

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colocam adoçante ao invés do açúcar, apertando a garrafa para de saia

esguichos ao invés de gotas do produto.

A prática de tomar o café rapidamente antes ou durante as aulas

geralmente é motivada pela função estimulante que é atribuída a esta

bebida pelos professores. Alguns deles entram na sala dos professores

diversas vezes ao dia para beber café, um hábito marcante em seu

cotidiano, como a professora de Educação Infantil expressou: “algumas

pessoas são viciadas em LSD, outras em Êxtase, Cocaína e até sexo, mas o

meu vício é o café”. No entanto, o café também influencia para que alguns

permaneçam na sala dos professores, sentados sozinhos em silêncio ou, na

maioria das vezes, conversando com outras pessoas.

Neste espaço o café também é um alimento compartilhado à medida

que é adquirido por todos aqueles que o consomem. No mural que fica na

parede acima da mesa da cafeteira, além da lista dos aniversariantes do

mês e anúncios sobre eventos, existe um quadro com os nomes daqueles

que contribuem financeiramente com a compra do café, com espaços em

branco para que a contribuição de cada mês seja assinalada. O café, o

açúcar, os filtros, palitos e copos descartáveis são comprados com o esforço

coletivo dos professores, das secretárias, das diretoras e da coordenadora

pedagógica. O momento de preparar o café, por outro lado, muitas vezes

representava uma frustração para alguns e despreocupação para outros. As

únicas pessoas que presenciei colocando o filtro, o pó do café e a água na

cafeteira para fazer mais da bebida, foram a inspetora e uma das

secretárias, todos os outros apenas consumiam o café. Em mais de uma

ocasião a secretária reclamava ao prepará-lo, dizendo que não era uma

tarefa difícil e não compreendia porque os professores não poderiam fazê-la.

Depois de alguns dias de observação da rotina da sala dos professores

percebi que esta funciona não somente como bastidores para a equipe dos

professores, ou seja, um espaço onde as encenações são combinadas, mas

também como palco de representação. Alguns elementos da decoração

da sala aparentam ser tentativas de criar um espaço de união entre os

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professores. Na parede curva que parte do lado esquerdo da porta de

entrada, tem uma janela com três divisões, e em seu peitoril há porta retratos

com fotografias dos professores em diversos eventos, assim como dos filhos

de alguns. Outros elementos parecem diferenciar os professores, como o

armário de metal cinza que fica encostado na parede à direita da porta de

entrada, com várias portas, cada um com o nome de um dos professores e

em alguns há adesivos. Um dia durante o recreio, duas alunas pediram

licença para entrar na sala. Em suas mãos tinham adesivos coloridos que

colaram na porta do armário de Carmem, que sorriu para eles e agradeceu

pelo gesto. Entre os professores, Carmem tem o maior número de adesivos

na porta do armário. No entanto, a situação que proporciona maior

desigualdade entre os atores desta equipe é o café da manhã.

Todas as manhãs na segunda aula a diretora, a vice-diretora, a

coordenadora pedagógica, o Armando e a Margarida sentam-se à mesa

no centro da sala dos professores e tomam o café da manhã. Armando é

professor da turma da Autonomia Carioca13, frequentemente fica na sala

dos professores, bebendo café e conversando com outros professores. Ele

falava muito de sua filha que iria casar no final daquele ano, e da dieta que

a nutricionista recomendou para que ele pudesse perder peso até a data do

casamento. Margarida, professora de Português da turma 94, conversava

pouco com os alunos. Muitas vezes, ele entrava na sala de aula, escrevia no

quadro branco a página de exercícios que eles deveriam resolver, sentava-

se à mesa e ficava lendo ou escrevendo com uma pilha de livros e papéis

que carregava consigo.

Certo dia, às oito horas a coordenadora veio da sala da direção para

a sala dos professores carregando três canecas de porcelana azul marinho

equilibradas sobre uma pilha de pratos retangulares verdes de plástico e três

facas com cabos de plástico verde limão. Em seguida a diretora, vice-

13 Projeto criado em 2010, consiste de uma parceria da Secretaria municipal de Educação e a Fundação Roberto Marinho, e tem como objetivo corrigir a defasagem idade-série de mais de 7.000 do 7º e 8º anos da rede pública de ensino, assim esses alunos conseguirão concluir o Ensino Fundamental (BRASIL, 2010f).

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diretora e o professor colocaram vários alimentos sobre a mesa que também

vieram da direção: pão de forma integral Plus Vita, requeijão, geléia,

mortadela Sadia, uma lata de leite em pó Molico e um pacote de bolo da

Bauduco. Armando abriu a sua porta no armário metálico dos professores e

retirou uma caneca de plástico com o nome da escola impresso nela. Os

quatro sentaram ao redor da mesa, comiam e conversavam. Observei este

momento diversas vezes durante a pesquisa em campo, porém não fui

convidada a participar deste café da manhã.

Os alimentos que eles levam à mesa geralmente são os mesmos, às

vezes também iogurte, bolo, queijo e presunto. Todos comem duas fatias de

pão ou mais, cada um toma uma caneca de café, alguns com leite, outros

sem, e a diretora bebe cappuccino. Ao terminarem de comer eles levam os

alimentos de volta à sala da direção e deixam em cima da mesa os pratos,

as canecas, os talheres e as migalhas do pão, que depois são retirados por

uma das secretárias ou pela inspetora. No início me questionava em relação

ao lugar onde os alimentos do café da manhã eram guardados. Mas um dia

a diretora pediu que eu pegasse um papel que estava sobre sua mesa, ao

andar pela sala da direção percebi que havia uma geladeira pequena

entre a mesa dela e a da coordenadora pedagógica, de onde vinham tais

alimentos.

Neste tempo do café da manhã dos diretores os participantes deixam

suas atividades rotineiras, os professores saem da sala de aula e seus alunos

ficam aguardando, a diretora não atende telefonemas e pede que as

pessoas que perguntarem por ela esperem, e eles ficam de 20 à 30 minutos

em torno da mesa. Conversam sobre acontecimentos do dia-a-dia, questões

pessoais, e problemas na escola. Muitos dias não há mais ninguém na sala

dos professores, pois todos estão nas salas de aula, porém um dia o professor

de Artes e alguns alunos usavam a sala de informática para ensaiar uma

peça de teatro, alguns deles estavam andando pela sala dos professores

procurando as roupas para a peça, e a diretora pediu que se retirassem da

sala, pois iriam tomar o café da manhã. O professor Armando desceu as

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escadas do segundo andar acompanhado por um aluno da sua turma,

entrou na sala dos professores e disse ao aluno “espera, vou tomar café”. O

menino ficou sentado na cadeira no corredor esperando.

Outro aspecto que o torna especial é que este café da manhã é um

tempo de comer compartilhado. Isto foi destacado no dia em que a

coordenadora estava sentada à mesa com os alimentos, quando uma

professora do 1º ciclo entrou com uma tampa de plástico na mão contendo

cinco pequenas empadas em forminhas brancas. Colocou-as na bandeja

da coordenadora, ela exclamou: “ah! Obrigada. São do quê?”, a professora

disse que eram de frango. A coordenadora colocou esta bandeja no centro

da mesa e pegou outra bandeja para ela. Olhou para a cadeira vazia à sua

frente e disse “sozinha não”, saiu da sala, mas logo voltou acompanhada

pela diretora.

Um momento compartilhado, porém não por qualquer pessoa,

somente um grupo específico pode sentar-se à mesa. Uma manhã eu estava

na sala dos professores lendo o material referente à Alimentação Escolar, a

coordenadora e vice-diretora estavam guardando os alimentos do café da

manhã. O professor de Educação Infantil da tarde entrou, colocou sua bolsa

em uma das cadeiras vazias encostadas na parede e disse “bom dia”. Ele

olhou para a sacola de papel pardo de padaria e disse “posso ter um pão

desse?”, uma olhou para a outra e com a voz incerta a coordenadora

respondeu “pode”. Ele sentou numa das cadeiras à mesa, tirou o pão de

leite da sacola, pegou o prato que a professora Margarida havia usado,

despejou as migalhas de pão em cima de outro, e colocou o seu pão no

prato. Ele olhou para os outros alimentos que estavam sobre a mesa e disse

“ah! margarina”, a coordenadora falou “você não tem não?”. O professor se

levantou e foi até a geladeira, a abriu, olhou por dentro como quem procura

alguma coisa e a fechou. A inspetora, que estava sentada em uma das

cadeiras encostadas na parede, olhou para a coordenadora e a vice-

diretora e disse com tom de deboche “ele não tem nada!” e sorriu.

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A coordenadora perguntou se ele não come na sala do café e ele

respondeu confuso “sala do café?”. A vice-diretora falou: “ele é da tarde” e

explicou “na sala da classe especial, os professores tomam café lá”. O

professor se levantou para pegar um copo descartável “ih! não tem copo”,

deu uma volta na sala e sentou-se novamente. A coordenadora estava

falando sobre outro assunto com a vice-diretora enquanto pegava os

alimentos, “você não vai me dar nem um pouquinho?” ele disse com tom de

brincadeira, ela falou “claro que sim!” e entregou-lhe a margarina.

Continuou dizendo “nós quatro, ou melhor cinco, compramos estas coisas

para o nosso café, tem o café na outra sala”, enquanto falava abriu uma

sacola, tirou uma fatia de presunto e colocou no pão dele. A secretária

entrou na sala com um pacote de copos plásticos, então Fabio se levantou

para pegar café, encheu o copo até a metade e colocou açúcar. Sentou-

se à mesa e tomou seu café da manhã.

Outra situação semelhante a esta aconteceu alguns dias depois. A

professora da Educação Infantil da manhã entrou na sala dos professores

onde a diretora estava sentada pronta para tomar café da manhã. Pegou

um pão da mesa e disse “eu vou pegar um pão seu tá?”. A diretora sinalizou

que sim com a cabeça. A professora pegou uma faca que estava em cima

das bandejas e passou o requeijão, que estava na mesa, no pão. A

professora de educação física que também estava na sala tirou uma sacola

plástica de dentro da bolsa que tinha duas fatias de pão de forma. Pegou

uma faca e passou a margarina que estava na mesa no pão dela, e

começou a comer. Apenas a diretora usou a bandeja para comer, e não

reclamou que as duas professoras estavam comendo junto com ela.

A percepção das secretárias e de uma das professoras em relação ao

café da manhã dos diretores ficou mais evidente no dia em que estavam

comendo na sala dos professores, e o Armando perguntou de quem era o

pacote de pão que estava sobre a mesa, Vilma disse “é de lá” e apontou

para a sala da direção. Continuou falando, porém agora olhando na minha

direção “é porque aqui tem lado B e lado A”. Armando pegou o pacote e

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foi para a direção, depois de alguns minutos voltou com um sanduiche na

mão. A vice-diretora entrou na sala, logo em seguida, encheu uma garrafa

de água no purificador e voltou para a direção. Regina falou que ela

provavelmente estava verificando porque elas estavam demorando para

voltar ao trabalho, Vilma balançou os ombros para cima e para baixo “elas

ficam mais de uma hora aqui”, se referindo ao café da manhã dos diretores.

Quando Regina se levantou para sair disse como era bom sentar para tomar

café, ela geralmente não faz isso, mas as vezes é bom parar de trabalhar um

pouco.

Frequentemente as secretárias ocupam a sala dos professores quando

o café da manhã dos diretores termina, elas geralmente dividem os

alimentos que levam consigo, como foi no dia em que Vilma levou o seu

bolo de aniversário e compartilhou apenas com Regina. Elas saem da sala

assim que toca o sinal para o recreio do 2º ciclo e os professores começam a

chegar. Observei diversas vezes o tempo do recreio em que os professores

ficam na sala, mas não havia percebido que eles também tomavam café

da manhã. Depois do comentário da coordenadora pedagógica sobre a

sala do café passei a me atentar às atividades dos professores nas primeiras

aulas do dia.

Durante alguns dias, me sentei em uma das cadeiras no corredor ao

lado da porta da sala dos professores antes de tocar o sinal para o início das

aulas. A professora de uma das classes especiais saiu da sala dos professores

com um saco de papel pardo, um pote de margarina, uma faca e um copo

descartável com café preto e foi até a sua sala. No inicio da segunda aula a

professora de uma das turmas da Educação Infantil desceu as escadas do

segundo andar com um pão francês na mão enrolado em um guardanapo,

liderando seus alunos ao refeitório para tomar leite. Outra professora que

leciona no 6º e 7º ano andava pelo corredor como quem vem da sala da

classe especial também com um pão francês na mão. No dia seguinte uma

menina, que parecia ter mais ou menos 10 anos, desceu a escada com uma

sacola de plástico branca cheia de pão francês. Ela saiu pela porta dos

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fundos da escola que dá acesso às salas de Educação Infantil, depois

retornou sem a sacola. Pelas situações observadas a maioria dos professores

que come o pão francês no café da manhã da escola leciona nas turmas

do 1º ciclo. No entanto, este comer não é uma prática coletiva, que

proporcione maior interação entre eles ou estimule a convivência, como

poderia ser descrito no café da manhã dos diretores.

Além dos alimentos consumidos no cotidiano dos professores na

escola, alguns que simbolizam ocasiões especiais estavam presentes neste

espaço. Bolos de aniversários foram compartilhados algumas vezes, numa

das quais eu estava na sala dos professores. Um aluno da classe especial

entrou com uma bandeja com pedaços de bolo branco com morangos e

chantilly, ele ofereceu ao professor de Geografia que estava trabalhando no

computador. A professora dele, que estava encostada na porta da sala,

falou “oferece para ela” e apontou para mim. Eu perguntei se era

aniversário de alguém, e ele disse “sim, da tia Renata”, a professora de

educação física. O aluno pareceu hesitar, pois o bolo era somente para os

professores, então não tinha certeza se deveria me oferecer um pedaço.

Às vezes uma das turmas da escola tem a oportunidade de assistir a

um filme durante uma das aulas de sexta-feira. Em um destes dias observei a

inspetora e sua filha, que moram na escola, preparando o guaraná natural

para a turma que iria assistir a um filme. Encheram uma jarra com água do

purificador, despejaram em uma garrafa térmica de cinco litros, colocaram

uma garrafa de xarope de guaraná que estava na geladeira e misturam

com uma colher de madeira com cabo longo. Enquanto preparavam,

perguntei para quem seria a bebida, e a inspetora me explicou sobre a

sessão de filme. Depois de algum tempo, ela saiu com a garrafa térmica e

voltou com um copo descartável grande (300ml), coberto com um papel

alumínio, e me entregou. Eu fiquei surpresa e envergonhada, ela

provavelmente entendeu que eu estava perguntando sobre o guaraná

porque eu queria um pouco. Agradeci e aceitei.

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Ao observar os tempos dos recreios no refeitório e na sala dos

professores, percebi que a alimentação tem diversas funções nas interações

entre os atores sociais da escola. As diferenças no horário do almoço, no

cafezinho da direção e no tipo de alimento no momento do recreio

reforçam a distinção entre as posições sociais de diretores, professores,

funcionários e alunos. A direção e um ou outro professor prestigiado

desfrutam da sala vazia, num horário em que todos estão em aula, sentam-

se à mesa para comer e conversar. Aos professores é permitido sair da

escola para comprar o alimento que preferem comer no intervalo entre o

café da manhã e o almoço, no entanto, comem em pé ao redor de uma

pequena mesa. Tanto os diretores quanto professores almoçam no refeitório

em um horário mais adequado. Os alunos não têm escolha de horário ou

alimento, comem o que lhes é oferecido, quando lhes é oferecido, ainda

mais têm que aguardar em fila sob a vigilância de professores e merendeiras.

Durante a pesquisa em campo, além de observar os espaços onde a

alimentação se fazia presente na escola, buscou-se examinar este tema em

meio às atividades na sala de aula, nos projetos desenvolvidos pelos

professores, nos murais e nas imagens expostas neste ambiente. Algumas

atividades das quais participei durante as aulas de Artes, em especial

aquelas em que foram trabalhados temas relacionados à saúde serão

narradas na próxima seção. Assim como um projeto desenvolvido com as

turmas dos alunos mais novos em que foi possível um olhar de relance no

tema do direito à alimentação.

4.3 Projetos, livros e murais: surgiu o direito à alimentação

As aulas de Artes aconteciam uma vez por semana na turma 94. Eram

duas aulas seguidas. A maioria dos alunos aguardava ansiosos por estas

aulas, pois eles geralmente uniam suas carteiras, conversavam mais que nas

outras aulas e ouviam músicas sem se preocupar com a reação do professor

Juliano. Ele procurava encorajar os alunos a participarem das aulas ao levar

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o computador para a sala de aula para mostrar imagens, ou disponibilizar

vários materiais como tintas, cartolinas, tecidos, etc., para os alunos criarem

suas obras de arte. Todavia, apenas nos dias em que as atividades eram em

espaços fora da sala de aula quase todos os alunos participavam. Durante o

tempo da pesquisa o professor desenvolveu três projetos com os alunos. Os

dois primeiros envolviam temas relacionados à saúde, e o terceiro foi sobre o

bairro no qual a escola se localiza, Rocha Miranda.

No primeiro projeto, Juliano propôs aos alunos que elaborassem peças

de teatro sobre os temas: drogas, violência, o uso de camisinha, doenças

sexualmente transmissíveis, gravidez na adolescência e aborto. Na aula em

que ele apresentou o projeto, me explicou que no ano anterior os alunos

escreveram histórias sobre diversos temas relacionados à saúde. Estas foram

escolhidas para serem apresentadas no congresso do Programa de Saúde

na Escola (PSE) em Brasília no mês seguinte. Dentre os temas ele selecionou

esses seis, sobre os quais os alunos criariam pequenas peças que seriam

filmadas e exibidas no congresso. Enquanto me explicava, o professor me

mostrou uma das histórias, elaborada pela Catarina, sobre gestação na

adolescência. Iniciava com a pergunta: “por que as meninas adolescentes

ficam grávidas?”. Em uma das páginas estava escrito: “meninas com idade

de brincar de boneca, mas com uma criança nos braços”. Ao lado havia

uma imagem de uma menina com uma criança no colo e um bebê

desenhado em seu útero, uma lágrima escorria de seus olhos.

