O debate sobre a reconfiguração da estrutura de classes no Brasil … · 2019. 12. 3. · debate:...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Priscila Souza de Carvalho O debate sobre a reconfiguração da estrutura de classes no Brasil do século XXI a partir da tese da nova classe média Campinas 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Priscila Souza de Carvalho

O debate sobre a reconfiguração da estrutura

de classes no Brasil do século XXI a partir da tese

da nova classe média

Campinas

2017

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2017Priscila Souza de CarvalFicha catalográfica

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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CNPq, 130589/2015-2

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: The debate about the reconfigurantion of class struture in Brazil of the century XXI from the thesis of the new middle class Palavras-chave em inglês: Middle class Social classes Social mobility - Brazil Área de concentração: Ciência Política Titulação: Mestra em Ciência Política Banca examinadora: Andréia Galvão [Orientador] Patrícia Vieira Trópia Sávio Machado Cavalcante Data de defesa: 07-11-2017 Programa de Pós-Graduação: Ciência Política

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A comissão julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado,

composta pelos professores Doutores a seguir descritos em sessão pública

realizada em 07 de novembro de 2017, considerou a candidata Priscila Souza de

Carvalho aprovada.

Prof.ª Dr.ª Andreia Galvão

Prof.ª Dr.ª Patrícia Vieira Trópia

Prof.° Dr.° Sávio Machado Cavalcante

A ata de defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no

processo de vida acadêmica do aluno.

Campinas

2017

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Agradecimentos

O processo de pesquisa não explicita muita das vezes os caminhos tortuosos

que atravessam a trajetória na qual o pensamento foi construído. Ao agradecer,

espero poder transparecer que uma ideia nunca nasce sozinha; ela está imersa nos

dramas de seu tempo, em uma rede familiar e social que tem data e posição política.

Assim, agradeço a Articulação do Semiárido Brasileiro e a Cáritas Brasileira

Regional Minas Gerais, organizações em que atuei como comunicadora popular no

programa Uma Terra e Duas Águas. Trabalho que me possibilitou atravessar os

sertões, descobrir o semiárido e ter o privilégio de contar sobre suas gentes, seus

povos, saberes e sabores, a partir de uma incrível rede de comunicadores populares

que lutam contra o latifúndio da comunicação no Brasil.

Nossa missão nesse contexto foi denunciar que o “sertão” está carregado de

mitos que escondem os reais problemas deste território e de sua gente. Autores

como Chico de Oliveira a analisar que o problema desta região não se trata da

ausência de políticas de desenvolvimento para o semiárido brasileiro, a realidade da

miséria se constitui como um planejamento orquestrado pelo Estado que tem sua

economia baseada no modelo dos grandes latifúndios produtores das commodites e

da dominação política destes “coronéis”, perpetuada por meio das relações de

favores as quais a população, sem outras oportunidades de emprego, fica

submetida, ou como alternativa migra, sendo essa região a principal irradiadora de

mão de obra barata para todo o país.

A “ignorância” e a “seca” são estigmas que violentam esse povo e estão longe

de ser a causas de suas mazelas. Essa experiência se deu entre 2011 e 2013,

período em que mudanças econômicas e sociais atravessaram o Brasil e atingiram

fortemente essa parte da população com a qual convivi e aprendi.

Como perceber as causas e impactos desta mudança? A questão virou

destaque na mídia, entre militantes políticos e entre pesquisadores, todos se

questionaram sobre o significado do dado estatístico que anunciava que o Brasil

estaria eliminando a miséria e ressurgindo como uma sociedade de classe média,

implicando uma profunda alteração da composição das classes sociais no país.

Essa transformação nos levaria a buscar refletir sobre o impacto dessa

mobilidade na dinâmica política que planejava a miséria e a dominação política

condenando o país a uma desigualdade extrema. De forma que essas questões

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somadas a experiência no semiárido moveu-me na busca da pesquisa acadêmica.

No entanto, estava eu no semiárido, e o processo parecia algo maior, concentrado

principalmente nas periferias urbanas, segundo indicavam as pesquisas. Logo,

estouraram as manifestações de Junho de 2013 que tomaram as ruas de todo o

país. Entender como surgem estas mobilizações, sem aviso prévio de movimentos

sociais e sindicais, gerou muitas questões para um campo político de “esquerda”:

Estávamos diante de novos sujeitos políticos? Quem são e pelo que lutam? Tornar-

se-iam um movimento contínuo, a qual classe pertenceriam? A alteração da

composição de classe supostamente produzida teve impacto nas manifestações? O

contato com a bibliografia específica permitiu que nos posicionássemos

analiticamente diante dessas questões, além de incorporar na trajetória da pesquisa

a necessidade de entendermos as divergências teóricas e a especificidade de cada

um dos autores.

A teoria das classes sociais nunca foi um tema de fácil acepção, por isso

optamos pelo balanço bibliográfico a fim de construir um panorama das ferramentas

analíticas e perspectivas políticas das pesquisas existentes que possam contribuir

para as questões que nos intrigaram. Entendemos que, tais perguntas, por sua

magnitude, só poderiam ser parcialmente compreendidas por meio da

sistematização das análises anteriores, pesquisas que tiveram o fôlego necessário

para organizar dados e parâmetros que abrangessem toda a realidade brasileira.

Agradecemos então ao corpo docente da Unicamp que acolheu a proposta de

pesquisa, ao CNPQ que possibilitou a dedicação à pesquisa, e a orientadora

Andreia Galvão que teve o papel fundamental de aconselhar, dialogar e nortear o

trabalho. E ainda ao Centro de Estudos Marxistas (CEMARX), ao Professor Sávio

Cavalcante e Patrícia Trópia, cujos debates propiciaram amadurecer ideias centrais

deste trabalho.

Não menos importante foi a figura de Pedro Henrique de Faria, da turma de

mestrado, cuja amizade possibilitou diálogos que ajudaram a organizar e assentar

muitas das reflexões e devaneios que tive durante o fazer da pesquisa; sendo ele

um leitor assíduo do trabalho. E a querida Fernanda Belisário pela revisão atenta.

As ideias admitidas neste trabalho refletem a possibilidade de cotidianamente

debater, levantar e testar inquietações. De tal maneira, não menos importante foi ter

uma morada em que, mais que dividir contas, pude me sentir em casa

compartilhando o café e uns queijos de minas. Agradeço por toda a paciência, toda

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a escuta, todos os palpites, os incentivos e acolhimento de cada etapa desse

processo. Todas as luzes e suporte que meus amigos puderam me oferecer, cujo

significado vai muito além daquilo que se pode expressar em palavras. Muito

obrigada João, Renata, Ana Flávia, Iasmim Caramujo, Nara, Camila, Isabela. O meu

muito obrigada a Rafael Toitio e Daniela Vieira, os cuidados de vocês foram

fundamentais. Em especial, por se preocuparem com meu futuro e me manterem

atenta aos procedimentos metodológicos necessários ao meu retorno à dinâmica

acadêmica. E aos agregadíssimos tão importantes como, Samira e Roni, obrigada! !

Não saberia dizer qual diálogo foi mais produtivo, desde o desenvolvimento

da confiança necessária à evolução da pesquisa até o amadurecimento das ideias

que me possibilitaram finalizá-la.

À Abimael Carvalho, aquele que me fez repensar tantas questões, cuja crítica

desafia, mas acima de tudo por trazer gargalhadas, leveza e uma boa cerveja

gelada nos momentos mais cruciais da pesquisa, seu companheirismo transformou

tudo.

Ao Samba das Minas e Coletivo das Vadias, fundamentais para manter a

energia revigorada e por me lembrar que tantas horas a fio sentada entre livros e

palavras ganha textura e sabor quando temos um grupo com poder de se perguntar,

o que fazer? É um privilégio me sentir capaz de pensar para agir. E que mundo

maravilhoso é esse o de poder desconstruir a violência de uma cultura patriarcal e

machista com a alegria da música, no encontro que reuni e fortalece aquelas que

lutam pela liberdade de ser o que vier à mente, fora da caixinha “não pode, isso é de

menino”, e de ser igualmente amadas e respeitadas em suas diferenças. Em cada

encontro sentia que transbordávamos e fazíamos com que nossos sonhos dessem

mais um passo, nos tornávamos mais fortes, mais belas, mais felizes e mais

convictas. Gratidão mulherada!

À meus pais Juliana e Júnio César, à irmã Gabriela, a matriarca Tânia, e

porque as raízes de mulheres guerreiras que me atravessam são tão fortes, ainda

fazem parte desta história as madrinhas Patrícia Resende e Lúcia Carvalho.

Agradeço a vocês pelo apoio e confiança. Estes que estão comigo em todos

os momentos dessa travessia da minha vida. Especialmente neste mestrado em que

tantos espectros nos assombram com a exposição de um Estado tomado pelas

elites mais conservadoras. Nessa hora, a estrutura familiar foi o ponto crucial para

ter o privilégio de me dedicar à pesquisa.

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Por fim e não menos fundamental, às que se fazem presentes desde a

primeira vez em que descobri para que servem as utopias. Ás estas companheiras

de estrada unidas pelo sentimento de luta e de um outro mundo possível, já fomos

passe livre, já basta, não vou me adaptar, atitude, já viramos o mundo. Hoje somos

classe trabalhadora, feministas, bruxonas, algumas mães e casadas, o tempo passa

e nos permanecemos ombro a ombro. Agnes, Paula, Núbia, Jaqueline, Amanda,

Rebeca, Bartira, Alessandra.

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RESUMO

O objetivo desta dissertação foi analisar a tese da nova classe média, proposta por Marcelo Neri. A metodologia pautou-se em uma análise bibliográfica das principais obras que não apenas buscaram refutar, mas também apresentar outras teses acerca dos efeitos das políticas públicas governamentais sobre a mobilidade social brasileira na primeira década do século XXI. Buscou-se destacar os argumentos centrais da tese de Neri e a posição dos principais autores que intervieram nesse debate: Marcio Pochmann, Waldir Quadros, André Singer e Jessé de Souza. Cada qual apresentou respostas teórico-metodológicas diversas diante deste mesmo fenômeno. A partir desse balanço bibliográfico, percebe-se que a tese de Neri foi adotada por meios massivos de comunicação e instituições governamentais. Contudo, foi amplamente criticada pelos pesquisadores aqui analisados, seja em razão da insuficiência dos critérios adotados para definir classe média, seja pela apresentação de outros fatores possíveis para explicar o movimento de ascensão social observado naquele contexto. As abordagens desses autores críticos tratam das alterações nas condições de trabalho dos emergentes, dos efeitos de uma nova dinâmica produtiva sobre o habitus desse conjunto da população, de um processo de dominação simbólica e seu comportamento político eleitoral mediante um fenômeno político denominado lulismo. Por fim, buscou-se apresentar a discussão acerca dos efeitos da mobilidade sobre a orientação política dos sujeitos.

Palavras-chave: Classe média; classes sociais, mobilidade social - Brasil

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ABSTRACT

The objective of this dissertation was to analyze the new middle class thesis, proposed by Marcelo Neri. The methodology was based on a bibliographic analysis of the main Works, which not only sought to refute but also present other theses on the effects of governmental public policies on Brazilian social mobility in the first decade of the 21st century. It was tried to emphasize the central arguments of the Neri’s thesis and the position of the main authors who intervened in this debate: Marcio Pochmann, Waldir Quadros, André Singer and Jessé de Souza. Each one presented diverse theoretical and methodological answers in the face of this same phenomenon. From this bibliographic survey, it can be seen that Neri's thesis was adopted by mass media and governmental institutions. However, it was widely criticized by the researchers analyzed, either because of the insufficiency of the criteria adopted to define middle class or by the presentation of other possible factors to explain the movement of social ascension observed in that context. The approaches of these critical authors deal with the changes in the working conditions of the emerging ones, of the effects of a new productive dynamics on the habitus of this population group, the process of symbolic domination and its electoral political behavior through a political phenomenon denominated lulismo. Lastly, we tried to present the discussion about the effects of mobility on the subjects' political orientation.

Keywords: Middle class; social classes; Social mobility - Brazil

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

BACEN Banco Central

BPC Benefício da Prestação Continuada

CAGED Cadastro Geral de Empregos e Desempregados

CNETD Conferência Nacional de Emprego e Trabalho Decente

DEM Partido Democrata

DIEESE Departamento Intersindical de Estatística e Estudos

Econômicos

FHC Presidente Fernando Henrique Cardoso

FGV Fundação Getúlio Vargas

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IBOPE Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística

IHU Instituto Humanista Usininos

IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

MTE Ministério do Trabalho e Emprego

ONU Organização das Nações Unidas

OIT Organização Internacional do Trabalho

PNAD Programa Nacional de Amostra Domiciliar

PAC Programa de Aceleração do Crescimento

PIB Produto Interno Bruto

PME-IBGE Pesquisa Mensal de Emprego

POF Pesquisa de Orçamentos Familiares

PT Partido dos Trabalhadores

PRONATEC Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e

Emprego

PROGER Programa de Geração do Emprego e Renda

PSDB Partido da Social Democracia Brasileira

SAE-PR Secretária de Assunto Estratégicos da Presidência da

República

SINPRO-SP Sindicato dos Professores de São Paulo

USP Universidade de São Paulo

UNICAMP Universidade Estadual de Campinas

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SUMÁRIO

Agradecimentos ................................................................................................. 5 Lista de abreviatura e siglas ............................................................................. 11 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 13 I – CAPÍTULO UM- A EMERGÊNCIA DA TESE DA NOVA CLASSE MÉDIA BRASILEIRA .................................................................................................. 24 1.1. As alterações na estrutura social brasileira nos governos Lula e Dilma .... 24 1.2. A tese da formação de um novo sujeito econômico: a nova classe média brasileira .......................................................................................................... 33 1.3. A incorporação da tese da nova classe média pelo mercado e pelo governo federal ............................................................................................................. 42 II – CAPÍTULO DOIS- AS CRÍTICAS À TESE DA NOVA CLASSE MÉDIA ... 52 2.1. Os emergentes como integrantes da classe trabalhadora pobre ou expressão de uma nova pobreza ............................................................................................ 52 2.2. A tese da nova classe média como instrumento político-ideológico .......... 62 2.3. O fenômeno do Lulismo e as bases da despolitização ............................ 65 III – CAPÍTULO TRÊS- AS TEORIAS DA CLASSE MÉDIA E AS TRANSFORMAÇÕES NO CAPITALISMO ...................................................... 72 3.1. A abordagem sociológica .......................................................................... 72 3.2. As teorias das classes sociais ................................................................... 74 3.3. Mudanças no capitalismo: do fordismo à produção flexível ...................... 86 IV – CAPÍTULO QUATRO- AS ALTERAÇÕES NA ESTRUTURA SOCIAL BRASILEIRA NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XXI E A DINÂMICA POLÍTICA BRASILEIRA ................................................................................ 104 4.1. A mobilidade da classe trabalhadora e o declínio da classe média nos governos petistas .......................................................................................................... 104 4.2. Mobilização e desmobilização ................................................................ 121 CONCLUSÃO ................................................................................................ 136 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 142

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem como objetivo realizar um balanço bibliográfico a respeito

da tese da nova classe média, que emergiu durante os governos petistas e suscitou

grandes controvérsias para o debate teórico e político. O tema da nova classe média

se justifica pela força que o debate assumiu não apenas na academia, opondo

autores filiados a diferentes perspectivas teóricas, mas também na esfera pública,

do senso comum, por meio de uma ampla incorporação do termo por noticiários,

revistas, novelas, institutos privados de pesquisa de mercado, além de outros meios

de comunicação e pelo próprio mercado. Assim, o assunto se tornou notório no

debate político nacional, havendo uma vinculação entre a tese de uma nova classe

média e certo tipo de análise acerca da política econômica e social dos governos

Lula, sendo aquela apresentada como resultado desta.

Como veremos com detalhes, entre 2003 até meados de 2012, o debate

partiu de determinada leitura dos indicadores socioeconômicos relativos aos níveis

de emprego, pobreza, desigualdade, consumo e renda. Enquanto alguns autores

apontavam para a emergência de uma nova classe média, outros recusavam esse

conceito, interpretando as mudanças socioeconômicas observadas nas camadas

populares de maneiras bastante distintas. A despeito dessa controvérsia, houve o reconhecimento, em grande parte da

bibliografia, de que o Brasil passara por importantes mudanças econômicas e

sociais que teriam provocado a melhoria de vida e a mobilidade ascendente dos

segmentos mais pobres. Para os autores que trabalharam com o conceito de

classes, isso teria significado uma mudança da estrutura de classes. Que fatores

teriam levado a essas mudanças? De que maneiras as ações promovidas pelos

governos do PT repercutiram na estrutura de classes no Brasil? Por que um mesmo

fenômeno identificado em um espaço tão curto de tempo deu origem a

interpretações tão distintas?

O debate em questão envolve ao menos três eixos de reflexão:

1. As perspectivas teóricas que orientam essas análises são diferentes, assim

como os recortes com os quais operam, que informam uma abordagem ora

mais econômica ora mais sociológica;

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2. Consequentemente, existem distintas definições sobre o conceito de classe

média ou de sociedade de classe média; em especial para o contexto da

formação social brasileira:

3. As análises também se diferenciam quanto à identificação do comportamento

político das classes.

Optou-se por selecionar, nesta pesquisa, autores que, mesmo inseridos em

diferentes áreas disciplinares, valeram-se do conceito de classes para tratar das

mudanças socioeconômicas nas camadas populares, são eles: os economistas

Marcelo Neri, Márcio Pochmann e Waldir Quadros; o cientista político André Singer

e o sociólogo Jessé de Souza. A escolha desses autores se justifica pois, além de

analisarem uma mesma época, a primeira década de 2000, centraram suas análises

a partir de indicadores próprios de suas áreas de conhecimento, o que permitiu, pela

sistematização das obras aqui proposta, um retrato da realidade brasileira em uma

perspectiva abrangente1.

Além de sua origem disciplinar, estes autores ocupavam posições sociais que

influenciariam a forma como se inserem no debate sobre as classes sociais no país.

Nesse sentido, os cargos estratégicos ocupados por estes pesquisadores em

instituições governamentais garantia-lhes o acesso a dados e informações que

contribuíram para o desenvolvimento de suas pesquisas.2

A pesquisa se desenvolveu pela leitura orientada da produção bibliográfica

das obras dos autores citados concernentes ao tema, bem como de entrevistas

cedidas por esses intelectuais à grande imprensa. Deste modo, a leitura crítica, a

análise e a sistematização das principais ideias que conformam o pensamento

desses autores, constituíram os procedimentos metodológicos desta pesquisa.

1 Marcelo Neri vale-se de indicadores de renda per capita, enquanto Waldir Quadros e Márcio Pochmann enfatizam as mudanças sócio-ocupacionais. O sociólogo Jessé de Souza se preocupa com a gênese sociocultural, olhando para a "transferência de valores imateriais na reprodução das classes", e o cientista político André Singer discorre sobre a alteração na dinâmica político-partidária e no comportamento da base eleitoral. 2 Todos os pesquisadores aqui estudados ocuparam posições políticas ou em instituições governamentais durante os primeiros anos da década de 2000. Assumiram a presidência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Márcio Pochmann (2007-2012), Marcelo Neri (2012-2014) e Jessé de Souza (2015-2016). O pesquisador. Neri, além de ocupar este espaço estratégico no maior instituto de pesquisa do país, também esteve no cargo de ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República entre 2013 e 2015. E André Singer, por seu turno, foi porta-voz da Presidência da República entre 2003 e 2007 e secretário da Imprensa da Presidência da República entre 2005 e 2007. Waldir Quadros foi secretário de Cidadania, Trabalho, Assistência e Inclusão Social do município de Campinas sob a administração do Dr. Hélio da Costa Santos(PDT), entre 2005 e 2007.

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O debate sobre a emergência de uma "nova classe média" brasileira foi

prenunciado por Marcelo Cortez Neri, economista da Fundação Getúlio Vargas

(FGV) que analisou as condições socioeconômicas do Brasil. Seu diagnóstico

apontou que, entre 2003 e 2009, ocorrera um aumento da renda familiar, cujo efeito

seria o ingresso de mais de 29 milhões de brasileiros no que o autor considerou

como classe C. Esta correspondia a um estrato de renda cujo limite inferior (em

2008) de 1064 reais e com limite superior de 4986 reais, tendo sido denominada por

Neri de "nova classe média". Esta faixa de renda situa-se abaixo do rendimento dos

mais ricos (Classes A e B) e acima da renda dos mais pobres (Classe E e D).

Segundo estes cálculos, Neri entendia que mais de 50% da população do período,

percentual estimado em mais de 100 milhões de brasileiros, estaria na primeira

década do século XXI ocupando essa faixa intermediária de renda (classe C).

Essa tese ganhou notoriedade, haja vista que estes apontamentos

interessavam tanto ao mercado, devido ao aumento potencial de consumidores

pertencentes a essa classe, quanto ao governo, dado que o PT promovia na época

uma avaliação positiva de suas políticas econômicas e sociais, e que os dados

oriundos dessa tese ajudavam a corroborar.

Entretanto, surgiram controvérsias em relação à abordagem de Neri, que se

restringia à estatística de rendimento familiar para retratar as classes, haja vista a

existência de outras pesquisas que também abordaram sobre a mobilidade das

classes sociais neste período, os citados André Singer, Jessé de Souza, Márcio

Pochmann e Waldir Quadros. Essas controvérsias ensejaram um debate essencial

para a presente pesquisa uma vez que, para um mesmo período, surgiriam novas

perspectivas vinculadas à teoria das classes sociais que tinham por intuito explicar

as transformações sentidas na sociedade brasileira. Dessa forma, buscou-se

sistematizar e problematizar as diferentes abordagens sobre as classes produzidas

por esses autores, bem como as implicações políticas das teses elaboradas por

eles. Suas reflexões de caminhos teórico-metodológicos distintos, os levaram a

retratar a realidade dos brasileiros e a designar a população referida por Neri a partir

de diferentes conceitos: Singer defendia o conceito de subproletariado, Pochmann

denomina esse segmento de classe trabalhadora, Quadros utilizava a expressão

baixa classe média e, por fim, Souza empregava o termo batalhadores.

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Além de mobilizar o debate entre especialistas, Neri, por meio do livro A nova

classe média(2008)3 e de uma série de debates em torno desse conceito, mobilizou

o imaginário social. Tanto a grande mídia, em jornais impressos, televisivos e até

novelas, quanto instituições privadas de pesquisa de mercado de consumo

adotaram o termo nova classe média para dialogar com essa parcela da população

que antes, na perspectiva de Neri, encontrava-se sob condições econômicas que

lhes situavam nas camadas pauperizadas da sociedade e que, a partir de 2003,

iniciaram uma mobilidade social ascendente, tendo seus rendimentos e poder de

compra aumentados.

É necessário destacar que a leitura de Neri não está desatrelada da

perspectiva de que, para o fenômeno da mobilidade de renda ascendente, foram

fundamentais as políticas econômicas e sociais implantadas no decorrer dos

governos FHC e Lula, que garantiram primeiro, a estabilidade econômica, promovida

durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso; segundo, as políticas de renda

para os mais pobres e, fundamentalmente, a geração de empregos formais,

desenvolvidas na gestão do PT.

Além das contribuições de Neri, outras perspectivas foram apresentadas por

pesquisadores que se debruçaram sobre o período em que transcorreu o primeiro

governo petista.

Singer, cientista político e professor da Universidade de São Paulo (USP), em

2009, publicou o artigo Raízes sociais e ideológicas do Lulismo e, em 2012, o livro

Os sentidos do Lulismo: Reforma gradual e pacto conservador. O cientista político

entendia que, a partir de 2003, o governo recém-eleito de Luiz Inácio Lula da Silva

assumira uma política econômica conservadora, evitando o confronto com o capital.

Todavia, existia uma orientação dos governos no sentido de adotar políticas de

combate à pobreza e voltadas para a ativação do mercado interno. Estas medidas,

segundo Singer (2012), teriam levado ao realinhamento eleitoral e ao fenômeno do

lulismo. Nas palavras do autor, o realinhamento eleitoral se constituiu em um

processo de troca da base social de apoio ao PT. Enquanto em 2002, a coalizão de

classe média foi fundamental para a vitória eleitoral, as opções assumidas durante o

3 A produção de Neri em defesa da emergência de uma nova classe média não se limitou a 2008. Em 2010, o autor lança o livro "A nova classe média: o lado brilhante dos pobres"; no ano de 2011 reitera a sua perspectiva com outro trabalho intitulado "A nova classe média: o lado brilhante da base da pirâmide"; em 2012, publica o texto denominado "De volta ao país do futuro: projeções, Crise Europeia e a Nova classe média".

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primeiro mandato teriam agradado ao segmentos de baixa renda. Assim nas

eleições de 2006 teria ocorrido o fenômeno do realinhamento eleitoral, no qual a

classe média se afasta e o subproletariado adere ao bloco lula.

O lulismo, compreendido como "o encontro de uma liderança, a de Lula, com

uma fração de classe, o subproletariado", por meio do programa político assumido

por este candidato em seu primeiro mandato, foi expressão desse realinhamento. A

satisfação do subproletariado com as medidas tomadas pelo governo garantiu o

apoio deste segmento à reeleição de Lula, além de maior força de manobra política,

"possibilitando acelerar a implantação do modelo de ‘diminuição da pobreza com

manutenção da ordem’ esboçado no primeiro quadriênio”. (SINGER, 2012, p.15)

O efeito da política econômica e social assumida no governo de Lula foi, para

Singer, não só a redução da pobreza, ativação do mercado interno, "melhorando o

padrão de consumo da metade mais pobre", como também a integração deste

subproletariado à condição de proletariado por meio do emprego formal (SINGER,

2012, p. 15-16)

Ao olhar por outro prisma, Márcio Pochmann, economista e professor da

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), publicou em 2012 o livro intitulado

Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira e, em 2014, O

mito da grande classe média. O economista considerava que a queda do

desemprego, a política de valorização do salário mínimo, as políticas sociais para os

mais pobres e o processo de formalização do trabalho impulsionou a expansão da

classe trabalhadora nas bases da pirâmide, ao invés de criar uma "nova classe

média". Em entrevista ao portal Pragmatismo Político, Pochmann explicou que:

"Esse bloco é formado por trabalhadores que estavam desempregados ou na informalidade, e que conseguiram um emprego com carteira assinada, a maior parte no setor de serviços, com renda de até dois salários mínimos, A nova classe média é uma invenção".4

Para o autor, nesse contexto, olhando para a estrutura ocupacional criada no

Brasil nos últimos quarenta anos, nem as condições de trabalho, nem o salário dos

4 Entrevista ao portal Pragmatismo Político. "Nova classe média” é um mito. ed. 06/06/2014.

Disponível em <http://www.pragmatismopolítico.com.br/2014/05/nova-classe-media-e-um-mito.html>. Acesso em: 04. ago. 2014.

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beneficiados pelas políticas econômicas e sociais voltadas aos mais pobres nos

governos petistas, se assemelham às condições de uma classe média.

Outro economista que se voltou para essas problemáticas foi Waldir José de

Quadros, professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

e estudioso da nova classe média formada em outro período da história política

brasileira, entre 1950 e 1980. O pesquisador apresentou em 2006 O encolhimento

da classe média brasileira, em 2008 A evolução da estrutura social brasileira: notas

metodológicas e, em 2012, juntamente com Dennis Maracci Gimenez e José Nardy

Antunes, desenvolveram mais diretamente uma crítica à ideia de uma nova classe

média nos anos 2000, em artigo intitulado O Brasil e a nova classe média dos anos

2000.

O pesquisador explicou que existiam diferentes formas de definir esse estrato

social. Na economia, a metodologia dominante estaria atrelada à corrente

neoclássica, que hierarquiza os indivíduos em uma sociedade tão somente por seus

rendimentos. Crítico a esse posicionamento teórico Quadros aponta que os

pesquisadores desta corrente de pensamento entendiam a sociedade como formada

por consumidores genéricos, que se diferenciariam basicamente por seu poder

aquisitivo.

Quadros, embora tenha formação em economia, adotou uma outra

perspectiva, preferindo uma abordagem sociológica. Nesse sentido, salientou a

"nova classe média" como um conceito desenvolvido pelo sociólogo americano

Wright Mills, "e tratava das mudanças na estrutura ocupacional pós II Revolução

Industrial em meados dos anos 1950" com o aumento dos ‘colarinhos brancos’, ou

ainda, do "emprego público de qualidade ou gerentes na cadeia produtiva"

(QUADROS, ANTUNES e GIMENEZ, 2012, p.9).

Assumindo um ponto de vista crítico àquele defendido por Neri, Quadros

aponta que a nova classe média de Neri representaria uma classe média muito

diferente daquela que teria surgido no período anterior como fenômeno sociológico

nos Estados Unidos. Assim, no Brasil do século XXI, considerava-se

equivocadamente que determinadas ocupações como a das "empregadas

domésticas" e os "analfabetos" compunham a classe média, como se a diminuição

da desigualdade social e a queda da pobreza necessariamente levassem à

ascensão desses segmentos para outra classe social.

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Para Quadros, o Brasil estaria inserido em um contexto de submissão à lógica

financeira de política econômica neoliberal. A consequência teria sido a redução dos

empregos típicos de uma classe média como observada por Mills no século XX. Ou

seja, seriam enxugados os cargos públicos de nível superior, e a desindustrialização

comprimiria a quantidade de gerentes na cadeia produtiva. Ou, ainda, no capitalismo

neoliberal, na estruturação das ocupações ocorreria a "polarização no mercado de

trabalho entre ricos e bem-pagos e os que prestam serviços como forma de superar

o desemprego" (QUADROS, ANTUNES & GIMENEZ, 2012, p.9). A interpretação

dos autores ao perceber essa polarização, contrariou, portanto, a tese da nova

classe média de Neri, que apresentava a estrutura social brasileira como equalizada,

com mais de 50% da população na classe C.

Os autores afirmam que o retorno do crescimento econômico, "a reativação

do mercado de trabalho formal, das oportunidades de pequenos negócios e do

trabalho autônomo melhor remunerado", os quais foram "reforçado por uma política

de aumento real de salário mínimo", produziram oportunidades individuais que

permitiram atestar a redução da miséria, o aumento da massa trabalhadora (pobres),

"mas sobretudo, da baixa classe média (remediada)", sendo o crescimento reduzido

na média classe média e na alta classe média (QUADROS, ANTUNES & GIMENEZ,

2012, p. 3-4).

Para este autores, apenas estas duas últimas classes (média e alta) poderiam

ser expressão autêntica da classe média. Contudo, ocorreria um distanciamento

entre a classe média no século XX e a chamada classe média brasileira no século

XXI segundo os critérios de ocupação, rendimento e consumo. Por fim, os autores

entendiam que:

A chamada classe C ou a nova classe média, símbolo da retomada do crescimento no Brasil neste início do século XXI, está longe dos estilos de vida que caracterizavam a nova classe média como a grande novidade do século XX. A atual nova classe média ou classe C – auxiliares de escritório, atendentes, vendedores, garçons, professores primários, policiais, auxiliares de enfermagem etc. – tem insuficiências e carências de todo tipo, em termos dos seus padrões e estilos de vida (QUADROS, ANTUNES & GIMENEZ, 2012, pp. 9-10).

Essa citação aponta para a impossibilidade de se definir a população de um

país como majoritariamente de classe média ao desconsiderar as condições mais

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gerais do desenvolvimento do capitalismo, a forma como se estrutura a sociedade e

os padrões e estilos de vida historicamente construídos naquele território.

Entre as quatro abordagens até aqui apresentadas somou-se a análise

desenvolvida por Jessé de Souza, sociólogo, foi professor da Universidade Federal

de Juiz de Fora (UFJF) e é desde 2016, professor titular de ciência política na

Universidade Federal Fluminense, em Niterói, Rio de Janeiro. Para Souza, no

período dos anos 2000 teria se constituído uma classe de batalhadores, cujo estilo

de vida seria totalmente diferente daquele que se considera como característico de

uma classe média.

As obras de Jessé de Souza analisadas para o debate das classes sociais

foram “A ralé brasileira: quem é e como vive” (2009) e “Os batalhadores brasileiros:

nova classe média ou nova classe trabalhadora?” (2012), além do artigo “A

invisibilidade da luta de classes e a cegueira do economicismo” (2013).

Crítico a uma análise de classe restrita à renda, assumida principalmente por

Neri, como também àquelas que se restringiam à ocupação, presente nas reflexões

de Quadros e Pochmann, Souza enfatiza os aspectos imateriais e simbólicos da

constituição das classes sociais. As classes seriam, assim, fruto ao mesmo tempo

da distribuição desigual de recursos materiais e imateriais. O pesquisador tratou

classe como um processo também cultural, de incorporação, por parte de

segmentos da sociedade, de valores morais e emocionais que constituiriam

elementos importantes para a legitimação da reprodução do capitalismo. Souza

sustenta que os batalhadores seriam uma nova classe, “posto que resultado de

mudanças sociais profundas que acompanharam a instauração de uma nova forma

de capitalismo no Brasil e no mundo” (SOUZA, 2012, p. 26).

Para definir classe média, nas palavras de Souza, não bastariam os critérios

de renda e consumo, seria necessário ao pesquisador captar as disposições que

instituem um determinado estilo de vida e comportamento. Ao apresentar sua

pesquisa o autor ressalta que:

A nossa atual pesquisa, apresentada neste livro, é sobre uma classe social nova e moderna, produto das transformações recentes do capitalismo mundial, que se situa entre a “ralé” e as classes média e alta. Ela é uma classe incluída no sistema econômico, como produtora de bens de serviços e valorizados, ou como consumidora crescente de bens duráveis e serviços que antes eram privilégio de classes média e alta. Mas como classes sociais não podem ser definidas – como vimos acima e veremos no decorrer de todo o livro – apenas pela renda e pelo padrão de consumo,

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mas, antes de tudo, por um estilo de vida e uma visão de mundo “pratica”, que se torna corpo e mero reflexo, mera disposição para o comportamento, que é em grande medida pré-reflexivo ou “inconsciente”, temos que estuda-la empírica e teoricamente para definir seu lugar (SOUZA, 2012, p. 26).

As contribuições de Souza indicam que os critério para se definir o

pertencimento de classe social não se restringiria apenas ao acesso a bens

materiais, permeia a formação desta a visão de mundo que orientaria e justificaria a

condução de um estilo de vida que gera a distinção social. Assim, seria necessário

identificar “a transferência de valores imateriais na reprodução das classes sociais e

de seus privilégios no tempo” (SOUZA, 2012, p. 23). Nesse sentido, o autor se

baseou na obra de Pierre Bourdieu, sobretudo no conceito de habitus, formado a

partir da apropriação diferencial de capitais impessoais: capital econômico e capital

cultural. A classe média, a partir desse ponto de vista, seria aquela cujo estilo de

vida se diferenciaria das outras classes pela apropriação diferencial de capital

cultural, transmitido por meio das relações afetivas no interior da família, capital esse

justificado por meio do mérito individual, ou ainda do “talento natural”.

Todos os pesquisadores aqui mencionados analisaram as mudanças sociais

em curso no decorrer da primeira década do século XXI. No entanto, existem,

conforme indicado, aspectos conflitantes e divergentes no interior das reflexões

desses autores. Por isso, faz-se necessário problematizar as diferentes perspectiva

utilizadas por eles na tentativa de explicar as razões das diferenças teóricas para a

análise da mobilidade social do período.

Dessa forma, ao sistematizar o debate sobre a ascensão ou não de uma nova

classe média, recuperou-se a contribuição destes pesquisadores, para, por um lado,

produzir um quadro de debate teórico sobre a formação das classes sociais no Brasil

no decorrer da primeira década do século XXI, e, por outro, definir como se formam

e quais critérios podem ser adotados para diferenciar os sujeitos que permeiam a

controvérsia gerada em torno do conceito de classe média. Consideramos

importante ressaltar que esse balanço bibliográfico revela, analiticamente, o modo

pelo qual parte do pensamento social e político brasileiro, informado por diferentes

teorias das classes sociais, abordou a dinâmica econômica, política e ideológica do

Brasil no começo do século XXI.

No primeiro capitulo procuramos analisar os fundamentos da tese da nova

classe média de Marcelo Neri demonstrando, como os dados que indicariam a

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ascensão social da população brasileira fomentaram um amplo debate sobre o

caráter do programa econômico e social dos governos do PT. Ademais, nesse

capitulo, o que se pretendeu foi mostrar como a tese de nova classe média foi

amplamente aceita e disseminada pelos principais veículos de comunicação de

massa, bem como pelo governo federal, revelando amplo interesse destes com a

ideia da formação de um novo consumidor e com a avaliação positiva das medidas

governamentais e econômicas divulgadas no período.

No segundo capitulo apresentaremos a crítica realizada por Marcio

Pochmann, Waldir Quadros, Jessé de Souza e André Singer à tese da nova classe

média. O objetivo foi apresentar que o conceito não seria neutro e possuiria efeitos

políticos e ideológicos. De maneira que, para além de divergências sobre os critérios

para se definir classe média, havia uma disputa pela própria orientação das

proposições políticas assumidas pelo governo, bem como pela visão de mundo

destes emergentes. O que revelou-se foi a preocupação de a tese da nova classe

média ser um instrumento político e ideológico de legitimação de uma política

neoliberal e despolitizadora das classes.

Exposta as disputas em torno da tese de Neri, ficou claro que as outras

pesquisas do fenômeno da mobilidade, críticas à ideia de uma nova classe média se

fundamentaram na teoria sociológica das classes sociais. Assim, no terceiro capítulo

buscamos resgatar os fundamentos da teoria das classes sociais, em especial da

classe média, a fim de apresentar os desafios assumidos pelos autores ao tentarem

manter a análise atualizada no contexto das transformações do século XXI, e que

implicariam diretamente na análise das classes sociais no Brasil.

Por fim no quarto capítulo, veremos que para produzirem a análise do impacto

da mobilidade na estrutura social brasileira, estes autores tentaram ultrapassar as

categorias advindas unicamente do suposto desenvolvimento econômico resgatando

as teorias que trataram da formação social brasileira. Os autores tinham como

objetivo construir um quadro comparativo que englobasse tanto a estrutura

ocupacional brasileira, quanto as ideias e valores que mobilizam e desmobilizam os

sujeitos.

Nossa contribuição foi, assim, a de destacar as teses fundamentais sobre o

impacto das alterações na estrutura social brasileira nos levando a perceber a

modificação gradual das experiências das classes, o que nos possibilitaria apontar

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ainda para as novas dinâmicas políticas e ideológicas que demarcaram nossa

sociedade neste início de século.

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CAPÍTULO UM

A EMERGÊNCIA DA TESE DA NOVA CLASSE MÉDIA

BRASILEIRA

1.1. As alterações na estrutura social brasileira nos governos Lula e

Dilma

A tese da emergência da nova classe média foi desenvolvida pelo economista

Marcelo Neri no ano de 2008 a partir das pesquisas nas quais coordenava junto à

Fundação Getúlio Vargas. O autor sustentou a tese nos anos posteriores devido à

persistência de dados socioeconômicos positivos segundo as pesquisas do IBGE

(NERI, 2008). O crescimento econômico inclusivo, diante do crescimento constante

do PIB entre 2003 e 2010, acompanhado do crescimento da renda familiar per capita

e da geração de emprego, produziu resultados socioeconômicos positivos em

termos de redução das desigualdades (Neri, 2010).

