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MESTRADO HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA O Democrático – oposição à Ditadura Militar/Estado Novo e representações de Vila do Conde (1926-1936) Cláudia Alexandra Neves Vieira M 2019

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MESTRADO

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

O Democrático – oposição à Ditadura Militar/Estado Novo e representações de Vila do Conde (1926-1936) Cláudia Alexandra Neves Vieira

M 2019

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Cláudia Alexandra Neves Vieira

O Democrático – oposição à Ditadura Militar/Estado Novo e as

representações de Vila do Conde (1926-1936)

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em História Contemporânea, orientada pela

Professora Doutora Maria da Conceição Coelho de Meireles Pereira

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Setembro de 2019

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O Democrático – oposição à Ditadura Militar/Estado Novo e

representações de Vila do Conde (1926-1936)

Cláudia Alexandra Neves Vieira

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em História Contemporânea, orientada pela

Professora Doutora Maria da Conceição Coelho de Meireles Pereira

Membros do Júri

Professor Doutor Jorge Fernandes Alves

Faculdade de Letras – Universidade do Porto

Professor Doutor Gaspar Manuel Martins Pereira

Faculdade de Letras – Universidade do Porto

Professora Doutora Maria da Conceição Coelho de Meireles Pereira

Faculdade de Letras – Universidade do Porto

Classificação obtida: 18 valores

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À minha avó Amélia.

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Sumário

Declaração de honra ....................................................................................................... 9

Agradecimentos ............................................................................................................ 10

Resumo .......................................................................................................................... 11

Abstract ......................................................................................................................... 12

Introdução ..................................................................................................................... 13

1. O Democrático – história de um periódico republicano ........................................ 18

1.1. Fundação e papel enquanto órgão do Partido Republicano Português .................... 18

1.2. Características gerais, equipes diretivas e editores .................................................. 20

1.3. Órgão da reação republicana à Ditadura Militar e ao Estado Novo ........................ 23

1.4. A morte de O Democrático ..................................................................................... 24

2. Das origens da Ditadura Militar aos primeiros anos de afirmação do Estado Novo

– breve contextualização histórica .............................................................................. 28

2.1. Do golpe de Estado à instauração e queda da Ditadura Militar............................... 28

2.2. O Estado Novo – a formação da nova ordem .......................................................... 36

2.2.1. A ascensão de Salazar........................................................................................... 36

2.2.2. Ideário e mecanismos de afirmação do salazarismo ............................................. 38

3. O 28 de Maio e a Ditadura Militar – a posição de O Democrático ....................... 43

3.1. O golpe armado e a oposição à Ditadura Militar e seus governantes ...................... 43

3.2. A crítica aos monárquicos e o apelo à união dos republicanos ............................... 58

3.3. A crítica ao Integralismo Lusitano .......................................................................... 66

3.4. O apoio ao movimento reviralhista ......................................................................... 69

4. Representações da figura e ação política de Salazar (1928-1936) e críticas ao

Estado Novo .................................................................................................................. 75

4.1. Salazar e as Finanças ............................................................................................... 75

4.2. A crise do trabalho ................................................................................................... 79

4.3. A ética republicana face aos valores do regime ditatorial ....................................... 83

4.3.1. Catolicismo e laicidade ......................................................................................... 83

4.3.2. “Educar, eis o problema!” .................................................................................... 86

4.3.3. Recusa do nacionalismo exacerbado .................................................................... 94

4.3.4. A permanente defesa dos valores democráticos ................................................... 97

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4.3.5. A oposição do semanário ao Movimento Nacional Sindicalista ........................ 100

4.4. Praxis política do Estado Novo – crítica ao regime repressivo ............................. 103

4.4.1. União Nacional ................................................................................................... 103

4.4.2. Constituição de 1933 .......................................................................................... 106

4.4.3. Censura ............................................................................................................... 107

4.4.4. Polícia Política .................................................................................................... 109

5. A reação republicana ao Estado Novo – o apoio de O Democrático à luta contra a

Situação ....................................................................................................................... 113

5.1. Figuras republicanas – Afonso Costa .................................................................... 113

5.2. Aliança Republicana e Socialista .......................................................................... 115

6. O Democrático e as representações de Vila do Conde ......................................... 119

6.1. Características e potencialidades da vila ............................................................... 119

6.1.1. A beleza e singularidade da beira-mar e paisagem............................................. 119

6.1.2. O património histórico, monumental e artístico ................................................. 121

6.1.3. Tradição e cultura em Vila do Conde ................................................................. 123

6.2. Carências, atrasos e problemas regionais .............................................................. 127

6.3. Principais melhoramentos e reivindicações locais ................................................ 130

6.3.1. A importância da conservação e embelezamento da zona balnear para a promoção

da atividade turística ..................................................................................................... 130

6.3.2. Os deficientes cuidados de higiene: uma ameaça à saúde pública ..................... 133

6.3.3. A questão da linha telefónica: ligar Vila do Conde ao Porto ............................. 140

6.3.4. “Trevas, não. Luz, sim” ...................................................................................... 147

6.3.5. Água potável e saneamento básico ..................................................................... 151

6.3.6. A degradação do porto e da barra numa terra de marinheiros ............................ 156

6.3.7. Reorganização e aproveitamento das potencialidades das feiras locais ............. 159

6.3.8. “O Hospital vai fechar?”..................................................................................... 162

6.3.9. O flagelo da mendicidade ................................................................................... 166

Conclusão .................................................................................................................... 171

Fontes ........................................................................................................................... 177

Bibliografia .................................................................................................................. 178

Anexos .......................................................................................................................... 181

Anexo 1 – “Ao Começar”. O Democrático, nº 1, 18/05/1913, p. 1. ............................ 182

Anexo 2 – “Horas Tristes”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 1. ....................... 183

Anexo 3 – “A Vitória”. O Democrático, nº 630, 03/07/1926, p. 1. ............................. 184

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Anexo 4 – “O Perigo”. O Democrático, nº 647, 08/11/1926, p. 1. ........................... 185

Anexo 5 – GUSMÃO, Duarte Vilhena – “Sufrágio Universal”. O Democrático, nº 867,

12/06/1931, p. 1. ....................................................................................................... 186

Anexo 6 – GUSMÃO, Duarte de Vilhena – “A mocidade académica e a política”. O

Democrático, nº 878, 11/09/1931, p. 1. .................................................................... 187

Anexo 7 – GUSMÃO, Duarte de – “A Delação”. O Democrático, nº 898, 29/01/1932,

p. 1. ........................................................................................................................... 188

Anexo 8 – PORTUGAL, Eduardo – “Crimes”. O Democrático, nº 935, 28/10/1932, p.

1. ............................................................................................................................... 189

Anexo 9 – ARAÚJO, Artur da Cunha – “O cancro do analfabetismo”. O Democrático,

nº 2030, 30/10/1936, p. 1. ......................................................................................... 190

Anexo 10 – “Problemas a resolver”. O Democrático, nº 765, 26/04/1929, p. 1. ..... 191

Anexo 11 – SILVESTRE, Rosa – “Vila do Conde civilizada?!”. O Democrático, nº

921, 22/07/1932, p. 1. ............................................................................................... 192

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Declaração de honra

Declaro que a presente tese é de minha autoria e não foi utilizado previamente noutro

curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros autores

(afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da atribuição, e

encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências bibliográficas, de acordo

com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a prática de plágio e auto-

plágio constitui um ilícito académico.

Porto, 25 de novembro de 2019

Cláudia Alexandra Neves Vieira

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Agradecimentos

A elaboração desta dissertação de mestrado contou com fundamentais apoios e

incentivos sem os quais não se teria tornado uma realidade e aos quais ficarei eternamente

grata.

Um agradecimento especial à Professora Doutora Conceição Meireles Pereira,

pela sua orientação exemplar pautada pelo rigor, pelo total apoio e irrestrita

disponibilidade. O conhecimento que transmitiu, as opiniões e críticas com que contribuiu

e a absoluta colaboração na resolução de problemas e dúvidas que surgiram, foram

verdadeiramente fundamentais para concretização deste estudo.

Ao professor José Emídio Lopes pela importante cedência de bibliografia

fundamental para esta investigação, pelos conselhos e pela disponibilidade.

À Isabel, minha amiga e colega de percurso académico, que esteve sempre do meu

lado durante esta fase, com paciência, sentido de companheirismo e disponível para

ajudar em todos os momentos, especialmente nos mais difíceis.

Ao Bruno, por ser a retaguarda de todas as opções, pela confiança inabalável que

depositou em mim neste desafio a que me propus, pelas palavras de incentivo e pelos

incontáveis abraços apertados de força.

À minha família pelo apoio absoluto que sempre demonstrou perante a minha

vontade de realizar os meus objetivos académicos, pela incomensurável generosidade e

pela compreensão.

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Resumo

O presente estudo tem como objetivo analisar o periódico republicano vila-

condense O Democrático (fundado em 1913) no decénio final da sua existência – 1926-

1936 – percecionando as suas representações de Vila do Conde mas também o ambiente

de profunda transformação política que o país então vivia, desde a eclosão do golpe

militar do 28 de Maio aos primeiros anos de afirmação do Estado Novo.

Pretende-se, assim, além de estabelecer as características fundamentais deste

semanário – desde sempre alinhado pelo Partido Republicano Português/Partido

Democrático –, perceber a sua visão sobre Vila do Conde, a sua gestão municipal, bem

como as suas potencialidades e vulnerabilidades num quadro socioeconómico, político e

cultural na década em destaque, perscrutando nas suas críticas e propostas a ideologia

fundamental que o orientava. Esta observação à escala local é precedida de uma análise

a nível da política nacional, visando compreender os parâmetros de reação versus

aceitação do jornal relativamente ao processo de mudança de paradigma político – do

liberal ao ditatorial – que o país então viveu, na junção da crise política nacional e

económica mundial, e destacar as formas de afirmação democrático-republicana do

semanário até à sua extinção, à semelhança de tantos outros títulos da imprensa

democrática em Portugal, no ano de 1936.

Palavras-chave: O Democrático, Vila do Conde, Ditadura Militar, Estado Novo,

resistência republicana

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Abstract

The main purpose of this research is to analyze Vila do Conde’s republican

newspaper O Democrático (founded in 1913) in its final decade of existence – 1926-1936

– perceiving its representations of Vila do Conde as well as the environment of deep

political transformation that the country endured, since the military coup that occurred on

May 28th 1926 until the first years of the Estado Novo’s (New State’s) ruling.

Therefore, it is intended to, besides establishing the fundamental features of this

newspaper – since its beginning aligned with the Portuguese Republican

Party/Democratic Party –, understand its vision about Vila do Conde, its local authority

management, as well as its potentialities and vulnerabilities in a socioeconomic, political

and cultural framework during the highlighted decade, peering in its criticism and

proposals the fundamental ideology that guided the newspaper. This observation on a

local scale is preceded with an analysis of the national policy, aiming to understand the

newspaper’s reaction parameters versus its acceptance regarding the political paradigm

change – from liberal to dictatorial – that the country lived, in the midst of both the

national political crisis and the world economic crisis, and highlight the newspaper’s

democratic-republican affirmation ways until its extinction, just like so many other

democratic newspapers in Portugal, in the year of 1936.

Keywords: O Democrático, Vila do Conde, Military Dictatorship, Estado Novo,

republican resistance

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Introdução

Esta dissertação de Mestrado centra-se na análise de um semanário republicano vila-

condense – O Democrático – na fase final da sua existência, mais exatamente no decénio

compreendido entre 1926 e 1936. Como o local de publicação do jornal e o arco temporal

sugerem, pretende-se estudar as suas representações sobre o ambiente político nacional

em transformação – desde a instauração da Ditadura Militar até aos primeiros anos de

afirmação do Estado Novo – mas também as representações de Vila do Conde sob o ponto

de vista socioeconómico, político-municipal e cultural.

A motivação da escolha deste tema prende-se, principalmente, com a minha ligação

a Vila do Conde, visto que sou natural da cidade. Assim, o interesse pela sua História e a

contribuição para o enriquecimento da mesma sempre foram parte dos meus interesses de

investigação. Por outro lado, a própria cronologia selecionada é bastante apelativa, visto

que encerra mudanças e acontecimentos históricos a nível nacional de elevada

importância que moldaram a História Contemporânea de Portugal. Tendo, também,

adquirido já alguma experiência na análise de fontes hemerográficas – assim como o

gosto e preferência pelo estudo das mesmas, através do trabalho de investigação realizado

no âmbito do Seminário em História Contemporânea – pareceu quase natural e adequado

desenvolver um estudo primordialmente documentado na imprensa periódica da cidade

em que nasci.

Embora se trate de uma investigação com forte vertente de História Local, apresenta,

na minha opinião, grande pertinência no panorama historiográfico atual. De forma a fazer

a História de um país é essencial não negligenciar o estudo aprofundado em escala menor

– dos concelhos, cidades, lugares e aldeias – que o constituem. Só desta forma se poderão

expor possíveis discrepâncias e particularidades, estabelecer comparações, colmatar

falhas na informação e, assim, criar condições de uma mais ampla compreensão dos factos

históricos. Norteou este estudo a dialética local versus nacional, que, aliás, a própria fonte

hemerográfica sugere.

Trazendo agora o foco para os objetivos de investigação, neste trabalho pretende-se

responder a um conjunto de questões que traçaram o rumo da pesquisa, criando assim a

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problemática. Neste sentido, pretende-se conhecer melhor o periódico em análise, o seu

contexto de fundação, afiliação no espectro partidário da I República, objetivos e

programa editorial, bem como as personalidades que o mantiveram como órgão político-

partidário e defensor dos interesses locais (diretores, editores mas também alguns

colaboradores).

Sendo então O Democrático um periódico republicano, deseja-se saber como se

colocou sob o ponto de vista politico-ideológico após o 28 de Maio, que linha editorial

seguiu, que doutrinas visou como principais inimigas da República e que apelos fez em

sua defesa, que críticas e/ou elogios dispensou aos principais acontecimentos e

protagonistas neste período de acelerada mutação política.

Complementarmente, este estudo visa apurar como reagiu o periódico à governação

de Oliveira Salazar, desde a sua atuação no Ministério das Finanças até aos primeiros

anos do Estado Novo, que características destacou da sua personalidade, enfim, de que

forma condenou a praxis política que se seguiu à queda da República, que substituiu o

centenário paradigma liberal por um paradigma ditatorial e repressivo. Inclusive, num

momento de ascensão de várias doutrinas fascistas, pretende-se perceber a reação do

jornal ao Movimento Nacional Sindicalista.

Ainda no domínio da política nacional considera-se de extrema pertinência

compreender as formas e representações de apoio d’ O Democrático à luta contra a

Situação, designadamente o movimento reviralhista e a Aliança Republicana e Socialista.

Todavia, como já foi mencionado, este semanário não era exclusivamente um jornal

político-partidário, ostentava no seu cabeçalho a condição de “defensor dos interesses

locais”. Nesta conformidade, a problemática estabelecida para esta investigação não

podia alijar a questão local, isto é, discernir de que forma o semanário se debruçou e

dedicou sobre as questões do concelho da Vila do Conde, ao logo deste decénio, nos

grandes domínios da sociedade, economia, política local e cultura, designadamente em

matéria de património natural e histórico, monumental e artístico; turismo (então

florescente); higiene, saneamento e saúde pública; o porto e o comércio locais;

comunicações e eletrificação; pobreza e condições sociais. Enfim, que carências

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fundamentais denuncia o semanário no seu concelho, quais os principais melhoramentos

que reivindica, que propostas e soluções avança para resolução dos problemas locais?

Relativamente ao Estado da Arte, foram selecionados estudos considerados

fundamentais para a compreensão dos temas em destaque. Primeiramente, considerou-se

basilar obter uma compreensão o mais alargada possível da história da Ditadura Militar e

do Estado Novo. Além de obras de caráter mais geral, pelas quais a leitura e interpretação

se iniciou, evidencia-se A crise da República e a Ditadura Militar de Luís Bigotte

Chorão1. Este autor expõe várias teorias que remetem para a reflexão sobre a

compreensão da crise que assombrou a I República, efetuando depois uma complexa

análise do golpe de Estado do 28 de Maio, dissecando e desconstruindo o programa dos

militares golpistas. Destaca-se, também, o artigo de Manuel Braga da Cruz, intitulado “A

Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à formação do Estado Novo”2,

precisamente por oferecer uma explicação detalhada das origens da insurreição militar do

28 de Maio que levou ao estabelecimento da Ditadura Militar e a difícil sobrevivência

desta que daria lugar, anos mais tarde, à formação do Estado Novo encabeçado por

Oliveira Salazar. Neste seguimento, evidencia-se o extenso estudo Salazar: uma

biografia política – da autoria de Filipe Ribeiro Meneses3 – que, apesar de se tratar de

uma obra com declarado foco na figura Salazar e no seu percurso pessoal e profissional,

apresenta-se também como um estudo aprofundado da ditadura do Estado Novo, inserido

na era dos totalitarismos, visto que expõe os principais momentos da sua evolução, desde

a sua institucionalização com a entrada em vigor da Constituição de 1933 até à morte do

ditador. Adicionalmente, constitui-se manifestamente importante o estudo da oposição

republicana tanto à Ditadura Militar como ao Estado Novo. Assim, O Reviralho. Revoltas

Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo 1926-1940 de Luís Farinha4 assume-se

como uma referência bibliográfica fundamental neste domínio. Trata-se de um estudo de

extrema importância para este trabalho, uma vez que o movimento reviralhista constituiu,

1 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar. Porto: Sextante Editora, 2010. 2 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado

Novo». Revista de História das Ideias. Coimbra: Instituto de História e Teoria das Ideias, 1985, n.º 7, p.

347-372. 3 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política. Lisboa: Dom Quixote, 2010. 4 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo 1926-1940.

Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

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na cronologia em destaque, a mais importante frente de combate à Ditadura. Aquele

historiador explica a génese deste movimento, as revoltas organizadas contra a Situação

e a reação à implantação do Estado Novo.

No que concerne à história de Vila de Conde, embora a produção seja escassa,

sobressaem duas obras: a Nova História de Vila do Conde, de Carmo Reis5, e Vila do

Conde de Marta Miranda6. Quanto à primeira, apesar da sua pertinência para este trabalho

residir apenas no último capítulo, apresenta uma síntese de Vila do Conde no século XX.

Assim, embora breve, este estudo debruça-se sobre o concelho nas mais variadas

vertentes: aborda o progresso urbano ao longo das décadas; a evolução do comércio; as

instituições, estabelecimentos e serviços e suas respetivas funções; as inovações que o

avanço da tecnologia permitiu; a influência e efeitos da política nacional na cidade; os

altos e baixos da sua economia; a sua forma de organização social e as figuras notáveis,

entre outros aspetos. A segunda serve de suporte especificamente no que diz respeito à

história relativa aos monumentos e instituições históricas locais, como é o caso do

Mosteiro de Santa Clara, e aspetos muito característicos da cultura e tradição vila-

condenses, tais como as rendas de bilros e a atividade dos ranchos.

Dado que esta investigação tem como fonte primordial um periódico, a obra Imprensa

e Opinião Pública em Portugal, de José Tengarrinha7, constitui um recurso bibliográfico

indispensável, uma vez que fornece preciosa informação relativamente à censura aplicada

às folhas informativas desde o 28 de Maio de 1926 até ao 25 de Abril de 1974, tendo

inclusive um capítulo dedicado à imprensa e opinião pública no período do Estado Novo.

Relativamente à seleção da fonte hemerográfica, procedeu-se, inicialmente, à consulta

do catálogo de periódicos vila-condenses do século XX8. Após uma pesquisa

exploratória, selecionaram-se os semanários O Democrático e A República,

principalmente por apresentarem um maior número de edições publicadas na cronologia

em estudo e por não serem órgãos oficiais ou oficiosos do regime, eram periódicos que

5 REIS, A. do Carmo – Nova História de Vila do Conde. Vila do Conde: Câmara Municipal de Vila do

Conde, 2000. 6 MIRANDA, Marta – Vila do Conde. Lisboa: Editorial Presença, 1998. 7 TENGARRINHA, José – Imprensa e Opinião Pública em Portugal. Coimbra: Minerva, 2006. 8 Este catálogo e respetivos periódicos encontra-se disponível em linha no sítio da Biblioteca Municipal

José Régio, através da plataforma “Biblioteca Digital”. Disponível em: <http://periodicos.bm-

joseregio.com/geadopac/search> [acesso em 06/09/2019].

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mergulhavam as suas raízes no tempo e na ideologia republicana, tendo todavia

sobrevivido à Ditadura Militar e à fase inicial do Estado Novo. Decidiu-se então estudar

os dois títulos de imprensa periódica mencionados. Neste sentido, foi levada a cabo uma

breve análise de ambos, cotejando, entre outros aspetos, as suas características gerais, os

assuntos mais tratados e o estilo de redação. Contudo, chegou-se à conclusão de que não

seria particularmente vantajosa a utilização dos dois. Ou seja, ter-se-ia o dobro do trabalho

sem, necessariamente, se obter o dobro dos resultados. A intenção inicial visava

estabelecer uma comparação e cruzamento das informações dos dois jornais; todavia, os

periódicos apresentam posições deveras semelhantes (principalmente na defesa da

República e aversão a regimes ditatoriais), acabando a escolha por recair sobre O

Democrático, uma vez que se considerou mais inflamada, crítica, incisiva, forte e

destemida a abordagem aos temas que debateu nas suas colunas e que constam na

problemática que guia esta investigação.

Sob o ponto de vista metodológico, a recolha e tratamento de toda a informação

colhida na fonte foi inserida numa base de dados informática, organizada por datas, temas

e palavras-chave para mais fácil acesso, organização e agilização da análise ulterior. Esta

opção revelou-se acertada, pois este trabalho analisa os 522 números editados pelo jornal

entre 1926 e 1936, ficando patente a vastidão da fonte. Por outro lado, há que referir a

dificuldade inerente de trabalhar com a imprensa periódica, uma vez que, se todas as

fontes históricas são subjetivas e a sua informação manipulável, a imprensa periódica é-

o de forma mais flagrante. Tal implica vários cruzamentos de forma a obter uma

representação o mais objetiva possível dos factos, algo que muitas vezes pode ser

desafiador.

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1. O Democrático – história de um periódico republicano

1.1. Fundação e papel enquanto órgão do Partido Republicano Português

A I República, proclamada após a revolução de 5 de Outubro de 1910, pôs fim a uma

Monarquia multissecular. Apesar da ambição e pretensões fortemente inspiradas no

ideário reformista demo-republicano, este regime conheceu vicissitudes várias

(pulverização partidária apesar da hegemonia do Partido Republicano Português/Partido

Democrático, dois momentos de ditadura, participação do país no primeiro conflito

mundial e suas prolongadas e profundas consequências, etc.) pelo que, principalmente

nos seus últimos anos, foi posto em causa por golpes e maquinações sobretudo

provenientes do setor militar (embora com apoios civis), acabando por sucumbir à

insurreição do 28 de Maio de 1926, perpetrada pelas Forças Armadas.

O regime republicano apresentava no seu ideário princípios e reformas deveras

ambiciosos (e até controversos para a época, como é o caso da laicização do Estado), num

país repleto de desigualdades sociais e carências de todo o género, mas que, na verdade,

grande parte deles nunca seriam aplicados na sua plenitude, revelando timidez na

materialização dos ideais9. O ideário do Partido Republicano Português incluía, por

exemplo, a pretensão do acesso de todos à educação, a livre associação e expressão de

opinião sem restrições, o reconhecimento do direito à greve, a regulamentação do horário

de trabalho, a implementação do Registo Civil obrigatório, entre outras medidas10.

Não obstante a revolução do 5 de Outubro, na capital, se ter deparado com poucos

obstáculos, mais complexo seria manter o novo sistema, legitimá-lo e garantir a sua

aceitação, tanto a nível interno como externo. Ela poderia ser proclamada no resto do país

pelo telégrafo, na célebre afirmação de João Chagas, porém os republicanos teriam de se

esforçar para que a sua mensagem se difundisse. Assim, a imprensa republicana não

9 WHEELER, Douglas L. – «A Primeira República Portuguesa e a História». Análise Social. Lisboa: ICS,

1978, vol. XIV, nº 56, p. 866. 10 TELO, António José – Primeira República. Vol. I. Do Sonho à Realidade. Lisboa: Presença, 2010, p. 11.

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poderia suster o seu ímpeto, teria de continuar alerta e ativa, sobretudo fora das grandes

cidades. É neste contexto que nasce em Vila do Conde um novo jornal com esse propósito.

A primeira edição de O Democrático data de 18 de maio de 1913 – em pleno primeiro

Governo de Afonso Costa – e no seu cabeçalho “dizia ao que vinha”, apresentando-se

como “defensor dos interesses locais e do Partido Republicano Português”11.

Originalmente administrado por Manuel Barbosa Marques, e tendo como diretor e

editor Bernardino Justino dos Santos Andrade, este semanário abriu o primeiro número

com um artigo de apresentação dos seus ideais e objetivos de redação. Reiterou a calorosa

defesa dos princípios do Partido Democrático, assim como a luta pelos interesses e

progresso de Vila do Conde.

Como seria de esperar, enquanto defendeu a República e manutenção das suas

instituições, declarou a sua profunda oposição à Monarquia o que, de resto, seria tema

recorrente ao longo de toda a década de 1926-1936.

O seu objetivo de fundação foi, assim, claro. Inerente à criação do semanário estava

o objetivo de uma representação regional de apoio ao recém-instalado regime

republicano, com uma orientação mais à esquerda no espetro político – a fação do Partido

Republicano Português/Partido Democrático – e de luta pela manutenção desse mesmo

regime.

Como se sabe, a I República apresentou-se como um período verdadeiramente

paradoxal e conturbado. Na sua breve existência de cerca de 16 anos viu subsistirem

“quarenta e cinco Governos, oito eleições gerais e oito presidentes”, revelando-se “o

regime parlamentar mais instável da Europa Ocidental”12.

Neste contexto, é clara nas colunas do periódico a profunda ânsia por estabilidade e

coerência política, que os responsáveis do jornal consideravam a única forma de se

contrapor “aos processos indecorosos de fazer política que caracterizaram os últimos

tempos da Monarquia”13.

Atendendo às diferentes correntes políticas existentes durante a I República e às

discórdias que o pluripartidarismo poderia causar, O Democrático reivindicava para si

11 O Democrático, nº 1, 18/05/1913, p. 1. Ver Anexo 1. 12 WHEELER, Douglas L. – «A Primeira República Portuguesa e a História», p. 865. 13 “Ao Começar”. O Democrático, nº1, 18/05/1913, p. 1. Ver Anexo 1.

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uma posição de tolerância e respeito pelos princípios dos outros, mas forte e intransigente

na defesa dos seus:

Nós teremos pelos nossos adversários republicanos o máximo respeito, certos que

estes igualmente respeitarão a boa-fé dos nossos desígnios, não esquecendo um

só momento de que todos, embora com planos diferentes e ideias contrárias,

lutamos para o mesmo fim – o engrandecimento da Pátria pela consolidação da

República14.

Desta forma, reconheceu as claras divergências partidárias e os desígnios políticos

de cada fação, enfatizando que a causa era comum: a manutenção da República para a

prevenção total de um Portugal monárquico uma vez mais.

1.2. Características gerais, equipes diretivas e editores

Com uma periodicidade semanal, O Democrático deu à estampa 522 edições na

década em análise.

Estruturalmente, o jornal apresentou determinadas características que se

conservaram ao longo da sua história. Possuía uma média de quatro páginas por número

e uma secção especificamente dedicada à publicidade que, ocupando a última página de

cada edição, geralmente oferecia destaque aos negócios locais e anúncios de emprego.

Iniciando cada número com um artigo de abertura, entende-se que este espaço

ficava reservado a notícias e/ou textos com mais relevância à data. Habitualmente,

referiam-se a problemas locais concernentes a Vila do Conde que O Democrático

entendia necessitarem de rápida resolução por parte das autoridades competentes, ou a

notícias à escala nacional (e até internacional, embora mais raramente) que eram

consideradas determinantes na ordem do dia.

Compreende-se, neste seguimento, que, apesar de se tratar de um periódico

regional não abdicava de se pronunciar, muitas vezes de forma efusiva e detalhada, acerca

14 “Ao Começar”. O Democrático, nº1, 18/05/1913, p. 1.

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de assuntos de ordem política, económica, social e cultural a nível geral, de forma a

melhor informar os leitores.

Nas segunda e terceira páginas de cada edição continuava a divulgação de outras

notícias que, na maioria dos casos, se referiam a Vila do Conde. Estas tomavam a forma

de divulgação de eventos ou ações de relevância, problemas e carências da localidade,

entre outras.

Com efeito, encontram-se determinadas secções que se mantiveram ao longo do

decénio, como é o caso de “Pelas aldeias”. Esta coluna era dedicada à divulgação de

notícias sobre as freguesias que integravam o concelho de Vila do Conde. Normalmente,

as informações eram enviadas ao jornal através de correspondência redigida por

colaboradores residentes nas aldeias. Difundiam-se assuntos como as importantes e

populares festividades religiosas ou de lazer; reivindicações de progressos urgentes e

necessários a executar e consequente notícia se os mesmos se efetuassem;

desentendimentos dentro das comunidades; falecimentos de personalidades distintas da

região. Note-se que, se as festividades fossem de grande visibilidade ou importância para

o concelho, em grande parte dos casos teriam direito à sua própria coluna.

O jornal deu grande peso à divulgação das iniciativas culturais típicas da vila,

tentando incentivar à máxima afluência e contribuição da população para tais eventos, de

forma a enaltecer o concelho e despertar a curiosidade turística.

Por outro lado, O Democrático reservou espaço permanente para o seu “Boletim

Semanal”, destacando aniversários e casamentos (uma vez mais, das elites da vila), assim

como regressos, visitas e partidas de famílias ou pessoas mais conhecidas da terra.

Outra das secções que se manteve ao longo dos anos foi “Literatura” ou “Secção

Literária”, na qual se publicavam maioritariamente textos poéticos, cumprindo desta

forma a função instrutiva e cultural que também assumia. Na mesma linha, o jornal

anunciava os saraus culturais, a projeção de filmes e a representação de peças de teatro a

realizar no Teatro Afonso Sanches.

No que diz respeito às várias equipes responsáveis pela manutenção deste

semanário é de referir que, ao longo do decénio 1926-1936, este se viu sob o comando de

vários homens. Pelas equipes diretiva e editorial passaram João Canavarro Crispiniano

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da Fonseca15; Herculano Augusto Pereira Ramalho, Francisco de Barros Barbosa16 e

António Lopes de Macedo. Ao longo desses dez anos, o jornal manteve-se propriedade

da viúva de António José de Campos. Relativamente aos autores dos artigos, uma parte

significativa dos textos era assinada por pseudónimos ou apenas iniciais, sendo difícil

apurar a verdadeira identidade dos colaboradores e redatores do periódico, sendo de

admitir que os sucessivos diretores tenham também redigido alguns dos textos

publicados. No entanto, como se verá ao longo do trabalho, alguns artigos de grande

significado político encontravam-se assinados, menção que será feita caso a caso,

verificando-se que alguns nomes, por exemplo Duarte de Gusmão, estavam

profundamente ligados à oposição à Ditadura e ao Estado Novo, chegando a conhecer os

seus cárceres. Por outro lado, para ilustrar determinadas matérias e opiniões, O

Democrático reproduziu textos de outros órgãos da imprensa, identificando sempre a sua

origem.

Em suma, O Democrático manteve uma estrutura coerente e estável entre 1926-

1936, situação que faz parelha com a consistente defesa dos ideais que preconizou nas

suas colunas.

15 Foi funcionário público e diretor da Escola de Reforma do Porto/Reformatório de Vila do Conde; em

outubro de 1910 foi nomeado administrador do concelho de Resende e, em 1912, administrador do concelho

de Vila do Conde; foi também deputado ao Congresso da República (1915-1917) (João Canavarro

Crispiniano da Fonseca (1881-1958). Biografias. Centenário da República (1910-2010). História &

Memória. Disponível em <http://hm.centenariorepublica.pt/biografias/193-joao-canvarro-crispiniano-da-

fonseca.html> [acesso em 06/09/2019]). 16 Um dos fundadores do Rancho da Praça (A Praça – Publicação comemorativa do 70º aniversário do

Rancho da Praça Rendilheiras de Vila do Conde. Vila do Conde. 08/12/1990, nº 0, p. 9).

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1.3. Órgão da reação republicana à Ditadura Militar e ao Estado Novo

Oriundo de setores progressistas da República, O Democrático patenteou natural

rejeição a regimes ditatoriais e repressivos que inibissem a prática dos ideais

republicanos.

Após o golpe militar de 28 de Maio de 1926, e perante o desenrolar dos

acontecimentos, o semanário criticou o movimento e seus participantes, visto que os

objetivos e promessas do programa da revolução não estariam a dar os frutos esperados

– temática que será explorada mais à frente.

Neste ambiente de descontentamento, o jornal defendia a ideia de que a Ditadura

Militar deveria ser encarada apenas como um período transitório e de reflexão. Assim,

apelava à união dos republicanos de todas as diferentes fações políticas para que

reconhecessem o que se havia feito de errado e o que seria possível melhorar, numa

constante busca de soluções para que novamente se fizesse a República. Ao mesmo

tempo, e perante a sua visão e análise dos acontecimentos, considerava que o período de

Ditadura Militar servira apenas o propósito de provar que só a República seria o regime

adequado à governação do país.

Neste sentido, assiste-se a uma constante defesa dos ideais proclamados pelos

homens da I República e até o reforço da propaganda republicana ao quotidiano da

população através da imprensa, apesar do periódico reconhecer a dificuldade de

concretização deste último objetivo, devido à ação repressora da censura.

No âmbito de apoio ao republicanismo, o jornal conferiu grande ênfase, durante

este período de Ditadura Militar, a assuntos como a urgência do combate ao flagelo do

analfabetismo para a criação de uma sociedade mais informada e a necessidade de apoios

sociais do Estado aos mais necessitados.

A transição para o novo regime, o Estado Novo, não impediu O Democrático de

continuar a proclamar o apoio à República e as reformas que ficaram por concretizar. As

malhas da repressão e da censura demonstravam-se mais fortes do que nunca, contudo

este semanário local persistia na crítica e oposição à Situação.

Efetivamente, neste período dos primeiros anos de consolidação do Estado Novo,

o jornal focou a sua crítica de forma incisiva contra os mecanismos de repressão das

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liberdades instituídos ou consolidados pelo regime, tais como, por exemplo, a existência

e métodos de ação da polícia política e a censura do lápis azul.