No início da aula seguinte, o professor convidou seis alunos para

selecionarem seus grupos e sortear o tema das peças de teatro. Cada

grupo, formado por mais ou menos cinco alunos, se direcionou a um lugar na

escola. Juliano pediu que eu acompanhasse o grupo de Fabíola, Denise,

Deise, Ingrid e Janaína, que estava na escadaria entre o segundo e terceiro

andar. O tema deste grupo era “o uso da camisinha”. As meninas

começaram a contar histórias sobre amigas e parentes que tiveram

gestações indesejadas. Elas relacionaram o tema apenas à questão da

gestação e não citaram as doenças sexualmente transmissíveis como outra

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conseqüência de não usar métodos preventivos. O grupo decidiu contar as

histórias compartilhadas como se elas mesmas fossem as protagonistas e

começaram a ensaiar.

Na semana seguinte, estava planejada a apresentação de cada

grupo para o restante da turma. O professor de Artes perguntou aos outros

professores se ele poderia utilizar todas as aulas da manhã para esta

atividade e eles autorizaram. Ao chegar à sala de aula, duas pessoas da

ONG parceira da Escola de tod@s estavam com os equipamentos prontos

para filmarem as encenações. Reconheci-os do evento do qual havia

participado no ano anterior. A moça apresentara os professores que fizeram

a palestra do evento e o homem estava em uma cabine com o

equipamento de som. Quando todos os alunos sentaram nas cadeiras que

estavam organizadas em fileiras no centro da sala de aula, o professor de

Artes apresentou os dois convidados. Ele descreveu a ONG como uma

organização parceira da escola que auxiliava com a capacitação dos

professores, material de apoio e divulgação das atividades desenvolvidas. A

moça perguntou se os alunos concordavam em serem filmados, alguns

responderam de forma positiva, mas com o tom de voz baixa, outros não se

manifestaram. No começo da aula, os alunos pareciam envergonhados,

poucos conversavam e muitos desconfiados trocavam olhares. Contudo,

depois da primeira apresentação as conversas e os risos voltaram.

A primeira peça, sobre a violência, foi apresentada por um grupo

formado apenas por meninos e liderado por Mateus, um dos meninos mais

populares. Eles encenaram um assalto, os ladrões foram presos e os policiais

bateram muito neles. A platéia riu durante toda a peça. Ao final o professor

deu a oportunidade para que os alunos fizessem perguntas ou comentários.

Uma menina disse que há casos em que as pessoas podem roubar por

necessidade e não porque são violentas. De acordo com Beatriz, as pessoas

usam drogas por causa da má influência dos amigos, e se envolvem em

situações de violência como um assalto. Cátia discordou dizendo que as

pessoas usam drogas porque querem e que ninguém pode ser forçado a se

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drogar. Os meninos aplaudiram a fala dela. Alguns comentaram sobre a

violência dos policiais e o professor perguntou “vocês acham isso certo?”.

Emília respondeu: “é melhor bater do que matar”, disse que muitas vezes os

policiais matam as pessoas neste contexto. Fabíola falou que a violência

causa mais violência, “quando apanho em casa sinto muito ódio no

coração e quero bater em quem vem na minha frente”. Este foi o tema que

provocou o debate mais longo entre os alunos após a apresentação,

mostrando sua importância na realidade em que eles vivem.

Apenas duas outras peças foram apresentadas devido à falta de

tempo, e não houve debate depois, pelo mesmo motivo. Ao final a moça da

ONG agradeceu a participação dos alunos e ao toque do sinal eles saíram

da sala de aula. Algumas semanas depois o professor Juliano me disse que

iria para o congresso em Brasília para apresentar este projeto. Durante a

semana da sua ausência os alunos não tiveram aulas de Artes.

O segundo projeto não envolveu todos os alunos da turma 94. O

professor Juliano convidou Emília, Deise, Denise e alguns meninos e meninas

da turma 93 para ensaiarem uma peça sobre higiene pessoal e saúde bocal.

Estes alunos foram selecionados porque haviam participado da mesma

peça no ano anterior. A peça foi criada para um evento com um grupo de

crianças e seus pais no hospital vizinho da escola. O professor pediu que os

alunos a ensaiassem novamente para ser apresentada no encontro da 5ª

Coordenadoria Regional da Educação (CRE) sobre o Programa de Saúde na

Escola (PSE).

Os ensaios aconteceram durante as aulas no período da manhã em

dois dias. Na peça, três alunas dançavam coreografias ao som das músicas

de um CD infantil que instruía as crianças a tomarem banho para não ficar

sujas, ter sarnas ou piolhos, e escovarem os dentes para não ter caries. Os

outros seis alunos representavam personagens por meio de fantoches que

conversavam sobre os temas, todas as falas foram impressas e entregues a

eles. O meu papel neste projeto, segundo o professor, foi de figurinista,

auxiliei as meninas na escolha das roupas e a lembrarem suas falas. No dia

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da apresentação, acompanhei o professor e os alunos para o local do

encontro da 5ª CRE, um auditório dentro de uma faculdade particular

próximo à Escola de tod@s. Havia diretores e coordenadores pedagógicos

das escolas da região, cerca de 50 pessoas. Os alunos do professor Juliano

foram os únicos a apresentarem ao vivo o projeto desenvolvido na escola, os

outros diretores mostraram fotografias das atividades. Ao final duas diretoras

elogiaram a peça e perguntaram ao professor se os alunos poderiam

apresentar em suas escolas, ele disse “estamos ficando famosos!”.

O terceiro projeto das aulas de Artes, sobre o bairro da escola, teve

início no último mês da pesquisa em campo. Nesse período eu estava

dedicando mais tempo aos espaços da alimentação na escola, e, portanto,

não acompanhei os alunos em todas as aulas. Os projetos dos quais

participei foram importantes para me aproximar dos alunos do 9º ano. Assim

como dos professores, pois as conversas com o professor Juliano na sala dos

professores me permitiram maior convivência com eles. No entanto, os

projetos eram vistos como formas de apresentar as atividades desenvolvidas

na escola e havia pouca ênfase no aprendizado do conteúdo pelos alunos.

Por exemplo, em um dos dias de ensaio da peça sobre saúde, perguntei

para Denise e Deise sobre os temas da peça e elas responderam que não

tinham conhecimento nos assuntos. O foco do professor Juliano estava em

ensinar as técnicas artísticas das peças de teatro, danças e desenhos, mas

os alunos poderiam também aprender com o seu conteúdo. Além disso, as

aulas de Arte pareciam ter pouco planejamento. Muitas vezes os alunos

eram informados sobre as atividades no dia em que estas começavam e os

ensaios eram realizados no dia anterior à apresentação, retirando os alunos

de todas as aulas destes dias.

Nas atividades que acompanhei na turma 94 não surgiram temas

relacionados aos direitos humanos ou à alimentação. Contudo, um dia na

sala dos professores a coordenadora pedagógica me perguntou se havia

visto os livros sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que

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estava sendo utilizados pelos professores das turmas dos alunos mais novos e

em meio a estes emergiu o direito humano à alimentação.

O ECA foi o tema central do segundo encontro da ONG, parceira da

Escola de tod@s, da qual participei em junho de 2010. Este evento teve início

com as palestras de dois professores da Faculdade de Educação da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) sobre o ECA, sua

aplicabilidade no cotidiano da escola e formas de exigibilidade dos direitos

das crianças e dos adolescentes. O público foi semelhante ao encontro do

ano anterior, formado por professores, diretores e coordenadores

pedagógicos de escolas públicas do Rio de Janeiro e cidades vizinhas. Da

Escola de tod@s estavam presentes a vice-diretora, a coordenadora

pedagógica e a professora Carmem. Houve um momento de compartilhar

as experiências das escolas naquele semestre. Carmem mostrou alguns dos

projetos desenvolvidos com as turmas do 9º ano: os cordéis de Matemática e

os cartazes nos murais das salas de aula sobre os direitos e deveres dos

alunos.

Algumas semanas depois do encontro, os professores de algumas

turmas do 1º ciclo começaram a desenvolver atividades sobre o ECA. Não

tive oportunidade de acompanhá-las, pois no mesmo dia em que fui

informada das atividades as professoras me disseram que já haviam

realizado as aulas desta temática. Na sala do professores havia uma caixa

com diversos livros sobre o ECA e os direitos humanos que a coordenadora

pedagógica deixara à disposição dos professores. Durante alguns dias

examinei estes livros e o mural produzido pelos alunos.

O direito à alimentação estava presente em alguns destes. O livro

“Aprendiz do futuro: cidadania hoje e amanhã” (DIMENSTEIN, 1998),

direcionado a adolescentes, possui textos longos e poucas fotografias. Um

de seus capítulos possui o título “Fome”, no qual o autor faz uma

comparação entre o Brasil e a Índia em relação ao índice de pobreza, taxa

de mortalidade infantil e outros indicadores de saúde e desenvolvimento

humano. O autor destaca a fome como violação dos direitos humanos. No

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livro intitulado “Vivemos juntos: de olho nos direitos e deveres” (GARCIA,

2001) a linguagem é mais simples e possui pelo menos um desenho por folha.

O autor desenvolve a idéia da dependência que um ser humano tem no

outro para sobreviver. “A maioria das coisas que fazemos são feitas junto

com outras pessoas, assim é nossa alimentação, dependendo do trabalho

dos agricultores, grande distribuidoras, dos feirantes para termos alimentos à

mesa”. Por meio desta dependência o autor coloca a necessidade dos

direitos e deveres dos cidadãos. E no livro “A justiça e a injustiça” os autores

utilizam o exemplo da alimentação para explicar os conceitos de justiça e

igualdade:

Todos sabem que é justa a regra da partilha, da divisão, decidida de comum acordo. A justiça é antes de tudo uma questão de partilha, de divisão. Se todos os habitantes da Terra tiverem, igualmente, um prato de arroz e feijão para comer por dia, ninguém vai pensar que isso é injusto. Porém, se alguns homens tiverem estes alimentos em quantidades 50 vezes maior, além de carnes, pães, doces à vontade, enquanto outros morrem de fome, não podemos dizer que isso seja justo. Há injustiça, portanto, quando a divisão não é feita com igualdade. Será que todos os homens têm o suficiente para se alimentar? Infelizmente não. Enquanto milhões de pessoas comem tudo que querem, às vezes até desperdiçam comida, milhões de outras estão sempre famintas, chegando mesmo a morrer de fome. Então perguntamos: onde está a partilha? Que divisão é essa? (LABBÉ; PUECH, 2003).

No Estatuto da Criança e do Adolescente o direito à alimentação está

inscrito como direito humano de forma abrangente e também associado ao

direito à educação, da seguinte maneira:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 1990, Artigo 4º, grifo nosso).

Atendimento no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde (BRASIL, 1990, Artigo 54 – VII, grifo nosso).

Durante a semana dos projetos sobre o estatuto na Escola de tod@s,

um mural no corredor do segundo andar foi decorado pelos alunos de uma

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das turmas do 2º ano. O título do mural era: “ECA – Estatuto da Criança e do

Adolescente. 20 anos ECOANDO pelo Brasil e pelo mundo”.

Hoje as crianças do Brasil têm seus direitos garantidos na Constituição Brasileira e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas nem sempre foi assim. O Estatuto da Criança e do Adolescente foi aprovado em 13 de julho de 1990. Por isso esse ano ele completa 20 anos. Vamos conhecer alguns dos direitos escritos neste documento (Alunos da turma 21, mural na Escola de tod@s).

Desenhados em folhas de papel A4 os alunos desta turma retrataram

os seus direitos. O direito è vida e à saúde foi representado por uma menina

deitada em cima de uma cama com uma nuvem de pensamento saindo de

sua cabeça com a palavra “hospital”. Sobre o direito à educação havia a

imagem de uma escola com um adulto e várias crianças de mãos dadas em

frente a ela. O desenho do direito à profissionalização consistia de três

pessoas sentadas diante de mesas com pilhas de papel. Acerca do direito à

cultura havia uma imagem dos atores de uma peça de teatro no palco com

cortinas vermelhas e a platéia em suas poltronas. Um campo de futebol com

jogadores de dois times representava o direito ao esporte e lazer. O direito à

convivência familiar e comunitária foi retratado por uma casa com jardim de

flores e uma família ao lado. Na imagem do direito à alimentação havia

uma geladeira azul, uma mesa e duas cadeiras com uma menina sentada

numa delas. Em cima da mesa havia um prato vazio, e um balão com a fala

“bom dia pai” saia de sua boca. O pai estava em pé atrás da outra cadeira

com a fala “bom dia filha”.

Nesta representação do direito à alimentação ficou em evidência sua

importância no espaço da casa. A autora do desenho se remeteu ao direito

das famílias terem alimentos em suas casas e estarem livres da fome. Ela

valorizou tanto o aspecto social de compartilhar a comida entre os familiares

em torno da mesa quanto a possibilidade do alimento estar sempre presente

neste espaço. Apesar de este tema estar presente no cotidiano da escola

por meio do PNAE, a aluna não relacionou este direito à refeição escolar. No

contexto do ECA observa-se uma rica oportunidade de trabalhar o direito do

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aluno à Alimentação Escolar, porém aparentemente os professores não

aproveitaram desta oportunidade. Ao final da observação em campo,

buscou-se por meio dos Grupos de Diálogo entre os alunos do 9º ano sua

percepção sobre a Alimentação Escolar a fim de verificar se eles a

associariam ao direito à alimentação.

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5 O DIA DO DIÁLOGO

Os Grupos de Diálogo (GDs) sobre a Alimentação Escolar tiveram a

seguinte questão central: qual deve ser a função da Alimentação Escolar na

escola pública de qualidade? Quatro caminhos do diálogo foram

elaborados, e para sua estrutura utilizou-se aspectos desenvolvidos nas

pesquisas “Juventude brasileira e democracia: participação, esferas e

políticas públicas” (IBASE; POLIS, 2006) e “Repercussões do Programa Bolsa

Família na Segurança Alimentar e Nutricional – Diálogos sobre o Direito

Humano à Alimentação no Brasil” (IBASE, 2008). Cada caminho possui um

título, uma frase introdutória que busca transmitir a idéia principal,

informações de apoio retiradas de artigos científicos sobre a Alimentação

Escolar14, a fala de um ator social da comunidade escolar retirada da tese

de doutorado do Bezerra (2002), e argumentos a favor e contra o caminho.

Um Guia do diálogo (Apêndice F) foi elaborado contendo a explicação

sobre o diálogo e os quatro caminhos. A seguir um resumo de cada um:

Caminho 1: Alimentação para quem precisa Atualmente, uma grande parcela da população brasileira vive em situação de pobreza, não tem dinheiro para comprar alimento suficiente e de qualidade, e, portanto, passam fome. A Alimentação Escolar tem a função de fornecer comida para os alunos destas famílias, acabando assim com a fome.

Caminho 2: Alimentação para o tempo na escola A fome também pode ser entendida como a necessidade imediata de se alimentar. Quando qualquer pessoa está com fome tem dificuldade de realizar suas atividades, ainda mais alunos que precisam se concentrar nas aulas. A Alimentação Escolar tem a função de oferecer uma refeição para os alunos porque sentem fome durante as 4 horas em que estão na escola.

Caminho 3: Alimentação para cuidar do corpo Muitas pessoas passam grande parte do seu tempo na escola aprendendo e ensinando, cuidando da mente. A escola pode também ser um lugar para promover saúde, e cuidar não apenas da mente, mas também do corpo dos alunos. A Alimentação Escolar tem a função de servir uma refeição nutritiva e saudável para cuidar do corpo dos alunos e promover seu bem-estar.

14 Além das referências citadas na dissertação utilizou-se o manual para merendeiras de Alves (1967).

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Caminho 4: Alimentação para garantir o direito A alimentação é um direito de todos, e, portanto, o aluno deve ter acesso ao alimento na escola. Todos os alunos da rede pública de educação básica têm este direito independente da idade, região do país ou situação econômica. A Alimentação Escolar tem a função de contribuir com a realização do direito à alimentação ao oferecer alimentos saudáveis na escola.

O planejamento do Dia do Diálogo teve início em agosto com a

pretensão de realizá-lo em outubro após a finalização da observação

participante na escola. No entanto, com a preparação do material que

compõe esta metodologia ficou evidente que seria necessário expor a

questão central e os caminhos do diálogo de forma mais adequada para os

participantes desta pesquisa, considerando sua faixa etária e a dinâmica

das aulas aos quais estão habituados. Portanto, optou-se por produzir um

vídeo educativo para expor os caminhos do diálogo, a ser utilizado

juntamente com a forma escrita no Guia do diálogo.

O vídeo foi elaborado com a direção de um profissional de

Comunicação Social formado pela Escola de Comunicação (ECO/UFRJ),

mestre em Educação em Ciências e Saúde pelo NUTES e pesquisador bolsista

do CNPq para desenvolvimento de materiais audiovisuais no Estudo de

Riscos Cardiovasculares em Adolescentes (ERICA). E contou com a

colaboração de um aluno de iniciação científica do Laboratório de Estudo

da Ciência (LEC) bolsista da CAPES e duas alunas do projeto de extensão

Alimentação e saúde na escola, bolsistas pelo Programa Institucional de

Bolsas de Extensão (PIBEX). Uma destas alunas é estudante do curso de Artes

Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e

interpretou os personagens. A produção teve início no dia 6 de outubro e foi

finalizado no dia 18 de novembro, e envolveu a elaboração do roteiro, o

planejamento da gravação, dois dias de gravação e a edição do vídeo.

Optou-se por fazer o vídeo no formato de um programa de televisão, e

o roteiro foi baseado nos caminhos do diálogo. A idéia central de cada um

dos caminhos foi transmitida por um especialista fictício com alguma

vivência pessoal no assunto, e para incluir os argumentos a favor e contra

foram encenadas entrevistas com pessoas comuns. No quarto caminho:

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Alimentação para garantir o direito, pretendia-se expor a idéia da

universalidade da Alimentação Escolar e a importância da participação

social nesta. Portanto, foi escolhida como especialista para este uma pessoa

que está presente no cotidiano da escola, uma funcionária da limpeza, que

ao mesmo tempo aprende sobre o direito à alimentação e defende esta

idéia. Buscou-se apresentar os caminhos de forma equilibrada, com a

mesma quantidade de personagens e falas em cada, para evitar que um se

sobressaísse em relação aos outros, porém procurando delimitar cada

caminho para que as diferenças entre eles ficassem evidentes (IBASE; POLIS,

2006). Alguns dos personagens selecionados têm relação direta com a

escola e a Alimentação Escolar, como a merendeira, o aluno, a professora, o

agricultor, estes foram distribuídos entre os caminhos de acordo com as falas.