O indicador mais sólido da mobilidade ascendente nesse sentido foi a

redução do desemprego. Segundo os dados do CAGED (Cadastro Geral de

Empregos e Desempregados), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), houve

um “crescimento robusto do emprego formal, superando a crise do desemprego que

chegou a taxas de 8% entre 1998 a 2000. (Neri, 2010, p.15)

Ainda segundo dados da PME (Pesquisa Mensal de Emprego) do IBGE em

2010, a “taxa de desemprego no Brasil esteve em 5,7%, a menor dos últimos oito

anos”, sendo que algumas cidades, como Porto Alegre, atingiram o pleno emprego

com um índice de desemprego de apenas 3,7% da população5. Assim, houve

crescimento do emprego alcançando recorde anual consecutivo desde o ano 2000

até 2010, partindo da geração líquida de emprego de 657.596 no ano de 2000, para

1.954.531 somente no ano de 2010 (Neri, 2010, p.15).

5 Agência Brasil. Lula diz que Brasil vive ritmo de pleno emprego. R7 Notícias, 20 de dez 2010. Economia. Disponível em: <http://noticias.r7.com/economia/noticias/lula-diz-que-brasil-vive-ritmo-de-pleno-emprego-20101220.html>. Acesso em 20 ago. 2016

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Dando continuidade às pesquisas sobre a desigualdade no Brasil e à

formação de uma nova classe média, Neri, em relatório de 2012, destaca a “queda

ininterrupta de 11 anos consecutivos”, entre 2001 e 2012, da desigualdade

“tupiniquim brasileira” com redução média, 2,13% a.a. O crescimento da renda

familiar per capita se deu a uma taxa média de 2,7% a.a. A pobreza teria decrescido

cerca de 7.9% ao ano, “num ritmo 3 vezes mais rápido que o necessário para

cumprir a meta do milênio da ONU de reduzir à metade em 25 anos”6 (NERI 2012,

p.33).

Essas mudanças nos indicadores socioeconômicos não foram de ordem

natural e espontânea, de modo que os autores que debateram esse período

buscaram compreender a alteração da estratégia de desenvolvimento econômico e

social em relação ao período anterior. Ou seja, compreender a causa de tais

transformações requer investigar quais as diferenças nas medidas adotadas pelos

governos entre 2003 a 2012, correspondente aos dois mandatos de Luiz Inácio Lula

da Silva (Lula) e ao início do governo de Dilma Rousseff, ambos do PT.

A política desenvolvida durante os mandatos de Lula foi elogiada por grandes

organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU), que em

seu relatório de 2014 citou o Brasil 20 vezes e se esforçaria para demonstrar como

as políticas desenvolvidas nos governos petistas conduziram o país ao 79º lugar no

ranking de qualidade de vida em relação a 187 países.

São apontados como exemplos bem-sucedidos o programa Bolsa Família, o aumento do consumo na baixa renda, o avanço do emprego e a redução das disparidades raciais por meio do programa de cotas nas universidades (IPEA, 2014, p. 1).

Esses indicadores são melhor compreendidos se considerados os anos

anteriores ao período em questão. Nesse sentido, as décadas de 1980 e 1990 foram

períodos de grande estagnação no que se refere ao desenvolvimento social, com

elevados níveis de desemprego, queda dos rendimentos e a “manutenção de

6 Pochmann corroborou vários desses indicadores. Observou não apenas a expansão anual da renda per capita dos brasileiros em 3,3% a.a entre 2004 e 2010, como a redução do grau de desigualdade na distribuição de renda pessoal em mais de 10% no período, bem como o fato de o Brasil ter saído do ranking do país com maior taxa de desemprego do mundo. Pochmann aponta a geração de mais de 21 milhões de novos postos de trabalho, contudo dentre estes 95% seriam de até 1,5 salários mínimos, o que perfaz quase 59% de todos os postos de trabalho neste nível salarial. Esse dado expressa um crescimento em relação à década de 1990, que era 45,8% das ocupações neste segmento de remunerações (Pochmann, 2013, p. 149-150).

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elevados níveis de miséria e pobreza e ao atrofiamento da classe média”7

(QUADROS, ANTUNES & GIMENEZ, 2012, p. 2).

A década de 1990 é conhecida no Brasil como o período da implantação do

neoliberalismo8. A criação do Plano Real para estabilização da economia e controle

da inflação conviveu com a privatização de empresas estatais, o baixo crescimento

econômico, uma política de baixa dinamização do mercado interno com altas taxas

de juros e flexibilização das leis trabalhistas. O processo de flexibilização do trabalho

levou ao aumento do trabalho informal, à redução do trabalho formal e a um alto

índice de desemprego.

O Estado, sob o regime neoliberal, “se retrai, desregulando as finanças,

reduzindo o emprego público, a progressividade dos impostos e o gasto social. No

Brasil essa situação se agrava diante de uma “profunda crise econômica e social

instalada desde a crise da dívida externa e pelos inúmeros problemas estruturais

alargados desde então” (QUADROS, ANTUNES & GIMENEZ, 2012, p. 9).

A vitória da chapa eleitoral com Lula ao cargo de presidente da república em

2002, candidato de oposição ao governo anterior, inaugurou um período de

crescimento econômico, recuperação do mercado de trabalho com geração de

empregos e promoção de políticas sociais para população de baixa renda. Esse

conjunto de elementos propiciou a mobilidade social com redução das

desigualdades de uma parte considerável da população brasileira no primeiro

decanato do século XXI.

A plataforma política do governo Lula despertou um amplo debate. Por um

lado, a política macroeconômica em 2003 dava continuidade à política neoliberal

7 Em relação à estrutura ocupacional da década de 1990, com os procedimentos de reestruturação industrial, de internacionalização de empresas, de privatização do setor produtivo estatal e de terceirização da mão de obra no setor privado e público levaram ao encolhimento dos postos tradicionais da classe média brasileira (POCHMANN, 2014, p.43)

8 De acordo com Luiz Filgueiras apesar de o neoliberalismo estar em vigor desde a década

de 1970 e 1980 em países como a Inglaterra e Chile, o projeto neoliberal no Brasil foi se desenhando de acordo com a luta entre as frações de classe. Até meados dos anos 1980, apesar da existência de algumas iniciativas durante o Governo Sarney e de uma forte massificação e propaganda dessa doutrina nos meios de comunicação de massa, havia uma forte resistência à mesma, calcada principalmente, na ascensão política, durante toda a década de 1980, dos movimentos sociais e do movimento sindical. O A Constituição de 1988, apesar de seus vários equívocos, foi a expressão maior dessa repulsa da sociedade brasileira, por isso mesmo, ela foi alvo privilegiado tanto do Governo Collor quanto do Governo Cardoso, que recolocou, mais tarde, o projeto liberal nos trilhos “O discurso liberal radical, combinado com a abertura da economia e o processo de privatizações inaugura o que poderíamos chamar da “Era Liberal” no Brasil" (Filgueiras, 2000, p. 83-84)

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conservadora de manutenção de altas taxas de juros, expansão da meta do

superávit primário, congelamento dos salários e dos gastos públicos, consideradas

medidas importantes para o controle da inflação e estabilização da economia

(Singer, 2012). Esse aspecto também foi apontado por outros autores, que

identificavam um modelo de desenvolvimento “baseado na desindustrialização, na

reprimarização da pauta de exportação e no consumo de massa cada vez mais

atendido por importações” (QUADROS, ANTUNES & GIMENEZ, 2012, p. 6).

Reinaldo Gonçalves, por sua vez, compreendia que o governo Lula teria realizado

um nacional desenvolvimentismo às avessas, uma política econômica dominada

pela lógica financeira que subordinava o desenvolvimento à uma política monetária

de controle da inflação, tendo como consequência, em suas palavras:

[...] desindustrialização, dessubstituição de importações; reprimarização das exportações; maior dependência tecnológica; maior desnacionalização; perda de competitividade internacional, crescente vulnerabilidade externa estrutural em função do aumento do passivo externo (Gonçalves, 2012, p.5)

Segundo André Singer, o resultado desta política no primeiro ano do Governo

Lula (2003) teria sido o baixo crescimento, o aumento do desemprego e a

diminuição da renda média, assim como registrado no período anterior (SINGER,

2012, p. 11).Todavia, transcorridos oito anos de governo Lula (2002-2010), a política

econômica e social promovida acarretou, segundo Singer (2012, p. 11), um quadro

oposto: o crescimento econômico, a redução do desemprego, da pobreza e miséria,

e da desigualdade diante do aumento da renda média.

São destacadas como políticas diferenciais do governo: a criação do

programa de transferência de renda, como o Bolsa família, direcionado às famílias

pobres; a valorização do salário mínimo e a expansão do crédito, e programas

específicos (Luz para todos, regularização das propriedades quilombolas,

construção de cisternas no semiárido, etc.). Esse conjunto de medidas permitiu

resultados sociais positivos para a redução da pobreza, promovendo o aumento do

consumo da população e a ativação do mercado interno, gerando tanto

oportunidades individuais de ascensão pelo emprego formal quanto “oportunidades

de pequenos negócios e do trabalho autônomo melhor remunerado” (QUADROS,

ANTUNES & GIMENEZ, 2012, p. 2).

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O impacto da política de transferências de renda é considerado por

Pochmann como o principal propulsor da redução da extrema pobreza no país. Se

na década de 1990 o receituário neoliberal havia paralisado as possibilidades do

gasto social, em 2012 os investimentos em políticas sociais chegaram a 23% do

PIB. Assim, com o programa Bolsa Família, que previa a complementação de renda,

sairiam da pobreza extrema9 21,8 milhões de pessoas até 2013. Tal orientação dos

recursos já estaria prevista na própria Constituição Brasileira de 1988, que

“estabeleceu os grandes complexos do Estado de bem-estar-social no Brasil”10. O

governo Lula teria apenas implementado, tomando-a como base da economia social.

Assim, para Pochmann, os governos petistas seguiram o modelo de Estado de bem-

estar social (POCHMANN, 2013, p. 151).

Por outro lado, durante a campanha eleitoral de 2002, o então candidato Lula

(se comprometeu publicamente através da “Carta ao Povo Brasileiro” a cumprir com

os contratos vigentes em relação à dívida pública doméstica e externa, e a apoiar

um programa de auxílio emergencial a ser prestado pelo Fundo Monetário

Internacional (FMI), negociado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC).

Os pesquisadores Moraes e Saad-Filho consideram que o governo Lula assume,

aqui, um compromisso com a manutenção do programa político neoliberal,

pressionado “em meio a uma grave crise cambial e de refinanciamento da dívida

federal desencadeada pelos mercados financeiros domésticos” (MORAES E SAAD-

FILHO, 2011, p.509).

A partir de 2006, entretanto, em especial durante o segundo governo Lula, “a

política econômica brasileira sofreu uma inflexão, e os resultados macroeconômicos

foram positivos em termos do crescimento do PIB, fortalecimento de grandes

empresas nacionais (estatais e privadas), distribuição de renda e redução da

pobreza” (MORAES E SAAD-FILHO, 2011, p. 516).

Esses autores entendem que o programa de governo Lula foi se alterando

entre o primeiro e segundo mandato. Entre 2003 e 2006 teria predominado uma

política macroeconômica neoliberal. Neste tempo, intelectuais inspirados pelo

pensamento de esquerda e sob a abordagem nacional-desenvolvimentista buscaram

apontar um programa alternativo, capaz de substituir o neoliberalismo a partir da

9 Compõem esse grupo aqueles que recebem até 25% do salário mínimo per capita. 10 O Estado de bem-estar social se pauta em estabelecer gastos mínimos necessários à garantia do bem estar do cidadão, como em saúde, previdência e assistência social

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experiência do primeiro mandato. A nova política econômica proposta foi

denominada por estes de novo desenvolvimentismo ou neodesenvolvimentismo,

formulação tida como instrumento de “intervenção no debate dentro e fora do

governo” (MORAIS, SAAD-FILHO, 2011, p. 510).

Assim, os autores entendiam que este debate impacta e altera as

características do segundo mandato de Lula, de modo que a partir de 2006,

[...] o governo Lula passou a adotar novas iniciativas e políticas que se mesclaram às políticas macroeconômicas neoliberais, estabelecendo-se, dali em diante então, a política econômica híbrida que caracterizou esse governo até 2010”( MORAIS, SAAD-FILHO, 2011, p. 509)

Para Armando Boito Jr. (2012), o neodesenvolvimentismo não foi apenas uma

proposição teórica, mas também prática, a formação de uma frente ampla, fruto da

aproximação entre a burguesia interna11 e as classes populares, como base de

apoio à política de crescimento econômico com transferência de renda

desenvolvidas nos governos petistas de Lula e Dilma. Uma política econômica e

social de desenvolvimento dentro dos limites do modelo neoliberal vigente. Segundo

o autor, alguns dos elementos fundamentais que diferenciam os governos petistas

perpassam não só as políticas de transferência de renda e aumento real do salário

mínimo, como também a adoção de medidas econômicas de fortalecimento das

empresas nacionais.

Portanto, ainda que o neodesenvolvimentismo não rompa com o modelo

neoliberal, as políticas econômicas e sociais que diferenciariam o governo Lula

seriam:

a) políticas de recuperação do salário mínimo e de transferência de renda que aumentaram o poder aquisitivo das camadas mais pobres, isto é, daqueles que apresentam maior propensão ao consumo; b) forte elevação da dotação orçamentária do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDES) para financiamento das grandes empresas nacionais a uma taxa de juro favorecida ou subsidiada; c) política externa de apoio às grandes empresas brasileiras ou instaladas no Brasil para exportação de mercadorias e de capitais (DALLA COSTA, 2012); d) política econômica

11 Armando Boito se baseia no conceito de burguesia interna elaborada por Poulantzas, observando apenas a diferença de que esta fração da classe burguesa no Brasil sempre constituiu o bloco no poder, tendo durante o governo de Lula melhorado sua posição no interior desse bloco. Nas palavras de Boito a burguesia interna “nos países dependentes, essa burguesia ocuparia, nas análises de Poulantzas, uma posição intermediária entre a grande burguesia nacional, possível de adotar práticas anti-imperialistas, e a velha burguesia compradora, mera extensão do imperialismo no interior destes países”. p.69 BOITO JR, Armando; GALVÃO, Andréia. Política e classes sociais no Brasil dos anos 2000. São Paulo, Alameda. [Links], 2012.

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anticíclica – medidas para manter a demanda agregada nos momentos de crise econômica e e) incremento do investimento estatal em infraestrutura. Mais recentemente, o Governo Dilma iniciou mudanças na política de juro e cambial, reduzindo a taxa básica de juro e o spread bancário e intervindo no mercado de câmbio para desvalorizar o real, visando a baratear o investimento produtivo a oferecer uma proteção – muito tímida, é verdade - ao mercado interno. Devido a esses elementos, e apesar de eles não romperem com o modelo econômico neoliberal herdado da década de 1990, optamos por utilizar a expressão desenvolvimentista para denominar esse programa (BOITO,2012, p. 05).

André Singer, por sua vez, destacou que as políticas de distribuição de renda

foram possíveis não apenas por um contexto econômico internacional favorável,

mas pelo boom das commodities brasileiras, cujo principal consumidor foi o mercado

chinês. Isso levou a um crescimento em que o Brasil não tinha de fabricar produtos

de alto valor agregado, gerando, assim a desindustrialização da nossa economia. Os

governos Lula e Dilma mantiveram o compromisso com a “estabilidade monetária e

responsabilidade fiscal” e ainda o de “preservar o superávit primário o quanto for

necessário, de maneira a não permitir que ocorra um aumento da dívida interna em

relação ao PIB” (SINGER, p.96,97).

O modelo econômico estava comprometido com o capital rentista no objetivo

de saldar o serviço da dívida, o que levava o governo a economizar 3,5% do PIB em

2008 para pagar juros, manter o ajuste fiscal e as altas taxas de juros para atrair o

capital estrangeiro especulativo. Essa política, por outro lado, possibilitou a queda do

dólar, o barateamento das importações e o controle da inflação (SINGER, 2012,

p.159-160). A sobra de recursos que possibilitou transferir recursos aos mais pobres

foi totalmente dependente da valorização no mercado internacional das

commodities. A inovação do governo Lula foi investir na ativação do mercado

interno, canalizando os recursos para o poder de compra dos mais pobres e gerando

empregos.

Esse processo explicitou, segundo Singer, profundas alterações na dinâmica

política brasileira. O que se observou, dessa forma, teria sido uma alteração tanto

programática do PT, quanto de sua base eleitoral. A hipótese de Singer é de que,

durante o primeiro mandato do governo Lula, ocorreu duplo realinhamento de classe

do PT. Primeiro, o partido abandona o programa político anterior e segue um

caminho intermediário entre o neoliberalismo e o reformismo forte

(desenvolvimentista), ao construir uma plataforma política voltada para a redução da

pobreza sem se confrontar com o capital. Desse modo, promoveu um reformismo

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fraco, uma ideologia própria que combinava bandeiras que não pareciam combinar,

o “combate à pobreza dentro da ordem”, ou seja, a promoção social dentro do

neoliberalismo.

O segundo elemento do realinhamento percebido por Singer diz respeito à

alteração da base eleitoral nas eleições de 2006. Esta alteração se expressa no

afastamento da classe média, devido aos escândalos de corrupção ocorridos no

denominado “mensalão”12, e na adesão dos eleitores de menor renda. Para Singer,

as camadas de baixíssima renda pertenceriam ao subproletariado13, trabalhadores

que ganhavam até dois salários mínimos, com baixa escolarização.

De acordo com pesquisas realizadas por Singer nas eleições de 1989, 1994 e

1998, este segmento de baixa renda possuía um comportamento conservador,

considerando Lula a representação das propostas radicais que ameaçavam a

“manutenção da ordem”, de forma que optavam na sua maioria pelas candidaturas

neoliberais. Em 2006 esse segmento passou a mudar sua intenção eleitoral,

identificando em Lula a construção de “um Estado capaz de ajudar os mais pobres

sem confrontar a ordem” (SINGER, 2012, p. 21).

Nesse sentido, Singer defendeu que o programa político formado pelo tripé

Bolsa família, valorização do salário mínimo e expansão do crédito, resultara na

diminuição significativa da pobreza a partir de 2004, quando a economia voltou a

crescer e o emprego a aumentar. O governo Lula desenvolveu, segundo o autor,

uma política seguindo um discurso e uma prática com base na manutenção da

12 Para uma análise da crise política como reflexo das contradições de classe dentro da disputa pela implementação de políticas, cf. Martuscelli (2013). O autor compara a crise política de Collor em 1992 e a crise do governo PT. Ainda a respeito do “mensalão”, segundo a repórter Ana Paula Galli da Revista Época, “O escândalo do mensalão foi a crise de maior repercussão do primeiro mandato do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O estopim da crise ocorreu em maio de 2005, quando um funcionário dos Correios, Maurício Marinho, foi flagrado recebendo propina de empresários. Apadrinhado do então deputado federal Roberto Jefferson (PTB), Marinho passou a ser alvo de investigações. E Jefferson foi acusado de fazer parte do esquema de corrupção dos Correios. Abandonado pelo governo e se sentindo acuado, Jefferson concedeu uma entrevista em junho de 2005 denunciando a compra de votos dos parlamentares no Congresso Nacional.” Galli, Ana Paula. Entenda o escândalo do mensalão. Publicado em 22 de ago. 2007, Revista EPOCA. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0„EDG78680-6009,00-ENTENDA+O+ESCANDALOBR+DO+MENSALAO.html. Acesso em: 01 DEZ 2016. 13 "O subproletariado, segundo definido por Paul Singer, representa uma fração da classe dos proletários, são aqueles que oferecem a sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais (empregados domésticos, assalariados de pequenos produtos diretos e trabalhadores destituídos de condições de participação na luta de classe). [...] Singer usou informações sobre ocupação e renda fornecidas pela PNAD de 1976" (SINGER, 2009, p. 98). Desenvolveremos essa questão de modo mais detalhado no capítulo 3.

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estabilidade e ação distributiva do Estado, e isso teria criado as raízes do Lulismo

(SINGER, 2009).

Lula terminou o primeiro mandato (2002-2006) com um índice de aprovação

de 52%. Em termos comparativos, o presidente anterior, Fernando Henrique

Cardoso, com o “Plano Real”, terminou o primeiro mandato com aprovação de

35%14. Depois de reeleito em 2006-2010, Lula, ao final do último mês do segundo

mandato, obteve “recorde de aprovação e popularidade de 87%, patamares nunca

antes registrados segundo o IBOPE”15.

Contando com esse alto índice de aprovação, o PT indicou Dilma Rousseff,

ex-ministra da Casa Civil no governo Lula, como candidata à Presidência da

República. Dilma nunca tinha se candidatado a nenhum cargo eleitoral e nunca

antes na história o país tinha elegido uma mulher para a Presidência da República.

Dilma Rousseff venceu as eleições de 2010 com 56% dos votos, contra José

Serra do PSDB. Em seu discurso de posse, ela reafirmou o compromisso assumido

anteriormente pelo governo Lula de combater a fome e lançou o Programa Brasil

Sem Miséria. Afirmou, ainda, durante a primeira reunião do Conselho de

Desenvolvimento Social e Econômico (CDES), que a "nova classe média é uma das

grandes conquistas e das maiores e melhores heranças que tenho do governo Luiz

Inácio Lula da Silva". (NOSSA; MONTEIRO, 2011, p.01)

Esta política híbrida, denominada por alguns de bem-estar social, por outros

de neodesenvolvimentista, populista, ou desenvolvimentismo às avessas,

possibilitou alterações nos indicadores de renda e consumo, e garantiu a vitória do

PT em quatro eleições consecutivas, conformando mais de 12 anos de liderança no

poder executivo brasileiro. O apoio ao programa petista desta camada pobre, que

vai ascendendo socialmente ao longo do período de 2003 a 2012, foi vital para esse

resultado eleitoral. Compreender quem é esta classe é, assim, compreender o

sentido das transformações econômicas e políticas que atravessam a realidade

brasileira na primeira década do século XXI.

14 DATA FOLHA. Ao final do primeiro mandato, Lula é aprovado por 52% dos brasileiros. Disponível em: <http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2006/12/1222248-ao-final-do-primeiro-mandato-lula-e-aprovado-por-52-dos-brasileiros.shtml>. Acesso em 25 de jul. 2016 15 Bonin, Robson. Popularidade de Lula bate recorde e chega a 87%. Ibope. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2010/12/popularidade-de-lula-bate-recorde-e-chega-87-diz-ibope.html>. Acesso em 23 Julho 2016.

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1.2. A Tese da Formação de um Novo Sujeito Econômico: A Nova Classe

Média Brasileira

No âmbito acadêmico, a tese da emergência de uma “nova” classe média no

país foi lançada em 2008, por meio do relatório do Centro de Políticas Sociais da

Fundação Getúlio Vargas (FGV/CPS). O coordenador da pesquisa, Marcelo Côrtes

Neri, tornou-se referência nos estudos sobre o tema, apresentando uma série de

publicações específicas sobre a “nova classe média”.

Mudanças sociais promoveram a melhoria da qualidade de vida de mais 40

milhões de brasileiros entre 2002 e 2012, quebrando uma estrutura social pautada

pela miséria, pelo desemprego ou sub-emprego. O primeiro indicador do fenômeno,

destacado por Neri, foi a constatação do crescimento da renda. As análises (2008

até 2012) indicavam uma constância de mais de uma década de crescimento da

economia, do PIB per capita e, por outro lado, a queda de desigualdade de renda.

Estes indicadores revelariam a melhora do bem-estar da população brasileira como

um todo, tendo como resultado a alteração da composição das classes econômicas.

Como veremos, Neri seguiu uma abordagem de estratificação por renda que dividiu

os grupos entre classes A, B, C, D e E. A nova classe média seria o grupo de

entrantes na classe C. Interessa-nos problematizar qual a relação que Neri

estabeleceu entre classe C e classe média, e, ainda, a razão para chamar esses

emergentes de novos.

A análise lançada em 2008 pautou-se no movimento da distribuição de renda

familiar, que levaria à constatação da mobilidade das famílias de um estrato

econômico à outro. Com o aumento da renda per capita familiar identificado pela

Pesquisa Nacional de Amostras a Domicílio (PNAD/IBGE) de 2007, 2009 e 2010, o

autor sustentou a continuidade do fenômeno da ascensão social, ou seja, a

formação de uma nova classe média entre 2002 e 2012.

A classe média “aufere em média a renda média da sociedade, ou seja, é a

classe média no sentido estatístico” (NERI, 2012, p.43). Assim, ela corresponderia

ao grupo C, pois seria a média de renda entre os mais pobres (Classe E e D) e os

mais ricos (Classe A e B). A nova classe média, não era a classe C como um todo,

mas apenas uma parcela de entrantes na classe C, 29 milhões de pessoas à época.

(Neri, 2010, p. 12). Contudo cabe notar que, a classe C como um todo se torna o

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centro das atenções, visto que se tornava o maior agrupamento em termos

numéricos.

Com base na renda total declarada nas pesquisas domiciliares, Neri calculou

a média de rendimento familiar de cada estrato social: os miseráveis (classe E), os

pobres (classe D), a classe média (classe C), e as classes altas (A e B). A partir

disso, foi percebido um crescimento da renda per capita familiar em todos os grupos

econômicos desde 2001, comprovando ainda, a diminuição da concentração de

renda, da miséria e da pobreza. Destacou-se, assim, o crescimento de famílias

pertencentes à classe econômica C, a classe média de Neri. (NERI, 2008, p.09). A

tabela 1 abaixo apresenta a definição de classe a partir do cálculo de renda

elaborado por Neri e o gráfico 1 registra o crescimento da classe C – denominado

classe média – nas principais regiões metropolitanas do Brasil.

Tabela 1 – Definição das Classes Sociais

Fonte: NERI, 2008, p.09

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Gráfico 1- Participação da classe média (%)

Fonte: NERI, 2008, p.09

Partindo do método de análise baseado16 na estratificação social da

população a pesquisa constatou que as classe E e D caíram de 42,82% em 2002

para 32,59% da população em 2008. A classe C teria passado para 51,89% da

população em 2008, um crescimento de 17,03% em relação a 2002. E as classes A

e B, a elite segundo o economista, que seriam 12,99% da população em 2002,

chegariam a 15,52% em 2008 (NERI, 2008, p.41).

Posteriormente, no relatório de 2010, a pesquisa ressaltou não apenas a

continuidade do crescimento da renda per capita, mas também seu impacto na

redução da desigualdade econômica. Conforme Neri (2010), entre 2003 e 2009, o

16 Em uma entrevista concedida ao Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro (CORENCON-RJ, 2012), o autor explica a base de cálculo da estratificação social. Segundo ele: “Há três parâmetros distintos. O primeiro e mais importante é o de renda, cujos grupos principais são as classes A, B, C, D e E. A classe C abrange uma renda superior a 1.750 reais, enquanto consideramos a classe B a partir de 7.450 reais e a classe A a partir de 9.700 reais. A classificação da classe E, por sua vez, é a mesma da linha de pobreza, o que significa uma renda menor que cerca de 1.100 reais. Dessa linha ao valor base da classe C, temos a classe D. O cálculo é feito em termos de renda per capita, levando em conta também o custo de vida. Mas expressamos o valor de acordo com a renda domiciliar familiar total. Para a segunda dimensão, observamos o conjunto de ativos produtivos e bens de consumo que a pessoa tem em sua casa. (...) A terceira dimensão está ligada às percepções das pessoas, o que elas esperam do futuro, se acham que a vida vai melhorar, sua satisfação com a vida e as percepções políticas”. (Disponível em: <http://www.corecon-rj.org.br/entrev_det.asp?Id_ent=92>. Acesso em: 13 out. 2014.

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crescimento constante tanto do Produto Interno Bruto (PIB), em média de 2,88% ao

ano, quanto da renda per capita, que aumentava 4,71% ao ano − o que representa

um percentual de 1,83% pontos percentuais acima do PIB − favorecia a queda da

desigualdade no Brasil. O autor calculou que de, 2001 a 2009, a renda per capita

dos 10% mais ricos aumentou em 1,49% ao ano, enquanto a renda dos mais pobres

cresceu a uma notável taxa de 6,79% por ano. Em decorrência da manutenção do

crescimento econômico com redução da desigualdade, saíram da pobreza, entre

2003 e 2008, 19,5 milhões de pessoas e com isso a taxa de pobreza que era de

16,02% cai para 15,32% (Neri, 2010, p. 10).

Assim, em números relativos, ao conjunto da população brasileira, Neri

calculou que as classes econômicas D e E foram reduzidas de 96,2 milhões de

pessoas em 2003 para 73,2 milhões em 2009. Por sua vez, 29 milhões de pessoas

ingressaram na classe C no mesmo período, passando esta camada a ser composta

por 94,9 milhões de brasileiros.

Gráfico 2 – A pirâmide populacional dividida em classes econômicas

Fonte: Neri, 2010, p.13

Cabe notar que o procedimento que orientou essa classificação se baseou na

literatura de bem-estar, corrente de pensamento dominante que percebia o

desenvolvimento econômico e social de um país a partir do PIB produzido e da

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renda per capita por indivíduo, ou família17. Historicamente, tal perspectiva é a base

de referência para as pesquisas do principal órgão público de pesquisa brasileiro, o

IBGE que fornece amplos dados para orientar a formulação de políticas públicas18.

O modelo de estratificação social usado pelo IBGE incorporou o método conhecido

como Critério Brasil19 que criava um sistema de pontuação por posse de bens e

serviços, de forma a construir uma hierarquização da população por renda e

capacidade de consumo, denominadas classes A, B, C, D e E.

Ao fundamentar-se nos dados da PNAD produzidos pelo IBGE, Neri20

observou que o crescimento da classe C revelava um importante fenômeno

socioeconômico, uma vez que os índices de desigualdade de renda no Brasil não

sofriam alteração significativa, desde 1960.

Não há na História brasileira, estatisticamente documentada desde 1960, nada similar à redução da desigualdade de renda observada desde 2001. A queda é comparável ao aumento da desigualdade dos anos 1960 que colocou o Brasil no imaginário internacional como a terra da iniquidade inercial. No período 2001 a 2011, a renda dos 10% mais pobres cresceu 550% mais que a dos 10% mais ricos (IPEA, 2012, p.40).

Assim, a emergência de uma nova classe média ganhou notoriedade por

indicar a alteração positiva de um problema que se apresentava como estrutural da

sociedade brasileira, a reprodução por décadas de uma massa de miseráveis.

17 Segundo o Caderno Comunicados do IPEA de 2012, intitulado “A Década Inclusiva (2001-2011): desigualdade, pobreza e políticas de renda”, “a função bem-estar social agrega o bem-estar individual de cada membro da sociedade. Ele sintetiza num único número o bem-estar geral da nação. O PIB per capita é a medida de bem-estar social mais usada. Numa sociedade de 10 pessoas, se 1 tem renda 10 e os 9 restantes tem renda 0; ou no extremo oposto, se 10 tem a renda igual a 1; o PIB é o mesmo. O PIB é uma medida de bem-estar social que por construção não se importa com as diferenças entre pessoas, apenas com a soma das riquezas produzidas” (IPEA,2012, p.3) 18 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE se constitui no principal provedor de dados e informações do País, que atendem às necessidades dos mais diversos segmentos da sociedade civil, bem como dos órgãos das esferas governamentais federal, estadual e municipal. O IBGE é uma entidade da administração pública federal, vinculada ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, que possui quatro diretorias e dois outros órgãos centrais. Para saber mais: http://www.ibge.gov.br/home/disseminacao/eventos/missao/default.shtm 19 O Critério Brasil de Classificação Econômica estabelece um padrão estabelecido pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep) em 1960 para estimar o poder de compra das pessoas e famílias urbanas baseado na pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE. Para isso cria um sistema de pontos que considerou: posse de itens, grau de instrução do chefe da família e a relaciona com a renda familiar e a região metropolitana em que vive a família. Os dados são extraídos das pesquisas realizadas pelo IBGE até 2015, especialmente do Orçamento familiar e, posteriormente, da PNAD. Para saber mais ver documentos critério Brasil lançados pela ABEP. Disponível em: http://www.abep.org/criterio-brasil 20 No ano de 2012 Marcelo Neri era presidente do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e remete sua tese às pesquisas realizadas naquele período.

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Neri estabeleceu a relação entre os programas de governos e o efeito sobre a

redução da miséria e pobreza comparando dados sobre os governos petistas e o

período da estabilização da economia promovida pelo Plano Real (1993-1995), em

que a queda dos miseráveis foi de 10,75% ao ano. Após dez anos de estagnação

dos dados, a nova contração da miséria se daria entre os primeiros anos do governo

petista (2003-2005) e se manteria progressiva por mais de 11 anos, uma queda

média anual constante de 11,8% do grupo dos miseráveis. A pobreza seguiria “sua

saga descendente a um ritmo de 7,9% ao ano” (NERI, 2012, p. 72). Isso foi o que

Neri denominou de o Real de Lula, uma política que se aproveitou da retomada do

crescimento econômico e direcionou políticas para os mais pobres, possibilitando a

redução da desigualdade de renda chamado pelo autor como a década inclusiva.

(Neri, 2012).

Assim, se a década anterior teve como mérito a estabilização econômica, a

primeira década do século XXI se apresentou como a da redução da desigualdade

(NERI, 2006). Em entrevista concedida ao jornal Estadão (2010), Marcelo Neri, que

diz não ser “nem tucano nem petista”, atribuiu o momento promissor da economia

em 2010 à linha de continuidade entre os dois últimos governos. Fernando Henrique

Cardoso (FHC) teria estabilizado a economia e controlado a inflação com o Plano

Real. O governo Lula promoveu o Segundo Real, dando continuidade à política de

estabilidade, cumprindo com os acordos e contratos do mercado, mas com

ampliação dos programas sociais, num período de retorno do crescimento

econômico. De tal forma que a “classe C no Brasil aumentou de 32% para 37% com

o Plano Real. Com o "segundo Real", agora, passou de 37% para 52%21.

Segundo dados do IPEA de 2012, as políticas econômicas e de transferência

de renda resultaram na redução da pobreza. As políticas de combate à pobreza no

governo Lula teriam melhorado a renda entre as camadas mais carentes e

provocado uma mobilidade social entre as classes E e D. Mas o aumento da classe

C, de 39% da população na década de 1990, para mais de 50% da população

brasileira na primeira década dos anos 2000, teria como pilar “a recuperação do

mercado de trabalho, em particular da ocupação” (NERI, 2008, p.6). O critério

21 Entrevista com Marcelo Neri publicada no Jornal Estadão, matéria intitulada, “Cresceu e veio para ficar”, por Ivan Marsiglia, no dia 07 Fevereiro 2010. Disponível em:<http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,cresceu-e-veio-para-ficar,507612>. Acesso em: 09 de jun. 2016

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distintivo para entender que o fenômeno da melhoria das condições de vida levou à

formação desta nova classe média é a “volta da carteira de trabalho” como elemento

“representativo de ressurgimento da centralidade de trabalho da classe média

brasileira” (Neri, 2008, p. 6).

Essa análise nos aproxima da questão que pretendemos problematizar, qual

seja, a relação dessa classe econômica C com a noção de classe média. Ela daria

sentido à tese de que com o crescimento da renda estas famílias constituiriam uma

“nova classe média”.

Como vimos, apesar de os dados se orientarem fundamentalmente pela

renda per capita, o indicador consumo aparecia não para mensurar classe social,

mas para avaliar o potencial de consumo das pessoas em cada classe definida

anteriormente por renda familiar. O processo envolvia pontuar cada família por bens

e serviços adquiridos a partir dos dados gerados pelas pesquisas domiciliares do

IBGE conforme o Critério Brasil. De acordo com este critério, a classe C caracteriza-

se por possuir:

[...] computador, celular, carro, casa financiada, crédito em geral e produtivo em particular, conta própria e empregados, contribuição previdenciária complementar, se sairmos daquela iniciadas com C temos ainda diploma universitário, escola privada, plano de saúde, seguro de vida (Neri, 2008, p. 39).

Neri afirma inovar metodologicamente o uso da dimensão do consumo, ou

seja, olhar “para além do consumo” e perceber o que é simbólico da classe média.

Segundo sua perspectiva analítica, o que teria permitido identifica que o padrão de

vida da classe C se aproximava da classe média, partiu do entendimento de que a

classe média, para além da geração de renda, tem como marcadores a

[...] carteira de trabalho do marido ou da mulher, a entrada do filho na universidade ou na era da informática” e o status social ligado a demanda privada por bens que eram monopólio do Estado como a previdência, escola, saúde e credito imobiliário (NERI, 2010, p.26).

Desse ponto de vista, para o autor, a ascensão de uma “nova” classe média,

aquela fração da população que sai da pobreza e adentra a classe C, foi “a volta da

carteira de trabalho”, “já que o emprego com carteira assinada é uma das fortes

características da classe média” (NERI, 2008.p39). Ele argumenta que renda ainda é

o elemento definidor, pois “as pessoas entendem com mais facilidade a métrica da

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renda do que uma métrica artificial de pontos discretos” usados para medir o acesso

ao consumo (Neri, 2010, p. 25).

Uma preocupação declarada por Neri seria a de não tomar as classes como

atributos ontológicos do ser: “as pessoas não são pobres, ricos, ou classe média,

mas estão ou não nestes estados em diferentes instantes do tempo quando as

pesquisas representativas da população como um todo vai a campo” (Neri, 2010, p.

25). A questão seria “testar até que ponto os níveis de renda e de consumo serão ou

não sustentáveis no futuro”, ou seja, a probabilidade de manter o “padrão de vida

através da geração e manutenção da renda ao longo do tempo” (Neri, 2010, p. 26). Para entender as causas e a probabilidade de persistência do fenômeno da

redução da pobreza e crescimento da classe C, seguindo a literatura de bem-estar,

Neri decompõe a renda domiciliar per capita. Assim, de forma geral, as fontes de

renda familiar seriam em termos proporcionais: “Trabalho 58%, previdência 19%,

Bolsa Família 13%, Benefício de Prestação Continuada (BPC) 4% e outras rendas

como alugueis e juros 6%” (IPEA, 2012, p. 8). Como podemos perceber, a principal fonte de renda da família é aquela

decorrente do trabalho. Esse argumento baseado na decomposição da renda pode

ser encontrado desde a pesquisa realizada em 2010. Nas palavras do autor:

Entre 2003 e 2009, a renda per capita média do brasileiro cresceu 4,72% em termos reais (isto é já descontada a inflação e o crescimento populacional) passando de 478 para 630 reais por mês. A fonte de renda que mais cresceu foi a de programas sociais (12,9%) influenciada pela expansão do bolsa família criado em 2003. A seguir veio a parcela da renda da previdência vinculada ao salário mínimo. Os efeitos dos reajustes do salário mínimo que cresceu mais de 45% neste período pressionaram o valor da base de benefícios e do aumento da parcela de número de idosos, fruto do processo de envelhecimento da população. A renda de previdência acima do piso cresce abaixo do crescimento da renda geral. Cabe notar que a renda do trabalho teve um incremento médio de 4,61% ao ano o que confere uma base de sustentabilidade das condições de vida para além das transferências de renda oficiais. A renda do trabalho corresponde a 76% da renda média percebida pelo brasileiro e de lá saiu 75,3% do ganho de renda observado. Aumentos do Bolsa família e de outros programas não previdenciários tendem a beneficiar predominantemente a classe E que tem 18,5% de seus proventos desta modalidade de renda (Neri, 2010, p. 53).