Adicionalmente, contestou veementemente alguns princípios doutrinários do

Estado Novo. A título de exemplo, o periódico via o enaltecimento dos grandes feitos do

passado e o incentivo ao amor cego à Pátria como um mecanismo destinado a travar o

progresso das mentalidades e a formação de uma sociedade informada, a par com a

evolução dos tempos, recusando, deste modo, o nacionalismo exacerbado e imposto.

Verifica-se, assim, que não obstante a sua esfera de influência ser regional e se

encontrar sujeito à revisão da censura, não deixava – de forma inteligente e hábil ao

mesmo tempo que incisiva e subtil – de demonstrar a sua oposição frontal à repressão das

liberdades e inibição do progresso veiculados tanto pela Ditadura Militar como pelo

Estado Novo.

1.4. A morte de O Democrático

Apesar da sua tenacidade e persistência de ação, o periódico sucumbiu passados

vinte e três aniversários de existência.

Em 1936, a 4 de dezembro, O Democrático publicou a sua derradeira edição. O

aprimoramento da máquina da censura, na forma de leis de imprensa cada vez mais

restritivas aplicadas pelo poder, primeiro durante o período da Ditadura Militar e, depois,

ainda mais musculadas pelo Estado Novo, ditou o fim do jornal.

É relevante relembrar que, com o advento da proclamação da República, o país

passou a dispor de uma nova Lei de Imprensa “que proibia a censura por parte de qualquer

autoridade”, se bem que a censura não esteve completamente ausente nesse regime, pois

além dos dois momentos ditatoriais (pimentismo e sidonismo) a censura de guerra foi

também instituída durante o primeiro conflito mundial. No entanto, e de forma geral, o

contexto foi favorável à criação de novos jornais e à prosperidade dos mesmos17.

Porém, a Ditadura Militar, em consequência do movimento do 28 de Maio de

1926, plantou de novo as sementes da privação da liberdade de expressão e imprensa em

Portugal. Tais só voltariam a ser repostas após a revolução do 25 de Abril de 1974.

17 PIZARROSO QUINTERO, Alejandro – História da Imprensa. Lisboa: Planeta Editora, 1996, p. 364.

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Assim, logo em junho de 1926, foi estabelecida a censura aos jornais, não através

de um diploma oficial, mas por comunicação aos diretores dos jornais, justificada como

uma situação excecional inerente à revolução:

E logo a 22 de junho os receios confirmavam-se com a publicação, em todos os

jornais de Lisboa, de uma simples comunicação assinada por um 2º comandante

da polícia pela qual se fazia saber estar estabelecida a censura à Imprensa e, por

isso, não ser autorizada a saída de qualquer jornal sem que, previamente, tivessem

sido enviados 4 exemplares de cada número ao Comando-Geral da GNR para

análise do seu conteúdo18.

A situação não só não foi temporária como se agravou. Seguiu-se, em julho e

outubro de 1926 e em maio e junho do ano seguinte, uma série de decretos que

endureceram o aparelho censório.

O decreto de 5 de julho de 1926, não estabelecendo a censura prévia, preconizou

uma “mais apertada vigilância […] sobre as publicações gráficas, periódicas, ou não”,

que passariam “a ser reguladas por este diploma”. Consequentemente, os “comentários

críticos ao Governo e ao regime de censura foram diminuindo ao longo do mês de julho

e, no mês seguinte, eram ainda muito mais comedidos”19.

Resultado da escalada repressiva, o decreto de 29 de julho foi ainda mais rigoroso

do que o anterior. Permitia que o julgamento das infrações fosse feito apenas com a

intervenção do júri, exceto em casos especiais que necessitassem da intervenção de um

tribunal coletivo. Ainda assim, apontava um “conjunto tão amplo, vago e diversificado

de razões para apreensão dos jornais que os tornava extremamente vulneráveis perante as

autoridades administrativas e judiciais”20.

Destacam-se outras medidas nos decretos posteriormente promulgados. O decreto

de 30 de outubro de 1926 referia-se aos “inquéritos que podiam ser pedidos pelos

magistrados judiciais ou do Ministério Público quando acusados pela Imprensa”; o

18 TENGARRINHA, José – Imprensa e Opinião Pública em Portugal, p. 55. 19 TENGARRINHA, José – Imprensa e Opinião Pública em Portugal, p. 56. 20 TENGARRINHA, José – Imprensa e Opinião Pública em Portugal, p. 56.

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decreto de 27 de maio de 1927 aludia à “propriedade literária”, enquanto o de 27 de junho

incidia sobre a liberdade de imprensa nas colónias21.

O cerco da censura apertava e o poder não olhava a meios para atingir o fim de

influenciar a opinião pública, ocultando/manipulando informação e restringindo cada vez

mais os órgãos de imprensa.

Com a institucionalização do Estado Novo, legitimado pela Constituição de 1933,

assistiu-se a um caso verdadeiramente singular e paradoxal. Se, por um lado, este

documento determinava que, entre os direitos e garantias dos cidadãos portugueses,

vigorava a total liberdade de expressão e pensamento, pelo outro, previa a instituição de

um regime de censura prévia. Esta determinação acabou por ser concretizada com a

promulgação do decreto de 11 de abril de 1933, justamente a data de entrada em vigor da

referida Constituição.

A esta forma de censura estavam sujeitos, obrigatoriamente, por lei: “a imprensa

periódica devidamente autorizada como jornais, revistas, ilustrações, magazines e

publicações semelhantes, independentemente da sua periodicidade”, entre outros22.

Não obstante os fortes entraves criados à liberdade de imprensa, continuava a

verificar-se a intensificação da repressão. O decreto de 14 de maio de 1936 demonstra,

precisamente, o aumento do alcance da censura prévia, que se revelou a “machadada

final” para muitos periódicos, incapazes de se manter em funções, dadas as restrições

impostas pela lei:

Pela primeira vez no Estado Novo são conferidos poderes ao Governo para

aplicar sanções (multas e apreensões ou suspensões de publicações) sem

intervenção prévia dos tribunais; o que podia acontecer quando o jornal recusava

divulgar as “notas oficiosas” do Governo ou publicava textos sem autorização e,

através de arranjos gráficos da paginação ou por outros meios procurava iludir a

censura23.

21 TENGARRINHA, José – Imprensa e Opinião Pública em Portugal, p. 56. 22 GOMES, Joaquim – Os Militares e a Censura. A Censura à Imprensa na Ditadura Militar e Estado Novo

(1926-1945). Lisboa: Livros Horizonte, 2006, p. 69. 23 TENGARRINHA, José – Imprensa e Opinião Pública em Portugal, p. 60.

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Neste contexto, note-se que O Democrático já aparecia como um periódico

incómodo nos radares do regime.

A verdade é que certa imprensa em Vila do Conde inquietava o regime,

designadamente a que lhe era desafeta. Esta fação era precisamente representada por

semanários como A República (“perigoso porque é um jornal de valor”) e pelo próprio O

Democrático que, “era preciso vigiar fortemente”24, acusado de ter ligações à Maçonaria.

Este conjunto de condições originaram a receita letal que resultou no encerramento da

redação de O Democrático e na sua inevitável extinção.

24 TENGARRINHA, José – Imprensa e Opinião Pública em Portugal, p. 191.

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2. Das origens da Ditadura Militar aos primeiros anos de

afirmação do Estado Novo – breve contextualização

histórica

2.1. Do golpe de Estado à instauração e queda da Ditadura Militar

É consensual, no atual panorama da historiografia portuguesa, considerar o período

decorrente entre o movimento militar de 28 de Maio de 1926 e os primeiros anos de

afirmação do Estado Novo e formação das suas instituições basilares como “um dos mais

agitados e politicamente complexos da história nacional do século XX” porque se assistiu

à “liquidação de mais de um século, quase ininterrupto, de experiência liberal (sob a

forma monárquica e republicana) e o parturejamento de um novo regime autoritário,

corporativo, antiparlamentar e anticomunista, destinado a durar 41 anos”25.

No que diz respeito ao golpe militar propriamente dito, vários são os autores que

salientam a sua falta de estruturação, planeamento e horizonte.

Manuel Braga da Cruz aponta a “intenção sobretudo negativa” que esteve na origem

do movimento militar do 28 de Maio. Segundo este autor, o levantamento militar não foi

fundamentado por um “plano previamente concebido”, foi antes forjado pelas mãos das

próprias Forças Armadas, “sem um ideário preciso”, sem propósitos ideológicos assentes

na contenda pelo parlamentarismo democrático, numa tentativa desesperada de lutar

contra a insustentável situação política da época. Assim, este golpe resultou de uma

revolução que depressa tomou a forma de uma Ditadura Militar e que, mais tarde, abriu

portas à formação do Estado Novo26.

Por sua vez, Bigotte Chorão considera que o Exército, “cansado da situação aviltante

a que a política então dominante conduzira o País estava disposto a intervir para pôr termo

a uma situação que era afrontosa”, apontando a falta de um programa claro de revolução

e apresentando diferentes perspetivas para criar uma reflexão sobre o assunto. Coloca-se

25 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1936), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, vol.

VII. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994, p. 151. 26 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado

Novo», p. 347.

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uma interrogação fundamental: afinal, existiu ou não um “programa [legítimo] do 28 de

Maio”? O autor recorre ao testemunho de George Guyomard que revela ter conhecimento

do programa do 28 de Maio através dos próprios colaboradores do Governo e de uma

“declaração”. Todavia, Guyomard acaba por concluir que “não se tratava de um

«programa» e que da sua análise resultava a impossibilidade de ser compreendido o

sentido de acordo com o qual deviam ser realizadas as reformas anunciadas, as quais,

porém, não tinham passado de «letra morta»”27.

Por outro lado, também segundo Bigotte Chorão, Manuel Rodrigues Júnior – Ministro

da Justiça – afirmou que o programa do 28 de Maio nunca havia sido publicado mas que

o tinha em seu poder. Desta forma, ficou confirmado que o programa transcrito na

Política Nacional não seria de facto o programa afeto ao movimento. Tendo o documento

em sua posse, Rodrigues Júnior declarou, em entrevista ao Diário de Lisboa, edição de

28 de julho de 1927, que, dentro do possível, o Governo tinha cumprido o estipulado no

programa do golpe militar. O Ministro acrescentou que o programa havia sido

apresentado pelo General Gomes da Costa, durante um Conselho de Ministros do

Comandante Cabeçadas. Contudo, esta apresentação pareceu pouco formal. Havia-se

tratado mais da “indicação de algumas medidas a tomar” que não seriam até da autoria

do próprio, convidando os colegas à sua leitura e a aproveitarem o que lhes parecesse

conveniente e apropriado. Seguindo estas indicações, os restantes membros do Governo

repeliram muitas das medidas e nunca se soube quem era o autor do documento28.

Assim, o tal programa que Rodrigues Júnior referiu como tendo “aparecido” no jornal

A Época, tratava-se apenas do “programa de providências do Governo”, apresentado por

Gomes da Costa ao Conselho de Ministros a 14 de julho. Relativamente ao “verdadeiro

programa”29, o Ministro da Justiça dizia tê-lo em sua posse, acabando por citar na

entrevista dois dos seus artigos mais determinantes:

O Governo que sair deste movimento será constituído por indivíduos civis e

militares de reconhecido valor intelectual e moral, ficando desde já assente que o

27 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar, p. 140-141. 28 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar, p. 142. 29 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar, p. 143.

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Presidente seja um oficial General ou superior do Exército ou da Armada, de

republicanismo indiscutível e de carácter impoluto; o Governo constituído

manter-se-á no poder pelo tempo necessário para proceder ao saneamento moral

e administrativo do país, conforme as bases ou linhas gerais indicadas no

documento apenso a este compromisso e que dele faz parte integrante, pelo que

será assinado pelos oficiais que assinem este30.

Ainda nesta entrevista, o Ministro esclareceu algumas das “linhas gerais indicadas no

documento”, revelando que uma das mais importantes já havia sido cumprida, sendo esta

a entrega das “Empresas particulares dos Caminhos-de-Ferro ao Estado”. Rodrigues

Júnior fazia, nestas declarações, referência a um documento redigido pelo advogado

Adriano Vieira Coelho, “constituído por um «Compromisso» e umas «Bases», assinado

em Coimbra por Mendes Cabeçadas, na qualidade de chefe do movimento”31.

O autor menciona Ernesto Castro Leal e as suas interrogações relativamente ao facto

de se poder considerar o referido “Compromisso” e “Bases” como o “Programa (comum)

do 28 de Maio”. Ora, Bigotte Chorão considera que sim, “tanto mais porque tem

correspondência com aquele que Manuel Rodrigues Júnior afirmou ser o «autêntico», e

pode bem ter sido o único «comum»”. Debruçando-se sobre o conteúdo desses

documentos, o historiador indica a hipótese de, “nas origens do movimento, ter estado o

projeto de constituição de um Governo extrapartidário, destinado a exercer

transitoriamente o poder, com vista a realizar uma ditadura que ambos os textos revelam

como de acentuado carácter administrativo”32.

Para além disso, este autor realça o facto de o “programa comum” não abordar o

problema das relações entre o Estado e a Igreja ou a questão constitucional. Assim, acaba

por considerar que o mesmo programa não passou de um “logro”, servindo “como

instrumento mobilizador da força armada, cujo real alcance, porém, se desconhece”.

Realmente, algumas das suas “Bases” foram concretizadas durante a Ditadura Militar,

30 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar, p. 143. 31 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar, p. 143-144. 32 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar, p. 152.

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contudo o programa foi insubsistente e “nunca publicamente assumido na sua

integralidade ou oficialmente divulgado”33.

Ainda assim, Bigotte Chorão explica o motivo deste programa ser, de certa forma,

“clandestino”. É que, atendendo ao seu conteúdo, a sua divulgação “oferecia risco efetivo

de comprometer certos apoios ao movimento”34. Neste contexto, é possível afirmar que,

regido por um programa mínimo e contando com um apoio máximo, o 28 de Maio

constituiu uma insurreição marcada por ambiguidades35.

Segundo Veríssimo Serrão, os chefes do movimento nunca colocaram em causa a sua

fidelidade à República, defendendo que a mudança a operar tinha por fim salvaguardar a

pureza do regime36. Efetivamente “para muitos dos militares que aderiram ao

movimento” o que estava em causa era o saneamento e reforma do regime republicano e

não a sua supressão e substituição. Apesar de esta ser a premissa base, denotava-se um

claro contraste de intenções nos “propósitos enunciados nas primeiras proclamações

políticas dos revoltosos”. A comprovar esta situação, Braga da Cruz estabelece uma

comparação entre as intenções expostas no Manifesto da Junta de Salvação Pública

(encabeçada pelo General Cabeçadas e por Gama Ochoa) e os propósitos manifestados

nas proclamações de Gomes da Costa produzidas de Braga no próprio dia do golpe. Este

autor considera que, basicamente, enquanto Mendes Cabeçadas “procurava assegurar a

continuidade e a legitimidade constitucional, Gomes da Costa exigia a rutura com a

legalidade constitucional”. Assim, o desígnio de Mendes Cabeçadas seria libertar o país

da governação do Partido Democrático, considerada miserável e corrupta, e o objetivo de

Gomes da Costa seria fazer do Exército o grande dirigente político, através da formação

de um Governo constituído pelos próprios membros do movimento, proceder à dissolução

do Parlamento e conseguir a demissão do Presidente da República37.

33 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar, p. 153-154. 34 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar, p. 155. 35 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1974), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.

152. 36 SERRÃO, Joaquim Veríssimo – História de Portugal: do 28 de Maio ao Estado Novo (1926-1935), vol.

XIII. Lisboa: Editorial Verbo, 1997, p. 19. 37 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado

Novo», p. 349-350.

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Na luta consequente a este dualismo de propósitos fundamentais, Mendes

Cabeçadas, logo no dia 28 de maio de 1926, escreveu ao Presidente da República,

Bernardino Machado, “em nome da grande maioria do Exército”, pedindo-lhe que

“nomeasse um Governo de carácter extrapartidário constituído por republicanos que

merecessem a confiança do País”. Reconhecendo o apoio expresso pela opinião pública

ao movimento armado e numa tentativa de “salvar a continuidade do regime”, o Governo

apresentaria a sua demissão, passando Mendes Cabeçadas “a concentrar na sua pessoa,

interinamente, todas as pastas do Ministério”38. Por sua vez, e perante este

desenvolvimento, Gomes da Costa, “senhor do apoio da maioria das divisões militares do

país, fez saber que o Governo de Cabeçadas” não merecia “a confiança do Exército” e

deu “ordem de marcha sobre Lisboa”39. Esta resposta de Gomes da Costa às manobras da

capital produziu os seus efeitos. A 31 de maio foram encerradas as Câmaras e Bernardino

Machado viu-se forçado a apresentar a demissão. Considerando que a “sua missão” se

encontrava “esgotada”, entregaria o poder nas mãos de Cabeçadas, dizendo-lhe em carta

que, em conformidade com a Constituição, o Ministério em conjunto assumiria “a

plenitude do poder executivo”. Neste seguimento, Cabeçadas deslocar-se-ia a Coimbra

para uma tentativa de conciliação de atuações com Gomes da Costa. Deste encontro, a 1

de junho, entre os dois chefes das duas vertentes do movimento, saiu “a resolução da

formação de um triunvirato militar” – composto por Mendes Cabeçadas, Gomes da Costa

e Gama Ochoa – que distribuiria as pastas entre si. Regressado a Lisboa, Mendes

Cabeçadas, “na qualidade de Presidente do Ministério”, fez publicar o decreto referente

à nomeação do novo Governo, “deixando Gomes da Costa e o Exército em minoria”.

“Insatisfeito com os resultados do acordo de Coimbra”, Gomes da Costa resolveu

“marchar sobre Lisboa para impor definitivamente os seus pontos de vista”. No dia 3

chegava “com as tropas do Norte e do Alentejo a Sacavém, às portas de Lisboa, obrigando

Cabeçadas a novo encontro”. Saiu daqui uma nova resolução, que consistia na

“designação de uma junta governativa” composta agora por Cabeçadas, por um lado, e

38 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado

Novo», p. 350-351. 39 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1974), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.

160.

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33

por Gomes da Costa e Carmona, por outro, e na “formação de um novo Governo”, onde

além de Cabeçadas (Presidência e Interior), Gomes da Costa (Guerra e Colónias),

Carmona (Estrangeiros) e Jaime Afreixo (Marinha), apareciam quatro civis: Salazar nas

Finanças, Mendes dos Remédios na Instrução, Almeida Ribeiro na Justiça e Ezequiel de

Campos na Agricultura e Comércio. Ainda nesse mesmo dia, seria publicado o decreto

de nomeação do Governo, aparecendo já com uma alteração: Manuel Rodrigues no lugar

de Almeida Ribeiro40.

A validação do novo acordo foi feita solenemente com um “desfile militar na

Avenida da Liberdade” e uma “parada no Campo Grande no dia 6 de junho”. Os militares

“foram saudados apoteoticamente pela população de Lisboa”. Contudo, “impunha-se com

rapidez” a formação de um novo Governo41. Assim, a 7 de junho, iniciava-se novamente

a atividade governativa com a “posse de alguns Ministros (aparecendo o General Alves

Pedrosa na pasta da Agricultura, no lugar de Ezequiel de Campos, cujo nome suscitara a

oposição da Associação Central de Agricultura) e com a realização do primeiro Conselho

de Ministros”. Porém, só a 12 de junho “o elenco governativo ficaria completo com a

posse relutante de Salazar (nas Finanças) e a posse tardia de Passos e Sousa (no

Comércio)”. Ficava estabelecido o novo Governo, no qual se continuavam a confrontar

“surdamente as duas tendências do movimento”42 e novas resoluções fraturantes não

tardariam.

A 9 de junho, ficou decidida “a dissolução do Parlamento sem serem anunciadas

e marcadas novas eleições, numa clara violação das disposições constitucionais”, o que

acentuou “decididamente a tendência ditatorial do novo poder”, enfraquecendo a posição

que nele continuava a ocupar Cabeçadas, “em quem os partidos” viam “o último arrimo

de legalidade”43. Contudo, a 14 de junho, Mendes Cabeçadas ver-se-ia confrontado, “em

Conselho de Ministros, com um programa apresentado por Gomes da Costa e preparado

40 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado

Novo», p. 351-352. 41 SERRÃO, Joaquim Veríssimo – História de Portugal: do 28 de Maio ao Estado Novo (1926-1935), p.

32-33. 42 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado

Novo», p. 352. 43 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado

Novo», p. 352-353.

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pelos seus conselheiros integralistas (fora redigido por Trindade Coelho)”. Tratava-se de

um “projeto presidencialista autoritário […] e de raiz claramente corporativista e

antiliberal/individualista quanto à futura organização do Estado”. Como seria de esperar,

Mendes Cabeçadas recusou-se a aceitar as disposições de Gomes da Costa e foi deposto

a 17 de junho44.

Empossado na presidência do Ministério, a 16 de junho, Gomes da Costa fez as

devidas mudanças no Governo: Mendes dos Remédios viu-se substituído por Ricardo

Jorge (Instrução); para o lugar de Salazar foi chamado Filomeno da Câmara (Finanças);

as Colónias ficavam ocupadas pelo Comandante Gama Ochoa e a pasta do Interior foi

entregue a António Claro. “Nas restantes pastas permanecem Carmona, Jaime Afreixo,

Alves Pedrosa, Passos e Sousa e Manuel Rodrigues”45. A 18 de junho, Mendes Cabeçadas

rendeu-se “sem luta, apresentando a sua demissão”. No dia seguinte daria mesmo posse

a Gomes da Costa, a quem nomearia “Presidente do Ministério, transmitindo-lhe os

poderes recebidos de Bernardino Machado”46. Adicionalmente, no dia 26, “por um

decreto que atribui ao Presidente do Conselho de Ministros, provisoriamente, todas as

prerrogativas de Presidente da República, Gomes da Costa” passaria “também a ser Chefe

de Estado”47.

Contudo, a instabilidade governativa não tinha ainda fim à vista. Denotava-se já

no Executivo o aumento da influência da fação monárquica/conservadora e o

enfraquecimento do bloco republicano. A remodelação governativa empreendida por

Gomes da Costa a 7 de junho ilustra bem esta situação, visto que levou à exoneração do

Governo de Óscar Carmona (Negócios Estrangeiros), Gama Ochoa (Marinha) e António

Claro (Interior), “com os quais se solidarizaram, abandonando as respetivas pastas, todos

os restantes políticos, à exceção de Filomeno da Câmara”. Consequentemente tomaram

conta da pasta dos Estrangeiros e das Colónias, “duas conhecidas figuras monárquicas”:

44 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1936), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.

161. 45 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado

Novo», p. 353-354. 46 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1974), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.

162. 47 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado

Novo», p. 353-354.

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Martinho Nobre de Melo e João de Almeida, “tendo o primeiro, entre as suas primeiras

medidas, demitido significativamente Afonso Costa de Presidente da Delegação

Portuguesa à Sociedade das Nações”48.

Ora, a reação a estas demissões não tardaria. Logo no dia 8, apresentavam-se em

Belém os comandantes das guarnições de Lisboa. Manifestavam-se “contra as demissões”

e exigiam que “Gomes da Costa, ainda que permanecendo como Presidente da

República”, abandonasse a chefia do Ministério. O General recusou a proposta e, na

madrugada do dia 9, foi “decidida a demissão de Gomes da Costa das suas funções e

ordenada a sua prisão no Palácio de Belém”. A 11 de julho seria mesmo conduzido ao

exílio nos Açores, em Angra do Heroísmo49.

Consequentemente, Carmona seria “colocado pelo Exército na presidência do

novo Ministério”, no qual Manuel Rodrigues, Jaime Afreixo, Passos e Sousa e Alves

Pedrosa mantinham as pastas e via-se aparecer Ribeiro Castanho no Interior, Sinel de

Cordes nas Finanças, Silvério Botelho na Instrução, Bettencourt Rodrigues nos Negócios

Estrangeiros e João Belo nas Colónias. “Com a transição, meses mais tarde, de Passos e

Sousa para o Ministério da Guerra”, entraria “a substituí-lo no Comércio o Major

Carvalho Teixeira”50.

Neste seguimento, Carmona seria designado Presidente da República pelo

Conselho de Ministros a 16 de novembro de 1926, tomando posse no dia 29 deste mês.

Seria eleito, mais tarde, em março de 1928. “Até abril de 1928, até à entrada de Salazar

para o Governo, Carmona” colocaria “o seu peso de Chefe de Estado, do Exército e da

Ditadura, de supremo e respeitado árbitro das suas funções, sobretudo do lado da linha

republicana predominante nos comandos”51.

48 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado

Novo», p. 354-355. 49 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1974), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.

163. 50 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado

Novo», p. 355. 51 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1974), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.

165.

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36

2.2. O Estado Novo – a formação da nova ordem

2.2.1. A ascensão de Salazar

António de Oliveira Salazar foi um dos ministeriáveis logo no primeiro Governo da

Ditadura Militar, começando por recusar o cargo, uma vez que considerava não estarem

“reunidas as condições de avançar” e que a Ditadura era “ainda um desnorte sem destino

certo”. Mas, “pressionado por Cerejeira e pelos círculos católicos”, acabaria por aceitar.

Contudo, só se manteve nas Finanças menos de duas semanas: entre 3 e 17 de junho de

192652.

Em 1928, apenas dois anos passados sobre a tomada de poder pelos militares, a

situação financeira do país havia-se tornado um problema que “atingia proporções que

assustavam o espírito mais audacioso”. O défice aumentava rapidamente, “a inflação

transforma-se em calamidade” e “a dívida pública esmagava um país pobre e sem

indústria”. Após o golpe da não aceitação do apoio da SDN, a situação financeira tornara-

se insustentável. Seria, portanto, cada vez mais visível a impotência do Governo na

resolução da crise financeira53.

Consequentemente, numa Europa que paulatinamente ia sendo tomada pelos

totalitarismos (como era o caso da Itália de Mussolini e da Alemanha de Hitler), Portugal,

perante a instabilidade, adotava o mesmo caminho: “a identificação de todo um

«Movimento» com um único homem”. Salazar, aparentemente apenas Ministro das

Finanças, “graças aos plenos poderes que obteve”, controlava todos os Ministérios, os

quais não podiam tomar “qualquer responsabilidade de qualquer despesa sem a sua

autorização”. Nem sequer podiam tomar qualquer decisão ou medida que exercesse

influência direta sobre as despesas ou receitas do Estado sem que Salazar concedesse

permissão54. No seu discurso de posse como Ministro das Finanças, a 28 de abril de 1928,

afirmou “lapidarmente” que sabia o que queria e para onde ia, considerando a “ditadura

52 ROSAS, Fernando – «Salazar», in ROSAS, Fernando; BRITO, J. M. Brandão de (dir.) – Dicionário de

História do Estado Novo. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, vol. II, p. 862. 53 CAMPINOS, Jorge – A Ditadura Militar 1926/1936, Lisboa: Publicações Dom Quixote, cop. 1975 p.

148. 54 CAMPINOS, Jorge – A Ditadura Militar 1926/1936, p. 151-154.

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financeira” o “primeiro passo para a conquista da hegemonia na Ditadura e para a

instauração de um novo regime”55 .

O equilíbrio orçamental seria logo alcançado “a partir do ano económico de 1928-

1929, designadamente através da reforma orçamental de 1928 e das reformas tributárias

de 1928 e 1929”. Tais medidas permitiriam a estabilização da moeda a longo prazo,

“reformar o crédito”, “baixar as taxas de juro, liquidar a dívida pública flutuante e dotar

o Banco de Portugal dos meios necessários ao apoio regulador do sistema bancário em

crise”. Adicionalmente, o “crescimento da receita tributária (sem agravamento dos

impostos diretos sobre os rendimentos das atividades económicas)” permitiu o fomento e

investimento nas obras públicas. De forma a escapar ao impacto da Grande Depressão de

1929, Salazar optou pelo estabelecimento de políticas de autarcia e protecionismo

económico, aumentando o “papel da regulação autoritária do Estado na economia”. Estas

medidas traduziram-se no “condicionamento industrial (leis de 1931 e 1937)”, na

“cartelização corporativa dos setores mais problemáticos (trigo e moagem, conservas,

vinho do Porto, lanifícios, cortiça, resinosas…)”, na “concentração administrativa” de

atividades, como os “lacticínios ou fabrico mecânico do vidro” e no “estabelecimento dos

primeiros monopólios de exploração (refinação do petróleo)”. Este tipo de regulação

reger-se-ia durante muito tempo “pelo sagrado princípio da manutenção dos equilíbrios

financeiros, económicos e sociais estruturantes da pax salazarista e da durabilidade do

regime: um desenvolvimento industrial que não” subvertesse “o mundo rural tradicional

ou o universo de coisas económica e socialmente pequenas do Portugal de então”, nem

precipitasse “processos de urbanização «perniciosos»”; um regime salarial que não

afetasse os preços e repusesse as taxas de lucro, enfim, que não alterasse “o viver

habitualmente”, mas que não gerasse “tensões incontroláveis”56.

Depois de provas dadas, a 5 de julho de 1932, Salazar seria empossado como chefe

do último Governo da Ditadura Nacional, cargo que ocuparia até 11 de abril de 1933.

Nesta fase, seria aprovada a nova Constituição, “plebiscitada em março e promulgada a

55 ROSAS, Fernando – «Salazar», in ROSAS, Fernando; BRITO, J. M. Brandão de (dir.) – Dicionário de

História do Estado Novo, vol. II, p. 865. 56 ROSAS, Fernando – «Salazar», in ROSAS, Fernando; BRITO, J. M. Brandão de (dir.) – Dicionário de

História do Estado Novo, vol. II, p. 865.

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9 de abril de 1933” que trazia “a direita militar e civil republicana à plataforma

viabilizadora do Estado Novo que a União Nacional iria consagrar”57. Através deste

documento entende-se que “o chefe de Estado (o General Carmona) era, teoricamente, a

figura mais dominante”, sendo que, por exemplo, tinha a autoridade para nomear e

exonerar o Presidente do Conselho e os restantes Ministros. Mas, na verdade, a

Constituição de 1933 “instituía uma ditadura do Presidente do Conselho de Ministros”.

Salazar podia, na prática, “propor Ministros e Subsecretários de Estado ao Presidente da

República que os nomearia oficialmente”, ao mesmo tempo que “coordenava e dirigia a

atividade de todos os Ministros, que perante ele respondiam politicamente pelos seus

atos”. Logo, “a Constituição de 1933 era um instrumento da vontade de Salazar”, sendo

que este “explorou cada artigo a seu favor, interpretou as suas ambiguidades como muito

bem entendeu e reescreveu artigos quando já não lhe convinham”58. Por esta altura,

Oliveira Salazar era já o líder incontestado e omnipotente, ocupando o cargo de Presidente

do Conselho de Ministros desde 5 de julho de 1932 até 18 de janeiro de 1936 (segundo

Governo) e desde aquela data até 27 de setembro de 1968 (o seu terceiro e último

Governo) sendo então exonerado por incapacidade física59. Foi substituído por Marcelo

Caetano, vindo Salazar a falecer em julho de 1970.

2.2.2. Ideário e mecanismos de afirmação do salazarismo

Efetivamente, António de Oliveira Salazar foi uma personalidade extremamente

conservadora. Grande ativista, enquanto estudante, do Centro Académico da Democracia

Cristã e, mais tarde, do Centro Católico, sempre repudiou os exageros republicanos,

procurando manter uma amigável relação com os monárquicos e com os adeptos do

Integralismo Lusitano. Esta faceta de Salazar teve evidentes repercussões no sistema

político que liderou. As suas ideias provinham de “doutrinas católicas e

contrarrevolucionárias, na sua maioria retiradas de encíclicas papais e de pensadores

57 ROSAS, Fernando – «Salazar», in ROSAS, Fernando; BRITO, J. M. Brandão de (dir.) – Dicionário de

História do Estado Novo, vol. II, p. 868. 58 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p. 131-133. 59 ROSAS, Fernando – «Salazar», in ROSAS, Fernando; BRITO, J. M. Brandão de (dir.) – Dicionário de

História do Estado Novo, vol. II, p. 876.

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franceses como Gustave Le Bon e Charles Maurras [ideólogo da Action Française], sendo

mais tarde atualizadas por Henri Massis e Jacques Bainville”60.

Na verdade, o Estado Novo distinguiu-se, entre os demais fascismos, pelo seu

caráter profundamente conservador e tradicionalista. Valorizou conceitos e ideais de

moralidade que jamais poderiam ser questionados, tais como a conhecida trilogia

salazarista “Deus, Pátria, Família”. O regime enalteceu o mundo rural, visto como um

refúgio seguro da virtude e moralidade numa sociedade consumida pelos vícios típicos

dos grandes centros urbanos e industriais. A mulher – por exemplo – viu-se reduzida a

um papel passivo dos pontos de vista económico, social, político e cultural, devendo ser

uma mãe e esposa submissa que vivesse apenas em função do marido e dos filhos, ao

mesmo tempo que cuidasse do lar.

Por outro lado, a evocação de tempos e glórias históricas do passado sobressai na

doutrina salazarista. “A sociedade medieval foi escolhida como o ideal a aspirar”

realçando-se eventos como a “reconquista cristã” e a importante ideia de que “ao longo

da Idade Média se desenvolvera uma sociedade bem organizada e hierárquica, na qual

considerações espirituais eram tidas, tanto por governantes como por governados, como

o cerne da existência humana”. Isto comprova-se com o investimento por parte do Estado

“na conservação e restauro de monumentos medievais, elos vivos com uma época que

segundo Salazar, tinha lições importantes para o presente”61.

Ainda de acordo com as tendências então em voga, o Estado Novo perfilhou um

nacionalismo exacerbado. Erigiu em desígnio supremo da sua atuação o “bem da Nação”,

expresso no slogan “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”. Assim, o nacionalismo era

tido necessário para “manter a sociedade portuguesa unida face às dificuldades”, tal como

seria um mecanismo fundamental para “ultrapassar a luta de classes”62.

Seguindo a mesma linha, também o corporativismo se revelava fundamental para

manter a unidade da Nação e para fortalecer o Estado, negando o divisionismo fomentado

pela luta de classes marxista e a noção de “indivíduo” consagrada pelo liberalismo

político. O corporativismo concebia a Nação representada pelas famílias e por organismos

60 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p. 107. 61 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p. 108. 62 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p. 109.