No total, o vídeo possui 21 personagens: 4 especialistas, 16 pessoas

entrevistadas e a apresentadora do programa de televisão, todos

interpretados por uma única atriz, e tem 10 minutos de duração.

Na etapa da edição o vídeo foi apresentado aos membros do LEC,

assim como do Laboratório de Linguagens e Mediações (LLM) do NUTES para

que avaliassem o conteúdo e fizessem sugestões de alterações. Com a

finalização do vídeo, o Dia do diálogo foi agendado para o dia 26 de

novembro, no entanto naquela semana a escola deixou de funcionar por

alguns dias devido aos acontecimentos relacionados ao conflito entre a

Polícia e as Forças Armadas do Rio de Janeiro e facções criminosas, que

afetaram Rocha Miranda, entre outros bairros da cidade. Deste modo, os

Grupos de diálogo foram realizados no dia 2 de dezembro, um dos últimos

dias do ano letivo. No dia 23 de novembro visitei a escola para convidar

pessoalmente a turma 94 a participar desta etapa da pesquisa, expliquei

como seriam as atividades e seus propósitos, e distribuí o Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice G) para serem assinados pelos

responsáveis dos alunos.

Os Grupos de Diálogo geralmente têm duração de um dia (cerca de 8

horas), no entanto, considerou-se que esta pesquisa seria mais eficiente e

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melhor aceita se desenvolvida durante o horário das aulas dos alunos.

Portanto, as atividades foram planejadas para serem realizadas em 4 horas,

levando em conta o tempo do recreio da turma. Foi criado o Guia do

facilitador (Apêndice H), no qual foram descritas todas as etapas do Dia do

diálogo incluindo a duração, o objetivo e o material necessário para cada

atividade. No dia 2 de dezembro contei com o auxílio de uma doutoranda

do LEC/NUTES que registrou todas as atividades e ajudou na moderação dos

grupos pequenos. A diretora da escola sugeriu que a outra turma do 9º ano

(93) também participasse da pesquisa, pois por ser um dos últimos dias do

ano letivo havia poucos alunos na escola.

Ao chegar à escola preparamos a sala da turma 94 onde realizamos

os Grupos de Diálogo, colocamos todas as carteiras no fundo da sala

deixando as cadeiras no centro formando um círculo, organizamos o

equipamento de multimídia para a exibição do vídeo, assim como os

gravadores de voz e outros materiais. O professor de Francês entrou na sala e

me perguntou se a turma ficaria conosco durante todo o período da manhã,

falei sobre a pesquisa e as atividades daquele dia, ele se interessou e

perguntou se poderia permanecer na sala para observar, expliquei que a

presença de um professor poderia influenciar a participação dos alunos, ele

concordou e me desejou “boa sorte” ao sair da sala. Uma das minhas

preocupações era a reação dos alunos ao me verem à frente da sala, no

espaço do professor, pois durante toda a observação participante sentei-me

entre eles na sala de aula. Outra era a experiência de combinar as duas

turmas e os efeitos que isto teria sobre a participação ou não dos alunos.

Os alunos começaram a entrar na sala, alguns diziam “bom dia” e

sentaram nas cadeiras em grupos de dois ou três, as duas turmas se

misturaram no espaço. Conversavam bastante, mas quando comecei a falar

ficaram em silêncio. Apresentei-me a eles, expliquei novamente sobre a

pesquisa e solicitei que cada um falasse seu nome, pois não conhecia a

todos. A maioria da turma 94 me chamava pelo nome e da turma 93 de

“professora”. Em seguida foram distribuídas fitas de tecido em três cores

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(azul, laranja e amarelo) de forma aleatória para que os alunos amarrassem

em seus punhos. Por meio das fitas eles seriam separados em grupos

pequenos no momento do diálogo. No início havia 37 alunos, 20 da turma 94

e 17 da turma 93, porém algumas meninas desta turma explicaram que

teriam ensaio da peça de Natal com o professor de Artes depois do recreio,

e, portanto, não poderia participar de todas as atividades. Depois do recreio

havia apenas os 20 alunos da turma 94.

O conceito de diálogo, a explicação das atividades e um panorama

sobre o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) foram

apresentados utilizando o programa PowerPoint, de forma dinâmica,

encorajando a participação dos alunos. Eles ficaram surpresos com a

abrangência do programa, que em 2009 atendeu a 47 milhões de alunos: “é

muita gente!”. Quando questionada a origem dos fundos financeiros para o

funcionamento do PNAE disseram “o dinheiro vem da prefeitura”, “não, vem

dos nossos impostos”. Na explicação havia uma parte sobre o Conselho de

Alimentação Escolar (CAE) e quando foi feita a pergunta se alguém sabia o

que era ninguém respondeu. A questão central do diálogo também foi

apresentada desta maneira, assim como um breve resumo sobre os

caminhos. O momento da explicação durou cerca de 30 minutos. Em

seguida foi mostrado o vídeo, os alunos riram em alguns momentos e depois,

durante o diálogo, se referiram a algumas falas e personagens.

A ficha pré-diálogo (Apêndice I) foi distribuída após o vídeo, trata-se

de uma folha com o resumo dos caminhos do diálogo e uma escala de

valores que varia de um a sete, onde os alunos deveriam assinalar o nível de

importância que atribuem a cada um dos caminhos. O número 1 representa

um caminho que não é importante e o 7 aquele que é muito importante. Ao

final dos Grupos de diálogo foi distribuída a ficha pós-diálogo, com a mesma

estrutura. Esse instrumento auxilia na verificação das opiniões dos

participantes antes e após o diálogo (IBASE; POLIS, 2006).

O Guia do diálogo foi distribuído, e solicitou-se aos alunos que se

dividissem em grupos menores de acordo com a cor das fitas que estavam

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em seus punhos. Alguns não quiseram permanecer no grupo em que foram

colocados, e mudaram para outro. No grupo amarelo e azul havia 14 alunos

em cada, e 9 no grupo laranja. Os grupos selecionaram entre seus

participantes um moderador que era responsável por animar o diálogo,

zelando para que todos pudessem contribuir, e um redator que anotava as

idéias centrais do diálogo e os escrevia no cartaz que representava o

caminho do grupo ao final. Os alunos fizeram a leitura do guia em voz alta,

em um dos grupos quatro pessoas leram um dos caminhos cada, nos outros

mais alunos participaram da leitura. Havia um gravador de voz em cada

grupo para registrar os diálogos.

Depois da leitura, os participantes passaram a falar o que acharam

das informações recebidas e da alimentação na escola. No grupo azul as

meninas dominaram o diálogo, e muitas vezes liam partes do guia para

expressar suas opiniões. No grupo amarelo três meninas e um menino falaram

mais, e no laranja, que era menor, quase todos estavam participando. Andei

pela sala procurando animar o diálogo nos grupos, e encorajar todos a

participarem. Os alunos saíram da sala para o recreio, e ao retornarem

formaram os grupos novamente e receberam uma cartolina branca e

canetas esferográficas coloridas para registrarem o caminho por eles

elaborado. Enfatizou-se que eles poderiam escolher um dos caminhos do

diálogo, fazer uma combinação deles ou criar um novo caminho com idéias

diferentes (IBASE; POLIS, 2006). Cada grupo apresentou o seu caminho para

o restante dos alunos e para finalizar foi distribuída a ficha pós-diálogo.

Os diálogos foram transcritos (Apêndice J) e as falas analisadas de

modo a descortinar os valores e significados que os participantes atribuíram

à Alimentação Escolar e os termos ligados a este, como o comer, a fome, e

o saudável. A dinâmica dos grupos, sequência dos diálogos e

acontecimentos do cotidiano escolar foram entrelaçados a fim de

compreender a opinião dos alunos dentro de seu contexto (GEERTZ, 1995).

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5.1 Diálogos sobre a Alimentação Escolar

No início do diálogo, alguns alunos assumiram o papel de protagonista

do grupo e outros disputaram o espaço. Beatriz e Reginaldo pediam para os

participantes falarem sua opinião sobre o tema. A estratégia de Beatriz foi

falar em um tom de voz firme como quem delega ordens, repetindo para

cada participante “fala”. Reginaldo, também dava instruções, porém

direcionadas ao Alessandro que estava ao seu lado, dizendo para ele falar

sua opinião e entregar o gravador para a próxima pessoa no círculo, “vai

passar de mão em mão, cada um dá a sua opinião, tá me entendendo?”.

No outro grupo, Talita, aluna tímida, conversa pouco, estudiosa, em mais de

uma ocasião pediu para não participar da aula de Artes porque precisava

estudar, encorajou o diálogo, como quem quer ser reconhecida como boa

aluna “vamos fazer o trabalho”. Contudo, foi Mateus quem dominou o

diálogo deste grupo, fazendo comentários sempre que possível.

Na divisão dos grupos os membros de algumas equipes de

representação que estavam presentes ficaram separados, como as meninas

populares, Beatriz, Cátia e Carla, que ficaram cada uma em um grupo.

Mesmo assim, elas tiveram maior participação nos diálogos que os outros

alunos, da mesma forma que Mateus. Pablo, Murilo e Adriano, por outro

lado, contribuíram pouco, possivelmente porque seus interesses na escola se

relacionam mais com os esportes e as relações sociais, que os estudos.

Tatiana e Susana pediram para ficar no mesmo grupo, porque os outros

alunos não gostavam delas, e não queriam ficar sozinhas. Observei que

durante os diálogos as duas não procuraram se destacar como

protagonistas, comportamento diferente daquele que frequentemente têm

nas aulas de Artes. Esta atitude possivelmente estava relacionada ao espaço

que ocupavam naquele dia, a sala de aula da turma 94, e por haver uma

quantidade maior de alunos desta turma. Na elaboração das opiniões foi

possível identificar que Tatiana apoiava a maioria das falas da Susana,

apesar de também expressar idéias diferentes. As duas são alunas da turma

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93, e ficam juntas no pátio principal no tempo da entrada na escola, do

recreio e saída após as aulas.

A Alimentação Escolar foi considerada “importante”, “boa”, “gostosa”

e “saudável” por alguns e “não tão importante” e “nojenta” por outros.

Cada atribuição de valor foi apoiada por um argumento que na maioria das

vezes se referia à experiência pessoal do aluno. Por exemplo, na fala inicial

da Beatriz “eu acho que a merenda é fundamental. É fundamental porque,

eu como na escola!”. No entanto, a opinião e o relato de outros alunos

também mostraram elementos importantes. Como Mateus que nunca

provou a alimentação na escola, mas disse repetidas vezes que “a comida é

boa” porque os outros falam isto. Em todos os grupos o tema da “fome”

percorreu algumas das falas dos alunos, sendo que em um deles foi a

temática central. Porém, dentro destes contextos a fome teve dois

significados, a fome que “vem”, “volta” e “continua” ou a “fome do dia”.

5.1.1 A presença das Fomes no cotidiano

Olha minha dona, eu fiquei de lona15, não como o meu pãozinho há mais de uma semana. Hoje é dia do menino Jesus, mas sou eu que carrego a minha cruz. Escuta aí, que eu vou ter que falar se eu não matar a minha fome, a fome vai me matar. Então, por isso eu venho para a escola merendar.

(Rap de Beatriz e Carla, Turma 94)

Em um dos grupos o diálogo teve início com a fala da Susana “eu

acho que o projeto é, é bom... mata a fome, mata a fome das pessoas”.

Neste contexto, a fome pode ser eliminada pelo PNAE e, por isso, confere o

valor de “bom” ao programa. Ela é compreendida pelos alunos como algo

que se não for “morta” pode “matar”. Este termo revela a seriedade do

fenômeno ao qual se referem. Trata-se de uma fome que ameaça a vida e

15 De acordo com um dicionário “estar na última lona” é uma expressão idiomática que significa estar sem recurso algum, em petição de miséria, ou estar muito estragado, praticamente imprestável.

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permanece com a pessoa em diversos tempos “tem gente que vem com

fome”, “continua com fome” e “chega em casa e fica com fome”. Por

tempos curtos “de manhã” e “de tarde”, ou longos “passa fome em casa” e

“fome nas férias”. O espaço onde essa fome se faz presente é a casa. A

ausência, ”na casa não tem comida”, ou irregularidade da alimentação na

casa “às vezes come, às vezes não come” é compreendida pelos

participantes do diálogo como componente da realidade de alguns alunos.

Torna-se inerente à pessoa de tal modo que sua identidade é formada com

ela “o aluno que passa fome”, descritos pelos participantes como “alunos

que não têm como comer nada” e “pessoas que têm realmente

necessidade”.

No cotidiano da escola, este grupo de alunos foi identificado pelos

outros por meio da quantidade e do tipo de alimento que comiam. Era uma

segunda-feira, as meninas populares da turma 94 estavam sentadas ao redor

de uma das mesas do refeitório, o cardápio do dia era arroz com cenoura

ralada, feijão preto, peixe e banana. Disseram que quando é servido peixe

poucos alunos vão ao refeitório, mas “você tinha que ver no estrogonofe”,

Catarina falou que Pablo come três pratos e mostrou como ele come,

ergueu o prato até o queixo e começou a colocar garfada após garfada de

arroz na boca rapidamente, as outras meninas riram. Catarina olhou para

uma menina mais nova que estava sentada na mesa ao lado da nossa, “ela

está comendo deste que chegamos, não deve ter comida em casa”, Beatriz

virou os olhos e discordou “não tem nada a ver”, “mas é o terceiro prato

dela!” respondeu Catarina indignada. Na percepção da Catarina a

justificativa para a aluna comer a quantidade de três pratos de alimentos,

especialmente com peixe, uma preparação pouco apreciada entre eles,

era que ela não tinha comida em casa, desse modo se enquadrando no

grupo dos “alunos que passam fome”. Catarina não inclui Pablo neste grupo,

porque o estrogonofe é uma preparação que a maioria dos alunos gosta, e

provavelmente por ser menino, e, portanto, comer maiores quantidades de

comida.

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A interpretação da Catarina foi compartilhada por uma das

merendeiras, quando em outro dia, se referiu a dois alunos que geralmente

comem três pratos da refeição servida, “eles comem muito!” ela exclamou,

e disse que havia conversado com a diretora sobre eles porque acha que

comem somente na escola. A merendeira me explicou que existem dois tipos

de alunos, aqueles que moram no centro de Rocha Miranda e têm um

poder aquisitivo um pouco melhor e os “alunos carentes”. Aqueles com

melhor poder aquisitivo levam lanches e raramente comem a Alimentação

Escolar, mas os alunos que não tem comida em casa comem a refeição

todos os dias.

O início do PNAE foi marcado pelo cunho assistencialista que percorria

seus objetivos, e na percepção de muitos a alimentação da escola era tida

como “comida para alunos carentes”. Em estudo recente sobre os

significados e implicações curriculares da merenda escolar, Bezerra (2009)

observou que a Alimentação Escolar continua a ser caracterizada desta

maneira. Na visão dos professores, administradores e merendeiras que

entrevistou a merenda é a única refeição dos alunos no dia e por isso vão à

escola, ajuda a recuperar a deficiência alimentar do aluno, determina sua

freqüência e contribui para uma melhor aprendizagem. Há muitos anos,

promover a permanência dos alunos e reduzir a evasão na escola não

fazem mais parte dos objetivos do PNAE. No entanto, parece que este

conhecimento ainda persiste em alguns atores sociais, especialmente entre

aqueles diretamente ligados ao programa, os usuários e gestores.

No espaço da escola a fome contínua deixa de existir, por causa da

Alimentação Escolar. Os participantes do diálogo reconheceram que este é

“um bom incentivo pra pessoa vir pra escola”, porém não constitui o

principal motivo pela sua frequência “não é por isso que o aluno vai vir só

pra comer”. A ausência da fome é apenas temporária, pois quando

retornam para suas casas “a fome volta”. A partir desta compreensão os

participantes do diálogo questionariam a eficácia do PNAE como solução

para o problema da fome instalada no cotidiano. Susana e Tatiana foram as

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participantes que mais destacaram esta crítica, dizendo que por ser uma

única refeição no dia, suprime a fome somente no período da manhã. Em

contrapartida Beatriz reforça o valor desta por ser a “refeição principal” de

muitos.

Assim, com base nas causas da fome “as pessoas não tem o que

comer em casa” e “não tem como comprar comida” os alunos começaram

a propor estratégias para eliminá-la.

Eu acho que deveria ter o projeto “comida para todos na escola”, todos os dias, de domingo à domingo, férias, feriados, finais de semana, comida na escola (Beatriz, Turma 94).

Mas antigamente, quem não tinha o que comer, eles comiam na escola e podia levar pra casa. Levava pra casa, quem não tinha o que comer, almoçava na escola aí levava pra casa. Assim, entendeu, é mais eficiente do que você fazer uma refeição, na hora que tem que comer. A pessoa almoça, a tarde acaba e não tem mais o que comer. E você dando comida... (Tatiana, Turma 93).

Na nossa escola, além do projeto da alimentação, tem o projeto sobre o Bolsa Família que ajuda essas pessoas que têm dificuldade em casa. Então essas pessoas do Bolsa Família têm o que comer na escola e têm o Bolsa Família pra se alimentar em casa, entendeu? Mas pra arranjar o Bolsa Família você tem que lutar muito, e tem pessoas que não consegue. E as pessoas que não consegue? Faz o que da vida? (pausa) Eu acho que deveria ter Bolsa Família para todos. Deveriam fazer uma pesquisa, entendeu? Pras pessoas que realmente têm necessidade, entendeu? Pra ajudar essas pessoas (Susana, Turma 93).