Neri entendia que a queda da desigualdade se devia principalmente à

“expansão trabalhista”, um marcador que daria a “sustentabilidade ao processo

distributivo”. Mas as políticas de transferência de renda para os mais pobres também

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desempenharam um papel fundamental pois, sem estas, “a desigualdade teria caído

36% menos na década” (IPEA, 2012, p. 9).

Tabela 2- Decomposição da renda em diferentes fontes PNAD

Fonte: Neri, 2010, p.52

Assim, Neri considerou que a estabilização da economia promovida pelo

Plano Real e o crescimento econômico no início dos anos 2000 foram fatores

fundamentais que permitiram a recuperação do mercado de trabalho e que,

somados às políticas de transferência de renda, seja por meio da valorização do

salário mínimo ou programas como o bolsa família, garantiram o crescimento da

renda per capita entre os estratos mais pobres. A implicação disso para a dinâmica

social e política seria que a classe C teria se tornado o maior segmento numérico da

população que, em 2010, representava 52% da população brasileira (Neri, 2010).

Esses números suscitam a seguinte reflexão política e econômica feita pelo autor:

Isto significa que a nova classe média brasileira não só inclui o eleitor mediano tido como aquele que decide o segundo turno de uma eleição, mas que ela poderia sozinha decidir um pleito eleitoral. Complementarmente, esta também é a classe dominante do ponto de vista econômico, pois concentram mais 46,24% do poder de compra dos brasileiros em 2009 (era de 45,66 em 2008) superando as classes A e B, estas com 44,12% do total de poder de compra. As demais classes D e E tem hoje 9,65% do poder de compra caindo do nível de 19,79% logo antes do lançamento do Plano Real (NERI, 2010, p. 15).

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Esses dados mostram a importância que a tese assumiu publicamente, por

indicar um aumento histórico de renda e consumo das camadas populares. Estas

pessoas existem, e saber quem são e como pensam passa a ser prioridade tanto

para o mercado, quanto ao governo.

1.3. A Incorporação da Tese da Nova Classe Média Pelo Mercado e Pelo

Governo Federal

A tese de Neri sobre a nova classe média foi facilmente incorporada pelos

meios de comunicação de massa e pelo discurso do governo federal, pois, o uso da

estratificação social restrito à renda e poder de consumo é dominante nos órgãos de

pesquisa públicos e privados que constituem as fontes de informação.

O pesquisador André Salata argumentou que a maioria dos economistas usa

“informações sobre rendimentos”, pois, são dados pesquisados pela quase

totalidade dos órgãos oficiais, sendo “relativamente fáceis de serem conseguidos”

em surveys e pesquisas de campo, podendo através de “operações simples”,

“confrontar a desigualdade entre países e/ou mesmo no decorrer dos anos”, de

maneira que, seja “por razões mais práticas do que teóricas”, as análises sobre

desigualdade tem sido dominadas por abordagens que tomam o rendimento como

ponto central (SALATA, 2012, p.09). Através de cálculos simples um analista poderia

comparar realidades diversas inter-regionais e entre países. Instituições

internacionais (ONU, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional) e também

Instituições nacionais (IBGE, DIEESE, FGV) tomam a renda como base de

observação da realidade da população.

Foi possível notar a incorporação da tese de nova classe média brasileira

inclusive por organismos internacionais. Segundo Manuel Dias, do Ministério do

Trabalho e Emprego (MTE), a Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou

em seu relatório “O Mundo do Trabalho 2013”:

Crescimento de 16% da classe média brasileira entre 1999 e 2010. Segundo esta organização, duas políticas estão no cerne deste fato: a política de recuperação do salário mínimo e o Programa Bolsa-família, que possibilitaram a redução da pobreza no país e o fortalecimento da economia nacional (SAE, 2013, p.5).

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Para além dos dados produzidos por estes órgãos, o rendimento foi, como já

mencionamos, um elemento nerval para as análises de mercado. Para Quadros, foi

importante perceber que tal perspectiva analítica reduzia os indivíduos a

consumidores genéricos, cuja única diferença estaria em seu poder aquisitivo,

hierarquizado por estratos de rendimento.

O Datapopular, centro de pesquisa sobre o mercado de consumo, se

especializou em projetos de negócios para atender à nova classe média,

comungando da mesma fonte teórica e metodológica usada por Neri. O consultor do

Datapopular Marcio Falcão destacou a relevância que a classe média brasileira

ganhou no cenário como principal consumidor do mercado brasileiro, chegando a

consumir mais do que a Holanda, e estando no “18° lugar em consumo no mundo”.

A maioria da chamada nova classe média, segundo ele, já teria conquistado

geladeira, carro, computador, notebook, tv tela plana e, agora, buscava viagens,

smartphones, móveis para casa ou apartamento próprio, máquinas de lavar roupa, e

outros bens de consumo.22

Ao tratar das razões do surgimento deste novo consumidor, Marcio Falcão

corroborou com Neri sobre as razões das mudanças econômicas e sociais que

teriam levado ao aumento das rendas e do poder de compra da população. Ou seja,

“Plano real, controle da inflação, aumento do salário mínimo, programas de

transferência de renda, ampliação do crédito, queda do desemprego, maior

formalização, diminuição da pobreza e crescimento econômico”.23

O Datapopular ainda nos revelou uma realidade sobre quem é a nova classe

média. Segundo os consultores Marcio Falcão (2013) e Renato Meireles (2015), os

protagonistas da nova classe média seriam os moradores de favelas, mulheres,

negros e jovens. A nova classe média teria crescido fundamentalmente no Norte e

Nordeste, mas estaria concentrado na região mais populosa do país, o sudeste.

Os três grandes protagonistas da nova classe média brasileira, segundo o Data Popular, são as mulheres, os negros e os jovens. “A renda das mulheres cresceu, nos últimos dez anos, quase o dobro se comparada a dos homens, o que se deve ao acesso ao mercado de trabalho”, relatou o

22 FALCÃO, M. Um país chamado classe média. Presente e futuro do crescimento brasileiro. [2013] Disponível em: https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=5&cad=rja&uact=8&ved=0ahUdownload%2F%3Fid%3D148276&usg=AFQjCNGtvoEAq9NF3GqHwyxZ5lHjNk0cg&bvm=bv.134495766,d.Y2I. Acesso em: 21 de jul. 2016

23 Idem

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gerente do instituto. Já 75% das pessoas que ascenderam para a classe média nos últimos anos são negros, é preciso olhar para esse mercado”. Sobre os jovens, Falcão diz que eles são 42 milhões de pessoas com idade entre 18 e 30 anos e que 55% deles já estão na classe média e com uma inserção social melhor do que seus pais tiveram. “Se compararmos o jovem de uma família de classe alta e um de classe média, para cada R$ 100 que o pai coloca em casa, o jovem da classe alta coloca R$ 47 e o da classe média, R$ 89. Quem vai ter um poder de decisão pela família maior?24

Notemos, assim, que a tese de Neri sobre a ascensão de mais de 44 milhões

de pessoas até 2011 para a classe C deu visibilidade a estes setores que antes

estavam fora das estratégias dos mercados pelo seu baixo poder aquisitivo.

Os especialistas em estratégias de mercado voltadas especificamente para a

nova classe média não só legitimavam como buscavam comprovar a transformação

da base social brasileira. Entendiam como fundamental para o mercado global a

compreensão de que um mercado consumidor potencial se desenvolvia no Brasil,

que deixou de ser um país formado por miseráveis e pobres. A ascensão social da

nova classe média tornou o Brasil, segundo o Datapopular, um dos 20 maiores

consumidores mundiais.

Podemos, de fato, encontrar uma ampla incorporação da tese da nova classe

média pelos grandes meios de comunicação25. Eles sempre associam o fenômeno

fundamentalmente com a formação de novos consumidores. Vejamos essa

associação na revista Veja:

Novo consumidor - A nova classe média, hoje com maior poder de compra, tem tido acesso a bens e serviços que, anteriormente, eram restritos às classes A e B, tais como planos de saúde, escolas particulares e previdência privada. Neri lembrou que a má qualidade na oferta de serviços tem gerado nesse novo consumidor uma sensação de frustração. Na avaliação do especialista, é para essa insatisfação que as empresas têm de

24 GOUVEIA, Ariett. Jovens, mulheres e negros são protagonistas no mercado consumidor brasileiro. Agência Indusnet Fiesp. Publicado em: 15 abril 2014. Disponível em: <http://www.fiesp.com.br/noticias/jovens-mulheres-e-negros-sao-protagonistas-no-mercado-consumidor-brasileiro>. Acesso em: 17 jul. 2016. 25 Trabalho de pesquisa realizado pela estudante de jornalismo da Universidade Estadual de São Paulo (USP) Marina Ribeiro, intitulado Evolução da nova classe média: do surgimento como tese governista aos dias de hoje segundo a cobertura da Folha de S.Paulo. Em umas das entrevistas realizadas por Marina sobre a polêmica do uso ou não do termo “nova classe média”, Ana Estela de Sousa Pinto, editora do caderno Mercado da Folha de S.Paulo desde 2012, reforçou o destaque dado ao termo – por se tratar de uma novidade, inicialmente – e reconheceu sua validade como um ator real da economia. “Então você tem de fato vários setores que acham que vão crescer por causa desse novo consumidor, desse novo poder de consumo dessa nova parcela brasileira, então eu acho que ele vai continuar na agenda dos jornais”, afirmou a editora em uma entrevista à Marina. (http://www.usp.br/aun/exibir?id=5361)

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olhar. "Esta é a nova agenda no Brasil. As pessoas estão consumindo fortemente, e são exigentes", afirmou.26

Podemos perceber que a tese da nova classe média apresentou uma

narrativa que reiterava a sociedade de consumo, bem como a individualização de

riscos sociais; ou seja, “apela-se aos indivíduos para procurarem soluções de

mercado gastando recursos próprios” (BARTELT, 2013, p.10). Não só a revista Veja,

mas as revistas Época, Exame, os jornais Valor Econômico, O Globo, Folha de São

Paulo, apresentaram o perfil do novo consumidor, entendendo a “nova classe média”

como um ator econômico.

O contingente de miseráreis e pobres na estrutura social brasileira atingiu até

2012 índices muito elevados, mas as mudanças sociais e a melhoria restrita de

renda, ainda que não tenha se alterado estruturalmente em termos de moradia,

transporte e saúde, levou a uma inclusão pelo consumo. Ou seja, mais de 40

milhões de pessoas entre 2003 e 2012 puderam, segundo estimativas, ter a

possibilidade de consumir mais do que a cesta básica e, ainda, com a

disponibilidade de crédito, comprar itens de maior valor agregado.

Nesse contexto, a revista Época27 colocou seus repórteres para conviver por

4 meses com a “nova” classe média paulistana e traçar seu estilo de vida, hábitos e

sonhos. A importância da matéria se deu por indicar que a “nova classe”, só naquele

ano, foi responsável por 620 bilhões de reais em compras, se tornando a “clientela

mais cobiçada do mercado nacional”. (ÉPOCA, 2009)

Segundo a matéria, a “nova classe média” era um desafio ao mundo dos

negócios, pois grande parte das empresas tinham ignorado essa camada da

população. Desta maneira, haveria uma “falta de traquejo das empresas para se

comunicar e vender para essa camada expressiva da população”. A revista buscou

auxiliar os empresários a compreender quem comporia a “nova classe média”, grupo

que não seria uma versão simplificada das classes A e B. Na reportagem a sócia-

26 CÂNDIDO, K. Avanço da nova classe média prossegue, diz especialista. Publicado em 16 ago. 2012. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/economia/avanco-da-nova-classe-media-prossegue-diz-especialista>. Acesso em: 25 de jul. 2016

27 A Revista Época lançou a edição especial sobre a nova classe média em sua página de negócios. “Um mergulho na nova classe média”. Publicado em 04/11/2009. Por Marcos Todeschini e Alexa Salomão.Acesso em Jun, 2015. Ver em <http://epocanegocios.globo.com/Revista/Common/0„EMI102795-16380,00-UM+MERGULHO+NA+NOVA+CLASSE+MEDIA.html>Como veremos adiante, essa não seria a única edição sobre o assunto. Um ano antes a revista já tinha dedicado sua capa a esse tema.

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diretora da Troiano Consultoria de Marca, Cecília Russo, afirmou, “Os consumidores

da classe C têm um jeito próprio de encarar a vida e de consumir. Falar e vender

para eles exige conhecimento desses códigos”. (ÉPOCA, 2009)

A revista Época descreveu o perfil do novo consumidor como sendo composto

por pessoas que alguns anos atrás não tinham dinheiro sobrando para consumir

“mais do que os itens da cesta básica. Hoje, colecionam sapatos às centenas, têm

acesso à tecnologia e frequentam faculdades”. Destacou que este estrato da

população obteve um aumento maior que 40% da renda familiar e possuiria uma

renda que “vai de R$ 1,1 mil a R$ 4,8 mil. (ÉPOCA, 2009)

Ao entrevistar Haroldo Torres, sócio da consultoria Plano CDE, a reportagem

revelou que o aumento da renda familiar desta camada teria resultado na injeção de

mais de R$ 100 bilhões, desde 2002, na economia brasileira. Entre os itens

consumidos pela “nova classe média” surgiram itens antes inacessíveis, como

aparelho de micro-ondas, geladeira duplex, e um carro na garagem. Além de ter

como “uma das prioridades comer bem”. A nova classe média liderou “o consumo de

alimentos antes restritos às mesas da alta renda”. (ÉPOCA, 2009)

Da relação entre estes consumidores e a política econômica, a Revista Época

assumiu que a “nova classe média” seria resultado das “mudanças profundas na

economia brasileira, disparadas pelo Plano Real, que elevaram a renda dos

brasileiros. E seu peso seria tão importante “que muitos economistas defendem que

foi a elevação do consumo dessa nova classe média que fortaleceu a economia

brasileira durante a crise”. Neste caso, trouxe a declaração do próprio autor da tese

da nova classe média, Marcelo Neri, que afirmou em entrevista que, “Comparando

com uma partida de futebol, podemos dizer que o atacante contra a crise foi a classe

C”.(ÉPOCA, 2009)

Assim, foi a emergência de um novo ator econômico, um novo consumidor,

que explica a disseminação do termo nova classe média no debate público, a

criação de instituições de pesquisa que se denominam especializadas na nova

classe média (Datapopular), o uso do termo pelos maiores meios midiáticos

(GLOBO, Folha de São Paulo, Veja, Valor) e ainda sua incorporação pelo governo

federal como forma de expressar o sucesso de seu governo.

É possível sentir uma tensão a respeito de qual política econômica teria

levado à ascensão da nova classe média. No discurso de Dilma Rousseff, a nova

classe média seria a síntese do sucesso do projeto de desenvolvimento dos

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governos Lula. Assim, Dilma atestaria que a “nova classe média” seria a “herança do

governo Lula” (2002-2006 e 2006-2010), enquanto a análise da Revista Época

entende que a mudança diz respeito ao efeito causado pelo Plano Real, política

econômica do governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso (1994-1998 e 1998-

2002).

Durante o mandato de Dilma Rousseff, o governo abriu uma comissão de

estudos sobre a nova classe média a fim de entender suas demandas e traçar

políticas públicas voltadas a este segmento.

De acordo com a entrevista concedida à revista Valor (2012) pelo então

Ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República

(SAE/PR), Moreira Franco:

Nosso objetivo é oferecer aos governos uma estratificação da população brasileira que permita a formulação de políticas adequadas às demandas de cada grupo social. Sabemos que as pessoas em diferentes classes de renda têm necessidades, atitudes, comportamentos, oportunidades, aspirações, percepções e desejos distintos. (VALOR, 2012, p.01)

A Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE/PR)

lançou a série “Cadernos Vozes da Nova Classe Média” (2012 – 2013) baseada nas

pesquisas do IBGE, mas que se apropriaram da perspectiva de Neri. Nestes

cadernos o governo defendia a emergência de uma nova classe média baseada em

faixas de renda, composta principalmente por jovens, mulheres, negros, com baixa

escolaridade. A partir dessa análise, a SAE/PR, afirmou que a classe média

brasileira passou entre 2002 e 2012 de 70 milhões para 100 milhões de brasileiros.

No Brasil, esses limites de renda em valores monetários atuais são de R$291 a R$1.019 por pessoa da família ao mês. Isso significa que são considerados membros da classe baixa aqueles com renda familiar per capita inferior a R$291 ao mês; pertencem à classe média os que apresentam renda familiar per capita entre R$291 e R$1.019; e acima de R$1.019, à classe alta. De acordo com essa classificação, hoje, 28% da população brasileira pertence à classe baixa; 52%, à classe média e 20%, à classe alta. (BRASIL, 2012, p.11)

Essa tese inspirou, ainda, a forma de pensar a política pública para a

superação das desigualdades sociais. Ao reafirmar que a massa de miseráveis,

antes excluída na estrutura social brasileira, passara, com o crescimento da renda

per capita, a compor a classe média, o governo incorporara a abordagem de Neri.

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Nesta perspectiva, os indicadores quanto à escolaridade, raça, gênero, ocupação,

não afetariam a condição de classe, antes disso, a heterogeneidade e a diversidade

da classe média são destacadas:

[...] a classe média se tornou muito mais heterogênea (por exemplo, abrigando uma parcela significativa tanto de analfabetos funcionais, como de trabalhadores com ensino médio completo)” e ainda diversa por três quartos dos entrantes serem negros, entende que assim a classe média “vem se tornando um retrato do Brasil (BRASIL, 2012, pp. 17/18)

A ascensão por renda parecia, assim, neutralizar as diferenças e dar a todos

acesso às mesmas condições e padrão de vida.

No quarto Caderno Vozes da Nova Classe Média (2013) urgiu o debate a

respeito da formalização e estabilidade no emprego. Nele foram refletidos os

determinantes para a ascensão e o aumento da renda do trabalhador que haviam

levado à expansão da classe média. Os fatores considerados então foram: a

redução da taxa de desemprego, a elevação dos níveis de formalização do trabalho

e a política de valorização do salário-mínimo, os principais fatores que mais

diretamente impactariam as faixas de renda da população brasileira. (BRASIL, 2013,

Caderno 4)

Esta análise do governo sobre quem compunha a classe média e as causas

de sua formação mostrava, portanto, forte relação com a perspectiva de Neri,

centrada em dados estatísticos. A classe média se conformaria nesse agente que

tem emprego, renda e capacidade de consumo. O mercado atuaria como regulador

social das desigualdades de classe, seus progressos trariam o desenvolvimento de

oportunidades para a mobilidade ascendente, elo entre emprego e renda, que

geraria consumo e produção, em um ciclo virtuoso. A política seria afetada por essa

visão: o caderno 4 do Vozes da Nova Classe Média (2013), coordenado por Neri,

influenciaria a tonalidade das políticas publicas do governo e consolidou o

prognóstico de que o combate à pobreza e às desigualdades sociais mais amplas

perpassariam, necessariamente, pelo emprego e acesso ao crédito, pois ele

garantiria a renda necessária para promover a mobilidade ascendente.

O processo da I CNETD permitiu avançar no debate sobre a importância de fortalecer o emprego como objetivo central das políticas macroeconômicas e financeiras, de crédito e investimento, acompanhado da afirmação plena dos princípios e direitos fundamentais do trabalho e do diálogo social, na

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perspectiva da erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais. (BRASIL, 2013, p.11, caderno 4)

Partindo deste pressuposto, o governo defendia um programa que articulava

as demandas de empregadores e empregados, elencando como elementos de

interesse das partes a necessidade de qualificação investimentos, crédito ao

consumo e ao empreendimento, buscando atendê-los por meio dos seguintes

programas: sistema Mais Emprego, Programa Nacional de Acesso ao Ensino

Técnico e Emprego (Pronatec) e Programa de Geração do Emprego e Renda

(Proger), e por meio do fornecimento de um conjunto de linhas de crédito a juros

diferenciados ao investimento produtivo em pequenos e microempreendedores,

além do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)28 e Minha Casa Minha Vida

como investimento direto em infraestrutura e geração de emprego. (BRASIL, 2013,

p.6-7, caderno 4).

Verificou-se, portanto, que o uso do termo nova classe média teria sido

legitimado não só por instituições de pesquisa e pelo meio midiático, que passaram

a fazer pesquisas que tratam do perfil da nova classe média, como também pelo

governo federal que articulou em 2011, junto à secretária de assuntos estratégicos e

Ministério da Fazenda, o debate sobre políticas públicas para a nova classe média.

Ou seja, mercado e governo validaram como identidade nacional um Brasil de

classe média. Esta leitura, ao mesmo tempo, inclui os marcadores de renda e

consumo como aqueles fundamentais para a categorização da situação de classe.

Desse modo, governo, mercado e mídia incorporaram a tese do surgimento

da “nova classe média”: o governo se perguntou quais as políticas públicas

necessárias à demanda deste grupo; o mercado se questionou sobre qual o seu

perfil, o que buscam consumir, como atraí-los. A mídia não só noticiou como

28 O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi lançado pelo governo federal em 2007 “promoveu a retomada do planejamento e execução de grandes obras de infraestrutura social, urbana, logística e energética do país, contribuindo para o seu desenvolvimento acelerado e sustentável” E mais do que isso, entendem que a promoção destas grandes obras foram fundamentais para superar a crise de 2008 e 2009 “garantindo emprego e renda aos brasileiros, o que por sua vez garantiu a continuidade do consumo de bens e serviços, mantendo ativa a economia e aliviando os efeitos da crise sobre as empresas nacionais”. Até 2011 o Pac envolvia mais de 37 mil empreendimentos por todo território nacional. (BRASIL, 2011, p.01) Disponível em: < http://www.pac.gov.br/sobre-o-pac> acesso em mai 2017.

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reorientou os programas de televisão29 para tratar de atrair o novo público. Esses

atores se preocuparam também com a sustentabilidade desta mobilidade social, ou

seja, a probabilidade de que o que se entende como classe média continuar sendo a

maioria eleitoral, maioria dos usuários dos serviços públicos e ainda a maior

consumidora do mercado interno, sendo necessário orientar as ações estratégicas,

seja no âmbito da política, seja no âmbito mercantil.

Por fim, a própria oposição política passou a se comprometer em dar

continuidade aos programas como o Bolsa Família, na tentativa de obter uma vitória

eleitoral30.

Como buscou-se apresentar, a classe média se tornou um “objeto de disputa

política” e deu origem a um amplo debate público. Os pesquisadores aqui analisados

se atentaram para questões políticas e ideológicas, se posicionaram em relação à

ascensão ou não de uma nova classe média, e o debate parecia indicar que “ser a

favor ou contra essa tese era uma forma de endossar ou criticar as políticas desses

governos”, visto a relação entre o surgimento da “nova classe média” e as políticas

econômicas e sociais assumidas pelo governo, seja com o Plano Real ou com o

Segundo Real de Lula31.

Todavia, esse conceito restrito a rendimento reduzia a realidade à lógica do

mercado e o cidadão a mero consumidor. Assim, alguns pesquisadores alertaram

que, se, por um lado, os dados gerados informavam importantes alterações na

realidade brasileira, por outro, seriam insuficientes para definir o surgimento da

“nova” classe média, pois deixaram de lado outras dimensões econômicas e sociais.

O risco desse conceito reducionista era de perceber as desigualdades apenas como

29 O Globo lançou em 2012 matéria intitulada “A TV se rende à nova classe média” Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/a-tv-se-rende-nova-classe-media- 4934814>. E também em 2012 a GI da emissora Globo publica notícias sobre o sucesso da novela voltada para a nova classe média brasileira, “O fenômeno "Avenida Brasil" aplaudido pela nova classe média brasileira”. Disponível em:http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2012/10/o-fenomeno-avenida-brasil-aplaudido-pela-nova-classe-media-brasileira.html. Acesso em 12 maio 2016.

30 Serra propõe 13o no Bolsa Família em debate; Marina e Plínio trocam provocações. Disponível em: <http://eleicoes.uol.com.br/2010/ultimas-noticias/2010/09/20/serra-propoe-13-para-beneficiarios-do-bolsa-familia-em-debate-no-nordeste.jhtm>. Acesso em 05 de jun. 2016. 31 LEAL, Jana Martins. Nova Classe Média brasileira? Divergências ideológicas do debate intelectual. PONTO DE VISTA, No 10, outubro 2014. ISSN 1983-733X . Disponível em : <http://neic.iesp.uerj.br/pontodevista/pdf/Ponto_de_Vista_Jana_Martins_Leal_N10_Outubro_2014.pdf>.

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uma questão de ordem monetária, ocultando aspectos relativos à produção e

reprodução das distinções sociais (SOUZA, 2012).

O próprio Neri reconheceu que optara pela praticidade e simplificação da

realidade ao dizer que seu objetivo primeiro era “ao fim e ao cabo” compreender

como se dava o aumento ou a diminuição da renda no “bolso dos diferentes

brasileiros”. Ao declarar isso admitiu “que o exercício foi uma simplificação da

realidade que transforma a riqueza de informações e as coloridas possibilidades da

PNAD em gravuras em preto e branco” (NERI, 2010, p. 52).

Assim, como veremos no desenvolvimento do próximo capítulo, essa escolha

teórico-metodológica está atrelada política e ideologicamente a uma tese sobre o

que seja uma sociedade de classe média. Este exercício foi possível ao trazermos

as considerações de outras perspectivas teóricas sobre o mesmo fenômeno social,

mas que se diferenciaram da tese da nova classe média, revelando um debate

carregado de tensões e disputas. Passemos às críticas a partir deste balanço

bibliográfico.

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CAPÍTULO DOIS

AS CRÍTICAS À TESE DA NOVA CLASSE MÉDIA

2.1. Os Emergentes Como Integrantes da Classe Trabalhadora Pobre ou

Expressão de Uma Nova Pobreza

Os principais críticos da tese da nova classe média ressaltaram a importância

de definir o que era a classe média no século XXI, o que a diferenciava da pobreza,

e qual o alcance das transformações promovidas no Brasil. Para autores como

Márcio Pochmann, Jessé de Souza, André Singer e Waldir Quadros, interpretar o

aumento de renda e consumo como a formação de uma nova classe média, mais do

que mero equivoco conceitual, seria expressão de uma disputa político-ideológica

sobre os rumos da política pública e do comportamento político dos emergentes,

visto o simbolismo que uma sociedade de classe média representaria.

Esses autores assumiram uma perspectiva que pressionava Neri a abandonar

a nomenclatura de classe média para denominá-la apenas de classe C, o que

limitaria a correlação entre os índices de desigualdade a uma demanda por geração

e distribuição de valor monetário, deixada subentendida na tipificação de classe

média assumida pelo autor, produzindo impacto tanto nas medidas de governo

quanto na representação política destes sujeitos.

Nesse sentido, conforme Pochmann, quando Neri afirmava que mais da

metade da população comporia a classe média, estaria indicando uma medianização

da sociedade brasileira, a exemplo do que ocorrera nos países de capitalismo

avançado no pós-segunda guerra. Esse debate está inscrito na experiência do

“Estado de bem-estar social com garantias de renda e a difusão do consumo de

massa” (POCHMANN, 2014, p. 24), que teria sido capaz de diminuir a polarização

da estrutura social marcada pela dicotomia entre classes operárias e burguesa,

“especialmente durante os trinta anos gloriosos 1945-1975 de queda da pobreza

absoluta, de elevação da renda e de pleno emprego da mão de obra nas economias

centrais”. (POCHMANN, 2014, p. 24)

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Para Pochmann, as mudanças ocorridas no Brasil não promoveram essa

medianização. Pelo contrário sustentaram uma polarização da estrutura social com

mobilidade na base da pirâmide social.

Os autores, Pochmann, Souza, Singer e Quadros, citados neste capítulo

criticaram tanto o conceito atrelado à renda quanto a faixa de rendimento que Neri

adota como de classe média (em 2012, famílias com rendimento entre 1734 e 7475

reais). Os pesquisadores observaram que o uso do termo se atrelava a uma

perspectiva otimista das transformações em curso, o que não permitiria um olhar

crítico sobre as medidas econômicas e políticas vigentes na época, além de

impedirem a elaboração de uma análise que pudesse evidenciar as consequências

dessas medidas na vida da população brasileira. Outra questão de grande

importância seria a própria dinâmica da estrutura de classes, além da necessidade

de definir o que caracterizaria o padrão de vida classe média.

Para estabelecermos um parâmetro comparativo, em primeiro de março de

2008, o salário mínimo correspondia ao valor de 415 reais32. Nesse sentido, a classe

C possuiria aproximadamente dois salários mínimos e meio. O Departamento

Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), contudo,

compreenderia uma renda de R$ 2.141,08 mensais (em dezembro de 2008) ou

2.561,47 mensais (em dezembro de 2012) como o orçamento mínimo para

assegurar o padrão de dignidade de uma família de quatro pessoas, dois adultos e

duas crianças. A renda mínima da classe média de Neri não correspondia nem à

metade deste valor33.

Em Notas Metodológicas sobre Estratificação Social, Quadros (2008) trouxe

elementos para mostrar a inviabilidade de se entender o rendimento médio como

critério para definir a população como classe C. Segundo Quadros, qualquer

pesquisador que usasse os dados primários produzidos pelo IBGE deveria levar em

conta o fato de que na coleta de dados não estariam representados todos os

estratos da sociedade, pois faltaria a camada dos mais ricos.

Seria “algo extremamente raro conseguir se aplicar questionário em

domicílios de ricos” (QUADROS, 2008, p. 8), de forma que a amostra seria

32Tabela dos valores nominais do salário mínimo. http://www.guiatrabalhista.com.br/guia/salario_minimo.htm. 33Dados disponíveis pelo DIESSE e atualizados mensalmente. http://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.htm.

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estatisticamente irrelevante e, em muitos casos, seria mais provável que um

“entrevistado dissimule sua condição social transmitindo um perfil de alta classe

média”. De tal forma que as classes ricas estariam ausentes da estratificação social.

Tal circunstância deveria, no mínimo, levar a uma “explícita relativização do

significado dos estudos correntes sobre a concentração e desigualdade que utiliza

estas fontes de dados primários” (QUADROS, 2008, p. 8).

Segundo esta visão, a obscura renda das camadas mais abastadas faria com

que os dados do IBGE revelassem apenas a realidade socioeconômica das classes

baixas ou médias. Em outras palavras, as classes A e B seriam vistas como classes

médias e a classe C uma baixa classe média, possuindo assim, limites muito

rebaixados, definidos somente a partir de critérios de renda.

Já André Singer observava que, para além da ausência dos “ricos”, ocorreria

a falta de contextualização dos limites das noções estatísticas, sendo necessário

relativizar o dado matemático estabelecido e refletir sobre ele à luz da realidade

concreta do indivíduo ou família. Por exemplo, a pobreza, segundo o IPEA, seria

definida a partir da “renda familiar per capita de até meio salário mínimo”, o que

significa que, em uma família de quatro pessoas, se a soma das rendas não chegar

ao valor de 2 salários mínimos, ela estaria em situação de pobreza. Nesse sentido,

Singer questionava se as famílias que atingiam uma renda com dois ou três reais

acima da linha da pobreza estariam de fato fora da pobreza, ou ainda, se passariam

a um padrão de vida de classe média (SINGER,2012, p. 1).

Refletindo sobre o “hábito” de considerar a classe média por meio do

rendimento médio da população34, Singer constata a existência de uma

“singularidade brasileira, que grosso modo transforma em “classe média” todos

(incluindo setores assalariados de baixa renda) os que não pertencem à metade da

população que tem baixíssima renda” (SINGER, 2012, p. 55). A classe C, segundo o

autor, abrangeria “um universo amplo demais”. Ela envolveria aproximadamente a

renda familiar entre 3 salários mínimos mensais e 10 salários mínimos mensais.

Dentro deste intervalo, a renda máxima multiplica-se mais de quatro vezes “em

relação a renda mínima dentro dela, o que não ocorre nas demais” faixas de renda

(SINGER, 2012, p. 136). Nesse sentido, o autor entendia que a distribuição seria

34 Como pode-se ver no método dominante nas pesquisas estatísticas de várias instituições.

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mais equânime se houvesse a ampliação dos outros intervalos, no caso das faixas

de renda representativas dos estratos D e B.

O autor contestou ainda o argumento de Neri a respeito de mais de 50% da

população brasileira compor a classe média na primeira década dos anos 2000.

Para Singer mesmo utilizando a lógica estatística esse dado ainda poderia ser

contestado. A classe média tal como apresentada por Neri, estaria segmentada em

vários extratos de renda e nichos de consumo, assim, a “nova classe média”, tal

como argumentado anteriormente, apresentaria condições de vida muito diversas

daquela da classe média tradicional. Situadas nas faixas de renda mais baixas da

classe média e que teriam de acordo com um quadro aproximativo, condições de

vida e de consumo mais parecidas com as experenciadas pelas classes mais

baixas. Dessa maneira, o cálculo deveria considerar apenas os novos entrantes na

faixa de renda C, os 29 milhões de brasileiros (dados de 2010), a “nova” classe

média estatisticamente seriam um contingente de 10% da população (SINGER,

2012). De tal forma que, em contraste, ainda persistiriam 40% da população na

miséria ou na pobreza.

Em resumo, apesar de ser verdade que está em curso um processo de

ascensão social, por meio do qual cresce o número dos que alcançam um padrão de

vida com maior possibilidade de consumo, a maior parte do Brasil ainda é pobre35.

A análise de Singer demonstra, assim, que o fenômeno da mobilidade atingiu

apenas a um pequeno contingente da pobreza, e que os dados anunciados por Neri

de que metade da população seriam de classe média tentariam na verdade, ocultar

a imensa maioria de pobres, ou seja, não nos permitia perceber as evidências que

afirmam a contínua desigualdade. Outra avaliação que questionou a relação

estabelecida por Neri entre o aumento da renda e a classe média foi desenvolvida

por Marcio Pochmann (2012). Segundo ele, de fato houve um aumento da renda per

capita nacional em mais de 19,8%, entre 2001 e 2008, tendo como peso na sua

composição a renda do trabalho e a redução da renda da propriedade. Isso se deu,

uma vez que, “entre 2004 e 2010, o peso dos salários subira 10,3% e o da renda da

propriedade decrescera 12,8%”. Isso indicava a recuperação do mercado de

35 Artigo a OPERAMUNDI, “Nova classe C ou nova pobreza?”, em que afirmou que, apesar da ascensão social, a maior parte do país ainda é pobre. Publicado em 01 abril de 2012. Disponível em: <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/36355/nova+classe+c+ou+nova+pobreza+.shtml#>. Acesso em 12 maio 2016.

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trabalho influenciado pela retomada do crescimento econômico (POCHMANN, 2012,

p. 10).

Marcelo Neri e Márcio Pochmann concordavam que os dados do IBGE

revelavam um aumento da renda do trabalho atrelado fundamentalmente à geração

de emprego com carteira de trabalho assinada.

Conforme os dados levantados por Pochmann, o país registrou na primeira

década dos anos 2000 o maior período de geração de ocupações cobertas pela

legislação trabalhista. Isso foi 44% maior do que nas décadas de 1980 e 1990. Um

saldo de 2 milhões de empregos formais abertos por ano. No final de dez anos, esse

número representaria cerca de 22 milhões de pessoas com carteira assinada no

setor privado.

Todavia, Neri teria encerrado a sua análise neste ponto, ao constatar que o

aumento da renda teria sua motivação atrelada à expansão trabalhista com carteira

de trabalho, o que daria “confiança para o consumo de bens de alto valor” (SAE,

2013, p. 83).

Pochmann, por sua vez, criticou a insuficiência do critério de renda para

entender a transformação em curso e se voltou para a estrutura ocupacional. O que

Pochmann encontrou foi que, dentre as ocupações criadas, “95% tratava de

remuneração mensal de até 1,5 salário mínimo” (POCHMANN, 2012, p. 22). A

análise do pesquisador procurou ainda, responder em quais setores produtivos se

expandiu o trabalho. Nesse caso, houve crescimento de quase todo o setor terciário,

além de ocorrer transferências de renda e oferta de serviços públicos durante os

governos petistas que impactaram na diminuição da pobreza. Desta forma,

Pochmann (2012) chegara à uma conclusão oposta à de Neri. O dado de que mais

de 95% “das ocupações abertas na década de 2000 concentrou-se naquelas de

salário de base”, faria com que Pochmann argumentasse que se, por um lado, os

empregos com carteira de trabalho retiravam os trabalhadores da pobreza, por

outro, não permitiria defini-los como de classe média (POCHMANN, 2012, p. 22).

Para Pochmann esta população emergente não se encaixava em critérios

objetivos que poderiam defini-la como de classe média, pois, para o autor, não teria

ocorrido uma alteração na estrutura produtiva que permitisse gerar empregos de

melhor qualificação e remuneração. Isso porque classe média, para Pochmann,

seria determinada por certa situação de trabalho, inspirada nos estudos das novas

ocupações que surgiram no pós-segunda revolução industrial, trabalho não-manual

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que extrapolam as necessidades do chão de fábrica “como é o caso da supervisão,

gerência e diretoria, entre outras tarefas da burocracia empresarial nas áreas de

vendas, recursos humanos, compras, marketing, etc.” (POCHMANN, 2014, p. 22).

As mudanças ocorridas na década de 1970 modificaram a estrutura

ocupacional e os modos de ser do trabalho, majoritariamente produtivo nas décadas

anteriores. O desafio no século XXI estaria em estabelecer como se estruturam as

classes sociais com o crescimento exponencial do setor de prestação de serviços

mais do que qualquer outra ocupação do setor primário e secundário. É importante

destacar que, se, por um lado, a carteira de trabalho seria uma conquista diante de

uma estrutura social que não garante nem o salário-mínimo para quase metade dos

trabalhadores ocupados, por outro lado as ocupações geradas neste início do século

XXI no Brasil ainda seriam a expressão de uma superexploração de trabalhadores

terceirizados, que sequer recebem 2 salários-mínimos, passam por alta rotatividade,

com exigência de baixa qualificação. (POCHMANN, 2012)

Segundo Pochmann, dados da década de 1970 relativos ao modelo industrial-

desenvolvimentista revelam que o número de pessoas ocupadas que recebiam

salários-mínimos no período representavam cerca de 64% da população

economicamente ativa. No ano de 2000, como resultado das políticas neoliberais, o

contingente de ocupados nesta faixa de remuneração se reduziu e chegou a 34% da

população ocupada. Por sua vez, em 2009 houve recuperação, demarcando um

total de 47,8% dos ocupados que se encontravam nesta faixa de remuneração:

[...] assim, os ocupados de até 1,5 salário-mínimo mensal aproximaram-se da metade total das ocupações existentes em 2009, o que contribuiu para a redução da desigualdade entre as diferentes faixas de rendimento do trabalho (POCHMANN, 2012, p.28).

