O Curador Como Estrela

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Texto gentilmente cedido por Aracy Amaral para www.novoscuradores.com.br © AMARAL, Aracy. Permitida a divulgação e reprodução desde que citada a fonte. O curador como estrela ARACY AMARAL Em torno a este tema, "Surveying Contemporary Art", gostaria de enfatizar dois pontos: as características das grandes exposições ou eventos e os artistas que trabalham fora dos grandes centros. Quanto ao primeiro item, assim como vivemos hoje uma época de cinema de diretores e não cinema de histórias ou atores nas artes visuais também vivemos, ao que parece, um tempo de exposições de curadores, e não mais de artistas. Os grandes personagens do meio artístico internacional parecem ser, de fato, os curadores. Parece importar, portanto, menos a obra de arte em si, e o artista que se coloca como seu autor, mas a manipulação dos movimentos artísticos pelos curadores que produzem esses eventos milionários que provocam filas diante de museus, centros culturais e Bienais ou Documentas. Em consequência, neste fenômeno vinculado a uma sociedade altamente consumista, não é o produto que importa, mas a maneira como ele é apresentado. Talvez mesmo o excesso de produtos, ou, no caso, de tendências, caracterize com uma fadiga peculiar as imagens de nosso tempo. E, assim sendo, o que é importante é a forma de apresentação de novos trabalhos ou de trabalhos que exalam o ritmo veloz de nossos dias , embora o déjà vu esteja presente nessa mesma produção. Por essa mesma razão, o revival na arte, lembrado por Giulio Carlo Argan como um sinal da arte de todos os tempos, está mais que nunca presente na contemporaneidade. Mas o que significa a manipulação de obras de arte ou de produtos de artistas por um curador? Significa que, nas grandes exposições, este profissional se porta como um régisseur do espetáculo, constituído pelas Mesa-redonda realizada no MoMA, Nova York, em 1988.

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O Curador Como Estrela. Ano: 1988_texto de Amaral Aracy

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  • Texto gentilmente cedido por Aracy Amaral para www.novoscuradores.com.br AMARAL, Aracy. Permitida a divulgao e reproduo desde que citada a fonte.

    O curador como estrela

    ARACY AMARAL

    Em torno a este tema, "Surveying Contemporary Art", gostaria de

    enfatizar dois pontos: as caractersticas das grandes exposies ou

    eventos e os artistas que trabalham fora dos grandes centros.

    Quanto ao primeiro item, assim como vivemos hoje uma poca de

    cinema de diretores e no cinema de histrias ou atores nas artes

    visuais tambm vivemos, ao que parece, um tempo de exposies de

    curadores, e no mais de artistas. Os grandes personagens do meio

    artstico internacional parecem ser, de fato, os curadores. Parece

    importar, portanto, menos a obra de arte em si, e o artista que se coloca

    como seu autor, mas a manipulao dos movimentos artsticos pelos

    curadores que produzem esses eventos milionrios que provocam filas

    diante de museus, centros culturais e Bienais ou Documentas.

    Em consequncia, neste fenmeno vinculado a uma sociedade altamente

    consumista, no o produto que importa, mas a maneira como ele

    apresentado. Talvez mesmo o excesso de produtos, ou, no caso, de

    tendncias, caracterize com uma fadiga peculiar as imagens de nosso

    tempo. E, assim sendo, o que importante a forma de apresentao de

    novos trabalhos ou de trabalhos que exalam o ritmo veloz de nossos

    dias , embora o dj vu esteja presente nessa mesma produo. Por

    essa mesma razo, o revival na arte, lembrado por Giulio Carlo Argan

    como um sinal da arte de todos os tempos, est mais que nunca presente

    na contemporaneidade.

    Mas o que significa a manipulao de obras de arte ou de produtos de

    artistas por um curador? Significa que, nas grandes exposies, este

    profissional se porta como um rgisseur do espetculo, constitudo pelas

    Mesa-redonda realizada no MoMA, Nova York, em 1988.