As propostas de Susana e Tatiana têm o enfoque em atender as

“pessoas que têm realmente necessidade”, enquanto que o projeto de

Beatriz se estende a todos. O título do seu “projeto” “comida para todos na

escola” remete ao princípio da universalidade presente no Programa

Nacional da Alimentação Escolar, que implica na inclusão de todos os

alunos da rede pública de ensino. No entanto, na concepção da aluna para

que seja “para todos” se faz necessário que a comida esteja disponível

“todos os dias”. Além da universalidade no acesso, abrange também a

disponibilidade permanente e irrestrita da alimentação no espaço escolar. A

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sugestão da Tatiana também se pauta na oferta de alimentos, neste caso, a

Alimentação Escolar seria ampliada, não no número de pessoas

beneficiadas, mas se estendendo no tempo e nos espaços. A alimentação

deixaria de ser apenas no tempo da escola, também serviria para suprir a

fome em casa, durante o restante do dia.

Susana, por outro lado, se remete ao Programa Bolsa Família (PBF) que

seria complementar ao PNAE, uma vez que fornece recursos financeiros para

a aquisição de alimentos em casa. De acordo com a aluna, o PBF deveria

ser ampliado, pois é de difícil acesso e não atende a todas as pessoas que

necessitam. Esta percepção pode ter surgido da comparação entre os dois

programas. Enquanto o PNAE se propõe a beneficiar todos os alunos da

educação básica pública, o PBF atende a famílias em situação de pobreza

e extrema pobreza e estabelece condicionalidades para a adesão destas.

Para receber os benefícios do PBF a renda per capta da família deve ser

menor que R$ 140, o cartão de vacinação, o crescimento e

desenvolvimento de crianças menores de 7 anos devem ser acompanhados,

as mulheres devem fazer o acompanhamento na gestação e pré-natal.

Crianças e adolescentes de 6 à 15 anos e 16 à 17 anos devem estar

matriculados na escola e ter frequência mensal de 85% e 75%,

respectivamente. Atualmente o PBF atende a mais de 12 milhões de famílias

em todo o Brasil (BRASIL, 2011).

De acordo com Rocha (2009) o Programa Bolsa Família é bem

sucedido devido à inclusão de grande parte do seu público alvo, no

entanto, apresenta algumas famílias que ultrapassaram a renda máxima,

porém permanecem recebendo o benefício. Segundo a autora estudos

mostram que 76% do valor transferido são utilizados na compra de alimentos,

contribuindo assim para a Segurança Alimentar e Nutricional dessas famílias.

Na Escola de tod@s os alunos cujas famílias participam do PBF podem

ser identificados pelos outros. Eu tive esta percepção no dia em que no

corredor do primeiro andar havia uma fila longa, formada em sua maioria

por mulheres que estavam assinando uma lista para receber o informativo

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do Programa Bolsa Família. A coordenadora pedagógica me explicou que a

exigência da freqüência mensal destes alunos na escola havia subido para

90%, e, ainda mais, a partir do próximo ano (2011) os responsáveis precisarão

participar das reuniões de pais. Ela continuou dizendo que deveriam exigir

boas notas destes alunos também, pois se estavam em todas as aulas e os

responsáveis estavam acompanhando seus estudos, as notas deveriam

melhorar.

Todos os projetos sugeridos pelas alunas no diálogo consistem de

medidas de assistência alimentar, nenhum dos participantes mencionou

estratégias de geração de renda ou acesso a empregos, como nas políticas

estruturantes. A fome incita um senso de urgência para ir ao encontro das

necessidades imediatas dos “alunos carentes”, sem que haja uma reflexão

sobre a situação da pobreza a longo prazo. Como na fala da Cátia, que

também sugeriu o PBF como solução para a fome contínua “vê que o aluno

tá passando fome e começa a ganhar dinheiro”.

Apesar de pontuarem que o PNAE não tem a função de resolver a

questão da fome contínua, todas as suas propostas eram complementares

ao programa e envolviam a participação da escola ou da diretora da

escola. A fome está presente na realidade da vida cotidiana na escola, e,

portanto, a solução desta também deve emergir deste espaço. Em reação

à fala da Susana sobre o PBF direcionar-se às “pessoas que realmente têm

necessidade”, assim como falas anteriores em que atribuiu importância ao

PNAE exclusivamente pelo fornecimento de alimentos a este grupo de

alunos, Reginaldo sugere que os alunos que têm condições de comprar

comida levem uma “marmita” de casa.

Esta compreensão de que a alimentação da escola se destina a um

grupo de alunos e não a todos pode criar um ambiente de exclusão e

discriminação. Abreu (1995) relacionou o reduzido número de alunos que

comem a Alimentação Escolar ao cunho assistencialista do programa que

imprime na refeição o símbolo de comida para carentes, pois apenas

aqueles que realmente precisam, comem-na, os outros trazem alimentos de

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casa ou compram lanches. Beatriz destaca o estigma que esta associação

pode produzir.

Mas eu acho que se fosse assim, muita gente não iria participar. Porque, como ela [a personagem do vídeo] disse fica muito rotulado, tem gente que vai ter vergonha. Tem gente, por incrível que pareça, que prefere ficar com fome do que vir comer. Porque fala ó lá! Porque sempre tem um idiota que fica zoando (Beatriz, Turma 94).

Apesar de reconhecer que alguns alunos têm vergonha de comer a

refeição da escola, Beatriz considera este receio “frescura, bobeira”. Na

opinião dela as pessoas não deveriam ter vergonha de comer, e sim de ficar

com fome. Em resposta, Susana explicou que seu projeto seria “silencioso”, a

aluna escolhe esconder a situação em vez de confrontar a questão da

discriminação na escola. A vergonha dos alunos também foi percebida pela

diretora. Durante uma de nossas primeiras conversas, ela me explicou que na

escola havia novos “manipuladores de alimentos” e que os alunos diziam

que a comida era “muito boa”, mas “ainda tem alguns alunos que têm

vergonha de comer, engraçado!”, jogou os braços para cima em sinal de

indignação. Depois desta mudança o número de alunos que frequentam o

refeitório aumentou e devido aos elogios à comida “um ou outro aluno

envergonhado se enfia na fila de fininho”. Assim como Beatriz, na opinião da

diretora o prazer de comer e o gosto pela comida superam ou deveriam

superar a sensação de vergonha.

Quando conversávamos no recreio um dia, Catarina se identificou

como uma das alunas que tinha vergonha de comer no refeitório da escola.

Ela afirmou que a maioria dos alunos que não comem a refeição é motivada

pela vergonha. Catarina deixou de sentir-se assim depois que as outras

meninas começaram a convidá-la para “almoçar”, além disso, teve menos

constrangimento em estar no refeitório com as merendeiras novas “essas tias

são legais, elas brincam com a gente e perguntam se a comida está boa”,

ela também passou a gostar da comida.

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Sabe qual é? Eu acho que a comida na escola não é só pra quem precisa e sim porque sente fome. Eu tiro eu como exemplo. Eu, tipo, eu tomo café da manhã quando eu saio de casa, chega na escola eu como, praticamente todos os dias, eu como na escola. Só quando é alguma coisa que eu não gosto, quando eu não to com fome, é difícil quando eu não to com fome. Mas... (Beatriz, Turma 94).

A outra fome que percorreu a fala dos participantes dos diálogos foi a

fome que se “sente”, uma fome temporária comum a todos os alunos e não

somente ao grupo daqueles “não tem o que comer”. Ainda que o alimento

esteja presente no espaço da casa, como no caso de Beatriz, esta fome

surge no decorrer do tempo na escola. Alguns alunos não comem antes das

aulas, como argumentado por Rodrigo, “quem sai de casa sem tomar café,

vem cheio de fome pro colégio. É porque eles estão com fome, mas

também tem coisa pra comer em casa”. Esta situação é comum aos

escolares, Catarina, por exemplo, me contou que não come antes de ir à

escola porque se sente enjoada, então na segunda aula está com muita

fome. A importância do Programa Nacional de Alimentação Escolar eliminar

esta fome foi sustentada por Talita e Reginaldo, porque sem a “energia” que

vem do alimento os alunos não conseguem “prestar atenção”, “raciocinar”

ou “estudar”.

O termo “fome do dia” foi utilizado por Moysés e Collares (1995) como

propósito do PNAE no artigo em que desconstroem a compreensão de que

o objetivo do programa seria reduzir as taxas de desnutrição infantil e de

fracasso escolar, como o discurso original do programa defendia. Segundo

seu argumento, a busca por resolver estes problemas por meio do programa

minimiza a gravidade destas complexas questões sociais. Além disso, seria

inviável, pois os grupos populacionais mais suscetíveis à desnutrição

(lactentes, pré-escolares e idosos) não são atendidos pelo PNAE e a

quantidade de alimentos per capta não é suficiente para alterar o estado

nutricional dos beneficiados. Assim, as autoras apóiam a refeição escolar

como direito de todos os alunos durante sua permanência na escola.

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A “fome do dia” é temporária, mas exige uma urgência em sua

resolução “tá com fome, come”, “chega na escola come”. Dessa forma,

assim como na fome contínua, o PNAE, na estrutura que possui atualmente,

é visto pelos alunos como insuficiente para lidar com a “fome do dia”. Muitos

alunos chegam à escola com fome e têm que esperar até o recreio para se

alimentar. Em resposta à esta questão, Beatriz propõe uma nova estrutura

para a Alimentação Escolar.

Eu acho que deveria ser assim: os alunos que chegam na parte da manhã deveriam chegar na escola, tomar café, comer um biscoito, tomar todinho, como foi assim em muitas escolas. E, na hora da saída, que é o intervalo entre a saída do turno da manhã e a entrada do turno da tarde, deveria acontecer o almoço. Os que desejam almoçar, eles ficam mais um pouquinho até meio dia, por ai, almoçam e vão para as suas casas. E o turno que tá entrando, almoça também e sobe para assistir a aula e na hora da tarde, na hora do recreio deveria haver um lanche, uma fruta. Eu acho que deveria ser assim em todas as escolas, só que isso não depende só dos alunos, porque essa seria a nossa vontade. Eu acho que deveria ser assim, é uma sugestão pra todos que tiverem ouvindo. Obrigada! (Beatriz, Turma 94).

No decorrer do diálogo muitos participantes sugerem a inclusão da

oferta do café da manhã no PNAE, se referindo a experiência do ano

anterior em que era servida a refeição emergencial, que consistia de

biscoitos, iogurtes e sucos. Nas falas dos alunos estes alimentos foram mais

valorizados que o cardápio regular da Alimentação Escolar. Como

observado nas interações sociais na escola, conferem prestígio social

àqueles que os levam para a escola, além de serem compartilhados entre os

alunos e utilizados para presentear.

O termo “almoço” é utilizado pelos alunos para se referir à

alimentação na escola, quando as alunas da turma 94 me convidavam

diziam “vamos almoçar” ou “você não vai almoçar hoje?”. Beatriz a

classificou como sua “principal refeição”, pois à tarde ela come “besteira”,

mas “comida mesmo” somente na escola. Em sua pesquisa sobre os hábitos

alimentares brasileiros, Barbosa (2007) destacou a presença de duas

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refeições quentes ao dia, almoço e jantar, como uma de suas

características. Estas refeições são compostas por comidas de “panela” e

“de sal”, com a presença do arroz e do feijão, carne e verduras. Além disso,

o almoço é considerado a refeição mais importante do dia porque

proporciona a sensação de saciedade e sustenta por mais tempo. Entre as

refeições os participantes desta pesquisa disseram “beliscar”, “comer

besteirinhas”, alimentos que não tem o mesmo valor que as refeições

quentes. Neste contexto, a Alimentação Escolar tem a composição de uma

refeição, ou melhor, de almoço, porém se apresenta como culturalmente

inadequado pelo horário em que é servido “a gente almoça, olha a hora do

nosso recreio, nove e quarenta”.

Abreu (1995), ao observar alunos de uma escola municipal e outra

estadual em Porto Alegre, argumenta que servir a refeição em horário e

local inadequados, para ser comida de colher e sem a presença de frutas e

hortaliças no cardápio, que são recomendados pelos próprios professores

em sala de aula, é símbolo da representação destes alunos como famintos e

menos cidadãos que aqueles que podem escolher sua comida e se

alimentar de acordo com os costumes de sua cultura.

Beatriz se coloca como porta-voz dos alunos em sua fala, expressando

a “vontade” para as mudanças no PNAE. Ao continuar a explicação de sua

proposta, a aluna sugere que os alimentos deveriam estar disponíveis

durante todo tempo na escola, “chega aqui na escola, entra todo cheio de

rango, pega um pratinho e come”. Ao começar a sugerir a oferta de mais

refeições na escola, os participantes de seu grupo citaram outras

comodidades que desfrutam em suas casas “cama”, “chuveiro”, insinuando

que a sugestão dela era excessiva, e destacando as diferenças entre as

funções da casa e da escola.

A busca por mais liberdade permeia o discurso de Beatriz, liberdade

nos horários da alimentação, liberdade nas escolhas alimentares. Essa busca

também foi expressa por Carla “eu acho que cada um come o que quiser,

não a mulher montando os pratos dos outro e manda os outro comer”. A

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liberdade de escolher não comer na escola está disponível àqueles que não

sentem fome, ou que estão com a “fome do dia”, mas preferem não comer.

Porém, como retratado por muitos alunos existem aqueles que “têm

necessidade deste alimento”, e mesmo que reclame da refeição “acaba

comendo” porque “a fome é difícil”. Cátia também ressalta a restrição nas

escolhas, ainda que o aluno tenha condições financeiras para adquirir sua

alimentação “a minha mãe dá dinheiro pra comprar lanche lá fora”, os

alunos não têm acesso a outros espaços.

Bezerra (2009) afirma que, em certas situações, a Alimentação Escolar

pode discriminar e reforçar a submissão do aluno. São muitos os que se

servem da refeição além dos alunos, e podem comer à vontade, enquanto

para aqueles que têm direito de se alimentar na escola, a refeição é

porcionada como “ração”, sem que sejam consultados sobre suas

preferências ou gostos. Segundo a observação do autor, os cardápios são

elaborados por gestores que têm a visão do aluno como carente, faminto,

necessitado de um prato de comida e que come qualquer coisa.

A minha opinião é que o calendário [cardápio] da escola teria que ter a nossas opiniões alunos, por que os que tão lá fora não sabe o que é melhor pra nós alunos. Uma batata frita..hum...um aipim...hum...um bife com purê, que coisa boa! É muito bom! Então a minha opinião é que a comida teria que ser escolhida, selecionada pelos alunos, não pelas pessoas que tão lá fora e não sabem que quê os alunos passam. Peixe? Pra quê peixe? Peixe deixa a boca fedendo! Ovo, gente! Que ovo! Pelo amor de Deus! Todo mundo pode comer ovo em casa e trás, e trás ovo pra dentro da escola (Rodolfo, Turma 94).

E a fruta tem que vir boa, não podre, porque ninguém aqui é porco pra comer lavagem. Tá? Eles vão usar os impostos do meu pai, então tem que comer do bom e do melhor. Nada de vir abacaxi estragada. Nada de vir banana preta, tangerina podre, laranja de fazer suco, não é de comer. Porque aquela laranja lá é laranja lima é de fazer suco e não de comer. Melancia, eu adoro melancia, ai vem uma fatia assim [mostra com as mãos - pequeno]. Se o aluno não quer comer porque não gosta, ai, sopa, eu odeio sopa, aí quero comer a fruta, né? O abacaxi é desse tamanho, não dá nem pro caldinho (Cátia, Turma 94).

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As falas de alguns alunos revelam que os alimentos servidos na escola

deveriam ser diferentes daqueles de casa. Nesta compreensão, a

Alimentação Escolar deveria romper com a rotina do cotidiano ao oferecer

refeições diferentes, e, assim, mais valorizadas pelos alunos. Ao criticar a

qualidade das frutas servidas na escola, Cátia, afirma que os alunos

deveriam “comer do bom e do melhor”. Ela considera esta exigência valida,

pois a escola, ou melhor, o Governo utiliza os impostos pagos por seus

familiares para financiar a alimentação disponível a ela neste espaço. Em

outros momentos dos Grupos de Diálogo a aluna usou este argumento para

sustentar suas propostas de melhoria da Alimentação Escolar, encorajando

os outros alunos a fazer o mesmo. Estava presente em suas falas a

percepção do direito dos alunos à alimentação e do dever de provisão por

parte do Governo.

5.1.2 Comer ou não comer: eis a questão

Mesmo a universalidade e a equidade sendo princípios do PNAE, na

proposta de garantir o direito dos alunos se alimentarem durante o tempo na

escola, Burlandy e Dos Anjos (2007) ressaltam que 87,2% das escolas públicas

das duas regiões por eles estudadas oferecem a Alimentação Escolar, sendo

que há maior oferta no Sudeste (93,8%) quando comparado com o Nordeste

(77,4%), e nas áreas urbanas (90,7%) em relação as rurais (77,3%). Ainda com

a oferta das refeições, outros autores indicam o reduzido número de alunos

que comem da Alimentação Escolar (STURION et al., 2005; DANELON;

FONSECA; SILVA, 2008). No percurso do estudo do cotidiano da escola uma

questão permaneceu nos meus pensamentos: quais os motivos que levam os

alunos a comerem ou não a Alimentação Escolar? Algumas respostas

surgiram no dia-a-dia e outras nos diálogos. Como por exemplo, na fala de

Márcio durante os Grupos de Diálogo.

Um dos maiores motivos para que os alunos venham se alimentar na escola é por não ter o que comer em casa.

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Muitos alunos vêm sem tomar café, um lanche, um pão para que possam entrar na escola, e vem para a escola para se alimentar. O segundo maior motivo para que o aluno venha se alimentar na escola é porque ele sai das suas atividades escolares e vão direto para o trabalho, estágio, e eles se alimentam na própria escola. Os alimentos da escola contrariam muitos alunos por ter verduras e legumes, coisas que os alunos não estão habituados a comer em suas casas. Mas esse seria o certo, porque a comida é a comida que dá força ao aluno para que ele possa crescer saudável (Márcio, Turma 94).

Os alunos que comem ficam divididos entre aqueles que precisam e

aqueles que querem. No primeiro grupo, a necessidade surge para poder

estudar, se concentrar, porque sentem fome, não tem comida em casa ou

não tem tempo de comer em casa. Como Beatriz e Pablo, que afirmaram

não ter tempo de almoçar em suas casas antes do trabalho, e por isso

comem na escola. O grupo daqueles que querem comer é formado por

alunos que consideram a alimentação “boa” por causa do atual cardápio

“tem arroz, feijão, carne”, e os que vêem a possibilidade de ser boa com o

acréscimo de certos alimentos como “batata frita”, “carré”, “carne seca no

feijão”, “bife e purê de batata”, “suco”, “refrigerante”. A alimentação ter a

qualidade de “boa”, segundo Mateus, se deve às merendeiras serem boas.