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específicos, à guarda dos quais os indivíduos se agrupavam conforme as funções que lhes

competissem desempenhar na sociedade em prol do bem comum. As corporações

incluíam, por exemplo, instituições de assistência social e caridade, as universidades e

associações científicas, literárias e desportivas, as Casas dos Pescadores, as Casas do

Povo, os Sindicatos Nacionais e os Grémios63.

Em termos políticos, o corporativismo não criou grande impacto, visto que “as

suas organizações nunca foram capazes de falar pela nação”. No campo da economia, os

trabalhadores foram tomados pela máquina corporativa na forma dos sindicatos

nacionais, ou seja, viram-se desprovidos da sua independência. De facto, “a máquina

corporativa tinha como funções prioritárias exercer uma forma de controlo social,

desenvolver o capitalismo nacional e reforçar o papel do Estado64.

Por outro lado, o corporativismo era também parte de um “programa político

católico” que Salazar muito prezava. O objetivo primordial seria, após a perseguição da

República à Igreja, “reconquistar a adesão da população” à religião, “permitindo à Igreja

liberdade de ação espiritual”65.

Neste contexto, a longevidade do Estado Novo pode explicar-se pelo conjunto de

instituições e processos que, de forma mais ou menos eficaz, conseguiram enquadrar as

massas e obter a sua adesão ao projeto do regime.

Em primeiro lugar, destaca-se o Secretariado da Propaganda Nacional (SPN),

criado em setembro de 1933, tendo o Estado Novo criado o seu “mais diversificado,

profundo e duradouro instrumento” de penetração nos vários espaços de produção

cultural. Habilmente dirigido por António Ferro, concebeu um projeto totalizante que fez

de artistas e escritores instrumentos privilegiados da inculcação e da propaganda do

ideário do Estado Novo66.

Recorreu-se, também, a organizações milicianas, entre as quais se destaca a

Mocidade Portuguesa. A inscrição era obrigatória para todos os estudantes dos ensinos

63 ROSAS, Fernando (coord.) – Portugal e o Estado Novo (1930-1960), in SERRÃO, Joel; MARQUES,

A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal, vol. XII. Lisboa: Editorial Presença, 1992, p. 97. 64 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p.113. 65 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p.113. 66 ROSAS, Fernando (coord.) – Portugal e o Estado Novo (1930-1960), in SERRÃO, Joel; MARQUES,

A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal, p. 395-398.

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primário e secundário e destinava-se “a estimular o desenvolvimento integral da sua

capacidade física, a formação do caráter e a devoção à pátria, no sentimento da ordem,

no gosto da disciplina e no culto do dever militar”67.

Realmente nada escapava à esfera do Estado Novo e a criação da Fundação

Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT), em 1935, prova exatamente isso. Tinha

como finalidade controlar os tempos livres dos trabalhadores, providenciando atividades

recreativas que possuíam como pano de fundo a moral oficial defendida pelo regime68.

Por outro lado, como outros regimes ditatoriais, o Estado Novo rodeou-se de um

aparelho repressivo que amparava e perpetuava a sua ação.

A censura prévia à imprensa, ao teatro e à rádio, enfim, a todas as áreas de

produção cultural e informativa, abrangeu assuntos políticos, militares, morais e

religiosos. Era ao “lápis azul” da censura que competia a proibição e difusão de palavras

e imagens consideradas subversivas para a manutenção da ideologia do Estado Novo.

Efetivamente, pouco ou nada escapava às malhas apertadas deste sistema de repressão:

De tão lavados pela censura, os jornais chegavam às mãos dos portugueses como

se viessem de um país em que não acontecia nada, e daí que se parecessem todos

uns com os outros, a ponto de podermos dizer que, na monotonia, todos eram

iguais, porque todos publicavam apenas o que lhes era consentido pela Censura69.

Também a criação de uma polícia política foi vista como indispensável para a

manutenção do regime. Em 1933, nascia a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do

Estado), que posteriormente seria transformada em PIDE (Polícia Internacional e de

Defesa do Estado) e, finalmente, DGS (Direção Geral de Segurança). Este organismo

ficaria responsável por perseguir, prender e interrogar qualquer possível opositor à

ditadura salazarista, sendo a sua atuação caracterizada “pelo uso permanente de meios

67 ROSAS, Fernando (coord.) – Portugal e o Estado Novo (1930-1960), in SERRÃO, Joel; MARQUES,

A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal, p. 400-401. 68 ROSAS, Fernando (coord.) – Portugal e o Estado Novo (1930-1960), in SERRÃO, Joel; MARQUES,

A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal, p. 400. 69AZEVEDO, Cândido de – A Censura de Salazar e Marcelo Caetano: imprensa, teatro, televisão,

radiodifusão, livro. Lisboa: Caminho, 1999, p. 70.

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violentos e por uma contínua e permanente violação da legalidade”. Efetivamente, o

recurso à tortura “assumiu um carácter sistemático, constituindo uma forma regular de

obter informações para os processos por crimes políticos”70.

Assim, foi através do pulso forte de Oliveira Salazar e dos mecanismos

ideológicos e politico-repressivos aqui sucintamente expostos, entre numerosos outros,

que o Estado Novo vigorou em Portugal durante 41 anos, sobrevivendo ao próprio ditador

que o criou. Não obstante as várias crises que necessariamente o abalaram (uma das

últimas e mais determinante para o seu fim foi a Guerra Colonial, iniciada em 1961),

permaneceu invicto desde a aprovação da Constituição em 1933 até ao 25 de Abril de

1974, quando foi derrubado pela Revolução dos Cravos, sendo então instauradas em

Portugal as liberdades inerentes a uma Democracia.

70 RIBEIRO, Maria Conceição – “Polícias Políticas”, in ROSAS, Fernando; BRITO, J. M. Brandão de (dir.)

– Dicionário de História do Estado Novo, vol. II, p. 749.

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3. O 28 de Maio e a Ditadura Militar – a posição de O

Democrático

Após a eclosão do movimento revolucionário do 28 Maio de 1926, O Democrático

passou a apresentar, semanalmente, a sua reação aos desenvolvimentos e acontecimentos

chave subsequentes ao golpe (isto porque nada publicou sobre a sua preparação e

concretização), na qual se denota sempre – clara e firmemente – a defesa dos interesses

do Partido Republicano Português e o seu regresso ao poder, apesar de ter apontado

críticas à atuação desta formação partidária, sempre que entendeu ser pertinente.

A sua posição assumiu-se coerente e focada. Após a queda do PRP e a tomada do

poder pelos militares, o periódico apelou veementemente à união de todos os

republicanos, mobilizando-os para a luta pela manutenção do regime e seus valores, que,

antes de mais, passaria pelo derrube da Ditadura instaurada. Não se conteve na crítica aos

protagonistas deste golpe de Estado e apontou as barreiras e dificuldades que deveriam

ser combatidas para que a República fosse novamente uma realidade, fazendo questão de

relembrar sempre os baluartes celebrados pelo 5 de Outubro de 1910.

3.1. O golpe armado e a oposição à Ditadura Militar e seus governantes

Cerca de uma semana depois da eclosão do golpe militar apareciam as primeiras

reações. Na edição de 5 de junho de 1926, o jornal publicou uma nota oficiosa do PRP

que, apesar de breve, se apresentava recheada de incerteza no futuro e se traduzia num

apelo à continuação da defesa da República:

O Diretório do Partido Republicano Português, na hora grave que passa, entende

dever aconselhar a todos os seus correligionários a máxima serenidade.

O PRP tem a consciência de ter sempre procurado servir com lealdade e

dedicação a Pátria e a República. A situação em que hoje se encontra não diminui

a inabalável decisão em que continua a defender o regime sempre que este careça

dos seus esforços e sacrifícios.

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E neste momento é-lhe grato saudar o povo republicano e todos aqueles que têm

defendido e continuem a defender o prestígio das instituições71.

Ainda na mesma edição foram partilhadas outras primeiras impressões relativamente à

triunfante insurreição militar. De facto, a incerteza e a dúvida são os sentimentos que

melhor definem as “reações a quente” deste semanário republicano. Considerou que o

“movimento militar nacional” que prevalecia “veio modificar profundamente a vida

política” vigente desde 1910. Consequentemente, o jornal apontava “o momento político

atual” como “difícil e delicado”, apesar de depositar a sua confiança nas capacidades do

General Gomes da Costa e nos propósitos por ele anunciados, já que o via como “um

militar valente e brioso, animado de um ardente patriotismo”72.

Por outro lado, o periódico – com o objetivo de proceder à defesa dos estadistas

do PRP – fez questão de refutar a informação, que alguma imprensa vinha veiculando, de

que António Maria da Silva, ex-Presidente do Ministério, escondera a verdadeira situação

política do Presidente da República, Bernardino Machado, sobre a iminência da queda do

regime. O periódico transcreveu o comunicado à imprensa do Chefe de Estado, no qual

Bernardino Machado afirmava que o Governo de António Maria da Silva “chegara à

convicção de que não podia dominar o movimento” e, por isso, pedia a sua demissão,

com o receio de derramar sangue73.

Na edição seguinte, O Democrático abriu com um artigo que transcreveu

integralmente de O Rebate, órgão das comissões do PRP em Lisboa. Neste texto

afirmava-se que quem pensava que o Partido Republicano Português ia extinguir-se após

ter sido “arrancado, violentamente do poder” estava enganado, pois a vida dos organismos

políticos e sociais era cíclica, desenvolvendo-se “através de alternantes ascensões e

depressões”, ou seja, de altos e baixos74. Desta forma, não se deveria avaliar a possível

extinção de um partido político tendo em conta apenas um episódio da sua existência,

teoria que foi reforçada relembrando-se a turbulenta história do PRP e sua governação

face às constantes tentativas do seu derrube: a crise de 1914, relativa ao pimentismo, que

71 “Partido Republicano Português – Nota Oficiosa”. O Democrático, nº 626, 05/06/1926, p. 2. 72 “Situação”. O Democrático, nº 626, 05/06/1926, p. 2. 73 “Para a História”. O Democrático, nº 626, 05/06/1926, p. 2. 74 “ Firmes!”. O Democrático, nº 627, 11/06/1926, p. 1.

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“tomou, como pretexto, a intervenção dos elementos partidários na vida das instituições

militares”, tendo o PRP adotado “uma atitude de neutralidade política perante o exército”;

nova crise em 1917, em que o sidonismo apresentara como justificação, “a pretensa tirania

do PRP”. A partir de então o partido praticaria “uma política de transigências e

contemporizações”: de 1919 a 1925, subsistiu um clima de cooperação entre o PRP e as

restantes fações políticas, à exceção dos defensores da Monarquia, mas apesar de todos

os esforços e contendas, em 1926 rebentaria a terceira crise. É neste contexto que o

periódico apontou uma das falhas do PRP: os resultados desastrosos que surgiram da

união com outros grupos políticos. Assim, chegou à conclusão de que o caminho do

partido, daí em diante, deveria ser solitário, sem recorrer a cedências nem alianças. Seria

esta a receita que, segundo o semanário, permitiria ao PRP seguir firmemente, sem

hesitações.

Defendendo pois a continuidade do PRP/PD, O Democrático demonstrou a sua

incredulidade perante uma notícia redigida pelo “órgão da situação governamental”, A

Revolução Nacional, que informava que seria assinado um “decreto estabelecendo a

extinção pura e simples do Partido Democrático”, considerado “uma quadrilha

antinacional”. Refutando tais declarações com ironia, O Democrático replicou: “E já

agora, para a obra ficar completa, consta também que vai ser publicado novo decreto

determinando que o sol não possa iluminar as pessoas que são democráticas, ficando

assim os esbirros sabendo quem elas são para as pôr à sombra quando se tornar preciso e

sem grande trabalho”75.

Cerca de um mês após o movimento revolucionário, surgia um artigo cujo título

é, por si só, revelador do estado de espírito da equipa deste semanário: “Horas Tristes”.

Apontava-se um clima pesado e de discórdia entre os republicanos, com uma crise política

sem fim em vista. Neste seguimento, o jornal manifestou prontamente o seu

descontentamento com a atuação dos líderes do golpe militar, que prometeram

estabilidade e trouxeram tumulto. A demissão do “valente oficial” Cabeçadas, “que tanto

75 “Único!”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 2.

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concorreu para o advento da República”, surgia como motivo de preocupação, pois só

ampliava “os receios de tempestade, do perigo iminente”76.

Sendo Gomes da Costa o líder que a direita conservadora encontrara para liderar

a revolução de 28 de Maio de 1926, não caiu nas “boas graças” deste jornal, que passou

a tecer duras críticas ao General e seus apoiantes que sequestraram Cabeçadas e

impuseram “a entrada no Governo de um outro político, mas este violento e faccioso” e

que não oferecia “garantia alguma de amor e dedicação à República como sucedia com o

Comandante Cabeçadas”77.

Apesar de muitos republicanos terem demonstrado confiança na “figura ereta de

militar valente” e que não receava “perigos” de Gomes da Costa, o jornal afirmava que

este oficial, rodeado pela direita extremista, não teria força suficiente para reagir, em

conformidade com as aspirações da República, contra “essa nefasta camarilha que desde

Braga até ao atual momento” o cercava, o guardava, o sequestrava, o inspirava, o

dominava, o torcia, o vergava, o obrigava a mudar de ideias78.

De facto, a maior crítica apontada ao General Gomes da Costa era a inconstância

e contradição constante patente nas suas decisões: “são todas as palavras, são todos os

atos do General Gomes da Costa que se contradizem, que se modificam diariamente, a

causa do receio em que vive a opinião republicana do país pela incerteza do dia de

amanhã…”79. Neste contexto, o jornal apresentou um exemplo específico e demonstrativo

da pressão que considerava estar a ser exercida sobre Gomes da Costa e que comprometia

gravemente a sua credibilidade. Tratou-se da exoneração de Ferreira do Amaral,

Comandante da Polícia de Lisboa, ordenada por Gomes da Costa, quando, no dia anterior,

o General tinha garantido ao Comandante que pretendia mantê-lo naquele cargo. Dito

isto, surgia uma “revelação gravíssima”: corriam rumores de que o próprio Ferreira do

Amaral tinha pedido a demissão quando, na realidade, havia sido exonerado do seu cargo

por Gomes da Costa80.

76 “ Horas Tristes”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 1. Ver anexo 2. 77 “Horas Tristes”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 1. 78 “Horas Tristes”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 1. 79 “Horas Tristes”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 1. 80 “Horas Tristes”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 2.

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A conduta governativa de Gomes da Costa era de tal maneira motivo de

preocupação para O Democrático que a edição de 3 de julho abriu com a notícia de que

este General, “o mais categorizado membro do Ministério”, tinha “posto nos lugares de

maior destaque dos vários serviços públicos autênticos monárquicos, sob o rótulo de

competências, demitindo os homens de funda fé republicana”. Por outro lado, é de realçar

a apreensão demonstrada pelo periódico relativamente à posição de Filomeno da Câmara

no Governo, pois temia que Sinel de Cordes, “o General de ideias monárquicas bem

definidas”, se reaproximasse do poder e ameaçasse a reconstrução da República.

Adicionalmente, o semanário constatava com tristeza e ressentimento o facto de altas

figuras republicanas, “que ao regime e à Pátria” tinham “prestado assinalados serviços”,

estarem a ser conduzidas ao exílio e “cujo crime” consistia “em não se deixarem dominar

por estes salvadores de marca bera”81.

Também nesta edição se faz um balanço, trinta dias após a eclosão do movimento

militar, que “derrubou o ministério presidido por António Maria Silva”. O periódico

esperava “um Governo forte, inteligente e experimentado”, que “executasse o programa

da revolução ou, por outra, resolvesse os assuntos pendentes e os que surgissem com

desusado critério, honestidade e firmeza...”. Porém, não era este o cenário em que o país

se via mergulhado quatro semanas após o triunfo golpe militar. Em vez disso, assistia-se

a um caos instalado:

Em 30 dias temos assistido a paradas militares, muitas paradas, banquetes e

movimento de tropas. Ministros que entram hoje e saem amanhã, quando não

saem no mesmo dia, substituição de comandos, de autoridades e corporações

administrativas e, para que a fita esteja completa, até já houve um golpe de

Estado82.

Por vezes, O Democrático apontava decisões mais ou menos irrelevantes da

Situação para a depreciar e desacreditar; por exemplo, criticou com sarcasmo uma medida

aprovada pela nova administração: a autorização do casamento a crianças com 14 anos,

81 “Confissão insuspeita – o perigo monárquico”. O Democrático, nº 630, 03/07/1926, p. 1. 82 “A Vitória”. O Democrático, nº 630, 03/07/1926, p. 1. Ver Anexo 3.

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“uma medida acertadíssima, porque a população estava a diminuir

assustadoramente!...”83.

De uma forma geral, O Democrático considerava que, perante a evolução da

situação, todos saíram a perder: o povo, “sobrecarregado com uma despesa” que devia

“aproximar-se de cem mil contos, feita com o movimento de tropas e banquetes”; o país

que se viu afetado com a uma “interrupção forçada na marcha dos negócios públicos”;

“os políticos perderam porque o Governo de [...] Gomes da Costa” era “uma miscelânea”

que não servia “a nenhum dos grupelhos existentes” e “os monárquicos perderam porque

contavam com um pássaro na mão e ele fugiu-lhe para nunca mais voltar”. O periódico

considerava, numa atitude simultaneamente desesperada e inusitada, que só tinha saído a

ganhar o PRP, “cuja força ninguém” seria “capaz de destruir”84, embora tivesse sido

derrubado em consequência do golpe militar, como se sabe.

Fiel às suas origens e convicções, o semanário insistiu na defesa do Partido

Democrático que se via atacado por várias frentes, sendo apontado como o principal

responsável pelos “males da Nação”. O Democrático contestava esta teoria, desafiando

os críticos a considerarem a problemática “situação política da Europa”, nomeadamente

os casos de Espanha e França. Desta forma, afirmava que a “ruína do país” se deveria a

“um certo número de fatores inevitáveis” – comuns às situações de outros países – “e não

à política do PRP”. Portanto, tirada a exclusiva carga de responsabilidade ao PRP pelo

fracasso da política republicana, o jornal questionava os leitores e os críticos sobre o

porquê da situação do país mesmo assim, e segundo esta lógica, não melhorar85.

Ao mesmo tempo que ia relatando “a quente” os desenvolvimentos do movimento

militar, o jornal referenciou que em Vila do Conde os “acontecimentos políticos” tinham

sido “o assunto de todas as conversações, sendo os jornais lidos com interesse”86, estando

o propósito da imprensa periódica local a ser cumprido: garantir que a população se

mantivesse informada.

83 “A Vitória”. O Democrático, nº 630, 03/07/1926, p. 1. 84 “A Vitória”. O Democrático, nº 630, 03/07/1926, p. 1. 85 “Razão Claríssima”. O Democrático, nº 633, 24/07/1926, p. 1. 86 “Pelas aldeias. Labruge”. O Democrático, nº 631, 09/07/1926, p. 3.

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Sem surpresa, o desmantelamento da estrutura republicana impunha-se como

matéria fraturante. Uma das primeiras oposições consistiu na resistência à decisão dos

Governos da Ditadura Militar em dissolver as corporações administrativas locais. O

periódico não encontrava, nesta medida, quaisquer benefícios para os municípios.

Considerava-a um ataque ao PRP e suas resoluções, que retirava poder e autonomia de

ação “aos homens que dentro das povoações dirigiam os partidos ou tinham influência

política”. Alterações na lei como a aprovação de um novo encargo atribuído às Câmaras

Municipais, que ficavam doravante responsáveis pelo pagamento do vencimento dos

“empregados das administrações dos concelhos e a aquisição de casas devidamente

mobiladas, para residência do juiz da comarca e o respetivo Delegado do Procurador da

República”, só traziam pesados encargos financeiros às respetivas Câmaras Municipais,

o que provavelmente resultaria na criação de novos impostos ou agravamento dos

existentes87.

Relativamente a este assunto, com impacto nas localidades do concelho de Vila

do Conde, o semanário publicou as primeiras impressões dos correspondentes na

freguesia da Junqueira: “em virtude do decreto que dissolve todas as corporações

administrativas, lá se vai também a nossa Junta de Paróquia, que há anos, a contento de

todos, vem gerindo os negócios da freguesia”. Enumeraram-se os feitos da junta em prol

da freguesia e esperava-se, num misto de preocupação e insegurança, que a alternativa

que lhe sucedesse fizesse tão bom ou melhor trabalho88.

A 13 de agosto deste ano, apareciam as primeiras referências à censura instaurada

pelo regime de Ditadura Militar. O autor do artigo de abertura desta edição (que assina

apenas com a inicial “A.”) começou por se declarar contra a censura à imprensa aplicada

pelo Governo: “sou como toda a gente intransigente adversário dessa tirania, porque ela

impede-nos de dizer todas as verdades e obriga-nos a situações deprimentes”. Mas,

rapidamente, apresentou razões que fundamentavam a aplicação da censura na imprensa

portuguesa, convidando o leitor a pôr a mão na consciência. Defendia que a censura podia

e devia ser utilizada na imprensa se esta servisse de motor para a “desmoralização do

87 “Razão Claríssima”. O Democrático, nº 633, 24/07/1926, p. 1. 88 “Pelas aldeias. Junqueira”. O Democrático, nº 633, 24/07/1926, p. 3.

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povo” ou se diminuísse “a autoridade dos homens por uma intensa e premeditada

campanha de descrédito”. Por outras palavras, o autor afirmava que a imprensa não tinha

“servido os propósitos da sua criação”, pois havia-se transformado num instrumento sem

moral e sem princípios que não instruía, não informava, não moralizava. Assim, a censura

parecia-lhe “não só uma medida justa e oportuna, mas também de necessidade

permanente”, chegando mesmo a afirmar: “para que a imprensa seja correta, é preciso

impor-lhe a censura. Só assim ela é o que deve ser. Abençoada censura!”89. Contudo,

como mais adiante se verá, esta posição relativamente à censura sofrerá uma modificação.

Em finais de agosto de 1926, noticia-se – de forma irónica – a queda e o exílio de

Gomes da Costa para os Açores, que chegara à Ilha Terceira em meados do mesmo mês:

“O Sr. Gomes da Costa, novo Napoleão de cartolina, em breve conheceu a tristeza da

aprazível Santa Helena dos Açores. O seu sonho de dominar teve a duração de um

instante”. Ao mesmo tempo, quando o General Carmona assumiu o poder, o tom taciturno

e pessimista do jornal relativo ao estado do país transforma-se, pelo menos em algumas

linhas deste artigo, demonstrando que depositava confiança no novo estadista e na sua

ação salvífica:

Veio a seguir o Sr. Carmona, homem de grande prestígio, e a atmosfera

desagradável que se ia criando em volta do movimento desanuviou-se um tanto.

E Sua Excelência, um homem de grandes virtudes, e se não é um sábio, um

estadista, um grande homem, impõe-se por sólida cultura e até certa elegância

espiritual. Nós acreditamos mesmo na grande virtude do seu civismo, do seu

imenso amor pátrio. Não duvidamos um instante que ele seria contente de realizar

uma obra de salvação nacional90.

Sobre este desenvolvimento político, chegaram por correspondência à redação de

O Democrático algumas reações dos vila-condenses. Em Gião, por exemplo, haviam

89 “Censura”. O Democrático, nº 636, 13/08/1926, p. 1. 90 “Per Omnia Saecula”. O Democrático, nº 637, 20/08/1926, p. 1.

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causado “verdadeira surpresa os últimos acontecimentos de Lisboa, principalmente o

passeio forçado do General Gomes da Costa até aos Açores. Ninguém previa tanto”91.

Paralelamente, o jornal apontou os “problemas gravíssimos” nas várias pastas do

Ministério que continuavam “sem solução e sem […] probabilidades de se solucionarem”.

Na pasta da Instrução, o semanário considerava urgente a efetuação da republicanização

do ensino nacional, “porque de facto em todas as escolas” se sentia “ainda a influência de

um velho jesuíta coimbrão”. Não deixa de ser curiosa esta opinião de O Democrático,

pois se em algum campo a obra da República se fez sentir com particular acuidade foi

justamente no da educação; por essa razão a Ditadura Militar e o Estado Novo (nos seus

primeiros tempos) porfiariam durante anos na destruição do ensino republicano e seus

valores. O periódico referia também o gabinete das Finanças que continuava numa

situação crítica, sendo que nas outras pastas nada se via ainda “de útil e bom”. Assim,

apesar de se erguer uma nova esperança na governação, o país – cerca de três meses após

o golpe armado – continuava “moribundo”92.

Como seria de prever, visto ser mais uma forma de enaltecer a República e fazer

oposição à Ditadura Militar, O Democrático não deixava que o aniversário do 5 de

Outubro de 1910 passasse em claro nas suas páginas. Para além dos inúmeros “Vivas à

República” e elogios a feitos passados, a mensagem principal do semanário era que se

deveria fazer “menos ruído nas festas e mais firmeza nos propósitos tantas vezes

afirmados, de emendar os erros tão repetidamente cometidos”. Resumidamente, ao

mesmo tempo que o periódico clamava que se recordasse e celebrasse sempre a

República, suplicava para que se trabalhasse de maneira a melhorá-la para torná-la digna

da Nação93. E este tom manter-se-ia durante toda a década, sempre que o calendário

marcava a efeméride da implantação da República, com O Democrático a abordar o

assunto, uma vez que a esperança pelo retorno do republicanismo esmorecia no horizonte.

Nos inícios de 1927, o periódico deu grande destaque à questão do reordenamento

do território, que se traduzia, nas palavras deste semanário, na dissolução e criação “de

distritos, concelhos e deslocamento de freguesias de um lado para o outro”. Apresentando

91 “Pelas aldeias”. O Democrático, nº 633, 24/07/1926, p. 3. 92 “Per Omnia Saecula”. O Democrático, nº 637, 20/08/1926, p. 1. 93 “Na Hora de Festa”. O Democrático, nº 643, 05/10/1926, p. 1.

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a sua oposição a estas medidas, o jornal prosseguiu com a crítica ao novo regime: “não

há dúvida nenhuma que a Ditadura está fazendo uma sementeira de ódios por esse país

fora”, visto que os “protestos fazem-se continuamente por parte dos povos prejudicados”

que veem, de um momento para o outro, “os seus direitos seculares postergados, em

benefício, na mais das vezes, de interesses de povoações que desejam prosperar e

engrandecer-se à custa do vizinho”. Nota-se, portanto, que o grande objetivo do

semanário com a redação deste artigo era fazer ver que a Ditadura Militar não tinha em

conta o supremo interesse da Nação nem procurava saber se era “da vontade dos povos a

deslocação para os concelhos absorventes”94. Sobressai neste artigo, com efeito, o

imperativo de respeitar a vontade da população e de conferir uniformidade na aplicação

das medidas, se estas viessem, de facto, a ser implementadas. Quer isto dizer que se estas

medidas fossem aprovadas, deveriam ser obrigatoriamente executadas em todo país e não

só em algumas regiões. Efetivamente, como já foi referido, a falta de critérios de

uniformização dera azo a exemplos concretos de indignação que proliferavam pelo

território nacional: “Para Santo Tirso estavam designadas duas localidades do concelho

de Famalicão. Os famalicenses bateram o pé, falaram alto e de chapéu na cabeça. E a

Ditadura houve por bem desistir de levar por diante o atentado contra o concelho de

Famalicão”95. Adicionalmente, ainda sobre esta matéria, O Democrático evidenciou a sua

inquietação relativamente ao seu próprio concelho, afirmando que a sua integridade se

encontrava ameaçada “e a gente de Vila do Conde” estava “adormecida” e não dava “o

apoio devido aos homens” que trabalhavam para que o “atentado” não se efetivasse96.

Na edição publicada a 28 de maio de 1927, o semanário apresentou a análise da

situação política nacional, compilando os acontecimentos de maior visibilidade,

precisamente um ano depois da eclosão do movimento militar. É, mais uma vez, notória

a crítica à Ditadura que, doze meses após o golpe, segundo o periódico em apreço,

nenhuma melhoria trouxera a Portugal. Recuando até ao período monárquico, O

Democrático afirmou neste texto que, “durante muitos anos”, o país viveu numa

“passividade absoluta” e que apenas com a proclamação da República em 1910 se

94 “Porque se espera?”. O Democrático, nº 656, 15/01/1927, p. 1. 95 “Porque se espera?”. O Democrático, nº 656, 15/01/1927, p. 1. 96 “Porque se espera?”. O Democrático, nº 656, 15/01/1927, p. 1.

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começou a interessar e manifestar “pelos acontecimentos políticos” da Nação, com um

novo fôlego e “procurando de armas na mão impor ao país um novo Governo” que

satisfizesse “a aspiração de todos os portugueses”. Consequentemente, esta mudança

originou, entre outras, a revolução do 28 de Maio de 1926 que instaurou uma Ditadura

Militar com o apoio de muitos e a oposição de outros tantos. Mas, ao invés de assegurar

a reposição da paz e estabilidade em todas as frentes, o movimento revolucionário trouxe

um “constante desassossego, com a vida interina todos os dias a agravar-se de uma

maneira assustadora”. Ficaram os seguintes reparos e o apelo:

As paixões políticas que, por vezes, parecem obcecar os espíritos mais lúcidos,

têm contribuído ainda mais para a confusão nacional, pondo o país e a República

num perigo iminente. É tempo de entrarmos num período de paz, de realizações

e de trabalho. É o apelo que neste lugar fazemos de todo o nosso coração e oxalá

que este nosso desejo tenha em breves dias a sua realização97.

Em julho, foi indiretamente retomado o tópico da aplicação da censura à imprensa.

Desta vez, o jornal admitiu não tratar assuntos relacionados com política com a frequência

pretendida devido à lupa atenta da censura. No entanto, provavelmente numa tentativa de

aligeirar esta afirmação, acrescentou que o principal motivo pelo qual não trazia a política

às suas páginas era para não criar mais divergências do que as que já existiam entre os

vila-condenses, o que permite inferir das divisões de opiniões que este período de

transição provocava: “há bastante tempo que não temos tratado de política, não só devido

à censura que não nos permite a publicação dos mais ligeiros comentários, mas muito

especialmente para não criarmos maiores desinteligências entre filhos da mesma terra”98.

Mesmo assim, em agosto de 1927, num artigo intitulado “A Situação”, O

Democrático fez novamente o ponto da situação política. Mais uma vez, o

descontentamento é gritante, sendo realçada a oposição a um regime ditatorial, bem como

a falta de entendimento entre os “republicanos”, que, segundo este texto, eram também

os homens da Situação. Isto porque o jornal não desferia críticas contundentes aos

97 “Já é tempo”. O Democrático, nº 673, 28/05/1927, p. 1. 98 “Pela Pátria e pela República”. O Democrático, nº 679, 15/07/1927, p. 1.

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políticos no poder, adotando antes a postura de os ver como republicanos (e tantos tinham

sido, efetivamente, homens do republicanismo), preferindo acusar, sem pejo ou artifícios,

a situação ditatorial que se instalara no país. Nesta conformidade, relembrava que os

“membros do Governo” que detinham “o poder” eram “na sua maioria republicanos

sinceros” e que, como tal, deveriam “repudiar, no seu íntimo, esta situação abjeta a todos

os sentimentos liberais”. De facto, uma República e uma Ditadura dificilmente poderiam

andar de mãos dadas simultaneamente, visto que são “correntes essencialmente

heterogéneas”99.

Por outro lado, o periódico recorda que no programa do movimento militar do 28

de Maio, a grande prioridade era o “saneamento da República”, de forma a remediar os

erros cometidos pelos “antigos maus políticos” – que não haviam conseguido cumprir as

suas funções competentemente e se achavam desacreditados pela população – tendo

sempre como prioridade os “sagrados interesses da Nação”. Assim, numa conjuntura

propícia, a revolução saíra vitoriosa e implantara-se a Ditadura Militar, vista como a

melhor forma “de depurar e eliminar o regime republicano das deficiências dos políticos”.

Entretanto, ocorreu um golpe de Estado, “sendo Gomes da Costa preso e deportado, sob

acusação da sua política não corresponder ao programa do exército revolucionário” –

dando-se então o primeiro grande choque entre os homens no poder; desde então, era

impossível não constatar a falta de homogeneidade entre os membros do Governo. Este

artigo encerra com uma conclusão coerente com a doutrina que defende: a única solução

residia na união de todos os “republicanos” das várias fações, através da formação de “um

Governo constitucional sem cor política em substituição do atual”100. Por outras palavras,

havia ainda como salvar a República, corrigindo a rota do movimento ditatorial, isto é,

retomar o caminho do liberalismo pela via constitucional.

Entretanto, o PRP subsistia, sobretudo por atos simbólicos, designadamente de

culto pelas suas figuras mais eminentes. O assassinato de Luís Derouet – “um velho e

valioso democrata” que se tornara o primeiro diretor republicano da Imprensa Nacional101

99 “A Situação”. O Democrático, nº 683, 12/08/1927, p. 1. 100 “A Situação”. O Democrático, nº 683, 12/08/1927, p. 1. 101 Luís Carlos Guedes Derouet (1880-1927) está profundamente ligado à história da Imprensa Nacional,

onde trabalhou desde 1902, tendo sido nomeado seu diretor pelo Governo Provisório no próprio 5 de

Outubro de 1910 e tomado posse no dia seguinte, mantendo-se no cargo até 31 de outubro de 1927.

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– por um tipógrafo, que reclamava o pagamento salarial alegadamente em atraso102, levou

o periódico a deplorar amargamente este “atentado”, considerado “uma perda

irremediável para o interesse coletivo”, para a imprensa e para a República, informando

ainda que o próprio PRP decidira, em sessão ordinária, “lançar uma ata de voto de

sentimento pela morte do velho e dedicado republicano e prestante servidor do Estado,

Sr. Luís Derouet, e protestar contra o execrável crime que o vitimou”, assim como

“recomendar a todos os correligionários o maior espírito de conciliação, solidariedade e

colaboração com os outros republicanos”, numa época de divisão e conflito, a bem da

República103. Este apelo do PRP à conciliação e colaboração espelha a sua conduta,

marcada pela hesitação face à Ditadura. E O Democrático parece ter-se visto na

necessidade de justificar a ação (ou falta dela) do partido perante o regime de Ditadura

Militar. Esclarece, assim, que o PRP se tinha já habituado a ver as suas intenções e ações

deturpadas pelas fações opostas, mas reiterou que o partido não apoiava, de forma

alguma, a Ditadura Militar vigente. Contudo, reconheceu que, tal e qual como numa

tourada, também não podia “arremeter contra ela às cegas, com a imprudente fereza de

um toiro bravo na arena”, pois o resultado seria catastrófico. Depois desta metáfora

taurina, mas que encerra uma posição cautelosa, O Democrático tentou clarificar a difícil

posição do PRP na cena política do tempo, optando pela dupla negativa que traduziu a

recusa da polarização que marcou os anos 1920-1930, tanto em Portugal como no mundo

ocidental: “O nosso partido [...] [não] pode aproximar-se da Ditadura, nem entender-se

com o comunismo. Fica no meio, no seu lugar”104.