As faixas de remuneração entre 1,5 a 3 salários mínimos sofreram pequenas

variações, se mantendo entre 20 e 25% dos ocupados entre 1980 e 2009. Nota-se,

fundamentalmente, que, da década de 1970 para 1990, houve um crescimento entre

as faixas de 3 e 5 salários mínimos e ainda acima de 5 salários, chegando nos anos

2000 a representar, respectivamente, 12% e 16.7% dos ocupados, ocorrendo em

2009 a redução desta população para 8,9% e 7,5% dos ocupados. Isso indica que,

de fato, o crescimento das remunerações se concentrou na base da pirâmide social,

entre os trabalhadores pobres. (POCHMANN, 2012, p. 28).

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É possível perceber ainda os resquícios da sociedade escravocrata, pois, em

2007, 30% do total das ocupações estariam relacionadas à prestação de serviços a

famílias (POCHMANN, 2012, p. 56). Estas ocupações se caracterizariam pela

extrema desvalorização (exploração) do trabalho, nas quais 92% receberiam até no

máximo 2 salários-mínimos em 2009, apenas 26,3% estariam com carteira de

trabalho assinada e 97% não seriam sindicalizados (POCHMANN, 2012, ps. 55/63).

Além disso, a passagem tardia da sociedade agrária para a urbano-industrial

gerou uma estruturação incompleta do mercado de trabalho, preservando

ocupações do setor primário na base da pirâmide (agricultura, pecuária,

extrativismo) e “atividades laborais de natureza autônoma, ou seja, não submetidas

a assalariamento urbano ou rural”, ocupações desenvolvidas por conta própria,

insubordinados, e em vários casos sem os meios de produção e ao mesmo tempo,

exercidas sem regulação social e trabalhista adequadas. (POCHMANN, 2012, p. 69)

O trabalho autônomo passou de 6,03% dos ocupados em 1980 para 15,1%

dos ocupados em 2009, com 85% destes não sindicalizados. E “pouco mais de 15%

dos conjuntos dos trabalhadores encontram-se ocupados no setor primário”, com

74% não sindicalizados (POCHMANN, 2012, ps. 71/79).

Assim, observa-se, a partir da consolidação dos dados apresentados por

Pochmann que o montante de trabalhadores que recebiam apenas a base salarial,

em sua maioria sem a proteção das leis trabalhistas, expressavam, na primeira

década do século XXI, 60% dos trabalhadores ocupados. Esse dado se decompõem

em assalariados prestadores de serviços às famílias (30% da população ocupada),

autônomos (15% da população ocupada) e do setor primário (15% da população

ocupada); profissionais que teriam apenas a base salarial.

Ainda em 2009, a cada dez empregos assalariados no Brasil um tinha

contrato com tempo inferior a três meses (a maioria em empreendimentos de médio

porte). As micro e pequenas empresas registraram apenas 13% de empregos

temporários, e as grandes empresas 8% (POCHMANN, 2012, p. 85.)

Em relação ao epicentro da emergência da “nova classe média”, dos 41

milhões de empregos ofertados com carteira de trabalho até 2009, 10% eram

temporários ou de curta duração, não chegando a 3 meses (POCHMANN, 2012, p.

97). E entre 1996 a 2010, os empregos formais terceirizados cresceram a uma

média anual de 13,1%, relacionados às necessidades de redução dos custos de

contratação de trabalhadores. (POCHMANN,2012, p. 111/112).

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O principal argumento de Pochmann era que “se trata de uma mobilidade na

base da pirâmide” que expandiu o seguimento dos trabalhadores pobres (work

poor), ocupações no nível de salário-base, dado que revela um modelo da expansão

econômica, que:

[...] estimula a desigualdade social, promove a sociedade de serviços, isto é, a terceirização e precarização do trabalho, e altera a estrutura da sociedade com a aposta no consumo e na ideologia liberal de mobilidade social. (POCHMANN, 2014, p 11)

Por outro lado, o pesquisador Waldir Quadros, apesar de reconhecer que o

governo de Lula se diferenciava principalmente por gerar crescimento econômico

através da reativação do mercado de trabalho formal, reforçada pelo aumento real

do salário mínimo, destacaria que o poder aquisitivo não seria um indicador confiável

de mobilidade social, pois esconderia, ao indicar a capacidade de consumo,

transtornos com o comprometimento da renda que teria levado muitos trabalhadores

ao endividamento.

O poder de consumo é muito importante nessa análise, mas a gente tem de saber olhar para ele. Embora mostre a força do poder aquisitivo do cidadão, o consumo é muito enganador. Pessoas de alta classe média, ou de baixa classe média, podem ter o mesmo aparelho de celular. Mas a primeira paga a vista. A segunda, parcela. Ou se endivida. Traduzindo, é muito difícil estratificar a sociedade pelo consumo e importa entender que o consumo não muda a estrutura social. [Consumir] Faz a economia rodar, aumenta a circulação de dinheiro, melhora o bem estar e o conforto das pessoas, mas o que faz uma família ascender não é o poder de compra, e sim galgar posições em relação à ocupação e à renda.36

Assim, as políticas de aumento real do poder de compra do salário mínimo e

de acesso a empréstimos consignados – restritos àqueles com carteira de trabalho –

em um contexto de quase pleno emprego, levaram à conformação de uma massa de

consumidores. Contudo, as condições salariais e trabalhistas ainda precárias

estimulavam o endividamento deste consumidor. Segundo dados do BACEN, entre

2006 e 2012 o nível de endividamento das famílias dobrou, chegando a 43%

(BACEN, 2012).

36Entrevista com Waldir Quadros, economista e pesquisador da CESIT/Unicamp concedida ao Sindicato dos Professores de São Paulo. SINPROSP, sem data. Disponível em:< http://www.sinprosp.org.br/reportagens_entrevistas.asp?especial=279&materia=572>. Acesso em 23 jun 2016.

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Nesse sentido, a grande preocupação de Quadros foi mostrar uma estrutura

ocupacional extremamente precária, na qual 64% dos emergentes pertenceriam à

classe dos trabalhadores domésticos, reflexo de um modelo econômico pautado por

uma política de desindustrialização (QUADROS, ANTUNES & GIMENEZ, 2012, p.

06)

Singer, por sua vez, observa que “a visão de um Brasil de classe média tem

um componente ideológico, pois, estamos assistindo, na verdade à diminuição da

pobreza monetária”. Dessa forma, comumente se entendia que as medidas

assumidas pelo governo tiveram eficácia em reduzir a pobreza. Porém, defender que

estaríamos em uma sociedade de classe média esconderia na verdade o fato de tais

políticas não terem sido tão eficazes no combate à desigualdade; ou nas palavras do

autor “o combate à pobreza parece ser menos complexo que o enfrentamento da

desigualdade de renda”. Singer diagnosticou, com base nos dados coletados pelo

IPEA, que a pobreza absoluta obtivera uma queda de 36% entre 2003 e 2008,

enquanto o GINI (índice de desigualdade de renda) se reduzira apenas 5% (de 0,58

para 0,55) (SINGER, 2012, pp. 139-140). Segundo o economista Amir Khair, em 2010 “apenas 1% dos brasileiros mais

ricos detém uma renda próxima dos 50% mais pobres”. A queda do GINI “esconde a

piora da repartição da riqueza entre o capital e o trabalho” (SINGER, 2012, p.140). O

que poderia estar acontecendo com o dado da melhoria de renda seria uma

distribuição funcional ao capital, em que haveria uma maior equidade entre os que

vivem do trabalho assalariado e, concomitantemente, um aumento da apropriação

pelos capitalistas do trabalho realizado sob a forma de aumento da taxa de lucro e

dividendos. Nos termos do autor:

Mas se a renda dos assalariados – e particularmente dos mais pobres – está crescendo em ritmo suficientemente acelerado para eliminar a pobreza monetária até o fim da década de 2010, como se explica que a desigualdade caia tão devagar? Uma razão possível é que os ricos também estejam ficando mais ricos. A economista Leda Paulani tem assinalado que 80% da dívida pública está em mãos de algo como 20 mil pessoas, as quais, sozinhas, receberiam um valor cerca de dez vezes maior do que os 11 milhões (na época) de família atendidas do Bolsa Família (SINGER, 2012, p. 141).

Diante das condições de renda e também do acesso a bens de consumo,

estaríamos diante não de uma “nova” classe média, mas sim de uma classe

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trabalhadora pobre, nas palavras de Pochmann, ou de uma nova pobreza como

expresso em entrevistas por Singer37.

Para mostrar como os entrantes na classe C possuíam uma realidade muito

diferente do que tradicionalmente se apresentava como classe média no Brasil, é

interessante citar a pesquisa realizada pela Revista Época sobre o perfil dessa “nova

classe média”.

Segundo a matéria, a nova classe média seria diferente da classe média

tradicional porque ainda viveria na periferia, em casas pequenas divididas entre

muitas pessoas, com quartos que não cabiam uma cama de casal, geladeiras

velhas, ao mesmo tempo em que possuíam computadores, armários “abarrotados

de roupas e perfumes”. Conviveriam, de acordo com a reportagem, “entre o velho e

o novo, a privação e a abundância, o popular e o clássico”38.

Observando os dados mais qualitativos disponíveis na Pesquisa de

Orçamentos Familiares (2008-2009), Uchôa e Kerstenetzky (2012) revelaram que

75% das residências da classe C possuíam apenas um banheiro, 400 mil não

possuíam banheiro, além de 60% dos chefes de família não possuírem cartão

credito. Desses, 70% também não tinham plano de saúde.

Os dados acerca da dimensão educacional também eram pouco animadores:

mais de 50% dos chefes de domicílio tinham apenas ensino fundamental completo

ou incompleto, limitados ao primeiro ciclo da educação básica. Ainda, mais de 9%

dos chefes de domicílio seriam analfabetos” (KERSTENETZKY; UCHÔA, 2012,

p.08)

As críticas até aqui expostas a Neri consideravam, portanto, que o autor

tomava um rendimento muito baixo para definir a classe C, e restringiria, assim, a

análise à renda, ocultando a realidade material e social desta nova classe média. A

renda abaixo de 2 salários mínimos não correspondia à metade da renda necessária

segundo o DIEESE para garantir acesso amplo a bens e serviços mínimos como

moradia, transporte etc. Fora, a baixa escolarização, domicílios com pouca

infraestrutura, o acesso restrito a serviços bancários ou planos de saúde que

indicavam a condição de vida precária dessa “nova classe média”.

37 André Singer em artigo a OPERAMUNDI, “Nova classe C ou nova pobreza?”2012 38 A nova classe média do Brasil. Por Marcos Todeschini e Alexa Salomão. Revista Época. Publicado em Agosto de 2008. Acesso em 23 de Abril de 2016. Disponível em:<http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0„EMI10074-15204,00- A+NOVA+CLASSE+MEDIA+DO+BRASIL.html>

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Desse modo, se por um lado os autores reconheciam as “melhorias” pela

redução da miséria e da pobreza, por outro, acreditavam que associar a mobilidade

à formação de uma a nova classe média não daria conta de expressar as

persistentes “precariedades” vividas por esta classe. Para os críticos, o uso do termo

é muito mais do que uma controvérsia sobre o qual a renda retrataria um padrão de

vida de classe média, seria, sobretudo, uma disputa política, como veremos a seguir.

2.2. A Tese da Nova Classe Média Como Instrumento Político-Ideológico

Serão apresentadas neste subitem as críticas de Quadros, Singer, Pochmann

e Souza a respeito das vinculações políticas e ideológicas presentes na ideia da

formação de uma “nova classe média” brasileira.

Para Singer, o termo classe média não seria neutro, disseminaria valores

atrelados a este segmento como a obtenção do sucesso pelo esforço próprio. Para

Souza, o termo mexeria com o imaginário social, uma vez que ao dizer que o Brasil

era um país de classe média, o país estaria sendo comparado àqueles

tradicionalmente dotados de tal estrutura social, como Europa e Estados Unidos, de

forma que propagar-se-ia uma ideia de modernização (SINGER, 2012; SOUZA,

2012).

Pochmann (2012), por seu turno, entendia que uma análise restrita ao

rendimento, além de insuficiente para entender as transformações sociais em curso,

estaria atrelada à lógica mercantil. Segundo Pochmann, mais do que uma base de

dados para orientar os investimentos de mercado pelo potencial de consumo, a

abordagem de Neri estaria ideologicamente em defesa destes interesses mercantis,

pois propagava não apenas o aumento da capacidade de consumo, mas, também

reorientava as políticas públicas numa direção mais aberta ao mercado, visto que a

classe média parte da tese daquela que tinha condições de pagar por serviços, se

distinguindo da pobreza exatamente por não necessitar dos serviços de Estado.

O crescimento da classe C implicaria, dessa forma, na ampliação destes

serviços na esfera privada. Portanto, para Pochmann, a tese de Neri estaria

estreitamente vinculada à redução dos gastos públicos com políticas sociais, uma

vez que mais da metade da população, segundo os cálculos de Neri, teria passado

para a classe média. A perspectiva de Neri realiza nas palavras de Pochmann:

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[...] um apelo a reorientação das políticas públicas para a perspectiva fundamentalmente mercantil. Ou seja, o fortalecimento dos planos privados de saúde, educação, assistência e previdência, entre outros. Nesse sentido, não se apresentaria isolada a simultânea ação propagandista desvalorizada dos serviços públicos (Sistema único de Saúde, a educação e a previdência social) (POCHMANN, 2012, p. 11).

O argumento defendido pelos autores de que o uso da expressão classe

média envolvia ideologias sobre os rumos do projeto de desenvolvimento do país

pode ser exemplificado com a forma como a Revista Época (2008) incorporou e

apresentou a tese da nova classe média de Neri, ao lançar na capa principal uma

matéria intitulada “A nova classe média do Brasil: como vivem os 100 milhões de

brasileiros e o que eles representam para o futuro do país”. De acordo com a

descrição da revista:

Essa população emergente, com seu desejo de continuar a consumir e seu foco no progresso pessoal, é um sintoma de que o Brasil está melhorando. Em todos os países que alcançaram um alto grau de desenvolvimento econômico e social, a maioria dos habitantes pertence à classe média. Conhecer a nova classe média brasileira é, portanto, fundamental para entender o futuro do Brasil. Quem são essas pessoas? Como melhoraram de vida? Que impacto podem provocar? Quais desafios trazem para o país?39

Assim, a nova classe média seria a prova de que o país se aproximava dos

países com alto grau de desenvolvimento, mas, não só isso. Ela propagava a ideia

de que classe média teria um papel fundamental neste processo, em sua busca

individual por ascensão e pelo desejo de continuar consumindo. O próprio Neri

difundiu este entendimento sobre a importância do consumo da classe média para o

avanço do desenvolvimento nacional, citando Thomas Friedman, colunista

internacional do New York Times, autor de um best-seller chamado “O Mundo é

Plano” (2005). Para ele, a classe média se apresentava nos termos do autor:

[...] como aquela que tem um plano bem definido de ascensão social para o futuro. Esta fábrica de realizações de sonhos individuais é a engrenagem fundamental para a conquista da riqueza das nações (NERI, 2008, p.7).

39 FRIEDLANDER,D.;MARTINS,I.;MOON, P.;MENDONÇA,M.;e MENDONÇA, R. A. A nova classe média do Brasil.Publicado em 08 ago 2008. Disponível em: <revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0„EMI10074-15204,00. A+NOVA+CLASSE+MEDIA+DO+BRASIL.html>. Acesso em: 05 mar 2016

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Nesse sentido, pôde-se verificar um reforço ao “ideário” neoliberal que

“conduz a defesa de privatizações dos direitos sociais sob a forma de compra e

venda de bens e serviços” de maneira que tal perspectiva de “medianização das

sociedades fortalece a supressão de políticas sociais universais com ação do

Estado” (POCHMANN, 2014, p. 14).

A respeito das políticas sociais assumidas nos governos petistas, Neri

privilegia a defesa da eficiência de políticas sociais específicas, como o Bolsa

Família, para a redução da pobreza. Nesse sentido,

Os gastos com o Bolsa Família representam apenas 0,4% do Produto Interno Bruto (PIB), mas cada R$ 1 gasto com o programa “gira” R$ 2,4 no consumo das famílias e adiciona R$ 1,78 no PIB (MOTA, 2013, p. 1).

Numa perspectiva próxima à de Pochmann, Waldir Quadros considera que a

formulação de Neri se encontrava no campo da justiça social: Para Quadros, a tese

de Neri pensava a redução das desigualdades dentro de uma perspectiva liberal. O

conjunto de medidas assumidas para combater a pobreza e a desigualdade

defendidas por Neri estariam ligadas à defesa de políticas focalizadas – criadas no

período anterior e ampliadas no governo Lula com o Bolsa Família – como as mais

eficientes para a redução da pobreza e da desigualdade.

Esta seria uma orientação conservadora, uma vez que “as novidades do

governo Lula, o expressivo crescimento econômico e a contínua elevação real do

salário mínimo, são colocados em segundo plano por estes analistas” (QUADROS,

GIMENEZ E ANTUNES, 2012, p. 6). Para os autores, o mais grave seria o otimismo

com que se analisavam os dados, exaltando as "virtudes sociais da política

econômica neoliberal" um modelo econômico e social que reduzia os empregos

típicos de classe média40.

Ainda que se pudesse comemorar a geração de empregos formais, o fato de

59% dos trabalhadores ganharem até 1,5 salário mínimos, contra 45% dos

trabalhadores em 1990, indica que estas ocupações estavam no bojo de uma

40 Para Quadros as ocupações típicas de classe média seriam: gerência no setor produtivo industrial,

trabalhadores de escritório e empregos públicos (QUADROS, ANTUNES & GIMENEZ, 2012, p. 6).

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estrutura ocupacional precarizada, com alto índice de terceirização e rotatividade,

elementos de uma economia categoricamente neoliberal (POCHMANN, 2012, 2013).

Todavia, classe não seria só resultado de uma análise econômica, mas

também conceituada a partir de sua origem histórica, social, moral, política. Por isso,

Singer sustenta que além de uma disputa de mercado por serviços, com o

desmantelamento dos serviços públicos, haveria ainda uma disputa sobre o

comportamento político dos indivíduos. O autor considera que o uso do termo nova

classe média estaria difundindo valores que orientavam a identidade política da

população. Portanto:

A expressão “classe média” não é neutra. Tem embutida a ideia de que, quando transita para um patamar superior de consumo, o indivíduo torna-se portador de valores de classe média. Um desses valores seria o individualismo, segundo o qual a ascensão teria ocorrido por esforço próprio, sem vínculo com reivindicações coletivas ou políticas públicas sujeitas à intervenção dos movimentos sociais (SINGER, 2012, p. 1).

Nesse sentido, a noção de nova classe média sugere que os indivíduos

atrelados à essa identidade entenderiam que a desigualdade estaria diretamente

relacionada às diferenças individuais e ao esforço desprendido por cada um deles

na busca por melhores condições de vida dentro do capitalismo neoliberal, ou seja,

de que nesse sistema, aqueles que se esforçarem mais podem encontrar as

recompensas sociais correlatas ao investimento empreendido, o que seria essencial

para o reconhecimento da condição de classe média.

Vejamos, no próximo item, como as perspectivas críticas abordaram a

incorporação e a publicidade da tese da nova classe média no governo do PT.

2.3. O Fenômeno do Lulismo e as Bases da Despolitização

Ao propagar a ideia da ascensão por esforço próprio, sem vínculo com as

políticas implementadas pelas instituições públicas, ou com as reivindicações

partidárias e sindicais a tese da nova classe média promoveu, segundo alguns

autores, uma despolitização classista. (POCHMANN, 2012).

Assim, a bibliografia divergente da tese da nova classe média demonstrava

como o conceito de classe estaria atrelado a perspectivas políticas e ideológicas que

influenciam tanto na identidade, como na organização e produção da vida dos

sujeitos.

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Argumentamos com base na crítica de Souza que a tese da classe média

enxerga o mercado como um espaço neutro, como se todos os recursos estivessem

disponíveis a todos, de forma que as questões sociais seriam entendidas como um

problema de ordem individual, de competição, resolvidas pelo “milagre do mérito

individual” como justificativa de todo tipo de privilegio social” (SOUZA, 2012, p.1).

De modo que os problemas da nossa modernização não apareciam vinculados ao

mercado, mas ao Estado ineficiente e corrupto.

Refletindo sobre a despolitização classista, decorrente tanto da formação

econômica e social da classe média individualista, quanto do pensamento social

brasileiro conservador, Souza considera estes elementos como as bases da

incapacidade de uma autocrítica. O sociólogo afirma que o problema estaria na

nossa própria forma de ver o conflito, retirando o mercado desse lugar da crítica e

apresentando apenas o Estado como o problema. Os nossos conflitos seriam,

assim, compreendidos na oposição entre um mercado divinizado e um Estado

demonizado, constituindo uma falsa oposição, consequência de um pensamento

sociológico que define o “patrimonialismo” como um problema estritamente estatal.

Essa visão nos impediria de uma autocrítica madura, capaz de entender a realidade

desigual no âmbito da estrutura do trabalho e que “assume a responsabilidade” pela

exclusão e exploração de uma maioria. Nas palavras de Souza:

Entre nós se formulou e se consolidou nos últimos 80 anos uma “sociologia espontânea” do senso comum que, graças à pobreza de nossos debates acadêmicos e públicos, tem toda a chance de continuar imutável pelos próximos 80 anos. Tomou-se a autoridade científica de Max Weber e incorretamente de modo a-histórico e sem qualquer rigor conceitual, se construiu a noção de um “patrimonialismo” apenas estatal. Quem frauda o público no mercado – como é a ordem do dia no capitalismo nacional e internacional – é percebido como “gênio financeiro” e só acontece corrupção no Estado. Essa concepção é tão naturalizada hoje em dia que se imagina que todos os problemas do Brasil são decorrentes da corrupção no Estado. Isso infantiliza uma sociedade já conservadora e egoísta que jamais assumiu a responsabilidade pela exclusão social de tantos, cuja mão de obra barata é a base de todos os privilégios das classes média e alta brasileiras (IHU, 2011, p. 1).

Por outro lado, para Singer(2012), mais que uma despolitização ou

desideologização41 que oculta a realidade, pode-se identificar um outro movimento

41 Para melhor compreender o que o autor entende por desideologização é necessário resgatar as bases da reflexão sobre a despolitização do lulismo inspirada na ideia de "síndrome do Flamengo", hipótese formulada por Fábio Wanderley Reis para explicar a ascensão do MDB nos anos de 1970 e

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político, qual seja, o realinhamento do programa do PT e de suas bases sociais, o

que representou a emergência de uma outra “orientação ideológica”, a do lulismo.

Este fenômeno, ao mesmo tempo em que enfatizou a ação política de uma

liderança, teria estimulado o individualismo. Isto porque a inclusão pelo aumento do

poder de consumo contribuiu para considerar as demandas sociais fundamentais

como moradia, transporte, saúde e educação, como algo que poderia ser

conquistado pelo aumento da renda, do esforço individual, pelo “trabalho duro”.

Desta forma, a absorção do imaginário da classe média como promotora do

desenvolvimento pela capacidade de consumir, se colocando como sujeito

competitivo, individualista, legitimada pela moral do mérito, fragiliza o plano da

organização coletiva e enfraquece inclusive a própria relação da base com o PT,

dado o não reconhecimento do papel do Estado na sua mobilidade social.

A vinculação da ascensão social a um mérito individual, resultado do esforço

próprio, despolitizaria as classes em relação ao processo que permitia sua

mobilidade, argumento que pode ser reforçado com os dados produzidos e

apresentados por Marcio Falcão, consultor do Datapopular, já citado no capítulo

primeiro. Em apresentações sobre as ideias da nova classe média, o autor declara

que as melhorias de vida seriam entendidas pelos entrevistados fundamentalmente

como resultado do esforço próprio, de forma que ainda que se dissemine uma visão

positiva do período, poucos atrelam a sua própria condição ao governo. O resultado

sobre quem seria o responsável pela melhoria de vida se apresentou da seguinte

forma42.

Gráfico 2- Principal responsável pela melhora da vida (%) (entre quem a vida

melhorou).

depois generalizada como visão estrutural da política brasileira”. (SINGER, 2009) Partindo desse ponto de vista, o argumento seria de que na política brasileira “um eleitorado de baixa escolaridade terá necessariamente que orientar-se por "imagens toscas não se devendo esperar que ele esteja informado das orientações substantivas adotadas pelos atores nem que se guie por elas”. De tal maneira, Singer formula que se o voto popular no MDB durante o regime militar não simbolizava, “para espanto do senso comum, rejeição ao governo militar, o voto em Lula não representaria qualquer tipo de opção ideológica, antes pelo contrário, seria fruto de umadesideologização. As opções populares, regidas por mecanismos de identificação acionada por imagens difusas, nada expressariam de substantivo” (Singer, 2009, p.95) 42 FALCÃO, M. Um país chamado classe média. Presente e futuro do crescimento brasileiro. [2013] Disponível em: https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=5&cad=rja&uact=8&ved=0ahUdownload%2F%3Fid%3D148276&usg=AFQjCNGtvoEAq9NF3GqHwyxZ5lHjNk0cg&bvm=bv.134495766,d.Y2I. Acesso em: 21 de jul. 2016

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Fonte: FALCÃO, 2013, pg.30.

Esses dados sinalizariam a despolitização desta camada social, na medida

em que demonstrariam a desvinculação entre ascensão social e as políticas

promovidas pelo governo43

Para iluminar ainda mais a crítica e mostrar o efeito ideológico do termo

classe média, o cientista político Singer explicita que enquanto a classe C estivesse

associada à classe média, seriam disseminados certos valores individualistas.

Porém, caso o debate público, o meio midiático e o governo interpretassem e

propagassem a compreensão de que uma nova classe trabalhadora estaria em

gestação no Brasil, outras expectativas sobre suas possibilidades de ação política

existiriam. Assim, Singer afirma que, ao tratar esta camada intermediária como

“nova classe trabalhadora”, o comportamento político esperado seria semelhante ao

das mobilizações do proletariado da década de 1980 em prol da Constituinte, ou

seja, ao invés de privatizações e individualização dos problemas, traríamos para a

43 A Fundação Perseu Abramo do Partido dos Trabalhadores, presidida por Marcio Pochmann, apresentou em 2017 o resultado de uma “pesquisa qualitativa sobre o imaginário social dos moradores da periferia de São Paulo” no qual destaca a “intensa presença dos valores liberais do “faça você mesmo”, do individualismo, da competitividade e da eficiência”, em que a ascensão também se apresenta como resultado do mérito individual, a ideia de que, ainda que não existam oportunidades iguais para todos “com esforço tudo pode ser superado” (FPA, 2017, pp. 01-21). Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/publicacao/percepcoes-e-valores-politicos-nas-periferias-de-sao-paulo/). Não pretendemos aqui discutir a pesquisa, mas apenas chamar a atenção para a semelhança entre os valores expressados pelos respondentes e os dados do Datapopular.

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esfera política as lutas por direitos universais e ações organizadas. Em suas

palavras:

Ao tratá-la como “nova classe trabalhadora”, por sua vez, admite-se que a nova classe C pode aderir a valores como os da associação coletiva (sindical), vedada aos que estavam antes desempregados ou na informalidade. O crescimento da massa de trabalhadores (10 milhões de empregos formais gerados nos governos Lula) poderia resultar em mobilizações como as que ocorreram de 1978 a 1988, fruto do crescimento no número de trabalhadores no milagre econômico da ditadura. Enfim, a tese da “nova classe trabalhadora” afirma que o comportamento político dos proletários dos anos 2000 tem chance de ser como o daqueles que na década de 1980 ajudaram a construir a Constituição progressista de 1988 (SINGER, 2012, p. 1).

Desse modo, esses teóricos, contrários à difusão da ideia de uma nova classe

média, consideravam que ela contribuía para propagar a defesa do modelo de

desenvolvimento neoliberal, segundo Quadros e Pochmann ou, no mesmo sentido,

de valores liberais e individualistas, como interpretam Singer e Souza,

desvinculando a representação destas classes tanto em relação às instituições

estatais como político-partidária, sindical ou social, ou ainda ocultando a própria luta

de classes.

Assim, propagar a emergência de uma “nova classe média" ajudaria a

estimular a imagem de que mais da metade da população não dependia mais dos

serviços públicos, visto que o aumento da renda indicaria que parte da população

teria atingido as condições econômicas de acesso ao mercado.

Uma decorrência política desse cenário seria a possibilidade de orientar a

ação governamental para o corte dos gastos sociais, fortalecendo a defesa de

políticas focalizadas em detrimento dos direitos universais e invisibilizando a grande

desigualdade que ainda persistia no país, ou ainda, camuflando as “carências” de

todo o tipo que ainda permeavam a vida da “nova classe média”. Tudo isso, como

indica Souza, com o consentimento da população. Para estes críticos, o conceito de

classe restrito à renda mais ocultava do que esclareceria, não daria o “diagnóstico

completo da realidade” (SOUZA, 2013), ou ainda, um programa político de inclusão

pelo consumo teria um efeito despolitizador, deixando a responsabilidade social a

cargo do poder de compra de cada um.

A tese dos críticos era de que as mudanças econômicas e sociais em curso,

neoliberais ou neodesenvolvimentistas, teriam levado a uma polarização da

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sociedade, e não à medianização, como levava a crer a tese de mais de 50% na

classe C construída por Neri44.

Para Pochmann, havia polarização entre trabalhadores de salário base e

detentores de renda da propriedade. Para Quadros, “polarização no mercado de

trabalho” entre ricos e bem-pagos e os que prestam serviços como forma de superar

o desemprego” (QUADROS, ANTUNES & GIMENEZ, 2012, p. 9).

Para Singer, essa dicotomia estaria entre os de baixíssima renda (até dois

salários mínimos) e os alta renda (acima de 10 salários mínimos), o que levaria a

uma repolarização da política com nítida preferência dos mais pobres em Lula (PT) e

os mais ricos preferencialmente em apoio à oposição (PSDB). Apesar da

polarização entre PT e PSDB ser antiga, a vitória dos petistas Lula e Dilma em 2006

e 2010 indicaria uma alteração do conteúdo da disputa.

A diferença entre a minha abordagem e a dos autores dessa última corrente é que, embora estejamos de acordo que a polarização PT-PSDB, estabelecida desde 1994, continua a existir e é decisiva, penso que ela mudou de conteúdo. Estaríamos em face de uma repolarização da política brasileira, na vigência da qual o sentido da disputa entre PT – PSDB se alterou. Guimarãeses tem razão ao perceber que o PT se tornou “mais Brasil”. O busílis é que, ao se tornar “mais Brasil”, ele se torna menos “dos trabalhadores”, isto é, opera um deslocamento de classe e, portanto, ideológico, que Guimarãeses não incorpora a sua análise. A ascensão do subproletariado, do qual o PT se tornou o representante na arena política, por isso se assemelhando a um “partido dos pobres” de estilo anterior a 1964, significa que as classes fundamentais passam para o fundo da cena. Foi por isso que a polarização entre esquerda e direita esmaeceu, sendo substituída por uma polarização entre ricos e pobres, parecida com a do período populista. ( SINGER, 2012, p 34)

Nesse sentido, conforme o PT se tornava o partido dos pobres, Singer afirma

que as classes fundamentais, burguesia e proletariado, passariam ao fundo da cena,

44 Essa polarização da sociedade pode ser percebida, no plano da disputa eleitoral em 2014, na análise realizada pelo Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB) juntamente com o Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em parceria com o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope). Em artigo intitulado Por que Dilma de novo? Uma análise exploratória do Estudo Eleitoral Brasileiro de 2014, Amaral e Ribeiro (2015). Nesta pesquisa os autores afirmam que “No primeiro turno, Dilma Rousseff obteve 41,6% dos votos válidos e Aécio Neves, 33,5%. O segundo turno foi marcado por um acirramento político e ideológico sem precedentes desde a histórica disputa entre Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Mello em 1989. [...]O clima tenso entre os candidatos e as lideranças partidárias chegou às ruas e foram registrados enfrentamentos entre tucanos e petistas em algumas metrópoles do país às vésperas do segundo turno. A indefinição sobre o resultado seguiu até a apuração dos votos, que confirmou a reeleição da presidente Dilma Rousseff com 51,7% dos votos válidos. Esse foi o resultado mais apertado de uma eleição presidencial no Brasil, e o candidato da oposição conseguiu vencer em três das cinco regiões do país (Centro-Oeste, Sudeste e Sul)” (AMARAL, RIBEIRO, 2015, p.110 Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rsocp/v23n56/0104-4478-rsocp-23-56-0107.pdf>

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de forma que a disputa entre direita e esquerda teria se atenuado e dado lugar à

oposição entre ricos e pobres (Singer, 2012, p.34). A repolarização implicaria, assim,

na alteração ideológica do programa do PT, que voltaria a atender os interesses do

subproletariado alterando as preferências eleitorais desses indivíduos que passaram

a reconhecer em Lula a sua liderança. Provocando por outro lado o afastamento do

apoio da classe média; classe que ofereceria resistências ao programa do lulismo de

erradicação da miséria.45

Portanto, o termo nova classe média estaria ocultando uma nova polarização

social sob novos símbolos ideológicos e fundamentalmente, o fato de que a base

social que se sentiu representada pelo programa político do PT garantindo a

reeleição de Lula e posteriormente de Dilma, não teria sido a classe média, mas

antes os grupos de menor renda e escolaridade.46

Encerra-se o balanço critico com o entendimento de que, ainda que a

abordagem de Neri tomasse apenas os rendimentos como critério definidor da “nova

classe média”, o conceito de classe implica dimensões políticas e ideológicas

constitutivas da formação social e da estrutura social. Dessa forma, buscar-se-á, no

próximo capítulo, extrapolar a análise econômica de Neri através da exposição mais

sistemática das abordagens desses autores que, influenciados pela análise

sociológica, também analisaram o fenômeno.

Como veremos, as obras dos pesquisadores nos apresentam diferentes

conceitos de classe face à tese da “nova classe média”. Assim, será exposto um

novo quadro explicativo da mobilidade social no período que nos permite refletir

sobre os efeitos dessa mudança social na mobilização deste segmento.

45 As razões da oposição da classe média serão melhor exploradas no capitulo três, quando apresentaremos alguns elementos sobre a formação da classe média brasileira 46 Houve um notável crescimento da preferência eleitoral pelo PT entre aqueles com escolaridade de nível fundamental e médio, se mantendo estável o índice entre os grupos de nível superior. Cf. SINGER 2012 (p. 228).

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CAPITULO TRÊS

AS TEORIAS DA CLASSE MÉDIA E AS TRANSFORMAÇÕES

NO CAPITALISMO

3.1. A abordagem sociológica

O objetivo deste capítulo é entender os paradigmas analíticos que embasam

o debate da classe média e desafiam a análise das classes no Brasil.

Ao “apelidar” de “nova classe média” brasileira os segmentos sociais que têm seu

poder de compra aumentado, Neri atrai a atenção de autores que, inspirados em

diferentes tradições teóricas, compreendem as classes enquanto um fenômeno

sociológico e como parte de uma questão social.

Não se busca, aqui, apontar qual a melhor abordagem teórico-metodológica,

mas antes expor as contribuições das teorias das classes sociais para revelar

dinâmicas econômicas, políticas e ideológicas que importam para pensar a questão

das desigualdades sociais e do comportamento político das classes no século XXI.

Para isso, será realizado um breve resgate das teorias das classes, especialmente

as controvérsias em relação à definição de classe média dentro da sociologia. O

intuito será melhor compreender as razões que levam os autores a identificar ou

recusar o conceito de classe média para a análise da realidade brasileira no primeiro

decanato dos anos 2000 no Brasil.

A expressão classe média foi utilizada pela primeira vez por Thomas Gisborne

no final do século XVIII e tinha como propósito descrever um estrato social

intermediário situado entre “a nobreza, a aristocracia e a classe dos senhores de

terra (os mais ricos) e, de outro, os trabalhadores assalariados, rurais e urbanos

(mais pobres)”. Tal segmento foi entendido como resultado da expansão do

comércio e da economia de mercado na Europa naquele período (ESTANQUE,

2015, p. 24).

Para Elísio Estanque, o problema das classes sociais enquanto fenômeno

sociológico surgiu com o aparecimento da sociedade moderna na Europa Ocidental,

isto é, com “o triunfo do pensamento racional, sob influência dos princípios

iluministas da Revolução Francesa e da dinâmica da Revolução Industrial”,

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expressão tanto de uma virada das relações econômicas quanto das mudanças

políticas com a construção de democracias parlamentares e, portanto, de novas

noções de sociedade. (Estanque, 2015, p. 25).

A progressiva secularização do pensamento social, que atravessou o período

da renascença até o final do século XVIII, contribuiu para que o termo classes

sociais adquirisse poder simbólico e social, pois:

[...] as desigualdades deixaram de ser vistas como fruto de qualquer desígnio divino ou poder transcendente, passando a ser percebidas como um produto da própria organização da sociedade (ESTANQUE, 2015, p. 26)

O primeiro filósofo ocidental a tratar da desigualdade não como algo natural,

mas como uma questão social foi Jean-Jaques Rousseau. Entre os pioneiros da

formação da sociologia enquanto uma ciência autônoma a tratar do conceito de

classes sociais, destaca-se Alexis de Tocqueville. Este autor se debruçou sobre o

desenvolvimento do conceito de classe média ao observar a história da formação do

regime democrático nos Estados Unidos da América entre 1831-1823 “num contexto

em que a intensidade da atividade econômica e das trocas comerciais vinha

favorecendo o enriquecimento e a ascensão social de novos segmentos da

população” diante de uma sociedade dividida pela dificuldade do acesso à

propriedade (ESTANQUE, 2015, p. 26).

Mais do que a possibilidade de mobilidade social neste país, Tocqueville

atribui à classe média o papel de ser um estrato fundamental para a manutenção da

ordem social. Tal concepção se torna um ponto de partida para o qual, segundo

Estanque, “qualquer teoria de classes médias abordará posteriormente”

(ESTANQUE, 2015, p.26).

A teoria das classes médias está relacionada, assim, ao debate sobre

desigualdades sociais na sociedade moderna. No século XIX, duas importantes

correntes de pensamento buscaram explicar as causas e efeitos da diferenciação

entre indivíduos de uma mesma sociedade, em especial na organização capitalista:

a teoria das classes sociais dentro do marxismo clássico, e a teoria da estratificação

social, descendente tanto de pressupostos da tradição positivista quanto da

abordagem teórica de Max Weber. Assim, para Estanque:

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[...] essas duas escolas disseminaram duas visões distintas – e durante muito tempo antagônicas – sobre as desigualdades sociais nas sociedades modernas. (Estanque, 2015, pp. 28/29).