Nas conversas do cotidiano, Catarina e a diretora da escola fizeram esta

mesma associação entre as merendeiras e a qualidade da refeição.

A identidade da pessoa que prepara o alimento, na maioria das vezes,

tem significativa influência sobre a apreciação da refeição. Kaplan (2000),

em seu estudo com adolescentes, traz a discussão do alimento como

símbolo para demonstrar afeto. A autora categorizou os escolares em três

grupos: aqueles que ajudavam nas atividades de preparar e cozinhar com a

família, aqueles que não ajudavam muito, e os neutros. No primeiro grupo o

alimento era percebido como presente e demonstrava o cuidado da

família, no segundo os adolescentes associam a comida a uma retribuição

negativa, pois por não se sentirem cuidados se recusavam a participar das

atividades culinárias, e o terceiro incluía aqueles que afirmaram não dispor

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de tempo para ajudar, ou não achar necessário por terem ajudantes

profissionais em casa.

Durante as refeições à mesa com as alunas da turma 94 percebi a

importância que atribuíam à figura da mãe no preparo do alimento e no

ensino das práticas na cozinha. As meninas começaram a falar de suas

comidas preferidas, o macarrão com salsicha, que a mãe da Beatriz a

ensinou a preparar, mas quando se aventura a fazê-lo “nunca fica tão bom

quanto o dela”, e o bolo de fubá que Carla também aprendeu com a mãe,

com o resultado do qual ela não ficou satisfeita. Julia justificou o fato de não

comer na escola com a frase “comida de mãe é mais gostosa”, prefere

esperar e comer em casa, ela nunca provou a refeição porque disse que

não vai gostar. Quando eu disse que o cardápio daquele dia era sopa ela

colocou a língua para fora da boca e se curvou, como quem vomita,

“credo!”, e reforçou que só gosta da sopa de ervilha e do caldo verde que a

mãe dela faz.

A falta de tempero na Alimentação Escolar foi apontada por algumas

alunas no diálogo “se tivesse um caldinho Knorr”, “um pouquinho de sal

também faz bem” e nas conversas do cotidiano “com Sazón ficava bom”. O

tempero atribui gosto ao alimento, e a comida gostosa é comida feita com

afeto. A falta do gosto as leva a reclamar da comida, todavia as três que

fizeram estas críticas comem mesmo se não gostam. A refeição da escola é

temperada com sal e alho, pois de acordo com as merendeiras os alunos

não gostam de outros temperos, e apesar de quererem usá-los não podem

porque buscam respeitar as preferências deles.

Conhecer quem cozinhou e como a alimentação foi preparada é

outro elemento influente na decisão dos alunos em comer na escola ou não.

A preocupação deles está em “passar mal” porque a refeição está “ruim”,

ou seja, contaminada por microorganismos ou em encontrar insetos e outras

coisas. Para avaliar se a comida está adequada neste aspecto os

participantes do diálogo se pautaram principalmente nos relatos de outros

alunos.

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Eu, eu não como na escola porque eu não gosto, mas também eu não sei como eles preparam, entendeu? Eu já vi achar cabelo na comida, a menina foi comer, ela levantou o garfo e tinha um cabelo no arroz (Tatiana, Turma 93).

Tenho é nojo. Porque a cozinha dessa escola é nojenta, já acharam até rato. Eu prefiro comer salgado na rua. Mas nem o salgado não é confiável. Em restaurante eu como, porque eles usam toquinha e aquele negócio assim [colocou a mão sobre a boca – máscara]. Aqui fica o cabelo em cima da comida, tá maluco! Elas não usam luva, tá maluco! Já acharam cabelo na comida (Ester, Turma 94).

Ah! Eu não sou paranóica, como em qualquer lugar, passei mal, melhorou, dá dor de barriga acabou. [risadas] Não tem problema, eu como, pô eu como hambúrguer aí, salgado, essas coisa cheio de gordura, você também não sabe como é feito, mas todo mundo come! Isso é verdade, não tem nem como falar que é mentira. [pausa] Ah! Eu como mesmo, nunca passei mal! Tô comendo. [pausa] Eu acho que isso é meio psicológico, porque quando você come sem culpa, ai que delícia! Tá comendo! Tu não passa mal. Agora tu fica, ai como foi feito, ai que não sei o que, come, mordeu, às vezes o bagulho não tá nem ruim, ai tá passando mal. Psicológico! [pausa] Eu acho isso (Beatriz, Turma 94).

Beatriz, por outro lado, se remete à sua experiência pessoal para

justificar sua despreocupação com este aspecto, afinal “nunca passei mal”,

e mesmo se o alimento estivesse “ruim” trata-se de uma situação passageira.

A aluna destaca que este problema não é reproduzido no espaço da rua,

pois muitos alunos comem os salgados vendidos nas barracas e lanchonetes

sem conhecer a origem dos alimentos. Na percepção da Beatriz o prazer de

comer um alimento do qual gosta faz parte de sua realidade cotidiana e,

portanto, recebe maior importância. A preocupação do alimento

contaminado é denominada por ela de “culpa”, um elemento que impede

as pessoas de terem prazer ao comer.

A classificação da alimentação como “boa” também foi associada à

noção de “saudável”. As concepções da alimentação saudável são

diferentes para cada grupo social e são influenciadas pelas informações

transmitidas pela mídia, pelos profissionais da saúde, e outras pessoas. Na

percepção dos participantes do diálogo comidas saudáveis são as frutas,

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verduras, legumes, “frango sem tempero”, comida “sem gordura”, “comida

que não engorda”, que não causa “estragos ao corpo” como “pressão alta”

e “colesterol”, a comida saudável deixa a pessoa “forte”. Segundo Mateus,

“comida” (arroz, feijão, carne e legumes) é mais saudável que os alimentos

que recebiam na refeição emergencial (suco, Todinho e biscoito).

Eu, ela, eles tamo muito novinho pra comer comida sem sal, porque às vezes a comida vem sem sal. Entendeu? Às vezes a comida vem sem sal, e a gente não tem que comer comida sem sal. A gente prefere comida com sal. Por exemplo, comer coisa doce, comprar guloseima, nada a vê, entendeu? Eu acho que é bom a alimentação sim, ter uma verdura, mas não essa comida sem sal, botar só uma verdura, assim, entendeu? (Cátia, Turma 94).

Na compreensão da Cátia, entre as recomendações dos alimentos

que são saudáveis está o requisito de que estes tenham pouco ou nada de

sal. Como descrito anteriormente, o sal está associado ao gosto da comida,

comida sem sal significa comida sem gosto. O saudável sem gosto foi

expresso por Carla também, “frango sem tempero”. Na decisão entre o

saudável e o gostoso, a aluna argumenta que o saudável é necessário às

pessoas mais velhas, aos adultos. Para os jovens, como seus companheiros

de turma, sua preferência alimentar é mais importante que os benefícios que

uma alimentação com pouco sal possa trazer.

Sabe quê que é, a gente sabe que alimento a gente tem que comer, mas não come, então aqui é saudável. Como muita criança não come verdura, aqui na escola é mexido (Ester, Turma 94).

A alimentação saudável pode ser encontrada no espaço da escola,

pois na rua as comidas são “cheias de gordura” e “ruins”. Contudo o

saudável muitas vezes entra em conflito com o gostoso. No decorrer do

diálogo os participantes citaram “batata frita”, “salgadinhos”, “refrigerante”

como alimentos de sua preferência, porém quando Talita questionou se

deveriam ser acrescentados ao cardápio da escola responderam que não

porque o saudável era melhor para eles. Esse conflito também foi relatado

por Freitas e Fontes (2008) em estudo nas escolas públicas da Bahia. Os

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adolescentes da pesquisa percebiam o saudável como “o cuidado de si”,

todavia ficavam divididos entre o prazer de comer na rua e o projeto

racionalizador do saudável, que constitui norma escolar. Na Escola de tod@s

o saudável é “mexido”, ou seja, escondido dos alunos, como Ester descreveu

na fala citada acima. Os legumes são picados em pedaços pequenos e

misturados na carne ou no arroz, uma das merendeiras explicou que se

fossem vistos os alunos não os comeriam. Nos dias em que o legume foi

servido como preparação separada (purê de abóbora, couve refogada)

muitos alunos o recusaram na fila do balcão térmico.

Uma das merendeiras disse que as crianças gostam muito do purê de

batatas, mas não do fígado que é servido junto. No dia em que há frango no

cardápio, muitas crianças vão para o refeitório, alguns que ela nem se

lembrava de ter visto antes “eles gostam mesmo do frango, frango de

qualquer jeito”. A preparação que os alunos menos gostam, de acordo com

outra merendeira, é do peixe. Na opinião da diretora, macarrão com carne

moída ou batata com carne moída, são as refeições preferidas deles. Antes

era o macarrão com salsicha, “acho que é porque eles estão mais

familiarizados, é o que comem em casa”, mas “agora não pode mais

embutido”. A comida que os alunos menos gostam é da sopa, porque

durante o inverno no Rio de Janeiro não faz muito frio, “e sopa tem que

comer quando tá frio”.

Mesmo existindo, entre os alimentos servidos na escola, vários que as

meninas da turma 94 desgostam “não gosto deste feijão” [carioquinha],

“credo que sopa ruim!”, “farofa horrível”, elas continuam a comer no

refeitório quase todos os dias. Em algumas situações o consumo destes torna-

se necessário por questões de saúde, especialmente quando orientadas

pelas mães. No ensaio de uma das peças de teatro na aula de Artes, Tatiana

me contou que estava com anemia e sua mãe a mandou comer fígado “eu

odeio fígado!”, ela comeu. Em volta da mesa as alunas conversavam sobre

o ovo mexido que estavam comendo, muitas não gostam de ovo, Catarina

se justificou dizendo “isso vem da família do meu pai, ninguém lá gosta de

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ovo”, como se o gosto pelo alimento fosse hereditário. Isadora falou que a

casca do ovo faz bem para a pele, a mãe da Cátia recomendou o ovo

porque faz bem para o fígado.

Eu não como na escola, sabe por quê? Eu trago dinheiro pra comer no restaurante, entendeu? (Reginaldo, Turma 94).

Aí, se a comida fosse boa, o professor não ia na Bela Roma almoçar, ou no outro self-service que tem ali atrás, entendeu? Mas como eles não gostam da comida eles vão comer fora. Se a comida fosse gostosa eles sentava lá e ia comer com todo mundo, né? Mas não vocês vê algum professor comendo? (Cátia, Turma 94).

Eu acho que a alimentação na escola não é tão importante assim, por que tem pessoas que...(pausa) Tem pessoas que não comem na escola, como eu por exemplo. Mora perto e não almoça na escola, não gosta de comer na escola (Tatiana, Turma 93).

A importância do PNAE é questionada quando alunos e professores

que têm a oportunidade de comer em outros espaços, casa ou restaurante,

optam por estes. Na percepção de Cátia, os professores não se unirem a

eles no tempo do recreio para comer, simboliza que a refeição não é “boa”,

se fosse todos comeriam. Outros participantes do grupo responderam a fala

dela dizendo que alguns professores almoçam na escola, todavia em outro

horário. Tatiana sustenta a sua escolha em não comer, não porque não

gosta da alimentação, mas não gosta de comer no espaço da escola.

5.1.3 Finalizando o Diálogo

Ao final dos diálogos os participantes elaboraram um caminho que

representasse as opiniões de seus grupos. Dois dos caminhos consistiam de

cópias dos textos do Guia do diálogo, e no terceiro escreveram uma frase e

Fernando, o “desenhista” da turma 94, fez o desenho de um aluno comendo

uma refeição da escola. Estas foram as frases dos cartazes:

Uma alimentação mais justa para todos na escola!

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(Grupo Azul: Beatriz, Tatiana, Susana Fernando e Reginaldo)

A Alimentação Escolar pode ser uma forma de promover saúde ao oferecer todo dia uma refeição nutritiva e ao facilitar o acesso a informações sobre um estilo de vida saudável [Caminho 3].

Alimentação Escolar para contribuir com a realização do direito à alimentação ao oferecer alimentos de qualidade para todos os alunos [Caminho 4].

A alimentação é um direito de todos, e, portanto, o aluno deve ter acesso ao alimento na escola [Caminho 4].

(Grupo Amarelo: Talita, Ester, Mateus e Carla)

Muitas pessoas passam grande parte do seu tempo na escola aprendendo e ensinando, cuidando da mente. A escola pode também ser um lugar para promover saúde e cuidar não apenas da mente, mas também do corpo dos alunos [Caminho 3].

(Grupo Laranja: Cátia, Márcio, Rodolfo e Jeane)

Apesar de reproduzirem as informações do guia, estas idéias

representam as opiniões dos participantes, o que ficou evidente quando

cada grupo apresentou seu caminho para o restante da turma. Beatriz

continuou a sustentar sua proposta da “alimentação para todos”

destacando que seria mais “justa” se fossem oferecidas mais refeições e os

alunos tivessem liberdade de escolher os alimentos que querem comer.

Cátia se apropriou do discurso da Alimentação Escolar como direito dos

alunos para criticar a qualidade dos alimentos servidos e exigir melhoras nas

refeições. Mateus manteve a atribuição da importância do PNAE ao consistir

de uma alimentação saudável.

Na formação do caminho final, que combinava as opiniões das

participantes, os alunos eram estimulados a falarem os pontos centrais dos

seus diálogos, e cada fala foi aprovada por todos antes de ser registrado no

cartaz.

A Alimentação Escolar é importante porque tem gente que não almoça em casa.

Se a alimentação fosse de qualidade seria melhor.

Deveria ter uma campanha sobre vegetais para as crianças aprenderem a comer desde pequenos.

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Nos argumentos em torno da primeira afirmação estavam presentes as

duas fomes do cotidiano, não almoça em casa porque não tem comida ou

porque trabalha depois da escola e não tem tempo de voltar para casa. A

melhora da qualidade da refeição foi associada ao acréscimo de alimentos

preferidos pelos alunos. E a criação de uma campanha foi justificada pela

compreensão de que a aprendizagem sobre a alimentação na infância

faria com que eles comessem de forma mais saudável na fase adulta.

As mudanças de opinião dos participantes do diálogo estão

retratadas na Tabela 1. Foram calculadas as médias dos valores por eles

atribuídos na escala de 1 à 7 nas fichas pré e pós-diálogo, para cada um dos

Caminhos do Diálogo. A opinião inicial de todos os participantes (n=37)

mostrou que o Caminho 1: Alimentação para quem precisa e o Caminho 3:

Alimentação para cuidar do corpo receberam o maior valor médio entre os

alunos. Nas falas dos participantes no começo dos Grupos de diálogo

estavam presentes a “fome contínua” e a questão do alimento saudável,

que podem ser associados a esses dois caminhos. Ao Caminho 4:

Alimentação para garantir o direito foi atribuído o menor valor inicial.

Também foi realizada uma comparação entre as opiniões iniciais e

finais dos participantes que permaneceram durante todas as atividades do

Dia do Diálogo (n=18). O Caminho 2: Alimentação para o tempo na escola

foi pontuado como o mais importante tanto no início quanto ao final do

diálogo, na opinião destes alunos. A idéia central deste também percorreu

as falas dos participantes em todos os grupos, ressaltando-se o propósito da

Alimentação Escolar de acabar com a “fome do dia”. Assim como no valor

médio de todos os participantes, no começo do diálogo o Caminho 4 foi

considerado o menos importante. Todavia ao final esta classificação foi

transferida para o Caminho 1. Houve um questionamento entre alguns

grupos em relação ao discurso de que a Alimentação Escolar é destinada

aos “alunos que não tem o que comer”, o que aparentemente levou alguns

participantes a mudarem de opinião. A redução na valorização do Caminho

1 pode ser observada também na Tabela 2, em que 16,67% dos participantes

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diminuíram a pontuação deste ao final do diálogo. Em geral, os alunos

mantiveram sua opinião durante o dia.

Tabela 1. Média das opiniões dos participantes dos Grupos de Diálogo sobre cada um dos Caminhos do Diálogo da Alimentação Escolar (n=32 e n=18). Ficha pré e pós-diálogo.

Caminhos

Opinião inicial média (n=37)

Opinião inicial média (n=18)

Opinião final média (n=18)

Alimentação para quem precisa

6,2 6 5,6

Alimentação para o tempo na escola

6,1 6,2 6,1

Alimentação para cuidar do corpo

6,2 5,9 5,8

Alimentação para garantir o direito

5,5 5,6 6

Tabela 2. Deslocamento de opinião pré e pós-diálogo dos participantes dos Grupos de Diálogo sobre a Alimentação Escolar (n=18).

Caminhos Menos favorável Manteve-se estável

Mais favorável

Alimentação para quem precisa 16,67% 83,33% 0%

Alimentação para o tempo na escola

5,56% 83,33% 11,11%

Alimentação para cuidar do corpo

11,11% 77,78% 11,11%

Alimentação para garantir o direito

0% 88,89% 11,11%

Ao longo do diálogo algumas falas dos alunos foram contraditórias.

Principalmente os discursos do Mateus, que iniciou afirmando que nunca

havia comido na escola, porém em diversas falas ressaltou a qualidade

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“boa” e “saudável” da Alimentação Escolar, e disse que as merendeiras são

boas. Um momento ele disse que para melhorar a refeição é necessário

acrescentar a batata frita ao cardápio, em outro o mesmo alimento não faz

bem para os alunos e, por isso não deveria ser servida. Quando se referiu ao

tempo em que era oferecida a refeição emergencial, biscoitos e suco,

Mateus disse que a comida (arroz, feijão e carne) era mais nutritiva, no

entanto, ao final defendeu que seria melhor se estes alimentos continuassem

a compor a alimentação na escola. Na construção de suas opiniões fica

evidente o conflito entre um discurso que o aluno conhece em teoria e

reproduz nas falas, possivelmente porque considera ser aquilo que os outros

querem ouvir, e, por outro lado, suas preferências alimentares. Em

contrapartida, Carla traz diversas críticas à alimentação da escola,

defendendo a liberdade de escolha dos alunos e que a refeição deveria ser

diferente daquela que recebem em casa e de melhor qualidade. A aluna

expressa nitidamente que suas preferências são prioritárias na formulação de

sua opinião.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência de observar o cotidiano da escola buscando revelar as

pitadas de significado misturadas à realidade da Alimentação Escolar foi

enriquecedora e permitiu identificar as nuanças do direito ao alimento nas

interações sociais dos alunos.