  • Texto gentilmente cedido por Aracy Amaral para www.novoscuradores.com.br AMARAL, Aracy. Permitida a divulgao e reproduo desde que citada a fonte.

    grandes retrospectivas e exposies internacionais como Kassel, Veneza

    ou So Paulo. O projeto do evento reflete, desta forma, "seu" ponto de

    vista pessoal, a maneira como esse curador pina um fragmento ou um

    enfoque da produo artstica a fim de corporific-la, atravs de um

    grande show, hoje autogerador de renda, lucrativo mesmo. E que se

    insere, como um entretenimento, entre as mltiplas fontes para a

    distrao do cidado urbano de nossa aldeia global.

    Esse "ponto de vista" do curador no significa, de forma alguma, que seja

    essa a forma mais acertada de ver determinada tendncia ou

    determinado artista, porm, simplesmente, reflete um enfoque individual,

    passvel de posterior reviso ou confronto.

    Se isso pode ser visto em Paris, no Museu D'Orsay, quando se percebe

    reescrita a histria da arte do sculo XIX atravs da atuao conjunta de

    uma curadoria e um arquiteto (uma histria de continuidade, sem

    rupturas, ao contrrio do que at aqui se irradiara como informao),

    pode ser visto em retrospectivas (como as realizadas de Le Corbusier, no

    decorrer de 1987, em vrios locais da Europa e no Brasil, por exemplo),

    ou pode ser apreciado em grandes eventos como a Documenta de

    Kassel ou a Bienal de So Paulo. A primeira, estritamente primeiro-

    mundista, focaliza aspectos da responsabilidade social do artista,

    decalcada no respeito pelo pensamento de Josef Beuys, absolutamente

    indiferente produo do artista fora dos centros hegemnicos (Europa,

    Estados Unidos, Japo).

    O artista, assim, parece ter se deslocado para um segundo plano, sendo

    a vedete o curador.

    Curador: personagem aparentemente todo-poderoso, a deslocar-se com

    facilidade similar aos grandes executivos de multinacionais, de Nova York

    para Los Angeles, de Paris para Veneza, de Milo para Madri ou

    Barcelona.

    Talvez seja apenas um sinal dos tempos, mas esta constatao, do

    curador como manipulador da obra de arte (ou da produo do artista),

    tpica de nossos dias, diante do "quase" desaparecimento do artista como

    abridor de novos caminhos. Quem sabe neste fim de sculo no haja

    mais caminhos a serem abertos; quem sabe esta seja mais uma faceta

    da crise de criao de nosso tempo?

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    No existe arte latino-americana, nem artistas latino-americanos. Existem

    artistas nascidos no Peru, Argentina, Brasil, Panam, Porto Rico, Cuba,

    Mxico, Guatemala, Costa Rica, Nicargua, Equador, Colmbia,

    Venezuela, Bolvia, Chile, Paraguai, Uruguai, El Salvador, Repblica

    Dominicana. Esses pases tm em comum uma histria de colonizao

    ibrica, uma tradio religiosa e uma dependncia econmica, desde o

    sculo XIX, primeiro da Inglaterra, depois dos Estados Unidos, com a

    exceo de Cuba, hoje em dia economicamente dependente da Unio

    Sovitica. Na verdade, os artistas de todos esses pases, quando vivem

    fora da Amrica Latina, como na Europa e nos Estados Unidos, se unem

    ou estabelecem vnculos fraternos de amizade por uma similaridade de

    comportamento cultural.

    Mas suas realidades so diversas, como o podem constatar os que j

    viajaram Amrica do Sul. Embora, claro, haja afinidades maiores

    entre os pases da Amrica Central, entre aqueles da rea do Caribe, da

    regio dos Andes, do Cone Sul (Chile, Argentina e Uruguai) e mesmo

    entre estes e os brasileiros do sul, at So Paulo. O mesmo fenmeno se

    d dentro do Brasil, pas que um mosaico de culturas, entre o sul

    europeizado, o norte amaznico, o nordeste regionalista, em

    contraposio densa presena africana na Bahia, e com duas cidades

    onde se d a confluncia de todo o Brasil: Rio de Janeiro e Braslia,

    ambas capitais federais do Brasil, uma do sculo XVIII at 1960 e outra

    h 28 anos.