A teoria das classes sociais foi uma abordagem possível para a compreensão

das desigualdades sociais, dando atenção à formação de diferenças

socioeconômicas e culturais entre segmentos da sociedade. Destacaremos a seguir

os fundamentos dos clássicos de referência do debate, o marxismo e o

weberianismo, apresentando alguns de seus desdobramentos que interessam à

análise das classes médias a fim de dar luz às polêmicas que ainda persistem no

debate. Assumiremos assim o conceito no plural diante da diversidade analítica de

sua definição.

Além disso, destacamos outros teóricos que contribuíram para o

desenvolvimento do conceito de classe média num período mais recente, pois estão

presentes no cerne das referências de Pochmann, Quadros, Souza e Singer, de

forma a melhor nos posicionar sobre as premissas e as contribuições dessas

abordagens para pensar o Brasil.

3.2. As Teorias das Classes Sociais

A questão das classes médias sempre foi controversa dentro da teoria

marxista, ou mesmo nas análises do próprio Marx. A tese mais difundida através do

Manifesto do Partido Comunista (2008) se fundamenta na bipolarização da luta de

classes enquanto característica da estrutura social capitalista, “toda a sociedade se

divide, cada vez mais, em dois grandes campos inimigos, em duas grandes classes,

diretamente opostas: a burguesia e o proletariado” (MARX e ENGELS, 2008, p. 9)

de forma que esta abordagem teórica resulta incondicionalmente na simplificação do

antagonismo de classe. Também é bastante presente entre os marxistas a acepção

de que as outras classes, nem burguesa, e nem operária, tenderiam à

proletarização:

Os pequenos empreendedores tradicionais – os pequenos industriais, comerciantes e os que vivem de renda, os artesãos e os agricultores - decaem no proletariado” uns cujo pequeno capital não é suficiente para permitir que adotem os processos da grande industrial, sucubem frente à concorrência com os grandes capitalistas; outros porque sua habilidade é desvalorizada pelos novos métodos de produção. Assim, o proletário é recrutado em todas as classes. (MARX e ENGELS, 2008, p.22)

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Nesse sentido, as classes intermediárias formadas no período pré-capitalista

seriam provisórias. A sociedade capitalista tenderia a se polarizar em duas classes

fundamentais, operários e burgueses, uma vez que o movimento de acumulação do

capital se constituiria em meio ao processo de proletarização do trabalho. Assim, os

pequenos proprietários da agricultura, no comércio e na produção urbana estariam

fadados ao desaparecimento. O surgimento de segmentos intermediários no

processo de produção de capital de “assalariados compostos por empregados e

técnicos superiores e portadores de relações ambíguas entre os operários e

burgueses” situar-se-ia em uma fase de transição para a condição de proletários em

virtude do movimento geral do capital. (POCHMANN, 2014, p. 22).

A classe média em Marx apareceu na obra Dezoito Brumário de Luis

Bonaparte como classe comparada aos camponeses, “massa desagregada e sem

capacidade de agir enquanto classe” (Estanque, 2015, p. 27). Em outra obra, A luta

de classes na França, Marx também se utilizaria da categoria classe média como

fator explicativo, porém agora como força social de apoio aos interesses da

burguesia, que lhe oferece acordos para manter confortos e privilégios. Há, ainda,

outras passagens em que a classe média seria tratada por Marx como uma fração e

segmento de transição do pré-capitalismo para o capitalismo, e que estariam em

processo de proletarização. (Estanque, 2015, p. 27).

Ao recuperar esse debate, Cavalcante (2012) empregou o conceito de

classes médias no plural, uma vez que compreendia que Marx reconhecia a

existência de classes intermediárias em dois sentidos:

Utilizamos o conceito no plural e é preciso entender a razão dessa escolha. No marxismo, a noção de classes (ou camadas e frações) intermediárias foi usada em dois sentidos principais, ambos fundamentados em direções apontadas por Marx: indicar a permanência de agentes sociais não vinculados (ou somente vinculados pelo mercado) ao modo de produção capitalista – ou seja, a pequena propriedade no caso de camponeses, artesãos, pequeno comércio ou profissões exercidas por conta própria – ou a existência “parasitária” de empregados e funcionários de burocracias privadas e estatais. Tratava-se, portanto, da pequena-burguesia tradicional, foco de atenção de Marx e dos mais importantes trabalhos marxistas das primeiras décadas do século XX (CAVALCANTE, 2012, p. 15)

Diante da ambiguidade entre a tese da bipolarização e a existência de

trabalhadores assalariados em condições distintas do operariado, surgiu uma

polêmica na teoria marxista entre duas posições: ou simplificar a totalidade social,

apontando para uma tendência à polarização, ou reconhecer a existência de uma

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“nova classe” intermediária produzida pelo capitalismo. O conceito de classe média

apareceria de forma mais definida e crítica à teoria marxista da bipolarização, na

teoria da estratificação social. (ESTANQUE, 2015; CAVALCANTE, 2012; BOITO,

2007).

Esta teoria estaria mais fortemente referenciada no pensamento clássico de

Max Weber para quem, assim como na teoria marxista, classe seria um conceito

abstrato. Na teoria da estratificação social weberiana, segundo sintetiza Estanque, a

desigualdade social seria resultado da distribuição de recursos e também de

competências, que resultaria em situações de classes positivamente privilegiadas e

classes negativamente privilegiadas e entre elas estaria a classe média.

Para esta abordagem, os volumes semelhantes de bens econômicos seriam

os indicadores de uma mesma situação de classe. A desigualdade não estaria

restrita ao critério de posse, mas à disposição de recursos inalienáveis − talento e

capacidade − como fator de diferenciação no mercado. Assim, para além da renda,

o status social constitui um recurso estruturador das relações, de forma que “um

indivíduo pode ser rico mais não possuir o reconhecimento social” (ESTANQUE,

2015, p. 37).

A importância decisiva das qualificações e dos talentos individuais como fatores de promoção pessoal ao longo da trajetória (ou sucessão das gerações) é um aspecto marcante nas teorias de estratificação. Para além da propriedade – e dos direitos a ela associados -, é a desigualdade de recursos inalienáveis (talentos e capacidades) que permite estabelecer diferenças de poder, ou seja, diferentes possibilidades perante o mercado. (ESTANQUE, 2015, p. 37)

A classe média seria aquela que, na competição do mercado, possuía um

talento ou uma qualificação que lhe conferia um status, diferenciando socialmente

seus portadores. Tratar-se-ia, especialmente, dos cargos burocráticos e tecnocratas

públicos e privados, ocupações que segundo a aposta weberiana, cresceriam com o

desenvolvimento capitalista, resultado do triunfo da racionalização da sociedade.

Enquanto a teoria marxista estaria preocupada com a estrutura de classe a partir da

identificação das relações de exploração que se estabelece na relação entre

produtores e proprietários, e também com os mecanismos de dominação presente

nessas relações (PERISSINOTO, 2007, p. 1), a teoria da estratificação social

Weberiana abordaria a sociedade de uma perspectiva liberal, dando ênfase às

“chances de vida” possibilitadas pelo mercado, nos termos de Wright:

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A diferença fundamental é captada pelo contraste entre as expressões favoritas de cada tradição teórica: chances na vida para os weberianos e exploração para os marxistas. A produção é mais central para a análise de classes marxista do que para a weberiana, por sua importância para o problema da exploração; os weberianos dão mais ênfase ao mercado porque ele influência de forma muito direta as chances na vida. (WRIGHT, 2015, p. 155)

Isso fez com que algumas correntes marxistas negassem o conceito de

classe média. A discórdia decorria do fato de que essas “perspectivas transportavam

representações contrárias quanto à virtude e aos defeitos do modelo de sociedade

em vigor” (ESTANQUE, 2015, p. 29). De outro modo, a análise sociológica

empreendida tanto por Marx quanto por Weber evidenciariam um pensamento filiado

ideologicamente:

“se, para Marx, a classe média era a negação mais palpável da sua tese de dicotomia das classes (as duas classes antagônicas), para Weber, as classes medias eram a prova da superioridade racional de um sistema capaz de reconhecer o mérito e oferecer oportunidades aos mais talentosos”(ESTANQUE, 2015,p.29).

Tal reflexão atenta para a necessidade de se ter em conta que a teoria das

classes sociais tem forte ligação com a análise que busca compreender como

funciona o “sistema capitalista e o mundo laboral” (Estanque, 2015). A teoria

marxista na análise do modo de produção capitalista revela uma oposição entre

capital-trabalho que aponta para duas classes fundamentais, cuja posição social

estaria diretamente relacionada à posição que cada indivíduo ocupa no processo de

produção. Já para os estudos da estratificação social, a profissão e a carreira são

expressões da renda, poder e status alcançados por indivíduos e definidores de sua

situação na hierarquia social. Ambas as abordagens tomam como principal base

analítica dados relacionados ao trabalho e à ocupação. Mas apresentam também

uma perspectiva própria sobre os sentidos do desenvolvimento capitalista. Afinal, ou

o capitalismo seria conduzido à uma contínua bipolarização das classes e

consequentemente ao aumento das desigualdades, ou ao crescimento da classe

média, demonstrando a superioridade de um sistema racionalizado que recompensa

esforços e talentos.

Assim, a Primeira revolução industrial na Inglaterra trouxe como novidade

visível o surgimento de uma nova classe, os operários, sob novas condições, a

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separação do produtor dos meios de produção e o assalariamento da força de

trabalho. Em meados do século XX, o capitalismo e o Estado democrático teriam

passado por mudanças que levaram à revisão das teorias clássicas que analisaram

a formação da sociedade capitalista, no caso Marx e Weber. Em especial, um dado

peculiar conduziu a essa revisão da teoria das classes médias: a redução da classe

operária e o crescimento de ocupações de serviços, formadas por trabalho não

manual ligado ao “progresso técnico e aumento da burocracia administrativa”

(ESTANQUE, 2015, p.31) e vinculados especialmente ao desenvolvimento das

funções do Estado, a exemplo “professores, técnicos, funcionários, gestores,

profissionais da saúde ou da administração pública” (ESTANQUE, 2015, p.31).

O conflito entre Estado e classe social se alteraria fortemente diante da

formação do Estado Democrático de direito que, para além do direito civil e político,

também dava lugar aos direitos sociais (saúde, educação e seguridade social).

(ESTANQUE, 2015, CAVALCANTE, 2012, TRÓPIA, 2007).

Especialmente na Europa ocidental, com o welfare-state, houve uma

equalização das condições de vida da classe operaria em relação à classe média. A

universalização do acesso à saúde, seguridade social, a educação e as políticas de

compensação social por renda, fizeram com que critérios como renda e qualificação

estivessem garantidos a todos por instituições públicas. O surgimento de novas

profissões e o arranjo político-institucional ampliou as possibilidades das autoridades

políticas afetarem a estrutura social por meio de políticas públicas.

Desse modo, segundo Ossowski (p. 215-216), não somente a estrutura social dos EUA, mas também a da então URSS alterava profundamente as teorias do século XIX, liberais ou marxistas, que passaram a identificar a importância social e política desse novo contingente. Na URSS, o grupo correspondente a essa nova classe seria o composto por trabalhadores não manuais “no governo estadual e municipal e nos escritórios partidários”, que têm “atitudes sociais e subcultura” próprias. Haveria uma nova estratificação em que a maioria das pessoas encontra-se numa “hierarquia burocrática” e as “autoridades políticas” acabam por dispor, nesse contexto, de um poder de interferência na estrutura social bastante efetivo (como políticas de bem-estar). Tão efetivo que “o conceito de classe do século XIX se torna mais ou menos um anacronismo, e os conflitos de classe dão lugar a outras formas de antagonismo social”. (CAVALCANTE, 2012, p.27)

Surgiu então a crítica à teoria marxista de que a contradição estrutural

fundamental do capitalismo, o conflito capital-trabalho, parecia agora passível de

solução. A sociedade não caminharia, assim, para o enfrentamento de duas classes

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fundamentais, posto que a ascensão social dos indivíduos ainda seria possível pela

via de uma nova dinâmica político-institucional. (CAVALCANTE, 2012)

Cavalcante esclareceu que a classe média enquanto triunfo do capitalismo

sempre foi uma saída prevista pelos pensadores marxistas. O autor revelou que não

se tratava da classe média de Tocqueville ou do triunfo do pensamento liberal, qual

seja, o crescimento de uma classe de proprietários que também eram trabalhadores

em seus próprios empreendimentos, pois este segmento, como previu Marx,

encolheu. A questão estaria em apontar o surgimento de uma “nova classe” ou uma

nova estratificação social. Porém, acabou ocorrendo o próprio recuo das análises de

classe frente à suposta superação do conflito estrutural pela sociedade democrática.

(CAVALCANTE, 2012)

As primeiras tentativas de dar um tratamento teórico específico aos

assalariados não-manuais, depois da Segunda Guerra Mundial, surgiram fora da

tradição marxista, com os trabalhos de Wright Mills e David Lockwood.

Ao longo da década de 1950 e 1960, esses autores realizaram diversas

pesquisas com os novos setores profissionais, denominadas por Mills de “colarinhos

brancos”, e por Lockwood de “trabalhador de paletó”. Estes constituiriam uma nova

classe média, visto que diante da condição comum de assalariamento e proximidade

do nível salarial, sua condição de classe específica residia no fato de se

proclamarem como superiores à classe dos trabalhadores manuais por seu status.

(apud TRÓPIA, 2007, BOITO, 2007)

Para Mills e Lockwood, a tese marxiana da bipolarização e da fusão dos

interesses dos trabalhadores ao socialismo foi frustrada diante do comportamento da

“nova classe média” e de seu aumento numérico. Além disso, ainda que seja uma

fração da classe trabalhadora, a nova classe média tem como característica

específica a luta pela distinção:

Na análise de Mills e Lockwood o trabalhador de classe média, que representa para eles um grupo de status no interior da classe trabalhadora, reluta em comportar-se com a organização e a luta coletiva porque luta individualmente pela sua ascensão na escala de prestigio social. (BOITO, 2007, p. 226)

Como sintetiza Patrícia Trópia (2007), no pensamento de Mills e Lockwood

apenas os critérios ligados à situação de classe (assalariamento e nível salarial) não

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são suficientes para se definir os interesses e a ação prática destes trabalhadores

assalariados não manuais. Nas palavras de Trópia:

Mills (1979) utiliza basicamente dois critérios para definir classe social: o critério de situação de classe que diz respeito ao rendimento - montante de salário ou renda - e à propriedade, bem como o critério de situação de status - prestígio social. No que respeita a propriedade, os colarinhos brancos estariam na mesma situação de classe dos operários. No que tange aos rendimentos o que se nota é uma crescente aproximação entre operários e colarinhos brancos. Entretanto o traço distintivo e decisivo é o prestígio proclamado pelos colarinhos brancos. Qualquer que seja o nível da pirâmide dos colarinhos brancos, do mais alto ao mais baixo, todos reivindicam um status mais elevado do que o operário. (TRÓPIA, 2007, p. 05)

A luta pelo status, conforme Mills, pode ser compreendida através de

diferentes fontes, da qualificação, do poder do cargo ou até do fato de terem contato

direto com o freguês e inclusive da imagem social que precisam ter no trabalho

diferenciando suas vestimentas do operariado. (TRÓPIA, 2007)

Para além destas formas de diferenciação, Lockwood atestou que os

trabalhadores de classe média teriam vantagens materiais como salários melhores,

relações pessoais com o patronato, maior estabilidade no emprego, maior

possibilidade de ascensão funcional e melhores condições de trabalho. A atenção

especial que eles davam à situação de trabalho é importante para explicar o

comportamento político dos “colarinhos brancos” (TRÓPIA, 2007).

Outro autor deste mesmo período que se envolveu no debate das classes

sociais no século XX e apontou a busca da distinção como traço da produção das

desigualdades foi o sociólogo Pierre Bourdieu. Este afirmou que a distinção social

seria um traço da estrutura social capitalista. Enquanto que para Mills e Lockwood a

distinção seria um traço característico da classe média, para Bourdieu ela

atravessaria todas as classes, conforme sintetizado por Trópia:

Em seu livro, La distinction, Bourdieu evidencia que a busca pela distinção social é um traço característico de todas as classes sociais e que as camadas médias, tão logo vejam seus habitus de classe serem incorporados por outras classes, lutam por modificar e elevar simbólica e culturalmente suas características, qualificações, padrões de comportamento, hábitos de consumo, entre outras. (TRÓPIA, 2007, p.06)

Trópia destacou a contribuição da abordagem marxista estruturalista, que

romperia com o critério restrito ao assalariamento e à propriedade ou não dos meios

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de produção para definir o pertencimento de classes dos trabalhadores assalariados

não manuais. O marxismo estruturalista admitiria as relações políticas e ideológicas

como aspectos fundamentais para a determinação de classe. Os principais autores

que trabalham nessa perspectiva são Nicos Poulantzas, Olin Wright e, no Brasil,

Décio Saes. Ainda assim, cada um destes intelectuais chegou a conclusões distintas

a respeito da definição da classe média.

Para Poulantzas, o pertencimento de classe não estaria restrito à condição de

assalariamento, as próprias relações econômicas só poderiam ser determinadas ao

se considerar o caráter produtivo ou improdutivo do trabalho, além do fator de deter

ou não a propriedade dos meios de produção. Mas a contribuição fundamental

estaria em considerar que, para além desta leitura mais ampla das relações

econômicas, também seriam igualmente fundamentais as relações políticas e

ideológicas para se estabelecer o pertencimento de classe dos trabalhadores não-

manuais. Para este autor, os trabalhadores não manuais seriam uma “nova pequena

burguesia” haja vista as “disposições ideológicas” que os polarizava tanto em

relação à classe operária quanto em relação à burguesia, mas os aproximava da

pequena burguesia.

[...] disposições ideológicas comuns unificariam a pequena burguesia tradicional e os assalariados não-manuais em uma nova classe – denominada por ele de ‘nova pequena burguesia’. O individualismo pequeno-burguês, a ideologia da ascensão social, a meritocracia e o mito do Estado protetor comporiam os traços ideológicos principais da nova pequena burguesia. (TRÓPIA, 2007, p.07)

Ainda que rompam com um critério restrito como o assalariamento para

determinar o pertencimento de classe e também compreendam classe como

relações econômicas, políticas e ideológicas, Olin Wright e Décio Saes não

concordavam com a definição de Poulantzas de que os trabalhadores não manuais

que emergem no século XX seriam uma nova classe pequeno burguesa. Contudo,

muito menos concordavam entre si, tendo o primeiro defendido a proletarização

destes trabalhadores e o segundo a ideia de uma classe média propriamente dita

(TRÓPIA, 2007)

A preocupação destes pesquisadores marxistas seria refletir até que ponto

estes trabalhadores improdutivos teriam um comportamento político capaz de se

alinhar aos interesses do projeto socialista. As pesquisas qualitativas de Wright o

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levaria a entender que existiam disposições ideológicas de unidade entre

trabalhadores manuais e não manuais, qual seja, o fim da exploração. Assim os

trabalhadores improdutivos cujo trabalho não é de supervisão/gerência, nem dotado

de autonomia, pertenceriam ao proletariado.

Ele pergunta-se: faltará aos trabalhadores improdutivos em geral um interesse de classe no socialismo? A resposta a esta pergunta foi, em seu primeiro trabalho, teórica. Tanto faz para o capital, se o trabalhador produz mais-valia diretamente – assalariado produtivo – ou apenas reduz os custos para o capitalista se apropriar de parte da mais-valia produzida em outro setor – assalariado improdutivo. O capitalista tudo fará para aumentar a produtividade, estender a jornada de trabalho, levar os salários aos mais baixos patamares e, finalmente, eliminar todas as possibilidades de controle do processo de trabalho. Há uma coincidência de interesses entre produtivos e improdutivos e, portanto, de atitudes de classe face ao socialismo: este último seria concebido por todos os assalariados como requisito para eliminar a exploração. (TRÓPIA, 2007, pp.07,08)

Por sua vez, Décio Saes reacendeu a polêmica ao criticar Poulantzas, a

despeito de reconhecer suas contribuições e de se valer de seu instrumental teórico,

não atribuía as características das novas ocupações ligadas ao trabalho não manual

emergentes do século XX ao pertencimento da pequena burguesia. Para Saes, os

assalariados não manuais que Poulantzas denomina nova pequena burguesia não

possuiriam a noção de individualismo de pequeno proprietário. Os trabalhadores não

manuais, que crescem em meados do século XX, teriam uma ideologia própria,

distinta tanto da pequena burguesia quanto do operariado: a meritocracia.

Apontando a heterogeneidade política e ideológica da classe trabalhadora, Saes

admite, portanto, a existência de classes intermediárias e, ao incorporar o conceito

de classe média, busca compreender a heterogeneidade política no interior da

classe trabalhadora, ou ainda as barreiras à unidade político-ideológica entre os

trabalhadores. Seguindo a trilha aberta por Saes, Armando Boito destaca que:

Classe média seria uma “noção prática” para indicar comportamento político e ideológico específico, guiado por uma “consciência meritocrática”, típico de um setor dos trabalhadores assalariados, comportamento esse que os distinguiria dos trabalhadores manuais (BOITO,2007,p. 230).

Saes entendia que a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo,

desenvolvida por Marx no capítulo VI inédito de O Capital, teria sido insuficiente para

associar os trabalhadores a diferentes classes. Assim, o fato de não participarem

diretamente da produção da mais-valia não era fator determinante da produção de

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uma orientação ideológica e comum entre os trabalhadores improdutivos, de modo

que não houve uma coincidência entre trabalho improdutivo e classe média. Como

destaca Trópia (2008), a separação ideológica é melhor compreendida pelas

categorias trabalho manual e não manual:

A separação entre trabalho manual e trabalho não-manual aparece para tais

trabalhadores como uma hierarquia natural fundamentada nos dons e nos méritos

pessoais. Porém, precisamente, a ideologia da meritocracia revela que:

À medida que apaga da consciência destes trabalhadores o fato de serem explorados tanto quanto os assalariados produtivos, substitui tal contradição pelas diferenças: o sentimento de superioridade, o preconceito, a marginalização social e inúmeras formas de segregação social – representações sociais tão comuns entre os assalariados não-manuais – seriam reações à igualização social dos trabalhadores. Os assalariados não-manuais, por estarem sob efeito da ideologia da meritocracia, concebem suas relações de trabalho como relações entre pessoas ou, no limite, como relações entre grupos profissionais, bem como as desigualdades sociais como diferenças de capacidades, oportunidades, talentos, dons, vontades, esforços; enfim diferenças individuais. Assim, seria a submissão à ideologia da meritocracia o elemento que definiria a inserção dos setores médios – isto é, dos assalariados não manuais – numa classe específica. (TRÓPIA, 2007, p. 09)

Como vemos, tanto as leituras weberianas quanto as marxistas, ao romperem

com uma análise restrita à condição de assalariamento ou nível salarial, passam a

incorporar noções da política e da ideologia como necessárias à produção das

desigualdades de classe. Essas noções possibilitaram pensar a ação política dos

diferentes trabalhadores ou, como ressaltou Estanque, expressavam análises

vinculadas ideologicamente a uma certa visão de sociedade. A alteração da

estrutura de classe sempre ressuscitaria a pertinência destes fundamentos analíticos

da teoria das classes, pois revelaria o movimento desta dinâmica econômica, política

e ideológica, que produz e reproduz as desigualdades entre os sujeitos. Mas a

ideologia meritocrática seria um ponto de consenso no interior das teorias das

classes, ou seja, representaria uma unidade analítica para a definição de classe

média.

O pesquisador Armando Boito Jr. (2007) afirmou que persistiriam diferenças

entre o pensamento marxista e weberiano, uma vez que o termo ideologia na teoria

marxista tem conotações distintas. Enquanto a teoria weberiana, a desigualdade era

vista como resultado de méritos e talentos individuais, sendo, portanto natural, para

o pensamento marxista a meritocracia seria uma ideologia no sentido de ideias e

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valores que mistificam a realidade, ocultando a percepção da desigualdade como

resultado de uma relação social e não individual. Em segundo lugar, na visão

marxista uma ideologia estaria sempre a serviço de privilegiar os interesses de um

grupo, no caso, os trabalhadores não-manuais.

Assim, de acordo com Boito, esta ideologia até pode ser incorporada por

outras classes, mas seria necessário afirmar que ela só seria funcional à classe

média, que “tem interesse em difundi-la, [ao passo que] o operariado é levado a

resignar-se com a suposta superioridade do trabalho não-manual” (BOITO, 2007,

p.232). Cabe ainda notar que ela é diferente da ideologia burguesa de exaltação do

trabalho em geral, e não apenas do intelectual.

A ideologia burguesa de exaltação do trabalho sugere que as desigualdades sociais e econômicas provem da desigual capacidade de trabalho dos indivíduos. O homem rico é porque trabalhou e trabalha muito. Há no limite, as fábulas edificantes do self-made man, dos capitalistas que se fizeram a partir do nada, graças ao próprio trabalho. [...] Em suma, na “sociedade do trabalho”, noção burguesa que esconde ser a “sociedade do capital”, quer se apresentar o trabalho como a fonte de toda a riqueza; mas o trabalho em geral, e não o trabalho intelectual. É certo que os trabalhadores de classe média partem da valorização da mistificação burguesa do trabalho, isto é, é certo que esses trabalhadores são dependentes ideologicamente da burguesia. Porém, eles chegam a um resultado especifico e particular: a valorização do trabalho intelectual em detrimento do trabalho manual, isto é, produzem uma variante especifica, de classe média, do culto ao trabalho. [...]Não se trata portanto, nem da ideologia burguesa da ascensão pela trabalho, que mistifica o poder do trabalho geral, nem da ideologia proletária, que enaltece o trabalho como critério de participação política e econômica em oposição aos proprietários e ao parasitismos social. (BOITO, 2007, p.233-234)

Tal ideologia meritocrática faz com que estes trabalhadores não manuais

tendam a se distanciar de uma reivindicação socialista ou ação sindical uma vez que

a desigualdade seria resultado de um processo natural, correspondente a dons e

méritos.

Mas a meritocracia não foi considerada em termos de determinação. A

barreira ideológica que definia classe não seria algo intransponível, em se tratando

da posição política dos sujeitos. Tanto a situação econômica (inserção na produção)

quanto a situação de trabalho (socialização do trabalho, nível salarial, qualificação e

conteúdo do trabalho – complexidade, autonomia, direção e controle) teria potencial

para mobilizar a classe. Não menos importante para uma análise das classes sociais

seria tomar em conta o contexto histórico, pois, a “mobilidade depende tanto da

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situação de trabalho quanto da conjuntura específica da luta de classes”. (BOITO,

2007, p. 235)

Assim, levando em conta os contextos históricos para a análise das classes

sociais, parte-se do problema de que o crescimento numérico dos trabalhadores

assalariados não-manuais ao longo do século XX ensejou a polêmica acerca de seu

pertencimento de classe. É necessário, pois, compreender como as transformações

do capitalismo monopolista e sua repercussão nas relações de produção alteram a

dinâmica das relações de classe dadas anteriormente.

Entre o final do século XX e o início do século XXI o capitalismo sofre novas

transformações, tanto na forma de organização do trabalho, passando do fordismo

para a produção flexível, como no plano político-institucional, com a crise do Estado

Providência e a ascensão do neoliberalismo.

Como podemos perceber, as alterações na estrutura ocupacional sempre

suscitaram um amplo debate dentro da teoria das classes sociais e têm importância

notória para a compreensão da dinâmica das desigualdades e dos conflitos políticos

na sociedade. É com esse olhar que discutiremos a alteração na base da pirâmide

social que marcou a vida de milhões de brasileiros no primeiro decanato dos anos

2000, foi reconhecida pelos analistas brasileiros mencionados nesta dissertação.

Se por um lado, esses autores negam o conceito de nova classe média, por

outro não negam que houve uma mobilidade no interior da classe trabalhadora. O

que, então, a teoria de classes adotada por Pochmann, Quadros, Souza e Singer

revelou sobre a estrutura de classes no Brasil neste início de século? Se o aumento

da renda, do acesso a bens duráveis e serviços, além do aumento da oferta de

empregos com carteira de trabalho assinada, não levaram à formação de uma “nova

classe média”, então como interpretar essas mudanças?

Para refutar a tese da “nova classe média”, esses pesquisadores, de alguma

forma, adentraram no debate sobre a classe média, a fim de esclarecer as razões de

seu posicionamento discordante, ou para além disso, buscarem apresentar ainda

outras teses.

Como já vimos, os autores apontam o “absurdo” de denominar faixas de

renda como classe e resgatam o debate sociológico das classes sociais, em

particular das classes médias e trabalhadora, de forma a explicitar que o conceito se

define a partir de elementos histórico-sociais, sendo um conceito dinâmico e não

estático.

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Assim, existia um eixo comum na construção da argumentação que negava a

noção de que as mudanças econômicas e sociais, no período de 2003 a 2012,

tenham provocado uma mobilidade ascendente das classes populares em direção à

classe média. É possível perceber, portanto, que todos, com maior ou menor ênfase,

consideraram como um elemento definidor da classe média tradicional a distinção

entre os trabalhadores assalariados, entre manuais e não manuais, no processo

produtivo capitalista. Contudo, segundo os pesquisadores fez-se necessário levar

em conta as mudanças no capitalismo do século XX para o século XXI.

3.3. Mudanças no Capitalismo: do Fordismo à Produção Flexível

Os economistas Waldir Quadros e Marcio Pochmann apontaram que o

pensamento econômico seria dominado pela abordagem neoclássica, que definia

classe por uma percepção monetária. Contrários a esse movimento teórico, optam

por uma abordagem mais sociológica, se aproximando da proposição do sociólogo

Wright Mills. Este teórico foi o fundador do conceito nova classe média, elaborada

para explicar a forte expansão das ocupações de colarinho branco, ou, White

Collars, nos Estados Unidos da América (EUA) decorrente da Segunda Revolução

Industrial que leva, no início do século XX, ao fordismo. Apesar de usar da mesma nomenclatura, a nova classe média de Neri pouco

ou nada teria dos fundamentos analíticos elaborados por Mills. Enquanto o primeiro

definia a classe por renda, este último, ao introduzir o termo nova classe média,

estaria olhando para a estrutura sócio-ocupacional.

Ao se apropriarem desta abordagem teórica, Quadros, Antunes e Gimenez

trouxeram noções de nova classe média para analisar o Brasil dos anos 2000, tendo

em conta a necessidade de mediação para usar um conceito tão elástico. A nova

classe média seria, nestes termos:

O conceito de nova classe média – classe social que não é proprietária dos meios de produção e que também não trabalha na fábrica com as mãos, como o operário – é amplo o suficiente para incluir ocupações as mais diversas e rendimentos os mais díspares: do vendedor de loja ao diretor do grande banco, do office boy ao advogado do grande escritório. (QUADROS; ANTUNES & GIMENEZ, 2012, p. 7)

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Nessa perspectiva, a ocupação seria um meio fundamental de ascensão

social; estas delimitariam o espaço possível para os indivíduos lutarem por

oportunidades e dinheiro, sendo, depois da propriedade, uma das principais bases

da desigualdade social. Um país com boa estrutura ocupacional ofereceria a

oportunidade de ascensão social para a formação de uma classe média. Por fim, a

existência desta classe média seria indicador do “bem-estar social e do

desenvolvimento material alcançado por uma sociedade” (QUADROS; ANTUNES &

GIMENEZ, 2012, p. 7)

Para Quadros, Antunes e Gimenez, tratar da ocupação extrapolaria dados

estatísticos sobre renda e emprego, pois, envolveria, ainda mais, a dinâmica política

da sociedade. A expansão das ocupações não seria produzida livremente pelo

mercado, como defendiam alguns economistas, pois o Estado teria papel

determinante:

[...] dentro de determinada conformação material, também tem papel decisivo na estruturação econômica, social, urbana, ocupacional. E, por conseguinte, na desigualdade, na pobreza, na melhora social (QUADROS; ANTUNES e GIMENEZ, 2012, p.7).

Sob tal perspectiva, a “nova classe média” que se formara nos Estados

Unidos da América (EUA) no início do século XX, teria sido resultado não apenas do

fordismo, mas da estrutura política que o regulava, a era Roosevelt. Assim,

enquanto o modelo fordista promovia o aumento dos salários, a delimitação da

jornada de trabalho e a possiblidade de consumo de massas, a política de governo,

os White Collar, mediante a geração de empregos públicos, ao mesmo tempo,

convivia com a pobreza e parcas medidas de proteção social, produzindo um

“quadro estrutural de desigualdade social, política, racial etc.” (QUADROS;

ANTUNES e GIMENEZ, 2012, p. 7)

Esse processo foi diferente na Europa, na medida em que o período de

crescimento econômico, denominado de Trinta anos Gloriosos, teria dado origem a

uma nova classe média bem diferente da estadunidense. Neste contexto, o regime

político de Estado Democrático de Bem-Estar garantia ampla proteção social aos

seus cidadãos, de forma que a classe média possuía uma renda pouco diversa da

do operário e à da base do mercado de trabalho. Assim tinha reduzida capacidade

de diferenciação de consumo.

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No Brasil, a constituição de uma nova classe média, nem proprietária nem

trabalhadora manual, teve seu momento mais expressivo de formação entre 1960 e

1970, durante o período denominado de Milagre econômico. Neste período, houve a

ampliação de empregos urbanos baseados nas ocupações de “colarinhos brancos”,

cuja renda e acesso ao consumo constituíam uma forma de distinção social. Esta

nova classe média não se comparava ao padrão de renda e consumo

estadunidense, possibilitados pelo fordismo, e nem possuía a proteção social do

Welfare State europeu:

Logo, fica claro que nova classe média não é a mesma em diferentes países. A brasileira tem pouca semelhança com a europeia, se aproximando mais da norte-americana, ainda que de modo caricatural. Da mesma forma, diferentes momentos históricos implicam diferentes estruturas socioeconômicas (QUADROS; ANTUNES & GIMENEZ, 2012, p. 8).

Assim, percebemos nesta abordagem que os critérios como renda e consumo

não definiam, per si, a distinção social de um segmento. Se nos Estados Unidos da

América e no Brasil observava-se uma diferenciação monetária entre os

trabalhadores, na Europa esse critério não revelava as reais desigualdades de

classe.

Cabe notar, então, que conforme esta interpretação, a produção de riqueza

nacional, de forma a garantir o crescimento econômico, foi assegurada pelo Estado.

Sua atuação impactaria na estrutura produtiva e ocupacional, lugar estruturante das

desigualdades de classe. Todos estes conceitos seriam suscetíveis de

transformação no tempo, sendo classe, portanto, um conceito dinâmico, que deve

acompanhar as diferentes estruturas socioeconômicas em diversos momentos

históricos.

Seguindo essa perspectiva, Pochmann teorizou acerca do conceito de classe

média em relação à formação de diferentes estruturas sociais, conforme cada fase

de desenvolvimento do capital e cada modelo político correspondente. Assim, o

autor dividiu sua análise em quatro tempos:

1- o capitalismo da livre concorrência;

2- o capitalismo oligopolista;

3- o capitalismo pós-industrial;

4- o capitalismo monopolista transnacional.

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O capitalismo de livre concorrência teria sido o período em que ocorrera a

primeira Revolução Industrial e tecnológica na Inglaterra. Neste contexto, a estrutura

social transitou de um sistema de produção feudal e rural para uma sociedade

urbana e industrial. Assim, partiu de uma composição social na qual os sujeitos eram

servos para a constituição de uma sociedade de operários. A classe média seria,

nesse processo, resultado de um duplo movimento, a permanência da nobreza

feudal e a “própria burguesia nascente constituindo-se por industriais e comerciantes

capitalistas emergentes” (POCHMANN, 2014, p. 21).

Para além da industrialização anglo-saxã, ocorreu, também, de forma

retardatária, a industrialização na Alemanha, França e Estados Unidos, o que

fomentou novas interpretações sobre o conceito de classe sociais. Os anarquistas

do século XIX tratam da classe média de serviços “associada ao desenvolvimento

dos serviços urbanos, portadores da autogestão no interior do próprio trabalho”.

Estes segmentos médios são compostos “por trabalhadores intelectuais com

interesses materiais e perspectivas ideológicas comuns” e diferentes das do

operariado e da burguesia. (POCHMANN, 2014, p. 21).

A Segunda Revolução Industrial, denominada por Pochmann como o período

de Capitalismo Oligopolista, data da segunda metade do século XIX até meados do

século XX. Foi a ocasião da industrialização, ainda que retardatária, de países como

Itália, Rússia e Japão. No mesmo período constituíram-se grandes empresas

capitalistas, que passam a competir em uma estrutura oligopolizada. Nesse sentido,

a industrialização representou a chegada, nestes países, da estrutura social urbana

e industrial. E ainda a constituição de uma nova técnica gerencial, o fordismo, e com

isso um novo conjunto de ocupações que impacta na estruturação social.

O preço da mão de obra empregada tornou-se custo fixo na grande empresa, cujo contingente de ocupados passou a milhares, contrastando com o perfil das micro e pequenas empresas vigentes até ali. Neste sentido, a administração de múltiplas tarefas associadas às grandes empresas determinou o aparecimento de novas ocupações tecnificadas da produção para além das necessidades do chão fábrica, como é o caso da supervisão, gerência e diretoria, entre outras tarefas da burocracia empresarial nas áreas de vendas, recursos humanos, compras, marketing, etc.” (POCHMANN, 2014, p. 22).

Concomitante à formação do novo contingente de quadros de nível técnico e

superior nas grandes empresas privadas, cresceram, também, as ocupações de

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classe média na esfera pública. O Estado, que, no período do capitalismo de livre

concorrência, era mínimo, se transformava ao ampliar suas funções. Saúde,

educação, assistência. Surgia o Estado Democrático de bem-estar social,

responsável por “cerca de um quarto da população ocupada”, representando “o

principal espaço de absorção da mão de obra qualificada e de empregos de maior

remuneração” (POCHMANN, 2014, p. 23).

A criação destas ocupações no âmbito público e privado gerou um amplo

debate sobre as classes sociais no capitalismo, permitindo “ampliar a definição de

classe operária para a de classe trabalhadora” ou desencadear as controvérsias

sobre o surgimento de uma nova classe média.

[...] relacionada as ocupações de gestores e técnicos não diretamente associados à relação capital-trabalho, ainda que submetidos às condições gerais de reprodução ampliada do capitalismo (POCHMANN, 2014, p.23).

Segundo Pochmann (2012, 2014) a leitura de Neri levaria a crer que, a

ampliação dos postos de trabalho de classe média e o movimento de

homogeneização do assalariamento regulado, como um processo de “medianização

da sociedade”. Essa ideia partiria da experiência de equalização social perceptível

principalmente, nos países em que o Estado de bem-estar social havia promovido

políticas de garantia de renda e consumo de massa, de forma a reduzir o grau de

polaridade entre operários e burgueses, com elevação da renda, pleno emprego e

consequente redução da pobreza absoluta, em um contexto de crescimento

econômico, os chamados Trinta anos Gloriosos (1945 -1975) (POCHMANN, 2014, p.

24).

O modelo fordista foi, portanto, o marco do debate do surgimento da “nova

classe média”, uma vez que constatava a fragilidade da tese da estrutura de classes

polarizada entre operários e burgueses, trazendo à tona a ampliação de ocupações

consideradas intermediárias. Isso levou os analistas a ampliarem o conceito da

classe trabalhadora, ou a desenvolver o conceito de “nova classe média”, agora não

mais como classe provisória, mas como parte estrutural da sociedade capitalista do

século XX.