A propósito do pedido de empréstimo à SDN, feito por Sinel de Cordes, Ministro

das Finanças, o jornal publicou uma carta de Francisco da Cunha Leal, fundador na União

Liberal Republicana (ULR) a Óscar Carmona, Presidente da República. A ideia principal

que o texto pretendia passar era a de que a promessa de Sinel de Cordes em conseguir

contrair o empréstimo no estrangeiro se revelara um fracasso, facto aliás incontestado

pela historiografia. Mas, talvez mais importante do que isso, é o facto de utilizar a missiva

102 BRANDÃO, Fernando Castro – A Ditadura Militar 1926-1933: uma cronologia. Lisboa: Europress,

2007, p. 43. 103 “Um atentado”. O Democrático, nº 694, 04/11/1927, p. 1. 104 “Perguntas e Respostas”. O Democrático, nº 695, 11/11/1927, p. 2.

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de Cunha Leal, um republicano conservador que passara por vários partidos republicanos,

sempre em conflito com os democráticos do PRP; portanto, enfatiza-se aqui a crítica de

um republicano conservador à política da Ditadura Militar105.

Visando abordar a pretensão de Sinel de Cordes com mais profundidade, o

periódico abriu a edição de 16 de março de 1928 com um artigo intitulado “O

Empréstimo”. Como se sabe, a SDN concedeu “o empréstimo pretendido por Portugal

mas sob duas condições consideradas inaceitáveis para o pundonor nacional”, que se

traduziam na nomeação de um alto funcionário para controlar a atividade económica e

financeira do Governo português e, no caso de este não cumprir o protocolo do

empréstimo, o envio a Lisboa de uma comissão de três membros para administrar as

receitas consignadas ao serviço do empréstimo. Perante esta conjuntura, o Ministro

Interino das Finanças, Ivens Ferraz, não aceitou “em Genebra as condições impostas pela

SDN para a concessão de um empréstimo”106. Esta recusa de um empréstimo humilhante,

que auxiliaria à resolução do problema financeiro, foi apresentada como uma salvaguarda

da honra nacional. Desta maneira, a Ditadura Militar conseguiu transformar um fracasso

diplomático numa glória política. Ivens Ferraz chegaria a Lisboa, regressado das

malogradas negociações com a SDN em Genebra, sendo recebido com manifestações de

apreço e aplauso107.

Confrontado com as circunstâncias, o jornal considerou que felizmente se salvou

a honra da Pátria e que “essa figura já histórica do General Ivens Ferraz, protótipo da

honra nacional soube levantar bem alto a honra de Portugal”. Porém, e mais uma vez, o

semanário deixaria a sua posição muito clara: “embora este jornal não comungue na obra

da Ditadura”, parabeniza a ação de Ivens Ferraz, “esse português de lei” que, em Genebra,

“se transfigurou na imagem sagrada da nossa pátria querida”108.

Adicionalmente, ainda no contexto do empréstimo pedido à SDN, o periódico

publicou um excerto de um artigo do jornal A União de crítica à Liga de Paris (conjunto

105 LEAL, Francisco Cunha – “Um notável documento”. O Democrático, nº 701, 24/12/1927, p. 1. 106 Nas palavras de O Democrático, “a Sociedade das Nações, o bluff de Genebra, o baluarte do poderio das

grandes potências, hipocritamente mascarada de protetora dos países pequenos, concedia ao nosso país o

empréstimo de doze milhões de libras, mas impunha o controlo na distribuição desse dinheiro” (nº 712,

16/03/1928, p. 1). 107 BRANDÃO, Fernando Castro – A Ditadura Militar 1926-1933: uma cronologia, p. 50. 108 “O Empréstimo”. O Democrático, nº 712, 16/03/1928, p. 1.

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de políticos da I República maioritariamente exilados em Paris). Considerava,

ironicamente, que os seus leitores poderiam “apreciar este bocadinho de prosa”, uma vez

que o A União era um periódico afeto ao regime e O Democrático era apoiante fervoroso

de todas as convicções republicanas. Portanto, neste texto do colega rival, os membros da

liga eram considerados “maus portugueses”, “criminosos de lesa-pátria” que conseguiram

que a SDN “nos ferisse naquilo que temos de mais sagrado: no nosso brio e na nossa

dignidade”, tentando por todos os meios impedir o empréstimo e, consequentemente a

salvação do país109. O Democrático não teceu comentários, sendo já conhecida a sua

posição: total apoio ao PRP e à República.

Em 1929, e já após Oliveira Salazar tomar as rédeas do Ministério das Finanças,

o jornal perseveraria na sua defesa do PRP e oposição à manutenção da Ditadura. No

artigo de abertura da edição publicada a 24 de agosto, o Partido Republicano Português

foi caracterizado como “um partido de boa e completa organização, facto a que sempre

se deveu, principalmente, as suas inegáveis glórias e retumbantes vitórias”. Assim, apesar

de se encontrar afastado do poder em consequência da vigência da Ditadura, não se punha

de lado a hipótese do retorno do PRP à vida política nacional. Por outro lado, o jornal

enfatizou uma ideia fundamental: a Ditadura deveria ser apenas “uma mera transição

política, uma forma de Governo temporária”. Portanto, seguindo esta ideia, “logo que os

homens da Ditadura” entendessem “terminada a sua função política”, seria “o Governo

de Portugal entregue aos partidos políticos novamente”, que para outra coisa não existiam

nem serviam110.

O derradeiro desejo de voltar a ver o PRP a governar o país permanecia, como

igualmente permanecia a esperança do retorno à ordem demoliberal, pluripartidária, e,

em jeito de balanço final, o periódico concluiu que “a Ditadura serviu para demonstrar

que a República e só a República” poderia “governar em Portugal”111.

109 “Arquivando”. O Democrático, nº 713, 24/03/1928, p. 3. 110 “Organização”. O Democrático, nº 781, 24/08/1929, p. 1. 111 “Organização”. O Democrático, nº 781, 24/08/1929, p. 1.

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3.2. A crítica aos monárquicos e o apelo à união dos republicanos

Após o sucesso do golpe do 28 de Maio e a instauração da Ditadura Militar, O

Democrático reconheceu a Monarquia (e a atividade dos seus apoiantes) como um dos

principais inimigos da República, pelo que condenou sistematicamente o regime

monárquico, os seus ideais e adeptos. Ao mesmo tempo, e de forma a combater e derrotar

esta ameaça iminente, o periódico apelou à união numa só família de todos os

republicanos, independentemente das suas fações e sensibilidades, exortando-os a não

desistirem de espalhar e praticar os ideais do republicanismo, pois só assim o inimigo

realista perderia a força, permitindo que a República resistisse.

Logo em novembro de 1926, o periódico fez questão de acentuar que “o perigo

monárquico” existia e um dos erros dos republicanos era precisamente o ato de subestimar

ou desprezar a fação monárquica, num momento crítico de conturbação política. O

período pós-golpe foi comparado à conjuntura que dera azo à contrarrevolução da

Monarquia do Norte, altura em que “Paiva Couceiro, com os seus sequazes à frente, se

encaminhava para o Monte Pedral para aquela obra de felonia bem conhecida”. Apesar

de tudo, o perigo tornava-se agora maior, visto que, depois da Traulitânia, “o inimigo […]

se refez do susto e retemperou as forças”, encontrando-se “bem organizado, forte,

decidido e apto” a dar “batalha”. Tornava-se, portanto, prioridade máxima proclamar “na

imprensa, nas associações, na rua, nos centros de conversa, em toda a parte” que a

República se encontrava perigosamente cercada112.

De forma a expor as diferenças entre Monarquia e República, o semanário

reproduziu um artigo de O Mundo, o histórico órgão de imprensa do PRP, obviamente

muito crítico das outras fações republicanas. No texto tratou-se uma contenda com o

Correio da Manhã (órgão oficioso da Causa Monárquica publicado entre 1921 e 1928)

que tinha como objetivo mostrar o grande abismo que separava monárquicos e

republicanos: os primeiros eram traidores, pois tinham considerado a hipótese de abrir as

portas a uma intervenção estrangeira (nomeadamente se a revolução republicana

eclodisse), enquanto os republicanos jamais cometeriam esse atentado à independência

do país, fosse em que circunstância fosse. Tudo isto vinha a propósito da exploração pelos

112 “O Perigo”. O Democrático, nº 647, 08/11/1926, p. 1. Ver Anexo 4.

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jornais monárquicos sobre o caso da Nota dos Diretórios dos Partidos Republicanos – que

informava as legações dos países estrangeiros que não reconheciam qualquer empréstimo

contraído por Portugal no estrangeiro sem que essa decisão fosse aprovada pelo

Parlamento, como previa a Constituição republicana. Uma vez que o Parlamento estava

suspenso, o mesmo é dizer que esse empréstimo, a realizar-se, era “contra a lei”113.

Por outro lado, O Democrático denunciou a feroz campanha que a fação afeta à

Monarquia fazia contra os republicanos: “crescem em audácia, em ferocidade, em vileza,

as hostes realengas, a ponto de nas suas gazetas não hesitarem pedir ao Governo da

Ditadura o fuzilamento dos republicanos como seres que têm de ser eliminados por

completo da sociedade”. Neste seguimento, o jornal apelidou os monárquicos de

“assassinos” e “carrascos sedentos de sangue republicano”, esperando que a Ditadura não

apoiasse tais desígnios: “apesar de acalentados pela Ditadura, que tomam já como um

passo para a Monarquia, os seus criminosos intentos não passarão de projetos

sanguinários”114.

Numa tentativa de fazer ver aos republicanos que necessitavam de ser mais

persistentes na sua defesa da República, o jornal fez o cotejo dos esforços de propaganda

dos monárquicos e dos republicanos, constando que os monárquicos apostavam “numa

ativa e audaciosa propaganda contra a República”, enquanto a fação republicana não

tirava proveito deste meio de reação. O periódico justificou esta situação, afirmando que

os republicanos tinham deixado para segundo plano os seus princípios para darem

prioridade aos seus interesses pessoais – “de facto, os políticos da República têm cuidado

pouco da República, talvez por terem cuidado muito de si” – não investindo tempo

suficiente nas necessidades do regime. O Democrático reconheceu com tristeza esta quase

apatia por parte dos republicanos, que deveriam espelhar o seu comportamento nos

homens que fizeram o 5 de Outubro, mas que se descuidaram nos seus propósitos:

Perderam o hábito da propaganda e da luta. Desprezaram o contacto sempre

necessário com a massa popular. Não tentaram guiar no sentido da Democracia,

que outrora pregaram, a gente moça das escolas, que aí vemos a ter a Democracia

113 “Os monárquicos pediram a intervenção estrangeira”. O Democrático, nº 657, 21/01/1927, p. 1. 114 “Verdugos! Assassinos!”. O Democrático, nº 658, 28/01/1927, p. 2.

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como um pecado irresgatável. E levados pelas suas ambições, pelas suas

vontades, pelos seus ódios, têm feito destes dezassete anos de República um

encandeamento de motivos que a têm desacreditado e arruinado115.

O jornal recusava aceitar como desculpa a objeção de que a Ditadura vigente fosse

impedimento total à propagação e luta pelos ideais republicanos, afirmando que mesmo

dentro de um regime ditatorial era possível a “propaganda dos princípios republicanos”,

era “possível a propaganda em prol de reforma de processos e costumes condenados”, era

“possível a propaganda por uma obra nova de regeneração moral, económica e financeira”

que consolidasse e impusesse a República. Este texto termina com uma pergunta

inquietante que reflete a frustração causada pela inação republicana: “andam os

monárquicos a anunciar o fim próximo da República. Onde estão os republicanos que não

sabem responder-lhe?”116.

Com efeito, nesta fase inicial da Ditadura Militar, O Democrático via a Ditadura

como uma “crise” da República, e, como atrás se sublinhou, também alguns protagonistas

da governação ditatorial foram incluídos nesse vasto conceito de “republicanos”, os quais

evidenciavam uma particular cisão com os “antigos” republicanos. Basicamente, quem

capitalizava da instabilidade vivida nas hostes republicanas eram os monárquicos que

aproveitavam para lutar por diversos meios pelos seus objetivos:

Por sua vez, os monárquicos, aproveitando a confusão das forças republicanas,

organizam-se e fazem concitar todos os seus ódios sobre os republicanos adversos

à Ditadura, levando o seu arrojo a pedirem ao Governo a reintegração no exército

dos oficiais monárquicos afastados há muito tempo, por pegarem em armas contra

a República117.

Com o intento de, uma vez mais, incentivar os republicanos a atuarem a uma só

voz, o periódico ressaltou o exemplo de Passos e Sousa, Ministro da Guerra, “como

baluarte inexpugnável da República”, uma vez que “nas suas constantes afirmações

115 “Propaganda republicana”. O Democrático, nº 680, 22/07/1927, p. 1. 116 “Propaganda republicana”. O Democrático, nº 680, 22/07/1927, p. 1. 117 “Ainda é tempo”. O Democrático, nº 680, 22/07/1927, p. 1.

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políticas”, punha “sempre em relevo a sua fé republicana” e ia “alimentando a esperança

de que o perigo monárquico” deixaria “em breve de subsistir”. Por outro lado, esse

Ministro garantia que o Governo de que fazia parte com as medidas que ia sucessivamente

decretando salvaria Portugal “dos erros cometidos pelos antigos políticos e uma paz

duradoura” seria efetivada “entre todos os portugueses”118.

Importa salientar que o grande propósito de O Democrático era incutir ânimo e

motivação nos republicanos, alimentar-lhes a esperança no seu regime, apesar da

insurreição militar que provocara a queda do PRP, confiando na capacidade do Governo

em manter os monárquicos e as suas ambições sob controlo. Que não se desistisse da

República era a súplica permanente e sistemática.

Como não poderia deixar de ser, o semanário pronunciou-se relativamente ao

chamado “Golpe dos Fifis”, ocorrido a 12 de agosto de 1927, um movimento

revolucionário liderado por Filomeno da Câmara e Fidelino Figueiredo, com

características de radicalismo de direita. Esta tentativa, ainda que falhada, de restauração

do regime monárquico em Portugal, reforçava ainda mais os receios até agora expressados

pelo jornal: “os acontecimentos de Lisboa são uma consequência lógica de certos amigos

da Ditadura que a todo o custo se esforçam por isolá-la de todo o apoio e de todo o

sentimento republicano”. Neste sentido, o periódico retomou a já conhecida exortação:

os republicanos deviam manter-se juntos, visto que a luta não deveria ser travada entre

republicanos “que apoiam a Ditadura e republicanos que a combatem”, mas sim entre

republicanos e monárquicos119.

No que diz respeito ao panorama da imprensa nacional, O Democrático deu conta

da suspensão dos periódicos A Notícia e O Rebate, os dois únicos jornais republicanos na

capital, “em consequência dos últimos acontecimentos políticos”120. O jornal revelou

incredulidade ao constatar que, em “plena vigência da República”, a imprensa

republicana desaparecia “para florescerem folhas realistas e conservadoras”, oferecendo

exemplos como A Voz, Correio da Manhã e Novidades. Neste seguimento, apelava uma

118 “Ainda é tempo”. O Democrático, nº 680, 22/07/1927, p. 1. 119 “Uma advertência”. O Democrático, nº 684, 19/08/1927, p. 1. 120 O Mundo, por exemplo, tinha publicado a sua última edição diária (nº 8879) em 3 de fevereiro de 1927

e só “voltaria a sair anualmente para garantir o título”. (LEMOS, Mário Matos e – Jornais Diários

Portugueses do Século XX. Um Dicionário. Coimbra: Ariadne Editora, 2006, p. 442).

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vez mais à resiliência de todos os republicanos, neste caso particularmente no setor da

imprensa, visto que a República precisava urgentemente de ser defendida nas folhas dos

jornais121.

Todavia, e apesar de todos os golpes desferidos contra a República, o jornal

comunicou com entusiasmo a parada militar que em 1928 teve como palco a Avenida da

Liberdade, no aniversário do 5 de Outubro de 1910, presidida por Óscar Carmona.

Atestava-se, a partir deste ato simbólico, que a República continuava viva e que a família

republicana era ainda capaz de fazer frente às adversidades, sobretudo aos monárquicos:

As últimas manifestações levadas a efeito em Lisboa, por ocasião do 18º

aniversário da proclamação da República [...] vieram provar exuberantemente

que na alma do nosso povo está bem arreigado o sentimento da Democracia e que

a República tem elementos bastantes de másculas energias, para enfrentar os

monárquicos quando eles se dispuserem a passar à prática o que há longos meses

vêm dizendo122.

De forma a criar um ambiente de união e entendimento no seio republicano, o

periódico propôs que se fizesse uma espécie de “limpeza” e “saneamento” no Partido

Republicano Português, eliminando do seio deste órgão todos aqueles que não estavam

dispostos a dar tudo pela defesa da República. Assim, só “depois de limpinho o Partido

Republicano” é que poderia existir a “união sólida e duradoura da grande família

republicana” que encetaria então a “obra da República”123.

O periódico tentou sempre estabelecer comparações entre os dois sistemas,

apontando os defeitos da Monarquia e exaltando as qualidades da República. Tome-se

como exemplo a edição de 21 de outubro de 1929, na qual se publicou um artigo que

procedia à dissecação do sistema monárquico e seus vícios ingénitos. Esse era

considerado o regime “dos privilégios, das extorsões, dos roubos”, bombeado pelo “poder

do escândalo, do patronato, do favoritismo” e encabeçado por “ladrões” e “salteadores

121 ARIETE, José – “Carta de Lisboa”. O Democrático, nº 731, 03/08/1928, p. 4. 122 “Na defesa da República”. O Democrático, nº 743, 09/11/1928, p. 1. 123 O Democrático, nº 775, 03/07/1929, p. 1.

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políticos”. A Monarquia seria ainda “uma ofensa ao direito natural” e ao “direito público”,

pois, ao contrário da República, não assegurava o “direito que iguala o homem pelo

nascimento e pela morte”, não garantia o “direito que iguala o cidadão pela lei” e não

tinha “por fundamentos a razão e a justiça”. Perante estes argumentos, o jornal

considerava, redutoramente, a escolha fácil: todos os portugueses deveriam optar pela

República124.

Nesta toada, as críticas à atuação dos monárquicos perante a Ditadura

prevaleceriam nos tempos subsequentes, considerando O Democrático que a conduta dos

realistas era pautada pela hipocrisia e pelo oportunismo:

Cercam e apoiam a Ditadura, em berratas de fingido entusiasmo, sem o menor

respeito pela própria honra que lhes imporia a obrigação de não servirem a

República, sem que previamente abdicassem dos seus apregoados princípios

monárquicos. Aplaudem hipocritamente, em exibições grotescas de um impudor

revoltante, um Governo de republicanos que todos os dias afirma a sua fé nos

destinos do regime e promete ao país defendê-lo e prestigiá-lo125.

Por outras palavras, o periódico não conseguia perceber como é que os

monárquicos se podiam considerar apoiantes da Ditadura se, no seu programa, esta se

comprometeu a “engrandecer e prestigiar as instituições republicanas”. O Democrático

foi ainda mais longe e defendeu que se a Ditadura experimentasse “correr com todos os

monárquicos, desalojá-los impiedosamente de todos os lugares de confiança e mando”,

veria grande parte, senão toda a opinião republicana “criar-lhe por todo o país uma

atmosfera de simpatia que lhe permitisse […] preparar a transição” que se anunciava

“para a normalidade constitucional”126. Claramente, este periódico enfatizava que

República e Monarquia eram dois mundos diferentes que nunca poderiam coexistir:

“Republicanos para uma banda, monárquicos para outra”127. E como se pode facilmente

124 “A Monarquia – A República”. O Democrático, nº 788, 21/10/1929, p. 1. 125 “Verdades”. O Democrático, nº 807, 14/03/1930, p. 1. 126 “Verdades”. O Democrático, nº 807, 14/03/1930, p. 1. 127 “Decididamente, não!”. O Democrático, nº 824, 28/07/1930, p. 1.

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constatar, elegia a Monarquia e não a Ditadura como o seu principal adversário, o alvo a

abater, a doutrina a erradicar do país.

Na passagem do 39º aniversário da revolta do 31 de Janeiro de 1891 no Porto, o

primeiro movimento revolucionário “cheio de audácia e de nobreza” que teve como

objetivo implementar o regime republicano em Portugal, O Democrático aproveitou a

efeméride para compelir os republicanos à ação e à defesa dos ideais postulados pelos

que combateram pela República, relembrando aos republicanos do seu tempo que era por

estes desígnios que deviam lutar:

Amemos e defendamos a Liberdade, combatendo o despotismo dos reis e o

truculento fanatismo da reação clerical; asseguremos a igualdade dos cidadãos,

reclamando a promulgação e a execução de leis sábias e justas; e procuremos, no

domínio dos nossos instintos maus, na educação e na cultura do nosso espírito, a

conquista definitiva da paz, da eterna e fraternal harmonia entre os homens128.

Outra estratégia adotada para alertar o círculo republicano do perigo das investidas

monárquicas era o recurso ao passado histórico recente da I República. O jornal tomou

como exemplo o sidonismo, encabeçado por “ditadores” com o decidido propósito de

aniquilar definitivamente os partidos “contra os quais se haviam rebelado” , sendo “pouco

a pouco empurrados pelos monárquicos, perdendo todo o contacto com os republicanos”.

Efetivamente, sobressaia o medo de ver a Monarquia apoderar-se uma vez mais do

regime, embora o periódico retomasse as palavras do Ministro da Guerra, Passos e Sousa,

o mesmo que garantira que “a questão do regime” não estaria em causa129.

Neste quadro, o periódico tentava provar a incongruência dos monárquicos em

querer imiscuir-se no regime vigente, nomeadamente na formação partidária que se havia

formalizado recentemente130: “se quiséssemos admitir a possibilidade dos monárquicos

ingressarem, com boas intenções na União Nacional, teríamos de concluir, logicamente,

128 “31 de janeiro”. O Democrático, nº 801, 31/01/1930, p. 1. 129 “Há doze anos”. O Democrático, nº 849, 23/01/1931, p. 1. 130 A União Nacional foi anunciada ao país em 30 de julho de 1930, através de um manifesto lido pelo

Presidente do Ministério, General Domingos de Oliveira, e por um discurso do Ministro das Finanças,

Oliveira Salazar.

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que haviam renegado a Monarquia, que muitos deles serviram em altos postos de

confiança, para abraçarem desiludidos e conversos, a causa republicana”. De forma a

melhor fundamentar esta sua posição, o semanário recordava: “quem serve a Ditadura,

afirma o Governo, consolida e prestigia a República, e quem consolida e prestigia a

República, afirma toda a gente, é republicano”131.

Deixava-se, portanto, bem claro que na vida política portuguesa não existia espaço

para defensores do regime monárquico, enquanto os desenvolvimentos do poder

ditatorial, designadamente a criação de uma organização de cariz partidário que se

propunha substituir o pluripartidarismo parecia ser considerada menos nefasta aos

desígnios dos defensores do anterior regime republicano. Isto porque não esmorecia a

esperança do retorno da República, após a Ditadura cumprir o seu propósito enquanto

regime transitório, afastando a Monarquia do poder. Esta esperança espelhava-se

claramente nas palavras de O Democrático, mais exatamente no artigo “Alerta!”, sendo

pertinente questionar se tal deriva de uma convicção sincera ou de um artifício de

propaganda: “terminado o período transitório da Ditadura Militar, voltaremos – como

tantas vezes os membros do atual Governo têm publicado e sonoramente afirmado – à

República constitucional. À República democrática, representativa. Sem oligarquias, sem

castas”. Segundo as asseverações do jornal, a República não havia cumprido ainda a sua

“missão renovadora” que consistia na “criação de um Estado nítida e insofismavelmente

republicano, capaz de acarinhar e defender […] as legítimas aspirações da soberania

popular”. Este artigo finaliza-se com uma advertência: “terminada a obra da Ditadura,

regressados de novo ao constitucionalismo – não esqueçamos o período da nossa história

(1918-26), em que a reação entravou a obra de ressurgimento e consolidação republicana!

Não esqueçamos… Evite-se o que trará consequências horríveis!”132

Como se verifica, o jornal evocou particularmente o período entre 1918 e 1926,

ou seja, do sidonismo ao golpe militar vitorioso, como o período mais conturbado da I

República cuja missão fora obstruída pela “reação” – reação monárquica, certamente, mas

também reação dos setores conservadores não monárquicos e do exército, que, após várias

131 “A mesma pergunta”. O Democrático, nº 839, 07/11/1930, p. 1. 132 “Alerta!”. O Democrático, nº 841, 21/11/1930, p.1.

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sublevações, conseguira derrubar o regime. O Democrático tenderia a sobrestimar, nos

anos subsequentes à queda da República, o perigo monárquico, mas ao referir o período

1918-1926 tinha também em conta (além dos próprios erros dos próprios republicanos) a

ameaça conservadora e antiliberal, embora não a expressasse tão abertamente, por

motivos que se prenderiam com a ação da censura. Todavia, a sua mensagem de

contestação à Ditadura era clara pela reiterada reivindicação de regresso ao

constitucionalismo.

3.3. A crítica ao Integralismo Lusitano

O Integralismo Lusitano foi um movimento de combate – ativo e influente entre

1914 e 1932 – à República e à Monarquia Constitucional, ideologicamente “em prol da

Monarquia orgânica, tradicionalista e antiparlamentar”133.

Foi no pensamento de António Sardinha, Alberto de Monsaraz e Hipólito Raposo

que nasceu esta corrente. Combinaram a “publicação de uma revista para divulgar em

Portugal as teses da Action Française” e, em abril de 1914, saía em Coimbra a revista

Nação Portuguesa, órgão do Integralismo Lusitano134.

Atingir uma Monarquia orgânica significava defender um regime anti-

individualista, no qual os conceitos de família, freguesia ou município e corporação ou

grémio profissional – que evidenciam o espírito de coletividade da população – definiam

o movimento. Por outro lado, o poder não seria partilhado, uma vez que “a sua inteira

responsabilidade” ficaria nas mãos do monarca, recusando-se os conceitos de Parlamento

ou Presidente da República. Entre outros aspetos contrários ao republicanismo do 5 de

Outubro, destaca-se a promoção do renascimento do espírito católico na alma dos

portugueses, conferindo à Igreja “a mais ampla liberdade de propaganda, organização,

disciplina interna e ação social”. Adicionalmente, defendia a restituição de tudo o que lhe

havia sido “extorquido”135.

133 ASCENSÃO, Leão Ramos – O Integralismo Lusitano. Porto: Edições Gama, 1943, p. 109. 134 RAMOS, Rui – A Segunda Fundação (1890-1926), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal.

Lisboa: Círculo de Leitores, 1994, vol. VI, p. 541. Os três pensadores tinham-se inspirado na revista Alma

Portuguesa, publicada em Gand no ano de 1913 por Luís Almeida Braga e Rolão Preto, exilados nessa

cidade por motivo do seu envolvimento nas lutas couceiristas. 135 Cartilha Monárquica: Integralismo Lusitano. Lisboa: Anuário Comercial, 1919, p. 38.

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Além de um movimento político-ideológico, o Integralismo Lusitano constituía

“um movimento de renovação intelectual”. Mais do que em qualquer outro movimento,

sentiu-se que este “rompia com os preconceitos ideológicos das gerações anteriores e

entrava no século XX como um mundo desimpedido e arejado”136.

Como previsível, e à semelhança dos setores republicanos, O Democrático

apresentou uma forte oposição a este movimento, contestando-lhe a doutrina e os valores,

a partir de 1931.

O artigo intitulado “A Soberania Popular” caracterizou o Integralismo Lusitano

como uma arcaica doutrina monárquica, criticando, principalmente, a sua “negação do

princípio da soberania popular” que, dentro de uma sociedade culta e dinâmica como se

mostrava a do século XX, não teria qualquer lugar. A soberania popular constituía “um

princípio básico” e absolutamente legítimo e indiscutível. “Aplicado por todas as

correntes do pensamento democrático, era até mesmo aceite pela monarquia

constitucional”. Neste sentido, o periódico defendia que era descabido “o sonho doirado

desses cadaverosos tradicionalistas” de “transformar outra vez o povo, de conjunto de

cidadãos com seus direitos e obrigações, num rebanho humilde de cordeiros”, pois era o

povo quem deveria ser a fonte do poder político137.

Já nos finais de 1932, ano em que por motivos de cisões internas o tema volta às

páginas da imprensa, um artigo sugestivamente intitulado “Intregralismomania”

dissecava a história e génese deste movimento, que o semanário necessariamente

desvalorizava e reprovava. Assim, O Democrático relembrou a curta vigência da

Monarquia do Norte “quando os monárquicos levantavam, no Porto, a bandeira odiosa da

Monarquia” e vinte e cinco dias após a queda desta contrarrevolução, “a parte mais

reacionária e conservadora das hostes manuelistas separou-se e fundou o Partido que teve

a designação de Integralismo Lusitano”. Contavam com António Sardinha como um dos

seus líderes mais destacados, “um homem que não era destituído de um certo talento”, e

assim “foram desenvolvendo a propaganda da sua doutrina”. Com o advento da Ditadura

Militar, os integralistas viram “as suas fileiras engrossadas, pois comungando o novo

136 RAMOS, Rui – A Segunda Fundação (1890-1926), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal,

p. 541. 137 “A soberania popular”. O Democrático, nº 873, 31/07/1931, p. 1.

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regime nas ideias nacionalistas daqueles, lhes dispensou certa proteção”. Contudo, em

1932, esta fação encontrava-se dividida: de um lado ficavam “os que querem antes de

tudo D. Nuno como rei e do outro os Nacionalistas-Sindicalistas […] que procuram

realizar o impossível: a implantação em Portugal de um regime corporativista” como o

que estava “vigorando em Itália”. Em conclusão, o jornal afirmou que não havia espaço

no país para esses “tiranos” que davam entusiásticos “morras à Liberdade e vivas à

escravidão”138.

O periódico vai ainda mais longe ao afirmar que o Integralismo era “uma doença

que os psiquiatras de Portugal deveriam estudar com afinco, a fim de descobrir remédio

eficaz para debelar esse terrível flagelo que atrofia as faculdades mentais de alguns pobres

infelizes”. O Democrático justificou estas declarações esclarecendo que quem possuísse

uma opinião bem formada, adequada aos tempos, aspirando uma “verdadeira e

insofismável ânsia de liberdade”, jamais conseguiria conceber o conceito de Integralismo

Lusitano na sociedade139.

O tópico do Integralismo faz emergir a aparente incoerência d’O Democrático

face à Ditadura Militar. Com efeito, se em vários dos seus textos se persevera em afirmar

que muitos dos homens do regime iniciado em maio de 1928 eram republicanos, como

anteriormente se viu, no artigo atrás referido – “O Integralismo e a Nação” – foi

abertamente afirmado que os integralistas prosperaram com a chegada da Ditadura

Militar, pois partilhavam as ideias nacionalistas com o novo regime, que assim “lhes

dispensou certa proteção”. Nesta conformidade, verifica-se que as referências políticas e

ideológicas à Ditadura Militar exaradas nas páginas d’O Democrático são heteróclitas, o

que, aliás, é comum num periódico, cuja duração no tempo e diversidade de indivíduos a

escreverem os seus textos propicia a inexistência de total unicidade ideológica, mas pode

igualmente perceber-se que as representações do regime vigente são também construídas

em função de objetivos concretos e estrategicamente definidos em vários momentos.

138 “O Integralismo e a Nação”. O Democrático, nº 940, 10/12/1932, p. 2. 139 “Intregralismomania”. O Democrático, nº 942, 23/12/1932, p. 2.

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3.4. O apoio ao movimento reviralhista

Como bem explica Luís Farinha, o “termo Reviralho teve um uso corrente e era

utilizado pelos prosélitos da Ditadura, normalmente com um sentido depreciativo”.

Contudo, foi também um vocábulo utilizado pelos revoltosos republicanos, democráticos

e liberais, estando associado “à ideia de um movimento revolucionário relâmpago, com

o objetivo imediato de reorientação democrática do regime político-militar em

vigência”140, desde 1926 até à Segunda Guerra Mundial.

O Reviralho, entre 1926-1927, carregava um duplo sentido. O primeiro objetivo

seria “revirar” a Ditadura Militar exercida pela direita e repor a legalidade constitucional.

Porém, a situação anterior ao golpe de 28 de Maio carecia de outra alteração: o reerguer

do regime republicano, evitando ao mesmo tempo o retorno a uma República de “partido

único”141.

Estrategicamente, o movimento alimentou-se da “instrumentalização das

unidades militares dos principais centros urbanos”, através da constituição de “núcleos

clandestinos de militares revolucionários” saídos do 28 de Maio com um sentimento de

atraiçoamento dos “legítimos anseios de regeneração da República que haviam

depositado na Ditadura”142.

De facto, a Ditadura não se mostrava capaz de obter a pacificação política e social

pretendidas e num “curto espaço de tempo, sucederam-se os golpes político-militares de

17 de junho, de 8 de julho e as intentonas revolucionárias de 11 de setembro em Chaves

e do Coronel João de Almeida em 21 de setembro”143.

Do ponto de vista económico e financeiro, a Ditadura era acusada de “levar por

diante uma política de facilidades que se repercutia no aumento da dívida pública e num

decréscimo das receitas”. Desde casos como o pagamento das dívidas de guerra à

Inglaterra até à política de privatizações, “que passava pela entrega de setores onde o

Estado era maioritário, tais como os Caminhos-de-Ferro, os Tabacos, e por saneamentos

140 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 18. 141 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 18-19. 142 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 19-29. 143 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 32.

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financeiros no Banco Nacional Ultramarino”, a oposição democrática afirmava cada vez

mais a sua posição contra o Governo da Situação144.

A este assunto, juntava-se o facto de a Ditadura Militar ter aberto a brecha entre a

família republicana: o combate feroz ao Partido Democrático e o descerramento do

caminho à “direita antidemocrática, monárquica e fascizante”. Assim, a constituição do

“bloco político-militar reviralhista” assentaria, por esta razão, “numa difícil união e na

existência de muitos equívocos políticos”145.