    Esta introduo objetiva mencionar que as tendncias dos artistas da

    Amrica do Sul so muito diversas. Como os norte-americanos at fins

    dos anos 1940, nossa inspirao foram os movimentos oriundos da

    Escola de Paris. Um dado, entretanto, diferencia os artistas destes pases

    daqueles dos Estados Unidos, apesar de pertencermos todos ao

    continente americano. que a prosperidade econmica norte-americana,

    afirmada com sua hegemonia poltica aps a II Grande Guerra, infundiu

    um estmulo que, sem dvida, foi fundamental para alcanar uma

    identidade como meio artstico criativo (tanto no cinema como nas artes

    visuais propriamente ditas: escultura, pintura, cenografia, arquitetura, por

    exemplo).

    Como nos lembra Baudrillard, na dificuldade de hoje assinalar "obras de

    arte" quando no h mais possibilidades de parmetros para reconhecer

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    o talento nem tampouco julgamentos de valor, tal a abertura para todas

    as experimentaes, observa-se simultaneamente, um movimento

    convulsivo e uma inrcia na arte contempornea, assistindo-se ruptura

    com a esttica quando ocorre a estetizao geral das coisas. Assim,

    vivemos num tempo em que h, como diz ele, uma proliferao de

    eventos, mas somos iconoclastas no porque destruamos imagens, mas

    por fabricarmos uma profuso de imagens em que no h nada a ver.

    Ausncia de formas, ausncia de esttica, sem necessidade que nos

    coloquemos a pergunta se h ou no o Belo como em outras pocas,

    embora se continue a assistir a um conjunto de ritos habituais, e neste

    processo estamos condenados a uma espcie de indiferena... Num tipo

    de crise, ou de situao que, na verdade, abrange o comportamento, a

    poltica, o sexo, a publicidade, alm da arte.

    neste contexto de crise contempornea que localizamos as

    manifestaes da arte de nosso tempo e os eventos relativos

    criatividade nas artes visuais. Artes to violentamente sujeitas aos

    modismos, e nas quais to difcil encontrar singularidades, que quando

    o localizamos, este artista imediatamente alado a alturas inauditas e

    imediatamente faz seguidores, seja por meio de seu xito no mercado

    como pela crtica que, vinculada a publicaes, divulga-o para os grandes

    centros internacionais de arte, numa espcie de campanha de

    banalizao de uma individualidade.

    Se o ritmo mudou na produo do objeto artstico, atingindo hoje a

    velocidade da vida de nosso tempo, parece, por essa mesma razo,

    haver cada vez menos espao para o recolhimento, e a personalidade

    isolada, aquele que interioriza sua problemtica plstica fazendo-a em

    seguida emergir atravs de sua obra, torna-se cada dia mais raro. Da

    porque nos parece muito difcil por acreditar pouco na apregoada

    comunicao universal da obra de arte a "leitura" da produo artstica

    de outro meio, quando no possumos afinidades com ele e temos,

    portanto, repertrios distintos. Sem repertrio comum, fica difcil a

    decodificao.

    Em consequncia, os meios artsticos da Amrica do Sul, por exemplo,

    observam com muita reserva as exposies realizadas sobre "arte latino-

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    americana", j levadas a efeito ou em preparo, exatamente porque essa

    produo no constitui um conjunto. E, sim, um mosaico de realidades

    que nem sempre pertinente se apresentado como um todo. No entanto,

    neste momento, por exemplo, assistimos ao preparo ou realizao de

    vrias exposies focalizando a "arte latino-americana". O que no deixa

    de ser vlido, se imaginarmos o mesmo aplicado "arte do sudeste

    asitico", "arte norte-americana", neste caso incluindo Estados Unidos,

    Mxico e Canad, "arte europeia", "arte africana contempornea",

    abrangendo numa s exposio comportamentos culturais os mais

    diversificados e por vezes antagnicos, apesar de uma proximidade

    geogrfica relativa.