Pochmann apontou ainda para outras duas fases, o capitalismo pós-industrial

e o capitalismo monopolista transnacional, que trouxeram novas transformações

para o conceito de classe média. As novas alterações da estrutura econômica e

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política capitalista pós-Segunda Guerra até o século XXI se expressavam na

transição do fordismo para o toyotismo, do Estado de Bem-Estar para o Estado

neoliberal.

O capitalismo pós-industrial, segundo Pochmann, é a tese decorrente de um

contexto da industrialização tardia (1939-1945) em países não centrais, como na

América, na Ásia e na África, além da reconstrução da Europa pós-Segunda Guerra

Mundial. Porém, fundamentalmente, a partir do decréscimo das ocupações no setor

industrial e do crescimento do setor terciário. Surgia, assim, a interpretação de que,

com a “elevação significativa dos serviços em atividades de produção, distribuição,

social e pessoal”, a nova classe média dos serviços, influenciada por esta sociedade

pós-industrial expressaria a mudança do conflito entre “detentores e não detentores

das informações estratégicas”, isto é, não mais entre o capital e o trabalho

(POCHMANN, 2014, p. 25).

Diferentemente do processo dado pelo fordismo, a formação de uma nova

classe média, constituída por um conjunto de assalariados intelectuais e detentores

do poder informacional, com “significativo poder sobre as formas de controle e

técnicas racionais de dominação” foi utilizada por alguns estudiosos para defender a

tese da “medianização” da sociedade. Tal concepção de “medianização”, contudo, é

controversa, pois suporia uma estrutura produtiva descentralizada, não hierárquica e

pós-industrial, que teria conformado uma nova estrutura social na qual o conflito

capital-trabalho não teria mais lugar.

Pochmann, porém, não descartava a persistência do conflito capital-trabalho,

pois entendia que as transformações sofridas pela classe trabalhadora, diante das

alterações no interior do próprio capital, e influenciada pela “revolução

informacional”, não promoveram uma “alteração profunda no modo de exploração

dos assalariados” (POCHMANN, 2014, pp. 26/27).

O capitalismo monopolista transnacional expressa a diversificação das

estruturas sociais e de uma nova divisão internacional do trabalho no século XXI,

com o deslocamento da produção da riqueza material, o que teria gerado

transformações na estrutura social global. O papel do Estado se reorienta para a

promoção de políticas neoliberais, favorecendo o avanço da “globalização

desregulada cada vez mais orientada pelo poder da grande corporação

transnacional”, permitindo a livre circulação de capitais entre nações, de forma que a

maior autonomização das empresas internacionais ocorre concomitante a um

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deslocamento físico das plantas industriais que saem do antigo “centro do

capitalismo estadunidense para regiões periféricas, sobretudo asiáticas”.

(POCHMANN, 2014, p. 31).

O impacto disso sobre as classes médias formadas anteriormente no fordismo

(assalariados não proprietários) seria a sua decomposição. Interferem nesse

processo a massificação do ensino técnico e superior e a consequente

desvalorização dos diplomas, além da precarização generalizada dos postos de

trabalho.

A transição da sociedade industrial para a sociedade de serviços no século

XXI daria novos contornos à classe média. A dominância do sistema toyotista de

produção geraria a instabilidade nos “destinos ocupacionais”, com a retirada da

proteção do Estado e da regulação pública (POCHMANN, 2014, p. 31).

O debate sobre a sociedade de serviços foi permeado de controvérsias, que

incluía a crença de que as atividades de prestação de serviço indicariam a

predominância do trabalho imaterial, em oposição à produção material. Isso seria

resultado de uma revolução informacional, que acarretaria a decomposição da

estrutura de classes sociais.47

Diante dessa mudança, estudiosos do trabalho imaterial como os filósofos

Negri, Lazzarato e Gorz, e sociólogo Lojkine questionaram a persistência da

utilização “das clássicas categorias de classe social, conformadas anteriormente

pela dinâmica própria do capitalismo industrial”, o que teria levado a um “paradoxo

diante do instrumento analítico” (POCHMANN, 2014, p. 33). Pesa, ainda, para a

análise das classes sociais, pensar a estrutura social de países subdesenvolvidos,

como o Brasil. Isso porque esses países vivem a realidade de uma industrialização

47 Seguindo essa problemática Coutinho afirma que, para Negri e Lazzarato, “o trabalho imaterial é o trabalho que produz o conteúdo informacional e cultural da mercadoria”, no qual o sujeito e a produção se relacionariam “em termos de independência com relação ao tempo de trabalho imposto pelo capital [...] e em termos de autonomia com relação à exploração” (apud COUTINHO, 2016, p.53) ou como reflete Gorz, o trabalho imaterial caracteriza-se pela imensurabilidade do tempo necessário de produção. De tal forma, ao se pautar no trabalho criativo a atividade seria autônoma ao mesmo tempo em que propenso à socialização e cooperação de saberes, incentivando uma “comunidade comunicacional, organizativa e relacional (Apud COUTINHO, 2016, p.54). Essas alterações no trabalho levariam a uma alteração nas relações de classe. Contribuiria ainda para a reflexão o pensamento do sociólogo Jean Lojkine e que a informação, por ser imaterial, estaria impedida de tomar a forma de mercadoria, de modo que a revolução informacional seria o “anúncio e a potencialidade de uma nova civilização, pós-mercantil” em que as classes sociais se dissipariam em um “conjunto das subjetividades produtivas e criativas” da sociedade global (apud COUTINHO, 2016, p. 54)

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tardia e ainda incompleta em pleno século XXI, ou ainda, por um processo de

desindustrialização. Nesse sentido, expressam em seus territórios trajetórias sociais

que não podem ser encontradas nos “estudos originados nas nações ricas”

(POCHMANN, 2014, p. 33).

Pochmann tem defendido, nesse contexto, a persistência da teoria das

classes sociais. Se a classe média foi promovida “pelo vigor do capitalismo

industrial”, nos países em “ritmo de desindustrialização”, ela tenderia a se contrair e

perderia a importância na estrutura social. Assim, o que estaríamos assistindo, no

capitalismo transnacional no século XXI, com a passagem de sociedades industriais

para a de serviços, seria o deslocamento geográfico global da produção de

manufatura. Enquanto alguns países passariam por um processo de

desindustrialização, outros, principalmente na Ásia, teriam recebido as matrizes

industriais. Nestas sociedades cresceria a relevância da classe média não

proprietária (POCHMANN, 2014, p. 38).

A análise do sociólogo Jessé de Souza (2012) também comungaria da ideia

de que a estrutura de classe seria resultado do modo de produção capitalista, em

que as profundas transformações de suas formas, de tempos em tempos, daria

origem a “novas” classes. Para analisar a formação das classes sociais no Brasil do

século XXI, o autor retomava o paradoxo analítico de não ter-se “os conceitos e as

ideias novas necessárias para pensar o realmente ‘novo’ nesse mundo em

ebulição”, diante da “instauração de uma nova forma de capitalismo no Brasil e no

mundo” (SOUZA, 2012, p.19). A definição de classe em Jessé de Souza partindo do

arcabouço de Pierre Bourdieu, busca identificar os habitus constituídos pela

apropriação diferencial de capitais impessoais (capital econômico e capital cultural),

trabalhando, assim, com a ideia de que existiriam classes positivamente e

negativamente.

Dessa forma, Souza entendia que a reprodução da classe se daria pelo

processo de socialização familiar, diferente em cada classe social. Trata também de

como os “capitais impessoais” seriam diferencialmente apropriados neste campo, de

forma a constituir uma hierarquia social própria. A classe alta seria aquela que se

apropriava de capital econômico, em grande parte pela herança de sangue, sem,

necessariamente deter capital cultural. A classe média se distingue das outras

classes em função, primordialmente, da apropriação diferencial de capital cultural. A

ralé, por sua vez, seria formada por aqueles desprovidos tanto de capital econômico

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quanto de cultural, além das precondições sociais, morais e culturais que lhe

permitiriam se apropriar desses capitais (SOUZA, 2012, p. 25)

Essa abordagem conceitual se contrapunha tanto à concepção liberal

conservadora – classe definida por renda e consumo – quanto à de um “marxismo

enrijecido” – classe como lugar na produção. Ambas as concepções se

fundamentariam em certo economicismo48, que reduzia a realidade a uma

“quantificação” inviabilizando a luta de classe. A “cegueira” se dava em relação aos

valores imateriais necessários para a reprodução das classes sociais e de seus

privilégios no tempo, isto é, a classe como gênese social e cultural. Para se formar

um indivíduo produtivo que aceite a sua condição de desigualdade e exploração, ou,

ainda, para o acesso privilegiado a recursos não disponíveis a todos por outros

segmentos sociais seriam necessários mecanismos não só econômicos, mas

também emocionais e morais que se reproduziriam culturalmente como espíritos de

uma época e legitimariam a ordem econômica e social.

Segundo o autor, estas definições ganhariam o senso comum, porém, seriam

visões superficiais, visto que reduziriam a classe à sua dimensão econômica, em

que “os privilégios que diferenciam as classes são transferidos por meio de objetos

materiais” (SOUZA, 2012, p. 23), e se esquecem que a classe que monopoliza certo

capital também herdaria um “estilo de vida” que lhe seria transferido não por meios

materiais, mas imateriais e que garantiriam a sua reprodução enquanto classe.

Mesmo que “a riqueza material seja o fundamento de todo o privilégio, o que

permitiria a reprodução deste capital material é antes uma herança imaterial”

(SOUZA, 2012, p. 23).

Ao contrário da classe alta que herda bens materiais, a reprodução da classe

média se daria por transmissão afetiva, cotidiana, dentro do espaço privado da casa.

O processo de identificação afetiva seria um processo natural e pré-reflexivo (a

criança nasce e imita aqueles com quem convive) e isso se tornaria uma vantagem

na competição social, uma vez que as precondições de disciplina e concentração

para o estudo e trabalho já teriam sido aprendidos no círculo social. Ou seja, o

48 Em suas palavras “O que o liberalismo economicista dominante faz é “dizer” que existem classes e negar, no mesmo movimento, a sua existência ao vincular classe à renda. É isso que faz com que os liberais digam que os “emergentes” são uma nova classe média”. Mas também o marxismo enrijecido não percebe as novas realidades de classe porque as vincula ao lugar econômico na produção e, engano mais importante e decisivo ainda, a uma “consciência de classe” que seria produto desse lugar econômico.(SOUZA, 2012, p. 22). Contudo, como vimos, essa não é a única concepção de classe no interior do marxismo.

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capital cultural seria fundamentalmente transmitido na socialização familiar, por

herança imaterial. Como esse é um processo invisível, a distribuição diferencial de

privilégios aparentaria ser decorrente de um mérito individual.

Essa classe social, ao contrário da classe alta, se reproduz pela transmissão afetiva, invisível, imperceptível porque cotidiana e dentro do universo privado da casa, das precondições que irão permitir aos filhos dessa classe competir, com chances de sucesso, na aquisição e reprodução de capital cultural. O filho ou filha da classe média se acostuma, desde tenra idade, a ver o pai lendo jornal, a mãe lendo um romance, o tio falando inglês fluente, o irmão mais velho ensinando segredos do computador brincando com jogos. O processo de identificação afetiva – imitar aquilo ou a quem se ama – se dá de modo “natural” e “pre-reflexivo”, sem a mediação da consciência, como quem respira ou anda, e é isso que o torna tanto invisível quanto extremamente eficaz como legitimação do privilégio (SOUZA, 2012, p. 24).

A grande questão para esta abordagem estaria no fato de que a classe se

constituiria como “estilo de vida” através de socialização familiar. A classe teria sido

construída de tal forma que, para os indivíduos, a distinção social se tornaria algo

natural. O capital cultural seria apreendido na identificação afetiva com os pais. Não

haveria, nesse ponto de vista, como se desenvolver uma “consciência de classe”. As

vantagens na competição social são vistas como méritos individuais. E a

meritocracia tanto justificaria a posição dos sujeitos na hierarquia, quanto legitimaria

a atividade econômica capitalista e a existência das desigualdades.

A economia capitalista apareceria, assim, como um espaço neutro, quando,

na verdade, seria uma esfera tanto da produção material quanto simbólica da vida,

na medida em que buscaria justificar e conferir sentido à acumulação de capital. Em

outras palavras, buscaria uma legitimação moral. O capitalismo seria, assim, um

sistema de dominação não apenas econômico, mas também moral, e essa dupla

dimensão constituiria as classes sociais.

A explicação para isso é simples. Pode-se obrigar as pessoas a irem ao lugar de trabalho e, se houver controle e vigilância constantes (o que envolve custos crescentes), pode-se obriga-las a realizarem seu trabalho porque necessitam do salário para aplacar a fome. Mas isso seria pouco. Como qualquer sistema de dominação eficiente e que pretende se reproduzir no tempo, o capitalismo necessita se legitimar, ou seja, fazer com que as pessoas acreditem no que fazem e que, se possível, se empenhem o máximo possível naquilo que fazem. O sucesso do capitalismo não pode sequer ser compreendido sem o trabalho de legitimação prévio no sentido de ganhar a boa vontade, adesão ativa e o comprometimento de seus participantes (SOUZA, 2012, p. 27).

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Foi com este arcabouço que Jessé de Souza fez uma retrospectiva das fases

do capital na formação das estruturas de classe, em específico da fase anterior, o

“fordismo”, para poder refletir sobre a nova forma de produção capitalista e, assim,

sobre as “novas” classes no século XXI.

O modo de produção fordista expressa, segundo Souza, além de uma nova

forma de controle da atividade produtiva, uma nova forma de dominação, baseada

na formação de um mercado consumidor de massas. Conforme observara Gramsci,

o fordismo também teria produzido “uma nova estética, uma nova psicologia e um

novo estilo de vida em todas as dimensões” (SOUZA, 2012, p. 33), por meio de um

compromisso entre capitalistas e trabalhadores para sustentar a produção em

grande escala.

Henri Ford introduziu a jornada de 8 horas de trabalho e o salário diário de 5 dólares (120 dólares segundo padrão atual). Nasce ali um novo tipo de compromisso entre os capitalistas e os trabalhadores, no qual o trabalho disciplinado, hierárquico e repetitivo das fábricas era “comprado” por bons salários, tempo para lazer e oportunidades efetivas de consumo de bens duráveis e conforto da classe trabalhadora americana. Ultrapassando assim as paredes das fábricas (SOUZA, 2012, p. 33).

Para o sociólogo, seria necessário perceber que classe também tem uma

gênese cultural. A “nova classe média” do fordismo, formada por gerentes,

executivos, engenheiros, existe porque teria forjado um novo acordo entre

trabalhadores e capitalistas, e com ele novas ideias e valores que organizariam a

sociedade. O trabalhador incorporaria ideias, que ganhariam sua “boa vontade”,

apesar da distribuição diferencial de privilégios entre os que trabalham no chão de

fábrica e os que exercem o controle de suas atividades49.

Com o fordismo, nascia o “mito americano” de progresso e felicidade

individual, ainda que reduzido à ideia de consumo. (Souza, 2012, p.33/34). Uma

visão de mundo que conquistaria o consentimento da sociedade a respeito de

alguns terem acesso positivamente privilegiado ao capital econômico e cultural, e

outros não.

As novas formas do capital seriam decorrentes de suas crises que, por sua

vez, seriam tanto materiais quanto simbólicas. A renovação histórica do capitalismo

49 Haveria ainda uma diferenciação entre trabalhadores de diferentes empresa, aqueles das grandes indústrias, recebiam “bons salários”, o setor chamado por alguns de “competitivos”, não conseguiam cumprir o acordo fordista e ofereciam aos trabalhadores baixas remunerações. (Souza, 2012, p. 33)

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só estaria garantida quando da elaboração de uma nova forma de controle e

produção, mas também de uma nova justificação moral que atenue os conflitos de

classe. O fordismo teria entrado em crise tanto pela dificuldade de manter os

compromissos com os trabalhadores e sustentar a taxa de lucro, diante da crise do

petróleo, quanto pela própria resistência dos trabalhadores ao controle e

disciplinarização, além da crítica da juventude à sociedade hierárquica e de controle

que inibia a criatividade e a autonomia. O capitalismo, para Souza, sobreviveria

então, pela capacidade de absorver as críticas e se reconstituir, renovando sua

forma de dominação:

Nesse sentido não é de modo algum surpreendente que a nova forma que estava destinada a substituir o fordismo fosse a chamada lean production, produção flexível, fundamentava-se precisamente na não necessidade de pessoal hierárquico para o controle e disciplina do trabalho, permitindo cortes substanciais dos custos da produção e possibilitando contar apenas com os trabalhadores diretamente produtivos [...]. O Toyotismo pós fordista permitia não apenas cortar gastos com controle e vigilância, mas, mais importante ainda, ganhar corações e mentes dos próprios trabalha-dores. A adaptação ocidental do toyotismo implicou cortar gastos com controle e vigilância em favor da auto-organização “comunicativa” dos trabalhadores através de redes de fluxo interconectados e descentralizados (SOUZA, 2012, pp.36/37).

Assim, entre as últimas três décadas do século XX e o início do século XXI

surgia uma nova forma capitalista, inédita não apenas em relação às alterações nas

técnicas do processo de gestão da produção, mas também por possuir um novo

“espírito” que daria sentido à prática social dos sujeitos que incorporariam essa nova

forma.

Palavras de ordem como criatividade, espontaneidade, liberdade, independência, inovação, ousadia, busca do novo, etc. O que antes era crítico do capitalismo se tornou afirmação do mesmo, possibilitando a formação semântica da acumulação do capital (SOUZA, 2012, p. 38).

Para entendermos melhor a transformação da produção fordista para a lógica

produtiva financeira, nos termos de Souza:

Nesse capitalismo de novo tipo todo o processo produtivo fica subordinado ao novo ritmo próprio do capital financeiro que quer diminuir seu tempo de giro como uma estratégia central do novo processo de acumulação. [...] Não apenas a aceleração do giro do capital está em jogo. Também a disponibilidade ou flexibilidade de atuar em novos nichos de mercado, menores e mais restritos, satisfazendo e criando novas necessidades de consumo que são efêmeras e passageiras. A superação do fordismo

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também representa a superação do tipo de produção estandardizada, baseada na economia de escala da grande produção de relativamente poucos produtos. Passa a existir o culto ao produto desenhado para as necessidades do cliente e criam-se novos ramos de negócios anteriormente inexistentes – culto ao momentâneo ao passageiro, instantâneo que também obedecem á logica do aumento da velocidade de giro do capital (SOUZA, 2012, p. 42).

Diante destas transformações, as novas empresas que se formaram no fim do

século XX e início do século XXI incorporariam a lógica da lean production e os

antigos trabalhadores hierarquizados, rigidamente controlados e sindicalizados, não

expressariam mais os anseios do mercado, que passaria a preferir o contrato de

“mão de obra jovem, sem passado sindical, com cláusulas explícitas de quebra de

contrato em caso de greve” (SOUZA, 2012, p. 37). O trabalhador teria de se adaptar

a estas novas dimensões simbólicas, precisaria ser “desenraizado, sem identidade

de classe e sem vínculos de pertencimento à sociedade maior” (SOUZA, 2012, p.

37), precisaria produzir uma nova identidade, uma nova autoestima caso quisesse

pertencer à sociedade que se constituía sob a lógica financeira. Ou seja, para

Souza, a economia não seria neutra e estaria produzindo uma nova ordem moral

que orientaria a formação de novos sujeitos (SOUZA, 2012, p. 37).

Para garantir o consumo, o fordismo necessitava estabelecer um pacto com

os trabalhadores que lhes assegurava salário, tempo de lazer, além de uma

produção em grande escala, em que uma grande massa de trabalhadores se

identificavam politicamente pelo mesmo destino comum. Já o capitalismo de novo

tipo no século XXI tem se configurado como um meio de atingir a expansão do

mercado pela capacidade de inovação constante de produtos e mercados,

flexibilizando, assim, toda a cadeia produtiva.

A ordem agora, segundo Souza (2012), seria a pequena produção, o pequeno

proprietário, a pequena fábrica, sendo que o limiar entre quem é trabalhador e quem

é proprietário se tornaria muito tênue e fluido: ora se é empreendedor, ora

trabalhador, o estilo de vida de ambos por vezes pouco se diferiria, e até a relação

de contratação se precarizaria, dificultando identificá-los.

O encurtamento do giro do capital e a redução do contingente na empresa a

poucos trabalhadores levariam a um processo de precarização do trabalho muitas

vezes encoberto por um suposto “triunfo da criatividade, da ousadia, da coragem e

da liberdade”. (SOUZA, 2012 p.54). O autor compreendia esse processo como de

formação de uma nova classe trabalhadora precarizada, cuja identificação seria

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difícil, dada a desconstrução da forma de produção que o novo tipo capitalista

articularia.

Essa classe é nova porque a alocação e o regime de trabalho são realizados de modo novo, de modo a ajusta-los às novas demandas de valorização ampliada do capital financeiro. Isso é conseguido, por exemplo, pela eliminação dos custos com controle e vigilância do trabalho. Essa nova classe trabalhadora labuta entre 8 a 14 horas por dia e imagina, em muitos casos, que é o patrão de si mesmo. O real patrão, o capital tornado impessoal e despersonalizado, é invisível agora, o que contribui imensamente para que todo o processo de exploração do trabalho seja ocultado e tornado imperceptível [...] Destrói-se a grande empresa fordista e transforma-se o mundo inteiro numa grande fábrica, com filiais em cada esquina, sem luta de classes, sem sindicatos, sem garantias trabalhistas, sem greve, sem limite de horas de trabalho com ganho máximo ao capital. (Souza, 2012, p. 57).

Essa classe trabalhadora pós-fordista, sem tradição de solidariedade de

classe, que se entenderia como empresária de si mesma e não receberia direitos

trabalhistas, na verdade seria constituída por trabalhadores despossuídos, que ao

serem incluídos na divisão do trabalho sobre a dinâmica da flexibilização, teriam

como referência para sobreviver, ajustar-se em relação aos que detém e acessam

diferentes esferas do capital. Essa classe, chamada por Neri de nova classe média,

foi denominada por Souza de batalhadores.

Essa “nova” classe social seria fruto de uma mudança social profunda que o

Brasil e o mundo atravessariam. A partir deste ponto, podemos ver que Souza,

Pochmann e Quadros confluem para explicar a nova dinâmica das classes sociais

diante de um novo modelo tanto econômico, quanto político e, como enfatiza Souza,

simbólico. Para Quadros e Pochmann, a III Revolução Industrial e a política neoliberal

teria levado à redução do setor manufatureiro e ao crescimento do setor de serviços.

Diante disso, a maioria dos trabalhadores se tornaria prestadora de serviços às

famílias bem remuneradas. Isso indica que a nova ordem capitalista não oferecia as

condições para a formação de uma nova classe média, mas, ao contrário,

estimularia a ideia de redução dos custos com o trabalhador e a desvinculação da

relação empregador e trabalhador.

As análises de Quadros e Pochmann trazem uma reflexão sobre como o

capitalismo produziria em cada fase, uma estrutura ocupacional diferente, cuja

diversidade de situações de trabalho seria, por outro lado condição de produção e

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reprodução do capital, e por outro, promotora da distinção que fundamentaria as

classes, inspirados assim na proposição teórica de Mills. Já Souza apontava que,

além de novas formas de distribuição de renda, ou de uma nova estrutura

ocupacional, o capitalismo recriaria a própria forma de pensar, ver e sonhar, novos

“estilo de vida” com novos valores que legitimam, moral e eticamente, a acumulação

de capital e desvinculam os sujeitos de sua identidade de classe. Embasada na

teoria da distinção social e da distribuição diferencial de privilégios, lugar onde a

teoria das classes extrapolaria a análise das condições de trabalho e revelaria a

dinâmica simbólica das relações sociais, um diálogo estreito com a teoria de

Bourdieu e Max Weber.

André Singer, por sua vez, dialogava com a análise teórica destes autores,

trazendo uma contribuição pontual, mas original, para pensar o Brasil. Para

compreender a perspectiva de classe que Singer assumia em seus estudos foi

preciso primeiro compreender seu ponto de partida: o comportamento eleitoral, por

meio da análise da intenção de votos50. Mas Singer não toma os estratos de

rendimento como classe.

O autor buscava apreender os fundamentos de classe que permitiam

compreender o alinhamento ideológico, ou ainda, o apoio eleitoral de determinados

segmentos econômicos da sociedade a um programa econômico e político. Para

isso, teve de “entrar nos meandros do caudaloso debate a respeito do estatuto das

classes sociais no século XXI” (SINGER, 2012, p. 23).

O autor acredita que, mesmo em desuso nos últimos anos, a teoria das

classes ainda apresentaria “vitalidade” a partir das duas correntes principais que a

originou, a de Karl Marx e Max Weber, cujas linhas gerais já foram apresentadas. Os

fundamentos de classe para explicar o comportamento eleitoral foram resgatados,

primeiramente, nos próprios clássicos e, posteriormente, em outros autores diante

da necessidade de compreender as novas configurações das classes sociais no

século XXI.

50 As intenções de voto em Singer (2012) seriam analisadas conforme rendimentos dos eleitores. Seriam quatro estratos de rendimento – até dois salários mínimos, de 2 a 5 salários mínimos, de 5 a 10 salários mínimos e acima de 10 salários mínimos – com base nos dados disponíveis pelo IBOPE. De forma que obtém o resultado proporcional de quantas intenções de voto o candidato tem de cada segmento monetário, o que lhe permite dizer se o candidato X tem mais intenções de voto nos grupos de baixíssima renda, enquanto Y tem mais intenções de voto nos eleitores com alta renda.

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Da obra marxista, o autor recuperou passagens sobre a definição das classes

sociais tanto no Manifesto Comunista quanto no Dezoito Brumário e também em

Contribuição à Crítica da Economia Política. Diferentemente do reducionismo

economicista que Souza atribuía ao marxismo, Singer relembra que, para a além do

“lugar” na produção, Karl Marx e Friedrich Engels admitiam que as classes só se

realizariam no plano da luta política, ou seja, assumiam “a noção de que as classes

se efetivam na luta de classes, sendo esta sempre “uma luta política” (SINGER,

2012, p. 23).

Isso permitia pensar a passagem da classe em si a classe para si. A classe

em si refere-se apenas ao lugar nas relações sociais de produção, ela não

expressaria a consciência ou unificação para ação coletiva. Contudo, pode se

transformar em classe para si, tomando consciência de seus interesses e “disposta a

lutar por eles no plano da política” (SINGER, 2012, p.23). Aqueles que não tomam

consciência apareciam como massas, estruturadas de fora para dentro, de forma

que o funcionamento de sua consciência “assemelha-se ao da pequena burguesia,

isto é, seriam “incapazes de perceber o contexto real em que estão situados, pois,

lhes é adverso” (SINGER, 2012, p. 24).

Essa noção de que as massas que não tomam consciência seriam

estruturadas de dentro para fora, estará presente na análise da formação social

brasileira e no comportamento das classes populares. Singer parte deste escopo

teórico para pesquisar as eleições brasileiras durante a redemocratização do país. O

autor chegaria à conclusão de que o eleitorado de menor renda tendia à direita com

medo da instabilidade. Os estudantes assalariados, registrados com nível médio de

escolaridade e funcionários públicos, que poderíamos considerar de classe média,

se posicionaram no campo da esquerda votando na candidatura de Lula (SINGER,

2009, p.89).

O autor André Singer (2009, 2012) para entender a dinâmica da luta de

classes no Brasil recorreu a um resgate dos pressupostos teóricos de Poulantzas e

a Paul Singer para embasar sua análise. Poulantzas lhe ajudaria a identificar duas

frações de classes da pequena burguesia no Brasil: aquela “tradicional, composta de

produtores diretos não assalariados, proprietários do meio de produção, e a

pequena burguesia recente a qual incluiria assalariados” que se diferenciaria da

classe trabalhadora por “exercerem atividades gerenciais” (SINGER, 2012, pp.

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26/27). A classe trabalhadora, por sua vez, conforme a contribuição de Paul Singer,

estaria dividida entre proletários e subproletários (SINGER, 2012, p.18).

Singer estuda a posição político-ideológica que orienta o comportamento

eleitoral do subproletariado, segmento que estaria presente na cena política

brasileira enquanto massa e, assim, teria importância decisiva na luta de classes.

Em 1976 esta fração da classe proletária, sozinha representava mais de 45% da

estrutura social brasileira, sendo um segmento que impactaria na disputa político-

eleitoral. A mudança significativa no primeiro decanato dos anos 2000 teria sido a

alteração do alinhamento eleitoral deste segmento de baixíssima renda e

escolaridade, que na década de 1990 votava com a direita, elegendo as legendas do

PTB e PSDB, e a partir de 2006, passou a votar no PT.

Singer resgata, ainda, os estudos de Pochmann, Jessé de Souza, Marcelo

Neri, Amaury de Souza e Bolivar Lamounier, autores que se voltaram à análise da

estrutura social brasileira em decorrência da queda da pobreza e da desigualdade

de renda histórica na primeira década do século XXI, apreendendo os dados

produzidos pelos diversos instrumentais analíticos a fim de refletir sobre as

mudanças sociais e econômicas que, na sua hipótese, conformariam o lulismo.

Singer destaca que sua originalidade neste debate residia apenas em sugerir

que o deslocamento do subproletariado, fração de classe com importante peso

eleitoral, teria provocado o surgimento do lulismo, um novo modelo de arbitragem

entre as classes fundamentais que lembraria o sistema político rooseveltiano, o que

levou a concluir que o conjunto das mudanças ocorridas no Brasil seria resultado de

um reformismo fraco “que, simultaneamente, reproduz e avança as contradições

brasileiras” (SINGER, 2012, p. 28).

Desse modo, para os autores críticos da tese da nova classe média, as

categorias que conformariam a noção de classe média no século XX não se

aplicavam à realidade do modo de produção capitalista no século XXI sendo

necessário captar as novas configurações nas relações sociais, para uns expressos

fundamentalmente a partir da organização do trabalho. Para analisar como a nova

dinâmica política e econômica que se configurava impactaria a realidade brasileira,

seria necessário acoplar à análise a especificidade histórica da formação da

estrutura social do país.

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103

CAPÍTULO QUATRO

AS ALTERAÇÕES NA ESTRUTURA SOCIAL E A DINÂMICA

POLÍTICA BRASILEIRA NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XXI

4.1. A Mobilidade da Classe Trabalhadora e o Declínio da Classe Média

nos Governos Petistas

Neste capítulo iremos apresentar como estes autores aplicaram o quadro do

debate da teoria das classes sociais, em especial das classes médias, para a leitura

da alteração na estrutura social brasileira verificada sob os governos petistas (2002-

2012).

Segundo Pochmann, a análise da mobilidade social deve levar em conta que

o desenvolvimento da economia capitalista se dá por trajetórias diversas. Nos países

de industrialização tardia ou que não completaram a industrialização (como o caso

dos países da América Latina, nos quais se inclui o Brasil), o “esvaziamento da

produção de manufatura" observava-se em meio "a emergência da sociedade de

serviço”, o que, como foi visto, implicaria a alteração da estrutura sócio-ocupacional

(Pochmann, 2014, p.33)

Para Singer (2012), compreender a importância política do subproletariado e

o impacto da sua mobilidade, seja para o processo eleitoral, para o processo de

mobilização política ou para um projeto de desenvolvimento econômico capaz de

superar a pobreza, requer resgatar as contribuições acerca da formação social

brasileira. Para Souza (2012), captar as mudanças e a nova visão de mundo que orienta

o comportamento dos atores demanda tanto uma pesquisa teórica quanto empírica,

pois as precondições sociais e afetivas que permeiam a distinção social são pré-

reflexivas e exigem um olhar qualitativo para serem encontradas.

Assim, partiremos do breve resgate da formação das classes sociais,

particularmente da classe média, no Brasil, a fim de confrontá-la com as alterações

que se verificaram na estrutura social no século XXI. Esse quadro ainda nos

permitirá visualizar como as especificidades das classes sociais no Brasil

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orientariam uma tendência a certas posições políticas e como a mobilidade afetou o

comportamento político de alguns atores.

Segundo Pochmann e Quadros, a expansão da classe média

assalariada teria se iniciado em 1930 e persistiria até 1980. Ela expressou, como no

resto do mundo, a passagem de uma sociedade agrária para uma urbano-industrial.

A classe média assalariada no Brasil, ganhou expressão, mais especificamente:

[...] a partir da instauração da industrialização pesada promovida pelo plano de metas de Juscelino Kubitschek, capaz de facilitar a instalação de grandes empresas, sobretudo no setor de bens de consumo duráveis (Pochmann, 2014, p. 42).

Posteriormente, a expansão da classe média brasileira se daria em meados

de 1970 durante a ditadura militar (1964-1985), mas de um modo associado à

intensa desigualdade de renda. Pochmann e Quadros apontam, assim, para as

diferenças da classe média brasileira em relação a outras classes médias no mundo,

dadas as características especificas da formação social brasileira. Os autores

destacam as especificidades de um capitalismo periférico, cuja industrialização

tardia se assentou sobre um modelo econômico de baixos salários, mesmo nos

períodos de expansão econômica, como no Milagre Econômico vivenciado no

contexto da ditadura militar (1964-1985).

A estrutura social brasileira, desde o período colonial até a expansão

industrial na década de 1970, se caracterizava por um grande contingente de força

de trabalho sobrante que não era absorvida pelo mercado de trabalho. Esse

excedente seria “herança desde a fase pertencente a antiga economia colonial,

quando ainda havia uma forte utilização do trabalho escravo” (POCHMANN, 2012, p.

23) conferindo importância à discussão da questão étnico-racial, visto que essa

massa desempregada era em sua maioria descendentes das etnias africanas

escravizadas no país.

De tal forma que, mesmo a expansão industrial promovida neste período, não

teria sido capaz de absorver esse excedente de força de trabalho, situação que seria

agravada com a mecanização do campo desacompanhada de uma política de

reforma agrária que provocou o êxodo rural de uma massa de trabalhadores

desocupados, que se conduziram para as grandes cidades.

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Esse excedente aglomerava-se nas periferias das grandes cidades à espera

de oportunidades de trabalho. Nesse processo estes trabalhadores sobreviveriam de

trabalhos informais, grande parte na prestação de serviços a famílias de alta renda

e, portanto, excluídos da estrutura de proteção social trabalhista. Nas palavras do

Pochmann:

Na maior parte das vezes, a informalidade localizava-se no mercado de trabalho não organizado, como alternativa de obtenção de trabalho e renda pela mão de obra sobrante no Brasil às ocupações geradas pelas grandes e médias empresas e pelo setor público (mercado de trabalho organizado). Por operar com certo grau de autonomia da dinâmica geral dos setores públicos e privado, as ocupações por conta própria e até de auxílio sem remuneração nos pequenos negócios autônomos pertencentes à informalidade tenderam a se diferenciar, por exemplo, da condição de subordinação direta do emprego assalariado formal, especialmente na condição de prestação de serviços as famílias (POCHMANN, 2012, pp. 24/25).

Ao mesmo tempo em que não gerou empregos suficientes, o regime militar

adotou políticas públicas para os mais altos salários (crédito ao consumo, educação

superior e política habitacional diferenciada), possibilitando “a modernização do

padrão de consumo para a elite e a classe média assalariada no Brasil”

(POCHMANN, 2014, p. 42). De forma que se entende que a desigualdade social

brasileira teria sido, na verdade, um modelo político-econômico organizador “do

avanço da classe média brasileira” (POCHMANN, 2014, p. 42).

Entre 1980 e 2000, com o abandono do projeto desenvolvimentista que

implicava a industrialização, crescia o desemprego, ao mesmo tempo em que

aumentava a população economicamente ativa. O resultado foi a elevação do

contingente de mão-de-obra sobrante e, assim, a expansão do trabalho barato de

prestação de serviço a famílias. Para além das atividades servis do período colonial

surgiriam novas atividades de prestação de serviço à família, mais sofisticadas,

como “piloto de lanchas, aviões ou helicópteros particulares, assistência pessoal

(personal trainer, personal stylist, embelezamento) e de serviços de administração

da própria riqueza (consultorias financeiras e planejamento tributário)”

(POCHMANN, 2012, p. 25).

Essa caracterização da estrutura social composta por uma grande massa de

desocupados ou na informalidade, com a formação de um pequeno contingente de

classe média, não foi retratada apenas por Pochmann como ponto de comparação

para entender as mudanças nos anos 2000. Singer, também partiu das influências

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de um sistema econômico escravocrata para traçar a formação da nossa estrutura

social.

Segundo Singer, Caio Prado seria referência ao citar a “herança colonial

brasileira” que teria conformado uma massa de miseráveis.

[...] um aglomerado humano heterogêneo e inorgânico, sem estruturação econômica adequada, e em que as atividades produtivas de grande significação e expressão não se acham devidamente entrosadas com as necessidades próprias da massa da população (SINGER, 2012, p. 17).

Essa massa não foi incorporada à condição proletária e se tornou a principal

contradição para o desenvolvimento da economia brasileira.

Tal referência a Caio Prado, tinha o intuito de fundamentar a percepção de

que nesta estrutura social, na qual a massa populacional se encontra empobrecida,

gera-se continuamente uma contradição para o desenvolvimento da economia

brasileira, a existência de um amplo “mercado interno de que raros países

dispunham; mas contraditoriamente fechado”, devido ao baixíssimo padrão de

consumo consequência das reduzidas remunerações (SINGER, 2012, pp. 17). A

maioria da população se constituía de uma “sobrepopulação trabalhadora

empobrecida permanente” (SINGER, 2012, pp. 17) que acabava por eliminar a

possibilidade do desenvolvimento industrial. Para isso, segundo Caio Prado seria

necessário melhorar as condições de vida das camadas mais pobres como forma de

criar um “círculo virtuoso” da formação social brasileira (SINGER, 2012, pp. 17/18).

Ressalta-se, assim como atestada por Pochmann, que, mesmo durante o

processo de industrialização e crescimento econômico durante o regime militar, se

verificava a “piora na distribuição de renda”, um afastamento entre a cúpula (classes

média e alta) e a base da pirâmide (proletários e subproletários) (SINGER, 2012,

p.18). Logo, a sobrepopulação trabalhadora superempobrecida permanente

continuaria se reproduzindo na estrutura social brasileira desde meados de 1930 até

mesmo com a expansão da classe média em 1980.

Singer, recorrendo a Francisco de Oliveira discorda da interpretação de que a

miséria seria o entrave para a modernização da economia brasileira; esta dualidade

entre Brasil arcaico e moderno seria uma dualidade apenas aparente. Na verdade, é

necessário ter a critica o fato de que o modelo econômico brasileiro se baseava na

exploração desta pobreza e não ansiava por alterações para se desenvolver. De tal

forma, os baixo salário dos pobres era um meio de canalizar a:

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[...] riqueza para o alto, permitindo aumentar o suficiente o consumo dos ricos para sustentar a expansão do mercado interno, sem precisar diminuir a pobreza e a desigualdade (SINGER apud OLIVEIRA, 2012, p.19).