Um dos líderes fundadores do bloco político-militar reviralhista, Jaime Cortesão,

afirmou num dos seus textos que o grande objetivo dos reviralhistas era “restaurar o

regime e a Constituição e formar um forte Governo nacional, composto por algumas

dentre as mais competentes e honradas figuras da República”. Tratava-se não de um

movimento apolítico, mas sim de um “movimento contra os políticos, ou seja, contra o

poder sustentado pelo partido do poder antes do 28 de Maio”146.

O “núcleo conspirador inicial do Reviralhismo”, segundo David Ferreira, “partiu

do grupo da Biblioteca Nacional/Seara Nova”, no qual se destacavam Jaime Cortesão,

Aquilino Ribeiro, Raul Proença, Rodrigues Miguéis, Manuel Mendes, Câmara Reis, além

do próprio David Ferreira. A constituição do grupo ficaria oficializada a 25 de junho de

1926, dias após o afastamento de Cabeçadas do poder147.

A organização revolucionária acabaria por se sediar no Porto, à qual se juntariam

o Capitão Sarmento Pimentel, o Tenente Pereira de Carvalho e o Capitão Nuno Cruz.

Seriam indicados para chefiar a Junta Revolucionária o General Sousa Dias e o Coronel

Freiria148.

Neste seguimento, deram-se vários movimentos revolucionários ao longo dos

anos: a revolta de 3 a 9 de fevereiro de 1927, que saiu do Porto para a capital; a insurreição

de 20 de julho de 1928; a revolta das Ilhas (4 de abril de 1931) e o levantamento de 26 de

agosto de 1931. Este constante despoletar de revoluções demonstra que Portugal viveu

144 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 33. 145 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 33-34. 146 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 34. 147 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 37. 148 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 37-38.

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num clima de guerra civil entre 1927 e 1931149, que resultou em fracasso para a causa dos

seus defensores.

Uma vez que o reviralhismo defendia a luta pelos mesmos ideais propagandeados

pelo periódico em estudo, O Democrático noticiou e apoiou ferverosamente as investidas

do movimento de reação republicana.

O jornal começou por constatar, para além do já anteriormente referido exílio de

republicanos opositores da Situação, a prisão de republicanos acusados de conspirar. Esta

situação causou desconforto, visto que o periódico se questionava se seria crime conspirar

em Portugal no momento de crise generalizada que estava a ser vivido150.

A 5 de fevereiro de 1927, o periódico abriu com a notícia da primeira grande

revolta republicana armada à Ditadura Militar, ocorrida entre 3 e 9 de fevereiro, no Porto,

liderada pelo General Sousa Dias à frente dos soldados de Caçadores 9. Num momento

em que cidade se encontrava a ferro e fogo e o desfecho era ainda incerto, este semanário

referia-se ao “momento de ansiedade e nervosismo, em que na cidade do 31 de Janeiro,

valorosos soldados da República” combatiam “pela sua integridade e pelo

restabelecimento da Constituição”, e colocava-se sem reservas do lado dos revoltosos: “O

Democrático, animado pela mesma fé ardente da vitória, saúda-os”151.

No número seguinte, o jornal reconheceu a “vitória do Governo” após a revolta

republicana, garantindo que tal fracasso não significou “o triunfo da Monarquia” e

declarando o seu “respeito ante os vencidos e junto dos vencedores”.

Elogiou o “cavalheirismo” e “valentia” dos combatentes republicanos no

momento dos confrontos e fez uma avaliação, apesar de tudo positiva, da ação do

Governo da Ditadura perante a derrota dos atores da insurreição:

Paladinos da Constituição Republicana, os revoltosos mostraram

desassombradamente o seu valor e a sua coragem. Fiéis ao programa ditatorial de

28 de Maio, as forças governamentais, cumpriram o seu dever. Nem uns nem

outros vacilaram perante a luta tremenda que durante 5 dias encheu de luto e de

149 RAMOS, Rui – «O fim da República». Análise Social. Lisboa: ICS, 2000, n.º 153, p. 1059. 150 “A Vitória”. O Democrático, nº 630, 03/07/1926, p. 1. 151 “Depois da vitória”. O Democrático, nº 659, 05/02/1927, p. 2.

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pavor a população citadina. E quando os revoltosos cederam à força irresistível

do número, os vencedores mostraram que eram portugueses e que tinham bem

radicado no seu espírito o culto da Pátria e da República152.

Contudo, o periódico reconheceu que pertencia ao grupo que o Governo não

suportava e a quem eram “atribuídas com incomensurável exagero as vicissitudes da

República”. Ainda assim, apelava “aos Ministros republicanos” que estavam no Governo,

que fizessem mais e melhor “em favor das instituições” e que não se cansassem “de

trabalhar para o bem do país” para que os “republicanos sinceros” jamais tivessem “de

recear pela integridade do seu ideal implantado em 1910”153.

Neste seguimento, o jornal considerou oportuno abordar a divisão gritante nas

hostes republicanas, num momento caótico a nível político, como não se via desde a

implantação da República:

As forças republicanas estão seriamente divididas: de um lado o General

Carmona com grande parte do exército, do outro lado os antigos políticos com a

grande massa do povo republicano e grande número de oficiais do exército que

tomaram parte no movimento revolucionário de 3 de fevereiro154.

No que diz respeito ao seu concelho, especificamente, o jornal condenou a atitude

dos vila-condenses apoiantes da Monarquia: “esquecidos ingratamente da afabilidade

com que foram tratados pelos republicanos em tempos passados e acreditando

parvamente que era chegada a ocasião de satisfazerem os seus ódios represados, têm

irritado [...] os republicanos que não lhe[s] reconhecem a menor autoridade para se

suporem dentro da atual situação”. No contexto da derrota da revolta republicana, o jornal

relembrou que o “Governo venceu a revolução, mas não fez triunfar a monarquia”,

obrigando os monárquicos a esperar por uma nova oportunidade de ação na realização

das suas convicções políticas. Por outro lado, elogiou a ação do Administrador do

152 “Viva a República – 13 de fevereiro”. O Democrático, nº 660, 13/02/1927, p. 1. 153 “Viva a República – 13 de fevereiro”. O Democrático, nº 660, 13/02/1927, p. 1. 154 “Ainda é tempo”. O Democrático, nº 680, 22/07/1927, p. 1.

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Concelho, João Gaio (embora reconhecendo que o criticava em muitas outras

circunstâncias) “pela maneira correta e enérgica” como os tinha sabido “conter [aos

monárquicos] na sua sanha truculenta de canibais” e felicitava-o por afirmar o seu

“indefetível republicanismo”155.

As notícias do levantamento chegavam às freguesias do concelho, nomeadamente

a Labruge, onde “o assunto palpitante do dia” continuava “a ser os últimos

acontecimentos, sendo os jornais lidos com indivisível sofreguidão”. Era geral “o regozijo

por haver terminado as hostilidades, que tantas vítimas estava custando, sendo

constantemente louvada a nobre atitude do exército que pôs termo a uma horrorosa

carnificina entre irmãos” o que era “sumamente para lamentar”. Adicionalmente, “em

sufrágio das almas das vítimas da revolução” foram celebradas “duas missas a que assistiu

grande concorrência de fiéis”156.

A 20 de julho de 1928, apesar dos consecutivos fracassos, a oposição reviralhista

tentaria uma nova insurreição que “deveria eclodir por volta das 22h30 da noite”. Esta

investida teria “início na unidade de Metralhadoras I, localizadas no Castelo de S. Jorge”,

local de onde partiria o sinal de começo da nova operação, estando prevista ainda “a

sublevação em simultâneo de outras forças localizadas de norte a sul do país, bem como

a realização de atos de sabotagens e outros semelhantes como cortes de estradas, o corte

da linha férrea ou da linha telegráfica, entre outras”. Contudo, “pressões e hesitações mal

conhecidas no decorrer dos últimos detalhes da ofensiva por parte de alguns dos

intervenientes” levaram “ao precipitar da operação sem que houvesse tempo para

informar as restantes unidades, que esperavam o natural começo do novo golpe para as

21 horas, situação que contribuiu para a rápida desorganização da intentona e para o

naturalíssimo fracasso desta”. Assim que a Ditadura se deu conta das novas

movimentações revelou-se “extraordinariamente célere na desarticulação dos vários

núcleos conspirativos e na detenção e prisão de numerosos implicados no novo golpe,

155 “Viva a República – 13 de fevereiro”. O Democrático, nº 660, 13/02/1927, p. 1. 156 “Monárquicos rancorosos”. O Democrático, nº 661, 19/02/1927, p. 3.

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que seriam na sua generalidade presos e sumariamente deportados para as prisões das

colónias e das ilhas atlânticas”157.

Por sua vez, embora de forma subtil, O Democrático não deixou passar em branco

esta tentativa republicana de derrube do regime ditatorial. Na edição de 3 de agosto de

1928, num artigo intitulado “Viva a República”, considerou que a República atravessava

um momento de “grave perigo” porque “tinha os seus mais fervorosos defensores

afastados para longínquas terras de África ou exilados no estrangeiro”, enquanto os seus

adversários procuravam “a todo o transe alcançar as situações mais predominantes e de

confiança para, em momento azarado, poderem, mais facilmente” dar “o golpe final”. Por

outro lado, apelou ao Governo da Ditadura Militar que tivesse, “mais do que nunca, bem

nítido o pensamento do exército republicano devendo, por isso, procurar uma plataforma

a fim de terminarem todas as lutas fratricidas” que deslustravam “a causa republicana e

até o próprio país”. Adicionalmente, o seu já largamente patenteado apelo por união

continuava: “Neste momento de infortúnio para a família republicana é necessário, mais

do que nunca, a união de todos, formando um bloco bem homogéneo contra as

arremetidas dos inimigos do regime”158.

Relativamente aos restantes movimentos revolucionários atrás mencionados –

ocorridos em 1931 – não se encontraram n’O Democrático referências aos mesmos. Tal

pode ter ficado a dever-se, uma vez mais, ao apertado controlo da censura que ia

ganhando cada vez mais força.

157 JESUS, Nuno Miguel Pereira de Sousa Ribeiro de – As Oposições ao Estado Novo entre 1926 e 1949.

Lisboa: [Edição do autor], 2008. Dissertação de Mestrado em Espaço Lusófono, Lusofonia e Relações

Internacionais apresentada à Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, p. 33. 158 “Viva a República”. O Democrático, nº 730, 03/08/1928, p. 1.

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4. Representações da figura e ação política de Salazar (1928-

1936) e críticas ao Estado Novo

Tomando em consideração os erros cometidos por anteriores Governos da

Ditadura Militar, nomeadamente no tocante à gestão dos dinheiros do Estado, O

Democrático opinou favoravelmente sobre a política de saneamento das finanças públicas

de Oliveira Salazar. Embora reconhecesse a exigência do programa, considerava as

medidas necessárias e, inclusive, apelou à paciência e colaboração da população que,

futuramente, veria os seus esforços recompensados. Assim, as críticas à atuação política

de Salazar não surgiram relativamente ao seu desempenho enquanto Ministro das

Finanças, mas sim enquanto Chefe de Estado e repressor das liberdades de pensamento,

de opinião e de ação. Efetivamente, embora necessitando de habilidade jornalística para

perfurar as malhas da censura, a transição para um novo regime não representou

impedimento para O Democrático continuar a proclamar as suas convicções de apoio e

defesa do sistema republicano e da Democracia (mais à esquerda do espectro político),

ao mesmo tempo que criticava os valores e práticas do Estado Novo.

4.1. Salazar e as Finanças

A primeira alusão a Oliveira Salazar nas páginas do semanário data de maio de

1928. Trata-se de uma reação ao discurso de tomada de posse da pasta das Finanças por

Oliveira Salazar (27 de abril) que, por sinal, causou algum impacto, devido à promessa

de uma firme gestão das finanças com o objetivo de obtenção de receitas e não dos

costumados défices. Além disso, a entrevista que o novo Ministro havia concedido no dia

seguinte à posse ao Diário de Notícias também não deixou indiferentes os republicanos

de Vila do Conde. Efetivamente, o jornal reconheceu a “enorme sensação” que produzira

no público e “em todos os meios” as “palavras altissonantes” pronunciadas por Salazar.

Teriam sido “palavras de desassombro” que “atingiram a própria administração do seu

antecessor, ou seja, da própria Ditadura”159. Ora, foi precisamente o impacto das

declarações de Salazar que o texto da última edição de maio de 1928 d’O Democrático

159 “Carta de Lisboa”. O Democrático, nº 721, 25/05/1928, p. 4.

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comentou, principalmente naqueles que o antecederam. O jornal colocou em destaque a

seguinte passagem da entrevista de Salazar ao Diário de Notícias, que evidenciava falhas

graves, má gestão, corrupção inclusive, cometidas pelas administrações anteriores:

Desde que se encontra na gerência da pasta das Finanças tem notado a existência

de fisgas por onde se escoa pó, mas por onde podem passar libras e escudos, o

que quer dizer, dinheiro do Estado. Isto demonstra bem que uma rigorosa

administração dos dinheiros públicos pode fazer surgir receitas que até agora se

mantinham escondidas160.

Dada a franqueza destas palavras e a consequente “suspensão de alguns decretos-

leis” que haviam sido promulgados pelo anterior Governo, do qual faziam parte Vicente

de Freitas e Bettencourt Rodrigues (por esta data, “titulares das pastas do Interior e

Estrangeiros”), o jornal considerou que Sinel de Cordes, ex-Ministro das Finanças, se

teria “agastado e até franzido demasiado o sobrolho”, ao ler a “sensacional entrevista”161.

Ainda nesse ano, no mês de julho, o periódico fez um ponto da situação

relativamente à liderança de Salazar na pasta das Finanças. A primeira vez que tomara

posse deste cargo (3 a 27 de junho de 1926), fora “logo a seguir ao movimento salvador

do 28 de Maio […] onde pouco se demorou, sem pôr condições e sem fazer declarações

públicas” de que o estado das finanças, nessa ocasião, “fosse desesperado, embora todos

reconhecessem ser delicado”. Posteriormente, já em 1928, Oliveira Salazar tomaria

novamente as rédeas das finanças do país e tornou evidente a gravidade da crise financeira

nacional, promulgando “medidas excecionais de salvação pública”, que estavam, naquele

momento, a ser executadas. Note-se que o jornal não especifica as mencionadas “medidas

excecionais” de saneamento financeiro traçadas pelo Ministro162.

Fica evidente que, pelo menos num momento inicial, O Democrático apoiou a

conduta e políticas de saneamento financeiro de Salazar. Na edição de 21 de julho de

1928, o jornal não deixou de reproduzir as reclamações dos contribuintes relativamente

160 Note-se que o itálico presente neste excerto foi uma alteração efetuada pel’O Democrático. Cf. “Carta

de Lisboa”. O Democrático, nº 721, 25/05/1928, p. 4. 161 “Carta de Lisboa”. O Democrático, nº 721, 25/05/1928, p. 4. 162 “Medidas de salvação pública”. O Democrático, nº 728, 13/07/1928, p. 1.

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“ao aumento extraordinário que tiveram as contribuições em pagamento”, mas afirmou

que se tratava de um sacrifício necessário que devia tocar a todos, pelo que os

“contribuintes queixosos” teriam de ser pacientes e cumprir o seu dever de cidadãos.

Visto que a conjuntura económica e financeira era, na altura, verdadeiramente

preocupante, muito por culpa de erros cometidos no passado, o semanário alertava os

leitores para a realidade de que “novos sacrifícios” continuariam a ser requeridos “à bolsa

do contribuinte”163 por ser absolutamente indispensável.

Em 1929, destaca-se a aprovação da autarquia vila-condense à permanência de

Salazar nas suas funções. Através da publicação dos trabalhos levados a cabo pela Câmara

Municipal na sessão de 29 de abril, o presidente da edilidade – Rui Vaz – propôs que

fosse enviado um telegrama de saudações a Salazar164. Consequentemente, na sessão de

13 de maio, informou-se que Salazar havia enviado uma correspondência de volta,

“agradecendo o telegrama de saudação que lhe foi enviado pelo aniversário da sua

permanência na pasta das Finanças”165.

Contudo, em 1932, após vários sinais de apoio e compreensão relativamente ao

Ministro das Finanças e suas medidas políticas, O Democrático publicou a sua primeira

crítica a Oliveira Salazar. Num artigo no qual se denota um tom bastante irónico –

estratégia frequente do periódico – o semanário começou por defender a liberdade de

expressão e partilha de ideias em todas as esferas da vida: “nada melhor para os

movimentos de ideias do que cada um dizer as ideias que tem”. Só este começo já pode

ser considerado uma crítica à contenção da liberdade de expressão empreendida pelo

Estado Novo. Assim, neste seguimento, o jornal dissecou algumas declarações proferidas

por Salazar, agora já na qualidade de Presidente do Conselho de Ministros, aquando da

posse da 1ª Direção da União Nacional. Focou-se, primeiramente, na passagem “os que

não concordam (com o programa de Governo) podem ser igualmente sinceros e dignos,

confessando a sua não concordância; são mesmo livres de proclamá-la”. Ora, perante esta

afirmação, os redatores do jornal logo asseveraram que eram “dos que pensam que a

liberdade de proclamar uma atitude política” se tratava “de uma regalia que se conquista

163 “O maior sacrifício”. O Democrático, nº 729, 21/07/1928, p. 1. 164 “Câmara Municipal”. O Democrático, nº 766, 03/05/1929, p. 2. 165 “Câmara Municipal”. O Democrático, nº 768, 18/05/1929, p. 2.

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e não de uma concessão que se aceita”. Porém, “dadas as circunstâncias de todos

conhecidas” – ou seja, os parâmetros que regem uma ditadura – o periódico resignava-se

à obrigatoriedade de “aceitar os factos” sem, contudo, abdicar do direito à liberdade de

pensamento, já que a liberdade de ação estava irremediavelmente condicionada166. Posto

isto, as palavras de Salazar que mais incómodo despertaram na redação deste jornal

foram: “Não estão connosco os que preferem à obediência a sua liberdade de ação, nem

os que sobrepõem às diretrizes superiormente traçadas as indicações da sua inteligência,

ainda que esclarecida, ou os impulsos, ainda que nobres, da sua vontade”. Perante este

claro ataque ao global conceito de liberdade, O Democrático cimentava a sua oposição:

“Nós somos exatamente destes, dos que preferem a liberdade à obediência, dos que

sobrepõem a tudo as indicações da inteligência e os impulsos nobres da sua vontade”167.

Trata-se, portanto, do primeiro confronto com a Ditadura e com Salazar, num tom, diga-

se, forte e determinado.

Os comentários a este discurso continuaram, designadamente através da

transcrição de um artigo retirado do periódico A Voz da Justiça, da Figueira da Foz. Este

jornal evidenciou uma parte específica do discurso do ditador, na qual Salazar se dirigia

às forças partidárias, afirmando que, basicamente, não havia espaço para negociação, nem

“transição”, nem “transigências possíveis”. Ou seja, quem estava a favor da Situação

cumpria “um ato patriótico”, trabalhando abertamente com o regime; quem estava contra

seria livre de exprimir esses pensamentos, contudo a sua atuação política seria gerenciada

pelo regime da melhor forma para que não incomodasse “demasiadamente”. Perante,

estas declarações, A Voz da Justiça, também ele de tendências democráticas, posicionava-

se no grupo “dos que discordam”: “Somos livres de proclamar essa discordância.

Proclamamo-la desassombradamente mas leal e corretamente, com a liberdade expressa

nas palavras do Chefe do Governo”. Por outro lado, este jornal fazia uma reflexão

pertinente, constatando que defendia “princípios opostos aos da Ditadura”, o que

resultava, “logicamente”, na sua “oposição” à mesma168. Através da publicação deste

166 “Atitudes claras”. O Democrático, nº 939, 02/12/1932, p. 1. 167 “Atitudes claras”. O Democrático, nº 939, 02/12/1932, p. 1. 168 “Nós, os que discordamos”. O Democrático, nº 941, 16/12/1932, p. 1.

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artigo nas suas páginas, compreende-se que O Democrático subscrevia toda a linha de

pensamento patenteada pelo seu congénere figueirense.

Por último, em 1933, o periódico publicou uma carta redigida por Rocha Martins

– por esta altura, ativo oposicionista do Estado Novo – dirigida a Salazar. Este documento

surgia na sequência de um ofício que Rocha Martins havia recebido, assinado por Alfredo

Ferreira Gil (2.º comandante da polícia), segundo o qual não seria “permitido qualquer

ato comemorativo da histórica data de 24 de Julho de 1833”, que levantou o Cerco do

Porto e pôs fim ao despotismo de D. Miguel. O ativista político e historiador tentou

convencer Salazar a dar permissão à celebração das comemorações daquela importante

data histórica169. O Democrático não chegou a revelar se existiu resposta por parte do

Presidente do Conselho.

4.2. A crise do trabalho

A crise mundial de 1929 fez-se sentir também na economia portuguesa ao longo

da década de trinta, mais gravemente nos seus anos iniciais:

Com a desenfreada concorrência dos produtos estrangeiros, muitos setores da

agricultura e do comércio entraram em crise, sem que o crédito bancário lhes

pudesse melhorar as condições de vida. Ao longo do[s] ano[s] foram muitas as

casas bancárias que deixaram de satisfazer os seus compromissos em

numerário170.

O desemprego desencadearia a fome e o desespero em muitos lares.

Em julho de 1931, surgiam as primeiras notícias relativamente à carestia de

trabalho que assombrava todo o país. Vila do Conde não foi exceção. O jornal atestava

que também na vila já se sentia o peso e as consequências do desemprego, apelando aos

responsáveis da autarquia para que “procurassem junto do Governo” os meios necessários

para atenuar este flagelo que se vinha a agravar. A solução passaria pela obtenção dos

169 ROCHA, Martins – “Carta ao Doutor Oliveira Salazar, Chefe do Governo Português”. O Democrático,

nº 971, 28/07/1933, p. 3. 170 SERRÃO, Joaquim Veríssimo – História de Portugal: do 28 de Maio ao Estado Novo, p. 194.

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subsídios necessários para a efetuação de obras e melhoramentos necessários na

localidade que, por sua vez, estimulariam as oportunidades de emprego171. Contudo, em

época de crise generalizada, tal situação não se concretizou e, segundo as colunas d’O

Democrático, a situação piorava rapidamente por todo o concelho. Através de

correspondência enviada das freguesias, revelava-se que também por lá se encontravam

“bastantes operários sem trabalho, em consequência da grande crise” que avassalava “o

mundo” 172, sendo cada vez maior o número de lares em que a fome já era uma

realidade173. Apesar de tudo, constatava-se com alívio que dos muitos emigrados em

França nenhum havia ainda regressado “por escassez de trabalho naquele país”174.

Perante a difícil conjuntura, a autarquia tomou providências básicas. “Em

harmonia com o decreto 20.222 de 15 de agosto último”, enviaram-se “ao Instituto de

Seguros Sociais Obrigatórios, devidamente preenchidos, os boletins de desemprego de

todos os indivíduos” da vila e concelho que se encontravam sem trabalho175.

Em julho de 1932, o jornal noticiou com agrado que a Companhia de Tecidos Rio

Ave havia adquirido um terreno a norte das suas instalações “para ali ser construído um

grande bairro operário, de 80 prédios, uma escola com os mais requisitos exigidos, e uma

creche”176. As instalações foram inauguradas cerca de um ano depois e O Democrático

relatou os festejos com entusiasmo ao ver tal iniciativa social ser levada a cabo na vila,

com o objetivo de atenuar o problema do desemprego gritante177.

Numa crítica direta a colaboradores do Estado Novo, nomeadamente do setor da

Igreja, o jornal comentou sarcasticamente declarações feitas pelo Cardeal Cerejeira no

livro A Igreja e o Pensamento Contemporâneo. Nas palavras d’ O Democrático, “há uma

passagem, francamente, com a qual concordamos em absoluto e que não podemos deixar

de aplaudir com entusiasmo: a de S. Exª inculcar o jejum com tanta oportunidade para a

171 “Notas. A falta de emprego”. O Democrático, nº 872, 24/07/1931, p. 1. 172 “Pelas aldeias. Junqueira”. O Democrático, nº 875, 21/08/1931, p. 4. 173 “A falta de trabalho”. O Democrático, nº 914, 03/06/1932, p. 2. 174 “Pelas aldeias. Junqueira”. O Democrático, nº 875, 21/08/1931, p. 4. 175 “Desempregados”. O Democrático, nº 877, 04/09/1931, p. 2. 176 “Novas construções. A fábrica de tecidos Rio Ave vai construir um grande bairro”. O Democrático, nº

918, 02/07/1932, p. 1. 177 “No edifício da fábrica Rio Ave. Uma obra social que se impõe”. O Democrático, nº 979, 22/09/1933.

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época de crise que atravessamos”178. Considerando o tema do jejum extremamente

inapropriado nos dias que corriam, o periódico escarneceu desse incentivo de índole

religiosa:

O jejum, porém, inculcado por sua Eminência, não teve só em vista, como devem

ter suposto muitos pedreiros livres, poder vir a prestar assim com ele, um

benefício enorme aos indivíduos que se encontrem desempregados, ou aos que

mal ganhem para se alimentarem convenientemente, beneficio que, como o leitor

deve ter compreendido, consiste em os fazer esquecer, ao jejuarem, as agruras

porque venham passando179.

Nos inícios de 1932, o semanário apresentou um artigo de Duarte de Gusmão180,

que apresenta uma análise geral sobre a crise que atravessava a Europa, revelando

algumas propostas de resolução, sobretudo para o caso português. A evolução industrial

era considerada um dos fatores que contribuíra para o aumento da amplitude das crises

de produção e desemprego. “Na indústria antiga o mal tinha menos importância”, visto

que, “dada a pouca extensão das oficinas e a escassa concorrência, as oscilações revestiam

menos amplitude e os estabelecimentos desapareciam lentamente dando ao operário

tempo para procurar colocação”. Porém, no século XIX, o desemprego depressa começou

a tomar proporções graves, devido à “concorrência mundial ativa que fez aparecer a

superprodução; à descoberta de novas máquinas, que deixaram, bem depressa” um

elevado número de operários sem ocupação, “com a agravante de que tornou

desnecessários os operários que se haviam especializado num trabalho determinado e que

não podiam dedicar-se, em muitos casos, a outra ocupação”; e, finalmente, devido “à

concentração de grandes massas de operários nas regiões e centros fabris”. Efetivamente,

o desemprego encabeçava a lista dos problemas de inícios dos anos 1930, para o qual

178 VAGUEIRO, H. M. – “Ao de leve. De bom humor”. O Democrático, 05/08/1932, p. 1. 179 VAGUEIRO, H. M. – “Ao de leve. De bom humor”. O Democrático, 05/08/1932, p. 1. 180 Foi um “académico” (O Democrático, nº 899, 12/02/1932, p. 1) e opositor da Situação que chegou a ser

preso a 20 de fevereiro de 1936 (Duarte Vilhena Coutinho Feio Ferrery de Gusmão. Memorial aos presos

e perseguidos políticos, 45º aniversário do 25 de Abril. Disponível em

<https://www.memorial2019.org/site/presos/duarte-vilhena-coutinho-feio-ferrery-de-gusmao> [acesso em

19/09/2019]).

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ainda não se havia colocado “em prática remédio algum”. Entre algumas das soluções

apresentadas por alguns teóricos mundo fora, o autor destacava a redução das horas de

trabalho e a supressão das máquinas pelos piores motivos. A seu ver, a redução do horário

de trabalho poderia, na realidade, “produzir resultados em determinadas indústrias, como

na dos transportes e naquelas em que o trabalho se executasse sem o auxílio de máquinas,

como na da edificação” mas, ainda mesmo nestas, oferecia “o inconveniente de elevar os

preços dos produtos, tornar mais difícil a vida dos operários ou restringir a produção”.

Por outro lado, defendia que a máquina, ao invés de ser destruída, deveria antes ser

aperfeiçoada, contudo, não deveria pertencer “ao patrão”, mas sim a quem a dirigia,

“como a terra a quem a trabalha”. Dado que tais premissas não tinham ainda “aplicação

prática viável”, invocava o importante papel do Estado no auxílio da população em

necessidade, neste caso os “sem trabalho”, através de duas medidas que considerava

justas: “pedir ao Sr. Ministro das Finanças que seja distribuído urgentemente […] [um]

subsídio [e] solicitar do Governo que os reformados que recebam mais de 300$00 mensais

não possam desempenhar outros cargos”. O artigo não terminava sem o seu autor afirmar

que as reivindicações dos desempregados eram justas, visto que estes pediam justiça e

não esmolas181. Este discurso espelha, claramente, como se pode constatar, uma posição

progressista, até socialista, que o semanário decide divulgar, embora essa não pareça ser

a sua posição ideológica predominante, se bem que o contexto de crise económico-social

profunda o leve a destacar a luta do movimento operário internacional no combate à crise

e às injustiças sociais. Noticiou, por exemplo, a contestação aguerrida dos operários em

Espanha que, perante a grave crise, procederam à criação de sindicatos extremistas numa

luta por melhores condições, assistindo-se então à formação de associações operárias

inspiradas no princípio da emancipação económica, adotando a forma de sindicatos

profissionais182:

Conforme vimos, os operários enfileiram-se, de preferência, nas agrupações

extremistas e lançam mão dos meios violentos para conseguirem o que os

181 GUSMÃO, Duarte de – “A crise do desemprego”. O Democrático, nº 910, 29/04/1932, p. 2. 182 “O movimento proletário espanhol”. O Democrático, nº 902, 04/03/1932, p. 1.

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Governos prometem sempre para lhes inspirar confiança, mas nunca cumprem: a

proteção dos desempregados e inválidos183.

A situação vivida no Chile também foi realçada. À semelhança de Espanha, os

operários chilenos organizavam-se em sindicatos e reivindicavam junto do Governo

melhores condições de trabalho e mais direitos. A situação era deveras delicada, uma vez

que os tumultos se sucediam, assim como as deportações. Enfim “o descontentamento”

lavrava “entre o proletariado”184.

4.3. A ética republicana face aos valores do regime ditatorial

Sendo O Democrático um periódico defensor do ideário republicano, contrapôs

os seus valores aos princípios defendidos pelo Estado Novo. Pronunciou-se acerca da

influência da Igreja Católica, a propósito da incomensurável importância da educação na

sociedade moderna, e criticou o cego sentimento de nacionalismo que o regime

incentivava. Para além da crítica, a oposição deste semanário manifestou-se através de

uma postura ativa de divulgação, exaltação e defesa dos princípios da Democracia e da

Liberdade.

4.3.1. Catolicismo e laicidade

As relações entre o Estado e a Igreja tiveram particular importância durante o

salazarismo. Segundo Manuel Braga da Cruz, o “regime autoritário instaurado em 1926

assumiu desde o início uma orientação ideológica dominantemente católica”, tendo sido

classificado como “um nacional-catolicismo”. Para esta situação, teria contribuído o facto

“de serem católicos muitos dos principais quadros dirigentes do regime” e “de ser Salazar

um dos principais dirigentes do partido católico durante a I República e amigo íntimo” de

Gonçalves Cerejeira, “Cardeal Patriarca de Lisboa desde 1929 até aos últimos anos do

regime”. Apesar das estreitas relações entre as duas entidades, Braga da Cruz considera

que, ao invés de um nacional-catolicismo, o salazarismo – do ponto de vista das relações

183 “O movimento proletário espanhol”. O Democrático, nº 903, 11/03/1932, p. 1. 184 “O caso do Chile”. O Democrático, nº 917, 23/06/1932, p. 1.

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entre o Estado e a Igreja – pode ser caracterizado como um catolaicismo “em que à

laicidade do Estado se associou uma orientação católica dominante, à separação jurídica

se juntou uma estreita colaboração moral, com a independência dos poderes”,

verificando-se “um entendimento na prossecução dos interesses de ambos que, em muitos

aspetos, foram coincidentes”185.

Em 1928, o periódico publicou uma carta de Lisboa com relatos acerca da

peregrinação a Fátima realizada a 13 de maio do mesmo ano, realçando a sua

“grandiosidade espantosa”, tendo contado com cerca de duzentos mil peregrinos186. Estas

descrições não eram isentas de relevância dado que, em 1926, a peregrinação havia sido

proibida pelo regime anterior, facto que não desmotivou O Democrático a trazer o assunto

à colação. O autor da carta teceu duras críticas à República, na sequência dessa interdição:

Com mágoa o dizemos, há uns 3 anos, foi esta perseguição proibida. Por que

razões, não o sabemos […]. Podemos afirmá-lo afoitamente [que] com tal

proibição nenhum prestígio veio para a República. Antes pelo contrário. Cedeu-

se à pressão de uma ínfima minoria que agitou como espantalho a ofensa ao

espírito liberal. Foi um erro que se cometeu e votos fazemos para que não se

reincida nele187.

O redator deste artigo aproveitou a oportunidade para expor o seu ponto de vista:

a verdadeira liberdade, defendida também sob o ideário republicano, residiria na

possibilidade de todos os cidadãos serem livres de manifestar publicamente, “dentro do

maior respeito e compostura, as suas crenças religiosas”188.

Noutro passo, em clara reprovação à conduta da Igreja Católica, o periódico via

com “certa estranheza” uma nota semioficiosa que vinha a público na maioria dos jornais

diários, “com a chancela «Centro Católico Português»”, pedindo aos diretores desses

periódicos para solicitarem do público contribuinte o pagamento integral, no corrente mês

185 CRUZ, Manuel Braga da – O Estado Novo e a Igreja Católica. Lisboa: Editorial Bizâncio, 1998, p. 11-

16. 186 ARIETE, José – “Carta de Lisboa”. O Democrático, nº 722, 01/06/1928, p. 4. 187 ARIETE, José – “Carta de Lisboa”. O Democrático, nº 722, 01/06/1928, p. 4. 188 ARIETE, José – “Carta de Lisboa”. O Democrático, nº 722, 01/06/1928, p. 4.

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de julho, de todas as contribuições em que está coletado”, de forma a “facilitar a obra de

saneamento financeiro e económico” em que estava empenhado o Ministro das Finanças.

O Democrático opôs-se, de forma sarcástica, a esta situação, acusando o Centro Católico

Português e o seu presidente de oportunismo:

Muito nos apraz registar uma tão grande, desinteressada e louvável solicitude

pelas coisas públicas por parte do CCP [Centro Católico Português] e não será de

admirar que lá para o fim do mês, no caso de não terem sido ouvidas as súplicas

daquela pia, utilíssima e patriótica instituição, tão intimamente ligada à corte

celestial, sejam ordenadas preces benditas e procissões de pertinência para que o

Altíssimo possa inspirar o espírito dos cidadãos portugueses ao cumprimento dos

seus deveres de contribuintes, porque, caso contrário, lá os espera … o relaxe, as

excomunhões do papa Lino Neto189 e o inferno de novos aumentos de décimas190.