Os comportamentos dos escolares nos espaços da alimentação

expressam a valorização do comer não apenas por nutrir o corpo, mas pelas

relações sociais que pode proporcionar. A socialização em torno da comida

possibilita a aproximação entre os atores, a delimitação das equipes de

representação, o destaque da influência dos protagonistas. Neste contexto,

a importância de quem prepara o alimento é realçada na propriedade de

conferir gosto e afeto à comida.

Entre os diferentes espaços da alimentação, a rua foi a mais

valorizada, pois a aquisição dos alimentos neste demanda o acesso

financeiro que nem todos os alunos têm, há liberdade na escolha dos

alimentos e os professores optam por comer na rua. O alimento disponível na

casa também foi considerado importante devido à presença da figura da

mãe no seu preparo, aferindo gosto e afeto à comida. Quando os alunos

não podem comer na rua ou na casa, a última opção é a escola, onde são

servidos alguns alimentos da casa, porém não tem o mesmo gosto.

As interações sociais entre os adultos da escola em torno do alimento

reforçaram a hierarquia existente nos papéis que desempenham, por meio

da desigualdade no acesso ao alimento e na apropriação dos espaços. A

desigualdade nas práticas alimentares de professores, secretárias, diretoras e

funcionários pode transmitir aos alunos a impressão de que há pessoas mais

importantes do que outras, e portanto, merecem se alimentar de forma mais

adequada. Neste caso, os alunos criam a percepção de que não têm o

mesmo prestígio que os adultos quando se trata de sua alimentação.

Alimentação Escolar como direito de estar livre da fome na escola

perpassa as falas dos alunos. O dever de prover alimentos foi delegado

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principalmente à escola, como responsável pelo bem-estar dos alunos, mas

também ao Governo por meio do Programa Bolsa família, quando a fome

ultrapassava o espaço escolar. O fenômeno da fome contínua era

percebido como mais complexo, conferindo o estigma de inferioridade

àqueles que a vivenciam. Em contrapartida, a compreensão da “fome do

dia” foi desenvolvida pelos alunos com maior facilidade, pois consiste em

uma sensação comum a todos e sua resolução pode ser encontrada na

própria escola.

O Programa Nacional de Alimentação Escolar se propõe a garantir o

direito à alimentação dos escolares e neste princípio está incluso o direito de

estar livre da fome. Questiona-se então a eficácia do programa, pois nos

tempos em que os alunos não estão na escola, inclusive os 165 dias do ano

que não são dias letivos, este direito não está sendo garantido. Há outros

programas governamentais que contribuem para este propósito. No entanto,

o PNAE constitui um espaço importante de oportunidades considerando os

avanços dos últimos anos e sua experiência de mais de cinco décadas de

funcionamento. Assim, poderiam ser propostas formas de estender a

alimentação oferecida ao escolar, como sugerido por alguns dos alunos

durante os Grupos de Diálogo, para que seu direito seja realmente

garantido.

A disponibilidade do espaço do diálogo fez emergir entre os alunos o

desejo da participação, das sugestões e de soluções para os problemas

identificados. No dia-a-dia da escola existem espaços de participação nos

quais os alunos podem se envolver, como o grupo dos representantes de

turma e o grêmio estudantil. Contudo, mesmo sendo o grupo beneficiado

pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar, os alunos não encontram

neste a oportunidade de serem ouvidos. A participação deles poderia

acontecer no espaço do Conselho de Alimentação Escolar (CAE),

possivelmente por meio destes dois grupos já existentes, com sugestões para

o cardápio e acompanhamento na fiscalização da alimentação em suas

escolas.

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O envolvimento dos alunos poderia proporcionar o conhecimento

sobre a origem e o preparo dos alimentos em sua escola, indo ao encontro

ao questionamento da segurança higiênica e sanitária da Alimentação

Escolar que foi colocado durante os diálogos. Ainda mais, poderia fomentar

o processo de ensino-aprendizado sobre o funcionamento do programa, dos

Conselhos Municipais e Estaduais, dos conceitos de democracia e

cidadania, além de temas como alimentação saudável, agricultura familiar,

sustentabilidade, direitos humanos, entre outros.

Destaca-se também a necessidade de abordar estes temas com os

alunos a fim de possibilitar que façam escolhas conscientes em relação à

sua alimentação. Muitos autores sugerem que as escolhas alimentares dos

alunos sejam restritas por os considerarem incapazes de fazer decisões que

sejam favoráveis à sua saúde. E realmente, na escola busca-se criar um

espaço propício a formação de hábitos saudáveis. Contudo, ao deixar de

proporcionar o diálogo com os alunos sobre suas práticas alimentares, eles se

encontram despreparados para fazer escolhas informadas fora da escola.

Na Escola de tod@s percebeu-se diversas oportunidades para explorar

a alimentação como tema transversal e promotor de saúde na escola.

Como, por exemplo, nos projetos das aulas de Artes, no envolvimento da

escola com as atividades do Programa de Saúde na Escola (PSE) e em

especial do direito a alimentação por meio de sua parceria com a ONG de

educadores em direitos humanos. Espera-se que as observações aqui

relatadas e as falas dos próprios alunos da escola possam fomentar

propostas neste sentido. E que outros se inspirem a olhar sobre o Programa

Nacional de Alimentação Escolar sob a ótica dos direitos humanos.

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ANEXOS

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APÊNDICES

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APÊNDICE A – DESCRIÇÕES DAS DIRETORAS, PROFESSORES E MERENDEIRAS

Quadro 1. Pseudônimos e descrições das diretoras e das merendeiras, assim como as disciplinas lecionadas pelos professores, por ordem de aparição no texto da dissertação.

Pseudônimo Disciplina Descrição

Diretora*

Receptiva e sorridente. Nas vezes em que a vi ela estava ocupada com diversas atividades, conversando com professores, com pais de alunos, falando pelo telefone, partindo para reuniões em outros lugares.

Juliano Artes

Jovem de vinte e poucos anos, tem os cabelos em rastafári e veste roupas coloridas de algodão, sandálias de couro e um colar feito com casca de coco. Popular entre os alunos, em especial as meninas e, muitas vezes, domina as conversas entre os professores.

Coordenadora pedagógica*

Usa óculos que ficam na ponta de seu nariz e quando conversa com alguém olha por cima deles. Disse que me confundia com os alunos no pátio. Conversava comigo muitas das vezes em que me via na sala dos professores e a via orientando os professores com frequência.

Carmem Matemáti

ca

Sabe o nome da maioria dos alunos, poucos conversam durante suas aulas, ela costuma andar em meio às fileiras para verificar se os exercícios estão sendo resolvidos e ao preencher a lista de presença costuma pergunta sobre os faltosos. É atenciosa com os alunos e exigente em relação à sua disciplina.

Mauro História

A expressão facial dele passa a impressão de estar mal humorado, tem sobrancelhas escuras e grossas, testa enrugada. Inicia suas aulas com um discurso em tom de bronca. Suas falas são permeadas por afirmações fechadas, deixando pouco espaço para as colocações ou questionamentos dos alunos, e em muitos momentos faz comentários sarcásticos.

Margarida* Português

Conversava pouco com os alunos. Muitas vezes, entrava na sala de aula, escrevia no quadro branco a página de exercícios que eles deveriam resolver, sentava-se à mesa e ficava lendo ou escrevendo nos papéis da pilha que carregava consigo.

Andréia Ciências

Descrita por uma das alunas como “a professora cheinha de cabelo enroladinho”. Muitas vezes tem que gritar para ser ouvida nas aulas, pois os alunos não correspondem ao seu pedido por silêncio. Quando está na sala dos professores conversa sobre vários assuntos com seus colegas de trabalho.

Raquel** Trabalhou durante 30 anos como cozinheira chefe em uma cozinha industrial que produzia cinco mil refeições por dia. Coordena as atividades na cozinha da escola.

Cíntia** A merendeira que mais conversa com os alunos e geralmente serve as refeições. Muitas vezes controla a entrada e saída dos alunos no refeitório.

Samara**

Sorridente. Sempre que me via no refeitório perguntava, em tom de brincadeira, se minha pesquisa envolvia o trabalho de limpeza da cozinha. Quando limpava as mesas do refeitório cantava músicas cristãs.

Ivo**

Conversa pouco, e geralmente recebe tarefas difíceis como carregar as panelas cheias ou cortar as carnes. Costuma almoçar duas vezes e de acordo com a diretora “nunca engorda”.

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Vice-Diretora*

Sempre que a via ela tinha uma expressão facial séria, chamava a atenção dos alunos com freqüência e ficava a maior parte do tempo na sala da direção trabalhando com diversos papéis em sua mesa.

Armando* Autonomia Carioca

Ficava na sala dos professores, bebendo café e conversando com outros professores. Ele falava muito de sua filha que iria casar no final daquele ano, e da dieta que a nutricionista recomendou para que ele pudesse perder peso até a data do casamento.

*Participam do café da manhã da direção. **Merendeiras

APÊNDICE B – DESCRIÇÕES DOS ALUNOS DA TURMA 94

Quadro 2. Pseudônimos, idades e descrições dos alunos da turma 94, por ordem de aparição no texto da dissertação.

Pseudônimo Idade Descrição

Catarina* 15

Principal informante na pesquisa. Geralmente se senta nas cadeiras da frente da sala de aula, presta atenção nos professores, às vezes responde as suas perguntas e tira boas notas nas provas. Conversa com a maioria dos alunos da turma, disse gostar de música popular brasileira, do cinema, e do teatro.

Sofia 16 Conversa pouco, usa tênis velhos e roupas surradas.

Cátia* 15

Geralmente se senta no fundo da sala, com as costas encostadas na parede, conversa com as amigas ou escuta música, são poucas as aulas em que abre o caderno para copiar os exercícios do quadro.

Carla* 15 Falta bastante às aulas. Costuma sentar ao lado da Cátia, conversar com ela durante as aulas e dividir o fone de ouvido para escutar as músicas de seu celular.

Beatriz* 15

Sorridente na maioria das aulas. Ela anda com um espelho de bolso para olhar o rosto maquiado. No segundo semestre passou a sentar nas carteiras à frente na sala porque disse que queria ir para uma escola melhor no próximo ano.

Jaqueline 17

Apelidada por eles de “Michael Jackson” devido a sua estrutura física, ela tem o cabelo preto, que no início do trabalho de campo era crespo, e depois ficou liso com uma franja curta acima dos olhos expressivos pintados com lápis preto.

Deise 14 Seu apelido é “papagaio”, pois fala demais, considerada “chata” por muitos da turma, tem rixa com as meninas populares e influência sobre Jaqueline.

Adriano** 16 O menino mais alto da turma, seu apelido é “magrão”, tem um piercing no lábio inferior e geralmente fica cercado por meninas. Responde muitas das perguntas dos professores durante as aulas.

Pablo** 17 Representante de turma. Alto e popular entre as meninas, sobressai na multidão. Tem um moicano redondo com mechas loiras enfeitando seu cabelo escuro.

Murilo** 16 Chega à escola junto com Pablo, e quando este falta às aulas, ele também deixa de ir. Ele é baixo, tem cabelo preto espetado, e os outros alunos dizem que ele é bom no futebol.

Mateus** 14 Freqüentemente têm as respostas aos questionamentos dos professores nas aulas, conversa com quase todos da turma, conta

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piadas dos quais os colegas riem.

Fabíola 16 Brincalhona, fala alto e sorri a maior parte do tempo. Geralmente compra a Coca-cola no recreio o que a faz ser aceita entre a equipe das meninas populares.

Hugo 15

Tem o cabelo raspado, olhos grandes e cílios compridos, geralmente comenta sobre os jogos de futebol do time para o qual torce, mas não costuma jogar com os outros meninos da turma. Não usa celular na escola.

Fernando 19 Destaca-se na aula de Artes, faz desenhos nos cadernos e braços dos outros meninos e é considerado bom jogador de futebol.

Júlia 22 Não participa de muitas das conversas entre os alunos. De acordo com a professora de Matemática tem “dificuldade de aprendizagem” e não é a primeira vez em que estuda no 9º ano.

Denise 14

De acordo com as meninas, é uma das poucas que não compões o chamado “bonde das feiosas”. Conversa com muitas das meninas da turma. Ela geralmente se senta sozinha no pátio durante o recreio escutando músicas com o fone de ouvido. Disse gostar de bandas de Rock nacional.

*Meninas populares **Meninos populares

APÊNDICE C – DIAGRAMA DAS INTERAÇÕES ENTRE OS ALUNOS NA SALA DE AULA

Po

rta

Meninos Pesquisadora

Meninas

Frente

Rodolfo

Wiliam

Adriano

Hugo

Mateus

Deise

Pablo

Elisa

Márcio

Lúcio

Ricardo

P

Beatriz

Laerte

Catarin

Maria

Isadora

Emília

Leonel

Ingrid

Larissa

Janaína

Alan Jeane

Mesa do

Professor

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Diagrama 1 - Posicionamento dos alunos em sala de aula e interações sociais mais proeminentes, evidenciados por conversas ou compartilhar de música e material escolar, 18 de maio de 2010.

APÊNDICE D – DIAGRAMA DAS INTERAÇÕES ENTRE OS ALUNOS NA SALA DE AULA

Po

rta

Meninos

Pesquisadora

Meninas

Frente

Hugo

Mateus

Denise

Adriano

Rodolfo

Deise

Gisele

Márcio

Fabíola

Fernan

Wagner

Catarin Carla

Sofia

Alex

Ricardo

Cátia

Ester

Jeane

Elisa

Ingrid

Luciano

Murilo Pablo

Reginal P

Mesa do

Professor

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Diagrama 2 - Posicionamento dos alunos em sala de aula e interações sociais mais proeminentes, evidenciados por conversas ou compartilhar de música e material escolar, 21 de maio de 2010.

APÊNDICE E – DIAGRAMA DAS INTERAÇÕES ENTRE OS ALUNOS NA SALA DE AULA

Po

rta

Meninos

Pesquisadora

Meninas

Interações

Frente

Rodolfo

Ingrid

Jeane

Mateus

Deise

Wiliam

Wagner

P

Julia

Catarin

Cátia

Beatriz

Emília

Marian

Alex

Ricardo

Janaína

Larissa Elisa

Fabíola

Carla

Márcio Denise

Lúcio Isadora

Mesa do

Professor

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Diagrama 3 - Posicionamento dos alunos em sala de aula e interações sociais mais proeminentes, evidenciados por conversas ou compartilhar de música e material escolar, 25 de maio de 2010.

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APÊNDICE F – GUIA DO DIÁLOGO

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APÊNDICE G – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

TTEERRMMOO DDEE CCOONNSSEENNTTIIMMEENNTTOO LLIIVVRREE EE EESSCCLLAARREECCIIDDOO

(Em atendimento à Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde / Ministério da

Saúde)

Você está sendo convidado para participar de uma pesquisa que tem como título “O cotidiano permeado pelo direito à alimentação: um diálogo com os atores sociais da escola”. Essa pesquisa será realizada por Pesquisadora Louise Greenwood como parte de sua dissertação para o curso de mestrado no Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O objetivo geral da pesquisa é investigar a presença ou a ausência da abordagem e conteúdos relacionados aos direitos humanos nos conhecimentos compartilhados pelos alunos na construção social da realidade da alimentação escolar no cotidiano de uma escola municipal do Rio de Janeiro.

Para isso, você participará de um grupo no qual conversaremos sobre o papel da alimentação escolar na escola pública de qualidade. Será mantido o anonimato e o segredo sobre a sua participação, pois embora as conversas sejam registradas em um gravador de voz, será usado um nome inventado para você e seu nome verdadeiro não será revelado.

Sua participação não implica em nenhum risco ou desconforto.

Essas informações serão usadas na produção de artigos e trabalhos a serem apresentados em reuniões científicas e publicados em revistas acadêmicas.

Sua participação é voluntária e você pode desistir e interromper a participação a qualquer momento sem nenhum prejuízo em sua relação com a pesquisadora ou com a Instituição.

Você receberá uma cópia deste termo onde consta o telefone e endereço eletrônico para qualquer contato com a pesquisadora responsável, se você quiser tirar dúvidas sobre a pesquisa e sua participação.

Pesquisador Responsável: Pesquisadora Louise Greenwood. Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (NUTES) – UFRJ; Ilha do Fundão – Centro de Ciências e Saúde (CCS) – Bloco A, sala 28 / Rio de Janeiro/RJ. E-mail: [email protected].

Caso você tenha dificuldade em entrar em contato com o pesquisador responsável, comunique o fato ao Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde-Rio, tel. 3971-1590, e-mail: [email protected].

Agradecemos a sua participação!

Entendi os objetivos da pesquisa e concordo em participar. Nome do aluno(a):_____________________________________________________. Nome do responsável pelo aluno(a):________________________________________.

Rio de Janeiro, _____________de _________________ de 2010.

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___________________________ ___________________________ Assinatura do aluno Assinatura da pesquisadora

(Pesquisadora L. Greenwood) ___________________________ Assinatura do responsável APÊNDICE H – GUIA DO FACILITADOR

Atividade Tempo (minutos)

Apresentação dos participantes 20 Dia do Diálogo 10 Conhecendo o PNAE 20 Caminhos do Diálogo 20 Ficha pré-Diálogo 10 Guia do Diálogo 50 2h10 Grupos pequenos 40 Diálogo final: semelhanças e diferenças

30

Ficha pós-Diálogo 15 Comentários finais 15 1h40

Total: 3h50

1° Momento: 7:30h às 9:40h (2h10)

a) Identificação Material: papel A4, canetinhas coloridas, fita dupla face, lista de presença, fitas coloridas.

A identificação só será necessária no caso de incluirmos outra turma do 9º ano (1903), se tivermos um número reduzido de alunos. Ao chegar os alunos receberão pedaços de papel para escrever seus nomes com canetinhas coloridas, e colar na camiseta com fita dupla face.