Esse pensamento reforçava a tese da desigualdade como estruturadora do

avanço da classe média brasileira esboçada por Pochmann, e ainda na visão de

Quadros, do papel do Estado na estruturação social como definidor das condições

gerais da estruturação econômica, social, urbana e ocupacional.

Para Singer, o que se observava era uma “grande massa empobrecida [que]

estaria sendo absorvida pelo setor de serviços informal, por assim dizer, lavando os

carros que a próspera industrial automobilística vendia para a classe média”. Nesse

sentido, não houve ações do Estado que possibilitassem garantias sociais a estes

trabalhadores, mantendo-se assim, um modelo de acumulação de grande

concentração de renda (SINGER, 2012, p. 19).

Destaca-se, até meados de 1980, a ausência de uma política social de bem-

estar que assegurasse a inclusão social deste segmento. Apenas os trabalhadores

com carteira de trabalho assinada possuíam alguma garantia à cidadania51 como

direito à previdência, proteção trabalhista, acesso ao financiamento imobiliário, entre

outros.

Todos estes autores, Pochmann, Singer, Souza e Quadros argumentam que

o desenvolvimento do capitalismo no Brasil seguiria sob um modelo econômico que

teria criado uma classe média com privilégios não observados em outras classes

médias do mundo, com o alto poder de consumo e acesso a serviços de baixíssimo

custo que lhe conferiam maior conforto, não sendo necessária a imigração de mão-

de-obra barata para realizar os trabalhos "sujos e pesados", uma vez que esta

classe já possuía “em casa” um exército de desclassificados dispostos a todo tipo de

trabalho pesado e degradante" (SOUZA, 2013).

51 Vera da Silva Telles identifica a posse de uma carteira de trabalho como algo mais do que uma evidência trabalhista; funcionaria à maneira de rito de passagem para a existência civil. Rito de passagem que revela o que Bourdieu define como poder simbólico da nomeação, que cria identidades sociais e trata de forma indiferente aqueles não batizados com um nome. A conclusão é de que a perda do estatuto de trabalhador significa a perda do estatuto de cidadania. Pois na tradição brasileira, “para ter direitos e acesso a uma existência legítima, o indivíduo tem que provar ser um trabalhador responsável, com uma trajetória ocupacional identificável em seus registros, persistente na vida laboriosa e cumpridor de seus deveres.” (TELLES, 1993).

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As classes do privilégio exploram esse exército de pessoas disponíveis a fazer de quase tudo. Desde o motoboy que entrega pizza ao lavador de carros, ao trabalhador que carrega a mudança nas costas; à prostituta pobre que vende seu corpo para sobreviver; ou ao exército de serviçais domésticos que fazem a comida e cuidam dos filhos das classes média e alta, que assim podem se dedicar a estudos ou trabalhos mais rentáveis. É este tempo roubado de outra classe que permite reproduzir e eternizar uma relação de exploração que condena uma classe inteira ao abandono e à humilhação, enquanto garante a reprodução no tempo das classes do privilégio. (SOUZA, 2013, 61).

O processo de “roubar” tempo da classe trabalhadora garantiria à classe

média brasileira o tempo para dedicação aos estudos, enquanto os jovens das

classes populares necessitam desde muito cedo ingressar ao mercado de trabalho

reduzindo o seu tempo de estudo, como apontou Souza (2013), mantendo-se as

diferenças de capital cultural entre classe média e classes populares.

Essa massa empobrecida sem trabalho formal ou capital cultural seria, ainda

segundo Souza, a ralé brasileira e se diferenciaria do conceito marxista de

subproletariado assumido por Singer na medida em que:

[...] não pode ser utilizada como exército de reserva, devido a não ter as pré-condições para o trabalho técnico no setor competitivo do capitalismo, que se constitui uma classe moderna no capitalismo (IHU, 2011, p.01)

Essa classe, assim, estaria excluída também do acesso às políticas sociais O

subproletariado corresponderia aos batalhadores, classe trabalhadora precarizada.

A classe média aqui, desse modo, experimentaria o que outros países não

possuíam: serviços de baixíssimo custo “potencializados pelo enorme excedente de

mão de obra gerado nas grandes cidades por força do êxodo rural (ausência de

reforma agrária) e da herança colonial escravocrata (POCHMANN, 2014, p.42).

A industrialização ocorrida no período de 1930 a 1980 foi incapaz de absorver

a totalidade da força de trabalho urbana advinda do fluxo migratório do meio rural.

Estes trabalhadores passariam a desenvolver atividades informais, com

remuneração geralmente inferior às dos postos formais. Esta população ex-escrava

ou migrantes do trabalho rural, não absorvida na economia formal constituiu uma

massa de trabalhadores sobrantes e superempobrecida que, desde aquele tempo

até o início dos anos 2000, conformava a maioria da população brasileira habitando

principalmente as periferias dos grandes centros urbanos. Trata-se, pois, de uma

estrutura social baseada no que Quadros denomina massa miserável, Pochmann

massa sobrante, Singer define como subproletariado e Souza como a ralé ou

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batalhadores, com uma população de classe média reduzida reflexo do

incompletude do processo de industrialização.

A passagem das décadas de 1980 e 1990 estaria sobre o contexto da

instauração de uma nova ordem econômica e política, com o domínio da lógica do

capital financeirizado e a flexibilização das relações de trabalho. Ao que indicam os

autores, estas mudanças não chegaram a alterar a polarização da estrutura social

brasileira. Porém, sob um certo ponto de vista, houve uma “piora”, no sentido de que

se a classe média, como afirma Quadros (2006), seria um indicativo de bem-estar

social pela capacidade de produção e distribuição da riqueza social de um país, o

que se observou na década de 1990 foi, nesse sentido, a redução da classe média

brasileira.

Como buscaremos argumentar, os autores nos fazem concluir que as

alterações significativas da organização do trabalho no capitalismo financeirizado

penetram a estrutura ocupacional brasileira, de forma que o principal fator da

mobilidade social, o emprego, seguem a tendência internacional de redução e

deslocamento geográfico das ocupações típicas de classe média. O autor

Pochmann (2014) levando em consideração o processo pós-fordista, oligopolista,

transnacional, ou ainda, a constituição de grandes corporações transnacionais que

conformaram cadeias produtivas globais, destacou o deslocamento das plantas

manufatureiras, principalmente para a região asiática e junto com essa a classe

média assalariada, não proprietária dos meios de produção.

O resultado seria que os países de maturidade industrial vivenciariam, do final

do século XX para o XXI, o processo de desindustrialização e alteração da sua

estrutura sócio-ocupacional, o decréscimo do setor industrial e o crescimento da

base da sociedade relacionada ao setor de serviços. E ainda as cadeias de

produção global necessitavam de um modelo de livre circulação de capitais para

garantir transações internacionais entre as várias cadeias globais de produção,

processo que se expressaria em uma III Revolução no Capitalismo, agora sob o

domínio do capital financeiro, possível pelo advento da internet. Diante da lógica

financeira, a “diferenciação entre capital nacional e estrangeiro começa a perder

sentido [...]”, de forma que cada país “[...] encontra-se no interior de cada cadeia

global de valor liderada pelas grandes corporações” (POCHMANN, 2014, p. 41).

Pode-se, ainda, acrescentar a passagem do fordismo para o toyotismo/lean

production destacados por Jessé de Souza (2012), ou ainda, a dominância do

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capital financeiro, que buscava encurtar a circulação do capital, descentralizando a

produção, aumentando a “disponibilidade ou flexibilidade de atuar em novos nichos

de mercado, menores e mais restritos, satisfazendo e criando novas necessidades

de consumo que são efêmeras e passageiras” (SOUZA, 2012, p.42), o que alterava

o sentido da produção fordista de padrão de massa para a abertura de novos

mercados e demandas, causando profundo impacto nas categorias que

tradicionalmente conhecemos como a do proletário, uma vez que a nova lógica

passa a ser a do empreendedorismo, em que o trabalhador não é mais contratado,

mas um prestador de serviços sem patrão (SOUZA, 2012, p.42).

Para Pochmann o efeito do crescimento do setor de serviços teria sido o

“esvaziamento da concepção predominante de “medianização” das sociedades

urbanas industriais” (POCHMANN, 2014, p.41). A chegada deste processo mundial

na realidade brasileira, que ainda não havia completado a maturidade industrial,

mostra como as economias capitalistas se desenvolvem de forma não homogênea.

O economista observava que, na década de 1980, o Brasil enfrentava a crise

da dívida externa, uma longa fase de estagnação da renda per capita, o que imporia

constrangimentos à mobilidade social. Por sua vez, a década de 1990 caracterizou-

se, segundo Pochmann, pelo abandono do “projeto nacional desenvolvimentista” e

pela emergência das políticas neoliberais de inserção subordinada à globalização

financeira. A repercussão deste conjunto de fatores na estrutura do mercado

brasileiro teria sido negativa, segundo os dados levantados por Pochmann, com

forte “expansão do desemprego – que passou de 2,7% em 1989, para 15% em 2000

– da informalidade e do dessalariamento formal”. De tal maneira que ocorreu a

“marginalização dos operários [...]” seguida do “[...] próprio encolhimento da classe

média brasileira”. (POCHMANN, 2014, p. 43).

Segundo os dados levantados pelo economista, “11 milhões de brasileiros”

teriam sofrido uma piora de sua situação social. O neoliberalismo brasileiro implicava

em uma reestruturação industrial, internacionalização das empresas, privatização do

setor produtivo estatal, além da terceirização da mão de obra tanto no setor público

quanto no privado, de forma que teria levado ao o encolhimento das ocupações de

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classe média no setor industrial bem como no emprego público52 de alta qualificação

e remuneração (POCHMANN, 2014, p. 43).

Por sua vez, Quadros, afirma que se na década de 1980 a crise da dívida

interna teria criado constrangimentos ao desenvolvimento econômico e à mobilidade

social, o início da década de 1990 ainda viveria uma forte recessão, superada “com

o advento do Plano Real”, que teria oferecido “certo alento a proporção de indivíduos

ocupados que situam-se em patamares associados à classe média (alta, média e

baixa)” (QUADROS, 2006, p .9), além da redução proporcional da população

miserável e expansão do conjunto dos pobres da massa trabalhadora (QUADROS,

2006, p .9).

Contudo, a partir de 1999, as oportunidades de ocupação da alta e média

classe média começaram a encolher. A estabilidade dos índices da população de

baixa classe média indicaria, para Quadros, tanto a subida como a descida das

classes abaixo e acima desta, de forma que, durante a década de 1990 e início dos

anos 2000, verificou-se o “crescimento da parcela de ocupados que se encontra no

patamar de massa trabalhadora pobre” (QUADROS, 2006, p. 9).

Assim durante os governos do PT (2002-2012), dos empregos formais

gerados como apresenta Pochmann, quase 95% das ocupações chegavam no

máximo ao nível salarial de até 2 salários mínimos. Além disso, “registra-se que as

profissões em maior expansão na década de 2000 foram as de serviços (6,1 milhões

de novos postos de trabalho, correspondem por 31% da ocupação total)”. Os

conjuntos ocupacionais que mais cresceram na primeira década do século XXI no

Brasil, seriam segundo Pochmann:

[...]trabalhadores do comércio (2,1 milhões), da construção civil (2 milhões), de escriturários (1,6 milhões), da indústria têxtil e de vestuário (1,3 milhões) e do atendimento público (1,3 milhões) (POCHMANN, 2012, p. 32).

O levantamento de Pochmann revelava que, da década de 1980 até 2008, o

principal empregador foi o setor de serviço, com o crescimento de mais de 30,6% do

setor terciário nas últimas três décadas. Esse setor seria responsável em 2011 por

mais de “dois terços de toda a produção nacional. Enquanto os setores primário e

52Teria ocorrido um processo de enxugamento da máquina administrativa ao longo da década de 1990 orientada pelo “ideário” neoliberal e no qual foram afastados cerca de 160.000 servidores e fechadas 22 empresas estatais. CANO, W. Soberania e política econômica na América Latina. São Paulo: Ed. UNESP, 2000.

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secundário perderam 44,9% e 27,7% respectivamente, de suas participações

relativas no PIB” (POCHMANN, 2012, p.16 e 17). Esses dados revelaram que as

ocupações de classe média ligadas ao setor industrial de gerenciamento e

administração não encontraram registros de crescimento mesmo durante o governo

Lula (2002-2006, 2006-2010).

Em síntese entre 2002 e 2011, observou-se uma mobilidade impulsionada

pela geração de empregos (22 milhões de empregos formais) a maioria no setor de

serviços. Eram empregos que traziam explícitos indicadores de precariedade, com

remuneração de até 2 salários mínimos com alta rotatividade53.

Assim, durante a primeira década dos anos 2000, o contexto de crescimento

econômico e reativação do mercado de emprego formal conviveu com a

precariedade da situação de trabalho. Se a posse da carteira de trabalho e salários

acima do mínimo atingiam positivamente a massa trabalhadora – historicamente

informal e com renda média abaixo das condições de existência – os salários

seguiam sendo baixos em relação à pirâmide.

O Brasil seguiria assim, a tendência dos países desenvolvidos sob o domínio

do capital financeiro e do Estado neoliberal, em que o desemprego aumentava e se

reduziam drasticamente as oportunidades de emprego nos setores médios diante de

um setor privado considerado “cada vez mais eficiente e produtivo”, mediado pelas

“transformações proporcionadas pela informática”. A lógica passaria a ser a da

polarização do mercado de trabalho:

A polarização do mercado de trabalho virou a tônica da estruturação econômica e social dos países ricos. De um lado, os bem-sucedidos, ricos e bem-empregados no topo da sociedade; de outro, a massa crescente de pessoas às quais resta apenas servir aos de cima. Nesse mundo de desigualdade social crescente, os mais ricos ampliam seu conforto contratando novos serviçais – única e funcional alternativa ao avanço do desemprego (QUADROS, GIMENEZ & ANTUNES, 2012, p. 9).

A partir da perspectiva teórica de Pochmann, Quadros, Souza e Singer, a

classe média assalariada típica do período fordista não encontra expressão no Brasil

do século XXI. Pelo contrário, conforme Quadros, entre 1981 e 2005 teria ocorrido o

53 Para os empregos de até um salário mínimo havia uma rotatividade de mais de 85% em 2009

(POCHMANN, 2014, p. 93).

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“estreitamento dos canais de ascensão social” no Brasil, que se materializa no

encolhimento da classe média. (QUADROS, 2006)

Entendendo o crescimento reduzido da classe média, Quadros, Gimenez e

Antunes apontaram que, se por um lado, a “volta do crescimento econômico, os

aumentos do salário mínimo e os avanços das políticas sociais”, durante os

governos do PT nos anos 2000 devessem ser reconhecidos como decisivos para

melhoria de vida das camadas inferiores, por outro lado, é importante destacar as

consequências de um crescimento extremamente reduzido da média classe média,

e estagnação da alta classe média.

[...]reflete um crescimento econômico acompanhado de desadensamento das cadeias produtivas, de crescente penetração das importações e de geração diminuta de empregos públicos de qualidade (QUADROS, GIMENEZ & ANTUNES, 2012, p. 5).

Tabela 3- População do Brasil – melhor situado ajustado pela renda per

capita 2000 - 2010

Fonte: Quadros, Gimenez, Antunes, 2012, p.05

Esses autores concordavam que, a despeito do aumento da formalização do

trabalho e das “oportunidades de pequenos negócios e do trabalho autônomo

melhor remunerado” (QUADROS, GIMENEZ & ANTUNES, 2012, p.2), as condições

de trabalho que formariam a classe média brasileira entraram em declínio

Pochmann reconhecia que o governo Lula promovera políticas que atingiram

positivamente esta camada historicamente segregada da população, possibilitando a

estes o acesso a política públicas e ao consumo, antes restritos às classes médias e

altas. Porém, esta inclusão não poderia ser confundida com a formação de uma

nova classe média.

As políticas de transferência de renda e acesso ao crédito para as camadas

populares promovidas pelas gestões petista por 10 anos consecutivos fizeram com

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que os critérios tradicionalmente adotados (no período da ditadura e do

neoliberalismo) para a distinção entre classe média e classe trabalhadora se

desfizessem, pois a capacidade de consumo e acesso a serviços e créditos

bancários deixaram de ser uma condição restrita à classe média, “agora, alcançam a

classe trabalhadora (e, sobretudo, os trabalhadores mais pobres) (POCHMANN,

2012, p. 14).

De forma tardia, o país incorporou uma parcela considerável da classe trabalhadora que ainda se matinha à margem do acesso ao consumo dos bens duráveis. [...] A parcela constitutiva dos 40% mais pobres do conjunto da população brasileira terminou sendo receptora do maior impacto decorrente do movimento de ascensão social do período recente, na medida em que 38% da população mais pobre do país teve acesso ao emprego ( na faixa de 1,5 salário mínimo) e os benefícios sociais decorrentes dos programas de transferência de renda, incluindo também inativos, uma vez que o salário mínimo serve de indexador para o piso da previdência e assistência social (POCHMANN, 2014, p.13).

Enquanto Pochmann interpretava que esse processo resultaria na ampliação

da classe trabalhadora na base da pirâmide social, Singer considerava que o

subproletariado ascenderia à condição de proletário. Já para Quadros cresciam

fundamentalmente a massa trabalhadora (pobre) e a baixa classe média

(remediada). Souza, por seu turno, entende que a ralé, muito precarizada, daria

origem a uma classe trabalhadora precarizada, os batalhadores.

A estrutura social brasileira seria assim no início do século XXI composta em

sua maioria por prestadores de serviços às famílias, autônomos e trabalhadores

rurais, vinculados à sociedade de serviço, sendo que da totalidade de ocupados

quase 50% não atingem 2 salários mínimos. (POCHMANN, 2012, p.28).

Por sua vez, Quadros (2012) destaca como principal segmento ocupacional

emergente os trabalhadores domésticos, 64% e uma pequena parcela de trabalho

autônomo melhor remunerado e pequenos empreendimentos. Por sua vez o

trabalho de campo de Souza encontrou o trabalhadores de call center, feirantes e

pequenos empreendimentos. Todas estas ocupações não nos remetem às

ocupações típicas de classe média, trabalhadores assalariados não manuais do

século XX.

Haveria um paradigma a se refletir sobre como caracterizar trabalhadores do

telemarketing, que seriam trabalhadores assalariados não manuais, ou seja, classe

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média, ou ainda os microempreendedores proprietários de empreendimento,

tradicionalmente associado na teoria marxista à ideia de uma pequena burguesia.

Ao refletir sobre os teleoperadores Souza afirma que essas ocupações seriam

resultado do processo de inovações tecnológicas e mais especificamente da

privatização das empresas de telecomunicação e terceirização dos serviços no

Brasil desde a década de 1990, sendo que “curiosamente é no Brasil onde os call

centers mais concentram trabalhadores: 1.103 em cada empresa” (SOUZA, 2012,

61) Essas ocupações representariam a flexibilização da força de trabalho

qualificada, que se por um lado, para conseguir o trabalho formal necessita de ser

qualificada, por outro, isso não lhe garantiria a “integração estável no mercado de

trabalho”, haja vista que, o processo de intelectualização54 enquanto consequência

da democratização do acesso a educação, não necessariamente levou à valorização

relativa dos diplomas. (SOUZA, 2012, p.62). Souza, por fim, argumenta que estas

ocupações geraram assim a exploração da força de trabalho precariamente

qualificada:

O ensino formal, portanto, não é garantidor necessariamente de uma posição estável no mundo do trabalho. A democratização escolar contribuiu tanto para o aumento do contingente escolarizado quanto para o desenvolvimento de uma situação de precariedade dos níveis escolares mais baixos, ou seja, a constituição de um verdadeiro exército de reserva minimamente escolarizado para o trabalho. (SOUZA, 2012, p.63)

Esse fenômeno não se restringe ao Brasil e compõe o quadro de

transformações da economia capitalista global, a “crescente desvalorização dos

diplomas” diante da popularização do acesso aos ensinos técnicos e superior,

fenômeno que somado ao da “precarização generalizada dos postos de trabalho”

teria levado “à degradação da classe média no mundo” (POCHMANN, 2014, p. 31).

Quanto ao trabalho autônomo e os pequenos empreendimentos, se

expressariam a expansão de ocupações da classe trabalhadora ou da classe média,

os autores defendem que aqui também prevaleceria a lógica da precarização do

trabalho que trata a formalização do trabalho, e ou, os cargos típicos de classe

54 Compreende-se a noção de que a democratização escolar dos últimos anos teria provocado como consequência a integração de toda a sociedade e trabalhos intelectuais altamente qualificados, bem como o acesso a universidades de ponta e de maior prestigio (SOUZA, 2012, p.62)

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média, como de controle e supervisão, como submetidos a lógica do trabalhador

prestador de serviços de forma precária.

Refletindo os desafios de caracterizar o trabalho diante da nova organização

do trabalho com a flexibilização e especificamente sobre o trabalho autônomo,

Pochmann (2012, p.24, 25) afirma que um grande contingente de força de trabalho

sobrante teria um “certo grau de autonomia da dinâmica geral dos setores públicos e

privado”, formando uma porção significativa de trabalhadores “por conta própria e

até de auxílio sem remuneração nos pequenos negócios autônomos”. Essas

características os diferenciariam tanto do trabalhador formal, quanto dos pequenos

burgueses, o que permite caracterizá-los como trabalhadores informais.

Analisando a forma de estruturação das desigualdades sociais e o alcance

das oportunidades gerado nos governos petistas, Souza chama a atenção para o

fato de que o limite da ascensão social esteve pautado também pela própria

configuração econômica e política do capitalismo de novo tipo. A mobilidade seria

resultado, portanto, da nova lógica de organização do trabalho no capitalismo

financeiro, que produziria condições cada vez mais precárias de trabalho.

Assim, os pequenos comércios e pequenos negócios que se dinamizaram

com as políticas de aumento do consumo interno do governo Lula seriam

constituídos, na verdade, de uma classe trabalhadora precarizada, destituída de

garantias e direitos trabalhistas.

Para perceber isso, seria necessário atentar que a nova dinâmica do

capitalismo financeirizado, sob a lógica neoliberal, disseminava relações informais e

flexíveis, em que o trabalhador não teria mais um patrão direto, mas tornar-se-ia um

prestador de serviços. A nova lógica de produção seria nas palavras do autor:

A grande produção fordista estandardizada continua importante, mas por outro lado, perde espaços importantes para o novo tipo de demanda que exige pequena produção – muitas vezes de fundo de quintal e seguindo lógica familiar (SOUZA, 2012, p. 55).

Essa capacidade de criar novos mercados e novas demandas teria sido um

dos limites do tipo de produção fordista, sendo a forma de superação desse entrave

para a circulação de capital, a pequena produção flexível. Este processo exige uma

nova lógica de pensar o mercado e a economia, e portanto, um novo tipo de

trabalhador, na tese de Souza, os batalhadores, resultado do rearranjo radical do

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mundo do trabalho moderno em que o trabalhador não precisa mais ser vigiado e

controlado.

Assim, surgiriam pequenas oficinas de produção onde o trabalho era

controlado segundo princípios fordistas. Entre outros tipos de trabalho que se

tornaram comuns, podemos citar como exemplo o das relações familiares de favor e

proteção que passaram a substituir as relações impessoais de contrato, para

prejuízo dos trabalhadores que tinham jornada alongada de trabalho sem poder

reclamar do parente (tio, tia,etc.) que havia lhe “dado” emprego. O autor reflete que

aparentemente não existiria regra nesse heterogêneo mundo da produção familiar

ou de produção de pequeno porte, tanto no campo quando na cidade, “são sistemas

compósitos de produção e de controle da gestão do trabalho que obedecem à regra

da sobrevivência e do sucesso imediato” (SOUZA, 2012, p. 56).

A tese de Souza indica um paradigma para a definição de classe. Os novos

trabalhadores informais, autônomos, empreendedores retomam a polêmica da

diferenciação entre trabalhadores, classe média e pequena burguesia. Nas palavras

do autor:

Esse radical rearranjo do mundo do trabalho moderno criando uma nova classe trabalhadora que não precisa mais ser vigiada e controlada constitui também uma pequena burguesia de novo tipo. O pequeno proprietário da pequena fábrica de fundo de quintal não difere, muitas vezes, em termos e estilo de vida, do próprio trabalhador que emprega, muito frequentemente, sem pagar direitos trabalhistas nem impostos de qualquer tipo. Além de uma nova classe trabalhadora definida pelo batalhador/trabalhador, parece existir também uma “pequena burguesia” de novo tipo representada pelo batalhador/empreendedor. Os limites, entre estas duas frações de classe, em muitos casos são muito fluidos, tornando difícil a definição exata de seu pertencimento de classe.

Assim se forjam novas relações de trabalho, em que o trabalhador se torna

um empreendedor, um prestador de serviço dedicado à sua sobrevivência, cujas

diferenças no campo teórico, entre ser batalhador e pequeno burguês se tornam

muito estreitas, exigindo uma revisão analítica da teoria das classes médias.

Os batalhadores seriam na perspectiva de Souza uma nova classe ajustada

às novas demandas de valorização do capital financeiro, que eliminaria os custos de

controle e vigilância e em que o “real patrão, o capital tornado impessoal e

despersonalizado” não é observável. Isso torna o processo de exploração

“imperceptível”, “sem luta de classes, sem sindicato, sem garantias trabalhistas, sem

greve, sem limite de horas de trabalho”, sendo este para Souza o novo capitalismo

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financeiro e sua respectiva nova classe trabalhadora, os batalhadores (SOUZA,

2012, p. 57). Este mesmo processo indicaria que não haveria nenhum indício da

promoção de oportunidades de ascensão de uma classe média detentora de capital

cultural que lhe permitisse acessar recursos de privilegio material e simbólico. Ou

seja, não se apresentam nem o acesso ao capital econômico, que poderia ser

expresso pelos altos salários, nem os empregos de alto prestigio social, que

diferenciaria os sujeitos como superiores em uma dada sociedade. Tratar-se-ia,

como já dito antes, de ocupações sem proteção trabalhista que ainda se pautam não

no acumulo de capital econômico, mas na sobrevivência.

É interessante pontuar que os autores concordariam que a nova dinâmica do

capital estabelece uma novidade na configuração das classes sociais brasileiras, a

redução ou até mesmo a estagnação da classe média, a incorporação de trabalho

sobrante no mercado brasileiro, principalmente no setor de serviços, contudo

acompanhada da desvalorização da qualificação diante da democratização da

educação, dificultando ainda mais a reprodução do estilo de vida da classe média.

A dinâmica da estrutura ocupacional parece, assim, acompanhar as

mudanças internacionais. Se a maioria dos trabalhares ocupa o terceiro setor, nem

por isso exerce trabalho altamente reconhecido socialmente e não goza de prestígio

ou condições de trabalho como as da classe média. Pelo contrário, a maioria é

remunerada com salário base, se situa no setor terceirizado, informal, autônomo,

efetuando trabalho temporário e com alta rotatividade. O sujeito emergente desse

processo, que conforma a maioria da base social, deixa de ser a massa de

trabalhadores sobrantes para integrar o conjunto de trabalhadores pobres ou a

classe trabalhadora precarizada. Segundo as abordagens aqui apresentadas, teria ocorrido o declínio da

classe média. Um país que não completa a sua industrialização e se pauta na

exportação de matéria prima e no consumo de importados, além de mão de obra

barata, dificultaria a emergência de ocupações tradicionais de classe média, ou com

o padrão de vida de classe média.

Para Pochmann os “verdadeiros empregos de classe média” só seriam

promovidos caso o governo retomasse a “temática da reindustrialização, para

reverter o entendimento de um padrão de consumo de importações” e a

reconfiguração qualitativa dos serviços públicos (POCHMANN, 2014, p.44).

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Olhando o emprego como a chave da mobilidade social, Quadros partilhava

da mesma argumentação de que o “verdadeiro contingente de profissionais de

classe média” estariam associados a um Estado que promoveria a reindustrialização

e promoção dos serviços públicos que supririam as carências históricas da

sociedade brasileira da “educação, saúde, segurança, saneamento, habitação etc.”

(Quadros, Gimenes, Antunes, 2012, p.06)

André Singer compartilhava da visão de que “não existe razão para acreditar

que nosso modelo agromineral-exportador seja bem sucedido no longo prazo”

(SINGER, 2012, p.163). Para garantir um crescimento econômico com ascensão

social seria fundamental a industrialização. (SINGER, 2012, p.163)

Além disso, estaríamos diante de uma nova etapa do capitalismo, não apenas

sob o aspecto técnico, mas de uma nova gênese sociocultural, que implicaria novas

formas de organização do trabalho e novas representações simbólicas, como

destacou Souza. O capitalismo buscaria reduzir os custos trabalhistas, com

supervisores e gerentes e construir identidades distintas do trabalhador do século

passado, o que levaria ao crescimento de trabalhadores prestadores de serviço,

terceirizados, empreendedores, proprietários de seu próprio negócio.

O fato da sobrepopulação trabalhadora superempobrecida, que

historicamente caracteriza o mercado de trabalho no Brasil, ter sido favorecida pelo

acesso ao emprego formal e políticas de renda, que lhe permitiram o acesso a bens

de consumo antes inacessíveis, indicaria a alteração do modelo econômico e social

antes “organizador do avanço das classes medias e altas”, ou seja, alteraria o

conforto da classe média tradicional brasileira e a forma com que se produz e

reproduz.

Diante disso, critérios, antes usados para definir a classe média brasileira,

agora atingiriam a classe trabalhadora. Assim, itens como a carteira de trabalho,

disponibilidade de crédito, fariam a classe trabalhadora brasileira experimentar, na

primeira década dos anos 2000, uma nova realidade socioeconômica. A bibliografia

nos indica, assim, que a definição do conceito de classe contém os marcadores para

acompanhar as grandes transformações da organização social pós-fordismo. Uma

questão que ainda estaria em aberto seria, então, se essas mudanças que são tanto

socioeconômicas como das condições de trabalho também resultariam de alterações

de valores morais e éticos incorporados à identidade dos trabalhadores, de maneira

a conformar um novo sujeito político. É o que iremos discutir a seguir.

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4.2. Mobilização e Desmobilização

Observadas as transformações na dinâmica capitalista e seu impacto na

estrutura social brasileira, discutiremos como a mobilidade social promovida por

políticas sociais impactaria na posição política dos sujeitos. Assim, as perguntas

feitas a esta bibliografia serão: quais são as hipóteses sobre a orientação política

destes emergentes?

Durante a pesquisa, pode-se perceber alguns apontamentos sobre o

comportamento político dos emergentes nos economistas Neri e Pochmann.

Entretanto, a capacidade de traçar o perfil político ou, ainda, as ideias e valores que

conformariam esses sujeitos fundamentaria as pesquisa respectivamente de Singer

e Souza. De tal forma, serão expostas as principais contribuições destas teses com

o objetivo de captar se a mobilidade tenderia a impactar na ação política dos

emergentes.

No caso da tese da nova classe média elaborada por Marcelo Neri, como

vimos no capítulo I, o comportamento político dos emergentes era entendido a partir

de seu perfil enquanto consumidor e do fato de se mostrarem mais exigentes na

demanda por melhores serviços. Em especial, a tese de Neri defendia que a classe

média se diferenciava pela preferência por serviços privados, em detrimento dos

oriundos do monopólio estatal. Assim, os valores e ideias que orientavam a visão de

mundo do emergentes seriam, para o autor, compatíveis com os ideais neoliberais,

com a expansão do mercado competitivo e do Estado reduzido. Como indicamos no capítulo 2, para Pochmann, esta mobilidade teria sido

despolitizadora destas classes em ascensão, pois implicaria uma lógica de inclusão

à sociabilidade capitalista de forma individual, mobilidade pelo acesso a produtos e

serviços do mercado, em detrimento da demanda por direitos universais. Além disso,

essa despolitização seria, ainda, resultado do despreparo das “instituições

democráticas”, sindicatos, associações de bairro, estudantis, das comunidades de

base e dos partidos, na canalização de interesse dessa classe trabalhadora

ampliada. (POCHMANN, 2012, p. 10).

Os estudos de Pochmann apontavam a baixa sindicalização nas principais

ocupações dos grupos emergentes: os prestadores de serviços às famílias,

autônomos e trabalhadores do setor primário. Assim, o autor sugeria que estes

grupos não teriam tradição de se organizar sob os formatos institucionais

tradicionais, como os sindicatos e suas formas de ação coletiva, como as greves.

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Existiria, para Pochmann, uma forte relação entre o trabalho exercido e o

comportamento político daqueles que prestavam serviços para as classes mais

altas, uma vez que estes segmentos pauperizados terminariam “por reproduzir, de

maneira simbólica” o meio em que trabalhavam “mais do que aquele em que vivem”,

incorporando seus valores e ideologias (POCHMANN, 2012, p. 26).

Souza, por sua vez, apresentou a conformação de novos sujeitos, uma nova

classe, com novas ideias e visão de mundo que teriam impacto direto na sua ação

política. Nesse sentido, as classes do Brasil não deveriam ser compreendidas

apenas a partir de uma nova categorização, mas como fruto de uma nova percepção

de luta de classes, descrita pelo autor como cotidiana na disposição destes sujeitos

em relação a si próprios, que romperiam com a violência simbólica que os imobiliza

e humilha.

Já Singer discorreu sobre o realinhamento eleitoral, imperceptível se não

considerarmos as suas pesquisas anteriores, em que se atestava certo

conservadorismo das classes populares, a fim de mostrar a extensão da alteração

do comportamento político no lulismo:

Em trabalhos sobre 1989, notei, entretanto, que a vitória de Collor não decorria apenas de “promessas fáceis”. Havia uma hostilidade às greves, cuja onda ascensional se prolongou desde 1978 até as vésperas da primeira eleição direta para presidente, e da qual Lula era, então, o símbolo maior. Observava-se aumento linear da concordância com o uso de tropas para acabar com as greves conforme declinava a renda do entrevistado, indo de um mínimo de 8,6% entre os que tinha renda familiar acima de vinte salários mínimos, a um máximo de 41,6% entre os que pertenciam a famílias cujo ingresso era de apenas dois salários mínimos. Em outras palavras, ao contrário do esperado, os mais pobres demonstravam maior hostilidade às greves do que os mais ricos. (SINGER, 2012, p.58)

As pesquisas de Singer apontavam que se, por um lado, as classes de baixa

renda eram avessas às greves e aos movimentos sociais, por outro, eram a favor da

intervenção do Estado na economia. Diante disso, Singer sugere que:

[...] os eleitores mais pobres buscariam a redução da desigualdade, da qual teriam consciência, por meio de intervenção direta do Estado, evitando movimentos sociais que pudessem desestabilizar a ordem (SINGER, 2012, p. 58)

Assim, estes segmentos apostavam que sua situação seria resolvida por

“uma autoridade constituída que pudesse proteger os mais pobres sem ameaça de

instabilidade” (SINGER, 2012, p. 58), em face da existência de uma classe

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desorganizada e avessa às formas de intervenção da classe operária. Para Singer,

esse modelo de comportamento já havia sido identificado na obra de Marx:

O 18 Brumário, revela que a projeção de anseios numa figura vinda de cima, que deriva da necessidade de ser constituído enquanto ator político desde o alto, é típica de classes ou frações de classe que tem dificuldades estruturais para se organizar. A natureza do vínculo esclarece porque o seu surgimento sempre causa surpresa. Como eles “não podem representar-se, antes têm que ser representados”, aparecem na política de repente, sendo criados de cima para baixo, sem aviso prévio, sem a mobilização lenta (e barulhenta) que caracteriza a auto-organização autônoma das classes subalternas quando se dá nos formatos típicos do século XX, isto é, dos movimentos e partidos operários. (SINGER, 2012, p. 59)

Essa hipótese do conservadorismo popular se tornou a principal tese para

pensar as possibilidades de mobilização política das classes populares no Brasil.

Assim, para Singer as vitórias de Lula, em 2002 e 2006, constituiriam o processo

pelo qual as classes desorganizadas passariam a ser representadas pelo alto, no

lulismo de tipo bonapartista. Sua tese seria a de que as opções governamentais

tomadas no primeiro mandato de Lula desprestigiaram a classe média e os

“contingentes de pobres” teriam ocupado o seu lugar.

Em 2006, em pleito de continuidade, há relevantes trocas de posição social no interior da coalizão majoritária: em função das opções governamentais tomadas no primeiro mandato de Lula, a classe média se afasta e contingentes pobres ocupam o seu lugar. Isso quer dizer que, embora o processo de mudança tenha começado em 2002, a eleição decisiva do ponto de vista das classes, na qual o subproletariado adere em bloco a Lula e a classe média ao PSDB, é a de 2006 (SINGER, 2012, p.14).

O programa econômico e social de Lula, ao canalizar as ações para reduzir a

pobreza, teria promovido a repolarização política retirando o subproletariado da

influência da burguesia e realizando o que seria o programa político desta fração da

classe trabalhadora: “um Estado capaz de ajudar os pobres sem confrontar a ordem”

(SINGER, 2012, p. 21).

Essa repolarização, que implicaria antes de tudo a mudança do conteúdo

programático do PT em preferência dos mais pobres, e menos dos trabalhadores,

deslocou a perspectiva de um conflito entre proletariado e burguesia, esquerda e

direita para a agenda entre política para pobres versus para ricos. O resultado foi a

conformação de duas coalizões políticas que deslocou a classe média ao campo de

oposição, seriam estas: uma coalizão produtivista e outra rentista.

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Os empresários industriais e a classe operária formariam uma coalização

produtivista, pois, aos últimos interessaria garantir a atividade produtiva que

possibilitaria ter “maior número de bons empregos” semelhantes às economias do

estado de bem-estar; aos empresários preocuparia a queda constante das

atividades fabris desde 1990.

Essa frente teria como programa controlar a entrada e saída de capital estrangeiro e diminuir juros, cuja elevação, como já vimos, encarece os investimentos produtivos e desvaloriza o real, barateando as importações e ameaçando as cadeias produtivas internas. Além disso interessa a coalizão elevar substancialmente a taxa de investimento público em infraestrutura, tornando baratas as atividades produtivas. Tal aumento poderia ocorrer usando recursos públicos poupados por diminuição significativa dos juros. (SINGER, 2012, p. 161)

A outra coalizão seria a “rentista”, formada pelo capital financeiro nacional e

internacional, além da classe média, que teria o interesse em manter o real

valorizado e os altos rendimentos advindos da elevação da taxa de juros. Ao tratar

da posição da classe média dentro desta coalizão, Singer tratou, então, de um

importante impacto da mobilidade social sobre as condições de vida da classe

média, o que a levaria a se afastar e se posicionar como oposição ao PT e ao seu

programa político.