Já em 1936, o semanário publicou um artigo a propósito da colocação de

crucifixos nas escolas primárias191. O autor do texto mostrava-se claramente a favor desta

medida, embora reconhecesse que ela havia sido recebida com estranheza pela

generalidade da população, tanto por “diplomados” como por “instruídos sem diploma”.

Justificava a sua posição recorrendo a exemplos da Bíblia e da vida de Jesus Cristo, que

considerava um exemplo de tolerância, bondade e superação. Assim, a seu ver, seria uma

boa inspiração e modelo a seguir pelas crianças que iniciavam o seu percurso escolar de

preparação para a vida adulta. Nas suas palavras, se fosse professor primário, o autor do

artigo diria aos seus alunos que Jesus se encontrava simbolicamente na sala de aula não

para que rezassem como rezariam na igreja, mas sim para que seguissem os bons

ensinamentos que este revelou: amor e ajuda ao próximo; amor e respeito pelos pais; bons

hábitos de trabalho que, neste caso, seriam de estudo para um dia mais tarde os aplicarem

ao emprego e ganharem o pão de cada dia e respeito ao “Estado e aos Poderes legalmente

189 Presidente do CCP entre 1919 e 1934. 190 “Contribuintes! Cuidado”. O Democrático, nº 728, 13/07/1928, p. 1 191 Tratou-se da lei n.º 1941, de 11 de abril de 1936, promulgada pela Assembleia Nacional, que remodelava

o conjunto do sistema educativo e estabelecia os propósitos do regime expressando-os num conjunto de

catorze “Bases”.

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constituídos”192. Posto isto, note-se, em primeiro lugar, o itálico aplicado nesta frase, visto

que pode ser considerado uma crítica subtil à legitimidade legal do aparelho do Estado

Novo. Em segundo lugar, não deixa de ser discutível se este último ensinamento poderá

ser incluído nos ensinamentos deixados por Jesus Cristo, como o autor sustenta. Esta

presença simbólica que visava ensinar as crianças a respeitarem a lei e o Estado podia,

obviamente, ser vista como uma manobra política de utilização da religião em benefício

do poder estatal. Contra este possível argumento e outros que se pudessem levantar, o

autor defendia-se, replicando que as suas declarações apenas traduziam uma “sincera

opinião”193. Certo é que O Democrático publicou este texto, o que pode ser visto como

manifestação de tolerância mas também se deve atentar que os tempos eram já outros,

com o regime ditatorial a apertar o cerco e a jugular opiniões contrárias, muito

concretamente órgãos de imprensa que lhe eram tradicionalmente desafetos, como

aconteceu a este periódico e tantos outros, neste mesmo ano de 1936.

Através da análise destes exemplos de referências à Igreja Católica no Estado

Novo, pode-se verificar que este semanário – embora absolutamente defensor da

República – não embarcou numa perseguição feroz e aleatória à religião. Os comentários

mais veementes que foi produzindo não se relacionavam com a legitimidade da prática

das crenças católicas, mas sim com a hipocrisia e/ou oportunismo das suas instituições,

muitas vezes de mãos dadas com o poder, face a uma população maioritariamente

católica.

4.3.2. “Educar, eis o problema!”194

Segundo Ribeiro de Meneses, “Salazar via a educação como uma poderosa

ferramenta capaz de transformar os seus concidadãos”. Contudo, ainda que “ a educação

fosse um importante foco de ação para o Estado Novo, permaneceu, tal como todas as

outras áreas de ação do Estado, subordinada aos condicionalismos financeiros impostos

por Salazar”. Existiu efetivamente “uma expansão continuada, ainda que lenta da rede de

escolas primárias, mas o ensino ia sendo esvaziado, tornando-se cada vez menos

192 JÚNIOR, J. R. Costa – “A propósito de Cristo nas escolas”. O Democrático, nº 2005, 24/04/1936, p. 3. 193 JÚNIOR, J. R. Costa – “A propósito de Cristo nas escolas”. O Democrático, nº 2005, 24/04/1936, p. 3. 194 VIANA, Mário Gonçalves – “Educar, eis o problema!”. O Democrático, nº 2002, 03/04/1936, p. 3.

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académico e mais moralista e abertamente político”. Com Salazar no poder, “a

escolaridade obrigatória baixou dos cinco para os três anos” e “o curriculum foi limitado

à leitura, escrita, aritmética e aquisição de princípios religiosos e morais básicos”,

insistindo-se na “necessidade de um livro único para todas as disciplinas”195.

Sendo um periódico republicano, O Democrático sempre tomou a alfabetização

como um dos seus maiores baluartes na busca do progresso e modernização da sociedade.

Desta forma, denunciava o atraso intelectual de grande parte da população (facto que, de

certa forma, em Ditadura era encorajado, uma vez que quem não sabe não questiona), e

propunha formas de solução que, a seu ver, o Estado deveria aplicar para combater, desde

logo, o flagelo do analfabetismo e o genérico atavismo que impedia a evolução do país.

Em meados de 1932, o jornal destacou o atraso intelectual do país, que vivia

agarrado “a velhos preconceitos” que já não se coadunariam “com a vida moderna”.

Efetivamente, apontava que os portugueses haviam conservado, “através dos séculos, a

mesma mentalidade rotineira, conservadora, incapaz de compreender os mais instantes

problemas”. Como antídoto para tão profundo mal, preconizava a adoção do ensino

racionalista que consistia “em educar a criança ministrando-lhe apenas os conhecimentos

que a sua inteligência facilmente aprende”, algo que “nunca passou de uma doce quimera”

em Portugal. Dado que a laicização do ensino fora um dos princípios amplamente

defendido por dirigentes da República proclamada em 1910, o autor deste texto via-se na

necessidade explicitar as diferenças entre os conceitos de escola racional e escola laica,

uma vez que considerava que muitas pessoas ainda confundiam os dois termos. Na sua

elucidação, indicava os vários defeitos e falhas mais prementes do ensino laico, realçando

a superioridade da escola racionalista. Assim, a escola laica reconhecia “todas as mentiras

sociais, com exceção da mentira religiosa”. Por outro lado, conduzia “a criança à mais

degradante subserviência a formas político-sociais, dispensando-se do mais importante:

o desenvolvimento crescente do seu raciocínio”, sendo neste aspeto que mais se

distanciava da escola racionalista. Posto isto, o autor constatava que o ensino português

não era nem laico nem racionalista – “apenas neutro”. Era nesta corroboração que residia

o verdadeiro problema: “no ensino não há nem pode haver neutralidade aceitável”, porque

195 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p. 182.

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esta conduzia o professor a uma situação paradoxal, em que “não ensina a superstição e

o fanatismo”, por ser neutro; mas também “não ensina a verdade guiada pela ciência,

porque continua a ser neutro”. Este seria o impasse que obstaculizava o progresso nas

escolas, uma vez que não se ensinava a mentira, mas também não se ensinava a verdade.

No final, o autor concluiu – sem surpresa – que o ensino racionalista seria a hipótese

válida, sendo o único, de facto, científico, e, por consequência direta, verdadeiro196.

Ainda no mesmo ano, outro artigo apresentava uma crítica direta e engenhosa ao

excessivo enaltecimento dos feitos do passado e incentivo ao amor cego à Pátria,

fortemente instilados pelo ideário do Estado Novo. Recorria a uma das personagens

criadas pelo dramaturgo João Gonçalves Zarco da Câmara (1852-1908) para retratar,

“com maior fidelidade, o carácter teórico” da raça portuguesa: um “fidalgo arruinado por

libertinagens incontáveis” que “encolhe placidamente, serenamente os ombros, ante a

sombra da fome que o espreita, sofrendo os seus ímpetos, com a esperança vã da chegada

de um filho ausente, carregado de ouro pedrarias”197. Servia esta descrição com recurso

à literatura para que o autor fosse ainda mais longe no seu raciocínio:

Todos nós temos, afinal, um pouco do velho fidalgo da novela desde que

confiamos aos deuses celestiais e terrestres, ao acaso, às lotarias e à fortuna, o

nosso destino glorioso de povo guerreiro, conquistador marítimo, colonizador

valentaço e patrioteiro. E desde quatrocentos, desde as arremetidas heroicas das

Índias e das Áfricas, em cujas plagas germinou, como um anátema, a nossa

miséria, alguém tem velado por nós, pelo nosso futuro198.

Através desta reflexão, O Democrático pretendia demonstrar que os portugueses

heroificados nas grandes epopeias e valerosas conquistas históricas nunca foram senhores

de si próprios, nunca comandaram o seu próprio destino, deixando-o ao arbítrio dos

deuses: enquanto “outros povos, atingida já a meta da idade positiva, comandam bem ou

mal a sua atividade, nós mais felizes estacionamos na idade teológica e deixamos aos

196 GONÇALVES, Alexandre Jorge – “Escola Laica e Escola Racional”. O Democrático, nº 912,

20/05/1932, p. 1. 197 “Elogio da Raça”. O Democrático, nº 936, 04/11/1932, p. 1. 198 “Elogio da Raça”. O Democrático, nº 936, 04/11/1932, p. 1.

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mitos e aos ídolos esse pesado e difícil encargo”. Esta asserção positivista-comtiana, tão

entranhada na ética republicana lusa – se bem que já um pouco ultrapassada

filosoficamente nos anos 1930 – não condenava a leitura “em adoração mística” das

maravilhas da história do país, mas ela teria de ser feita com a consciência de que os

“antolhos não […] deixam ver as realidades da vida moderna”. Esta é, efetivamente, a

ideia basilar do artigo em apreço: a História nacional e os feitos heroicos das suas

personalidades deviam ser estudados e admirados por todos, contudo era fundamental não

permitir que o “elogio da raça” – elemento axial da propaganda nacionalista do regime

em ascensão – significasse a estagnação do presente, alimentado apenas pela mirada do

passado. Isto porque, “como raízes de heras apegadas à rigidez dos basaltos”, a Nação

encontrava-se agarrada, “há seculos, à Índia e ao Gama”, vivendo no passado sem

solucionar os problemas do presente199. Numa profética e acertada antecipação do que

seriam os tempos futuros, mesclando ironia e fina crítica política, o artigo abordava a

Situação e o seu ideário nestes termos:

Somos um povo ignorante e inculto? Que importa? Temos Os Lusíadas…

A nossa instrução é uma miséria? Descobrimos o Brasil.

A educação infantil é um crime. Não possuímos escolas onde modernos métodos

pedagógicos incitem e desenvolvam as atividades embrionárias. Liceus,

Faculdades, Universidades arejadas, amplas, donde dimane livre e irradiante a

luz da ciência? Temos sebentas…200

Três anos volvidos, em 1935, o periódico publicou um artigo reproduzido d’ O

Eco de Pombal acerca da imprescindível necessidade de extinção do analfabetismo,

avançando eventuais soluções para extirpar esse mal profundo e estrutural da sociedade

portuguesa. O seu autor, Lucas Alonso, abre com a constatação de que já haviam sido

experimentadas “muitas tentativas […] para se conseguir, quando não a suspensão

completa, pelo menos uma diminuição sensível na desoladora percentagem da população

analfabeta de Portugal”, porém eram “cada vez mais alarmantes e cada vez mais

199 “Elogio da Raça”. O Democrático, nº 936, 04/11/1932, p. 1. 200 “Elogio da Raça”. O Democrático, nº 936, 04/11/1932, p. 1.

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profundas e mais desalentadas as lamentações e censuras estigmatizadoras dessa suposta

úlcera social que, longe do caminho da cura” mais se alastrava e expandia, “mau grado

de quantos na sua destruição” se empenhavam e indicavam projetos de resolução. O autor

acreditava, portanto, que as abordagens ensaiadas não haviam apresentado os resultados

desejados. Assim, propunha soluções que, num país como Portugal, poderiam ser vistas

como “estravagâncias”, mas que em alguns outros países haviam sido convertidas em

leis. Sugeriu, então, a isenção “do serviço militar aos mancebos que na devida altura

demonstrassem ter o conhecimento de leitura e escrita”, assim como o impedimento do

“matrimónio às mulheres que não pudessem fazer aquela demonstração”. Revelados estes

expedientes, o autor não deixou de reconhecer-lhes perigos potenciais, que se traduziam

na forma de “dificuldades no recrutamento de homens para o exército e um provável

desenvolvimento de lares, irregularmente constituídos”. Contudo, tais fragilidades seriam

ultrapassadas através da “transformação do serviço militar numa missão honorífica ou,

então, suficientemente remunerada” e através da “amputação de todos os direitos e foros

cívicos aos componentes de lares imperfeitos ou fora das leis correspondentes”. Desta

forma, as possíveis preocupações volver-se-iam em “coisas nulas e sem valor”, pelo que

as hipóteses induzidas seriam merecedoras de uma análise demorada e atenta, para que

pudessem, no final, ser postas em prática201. Por outro lado, e no que diz respeito aos

elementos básicos que permitissem o exercício da instrução, o autor acreditava

encontrarem-se já reunidos, embora precisassem de se tornar mais eficazes, conferindo

ao ensino generalizado das primeiras letras a natureza de uma missão que, embora

espinhosa e difícil não podia deixar de se cumprir:

Professores numerosíssimos e edifícios adrede e profundamente distribuídos.

Povoem-se convenientemente estes e dê-se ocupação a todo aquele dispondo-o

para uma vida móvel, ambulante, nómada para ir, junto dos que dela precisam,

levar a luz das primeiras letras em vez de estar na sáfara expetativa de aguardar

na escola os que, quase sempre constrangidos, a ela venham202.

201 ALONSO, Lucas – “Extinção do Analfabetismo”. O Democrático, nº 1049, 22/02/1935, p. 4. 202 ALONSO, Lucas – “Extinção do Analfabetismo”. O Democrático, nº 1049, 22/02/1935, p. 4.

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Adicionalmente, o texto defendia que o problema não residia na construção de

mais escolas, uma vez que as alternativas e opções de lugares para a prática da

alfabetização eram vastas, embora pouco convencionais:

Em toda a parte há ou uma igreja ou a casa de um benemérito. A igreja não se

macula. Não é uma religião também a aquisição de um pouco de pão para o

espírito? E a casa do benemérito não se amesquinha; dignifica-se e por isso

ninguém a recusará se edifício próprio não existir no lugar. E os jardins, e as

matas, e os recantos de uma planície, plenos de sol brilhante e fartos de ar puro

[poderão ser aproveitados] como fontes de uma missão santa203.

Todas estas considerações e propostas surgiam na sequência de um projeto de lei

reproduzido no Jornal do Comércio e das Colónias, da autoria de Araújo Correia

(deputado e engenheiro), “tendente à extinção do analfabetismo”. A proposta consistia na

criação de uma “Junta de Cultura Popular”, que procedesse à fixação das matérias que

deviam integrar o “curso completo de instrução rudimentar”; instalação de “40.000 postos

de cultura popular”; e criação de uma “cota de analfabetos de mais de 12 e menos de 50

anos”. Observavam-se ainda neste projeto, “disposições tendentes a aproveitar o concurso

de pessoas particulares, hábeis para o intento e a galardoar, por meio de determinadas

vantagens, os alunos que hajam obtido o respetivo certificado de instrução”204.

Fica aqui explícita a primeira grande manifestação de preocupação d’O

Democrático – através da transcrição de um artigo publicado por outro periódico – no

que diz respeito aos elevados níveis de analfabetismo em Portugal, assim como a procura

de soluções para este flagelo. A partir daqui, o discurso permaneceu carregado da mesma

dose de preocupação, sempre com uma particular insistência em demonstrar a

importância da educação na sociedade.

Em 1936, o semanário debateu nas suas colunas o “vasto e complexo” caminho

que, em plena primeira metade do século XX, existia ainda por percorrer no campo da

203 ALONSO, Lucas – “Extinção do Analfabetismo”. O Democrático, nº 1049, 22/02/1935, p. 4. 204 ALONSO, Lucas – “Extinção do Analfabetismo”. O Democrático, nº 1049, 22/02/1935, p. 4.

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educação infantil. Defendia que as bases do ensino primário infantil deviam iniciar-se no

lar, sendo “tremenda”, nesse domínio, “a responsabilidade dos progenitores”. A complexa

missão de educar não deveria pertencer única e exclusivamente aos professores, uma vez

que “na família, na escola, na sociedade – em toda a parte” se poderia “realizar alguma

coisa de útil e de construtivo em benefício da juventude e da mocidade”. O jornal

considerava que este não era um assunto que pudesse ser deixado para segundo plano,

pois “os pequeninos de hoje – homens de amanhã” – mereciam “ser vigiados e orientados

com o maior carinho, desde a idade da razão”. Neste contexto, o periódico criticava a

educação dada às crianças de famílias católicas que, embora procedessem de “boa-fé”,

limitavam-se a “uma instrução formalista” que “poucos resultados úteis traria”. Mais do

que incentivar os mais novos a decorar certas noções ou conceitos, o mais importante

seria compreendê-los, senti-los e depois praticá-los em conformidade. Quer isto dizer que,

na visão d’O Democrático, era fundamental a formação de cidadãos informados, aptos e

competentes para desempenhar um papel válido, ativo e responsável na sociedade.

Contudo, considerava que os suportes básicos do ensino falhavam: a família raras vezes

cumpria a sua obrigação, a escola atraiçoava muitas vezes a sua missão e a sociedade

nunca cumpria o seu dever, deixando assim o futuro comprometido205.

Neste seguimento, não surpreende que o semanário tenha publicado outro artigo

do mesmo pedagogo, Mário Gonçalves Viana206. No texto aqui em destaque, Gonçalves

Viana afirmava que a educação era, efetivamente, o problema máximo no país. O autor

admitia que “o problema económico e a própria questão social” que Portugal atravessava

seriam os grandes fatores propiciadores dessa situação. Numa aceção que se aproximava

mais dos valores ideológicos que o país abraçava à época, insistia na importância da

educação como pedra angular na sustentação de qualquer sociedade moderna:

205 VIANA, Mário Gonçalves – “O problema das gerações novas”. O Democrático, nº 1096, 21/02/1936,

p. 2. 206 Foi professor e formador de professores, assim como autor de uma obra vasta nas áreas da pedagogia,

psicologia e biografia. Embora “próximo do regime autoritário e do nacionalismo conservador então

prevalecentes”, defendeu “um projeto humanista de formação integral dos jovens”. (PINTASSILGO,

Joaquim – «Uma reflexão entre o passado e o presente: os contributos do pedagogo português Mário

Gonçalves Viana». Educação em Foco. Belo Horizonte: Editora UEMG, vol. 22, nº 2, mai./ago., 2017, p.

37).

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Sem educação não pode haver nem disciplina, nem ordem, nem respeito. Com

cidadãos maus, destituídos de caráter não se pode edificar uma economia sã. É a

educação que adoça e nobilita as relações sociais, assim como são os indivíduos

deseducados que pervertem e desorientam a sociedade, praticando toda a sorte de

injustiças, abusos e desvarios. Isto é uma verdade que, ninguém de boa-fé, pode

contestar207.

Uma vez mais, fazia referência ao facto de, apesar de várias soluções já terem sido

estudadas e conhecidas, tardavam em ser aplicadas208.

Por outro lado, e de forma a comprovar o atraso intelectual de Portugal, o jornal

comentou um artigo publicado no semanário lisbonense O Diabo, no qual se criticava a

baixa afluência da população às bibliotecas públicas e se apontavam como as maiores

causas a ainda elevada percentagem de analfabetismo – “apesar do aumento” que se

registava “no número de escolas” – o abandono escolar voluntário por parte dos que

preferiam “ficar iletrados” e o desinteresse generalizado pela instrução e cultura, apesar

da fixação do horário de trabalho nas oito horas diárias que, supostamente, alargaria a

possibilidade de se passar mais tempo a investir no crescimento educacional e intelectual.

Contudo, tal não se verificava em Portugal, ao contrário de outros países da Europa. A

frequência às bibliotecas públicas continuava a ser bastante reduzida, “mesmo em Lisboa

e Porto onde a percentagem dos que ali” iam “consultar livros” era “ainda assim mais

elevada à das poucas bibliotecas” existentes “nas outras terras limitadas do continente e

bem poucas elas” eram “infelizmente”209.

O último artigo de opinião referente ao assunto da educação saiu na edição de 9

de outubro de 1936, sob o título “O cancro do analfabetismo”, aí considerado “um dos

grandes males” que corroíam a sociedade. Desta feita, O Democrático apontava “os pais

dos alunos” como “os principais causadores de seus filhos não frequentarem regularmente

a escola”210, contribuindo para as exorbitantes taxas de analfabetismo no país:

207 VIANA, Mário Gonçalves – “Educar, eis o problema!”. O Democrático, nº 2002, 03/04/1936, p. 3. 208 VIANA, Mário Gonçalves – “Educar, eis o problema!”. O Democrático, nº 2002, 03/04/1936, p. 3. 209 “Inimigos da Instrução”. O Democrático, nº 2028, 09/10/1936, p. 1. 210 ARAÚJO, Artur da Cunha – “O cancro do analfabetismo”. O Democrático, nº 2030, 09/10/1936, p. 1.

Ver Anexo 9.

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Sob o pretexto de que lhes são precisos para os ajudar nos serviços auxiliares da

lavoura ou dos seus misteres, deixam assim de cumprir com um dos seus

importantes deveres de pais – não dando a seus filhos o pão espiritual – e

desrespeitando a lei, ao mesmo tempo que fazem criar um cidadão iletrado,

inferiorizando-o até em relação a uma criança ou a um mendigo quando estes

saibam ler um livro ou escrever uma carta211.

Neste contexto, o jornal defendia que os pais que impediam os seus filhos de

frequentar a escola “sob o argumento comezinho” de que eram “precisos em casa para

«olhar o gado», «irem ao campo segar erva» ou fazer outro qualquer serviço doméstico”

deveriam ser obrigados ao pagamento de sanções rigorosas e “sem contemplação alguma,

para que o exemplo frutificasse e não pudesse haver mais analfabetos por culpa exclusiva

dos encarregados da educação das crianças”212. Uma atitude teoricamente louvável,

certamente, mas esse quadro era comum num país pobre, com baixíssimas remunerações

e sem benefícios sociais, onde em cada lar, tantas vezes com numerosos filhos, deixá-los

frequentar a escola – principalmente aos mais velhos – era quase um luxo, pois o

contributo do seu trabalho, tanto em casa como fora, era essencial para minorar a pobreza

reinante.

4.3.3. Recusa do nacionalismo exacerbado

Trave mestra do programa ideológico preconizado pelo Estado Novo era a

exaltação dos feitos históricos passados, que deveriam servir exemplo e lição para a

sociedade presente, acrisolando o amor incondicional à Pátria que não deveria conhecer

limites de sacrifício. Aliás, a exacerbação nacionalista era comum, mais ou menos

mesclada de preconceitos de superioridade de raça, ao ideário dos regimes autoritários e

fascistas que se ergueram na Europa dos anos 1920. E o surgimento deste sentimento de

proteção e valorização da Nação/Pátria é facilmente explicável. Uma vez, terminada a I

Grande Guerra (1914-1918), o fascismo encontrou “o seu meio de eleição no país

211 ARAÚJO, Artur da Cunha – “O cancro do analfabetismo”. O Democrático, nº 2030, 09/10/1936, p. 1. 212 ARAÚJO, Artur da Cunha – “O cancro do analfabetismo”. O Democrático, nº 2030, 09/10/1936, p. 1.

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vencido”, a Alemanha. Surgiu como a “reação de um nacionalismo ferido”, “contra a

humilhação da derrota” e contra “as ameaças” que pesavam “sobre a segurança ou

integridade nacionais”. Já na Itália, apesar de fazer parte dos vencedores, o fascismo

surgiria como reação “contra o desperdício da vitória”, dado que teria entrado na guerra

“de má vontade”, não sentido a vitória, e acreditando ter sido “tratada com pouco caso

pelos outros aliados”, principalmente do que diria respeito às disposições sobre os

destinos da Europa do pós-guerra213. Neste contexto, “Salazar deu consigo cada vez mais

alinhado com as tendências dominantes no continente”214, nomeadamente com a

tendência nacionalista, inculcando na população a premissa “Tudo pela Nação, nada

contra a Nação” levada a extremos.

Uma discussão sobre o nacionalismo abriu a edição de 8 de julho de 1932 do

periódico em análise. O Democrático apresentou um artigo da autoria do Dr. Evaristo de

Carvalho (1865-1938), um jornalista republicano215. No artigo em questão, este autor

começou por debater o conceito de nacionalismo de forma prática, explicando que ser

nacionalista era “colocar a Pátria no coração, acima de todas as outras com orgulho, pela

sua história gloriosa e desejando-a respeitada e grande” – segundo esta definição, o autor

considerava-se nacionalista, tal como se deviam considerar todos os republicanos.

Evocava inclusive momentos históricos do republicanismo, relembrando que “as ideias

republicanas tiveram em Portugal a sua primeira manifestação de força em 1880, na

celebração do centenário de Camões – uma festa caracteristicamente nacionalista”– na

qual “em torno da memória do épico, foi enaltecido, comovidamente, o génio da Raça” e

a “aspiração de uma Pátria maior”. Também aquando do Ultimatum inglês de 1890 as

manifestações calorosas do sentimento de nacionalismo se fizeram ouvir e “a palavra que

mais alto se ouvia, por entre o rugir e o trepidar das cóleras do povo e das românticas

213 RÉMOND, René – O Século XX: de 1914 aos nossos dias. São Paulo: Editora Cultrix, 1993, p. 94-95. 214 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p. 114. 215 Entre alguns cargos que desempenhou, destaca-se a sua colaboração com O Mundo (Lisboa, 1900-1927),

o órgão por excelência dos republicanos, e depois dos republicanos democráticos, a partir da cisão de 1911-

12. Foi também colaborador dos periódicos republicanos A Pátria (Lisboa, 1911-1914) e A Democracia

(Lisboa, 1921) e diretor d’O Debate (no ano da sua fundação, 1920, de 1 de abril até 19 de junho) e d’O

Rebate (de 17 de janeiro até 1 de julho de 1922), ambos da fação democrática. Desempenhou também a

função de diretor-delegado do Diário Liberal (1932-1934). (LEMOS, Mário Matos e – Jornais diários

portugueses do século XX. Um Dicionário, p. 209, 211, 305-306, 440, 486, 529).

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audácias da mocidade das escolas – era a palavra República!”. Teria sido esta a

“expressão verbal de toda a agitação nacional, que queria um Portugal honrado e livre,

altivo e insubmisso, perante o estrangeiro”. Asseverava ainda que teria sido este

alinhamento de “nacionalismo ardoroso” que “fez eclodir, no Porto, o 31 de Janeiro –

alvorada gloriosa do 5 de Outubro de 1910”. Assim, e alargando a definição em questão,

considerava que se o nacionalismo significava também “um grande amor pela tradição”

em tudo o que ela pudesse, “inteligentemente, adaptar-se à mentalidade atual e às ideias

correntes” – repare-se, contudo, que apenas valorizava o binómio

republicanismo/patriotismo – não vendo assim qualquer razão para não se incluir nos

seguidores deste conceito216. Porém, expunha no final do artigo o aspeto que o afastava

do nacionalismo:

Mas se nacionalismo é o alardear de ideias e conceitos que, inconsideradamente,

se foram beber ao passado, apresentando-os como diretrizes essenciais da

atividade social e política da vida moderna, que, logicamente, os não pode tolerar

e devem, por isso, considerar-se como elementos de entrave e perturbação – nós

não somos nacionalistas217.

É, portanto, neste último parágrafo do texto, que fica clara a crítica ao

nacionalismo exacerbado patenteado pelo Estado Novo. Contudo, como era prática

corrente deste jornal para escapar à revisão da censura, a sua oposição ao regime é feita

de forma subtil e inteligente: atacam-se os valores da Ditadura recorrendo a momentos

históricos marcantes do republicanismo e nunca mencionando diretamente o Governo

nacional. Desta forma, num período de opressão e repressão, este órgão da imprensa

periódica sentiu-se capaz de continuar a patentear os valores da República que sempre

defendera e, ao mesmo tempo, distinguiu-os das características gerais comuns da

ideologia fascista de vários países, como era o caso do incentivo a uma mentalidade

nacionalista pela via do recurso a feitos do passado longínquo tidos como elementos de

entrave e perturbação e, portanto, inaceitáveis como diretrizes para a contemporaneidade;

216 CARVALHO, Evaristo de – “Nacionalismo”. O Democrático, nº 919, 08/07/1932, p. 1. 217 CARVALHO, Evaristo de – “Nacionalismo”. O Democrático, nº 919, 08/07/1932, p. 1.

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desta forma evidenciava a sua repulsa por tais teorias, embora sem aprofundar e detalhar

para evitar represálias. Ainda assim, embora “disfarçada”, a crítica à Situação não deixa

de estar presente e evidente aos olhos dos leitores atentos.

4.3.4. A permanente defesa dos valores democráticos

Defensor dos ideais de liberdade e Democracia em tempo de Ditadura, O

Democrático recheava as suas páginas com a apologia dos valores que considerava

apropriados para aplicação prática na sociedade moderna. Tal opção representava,

claramente, mais uma forma de fazer oposição ao novel regime e seu ideário.

Em junho de 1931, este semanário abriu uma das suas edições com mais um artigo

de Duarte Vilhena Gusmão, no qual este autor patenteava a defesa do sistema de sufrágio

universal.

O sufrágio universal é o direito de voto a todos os cidadãos, sem distinção de

ideias nem de classes. Adotar o sufrágio universal é satisfazer a opinião pública

sem correr perigo algum. Este sistema eleitoral era e é ainda, para as realezas

constitucionais, um motivo de reprovação e de terror. A privá-lo era enfileirar-se

na categoria dos anarquistas e, como se dizia então, dos mais grosseiros

republicanos218.

Como se sabe, a adoção do sufrágio universal não era matéria consensual entre os

homens da República, certamente da sua maioria, pois nunca o instituiu. Assim, mesmo

publicando este artigo, entende-se que o periódico apresentava, provavelmente, algumas

reservas em relação a este assunto. Veja-se.

O tema do voto regressou a este semanário, desta feita debatendo a questão da sua

obrigatoriedade. Carlos Bana defendia que tornar o voto eleitoral um dever obrigatório

faria sentido em teoria mas na prática não resultaria. O caráter de obrigatoriedade de um

ato como o voto eleitoral não revestiria o eleitor de civismo e de conhecimento de causa.

Assim, não contesta a premissa de que o “voto seja um dever sagrado do cidadão, em face

218 GUSMÃO, Duarte Vilhena – “Sufrágio Universal”. O Democrático, nº 867, 12/06/1931. Ver Anexo 5.

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da Democracia”. Crê, até, “que é o mais imperioso dos seus deveres”. Porém, este só seria

útil à vivência democrática desde que fosse exercido voluntária e conscientemente, uma

vez que “votar por obrigação, por puro medo da cadeia”, não seria “praticar um ato

político”. Desta forma, a solução para o problema da abstenção eleitoral passaria não pela

instituição do voto obrigatório, mas pelo fomento da educação do cidadão, pela

consciencialização da importância do exercício deste direito, através do incentivo à sua

prática “pela vida da Democracia”219.

Complementarmente, o jornal incentivava à participação das camadas jovens na

vida pública e política, para o total exercício dos seus direitos e deveres de cidadania, já

que, segundo o artigo de Duarte de Gusmão, “participar na administração dos negócios

públicos, pelo seu conselho ou pela sua atividade” seria “a vocação de todo o homem na

posse dos seus direitos cívicos”. Contudo, o cidadão não deveria ser apenas maior de

idade mas, também, ter adquirido por via de formação escolar o conhecimento necessário

para exercer cargos públicos para depois poder “intervir sempre na vida política do seu

país, orientando-se e orientando”. Neste contexto, o autor demonstrou, neste artigo, o seu

apoio aos jovens democratas e sua intervenção em questões políticas: “Os estudantes

nacionalistas fazem uma manifestação? Pois bem, a maior parte dos peraltas acha muito

bem. A mocidade democrática faz outra manifestação, e logo é censurado o seu

procedimento pelos mesmos peraltas”. Fica clara a importância que o periódico conferiu

à educação e o apoio às juventudes académicas democráticas na sua luta em prol da

República220.

Em 1932, o jornal apresentou um texto de defesa do internacionalismo em

detrimento do “perigoso” nacionalismo acerado pelos fascismos. Lembrava o seu autor,

Duarte de Gusmão: “A ideia de uma comunidade de interesses entre povos, superior aos

interesses nacionais, formou-se lentamente no século XIX”, impulsionada por vários

avanços: nas descobertas científicas, que encurtaram as distâncias e facilitaram

intercâmbios; por um número importante de “convenções internacionais tendentes a

assegurar o respeito ou a facilitar a realização de interesses comuns a várias ou a todas as

219 BANA, Carlos – “Obrigatoriedade? O Voto”. O Democrático, nº 914, 03/06/1932, p. 1. 220 GUSMÃO, Duarte de Vilhena – “A mocidade académica e a política”. O Democrático, nº 878,

11/19/1931, p. 1. Ver Anexo 6.

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nações”; pelo desenvolvimento dos transportes, que “deu um caráter internacional a um

grande número de questões económicas”. Desta forma, o caminho da cooperação entre os

povos seria a opção mais vantajosa e viável, visto que “uma das causas principais das

guerras” era ainda o nacionalismo. Não obstante pudesse parecer uma afirmação

paradoxal, o patriotismo não passaria de uma “«blague», palavra sem sentido”221. Neste

sentido, o artigo conclui:

O sentimento patriótico deve desaparecer ante um outro sentimento mais

altruísta, o internacionalismo. A mocidade compreende bem este novo

sentimento e, quando ela tomar conta do poder, a União Mundial será um facto,

para felicidade dos povos peninsulares. Nós mesmo antes de sermos patriotas

somos internacionalistas, cosmopolitas ou o que quiserdes222.

Fiel às suas convicções progressistas, o autor tão publicado pel’ O Democrático

patenteava o valor supremo da igualdade em Democracia. Num artigo intitulado “O

Povo”, reivindicava:

Quando todos se souberem servir desta palavra sem desprezo, a Democracia será

um facto, porque os costumes terão acabado a sua educação. O povo é o conjunto

de todos os cidadãos, à exceção dos pretendentes ao trono e dos criminosos. Tanto

uns como os outros se pretendem conservar à margem dos direitos e dos deveres

dos cidadãos. Cada um com o mesmo título e na proporção de uma igualdade

perfeita faz parte do povo223.