    Finalizando, sempre interessante poder afirmar, perante um pblico

    sofisticado como o de Nova York, que os meios artsticos do Terceiro

    Mundo tm hoje lucidez suficiente para se dar conta de que a emergncia

    de um artista de talento de nvel internacional, ou o interesse pela

    produo artstica de um pas em nvel internacional, somente se d na

    medida em que esse pas goza de importncia econmica internacional.

    Se o pas economicamente poderoso como atualmente Japo e

    Alemanha, ou Itlia , consequentemente seus artistas sero

    requestados para eventos internacionais de importncia. Ao passo que

    pode haver um artista de grande valor no Marrocos, por exemplo, vivendo

    em Paris, e ningum tomar facilmente conhecimento de seu talento, ou

    s muito lentamente.

    Da porque consideramos de grande importncia, no caso da Amrica

    Latina, o reconhecimento de artistas incontestveis como Wifredo Lam,

    Frida Kahlo, Roberto Matta, Torres Garca, Soto, a despeito da

    dificuldade de seu acesso inicial ao mercado de arte. Tarsila, do Brasil,

    tambm caso similar, e que somente agora parece estar emergindo

    como interesse, por uma srie de eventos que projetam o melhor de sua

    obra. Entretanto, entre os artistas contemporneos, que se constituem

    dentro da mentalidade de nosso tempo, participantes da "aldeia global",

    h em todos os nossos pases aqueles de talento igual ou maior aos de

    centros mais desenvolvidos (como Nova York, Milo, Munique, Berlim ou

    Paris). Porm, exatamente por serem de tendncias similares s desses

    centros, ou porque seus pases no so economicamente poderosos,

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    no so solicitados, ou sequer observados pelos curadores de eventos

    de importncia.

    Neste ponto, a pergunta pertinente deveria ser: mas afinal, quem copia

    quem? Ou: os crticos e historiadores sabem mesmo, com conhecimento

    de causa, quem foi "o primeiro" do ponto de vista inventivo, formal, ou

    expressivo? Ou se limitam ao conhecimento do que se passa em duas ou

    trs cidades, imaginando que o restante da produo artstica cpia?

    At que ponto um artista contemporneo pode ser original nos dias que

    correm? Por que no realizar uma reflexo sobre o provincianismo dos

    grandes centros? Ou, como nos lembra Pierre Gaudibert, por que no

    assumir que o regionalismo uma tradio na histria da arte de todos

    os tempos?

    Assim, depois de ver no ano passado a Documenta de Kassel, pude

    constatar que a Bienal de So Paulo apresenta uma abertura, um

    horizonte que nem a Bienal de Veneza ou a Documenta podem

    apresentar, por sua localizao europeia. A Bienal de So Paulo adquire

    assim uma riqueza peculiar que pode ou no interessar ao crtico e ao

    artista mais sofisticados do Brasil e do exterior mas oferece um

    panorama da arte de hoje em dia (com toda a carga de cansao inerente

    a essas manifestaes). E isso s possvel por ser a Bienal em So

    Paulo, no Brasil, pas da Amrica Latina, Terceiro Mundo, importadores

    de informaes desde o nosso surgimento, importadores de bibliografias

    e filosofias at o momento em que economicamente se adquire

    maturidade suficiente para nossa afirmao como identidade. At l, nos

    interessaremos vivamente por tudo o que ocorre a nossa volta, e nesse

    vcio reside igualmente uma qualidade de nosso meio artstico e

    intelectual, que nossos colegas dos grandes centros hegemnicos no

    possuem, pois conhecem a si prprios e a seus competidores mais

    fortes, ignorando tudo o mais.