Aqui estaria uma tese fundamental que buscou captar as mudanças na

dinâmica política brasileira e o impacto das políticas promovidas pelo PT na posição

política das classes. A classe média se aproximaria do interesse do grupo rentista,

pois possuiria investimentos e seria beneficiária dos juros elevados. “O acesso a

produtos importados, a viagem internacionais baratas, bem como a compras

vantajosas no exterior” (SINGER, 2012, p. 164) seriam elementos que explicariam a

resistência destas à proposta produtivista de baixar juros, diminuir autonomia do

banco central e controlar o fluxo dos capitais. (SINGER, 2012, p. 164)

Dessa forma, Singer elaborou a hipótese de que o Lulismo afetaria o padrão

de vida da classe média, criando assim uma base oposicionista. A classe média

rejeitaria por completo o lulismo “sensível à argumentação empresarial de que a

carga tributária no Brasil seria excessiva”, tendo, segundo dados de 2009, atingido

34% dos salários. A ideia propagada pelo setor de classe média opositor ao lulismo

seria a de que o sucesso do governo Lula foi conquistado com “o dinheiro que lhe é

tirado pelos impostos”, (SINGER, 2012, p.205).

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Não apenas isso, a ascensão do subproletariado teria feito com que a classe

média diminuísse seu status ao ter de partilhar lugares antes inacessíveis aos

consumidores populares. Nas palavras de Singer, “nos espaços públicos, a classe

média tradicional passa a ser tratada como igual” (SINGER, 2012, p. 205). Além

disso, a classe média altera a sua relação com seus prestadores de serviços, em

que os trabalhos domésticos, com a formalização, passariam a ter direitos

trabalhistas. Regularam-se as horas de trabalho, a carteira de trabalho foi exigida, e

ainda, aumento salarial, que chegou a registrar 35% a mais nos rendimentos dos

trabalhadores em 2009 (SINGER, 2012, pp. 205/206).

Enquanto a classe média, segundo argumentos de Singer, vai reagindo ao

programa Lulista, não menos importante seria perceber a mudança de perspectiva

ideológica do subproletariado na expectativa de que se cumprisse um programa de

inclusão com manutenção da ordem.

Ocorreria assim a repolarização política, enquanto a classe média se

unificaria em torno do PSDB, na procura de restaurar o status quo, ainda que isso

não pudesse ser dito com todas as letras. O subproletariado se desligaria da

influência política da burguesia, expressa no afastamento eleitoral da base do DEM

no nordeste para o lulismo, o que implicaria também, na quebra de um sistema de

estruturação econômico e político brasileiro; haja vista a nossa questão setentrional,

em que a massa rural e semirrural do nordeste, que não encontrava lugar nas

relações de mercado capitalista “normais”, servia como mão de obra barata

imigrante para as regiões mais ricas.

Essa massa camponesa, incapaz de “dar uma expressão centralizada às

suas aspirações e necessidades [...] ”, ficaria ligada, por meio dos intelectuais locais,

“ao grande proprietário rural [...]” (SINGER, 2012, p.41). Essa estrutura coronelista

teria ficado, segundo Singer, inalterada no período de Getúlio Vargas, e agora se

alteraria com o lulismo. O autor defendia, assim, não apenas uma alteração do PT,

mas também que as medidas assumidas por estes sujeitos impactaram na alteração

de um comportamento político histórico das massas populares no Brasil.

Isso mostraria, por um lado, que o lulismo promovera uma repolarização

ideológica em que os mais pobres passaram a apoiar programas eleitorais que

garantissem maiores gastos sociais. Por outro lado, pesaria sobre a desorganização

desses grupos o efeito desmobilizador do lulismo, por ser lento e não promover a

incorporação massiva dos indivíduos à classe trabalhadora, além de

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fundamentalmente surgir de cima para baixo e não realizar organização e

mobilização, o que poderia “comprometê-lo em uma crise”. (SINGER, 2014, p. 46).

Dessa forma, o abandono do projeto de reformismo forte teria levado ao

abandono da proposta de auto-organização para a luta política de classes. A

experiência do subproletariado com o programa lulista teria conformado uma

expectativa que pressionaria qualquer agenda política, de qualquer partido que

buscasse conquistar o apoio do subproletariado, a assegurar duas condições

fundamentais: “inflação baixa e aumento do poder de consumo” (SINGER, 2012,

p.160) Assim, o PT adotou um reformismo fraco por seguir a orientação política

conservadora das camadas populares, qual seja, buscar políticas de equalização

com manutenção da ordem.

O autor explica que o subproletariado pode conviver com as altas taxas de

juros, desde que a expansão do crédito aberta pelo governo continue e se

mantenham os investimentos e a geração de emprego. A extinção da indústria não

teria um peso para esta fração, desde que possam ser incorporados na economia de

mercado. O lulismo não estaria comprometido com a desigualdade social, mas

apenas com o combate à pobreza, que são dinâmicas diferentes.

A tese de Singer tem como principal questão, o impacto do programa

governamental na mobilização e desmobilização das classes. O que o autor tem

como principal contribuição para nosso trabalho seria a dinâmica pela qual descreve

como o subproletariado desloca a preferência eleitoral, mas de uma forma

desmobilizadora, enquanto a classe média extrapola a indiferença política.

Quais possibilidades de ação política desse novo emergente? De que

maneira as políticas de valorização do salário mínimo, ampliação do crédito e

transferências de renda para combater a pobreza, com geração de empregos

precários, influiriam sobre o comportamento político dessa nova massa de

trabalhadores? Para Singer, o importante não seria dar resposta a esta pergunta,

mas destacar a “potência do reformismo”, ainda que fraco, para abrir oportunidades

históricas com a ascensão do subproletariado à condição de proletário, intervindo na

luta de classes no Brasil. (SINGER, 2012, p. 212).

Ruy Braga (2012), por seu turno, defendia que a hegemonia lulista seria um

modo de regulação que assegurava a adesão das classes subalternas brasileiras ao

atual regime de acumulação pós-fordista financeirizado. O elemento central de sua

argumentação seria a “satisfação” da fração mais pobre e precarizada das massas

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trabalhadoras, aquela sem estabilidade no emprego e de baixa qualificação, que ele

denominava de precariado55. O autor assinala ainda que este segmento carregaria

uma inquietação e influenciaria os rumos políticos do Estado, o que se contrapunha

à ideia de que este segmento seria facilmente manipulado, constituindo um

empecilho para os avanços das demandas da classe operária e subordinado a um

lulismo de tipo conservador, amoldado aos valores e interesses das classes

superiores.

Este argumento havia sido antecipado por Albertino Rodrigues em sua análise do sindicalismo de Estado. Ao investigar como a legislação varguista conteve a combatividade operária por meio da regulação burocrática dos conflitos trabalhistas, o autor revelou em que medida a inquietação das bases operárias pressionou os “pelegos” sindicais ao ponto de substituí-los por lideranças comunistas e trabalhistas “de esquerda”.(...) No entanto, destacando a centralidade dessas massas populares para a legitimação do regime político, Weffort sublinhou, ao mesmo tempo, a dependência dos sindicatos e a “pressão” exercida pelos trabalhadores sobre o Estado. Por um lado, se o sindicalismo integrava a dominação populista, por outro, esta necessitava incorporar parte da pressão exercida pelos “de baixo”. O modo de regulação deixou de ser interpretado como produto da manipulação de massas atrasadas por lideranças carismáticas para ser apreendido dialeticamente como manifestação da pressão inorgânica do operariado sobre o Estado de compromisso (BRAGA, 2012, pp.76/77).

O precariado, que compunha a periferia das cidades com baixas condições de

trabalho e renda, teria se baseado em uma prática política também “precária”,

embrião da hegemonia lulista. Diferentemente de Singer, porém, para Braga, o

lulismo seria fundamentado numa hegemonia precária, visto que o sistema

capitalista não teria a capacidade de cumprir com suas promessas com os “de

baixo”, o que levaria à realimentação da inquietação destes operários. O caráter

deste segmento não seria, pois, conservador ou desmobilizado; os de baixo seriam

55“Esquematicamente, o precariado seria formado por aquilo que, excluídos tanto o lumpemproletariado quanto a população pauperizada – eis a principal diferença em relação à análise de Singer –, Marx chamou de “superpopulação relativa”, isto é, a soma das populações flutuante, latente e estagnada das classes trabalhadoras. Tendo em vista a dinâmica dos investimentos capitalistas e a aceleração do consumo da força de trabalho, a população flutuante seria formada por aqueles trabalhadores ora atraídos, ora repelidos pelas empresas. A população latente seria composta por jovens e trabalhadores não industriais à espera de uma oportunidade para deixar os setores tradicionais, especialmente rurais, estabelecendo-se na indústria. Por sua vez, a população estagnada já seria parte da força de trabalho, ocupando, no entanto, funções tão deterioradas e mal pagas que sua condição de vida cairia para níveis subnormais de existência (Marx, 1989). Em síntese, o precariado é formado por este amálgama de trabalhadores, excluídos os trabalhadores profissionais e a população pauperizada". (Braga,2012, p.54)

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antes parte fundamental do avanço dos compromissos com as classes populares,

pressionando sindicatos e Estado. O modo de regulação do Estado pelo lulismo para

Braga seria fundamentado nessa hegemonia precária:

[...] uma hegemonia precária implicaria a “traição das massas populares” por um regime quase totalmente incapaz de cumprir com suas próprias promessas reformistas, revivificando a pressão dos “de baixo”(...). Aos nossos olhos, a transição rumo ao modo de regulação autoritário, associada à radicalização do classismo prático já latente quando da supressão da democracia populista, impulsionaram a transformação do precariado metalúrgico em um poderoso sujeito político que, ao encontrar-se com a burocracia sindical de São Bernardo, originou, em 1978, a forma primitiva da hegemonia lulista: a articulação do consentimento ativo das cúpulas com o consentimento passivo das bases, alicerçado sobre a negociação, com as empresas, de pequenas concessões para os trabalhadores. (BRAGA, 2012, p.81)

O precariado de Braga apresenta uma trajetória política marcada por uma

“inquietação” diante das modestas conquistas econômicas, políticas e sociais. Não

haveria “satisfação” a ponto de haver identificação com o Estado, que precisaria

conquistar o apoio deste segmento para garantir legitimidade, realinhando diversos

compromissos que, apesar de possibilitar uma mobilidade social, não implicava em

uma ascensão social de fato, ou seja, não alteravam a estrutura de desigualdade.

Os subalternos continuavam sendo subalternos, o que mantinha acesa a

inquietação.

Essa inquietação, na medida em que gerava a necessidade de uma atenção

constante do Estado para garantir sua legitimidade, permitiria estabelecer a forma de

ação política das classes populares brasileiras, conforme argumenta Braga:

Parece-nos meridianamente claro que Weffort enfatizou não a manipulação dos trabalhadores, mas a centralidade da ação inorgânica das massas populares sobre o “Estado de compromisso”. (...)longe de se sentir “satisfeito” com as condições materiais de existência decorrentes da industrialização acelerada do pós-guerra, o precariado brasileiro viveu uma experiência contraditória: por um lado, os trabalhadores percebiam o relativo progresso material resultante da transição do campo para a cidade, por outro, experimentavam a angústia decorrente da reprodução de sua subalternidade classista. (...) Como observou Weffort: “a vitória individual traz em germe a frustração social”. Ao fim e ao cabo, as modestas conquistas políticas e econômicas alimentaram um estado permanente de inquietação que esgarçou os limites do compromisso populista. (BRAGA, 2012, p. 68, grifos do autor).

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Desse modo, a tese da satisfação e do conservadorismo que levaria à

desmobilização, desorganização e neutralidade do subproletariado em Singer, foi

contestada por Braga a partir de uma teoria da inquietação dos de baixo.

Por outro lado, a hipótese da tendência ao conservadorismo foi adotada por

Cavalcante (2015) para tratar do oposicionismo da classe média brasileira aos

governos do PT. Não se trata de um conservadorismo desmobilizador, pois essas

camadas se organizaram e foram às ruas no ciclo pós-lula no que culminou na

queda do governo de Dilma56. Para este autor, o conservadorismo liberal que

influenciou a prática da classe média brasileira foi “uma combinação singular de

ideias meritocráticas com uma histórica dificuldade ou aversão à inclusão social e

política de amplo alcance” (CAVALCANTE, 2015, p. 178).

Cavalcante levanta quatro hipóteses fundamentais para explicar a revolta da

classe média ao programa político do PT. A primeira refletia como a elevação dos

gastos da classe média, especialmente com os serviços prestados a famílias pelo

subproletariado, que refletiria não somente o aumento salarial dos trabalhadores no

governo Lula, mas sobretudo de uma “nova conformação política da relação entre

“patrões” e “empregados” com o advento da lei que regulamenta a profissão”

(CAVALCANTE, 2015, p. 188).

Isso nos leva à segunda hipótese, também presente em Singer: o incômodo

da classe média em compartilhar espaços sociais antes restritos à sua sociabilidade.

A classe média sentiu a alteração do seu padrão de vida, visto que se antes as

classes populares frequentavam o mesmo espaço que ela, o faziam na condição de

subordinados.57

A terceira hipótese entende que a expansão dos programas de curso superior

teria aumentado a competição entre portadores de diploma, o que “faz com que

56 Para saber mais ler : Singer, André et al. Por que gritamos golpe?: para entender o impeachment e a crise política no Brasil. Boitempo Editorial, 2016. E também Souza, Jessé. A radiografia do Golpe. Entenda como e por que você foi enganado. Leya, 2016. 57 A fim de exemplificar o conservadorismo da classe média e sua aversão a políticas de inclusão social, Cavalcante considera que “Talvez quem mais bem capturou esse espírito tenha sido um dos mais celebres conservadores liberais do momento, que, por estilo, não perde a chance de se autoelogiar por não temer expor seus sentimentos diante do “politicamente correto”. Assim se expressou Luis Felipe Pondé: “Estou a 25 mil pés de altitude, voando num destes turboélices. Adoro o som da hélice. Lá embaixo, paisagens distantes. Gosto de voar. Comecei a voar com um ano de idade, quando meu pai, então um jovem capitão médico da aeronáutica, me levava para voar em aviões da FAB. Entretanto, detesto aeroportos e classes sociais recém chegadas a aeroportos, com sua alegria de praças de alimentação. Viajar, hoje em dia, é quase sempre como ser obrigado a frequentar um churrasco na laje” (CAVALCANTE, 2015, p.89)

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gradualmente os esforços despendidos em educação se transformam em

frustração”, dada a dificuldade de reproduzir o mesmo padrão de vida dos pais, o

endividamento para custear os estudos, e ainda o adiamento da entrada dos filhos

no mercado de trabalho levando-os ao consequente prolongamento de sua

permanência na casa dos pais (CAVALCANTE, 2015, p. 189).

De tal maneira, o autor entendia que a melhoria das condições de vida dos

de baixo sem a proporcional geração de melhores oportunidades no mercado de

trabalho, poderia ser uma das causas das manifestações de ódio político, pois

geraria o “sentimento de frustração e indignação quanto a dificuldade de reproduzir

as mesmas condições de um determinado modo de vida” (CAVALCANTE, 2015, p.

189).

Por fim a última hipótese pretendia demostrar como a intensidade da revolta

da classe média com o programa de inclusão das classes populares teria relação

com a afronta à ideologia que justificaria sua posição social. Para o autor, isso fica

claro quando se observa a relação com as políticas de cotas sociais e étnico-raciais,

cujo efeito teria sido a reserva de vagas disponíveis nas universidades e nos

concursos públicos, processo que questionou a validade do mecanismo

meritocrático. Essa seria a perturbação decisiva para a conformação do sentimento

de revolta da classe média. (CAVALCANTE, 2015, p. 191).

Como vimos, se entre Singer e Braga existe uma controvérsia em relação à

capacidade de mobilização e organização de certo setor do subproletariado, entre

Singer e Cavalcante existe uma concordância a respeito da mobilização da classe

média antilulismo

Esse debate nos levou a questionar ainda as teses do conservadorismo das

classes brasileiras. Ao que vimos, Neri, Pochmann e Singer descreveram a classe

média como classes eminentemente conservadoras. Mas, ao mesmo tempo,

Pochmann e Singer consideram que as classes populares, pelas questões de sua

constituição em relação às ocupações exercidas, são suscetíveis à influência da

posição das classes médias. As classes populares seriam conservadoras e

desmobilizadas, antes e pós-Lula. O conservadorismo das classes populares e da

classe média teria o mesmo teor? Ao nosso ver, entre os teóricos analisados, o que

melhor desenvolve esse contraste para delimitar a diferença da visão de mundo das

classes populares e da classe média que, por sua vez, orienta a ação política, seria

Souza.

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O conservadorismo da classe média, que influencia as classes populares, tal

como destacamos perpassa pela dissensão ideológica que a constituiria, a ideologia

meritocrática. Para Souza, o meritocratismo seria disseminado em todas as classes

sociais, mas a forma como as afeta seria diferente. Assim, se ela compunha o

conservadorismo de uma classe média alta, ela também buscaria dar direção à ação

política das classes populares. Investigar essas diferenças significa ultrapassar a

argumentação analítica contextual, expressa na insatisfação da classe média aos

programas sociais e indicaria a necessidade de perceber a lógica do novo

capitalismo como propulsora dos valores individualistas, capaz de disseminar novas

justificativas para conformar o consentimento das classes em relação à própria

desigualdade, ou seja, a narrativa do mérito individual que dá sentido às diferenças

(desigualdades) entre os sujeitos. Esses discursos comporiam a visão de mundo, a

estética e o estilo de vida das classes em geral.

As alterações na dinâmica capitalista incitaram mudanças nas ideias e

conformam o novo espirito de um novo tempo. As oportunidades criadas em

pequenos empreendimentos familiares por meio do acesso a microcréditos

correspondiam à nova dinâmica capitalista de pequena produção, flexível, pequenos

negócios que muitas vezes não pagam impostos e direitos trabalhistas. Estes novos

trabalhadores constituídos sob a insígnia do empreendedorismo não se

identificavam com a classe trabalhadora, mas, consideravam-se patrões de si

mesmos. Essa visão de mundo seria parte fundamental das ideias e valores que

constituem a formação dos trabalhadores no capitalismo financeirizado e teriam

impacto sobre sua leitura de mundo e produção de interesses. Com quais

orientações politicas se alinharia alguém que se percebe como empresário? Souza

não fez essa pergunta ou sequer a respondeu, mas nos alertou para que não se

vincule, diretamente, à mesma percepção de uma classe média.

Uma precondição para a ascensão social da ralé para batalhadores seria a

ética do trabalho duro, que compunha a ideia do mérito por esforço próprio. Essa

moralidade precisava ser apreendida como forma de distinção na hierarquia moral

opaca que classificaria e desqualificaria os indivíduos, além de ser a base para se

tornar um trabalhador útil ao mercado capitalista. Os valores do trabalho duro e

continuado dariam sentido à vida destes trabalhadores precários e os tornariam

dignos de respeito na sociedade.

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Ao contrário do que se pensa na vida social cotidiana, ninguém nasce com essas disposições e elas não fazem parte, como a capacidade de ver e ouvir, do repertorio de capacidades ao alcance de todos que estão vivos. Ao contrário, essas disposições têm que ser apreendidas, embora seu aprendizado seja difícil e desafiador e não esteja ao alcance de todas as classes. (SOUZA, 2012, p. 51)

Essa “ética do trabalho”, encontrada por Souza nos batalhadores, seria

diferente da ética que estaria presente na classe média uma vez que, para os

primeiros, a necessidade do trabalho se imporia desde cedo, enquanto que, para

classe média a única responsabilidade de um jovem seriam os estudos, tempo que

usaria para se apropriar de capital cultural, aumentando suas chances na

competição social. Esse seria um tempo, não disponível, aos jovens da classe

trabalhadora, que se tornam uma mão de obra barata e disponível para o trabalho

braçal e doméstico, servindo as classe médias e altas.

As novas disposições do trabalho moderno contidas nessa ética do trabalho

duro seriam:

[...] disciplina, autocontrole, comportamento e pensamento prospectivo seriam transmitidas por meio da socialização familiar. Se o capital econômico transmitido é mínimo, e o capital cultural e escolar comparativamente baixo em relação às classes superiores, média e alta, a maior parte dos batalhadores entrevistados, por outro lado, possuem família estruturada, com incorporação dos papéis familiares tradicionais de pais e filhos bem desenvolvidos e atualizados" (SOUZA, 2012, p. 50).

A diferença na estrutura familiar entre batalhadores e ralé seria precondição

social fundamental na competição social cultural. A ralé muita das vezes

pertenceriam às famílias:

[..] disruptiva, a escola é pior e muitas vezes consegue incutir com sucesso insegurança na própria capacidade, os exemplos bem sucedidos na família são muito mais escassos, quando não inexistentes, quase todos necessitam trabalhar muito cedo e não dispõem de tempo para estudos; o alcoolismo fruto do desespero com a vida, ou o abuso sexual sistemático são também sobrerrepresentados nas classes populares. (SOUZA, 2012, p. 60)

O sociólogo reconhecia que a ascensão só seria possível desde que

existissem as “oportunidades de qualificação e inserção produtiva no mercado

competitivo”. Porém, ao observar o quadro em que se estrutura a ralé, seria possível

perceber a ausência de precondições necessárias, como afetivas e cognitivas e uma

narrativa que restitua o sentido da própria vida. De tal forma os batalhadores seriam

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aqueles que conseguiram criar mecanismos de superação da sua exclusão,

segundo a pesquisa de Souza:

nossa pesquisa revelou que essa classe conseguiu seu lugar ao sol às custas de extraordinário esforço: à sua capacidade de poupança e de resistência ao consumo imediato e tão mais importante que tudo que foi dito, a uma extraordinária crença em si mesmo e no próprio trabalho. (SOUZA, 2012, p. 50)

Assim para refletir a ação política destes sujeitos seria necessário ter em

conta que a visão de mundo deles seria orientada pelo discurso da ética do trabalho

duro, que justifica a desigualdade, legitima uma hierarquia e distinção, tanto

econômica quanto moral entres os indivíduos. Como o resultado da sua ascensão

era visto antes como resultado do esforço pessoal, adotariam a ideologia do mérito,

naturalizariam a competição social, apesar de sua desvantagem na competição

social com a classe média, que estaria oculta, pois já seria transmitida na

socialização familiar.

As mazelas que os afligem não seriam nessa percepção de mundo, resultado

de um conflito de classe, mas de um Estado ineficiente e corrupto. Neste caso, o

bloqueio à ascensão da ralé não estaria apenas na falta de políticas públicas que a

promovessem, estaria, antes, no conservadorismo do pensamento social brasileiro,

marcado pela ideia de meritocracia, de Estado corrupto (tese do patrimonialismo) e

ainda pelo racismo de classe58.

Esse conjunto de ideologias não pertenceriam a uma única classe, mas

atravessaria todas, contudo, produzem efeitos diferentes para a posição de cada

uma. A meritocracia, por exemplo, seria incorporada por todos os segmentos sociais

de forma a naturalizar que a desigualdade seria algo natural decorrente do

merecimento de cada um, promovendo o individualismo e legitimando o mercado

58 O racismo de classe consiste em atribuir a desigualdade à incapacidade cognitiva das classes populares, tanto para o trabalho quanto para a decisão política, ideias que dominam a esfera pública e escondem os conflitos entre as classes pela distribuição de riquezas e privilégios, fazendo parte assim da violência simbólica da construção do merecimento, em que as classes dominantes são “além de tudo mais inteligentes”.(SOUZA, 2012, p. 356). Em uma passagem do trabalho de Lamounier e Souza, a avaliação positiva das classes populares ao governo foi adjetivada como coincidência de um setor “pouco interessado e atento”, o que para Souza seria sinônimo de tratar o apoio deste setor ao governo Lula e Dilma como “burrice”. Segundo esse senso comum que relaciona pobreza e burrice, “as classes populares no Brasil não sabem “votar” posto que não conseguem ter uma compreensão racional de seus interesses, sendo por tanto presa fácil do estatismo e populismo” (p.359).

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competitivo, mas ela é a ideologia que beneficia principalmente a classe média e a

sua posição superior à classe trabalhadora.

Essas ideias constituem um processo de dominação simbólica que, se, por

um lado, privilegia as classes médias e altas, por outro, condena as classes

populares. Ao realizar as entrevistas com os segmentos precarizados que

denominou de ralé e batalhadores, Souza percebeu que:

o domínio permanente de classes sobre outras exige que as classes dominadas se vejam como inferiores, preguiçosas, menos capazes, menos inteligentes, menos éticas (SOUZA, 2013, p.63)

Para Souza, a disseminação no senso comum de que o Estado brasileiro

seria corrupto e apenas os menos favorecidos não o perceberiam, partiria de uma

estratégia do pensamento liberal para camuflar ações que levam ao aumento da

exploração da classe trabalhadora, ocultando o capitalismo violento que se

instaurava, marcado pelo atendimento do interesse de uma minoria. Como busca-se

argumentar, esse liberalismo era parte da orientação política de todas as classes

sociais brasileiras.

O autor trata assim, de uma teoria da dominação social em que houve a

incorporação destas noções pelos próprios dominados, pois não haveria dominação

se não houvesse convencimento, em uma estrutura de violência simbólica que

silenciaria a luta de classes (SOUZA, 2013, p.63). A novidade diante das políticas

promovidas pelos governos do PT, na dinâmica política, seria que estes

trabalhadores precários, que, por um lado, se apropriaram dos valores e ideias do

capitalismo financeirizado como forma de sobreviver, por outro, reconheceriam as

políticas sociais como forma de melhoria das suas condições de vida.

Assim, ao contrário do que propagaria a tese do patrimonialismo, as pessoas

entrevistadas por Souza perceberam o crescimento das políticas sociais além das

políticas de microcrédito “ainda que, diga-se de passagem, largamente insuficiente”,

como questões fundamentais da mobilidade social e o fato de atravessarem a

experiência (seja ela no âmbito da família ou da vida pessoal) de ter ascendido por

meio de políticas sociais, demarcaria sim, uma diferença entre classe média e

classes populares. (SOUZA, 2012, p.355). Como indica Cavalcante (2015), o fato de

a classe média alta não ser beneficiada por políticas sociais, pelo contrário, estas

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teriam diminuído seu poder de distinção social, permitiu compreender sua aversão

maior ao lulismo.

Não menos importante, Souza afirma ainda que parte considerável da ralé e

dos batalhadores entrevistados possuía uma mesma religião, o pentecostalismo.

Para o autor, a religião expressava uma estratégia de socialização e ascensão de

classe, em que se construía um espaço em que setores excluídos da sociedade não

sentiriam a pressão dos mecanismos que os segregavam (SOUZA, 2012 p. 314)

O pentecostalismo atenderia às classes periféricas não integradas ao

mercado, consideradas subclasses, e produziria um espaço em que estes pudessem

encontrar suportes sociocognitivos para competir na sociedade capitalista,

principalmente como estratégia para diferenciar o passado do futuro, marcando a

produção de um valor fundamental à sociedade moderna, a capacidade de projetar o

futuro, de ter pensamentos prospectivos através da “profecias do dia a dia” em que

se apresentam as biografias individuais que foram vitoriosas. Além disso, cria-se

uma rede de oportunidades econômicas a partir do grupo religioso, uma estratégia

coletiva chamada de células e se constroem redes intrafamiliares para a proteção

(SOUZA, 2012, p.347). Assim, para Souza, estaria clara a relação entre religiosidade

e dinâmica das classes.

Esse processo de ascensão estaria estreitamente ligado à mobilização de um

pensamento político conservador nas classes emergentes, seja em face, por

exemplo, da inclusão pelo consumo, ou de um pacto conservador entre esses

segmentos e o Estado, ou mesmo pela emergência de um novo tipo de capitalismo.

Porém, esse processo teria sido desmobilizador no que tange à construção coletiva

dos sujeitos enquanto classe. Isto é, a “nova classe média” aparecia muito mais

como categoria de análise do perfil dos sujeitos do que como um conceito que

reconhecia a associação e o potencial de mobilização destes emergentes.

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Conclusão

As reflexões desenvolvidas nesta dissertação permitiram abordar a

configuração das classes sociais no Brasil, que se alterou durante os governos do

Partido dos Trabalhadores devido a rearranjos políticos e sociais que impactaram

nos dados socioeconômicos. Evidenciou-se que entre 2002 e 2012 se modificaram

as estruturas e as relações de classe, além de ter ocorrido o deslocamento da

posição política do PT e das classes populares no país. Essas mudanças, por sua

vez, fomentaram o debate intelectual em torno de conceitos caros, como por

exemplo, o de “classe média” e, sobretudo, de "nova classe média", central neste

trabalho.

Nesse sentido, realizou-se, uma revisão bibliográfica com o intuito de

contrapor abordagens e teorias. Nesse percurso, tratamos de importantes

fenômenos vinculados à mobilidade social, como a relação entre empregabilidade,

precarização do trabalho e redução da classe média, a permanência da polarização,

tanto da estrutura socioeconômica quanto política.

Ao mesmo tempo, observou-se que o processo das mudanças sociais não

fugiu à lógica da estruturação ocupacional no capitalismo financeiro e não barrou a

penetração deste na organização material e simbólica dos sujeitos sociais no Brasil.

Essa modalidade contemporânea do capitalismo limitou o alcance das

transformações sociais no período analisado.

O governo federal, ao aderir à tese de uma “nova classe média” formulada por

Neri, não apenas incorporou os pressupostos liberais para elaborar suas políticas

públicas, mas também disseminou ideias e valores que passariam a conformar os

novos sujeitos necessários ao funcionamento deste modelo de ascensão social pela

política de consumo de massa, estratégia que, analisada apenas na relação entre

políticas de governo e sociedade civil, mostrou-se, de fato, desmobilizadora das

classes trabalhadoras, além de incapaz de garantir as “verdadeiras” condições de

um padrão de vida de classe média.

Para os autores, críticos dessa perspectiva, ao longo deste trabalho,

Pochmann, Quadros, Singer e Souza, a associação dos segmentos sociais

ascendentes à tese de um padrão de vida de classe média seria frágil, levando-os à

interpretação de que a classificação “nova classe média” teria servido de

instrumento político e ideológico.

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Ao analisar o modelo econômico que promoveu este crescimento foi possível

perceber que a recuperação do mercado de trabalho se deu com as políticas

públicas de renda para o aumento do poder de compra, ou seja, uma política

pautada pela promoção do consumo, aliada aos interesses do mercado. Esta política

acabou por orientar tanto a privatização de serviços, quanto a produção do

imaginário de uma sociedade de consumo. Dessa forma, a busca pela ascensão

social com intuito de obter distinção, que marcaria o comportamento de classe

média, foi útil a essa política de consumo.

A diferença primordial que se verificou nestas outras perspectivas em relação

à de Neri foi a primazia de uma abordagem sociológica de classes sociais, embora

cada pesquisador tenha ambientado a pesquisa dentro de sua área de

conhecimento. Buscou-se, neste momento, tendo em vista a miríade de leituras

possíveis para as classes no âmbito sociológico, destacar o conceito de classe

média para cada um dos autores analisados, a fim de melhor compreender esta

divergência.

Nesse sentido, destacou-se, em razão do caráter histórico das abordagens

sociológicas analisadas, que os autores retomaram, ainda que minimamente, o

processo de formação das classes sociais no Brasil. Para eles, o país, até 2002, se

revelaria socialmente por sua desigualdade social extrema, em que a classe média

se mostraria um grupo reduzido, em um país que sequer completara seu processo

de industrialização e, portanto, não teria uma estrutura ocupacional capaz de gerar

de forma suficiente os empregos típicos de classes médias − gerência e supervisão

de empresas públicas e privadas, por exemplo − para a massa populacional .

A partir de leituras distintas, os economistas (Quadros e Pochmann),

afirmaram que a maioria da população estaria anteriormente em uma condição de

massa de trabalhadores sobrantes; o cientista político, Singer, defendia que essa

estrutura social estava marcada por uma sobrepopulação trabalhadora

superempobrecida permanente e que a presença contínua deste segmento na

estrutura social brasileira, o caracterizava como uma fração da classe trabalhadora,

o subproletariado. Enquanto que, para Souza, esta massa populacional nem mesmo

faria parte da classe trabalhadora, pois não possuiria as precondições sociais para

inserção no mercado de trabalho, surgindo como a ralé brasileira.

A análise da formação da estrutura das classes sociais indicou que as

desigualdades sobre as quais atuaram as políticas sociais de renda promovidas pelo

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governo Lula-Dilma eram tão abissais que permitiram apenas uma mobilidade no

interior da própria classe trabalhadora, incluíndo-a em trabalhos de baixa

escolaridade e remuneração, que não possibilitavam aos trabalhadores a obtenção

de um padrão de vida de classe média.

Assim, para Quadros, teria ocorrido uma ascensão dos miseráveis para a

massa trabalhadora e expressivamente para a baixa classe média remediada; para

Pochmann, tratar-se-ia da ampliação da classe trabalhadora pobre com a inclusão

de trabalhadores antes desempregados ou na informalidade; André Singer, de outro

modo, entende que a fração de classe do subproletariado atingiria melhores

condições salariais, passando à condição de proletariado e, por fim, Jessé de Souza

compreende que as oportunidades criadas levariam à formação de uma nova classe

trabalhadora sob condições de precariedade, os batalhadores.

Podemos ainda destacar a situação estrutural que atinge a formação da

classe média no Brasil que a tem feito aparecer na cena política por alterações no

seu padrão de comportamento mudando seu apoio político que oscilou ao longo da

década entre o apoio e o ódio ao PT, entre uma categoria individualista e as

manifestações de rua. O fato é que as abordagens de classe média como

trabalhadores não manuais assalariados indicariam como as transformações na

organização do trabalho, cada vez mais flexibilizado, desvinculados da relação

empregador e empregado, levando a uma sociedade cuja maioria das ocupações

situam-se por relações de prestação de serviço, teriam implicado na redução dos

cargos típicos da tradicional classe média como agente de controle e supervisão do

trabalho, ou ainda pela desvalorização dos diplomas que não garantem mais por si

melhores remunerações, processo que tem colocado em cheque a existência da

classe média como a conhecíamos.

Dessa forma, pode-se afirmar, a partir do balanço bibliográfico realizado, que

não existe nenhuma evidência, para o período analisado, de que as oportunidades

criadas teriam promovido empregos ou padrões de vida de classe média, e que

existiria um limite para a mobilidade social condicionada pelo próprio modelo político

e econômico.

As leituras de Pochmann, Quadros e Singer partem da compreensão de que

uma sociedade de classe média possui melhores oportunidades de trabalho. Os

trabalhos típicos de classe média exigiriam maior nível de qualificação e seriam

melhor remunerados, uma vez que respeitariam uma divisão na hierarquia do

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trabalho, como nos casos dos cargos de chefia, gerência e supervisão. Essas

características ocupacionais, segundo os autores, só seriam possíveis num modelo

de produção industrial. Além disso, eles entendem que a produção de produtos de

maior valor agregado permitiria um crescimento econômico robusto para garantir as

bases materiais dessa ascensão, permitindo, assim, o financiamento de políticas

sociais de bem estar pelo Estado.

Este quadro analítico permitiu delimitar criticamente o alcance do programa

econômico e social proposto pelo Partido dos Trabalhadores entre 2002 e 2012. O

que se viu na prática, segundo Singer, foi uma forte dependência do crescimento

econômico baseado nas commodities, ou, como os economistas apontaram, a

persistência de altas taxas de juros para controle da inflação e pagamento da dívida

pública. Esse modelo de desenvolvimento levou ao processo de desindustrialização

da economia e, consequentemente, à redução da possibilidade de configuração de

uma sociedade de classe média, apontando, assim, o limite da sustentação da

mobilidade social no país.

A análise de Pochmann, por sua vez, assinala que estes segmentos

tenderiam a absorver os valores e ideias do espaço em que trabalham, marcado por

uma perspectiva política e ideológica das classes altas e médias. Logo, para esses

autores, essas classes emergentes não faziam uso da organização institucional (por

exemplo, sindicatos, partidos, associações, etc) para defender seus interesses,

sofrendo ainda a desmobilização por políticas construídas de cima para baixo sem a

sua participação.

Neste contexto, a ascensão dessas classes emergentes abriria novas

possibilidades de mobilização e politização, ilustradas por Singer pelo fenômeno de

realinhamento eleitoral, no qual a intenção de votos dos de baixíssima renda, que

anteriormente apoiavam partidos como o DEM e PSDB passaria a sustentar as

candidaturas dos petistas Lula e Dilma.

Ao realizar o balanço geral deste debate, não menos importante foi notar que

a persistência de diferentes teses sobre a mobilidade social ocorrida no Brasil na

primeira década do século XXI não decorre apenas de uma divergência teórico-

metodológica, mas também envolveria uma disputa pela orientação das políticas

econômicas e sociais do governo a partir de uma definição do conceito de classe

média.

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Para Neri, definir classe média por renda teria permitido simplificar a

identificação deste grupos e monitorá-los, auxiliando na formulação de políticas

públicas que dariam continuidade ao processo de ascensão. Como vimos, ser de

classe média significava ser capaz de consumir para além da cesta básica e acessar

serviços de ordem privada, o que torna os emergentes não-dependentes dos

serviços públicos.

Pochmann, Quadros e Singer concordavam que o Estado tem o poder de

estruturar a forma que o mercado se organiza produtiva e socialmente, o que teria

impacto na economia, na urbanização, nas desigualdades estabelecidas, no padrão

de vida, como moradia, esgoto, energia elétrica, saúde, educação, etc. Ou seja, os

indicadores de classe média inspirariam a elaboração das políticas públicas

universais e um processo de ascensão pautado no modelo de bem-estar social.

Por sua vez, para o sociólogo Jessé de Souza, o conceito restrito de classe a

partir da renda ou “lugar na produção” não permitiria uma leitura que de fato

orientasse uma ruptura com o capitalismo. Seria, portanto, crítico à noção de que o

Estado necessita garantir certo crescimento econômico para financiar as políticas de

redução de desigualdade. Segundo Souza, a análise destes autores apresentava o

bem-estar social como resultado lógico e irremediável do progresso material

expresso pelo PIB, o que conduz à compreensão da “nação” como uma empresa

capitalista, naturalizando a atividade econômica capitalista e produzindo uma

justificação moral da economia. Para ele, seria fundamental perceber que a

economia não é neutra e que a expressão tanto material quanto simbólica do

capitalismo financeirizado seria o neoliberalismo.

Apesar dessa divergência nos pressupostos teóricos e categorias utilizadas

na análise da ascensão social, os autores destacaram o peso das ideias liberais

conservadoras sobre as classes populares e médias no Brasil. Apontaram a

presença de um imaginário social construído sobre a ética do trabalho, do mérito, do

controle da inflação, de uma solidariedade com os empresários que pertencem à

comunidade ou são da família, e da experiência religiosa como estratégia de

proteção social, sem tradição com organizações de classe.

Por fim, esta pesquisa tratou de um debate em movimento, sobre um

fenômeno em curso que ainda continua revelando seus impactos políticos em longo

prazo. Assim sendo, os trabalhos futuros que se propuserem a discutir os 12 anos

de governo petista na presidência da república não poderão se esquivar da reflexão

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sobre a nova classe média, como a que se propôs empreender aqui, pois, esse

conceito, como vimos, amplamente difundido pelos meios de comunicação e

incorporado pelo discurso do governo e de sua base, foi útil para revelar as

posições, as contradições e as perspectivas que constituíram um imaginário social e

permearam a posição política dos sujeitos e das relações de classe no país.

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