Neste sentido, o estatuto económico ou social não deveria condicionar a igualdade

de todos os cidadãos, “desde a mais alta individualidade até ao mais humilde”. As ideias

de superioridade de uns e inferioridade de outros deveriam, nesta ótica, ser erradicadas,

221 GUSMÃO, Duarte de – “A Caminho para o Internacionalismo”. O Democrático, nº 899, 12/02/1932, p.

1. 222 GUSMÃO, Duarte de – “A Caminho para o Internacionalismo”. O Democrático, nº 899, 12/02/1932, p.

1. 223 GUSMÃO, Duarte de – “O Povo”. O Democrático, nº 918, 02/07/1932, p. 1.

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pois a Democracia só seria uma realidade quando todos se educassem “nos sãos princípios

igualitários”: “sem isto, sem educação tudo é mentira, tudo é um embuste”224.

Em consequência do seu afinco na defesa e divulgação dos ideais democráticos e

republicanos, O Democrático recebeu da “Direção do antigo Centro Republicano Dr.

António José de Almeida” – uma “corporação republicana que, no Porto, à causa

republicana” havia “aplicado os melhores esforços” – uma saudação aplaudindo a

conduta deste jornal local que adjetiva de “baluarte do jornalismo republicano”225.

4.3.5. A oposição do semanário ao Movimento Nacional Sindicalista

O Movimento Nacional Sindicalista foi um movimento político de extrema-direita

ativo nos primeiros anos de afirmação do Estado Novo, com ligações profundas ao

Integralismo Lusitano. O seu fundador, Francisco Rolão Preto, anunciou a criação desta

organização em fevereiro de 1933, um ano após a criação do jornal académico A

Revolução. Segundo António Costa Pinto, o Nacional-Sindicalismo representou “o

último combate de uma «família política» que desempenhou um papel importante no

processo de crise e derrube do liberalismo português, mas que foi secundarizada na

edificação de uma alternativa ditatorial estável no início dos anos 30”. Enquanto partido

político, o Nacional-Sindicalismo “foi o ponto de unificação tardio de uma corrente

fascista constituída a partir da ampla mas dividida família da direita radical portuguesa

do pós-guerra”. Contou com “as franjas mais radicais de anteriores partidos e grupos de

pressão ideológicos criados nos últimos tempos” da República e da Ditadura Militar. Em

pouco tempo, “edificaram uma organização, constituíram um grupo não desprezível no

Exército, manobraram diversas tentativas golpistas contra Salazar, até serem ilegalizados

e verem os seus dirigentes expulsos do país”226.

Foi justamente em 1933 que O Democrático iniciou a sua resistência a este

movimento. O jornal denunciou e reprovou “as atitudes impertinentes e irritantes tomadas

224 GUSMÃO, Duarte de – “O Povo”. O Democrático, nº 918, 02/07/1932, p. 1. 225 “Vida Republicana”. O Democrático, nº 961, 12/05/1933, p. 2. 226 PINTO, António Costa – Os Camisas Azuis e Salazar: Rolão Preto e o Fascismo em Portugal. Lisboa:

Edições 70, 2015, p. 22-23.

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desde a primeira hora por tal organização política que se batizou com o nome de Nacional-

Sindicalismo”, comparando as suas ideias e ações às “dos figurinos «mussolinismo» e

«hitlerismo»”. Marcada pelo radicalismo, esta nova corrente estaria a alarmar, “e com

toda a razão, a opinião pública na sua grande maioria” que veria “nesse agrupamento de

tendências mais que reacionárias um tremendo ponto de interrogação para o futuro

político da pátria portuguesa”. Neste contexto, o periódico questionou o programa do

Movimento Nacional Sindicalista, apodando-o de “vago, indeterminado, extremamente

confuso, com o braço esquerdo apoiado na «ordem» e o direito empunhado na espada da

«Revolução»”. Quanto aos objetivos do movimento, o jornal destacava, com alguma

habilidade discursiva, a sua intenção de “manter a todo o custo a ordem na rua, no lar e

nas consciências e promover o bem-estar da Nação em toda a sua plenitude”, tornando

Portugal “invejável aos olhos dos outros povos”. Assim, os nacional-sindicalistas

estariam “indiretamente a censurar e a condenar a obra da «Ditadura Militar»” e a “ação

do Governo do Estado Novo”, uma vez que, ao querer fazer daquelas as suas medidas de

ação base, alegavam que o Estado não estaria a desempenhar competentemente as suas

funções227. Esta atitude era considerada um ato de desafio ao regime mas, sendo

completamente oposto às convicções democráticas e adepto dos fascismos mais radicais,

o periódico condenava o Nacional-Sindicalismo em toda a linha.

Nesta conformidade, reprovava com veemência as suas manifestações,

caracterizando-as como paradas “grotescas” e “provocadoras aos sentimentos liberais”

que animavam “a grande maioria da Nação”. Desconstruía também os discursos e

declarações de Rolão Preto – “chefe da seita negra” – criticando-o e acusando-o de

hipocrisia, principalmente quando este asseverava que o Nacional-Sindicalismo não se

tratava, “nem de perto, nem de longe”, de uma formação política. Este tipo de discurso

não seria mais do que uma estratégia de aquietamento de grande parte da opinião pública

que temia a ascensão da extrema-direita228.

Recuando às origens deste movimento, O Democrático recordou que os nacionais-

sindicalistas eram os mesmos “cavalheiros que, em tempos, quebraram lanças pelo

227 “O que pretendem”. O Democrático, nº 964, 02/06/1933, p. 1. 228 “Intranquilidade de espíritos”. O Democrático, nº 965, 10/06/1933, p. 1.

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Integralismo” Lusitano, agora “rotulado de sindicalista” mas com os mesmos “fins

absolutistas, reacionários e regressivos”. Por isso, todos os elementos do Nacional-

Sindicalismo seriam “discípulos amados de António Sardinha, o conhecido germanófilo,

que desprezando os interesses vitais da Nação, desejava a vitória da Alemanha,

simplesmente porque o triunfo desta sobre os Aliados seria o esmagamento da

Democracia” e da Liberdade. Para além da derrocada de direitos e liberdades essenciais

assegurados pelo sistema democrático, o jornal relembrava que “uma Alemanha

reacionária e imperialista” representaria uma ameaça para as colónias portuguesas, cujo

desenvolvimento havia tomado grande parte do orçamento nacional. Por todos estes

motivos, seria fundamental o combate a estas ideias de extrema-direita e o periódico

advertia a classe trabalhadora para que não se deixasse “iludir pelas petas e falsas

afirmações socializantes” daqueles “impostores” – denunciando logo no título do artigo

o “maquiavelismo dos integralistas”229. Apesar da combativa campanha empreendida

contra o Movimento Nacional Sindicalista, com total descredibilização dos seus valores

e ideário, o jornal receava que a opinião pública se deixasse persuadir por certas

declarações demagógicas de Rolão Preto, tais como a garantia de que o Nacional-

Sindicalismo não descansaria enquanto não houvesse “pão e justiça para todos”,

aplicando uma fórmula de maneira a “obrigar os ricos” a que fossem “menos ricos” para

que os pobres fossem “menos pobres”230. Consequentemente, o periódico dirigia-se

insistentemente aos seus leitores, veiculando aqueles que considerava serem os

verdadeiros valores da esquerda progressista, inclusive com expressa menção à doutrina

marxista:

A luta de classes só desaparecerá com a supressão das classes e não

reestabelecendo mais classes, como pretendem estes falsos messias, que desejam

restaurar a nobreza parasitária e a realeza despótica. Não vos disse o grande Marx

que a emancipação dos trabalhadores há de ser obra dos próprios trabalhadores?

229 “O maquiavelismo dos integralistas”. O Democrático, nº 969, 14/07/1933, p. 1. 230 “Intranquilidade de espíritos”. O Democrático, nº 965, 10/06/1933, p. 1.

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E olhai que se Marx fosse vivo decerto não queria o Sr. Rolão nem para lhe limpar

as botas...231

Por outro lado, o líder do movimento teria ainda afirmado que “no dia da marcha

decisiva” contaria com o apoio de Oliveira Salazar232. Ora, em agosto de 1934, O

Democrático transcreve uma nota oficiosa da Presidência do Conselho publicada na

imprensa diária, na qual Salazar rejeitou o Nacional-Sindicalismo, considerando-o um

“elemento perturbador e de desagregação das forças nacionalistas do Estado Novo”233.

Ou seja, nestes tempos conturbados, O Democrático teve de fazer frente às várias direitas

que se erguiam e fê-lo sempre, até ao seu fim.

4.4. Praxis política do Estado Novo – crítica ao regime repressivo

O Democrático ofereceu clara resistência às medidas políticas de cariz repressivo

empreendidas nos primeiros anos de afirmação do Estado Novo. A oposição ao partido

único, a preocupação com a redação de um documento constitucional justo, as críticas à

atuação da censura e da polícia política e à generalidade do ideário do regime

preencheram sistematicamente as páginas do jornal até 1936.

4.4.1. União Nacional

O regime apresentava a União Nacional como “uma associação sem carácter de

partido e que pretendia assegurar a realização e defesa dos princípios da vida nacional,

sem qualquer distinção de ideais políticos ou religiosos”234. Na realidade, tratou-se do

único partido político legalmente constituído e permitido, sendo estreitamente controlado

pelo Presidente do Ministério, tendo em vista a manutenção do regime sem oposição na

lógica ditatorial necessariamente avessa ao pluripartidarismo.

A 25 de julho de 1930, O Democrático apresentou a primeira notícia sobre os

prenúncios de criação da União Nacional. O semanário anunciou que o Governo

231 “O maquiavelismo dos integralistas”. O Democrático, nº 969, 14/07/1933, p. 1. 232 “Intranquilidade de espíritos”. O Democrático, nº 965, 10/06/1933, p. 1. 233 “Os Nacionais-Sindicalistas”. O Democrático, nº 1021, 03/08/1934, p. 1. 234 SERRÃO, Joaquim Veríssimo – História de Portugal: do 28 de Maio ao Estado Novo, p. 241.

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preparava a formação de uma “força política” que lhe garantisse a sucessão e assegurasse

a “continuidade dos seus processos administrativos, na vigência do regime

constitucional”. Porém, julgando pela “circular enviada aos seus representantes nos

distritos do país”, essa organização seria porventura vazada “nos velhos moldes dos

partidos constitucionais” e teria “uma feição acentuadamente conservadora”, algo que –

como facilmente se compreende – não agradaria ao periódico, em conformidade com as

suas convicções já largamente patenteadas. Neste sentido, o jornal criticou a adesão

entusiástica de muitos monárquicos à Ditadura, acusando-os de hipocrisia, uma vez que

o objetivo final (julgava-se ainda por esta altura) seria a transição para a República, tanto

mais com a criação desta nova organização partidária em vista. Na ótica do periódico,

esta participação da fação monárquica representava apenas uma coisa: “fazer restaurar a

Monarquia num futuro mais ou menos próximo e quando o julgassem oportuno”, pelo

que continuava alerta perante o ainda considerado proeminente perigo monárquico235.

Ainda na mesma linha – após o discurso de Oliveira Salazar, a 30 de julho de

1930, na sala do Conselho de Estado sobre “Os Princípios Fundamentais da Evolução

Política, marcando o lançamento da União Nacional”236 – o periódico criticou a imediata

disponibilidade dos monárquicos em se quererem juntar à União Nacional, por ser

contraditória, uma vez que o seu objetivo seria o retorno da Monarquia e não da

República. Desta forma, o jornal considerava que os realistas haviam ignorado

completamento o sentido do “discurso notável do Sr. Ministro das Finanças” (neste

aspeto, ainda elogiado pelo jornal, como a linguagem bem denota) ao quererem “ingressar

nas fileiras da União Nacional”. O semanário elucidava que a União, “de apoio civil à

Ditadura”, seria constituída “na sua estrutura essencialmente política sob «a direção

republicana marcada no 28 de Maio» e que, portanto, sem possibilidade de habilidosos

sofismas”, uma vez que dela só poderiam fazer parte os portugueses que reconhecessem

“as instituições republicanas como regime de direito”237.

Em conformidade com o novo ambiente político vivido, o jornal noticiava que se

encontrava já organizada a comissão concelhia vila-condense da União Nacional. Desta

235 “Os monárquicos na Ditadura”. O Democrático, nº 825, 25/07/1930, p. 1. 236 BRANDÃO, Fernando Castro – A Ditadura Militar 1926-1933: uma cronologia, p. 87. 237 “O gesto monárquico”. O Democrático, nº 827, 08/08/1930, p. 1.

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comissão faziam parte Tadeu Pereira Neves, Ezequiel Pizarro Monteiro, João Gomes de

Lima, de Vila do Conde, José Amorim, da freguesia da Junqueira, e Manuel Dias Canito,

de Mindelo238.

Já em 1932, o semanário retirou um excerto de uma notícia publicada no diário O

Comércio do Porto, onde se explicava que “as comissões concelhias e paroquiais da

União Nacional” estavam “trabalhando com grande entusiasmo nos recenseamentos. O

concelho de Vila do Conde perfeitamente integrado na Situação, pelos benefícios e pela

tranquilidade que trouxe ao país”, teria, “contra todos os partidos uma maioria certa a

favor a da União Nacional” e o presidente da Câmara Municipal estaria a “trabalhar

afincadamente a favor da União Nacional”. Contudo, há um pormenor que aqui deve ser

tido em conta. O Democrático antecedia a mencionada transcrição com as seguintes

palavras: “Por mais ou menos corresponder à verdade, recortamos o fecho […] que o

Comércio do Porto publicava ontem”239. Afinal, o que mais ou menos correspondia à

verdade? O jornal não considerava que as comissões do concelho estavam a trabalhar

devidamente (designadamente na importante matéria dos recenseamentos) ou começava

a revelar alguma desconfiança face a essa nova força política? Certo é que, seis meses

depois, O Democrático alinhava já na contestação a esse partido único. Em meados de

dezembro desse ano, reproduziu um texto do periódico A Voz da Justiça, da Figueira da

Foz, onde a oposição à União Nacional era feita sem rodeios:

Ao programa da União Nacional, que outros com sinceridade defendem, nós,

opomo-nos sinceramente, inspirados no bem público [e no] programa da

«Aliança Republicano-Socialista». E a liberdade que desejamos para a sua

propaganda é a liberdade que dignamente se não deve negar a quem a pede240.

Perante tais declarações, que O Democrático fez questão de divulgar, fica clara a

sua posição política: a resistência à União Nacional e ao regime que a engendrou, bem

238 “A União Nacional”. O Democrático, nº 831, 12/09/1930, p. 1. 239 “Política Local”. O Democrático, nº 867, 12/06/1931, p. 1. 240 “Nós os que discordamos”. O Democrático, nº 941, 16/12/1932, p. 1.

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como o apoio ao programa da Aliança Republicana Socialista, tópico que, mais à frente,

será abordado.

4.4.2. Constituição de 1933

No que diz respeito ao texto constitucional do Estado, plebiscitado em 19 de

março de 1933 e vigente a partir de 11 de abril desse ano (até ao final do regime, em

1974) mas em preparação desde há algum tempo por um grupo de professores de Direito

convidados por Oliveira Salazar e por ele diretamente coordenado, o periódico apenas

transcreveu de um título da imprensa diária, em maio de 1932, uma nota oficiosa

publicada pelo Ministério do Interior, na qual se lia:

O Conselho de Ministros, reunido para assentar, definitivamente, na sua redação

do projeto da Constituição, resolveu publicá-lo no próximo dia 28 para livremente

ser discutido, recebendo o Governo todas as sugestões que tenham por fim

aperfeiçoar o referido projeto241.

Perante esta informação, o jornal considerava importante tal decisão do Governo,

dada a relevância do documento, cuja aprovação, a seu ver, devia “merecer o aplauso de

todos os portugueses”. Para além de insistir na importância de uma deliberação cuidada,

o periódico defendia que a nova Constituição deveria “representar a vontade livre da

Nação”, uma vez que seria a garantia “de todos os direitos aos cidadãos portugueses”,

assim como regularia “também os seus deveres”242.

Para além disto, destaca-se uma sugestão do periódico para que fosse efetivamente

garantido o alvedrio nacional na feitura da nova lei: “o Governo, decerto, para que tenha

bem a certeza de que a vontade da Nação se manifeste aberta e francamente, vai proceder

à revisão do recenseamento eleitoral corrigindo deficiências que por certo existem”. Desta

forma, muitos dos portugueses ausentes do país, que pensassem regressar, teriam a

oportunidade de “contribuir com as suas opiniões” e com “as suas inteligências”, para

que o diploma fosse o mais completo possível. No final, o jornal rematava este assunto,

241 “A nova Constituição”. O Democrático, nº 913, 28/05/1932, p. 1. 242 “A nova Constituição”. O Democrático, nº 913, 28/05/1932, p. 1.

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apelando: “Que o Governo não recue ante aquela nota, procurando ouvir a verdadeira e

livre vontade dos cidadãos portugueses, e será mais um grande passo dado para a

pacificação da família republicana”243.

De facto, a mensagem d’O Democrático é clara. Sob a influência de um Governo

de Ditadura, nos prenúncios da publicação de uma nova Constituição, a maior

preocupação do periódico era garantir que o documento legal em processo de elaboração

exprimisse as vontades, direitos, deveres e liberdades do povo português. Certamente que

o seu texto final, que consagrava como tipo de Estado uma República Corporativa,

subalternizava o poder legislativo e fortalecia o executivo, não terá sido do agrado deste

semanário republicano que, após a sua publicação não lhe fez qualquer menção,

silenciando um tópico que, a ser minimamente contestado, arrostaria sem dúvida a eficaz

ação censória.

4.4.3. Censura

Em 1932, O Democrático lançou a sua primeira crítica, se bem que disfarçada, ao

sistema de censura à imprensa, popularmente conhecido como “lápis azul”. No artigo em

questão, o jornal tecia uma apreciação negativa à forma como a imprensa diária nacional

fazia relatos de crimes que ocorreriam com grande frequência no dia-a-dia, expondo de

forma minuciosa os detalhes da atividade criminosa. Considerava que este esmiuçar do

crime nas colunas da imprensa periódica se tornava “uma verdadeira escola de vícios para

uns e, para outros, pelos sistemas mais hábeis, práticos, mais modernos dos crimes” que

se praticavam, “e tão pormenorizadamente” se noticiavam, “uma lição diária para melhor

luz das suas já afamadas façanhas criminosas”244. Certo é que, posteriormente, também

as práticas ditas marginais (assassínios, suicídios, etc.) seriam ocultadas por via da

censura mas, à época, esta seria uma crítica possível ao sensacionalismo que imperava na

imprensa:

243 “A nova Constituição”. O Democrático, nº 913, 28/05/1932, p. 1. 244 PORTUGAL, Eduardo – “Crimes”. O Democrático, nº 935, 28/10/1932, p. 1. Ver Anexo 8.

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Que bela medida do Governo, se estendesse o lápis azul da sua decretada censura,

a estas novelas de faca e pistola, de gazua e berbequim para que alguns

desgraçados não se iludam e outros não completem, com maior sabedoria os

conhecimentos já infelizmente adiantados da sua arte…245

Usando o exemplo dos frequentes relatos de criminalidade, o semanário sugeriu

uma primeira e hábil forma de crítica ao sistema repressivo-censório nos alvores do

Estado Novo.

No ano seguinte, em 1933, o periódico publicou uma nota oficiosa da Direção

Geral de Serviço de Censura à Imprensa, na qual se procedia ao esclarecimento do tipo

de publicações que estariam sujeitas à censura prévia instituída já pela Ditadura Militar,

com o fim que fosse “utilizada a imprensa como arma política contra a realização do seu

programa de reconstrução nacional, contra as instituições republicanas e contra o bem-

estar da Nação”. Fica claro que O Democrático se incluía nesta lista, uma vez que a lei

abrangia “jornais e revistas, de publicação periódica ou não, incluindo números únicos e

espécimenes”246. Mas também não ousou a crítica direta à censura, uma das matérias

diletas do lápis azul dos censores, embora o jornal a considerasse imprópria e

antirrepublicana, sobretudo quando usada para coartar a liberdade de expressão e opinião,

bases essenciais e naturais da imprensa periódica.

Já em meados de 1936, este semanário apresentou um artigo no qual abordava as

dificuldades que a “pequena imprensa” à época enfrentava, em comparação com a

“grande imprensa”. Evidenciava que o “movimento jornalístico da província” sobrevivia

desajudado de “auxílios materiais”. Por outro lado, “também a ausência de um amparo

moral” escravizava “a sorte da pobre lamparina ou folha de couve – como, por vezes,

desdenhosamente muitos” falavam “do jornal – com a sua ridícula e enfatuada

superioridade”. Com estas e outras reflexões, este texto deixou abundantemente registado

o descontentamento no que dizia respeito às desigualdades e desequilíbrios no tratamento

e oportunidades concedidas à imprensa periódica regional e à chamada “grande

imprensa”. Esta última detinha “grandes e poderosas empresas” e gozava de todas as

245 PORTUGAL, Eduardo – “Crimes”. O Democrático, nº 935, 28/10/1932, p. 1. 246 “Direção Geral do Serviço de Censura à Imprensa”. O Democrático, nº 953, 10/03/1933, p. 3.

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regalias que deveriam ser estendidas aos jornais da pequena imprensa, se justiça

houvesse247. O jornal via esta situação como um erro crasso, pois reconhecia o valor e a

importância da imprensa local. Assim, apontava, uma vez mais, a sua impossibilidade de

ação: “O homem na sociedade não faz o que quer e sim o que a situação e o meio lhe

impõe”248.

Estas palavras traduziam a impotência que o jornal sentia em diversos domínios e

aspetos, eram já a voz do seu estertor. Como já foi mencionado, O Democrático não

sobreviveria às pressões da censura e às cada vez mais restritivas leis de imprensa,

cessando a publicação em finais de 1936. O regime repressivo pôs fim à sua existência,

bem como a tantos outros títulos da imprensa que ainda se arvoravam herdeiros da I

República e crentes no regresso da sua ideologia e valores fundamentais.

4.4.4. Polícia Política

Segundo Maria da Conceição Ribeiro, o “processo da génese da Polícia Política

no Estado Novo que, no período até 1945, tem como momento central a criação, por

decreto de 29 de agosto de 1933, da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE)”,

pode ser caracterizado “como uma gradual centralização das funções de prevenção e

repressão de crimes políticos e sociais num organismo único”, e resultante “da fusão e

reorganização de duas instituições forjadas durante a Ditadura Militar: a Polícia de Defesa

Política e Social – herdeira da Polícia de Informações, também conhecida por Polícia

Especial – e a Polícia Internacional Portuguesa”249. Desta forma, a delação foi prática

corrente durante todo o decénio de 1926-1936.

Em janeiro de 1932, O Democrático abriu uma das suas edições com o primeiro

artigo de crítica feroz à Polícia Política e aos seus delatores, comummente designados

“chibos”. Numa expressão certeira, Duarte de Gusmão descreveu a delação como um

expediente que criava “a traição, a desconfiança”, extinguia “sentimentos generosos”, e

pouco a pouco acabava “por envilecer as classes humildes” onde era “praticada em grande

247 “A pequena imprensa”. O Democrático, nº 2015, 11/07/1936, p. 2. 248 “A pequena imprensa”. O Democrático, nº 2025, 18/09/1936, p. 1. 249 RIBEIRO, Maria da Conceição – A Polícia Política no Estado Novo (1926-1945). Lisboa: Editorial

Estampa, 1995, p. 51.

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escala”250. Para dar corpo ao seu argumento, indicava vários países que, em determinados

períodos da sua história, premiaram a delação e tiveram polícias ao serviço do regime.

Dos casos apontados, destacava-se o mais recente e próximo que era o da Ditadura de

Primo de Rivera, em Espanha (1923-1930), aqui denunciada por um alegado testemunho

de um estudante espanhol de Direito. O académico revelava:

V. não calcula de quantos meios se cercou Primo de Rivera para se sustentar no

poder. Criou uma polícia política especial, [a] «Policia de Informaciones

Politicas», imagem viva da Okhrana [polícia política do czar Alexandre III da

Rússia], quanto às crueldades empregadas. Às vezes, estávamos num café

discutindo os acontecimentos políticos, quando nos avisavam que tivéssemos

cuidado, pois que um agente nos escutava. Eles infiltravam-se entre os operários,

soldados, estudantes. Além disso, tinham os chamados “informadores”,

recrutados em todas as classes. Com essa abominável instituição gastou-se

milhões de pesetas. Mas, apesar de tudo, a ditadura caiu como regime transitório

que era251.

Perante este testemunho, o assinante do artigo concluía que a “abominável raça

dos delatores” haveria de “morrer para honra da mocidade”. “Os únicos seres contra as

quais a delação” seria “um direito e um dever para todos” eram “os espiões e os próprios

delatores: desmascará-los” seria “prestar um serviço à sociedade”, condenando sem

reservas o “emprego da delação”252.

Efetivamente, esta abordagem histórica, que visitava diferentes tempos e lugares,

surgia como a melhor forma de criticar o “agora e aqui”, numa inteligente finta à censura.

Embora evidente e incisivo, o expediente escapou à Comissão de Censura.

Dois meses depois, num artigo sugestivamente intitulado “Liberdade”253, o jornal

continuava a sua crítica à Situação, desta feita pela pena de Pereira de Sousa, que se

lançava contra os violentos mecanismos de repressão das liberdades utilizados pelo

250 GUSMÃO, Duarte – “A Delação”. O Democrático, nº 898, 29/01/1932, p. 1. Ver Anexo 7. 251 GUSMÃO, Duarte – “A Delação”. O Democrático, nº 898, 29/01/1932, p. 1. 252 GUSMÃO, Duarte de – “A Delação”. O Democrático, nº 898, 29/01/1932, p. 1. 253 SOUSA, Pereira de – “Liberdade”. O Democrático, nº 903, 11/03/1932, p. 2.

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Estado e mostrava intensa repugna pelos métodos de tortura adotados pela Polícia

Política. Uma vez mais, a crítica hábil “disfarçava-se” sob a forma de exemplos e

considerações de caráter histórico para melhor se eximir aos riscos do lápis azul. Senão,

veja-se.

O artigo defendia que o uso da “violência para inculcar uma crença” era “sempre

uma má ação”, como era “uma inépcia”: ela podia “promover a obediência mas não a

aquiescência”. Neste sentido, era devido à violência que se confessavam “crimes sem se

praticarem”. Bom exemplo disso havia sido a Inquisição, que “obrigou o nobre, o povo,

a escumalha humilde a envenenarem-se, a guerrilharem-se mutuamente, deturpando a

verdade e… tudo pelo santo nome de Deus”. Também Copérnico, no século XVI, “por

afirmar que a Terra e os astros tinham movimentos de rotação, e estes uma translação em

torno do nosso planeta, foi perseguido pelos jesuítas e «obrigado a desmentir» porque…

tais factos estavam fora das escrituras”. A teoria que se pretendia provar reforçava-se com

o exemplo de Galileu Galilei que, por adotar o sistema proposto por Copérnico,

“proclamando que o centro do mundo planetário era o Sol e não a Terra, e que esta girava

em torno daquele, como os outros planetas que refletem a luz solar”, foi denunciado

“pelos eclesiásticos e convidado a abandonar a sua doutrina”. Contudo, Galileu não

desistiu das suas ideias e uma obra que publicou depois foi considerada uma heresia. Para

“escapar à fogueira foi «obrigado» a abjurar”, perante o Santo Ofício, aquela “tremenda”

blasfémia, “não lhe escapando a serem-lhe partidos os dedos”. Ainda assim, apesar da

intimidação, alegadamente Galileu proferiu a famosa frase, a reiterar a sua tese científica:

“E pur si muove!”254.

Após a detalhada exposição destes casos, o artigo revelou o seu veredito

relativamente aos métodos de tortura: “torturem, massacrem, fuzilem, que nem mesmo

assim põem fim à verdade”. Na ótica do autor, era crime atentar contra a liberdade,

defendendo que “a liberdade de pensamento é a mais bela das liberdades se for respeitada

pelos outros”255. Tratava-se, portanto, de mais um exemplo de crítica indubitavelmente

254 SOUSA, Pereira de – “Liberdade”. O Democrático, nº 903, 11/03/1932, p. 2. 255 SOUSA, Pereira de – “Liberdade”. O Democrático, nº 903, 11/03/1932, p. 2.

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direcionado ao regime ditatorial, por via do recurso a exemplos do passado, em defesa

dos valores liberais e democráticos.

Em 1935, O Democrático transcreveu um artigo retirado do Primeiro de Janeiro,

no qual se informava que o “Ministro do Interior resolveu promover a repressão de todos

os jogos, incluindo os de quino, quadra, bicho e tômbola ou máquinas automáticas”. Neste

sentido, ficaram “incumbidas de exercer essa repressão as polícias de Segurança Pública,

Investigação Criminal e de Vigilância e Defesa do Estado”. Para além de, neste texto, se

darem a conhecer as coimas que seriam aplicadas aos que desrespeitassem a lei, é mais

importante realçar que “o denunciante” de tais casos de infração de “jogo clandestino”

receberia, “como prémio, a importância nunca inferior a 5 contos ou dinheiro que” tivesse

“perdido”256. Neste caso, O Democrático não tece qualquer comentário ao conteúdo da

notícia que transcreve. Talvez o receio da ação da Comissão de Censura tenha contido os

redatores do periódico. Seja como for, esta foi a última vez que o jornal se pronunciou

relativamente a este tópico.

256 “A repressão rigorosa de todos os jogos”. O Democrático, nº 1045, 25/01/1935, p. 4.

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5. A reação republicana ao Estado Novo – o apoio de O

Democrático à luta contra a Situação

A oposição existe em qualquer regime ditatorial e repressivo. Como já se viu,

Portugal não foi exceção e desde o golpe de 28 de Maio de 1926 surgiram no país focos

de oposição, quer no país quer no exílio. Contudo, após a revolta de 26 de agosto de 1931,

o reviralhismo foi perdendo força acabando por desaparecer a partir de 1940. A

consolidação e endurecimento geral da Ditadura do Estado Novo (que liquidou “qualquer

veleidade de sobrevivência da Ação Republicana-Socialista”, agravou “drasticamente a

censura” e iniciou “a grande limpeza saneadora, agora no funcionalismo civil”) foi o fator

que mais contribuiu para o término desta frente opositora257. Ainda assim, O Democrático

apoiou e divulgou ações de oposição ao regime ditatorial: neste período específico, deu

destaque à intervenção e opinião de influentes figuras da República e à ação da Aliança

Republicana e Socialista.

5.1. Figuras republicanas – Afonso Costa

Afonso Costa, um dos mais sonantes nomes do republicanismo, foi “um dos

maiores oradores do seu tempo e adversário determinado das instituições monárquicas e

clericais”. Exerceu “um papel de relevo nos debates políticos que desembocaram na

implantação da República, integrando a direção do Partido Republicano e envolvendo-se

em conspirações contra a Monarquia e o franquismo, que lhe valeram a prisão em diversas

ocasiões”. Implantada a República, foi o autor de “legislação fundamental laicista e

anticlerical do novo regime (decreto de expulsão das ordens religiosas, lei de imprensa,

lei do divórcio, lei do inquilinato, leis da família e de proteção às crianças, lei do registo

civil, lei da separação do Estado e das Igrejas, etc.)”. Após ser deposto “pelo golpe militar

de Sidónio Pais em 5 de Dezembro de 1917”, ficou preso durante cerca de três meses e,

quando em liberdade, remeteu-se ao exílio em França. Não mais voltaria a “exercer

qualquer cargo político em Portugal, renunciando à vida partidária. Porém, caída a

República e instaurada a Ditadura Militar, em 1926, e mesmo permanecendo exilado em

257 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1974), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.

226.

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Paris, Afonso Costa participaria “até à sua morte, em 1937, em numerosas tentativas para

derrubar a Ditadura e o Estado Novo”, integrando “os corpos diretivos da Liga da Defesa

da República (1927-1930) e defendendo, em 1936, a criação de uma Frente Popular que

reunisse todas as forças de esquerda”. Assim, para além de ser uma das mais relevantes

figuras políticas da I República, Afonso Costa, foi também um forte opositor do regime

ditatorial258. E O Democrático patenteou e apoiou esta oposição.

Em 1932, num Portugal tomado pela ditadura, o semanário publicou a transcrição

de uma entrevista dada por Afonso Costa ao Diário de Notícias, na qual o histórico

republicano asseverava: “A República tem de seguir a política de esquerda”. Trata-se,

portanto, de um desafio claro à Situação. Quando questionado diretamente sobre Portugal,

Afonso Costa afirmou que todos os países se deviam adaptar às circunstâncias do

momento atual e que “no nosso país” nada se poderia “fazer sem liberdades públicas

completas e sem o Parlamento”259. Contudo, o estadista conferia mais relevância à

conjuntura económica e à crise capitalista que o país e o mundo atravessavam do que ao

momento político nacional, defendendo a adoção de uma política socialista integral. Veja-

se o excerto:

O capitalismo está ameaçado. Perdeu a sua força. Tem os seus dias contados. A

sua política causou a guerra. Desenvolveu-se ainda depois do conflito. O mundo

só sairá da atual crise económica pela dispensa progressiva do capitalismo na

administração dos organismos económicos. O capitalismo será substituído pela

cooperação dos diversos ramos de trabalhadores, isto é, dos que produzem, dos

que transportam e dos que consomem. O Estado deve facilitar, impulsionar e

organizar ele mesmo a cooperação agrícola e industrial. É talvez o socialismo

integral. Para lá caminhamos260.

258 Afonso Augusto da Costa (1871-1937). Biografias. Fundação Mário Soares, Arquivo & Biblioteca.

Disponível em <http://www.fmsoares.pt/aeb/crono/biografias?registo=Afonso+Costa> [acesso em

11/09/2019]. 259 “A República tem que seguir a política da esquerda”. O Democrático, nº 939, 20/12/1932, p. 3. 260 “A República tem que seguir a política da esquerda”. O Democrático, nº 939, 20/12/1932, p. 3.