Neste momento também serão distribuídas três cores de fitas de forma aleatória para que os alunos amarrem em seus punhos. Estas fitas serão utilizadas para a divisão dos participantes em três grupos pequenos. É importante que haja um equilíbrio entre o número de meninos e meninas em cada grupo. Caso estejamos trabalhando com duas turmas, deve haver quantidade de alunos semelhantes de cada turma em cada um dos grupos.

b) Apresentação dos participantes Objetivo: conhecer os participantes do Diálogo Tempo: 20 minutos Material: Cubo de tecido

Os alunos serão convidados a sentar em um círculo e se apresentar. Com um cubo de tecido nas mãos vão falar o nome, a comida que mais gostam e

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vão jogar o cubo para outra pessoa no círculo. Ao final as facilitadoras vão se apresentar.

c) Dia do Diálogo Objetivo: compreender a metodologia e os objetivos do Diálogo Tempo: 10 minutos Material: Apresentação em Power Point

A facilitadora dará orientações sobre o dia de Diálogo, os propósitos da pesquisa, os compromissos dos participantes durante as atividades, a metodologia e a finalidade dos resultados, utilizando uma apresentação de PowerPoint. Esta atividade será expositiva na maior parte do tempo, porém haverá oportunidade para reações, perguntas e uma pequena participação dos alunos.

d) Conhecendo o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) Objetivo: conhecer algumas informações sobre o PNAE, a questão do Diálogo e os caminhos Tempo: 20 minutos Material: Apresentação em Power Point

A facilitadora apresentará um panorama sobre o PNAE com informações sobre os objetivos e o funcionamento do programa. Além disso, introduzirá a questão do Diálogo e fará uma breve explicação sobre cada um dos quatro caminhos. A facilitadora destacará que eles poderão escolher um dos caminhos, combinar elementos de cada um, ou criar um novo caminho.

e) Caminhos do Diálogo Objetivo: entender os caminhos do Diálogo Tempo: 20 minutos Material: Vídeo sobre Alimentação Escolar

O vídeo sobre a Alimentação Escola que apresenta os quatro caminhos do Diálogo será mostrado aos alunos. Ao final do qual os alunos terão a oportunidade de expressar suas opiniões sobre o vídeo e os quatro caminhos.

f) Ficha pré-Diálogo Objetivo: expressar a opinião inicial sobre os caminhos Tempo: 10 minutos Material: Fichas Pré-Diálogo

A ficha pré-diálogo possui um resumo de cada um dos caminhos e uma escala de valores de 1 à 7. Os participantes são convidados a pontuar o quanto concordam ou não com os caminhos apresentados. Os alunos não devem colocar seu nome na ficha pré-diálogo, para não identificarmos suas respostas. No entanto, haverá um código para que possamos comparar as fichas pré-diálogo e pós-diálogo de cada participante.

g) Guia do Diálogo

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Objetivo: refletir sobre os caminhos e iniciar o diálogo Tempo: 50 minutos Material: Guia do Diálogo

Os alunos serão divididos em grupos pequenos de acordo com as cores das fitas. Cada grupo deverá escolher um moderador e um redator. O moderador será responsável por verificar se todos estão participando da conversa e estimular os participantes a falem sua opinião no assunto. O redator deverá escrever as idéias centrais daquilo que está sendo conversado, e escrever o caminho elaborado pelo grupo. Todos receberão os Guias do Diálogo e serão convidados a ler em voz alta cada um dos caminhos. Os grupos poderão optar por ter um único leitor ou poderão dividir a leitura entre todos os participantes. Após a leitura os participantes terão a oportunidade de fazer perguntas para as facilitadoras, e poderão iniciar o diálogo.

2° Momento: 10:10h às 11:50h (1h40)

h) Grupos pequenos Objetivo: dialogar sobre os caminhos e elaborar um caminho do grupo Tempo: 40 minutos Material: Papel 40 kg e canetinhas coloridas

Após o recreio os alunos retornarão aos seus grupos pequenos e continuarão o diálogo sobre os caminhos. Cada grupo deverá registrar em um cartaz uma apresentação do caminho por eles selecionado ou criado.

i) Diálogo final: semelhanças e diferenças Objetivo: formular um caminho comum a todos os participantes Tempo: 30 minutos Material: Papel 40 kg e canetinhas coloridas

Cada grupo pequeno apresentará seu caminho. Com a mediação da facilitadora, irão procurar os pontos condizentes entre eles, e dialogar sobre as conceições que estão dispostos a fazer a fim de formular um único caminho para todos os participantes.

j) Ficha pós-Diálogo Objetivo: expressar a opinião final sobre o tema Tempo: 15 minutos Material: Fichas pós-Diálogo e ficha de perfil

A ficha pós-diálogo possui a mesma estrutura da ficha pré-diálogo, porém é solicitado ao participante que escreva porque não concorda com os outros caminhos. Os alunos também irão preencher uma ficha de perfil com informações socioeconômicas.

k) Comentários finais Objetivo: registrar as impressões sobre o dia de Diálogo Tempo: 15 minutos

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Em plenária os estudantes terão a oportunidade de expressar suas impressões sobre as atividades desenvolvidas ao longo do dia. Para estimular as falas usaremos a frase: “com as atividades de hoje me senti....porque....”

Lista do material:

• Gravadores digitais: 3 • Papel A4, Canetas e Canetinhas coloridas • Fita dupla face • Lista de presença • Fitas coloridas • Cubo de tecido • Papel 40 kg: 10 • Apresentação de PPT • Vídeo • Guia do Diálogo: 40 cópias • Fichas pré e pós-diálogo: 40 cópias • Ficha de perfil: 40 cópias

APÊNDICE I – FICHA PRÉ-DIÁLOGO

OPINIÃO INICIAL CÓD.:

Qual deve ser a função da Alimentação Escolar na escola pública de qualidade?

Para cada um dos Caminhos, indique o quanto você acha importante em uma escala de 1 a 7:

� Se você acha que o caminho não é importante faça um círculo em volta do número 1.

� Se você for totalmente a favor do Caminho, faça um círculo em volta do número 7.

� Caso você nem ache que “não é importante” e nem que “é muito importante”, faça um círculo em um dos números intermediários de acordo com o tamanho de sua identificação com cada um deles.

� Não há resposta certa ou errada, o que queremos é conhecer sua opinião!

Caminho 1: Alimentação para quem precisa

Atualmente, uma grande parcela da população brasileira vive em situação de pobreza, não tem dinheiro para comprar alimento suficiente e de qualidade, e, portanto, passam fome. A Alimentação Escolar tem a função de fornecer comida para os alunos destas famílias, acabando assim com a fome.

1 2 3 4 5 6 7

não é importante é muito importante

Caminho 2: Alimentação para o tempo na escola

A fome também pode ser entendida como a necessidade imediata de se alimentar. Quando qualquer pessoa está com fome tem dificuldade de realizar suas atividades, ainda mais alunos que precisam se concentrar nas aulas. A Alimentação Escolar tem a função de oferecer uma refeição para os alunos porque sentem fome durante as 4 horas em que estão na escola.

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1 2 3 4 5 6 7

não é importante é muito importante

Caminho 3: Alimentação para cuidar do corpo

Muitas pessoas passam grande parte do seu tempo na escola aprendendo e ensinando, cuidando da mente. A escola pode também ser um lugar para promover saúde, e cuidar não apenas da mente, mas também do corpo dos alunos. A Alimentação Escolar tem a função de servir uma refeição nutritiva e saudável para cuidar do corpo dos alunos e promover seu bem-estar.

1 2 3 4 5 6 7

não é importante é muito importante

Caminho 4: Alimentação para garantir o direito

A alimentação é um direito de todos, e, portanto, o aluno deve ter acesso ao alimento na escola. Todos os alunos da rede pública de educação básica têm este direito independente da idade, região do país ou situação econômica. A Alimentação Escolar tem a função de contribuir com a realização do direito à alimentação ao oferecer alimentos saudáveis na escola.

1 2 3 4 5 6 7

não é importante é muito importante APÊNDICE J – TRANSCRIÇÃO DAS FALAS DOS PARTICIPANTES DOS GRUPOS DE DIÁLOGO

1 Apresentação sobre o PNAE

Pesquisadora: Em quais escolas vocês acham que tem [o PNAE]?

Todas não, porque na nossa escola ano passado não tinha.

Era Todinho ou Danoninho...

Tinha achocolatado...

Era bom!

....

Não eu sei que elas têm um cardápio.

E as comidas são feitas por nutricionistas.

O dinheiro vem da prefeitura.

Não, vem dos nossos impostos.

...

Beatriz: E a sobremesa também vem junto com o almoço?

Reginaldo: A banana vem preta!

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Cátia: Eles servem o que sobrou de noite, pra dá pra gente de manhã.

Rodolfo: O abacaxi vem só caldinho.

Cátia: E não pode repetir! É um pedacinho. Abacaxi é um pouquinho pra cada um e o melhor eles guardam pra eles. Acho um absurdo!

....

Alguém sabe o que são hábitos saudáveis?

É comer verdura, fruta...

Não comer fritura, gordura...

...

Rodolfo: Na minha opinião! (fala alto com a voz firme) Na minha opinião, todos nós tem que ter dinheiro de alimento, sabe porque? Tem gente que não quer comer em casa, come na rua. Agente pode pegar o dinheiro (risos). Agente pode pegar, se agente não quiser comer na escola agente vai na diretoria e busca o dinheiro com ela pra agente comer um salgado na rua, tá?

....

2 Grupo Azul

Susana: Eu acho que é bom, mata a fome, mata a fome das pessoas, quando tá, de manha. Por exemplo, os alunos que não tem como comer nada. Mas não adianta a tarde continua com fome e nas férias continua com fome. Ou seja, vai morrer de qualquer jeito.

Beatriz: Não, eles, não é assim não. Posso falar agora?

Susana: Pode

Beatriz: Já terminou? (pausa) Eu acho que a merenda é fundamental (risos). Não gente.

Reginaldo: Tá bonito! Tá falando bonito!

Beatriz: É fundamental porque, eu como na escola! Mas eu acho que deveriam ter mais refeições. Tipo, manhã, o café da manhã, como era antigamente né? O todinho...

Pablo: Como vinha antes, o café da manhã?

Beatriz: É completa, a refeição completa...

Uma cama, chuveiro...(risos)

Beatriz: Não, cama, não.

Tinha que ter casa na escola.

Ai, podia ter banheiro, né!

Beatriz: Mas podia tê, né? Porque quem faz educação física, né, higiene é fundamental manter também. Mas é bom dar comida.

......

Beatriz: Não quero saber! (risos) Ah é, engraçado! (tom sarcástico) (risos) Não achei graça.

Ai, vai vamo na parte de alimentação, fala o quê que você acha da alimentação escolar.

Beatriz: Ai, cala boca, você quer falar? Fale de comida, da alimentação!

Susana: Ele tá confundindo o, a, o comer da alimentação com o comer de outro jeito.

Reginaldo: De novo?

Beatriz: tem gente que vem com fome, come na escola...

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Susana: Mas e ai, mas ai, depois que vai embora? Almoça...

Beatriz: Depois que vai embora, chega em casa, as vezes come, as vezes não come...

Reginaldo: Passa a bola, tá parecendo matraca já.

......

Reginaldo: Eu acho a alimentação escolar fundamental!

Beatriz: Ela tá falando aqui, cara, bota aqui pra ela falar...

Reginaldo: Até por que...(risos) não tem como raciocinar sem o papa no estomago, não dá cara. Tem que bater um papa.

....

Tatiana: É por que eu tava falando assim, eu acho que a alimentação na escola não é tão importante assim, por que tem pessoas que...

Beatriz: Fala um pouquinho mais alto, tá mó ruim.

Tatiana: Têm pessoas que não comem na escola, como eu por exemplo. Mora perto e não almoça na escola, não gosta de comer na escola.

Reginaldo: E quem não tem comida em casa?

Tatiana: Deixa eu falar. É importante para quem não tem comida em casa, mas também quem não tem em casa vai comer uma vez aqui na escola, e quando chegar a noite vai comer o que? E quando chegar no lanche da tarde vai comer o que?

Beatriz: Gente, mas olha só, mas olha só, mas olha só, raciocina gente. Tudo bem não vai comer, mas pelo menos, é pouco? É. Mas já fez uma, já tem uma pri, uma principal refeição.

Susana: Não, eu não acho que é pra parar isso, eu tô dizendo que deveria pensar um outro projeto, entendeu? A principal, tem gente que não tem...

Beatriz: Eu acho que deveria ter o projeto “comida para todos na escola”, todos os dias, de domingo à domingo, férias, feriados, finais de semana, comida na escola.

Sharon: Então, é isso que eu to falando cara.

Beatriz: Ah, um pouquinho de sal também, faz bem.

Sharon: É isso que eu to falando.

Reginaldo: Mas ai o sal tem que ser controlado, por que as pessoas tem pressão alta, e ai parceiro. E ai?

Sharon: Sabe o quê que é isso? Esse projeto? Posso falar? Posso falar?

Reginaldo: Vai viver de que?

.....

Susana: Deveria ter um projeto em prol das pessoas que não tem, que não tem comida em casa, que tem realmente necessidade. Porque não vai adiantar nada vir aqui comer, entendeu? E chegar em casa e ficar com fome. Ou seja, deveria ter um outro projeto para alimentar aquelas pessoas que não tem, que não tem, que não tem condições de comprar comida.

Reginaldo: Ah, e pra quem tem condições de comprar comida só traz um potinho de casa, faz uma marmita e leva pra almoçar.

Beatriz: Não ó, eu, eu acho, eu não concordei com o que ela falou. Cala boca, e deixa eu falar por favor!

Reginaldo: Ué, ce só quer falar não sabe escutar não?

Beatriz: Sei, pode falar. É porque me dá agonia.

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Tatiana: Mas antigamente, o que ela falou, que quem não tinha o que comer, eles comiam na escola e podia levar pra casa. Levava pra casa, quem não tinha o que comer, almoçava na escola ai levava pra casa. Assim, entendeu, é mais eficiente do que você fazer uma refeição, na hora que tem que comer. Porque agente almoça, olha a hora do nosso recreio, nove e quarenta. A pessoa almoça, a tarde acaba e não tem mais o que comer. E você dando comida...

.....

Beatriz: Ai, fala baixo! (vozes) Elas tão falando, não da nem pra coisa, tá mó balalalalala!

Susana: A nossa escola (vozes) A nossa escola...

.....

Susana: Na nossa escola, além do projeto da alimentação, tem o projeto sobre o bolsa família que ajuda essas pessoas que tem dificuldade em casa. Então essas pessoas do bolsa família tem o que comer na escola e tem o bolsa família pra se alimentar em casa, entendeu? Mas pra arranjar o bolsa família você tem que lutar muito, e tem pessoas que não consegue. E as pessoas que não consegue? Faz o que da vida? (vozes) Eu acho que deveria ter bolsa família para todos. Deveriam fazer uma pesquisa, entendeu? Pras pessoas que realmente tem necessidade, entendeu? Pra ajudar essas pessoas.

Beatriz: Mas eu acho que se fosse assim, muita gente não iria participar. Porque, como ela disse fica muito rotulado (no vídeo), tem gente que vai ter vergonha. Tem gente, por incrível que pareça, que prefere ficar com fome do que vir comer. Porque fala ó lá! Porque sempre tem um idiota que fica zoando.

Sharon: Não, não a escola continuava esse projeto normal, entendeu? Só que fazia um outro projeto, pra aqueles, pra pessoas que tem necessidades, entendeu? E ai seria um projeto silencioso, entendeu? Não falaria nada, seria entre o diretor e o aluno que tem necessidade, entendeu?

Beatriz: Não, eu acho que tem que ser assim, a pessoa tá com fome chega aqui na escola, entra todo cheio de rango, pega um pratinho e come.

Reginaldo: Self-service, seria self-service?

.....

Beatriz: Não ai eu acho que é esculacha!

Angú, farinha e feijão.

Beatriz: Não, ai já é esculacha já.

Todo final de semana, meu filho...

Levou uma marmita...

Beatriz: Não, daí já é esculacho já, também querer que você coma angu. No sol de 40º quer que o outro coma angu! E farinha pra se entupir, comendo farinha, ai que eu vô morrer!

Susana: Mete farinha e bota ovo!

.....

Alimenta!

Rodolfo: E a carne seca no feijão?

Beatriz: Não, ai quer esculachar já! Sabe qual é? Eu acho que a comida na escola não é só pra quem precisa e sim porque sente fome. Eu tiro eu como exemplo. Eu, tipo, eu tomo café da manhã quando eu saio de casa, chega na escola eu como, praticamente todos os dias eu como na escola. Só quando é alguma coisa que eu não gosto, quando eu não to com fome, é difícil quando eu não to com fome. Mas...

Susana: Fala pra ela que você gosta de comer!

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Beatriz: Eu gosto de comer! Gente, e todo mundo come, eu acho isso uma palhaçada, ai tem vergonha de comer na escola. Ai, não sei o que. Gente, é comida, pelo amor de Deus! Frescura, bobeira. Tem gente que não come porque tem vergonha, vergonha de que? Tá comendo! Vergonha se tá com fome! Sinceramente, eu penso assim. E (pausa) tipo eu, tem dia que eu não como nada, só como na escola. A noite eu não janto, é muito difícil eu jantar, tomo café de manhã e como na escola, acho que é minha a principal refeição na escola e o café da manhã, só. A tarde é besteira, agora comida mesmo é mais na escola, porque eu não paro. (pausa) Eu como, tipo fígado eu, eu como na escola, mas eu não como fígado em casa.

Tatiana: Eu, eu não como na escola porque eu não gosto, mas também eu não sei como eles preparam, entendeu? Eu já vi achar cabelo na comida, a menina foi comer, ela levantou o garfo e tinha um cabelo no arroz.

Susana: Ah, mas também se for assim você também não vai poder comer na rua por que...

Tatiana: Mas eu não como por isso.

Beatriz: Isso nunca aconteceu comigo, mas acontecer eu jogo tudo fora, xingo logo por que não tenho paciência pra ficar aturando a ignorância das pessoa, por que isso é uma pessoa ignorante!

Susana: Ah, mas se for assim não pode comer na rua, por que você não sabe como faz.

Beatriz: Ah! Eu não sou paranóica, como em qualquer lugar, passei mal, melhorou, dá dor de barriga acabou. (risos) Não tem problema, eu como, pô eu como hambúrguer ai, salgado, essas coisa cheio de gordura, você também não sabe como é feito, mas todo mundo come! Isso é verdade, não tem nem como falar que é mentira. (pausa) Ah! Eu como mesmo, nunca passei mal! Tô comendo.

Tatiana: Agora quando você compra um salgado assim, tem um catchup sem guardar....

Beatriz: Pô cara, eu vou falar, eu acho que eu nunca passei mal. Eu acho que isso é meio psicológico, por que quando você come sem culpa, ai que delícia! Tá comendo! Tu não passa mal. Agora tu fica, ai como foi feito, ai que não sei o que, come, mordeu, às vezes o bagulho não tá nem ruim, ai tá passando mal. Psicológico! (pausa) Eu acho isso.

Tatiana: Eu, eu já passei mal quando eu comi na escola. Que era obrigado na escola que eu estudava a comer, eles obrigavam agente.

...

Rodolfo: A minha opinião é que o calendário da escola seria que ter a nossas opiniões alunos, por que os que tão lá fora não sabe o que é melhor pra nós alunos. Uma batata frita..hum...um aipim...hum...um bife com purê, que coisa boa! É muito bom! Então a minha opinião é que a comida teria que ser escolhida, selecionada pelos alunos, não pelas pessoas que tão lá fora e não sabem que que os alunos passam. Peixe? Pra quê peixe? Peixe deixa a boca fedendo! Ovo, gente! Que ovo! Pelo amor de Deus! Todo mundo pode comer ovo em casa e traz, e traz ovo pra dentro da escola.

Reginaldo: Tem gente que reclama do peixe e no outro dia tava comendo peixe!

Rodolfo: Mas o peixe é ruim, deixa a boca fedendo!

....

Beatriz: Eu acho que a escola deveria ter um novo projeto sobre, em relação a alimentação, por que tem muitos alunos que não estudam em horário integral, ou estuda na parte da manhã, ou na parte da tarde, ou à noite. Mas eu acho que deveria ser assim, deveria ser mantido o café da manhã é fundamental pra qualquer pessoa e tem muitas pessoas que não tomam café quando saem de casa. E, acho que deveria se assim os alunos que chegam na parte da manhã deveriam chegar na escola, tomar café, comer um biscoito, tomar todinho, como foi assim em muitas escolas. E, na hora da saída, que é o intervalo entre a saída do turno da manhã e a entrada do turno da tarde, deveria acontecer o

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almoço. Os que desejam almoçar, eles ficam mais um pouquinho até meio dia, por ai, almoçam e vão para as suas casas. E o turno que tá entrano, almoça também e sobe para assistir a aula e na hora da tarde, na hora do recreio deveria haver um lanche, uma fruta. Eu acho que deveria ser assim em todas as escolas, só que isso não depende só dos alunos, porque essa seria a nossa vontade. Porque todo mundo fala “ah comida da escola!”, mas todo mundo acaba comendo, tá na escola sente fome e é difícil, muita gente não se alimenta e não tem a disposição para assistir a aula, não presta atenção, não se concentra. Eu acho que deveria ser assim, é uma sugestão pra todos que tiverem ouvindo. Obrigada!

...

Beatriz: Vamo canta aquela música da Dona.

Carla: Pode?

Beatriz e Carla: Olha minha dona, eu fiquei de lona, não como o meu pãozinho há mais de uma semana. Hoje é dia do menino Jesus, mas sou eu que carrego a minha cruz. Escuta ai, que eu vou ter que falar, se eu não matar a minha fome, a fome vai me matar. Então por isso eu venho para a escola merendar.

3 Grupo Laranja

Mateus: Carla come na escola, pode escrever.

Carla: Você também come!

...

Fala o que?

A alimentação serve para você ficar saudável, ficar forte e tem que comer bastante pra sei lá, ser alguém na vida. (risos) A alimentação da escola é mais ou menos saudável, não é muito não.

...

Carla: A alimentação na escola é muito gostosa, só que falta um pouco de tempero, esses negócio.

Mateus: Eu acho que a comida da escola, eu nunca comi, nunca provei, por que sei lá, falam que, não, falam que, pô, a comida é boa, só que eu nunca provei. Nunca tive oportunidade, é muita garota bonita no recreio, ai é uma melhor que a outra. A comida lá eu já provei uma vez só, mas é boa, é boa. Tem arroz, feijão, batata frita e maca... Não batata frita não. Carne, carne, carne, tá?

...

Mateus: E eu gosto da comida na escola, por causa que as merendeiras de lá também são boas.

Carla: Eu acho que cada um come o que quiser, não a mulher montando os pratos dos outro e manda os outro comer. (vozes) E a sobremesa é banana, banana é sobremesa? Banana é uma fruta que você come em casa.

Talita: O primeiro é alimentação para que precisa. A alimentação na escola é pra quem tá com fome, pessoas que não tem comida em casa.

Tem não, tem gente que não tem.

Mateus: Mas na minha casa a comida de lá também é boa, que nem a da escola. A comida da escola é boa, tem gente que critica, mas é boa.

Talita: Vou falar sobre o primeiro caminho. Caminho um, alimentação pra quem precisa. Bom a alimentação pra quem precisa é pra aquelas crianças que vem pra escola pra matar

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a fome, que não tem dinheiro em casa. (pausa) E que eles vem buscar na escola uma alimentação saudável, com qualidade.

.....

Talita: Bem, pra mim a alimentação para o tempo na escola, é uma alimentação saudável, aonde as crianças têm o tempo de comer, eles vão comer o tempo que tem disponível para se alimentar e ter a comida saudável com frutas, verduras e etc. É, a comida na escola eu acho que é boa, pois fornecem muitos nutrientes pra pessoa e necessariamente as pessoas, o aluno na escola não tem o alimento dentro da sua própria casa, mas na escola acha o alimento saudável.

....

Talita: Vocês acham que a alimentação é saudável?

Mateus: Eu acho, todo dia que agente tá no pátio, todo dia no pátio, tem vários caminhões trazendo comida aqui, fruta, legume.

Carla: É frango.

Ester: Sabe quê que é, agente sabe que alimento agente tem que comer, mas não come, então aqui é saudável. Como muita criança não come verdura, aqui na escola é mexido (vozes).

...

Ué, a comida da escola é melhor que lá em casa. Pô, o rango da escola é bom pra quem não comeu em casa, tá ligado, quem sai de casa sem tomar café, vem cheio de fome pro colégio. É porque eles estão com fome, mas também tem coisa pra comer em casa.

...

Mateus: Tem criança, tem criança que vem pra escola, na hora do recreio vai de mochila pra botar maçã, banana na mochila. No ano passado dava suco, parou de comida, dava suco e biscoito, mas se dá comida é mais nutritivo.

...

Mateus: A água da escola também é geladinha, a escola comprou um negócio novo esse ano, pô, bomzão.

Em vez de dá maçã, banana, o bagulho é fazer vitamina e comer junto com a comida mano. Eu acho que o certo é isso.

Carla: Se tivesse um caldinho Knor, tá ligado? A comida da escola ficava suave! Ainda se tivesse suco, ficava como? Suave!

...

Mateus: O vídeo também é importante pra mostrar, pra mostrar que tem muitas crianças que precisam de comida na escola, e por isso que a escola é um lugar pra dar educação, higiene, saúde e alimentação.

Talita: Agora você acha que a escola deve por salgadinho, refrigerante, batata frita? É uma alimentação saudável?

Mateus: Não, porque se não a pessoa iria engordar e, além disso, poderia causar vários estragos no organismo da pessoa, no organismo, pressão alta, colesterol.

Carla: Ah, frango sem tempero cara!

Talita: Tem muita gente que fala que a escola tem que dar frango, batata frita, mas a escola pensa no nosso bem. Então a escola faz o melhor pra nós crescermos com higiene, saúde, educação.

...

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Talita: Pra que serve o alimento?

Pra ajudar você a ficar forte.

Carla: Não, por que ninguém ia ficar forte com um prato só de almoço...

Talita: Se você toma o café da manhã, você vai agüentar o tempo todo só com essa refeição? Você não agüenta, seu corpo não agüenta, é uma fonte de energia, sem a energia você não vai conseguir andar, estudar, tal.

....

Márcio: O quê que você acha da alimentação escolar?

Ester: Uma porcaria, tudo sujo, ninguém merece essa comida dessa escola.

Márcio: O quê que você acha que devem fazer pra melhorar?

Ester: Tudo! Mudar tudo, as merendeiras, o pátio, tudo. Mudar tudo.

.....

Mateus: É pra falar sobre a alimentação na escola, se é saudável ou você prefere batata frita? O quê que você já comeu na escola batata, arroz, feijão, carne moída? Eu nunca comi a comida da escola, e ai? (pausa) Falam que é boa. (pausa) Vamo bota então que a comida da escola tem vários alimentos que fortalecem, que fortalecem os alunos. Aí, vou botar os alimentos. Então vou botar os alimentos da escola são favoráveis aos alunos, aí vou botar os alimentos que são favoráveis aqui, e aqueles que não são. (pausa) Tem os alunos que não, que não lancham antes de vir na escola, e comem na escola. E comer na escola pra os alunos ter, ter mais energia.

....

Pesquisadora: Nunca comeu, por que?

Ester: Tenho vergonha.

Pesquisadora: Por que você tem vergonha?

Ester: Não é vergonha não, é nojo.

Por que?

Ester: Porque a cozinha dessa escola é nojenta, já acharam até rato. Eu prefiro comer salgado na rua. Mas nem o salgado não é confiável.

Pesquisadora: Então você só come na sua casa?

Ester: Em restaurante eu como, porque eles usam toquinha e aquele negócio assim (colocou a mão sobre a boca – máscara). Aqui fica o cabelo em cima da comida, tá maluco! Elas não usam luva, tá maluco! Já acharam cabelo na comida.

Pesquisadora: Então, você acha que não tinha que ter a alimentação na escola?

Ester: Pra mim não, mas tem gente que gosta de comer. Tem gente que come todo dia. Mas tem gente que precisa, porque não tem em casa.

Pesquisadora: Então vocês acham que a alimentação é só para essas pessoas?

Mateus: Não. A alimentação na escola é saudável.

...

Mateus: No ano passado, era suco e biscoito. Ai eu comia. Eu acho que seria melhor se fosse suco e biscoito.

....

Pesquisadora: Como que é a comida saudável?

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Mateus: Pra mim como que é? Ó, a minha mãe faz aquele negócio lá de beterraba, uh! Odeio! Couve-flor, couve, quando bota um pouquinho de sal, ai eu gosto. Minha irmã, a minha irmã é gordinha tem 8 anos, a nutricionista falou que ela tem que emagrecer e ela come muito.

Mateus: A alimentação aqui tinha que ter alface. Na minha casa eu como alface, mas aqui não.

4 Grupo Amarelo

Por que a alimentação escolar é importante?

Cátia: Por que, agente fica 4 horas na escola. Agente fica 4 horas sem comer? Direto? Por que, a minha mãe dá dinheiro pra comprar lanche lá fora, mas é complicado ir comprar o lanche lá fora, entendeu? Agente come aqui e come lá fora, sim. Por que? Porque fica com fome, né, tem que comer.

.....

Cátia: Eu, ela, eles tamo muito novinho pra comer comida sem sal, porque às vezes a comida vem sem sal. Entendeu? Às vezes a comida vem sem sal, e agente não tem que comer comida sem sal. Agente prefere comida com sal. Por exemplo, comer coisa doce, comprar guloseima, nada a vê, entendeu? Eu acho que é bom a alimentação sim, ter uma verdura, mas não essa comida sem sal, botar só uma verdura, assim, entendeu?

....

Cátia: Ué, alimentação para que precisa. Então assim, na escola tá dando comida, não é por isso que o aluno vai vir só pra comer. Eu acho que tem que ter só uma refeição por dia só, e acabo. O aluno que vem aqui e passa fome em casa, a escola tem que entrar em contato, tem várias coisas, tem bolsa família, bolsa escola, cheque cidadão. Tem bagulho assim né, vê que o aluno tá passando fome e começa a ganhar dinheiro. Vai mandar o garoto assim, vai comer hoje na escola?

....

Cátia: E a fruta tem que vir boa, não podre, porque ninguém aqui é porco pra comer lavagem. Tá? Eles vão usar os impostos do meu pai, então tem que comer do bom e do melhor. Nada de vir abacaxi estragada, abacaxi estragada. Nada de vir banana preta, tangerina podre, laranja de fazer suco, não é de comer. Porque aquela laranja lá é laranja lima é de fazer suco e não de comer. Melancia, eu adoro melancia, ai vem uma fatia assim (mostra com as mãos). Se o aluno não quer comer porque não gosta, ai, sopa, eu odeio sopa, ai quero comer a fruta, né? O abacaxi é desse tamanho, não dá nem pro caldinho.

...

Márcio: Qual a sua opinião sobre a alimentação na escola?

Pablo: Eu não como na escola, sabe por que? Eu trago dinheiro pra comer no restaurante, entendeu?

...

Márcio: Ai, bacana a alimentação na escola, mas podia ter um cafezinho da manhã, entendeu? Pra a gente poder se alimentar melhor ai entendeu? E o almoço, depois do período das aulas.

...

Vocês concordam? O Mateus falou que a alimentação na escola é mais saudável que a alimentação em casa.

Pablo: Não é não porque a comida da mãe é a melhor que tem!

.....

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Márcio: Um suco de laranja, limãozinho. Na hora do almoço seria bom. O quê que você acha disso Murilo? Um suquinho na hora do almoço não seria bom?

Murilo: Seria muito bom.

....

Márcio: Bom, a alimentação é muito bom. Ajuda as pessoas que tem dificuldade em casa, entendeu? Financeira pra alimentar a pessoa. Não digo que a pessoa vai vir pra escola só pra comer, mas é um bom incentivo pra pessoa vir pra escola.

...

Márcio: Um dos maiores motivos para que os alunos venham se alimentar na escola é por não ter o que comer em casa. Muitos alunos vêm sem tomar café, um lanche, um pão para que possam entrar na escola, e vem para a escola para se alimentar. O segundo maior motivo para que o aluno venha se alimentar na escola é porque ele sai das suas atividades escolares e vão direto para o trabalho, estágio, e eles se alimentam na própria escola. Os alimentos da escola contrariam muitos alunos por ter verduras e legumes, coisas que os alunos não estão habituados a comer em suas casas. Mas esse seria o certo, porque a comida é a comida que dá força ao aluno para que ele possa crescer saudável.

....

Eu não concordei com aquele cara que falou que a criança tem levar comida de casa.

...

5 Apresentação dos caminhos dos grupos

Cátia: aqui tá explicando o que é alimentação, não deu para escrever escolar porque ficou muito grande, mas isso aqui é praticamente o que é alimentação escolar. A alimentação escolar pode ser uma forma de promover saúde ao oferecer todo dia uma refeição nutritiva. Nutritiva, arroz, feijão, um legumezinho e uma carne. Ao facilitar o acesso e a informação sobre o estilo de vida saudável. Estilo de vida saudável que é comer todo dia uma alimentação bem balanceada, entendeu? Bem balanceada. Tópico número dois, to falando hein. Alimentação escolar, alimentação escolar para contribuir com a realização do direito, do direito. Ao oferecer alimentação de qualidade para todos os alunos. Porque a escola, do mesmo jeito que seu papai, sua mamãe, sua titia, seu avô pagam impostos a escola é obrigatoriamente a nos dar uma comida, é obrigatoriamente, porque às vezes não dá, é obrigatoriamente. Obrigatoriamente a nos dar uma comida nutritiva e saudável, de qualidade, tá? Então quando você receber uma banana podre lá, reclama! Fala assim, meu pai não paga imposto pra eu recebe banana preta.

Isso, eu vou começar a falar isso!

Cátia: Depois manda a diretora vir falar comigo. O terceiro ponto, aqui, a alimentação é um direito de todos, e, portanto, o aluno deve ter acesso ao alimento na escola. Todos do faxineiro até o diretor.

.....

Cátia: Aí, todos, se a comida fosse boa, o professor não ia na Bela Roma almoçar, ou no outro self-service que tem ali atrás, entendeu? Mas como eles não gostam da comida eles vão comer fora. Se a comida fosse gostosa eles sentava a bundinha deles lá e ia comer com todo mundo, né? Mas não vocês vê algum professor comendo?

Beatriz: Eu vejo, o professor de francês.

Cátia: Só o de francês que é humilde, é o único!

Beatriz: Não os professor das classe lá das criança tudo come.

Cátia: Dos pequinininho. Você já viu o Marcos comendo no refeitório? O Marcos come no Bela Roma, a Ana Paula, a Ana Paula come no Bella Roma. Tu nunca viu o Marcos comendo no refeitório, nunca. Se a comida fosse boa eles comia.

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Beatriz: Lá no Itália todos os professores comem.

....

6 Criando o caminho final

Beatriz: Ter uma boa alimentação.

Agente tem que ter alimentação escolar.

Pablo: Porque tem gente que não almoça.

Murilo: Ai, eu sou um, eu deixo de comer em casa porque tem comida na escola.

Porque não dá tempo de tomar café.

Eu tomo café.

Mateus: Porque muita gente acha que a alimentação na escola é mais saudável que a alimentação em casa.

Pablo: Não.

Claro que não.

Eu não concordo não.

Beatriz: Eu acho que é importante porque tem que ser de qualidade.

Se a alimentação escolar fosse de qualidade seria melhor.

Pra ser de qualidade falta o suco.

Mais tempero!

Suco de laranja.

Mateus: Eu acho que mais vegetais.

Cátia: Mas eu não como abóbora, eu não como cenoura. Se agente aprendesse desde pequeno eu acho que agente comia mais hoje.

Murilo: Acho que tinha que ter um carrézinho com limãozinho. Tinha que colocar o carré na escola, com limãozinho, porque é bom.

Reginaldo: É pra quem não pode ir em casa depois da escola.

Pablo: É porque tem gente que trabalha depois da escola, por isso que a maioria almoça aqui. Sai da escola e vai direto pro trabalho.

Beatriz: Ah, eu sou uma.

Pablo: Eu não, eu vou em casa, tomo banho, só tomo banho e vou.

Beatriz: Não, mas as vezes não dá tempo. Tipo hoje não dá tempo.