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Assim, depois de se reestabelecer “o regime de liberdades”, imediatamente

poderiam ser realizadas muitas reformas – seguindo esta linha que Costa defendia – que

apenas beneficiariam a Nação que se encontrava “debaixo de uma concha, isolada do

mundo inteiro” sem poder “receber o influxo das grandes transformações mundiais que a

crise económica tornou mais imediatas”. Afonso Costa estava persuadido que assim que

se fizesse a transição do regime ditatorial para a Democracia (“quando a Ditadura for

substituída por um regime de liberdades”) apresentaria a sua candidatura a deputado ao

Governo Constitucional e incentivaria à adesão de todos os republicanos, nesse momento

que certamente seria crucial para o futuro da Nação261. Relembre-se que Costa se afastara

da política ativa muito antes do fim da I República (até antes do fim da Grande Guerra na

qual tanto pugnou para que Portugal entrasse) e preferira o exílio mais ou menos

tranquilo. Aliás, a dissensão e dispersão republicanas após o 28 de Maio não foram alheias

à incapacidade de consolidar uma frente unida de oposição à Ditadura.

5.2. Aliança Republicana e Socialista

A Aliança Republicana e Socialista foi um grupo encabeçado por Norton de

Matos, com a colaboração de Tito de Morais e Mendes Cabeçadas, formado em 1931 e

em atividade até 1934, que pretendeu assumir-se como uma espécie de oposição à

institucionalização da União Nacional262:

Com plena delegação de todos os partidos e grupos políticos republicanos e do

Partido Socialista e a colaboração de individualidades que, embora

independentes, podem considerar-se representativas de certas modalidades da

opinião republicana, surgiu esta força política para que, finalmente, tivesse forma

o pensamento, tantas vezes expresso como necessidade premente da união dos

democratas portugueses em volta da sua ideologia comum, e para a defesa, no

261 “A República tem que seguir a política da esquerda”. O Democrático, nº 939, 20/12/1932, p. 3 262 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1974), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.

171.

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estrito campo da legalidade, das legítimas pretensões a que tal ideologia

conduz263.

A 8 de julho do mesmo ano, o diretório da aliança chegou mesmo a solicitar uma

audiência a Óscar Carmona, de forma a reivindicar os direitos do partido264.

Em 1931, O Democrático noticiou a criação da Aliança Republicana e Socialista,

liderada pelo “valoroso português”265, o General Norton de Matos:

Os partidos constitucionais da República acabam de formar uma coligação para,

em ação comum, atuar e orientar para o futuro a grande massa republicana de

Portugal, delineando um programa de Governo, dentro da Constituição. A essa

coligação também deu a sua inteira adesão o Partido Socialista Português que

representa hoje uma presença considerável e inegável no nosso país266.

O semanário evidenciou que o entusiasmo se havia apoderado das hostes

republicanas por todo o país. Os republicanos vila-condenses apoiantes desta coligação

chegaram mesmo a redigir um telegrama de apoio ao militar e político português,

garantindo-lhe a sua colaboração:

General Norton de Matos,

Representantes republicanos coligados do concelho de Vila do Conde,

interpretando o sentimento dos seus correligionários, saúdam entusiasticamente

o Diretório, afirmando-lhe sua inteira solidariedade política, confiados em nova

era brilhante e fecunda que ressurge para a vida da República267.

Assinaram este telegrama António Oliveira e Castro, “pelos socialistas”; Artur

Araújo, “pela Ação Republicana”; Francisco Barbosa “pelo Partido Republicano

263 “Momento Político. Manifesto do Diretório da Aliança Republicana ao país”. O Democrático, nº 870,

10/07/1931, p. 3. 264 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1974), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.

171. 265 “Pela República!”. O Democrático, nº 866, 06/06/1931, p. 2. 266 “Pela República!”. O Democrático, nº 866, 06/06/1931, p. 2. 267 “Pela República!”. O Democrático, nº 866, 06/06/1931, p. 2.

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Português”; João Canavarro, “pela Esquerda Republicana”; Pereira Júnior, “pela União

Liberal”; Sousa Pereira, “pelos independentes”; Pinto Ferreira “pela Seara Nova” e

Domingos Antunes, “pelo Partido Republicano Nacionalista”268.

Consequentemente, o secretário do diretório da Aliança Republicana e Socialista

– Simões Raposo – respondeu ao apoio demonstrado pelos republicanos de Vila do

Conde, dirigindo-se aos seus correligionários com palavras de agradecimento pelo júbilo

confiante no êxito da “aliança republicana” na vila, “atendendo ao prestígio dos que”

estavam “à frente dos trabalhos” iniciados269.

Por outro lado, o jornal informou que, neste ambiente de fervor renovado pela

causa republicana, se verificavam novas adesões ao PRP e se tinham organizado

“comissões municipais e paroquiais na grande maioria das terras do país, todas

secundando o Diretório da Conjunção Republicano-Socialista”, num momento de

“calorosas saudações à República e à Liberdade”270.

Mais uma evidente demonstração de apoio do periódico a este organismo político

foi a publicação do manifesto do diretório da aliança ao país271. As consequências desta

divulgação depressa se fizeram sentir. O jornal divulgou que “por todo o país” se

verificava intensa “ação das comissões republicanas, formadas sob direção do Diretório

da Conjunção Republicano-Socialista”. Além disso, o semanário noticiou – através do

avançado pelos jornais diários – que a aliança havia nomeado uma comissão de

propaganda272.

A última menção a esta aliança ocorreu em finais de 1932, quando o jornal – a

propósito do aniversário do 5 de Outubro de 1910 – recebeu uma mensagem de

felicitações enviada pelo diretório da Aliança Republicana Socialista. A organização

congratulava O Democrático pelo seu empenho na defesa e divulgação da causa

republicana. Adicionalmente, o periódico mencionava que, em Vila do Conde, o

aniversário da implantação da República continuava a ser celebrado com entusiasmo.

268 “Pela República!”. O Democrático, nº 866, 06/06/1931, p. 2. 269 “Vida Republicana”. O Democrático, nº 869, 03/07/1931, p. 2. 270 “Vida Republicana”. O Democrático, nº 869, 03/07/1931, p. 2. 271 “Momento Político. Manifesto do Diretório da Aliança Republicano-Socialista ao país”. O Democrático,

nº 870, 10/07/1931, p. 3-4. 272 “Vida Republicana”. O Democrático, nº 873, 31/07/1931, p. 1.

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Neste ano de 1932 havia sido festejado com salvas de fogo, distribuição de esmolas aos

pobres, ementa especial nas prisões e o hastear da bandeira nacional em todos os edifícios

públicos273. Evidenciando o comemoracionismo do 5 de Outubro, O Democrático

demonstrava que, apesar do país viver sob um signo adverso aos valores que essa data

representava, a memória da República ainda sobrevivia.

273 “5 de Outubro”. O Democrático, nº 932, 07/10/1932, p. 2.

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6. O Democrático e as representações de Vila do Conde

Regido pelo desejo de contribuir para o progresso de Vila do Conde, este

semanário apresentou uma posição fortemente interventiva relativamente aos assuntos

locais. Destemido nas críticas, arrojado nas reivindicações e intransigente na defesa dos

seus princípios, O Democrático lançou-se numa dupla missão. Patenteou e celebrou as

potencialidades e singularidades da vila mas, ao mesmo tempo, visou condenar as falhas,

apresentar possíveis soluções/melhoramentos e incentivar a participação eficiente tanto

dos órgãos de governação local como da população vila-condense na resolução dos

problemas, carências e atrasos do município.

6.1. Características e potencialidades da vila

O Democrático apresentou Vila do Conde como uma localidade verdadeiramente

singular. Dotada de uma notória beleza paisagística e monumental que encantava o olhar,

de um bairro balnear com praias que convidavam à visita dos turistas e de tradições

históricas, artísticas e culturais absolutamente distintas, esta pequena vila – que se via

espelhada no Ave – apresentava já na década de 1926-1936 um elevado potencial a nível

nacional. Aliás, não era incomum o elogio da história e da beleza natural e patrimonial da

“princesa do Ave”, cantada como “delicada, artística, devota”, cujos “grandes

monumentos” atestam a sua “genealogia fidalga”, tendo o Ave como companheiro “que

a viu nascer e crescer em formosura”274.

6.1.1. A beleza e singularidade da beira-mar e paisagem

Consciente das características únicas que a individualizavam, O Democrático

ofereceu grande destaque ao potencial da praia vila-condense. Apresentando-a como um

espaço distinto e singular, no que diz respeito à beira-mar, o periódico insistia na

necessidade de se proceder a melhoramentos neste local, que era considerado um dos

pontos mais atrativos de Vila do Conde. O jornal considerava que a beira-mar se

274 VIEIRA, José Augusto – Minho Pitoresco: Vila do Conde. Valença: Rotary Clube de Valença, 1986-

1987, p. 261.

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encontrava lançada na senda do desprezo e do abandono, o que a tornava objeto de

“críticas desagradáveis” por parte de muitos visitantes que acabavam por preferir outras

praias com maior limpeza e comodidade. A incúria de que a zona balnear era alvo, além

de contribuir para uma má imagem da vila275, revelava-se extremamente prejudicial às

oportunidades de negócios proporcionadas pelo fluxo turístico. Nesta conformidade, o

semanário perseverou nos aspetos práticos de melhoramentos a realizar para colmatar a

situação, como mais adiante se verá.

Na mesma linha, o jornal reconhecia o potencial dos jardins e espaços públicos da

vila que, sendo bem aproveitados e aprumados, criariam agradáveis zonas verdes que

convidariam ao convívio e relaxamento. Porém, não escondia que os jardins se

assemelhavam a “autênticos lameiros, sempre sem modificação alguma”276.

Perante este mau aproveitamento dos recursos de Vila do Conde, o periódico

defendia que a planta da região deveria ser devidamente estudada por profissionais

competentes, de forma a transformá-la de “burgo inestético, com predomínio acentuado

de falta das exigências dos tempos” que corriam, “numa vila moderna em que às suas

belezas naturais, e tão lindas elas são, se alie a feição progressiva da qual a higiene e a

comodidade são principais apanágios”. Neste sentido, propunha que a autarquia

procedesse a vários melhoramentos:

Ruas com o piso convenientemente reparado, jardins tratados cuidadosamente e

com assiduidade, aproveitamento com inteligência das lindas perspetivas que de

vários pontos se desfrutam, embelezando-os de maneira que cativasse os

forasteiros que neles atualmente não encontram senão o que a natureza

prodigamente espalhou na nossa terra277.

Sendo estes alguns dos aspetos aos quais Vila do Conde mais fazia propaganda

para atrair turistas, o jornal tomou como sua missão apontar o que precisaria de ser

275 “A beira-mar da nossa praia”. O Democrático, nº 674, 03/06/1927, p. 2. 276 “A fita da semana”. O Democrático, nº 768, 18/05/1929, p. 4. 277 “Obras Municipais”. O Democrático, nº 910, 29/04/1932, p. 1.

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melhorado, de forma a garantir que as expectativas correspondessem à realidade para que

“os de fora”278 planeassem o seu regresso à vila.

No final, constata-se que, apesar de considerar a beira-mar e a beleza paisagística

como potencialidades e dois dos grandes pontos singularizadores e atrativos da vila, O

Democrático quase se continha ou não oferecia lugar a descrições elaboradas e elogiosas

a estas atrações, focando-se, antes, verdadeiramente na divulgação dos problemas que

precisavam de resolução urgente para que o potencial de Vila do Conde fosse

efetivamente aproveitado e rentabilizado ao máximo.

6.1.2. O património histórico, monumental e artístico

Para além das pulcritudes naturais, Vila do Conde era descrita como uma terra de

cultura, costumes e história incomparáveis. O património monumental e artístico foi

fortemente patenteado nas colunas do periódico e abordado com orgulho e regozijo,

embora sobressaíssem mais as evidentes preocupações com a sua preservação e

manutenção. Ainda assim, monumentos como o Mosteiro e Igreja de Santa Clara e a

Igreja Matriz eram considerados pontos de culto. Esta igreja, que se encontrava em

avançado estado de degradação em 1926, era considerada um “histórico e belo templo”

que deveria ser estimado279.

A antiguidade do Mosteiro de Santa Clara, cuja fundação remonta ao primeiro

quartel do século XIV (1318) bem como as suas funções, inicialmente como casa de

religiosas, eram tema de estudo na época e sê-lo-iam ainda posteriormente:

No regresso da romagem a S. Tiago de Compostela, pousando D. Afonso Sanches

e D. Teresa Martins na sua Vila do Conde, resolveram ambos fundar aqui um

Mosteiro da Ordem de Santa Clara, para amparo das fidalgas pobres em primeiro

lugar, das ricas em segundo, e só na falta delas se poderia admitir outra gente,

contando que a virtude e a limpeza do seu estado suprissem a qualidade que lhe

faltasse no sangue280.

278 “Obras Municipais”. O Democrático, nº 910, 29/04/1932, p. 1. 279 “A Igreja do Convento de Santa Clara”. O Democrático, nº 619, 16/04/1926, p. 2. 280 FERREIRA, José Augusto – Os túmulos de Santa Clara de Vila do Conde. Porto: Tipografia Sequeira,

1925, p. 17.

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Esta imponente instituição “exerceu grande preponderância na vila da foz do Ave.

Senhoras do rio, as donas de Santa Clara oneravam com impostos a circulação no Ave”,

bem como o peixe que nele era apanhado. “Foram também detentoras da jurisdição cível

e crime sobre a localidade até ao reinado de D. João III”. Em finais do século XIX, no

ano de 1893, morreu a última freira, terminando assim a “longa história do Mosteiro de

Santa Clara de Vila do Conde, rosto de um sonho ocorrido na longínqua Idade Média”.

Contudo, a “sua vocação de casa de clausura” permaneceria durante o século XX, “tendo

sido transformada em Casa de Correção e Detenção para menores em 1902”. Mais tarde,

já na década de 1940, “uma missão de Padres Salesianos, transforma-a em Escola

Profissional”, onde aos jovens foi ensinado “um ofício a par de uma filosofia de vida”,

que os tornasse, no futuro, “úteis à sociedade”281.

Por sua vez, a Igreja de Santa Clara, “templo gótico, dos mais graciosos do norte

do país”, destacava-se pelas suas notáveis obras de escultura e arte sacra. Em “forma de

cruz latina, e de uma só nave, construída em magnífica silharia de pedra e no estilo ogival,

é no seu género uma das melhores igrejas conventuais do país”282. Neste espaço

“repousam, em soberbos túmulos, Dona Teresa Martins e D. Afonso Sanches, os

instituidores do Mosteiro de Santa Clara”, assim como os restos mortais de dois filhos

que faleceram ainda infantes283.

De facto, o jornal conferiu e reconheceu grande importância aos monumentos

históricos da vila. Consequentemente, para além das claras preocupações de manutenção

e preservação dos mesmos, propôs a criação de um guia completo tanto dos monumentos

como das praias. Considerava até absurdo que tal ainda não tivesse sido efetuado, numa

terra com tanta potencialidade para a atração turística284.

281 MIRANDA, Marta – Vila do Conde, p. 24-25. 282 FERREIRA, José Augusto – Os túmulos de Santa Clara de Vila do Conde, p. 18. 283 MIRANDA, Marta – Vila do Conde, p. 26-27. 284 “Enquanto é tempo…”. O Democrático, nº 752, 19/01/1929, p. 1.

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6.1.3. Tradição e cultura em Vila do Conde

Ao turismo e aos monumentos históricos juntam-se a cultura e a tradição. As festas

populares religiosas e a arte de rendilhar pelas mãos das mulheres dos Ranchos da Praça

e do Monte foram os exemplos mais significativos apresentados pelo periódico.

As festividades em honra do padroeiro – S. João – eram sem dúvida as maiores

em Vila do Conde, pelo que o jornal dedicou descrições detalhadas aos seus festejos, com

destaque para o entretenimento proporcionado pelos ranchos locais: na véspera, logo nas

primeiras horas da manhã, “o Rancho da Praça, acompanhado pela banda dos nossos

Bombeiros, percorreu as ruas da vila, cantando o hino de S. João. O Rancho do Monte,

pouco depois, também lá do alto do seu parapeito cantava o mesmo hino”. Depois das

primeiras cantigas, seguiam-se os cortejos nos quais os ranchos colocavam em destaque

todo o seu esplendor, nomeadamente a beleza e peculiaridade dos trajes e danças. Mais

tarde, queimava-se uma “grande quantidade de fogo-de-artifício” que coloria o céu

escuro. Chegado verdadeiramente o dia de S. João, realizava-se então a festa religiosa,

“com missa cantada” e à tarde a “majestosa procissão” atravessava os circuitos principais

da vila. “Enfim, festa de alegria cheia de mocidade e folia, o S. João na terra”285.

De facto, a tradição dos ranchos marcava (e continua ainda hoje a marcar) a

história da tradição vila-condense. Profundamente ligada a estas associações populares

está a arte de rendilhar, popularizada sobretudo pelas rendas de bilros, pérola da indústria

regional em pleno século XX.

O Democrático apresentou as rendas de bilros como “uma indústria florescente e

delicada” que dava nome a Vila do Conde. Num artigo assinado por Nuno Beja, o autor

deu conta da impressão com que ficou após ter assistido ao meticuloso trabalho das

pequenas rendilheiras numa visita à sua escola:

Com prazer assisti, há pouco, ao labor de umas poucas de dezenas de raparigas

trabalhando numa sala ampla, arejada, acompanhando o seu trabalho de uma

suave cantiga. Dá gosto visitar esta escola de rendeiras em que crianças muito

pequeninas, de poucos anos ainda, se vão habituando a uma ginástica curiosa em

285 “As festas do Padroeiro”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 2.

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que os dedos como que se desconjuntam na rapidez com que trabalham, a dedicar-

se a uma indústria bela, no futuro um proveitoso ganha-pão para elas286.

Destacou, portanto, o importante papel social que esta atividade representava, na

medida em que constatou que “a mendicidade de crianças” era “relativamente bastante

reduzida nesta terra”, pois “as crianças desde muito pequenas” iam “trabalhar em rendas,

as suas mãozinhas delicadas principiam a habituar-se ao trabalho e não a estender-se à

caridade de quem passa na rua”287.

Neste contexto, torna-se relevante aludir às razões que conduziram a autarquia

vila-condense a apostar na criação de escolas que disciplinassem o ensino das rendas de

bilros, já que a arte de rendilhar era uma prática secular: “Há notícias da elaboração de

rendas de bilros, nesta cidade do Ave, desde 1661, altura em que por pedido das

costureiras” passavam as rendilheiras “a contribuir para a folia da procissão do Corpo de

Deus”, começando assim o processo de divulgação daquela que se tornaria uma arte de

renome288. Enquanto “elementos de uma indústria manufatureira”, as rendas de bilros

“nasceram por motivos económicos”. Numa região em que o sustento de grande parte da

população residia no mar, “tornava-se imperioso, para as mulheres, lançar mão de uma

ocupação que pudesse valer às famílias em época de necessidade”289. De facto, uma vez

que a vida de marinheiro fornecia pouquíssimas garantias de sucesso e/ou segurança para

os que a praticavam, surgia a imposição de, para quem ficava terra, arranjar ocupação que

garantisse o sustento e sobrevivência. Segundo algumas opiniões, eventualmente numa

perspetiva poética, o mar havia inspirado os “arabescos fantasiados pelas ondas nas

rochas nuas da praia, o segredo das rendas afamadas que hoje as vila-condenses fabricam

nas grandes almofadas de bilros”290.

Porém, a crise, “a desenhar-se desde o final do século XIX, provocou um

abaixamento da qualidade das rendas o que levou algumas personalidades a pensarem na

criação de uma escola que alterasse essa realidade”. De facto, as rendilheiras

286 BEJA, Nuno – “Pelo Norte”. O Democrático, nº 670, 06/05/1927, p. 1. 287 BEJA, Nuno – “Pelo Norte”. O Democrático, nº 670, 06/05/1927, p. 1. 288 MIRANDA, Marta – Vila do Conde, p. 69-70. 289 MIRANDA, Marta – Vila do Conde, p. 69. 290 VIEIRA, José Augusto – Minho Pitoresco: Vila do Conde, p. 261.

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encontravam-se “dispersas, sem método, técnicas ou modelo por onde se orientarem”. A

aprendizagem era “realizada de uma forma puramente espontânea, não obedecendo a

qualquer plano pedagógico”. Neste seguimento, em 1919, foi criada uma “Escola de

Rendas em Vila do Conde, posteriormente chamada Escola Industrial de Rendilheiras

Baltazar do Couto”291. Em 1927, esta instituição inaugurou a sua primeira exposição de

rendas de bilros no edifício do Club 1º de Dezembro, “levada a efeito pelo ilustrado e

digno diretor da escola”, Rui Vaz, “com a colaboração das importantes e acreditadas casas

Leopoldina Leal e Flores Torres”. O Democrático relatou este evento com orgulho e

entusiasmo:

Nunca em ano algum nos foi dado o ensejo de ver uma exposição tão interessante,

tão linda e artística. Trabalhos soberbos de perfeição ali se encontram expostos

pela escola […] parecendo quase inacreditável que essas mimosas rendas tenham

sido tecidas, com fios de linho, manualmente, pelas nossas gentis rendilheiras292.

Todavia, e tal continuaria a ser prática corrente, o jornal considerava que a

autarquia não tirava o devido proveito nem promovia as rendas de bilros em conformidade

com o potencial das mesmas. Em 1929, o periódico viu com muito desagrado a ausência

de expositores vila-condenses, principalmente do ramo das rendas, na Exposição de

Sevilha que se realizaria brevemente. Considerava absolutamente imperativo que a

Câmara Municipal, através dos órgãos responsáveis, não poupasse em esforços nas ações

de propaganda e divulgação de tudo o que de único se fazia na vila. Essa boa publicidade

só poderia trazer benefícios293.

Apesar de se manter fiel à sua posição de que muito mais se poderia fazer para

ampliar as potencialidades locais, o jornal celebrava com ânimo os sucessos deste ramo

da indústria regional. Em 1930, divulgou que a Escola de Rendilheiras de Vila do Conde

marcou presença e causou furor na grande exposição do ensino técnico elementar aberta

ao público no Palácio Nacional de Belas Artes de Lisboa. Precisamente por reconhecer o

291 Rendas de Bilros de Vila do Conde: um património a preservar. Vila do Conde: Associação para a

Defesa do Artesanato e Património de Vila do Conde, 2005, p. 26. 292 “Exposição de Rendas”. O Democrático, nº 686, 10/09/1927, p. 1. 293 “Faça-se propaganda”. O Democrático, nº 755, 09/02/1929, p. 1.

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peso da oportunidade neste tipo de eventos, não deixou de reiterar: “a esta iniciativa, das

mais interessantes para a propaganda da nossa terra, empresta O Democrático todo o seu

auxílio, como lhe cumpre”. Acrescentou que seria basilar a união de todos os vila-

condenses em tudo o que se fizesse “para alcançar a expansão máxima da sua indústria

tradicional”294. Parece que os apelos do periódico foram efetivamente ouvidos, uma vez

que, no mesmo ano, se começou a preparar a primeira Exposição de Rendas de Bilros em

Lisboa. O evento seria promovido pela Associação Comercial, sendo os encargos das

despesas responsabilidade da Câmara Municipal e da Comissão de Turismo vila-

condenses, com data de inauguração programada para 22 de março295. Segundo O

Democrático, conhecido o fim da exposição, o balanço foi extremamente positivo.

Considerava que era um evento a repetir, visto que causou um forte impulso à economia

local. As casas expositoras venderam dezenas de rendas e foram efetuadas outras tantas

encomendas que garantiam trabalho às rendilheiras “por muito mais de um ano acudindo

assim à muita necessidade que já se fazia sentir em muito lar”. Foi possível fazer

propaganda à vila graças a importantes títulos da imprensa nacional, tais como O Século,

que noticiaram o evento. Para além dos lucros obtidos com a venda das rendas, conseguiu-

se a troco da venda de postais ilustrados de Vila do Conde a “importante soma de

4.311$50” que reverteram a favor do Hospital da Misericórdia296.

A atividade dos ranchos da Praça e do Monte, para além da exposição e divulgação

da indústria das rendas, também não passou despercebida. O jornal faz questão de

anunciar sempre os grupos que se deslocavam a outras localidades, por vezes até fora do

país, para fazer as suas demonstrações de danças e cantares. Registam-se idas a Coimbra,

Estremoz, Lisboa297, Matosinhos298 e até Espanha299.

294 “As Rendas de Vila do Conde”. O Democrático, nº 800, 25/01/1930, p. 1. 295 “Exposição de Rendas de Vila do Conde em Lisboa”. O Democrático, nº 805, 28/02/1930, p. 1. 296 “A 1ª Exposição de Rendas de Vila do Conde em Lisboa”. O Democrático, nº 810, 04/04/1930, p. 1. 297 “O Rancho da Praça em Coimbra, Estremoz e Lisboa”. O Democrático, nº 970, 01/09/1933, p. 2. 298 “Ao Rancho das Rendilheiras da Praça de Vila do Conde”. O Democrático, nº 979, 22/09/1933, p. 4. 299 “O Rancho da Praça em Espanha”. O Democrático, nº 1067, 20/06/1935, p. 4.

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6.2. Carências, atrasos e problemas regionais

No que diz respeito aos problemas locais, O Democrático defendia que estes

deveriam ser resolvidos com base nos recursos naturais a aproveitar ou a desenvolver na

região e na capacidade financeira para execução das obras de fomento atinentes à

realização desses objetivos. Efetivamente, Vila do Conde possuía “fartos recursos”: terras

férteis; “lavoura adiantada em relação à rotina”; “rede de estradas notável”; condições

para fazer bom porto de pesca e cabotagem; importante aglomerado industrial e um rico

património artístico e cultural300.

Com vista ao aproveitamento destes recursos, o jornal elencou uma série de

aspetos a melhorar: a lavoura carecia de energia barata; a manutenção das estradas

precisava de ser garantida; o porto tinha de ser melhorado; as condições de higiene

precisavam de ser aprumadas; a beira-mar e várias instituições públicas precisavam de

ser preservadas, entre outras matérias.

Contudo, antes de explorar os principais melhoramentos e reivindicações

patenteadas pelo periódico, é pertinente, agora, deixar um importante apontamento

relativo às preocupações d’O Democrático relacionadas com os problemas da

conservação histórico-patrimonial da região e com o desaprumo e atraso da educação dos

vila-condenses.

Como já foi referido, era notória a frustração deste semanário quando apontava o

aparente desinteresse da autarquia no que dizia respeito à preservação dos monumentos

históricos do município, tais como o Convento e respetiva Igreja de Santa Clara, a Igreja

Matriz, a Capela do Desterro e o monumento de comemoração da tentativa de

desembarque liberal em 1832. A indignação era maior e, por consequência, o jornal

ofereceu mais destaque e urgência ao ex-libris vila-condense – a Igreja do Mosteiro de

Santa Clara – cujo estado de degradação constituiu uma das principais preocupações do

semanário em termos de património erigido, acusando “os poderes públicos” de

ignorarem o assunto. Consequentemente, e a contrastar, manifestava-se “uma corrente

favorável” nos vila-condenses que visava “impor ao Estado a obrigação de cuidar do […]

património artístico, concedendo-lhe os meios necessários para se fazerem as reparações

300 “Problemas a resolver”. O Democrático, nº 765, 26/04/1929, p. 1. Ver Anexo 10.

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devidas para que a ruína” não completasse “a sua obra fatal”. E, de facto, alguma

iniciativa foi tomada. O jornal reconhecia o empenho do “ilustre deputado” Cunha de

Araújo relativamente a este assunto, visto que o próprio havia requerido junto do Ministro

da Instrução que fosse “feita uma dotação para as obras de reparação do templo”. Todavia,

o pedido não foi atendido por falta de verbas301.

Por sua vez, também a Igreja Matriz carecia de obras de conservação. A situação

era deveras alarmante, ao ponto de se ter constituído uma comissão – composta pela Junta

da Paróquia, José Ferreira, Tadeu Neves e Alexandre Coentrão – “para levar a efeito

alguns melhoramentos” na igreja, tais como: “cobertura e iluminação do relógio,

levantamento e nivelamento do pavimento do adro, limpeza da cantaria e outras obras de

necessidade”. O jornal dava conta de vários donativos já ofertados a favor da causa302

mas dava também conta de outro problema: “o estado de desarranjo” em que se

encontrava o “órgão do vetusto templo da Matriz”. Sendo esta situação do conhecimento

público, o semanário apelou a que se atendesse a este assunto o mais rapidamente

possível, uma vez que o risco de ruína era iminente303. Até 1936, o periódico não deu

conhecimento de qualquer tipo de reparação efetuada. Efetivamente manteve-se ao longo

do decénio o motivo da inibição à realização de qualquer benfeitoria, ou sequer de

manutenção, a nível do património artístico: a falta de verbas e subsídios para custear

quaisquer obras, fosse em monumentos, fosse em instituições/infraestruturas essenciais à

vida do concelho, como foi o caso da Estação dos Correios e Telégrafos. Este edifício

encontrava-se degradado – “um pardieiro” que mais parecia “um presídio que uma

repartição pública”304 –, já não reunia as condições de segurança e trabalho necessárias

ao seu funcionamento regular. A transição destes serviços para um novo imóvel,

adequado à função, revelou-se complicada e morosa. Após vários impedimentos, em 1935

o jornal noticiou que estaria finalmente a decorrer a mudança desta repartição para uma

nova estação, com novo mobiliário e superior material telefónico305.

301 “A Igreja do Convento de Santa Clara”. O Democrático, nº 619, 16/04/1926, p. 2. 302 “Igreja Matriz”. O Democrático, nº 625, 28/05/1926, p. 3. 303 “O órgão da Matriz”. O Democrático, nº 999, 23/02/1934, p. 3. 304 “Estação telégrafo-postal”. O Democrático, nº 837, 24/10/1930, p. 1. 305 “A Estação dos Correios”. O Democrático, nº 1065, 05/07/1935, p. 2.

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Uma das grandes preocupações d’O Democrático, traduzida em numerosos apelos

veiculados a propósito de diferentes assuntos, foi o combate ao analfabetismo não só no

concelho mas também no país, principalmente com o advento do regime do Estado Novo.

A par desta reivindicação que se insere na matriz demopédica republicana, o periódico

reclamava também a necessidade de aprumar o civismo, a boa educação e o interesse

cultural dos vila-condenses. Daí a sua proposta de iniciativas que apurassem a sede de

conhecimento da população, como é o caso da criação de uma biblioteca pública que

servisse de instituição de cultura, acessível a todas as camadas sociais306. Na sua ótica,

esta aposta na cultura e na educação contribuiria para o avanço das mentalidades e do

sentido cívico.

Esta mudança era urgente pois o jornal retratou em múltiplos textos uma vila na

qual as pessoas caminhavam descalças na rua e as crianças e jovens manchavam as

“paredes caiadas de fresco com palavrões obscenos e caricaturas inadmissíveis”. Uma

localidade na qual os trabalhadores locais não estavam ainda preparados e educados para

saber como beneficiar do limite semanal das 8 horas de trabalho, já que, fruto de uma

“mentalidade retrógrada”, ao invés de abandonar o local de trabalho e aproveitar para

descansar ou ir para casa contribuir para a educação dos filhos, preferiam, “nas horas de

folga, encontrar-se às esquinas ou andar pelas ruas a insultar transeuntes, principalmente

o sexo feminino, que tranquilos e corretamente” passavam. Ao mesmo tempo, criticava

aquilo que considerava ser uma exagerada religiosidade do povo, que seguia “à risca as

doutrinas pregadas por Jesus Cristo” na busca de paz, amor e felicidade, ofuscando os

padrões cívicos e de conhecimento de uma sociedade desenvolvida e moderna307.

No fundo, O Democrático descreveu uma Vila do Conde incapaz de acompanhar

a evolução dos tempos, inábil na integração e seguimento dos parâmetros considerados

normais para a época, enfim, uma população atávica e resistente à modernidade. Num

esforço de pregar a mudança e o progresso, o periódico tratou com profundidade muitos

dos problemas considerados mais graves e urgentes, apresentando propostas de resolução

para os mesmos.

306 “Biblioteca Pública”. O Democrático, nº 895, 08/01/1932, p. 2. 307 SILVESTRE, Rosa – “Vila do Conde civilizada?!”. O Democrático, nº 921, 22/07/1932, p. 1. Ver Anexo

11.

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6.3. Principais melhoramentos e reivindicações locais

Os melhoramentos e reivindicações que O Democrático destacava com verdadeiro

sentido de urgência eram, efetivamente: a contenção das ameaças à saúde pública; a

realização de obras no porto e sua barra; a distribuição de energia elétrica; o

abastecimento de água e saneamento no concelho; a instalação da linha telefónica; a

preservação da zona balnear; o fomento de importantes atividades económicas – tais

como as feiras; a necessidade de garantir estímulo e amparo às instituições de saúde na

vila, de forma a garantir não só a sua sobrevivência, mas também o seu bom

funcionamento e a erradicação da mendicidade flagrante, que não merecia lugar numa

sociedade civilizada e moderna.

6.3.1. A importância da conservação e embelezamento da zona balnear

para a promoção da atividade turística

O Democrático abordou de forma intensa e recorrente a questão do melhoramento

da zona balnear do município, alertando a autarquia para a urgência da sua reabilitação.

Durante toda a década de 1926-1936, e ao longo de todo o ano – mas sobretudo nos meses

que precediam a época balnear, quando esta se encontrava a decorrer e no seu rescaldo –

, o periódico apelava constantemente a que se procedesse à modernização da maravilha

natural que mais atividade turística atraía e que servia de estímulo à economia regional.

Em finais de agosto de 1926, o jornal publicou uma carta redigida por um vila-

condense que considerava urgente virar as atenções da Câmara Municipal para a beira-

mar, “no sentido de a pôr, o mais breve possível, nas devidas condições de zona de

turismo, isto é, no sentido de a pôr em harmonia com as condições de vida próprias do

local”. O autor (anónimo) destacava o estado de “abandono” em que se encontrava a zona

balnear, considerando-a “semisselvagem”, “cheia de dunas de areia” e “quase por

completo vedada ao forasteiro”, o que constituía um “erro gravíssimo”. Perante este

cenário, incentivava a que se formasse “em volta da praia de Vila do Conde um ambiente

novo, de verdadeiro sucesso, um ambiente de empreendimentos de valor” e que desse

“uma ideia firme da sua vitalidade e do seu futuro”. Pedia a máxima diligência destes

melhoramentos, uma vez que a “inauguração dos meios de transporte rápidos e cómodos”,

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por parte da Companhia do Caminho de Ferro e novas iniciativas da Companhia

Portuguesa de Turismo traziam maior número de visitantes e aumentavam a pressão para

a realização dos melhoramentos necessários no município. Tornava-se, portanto,

imperativo aproveitar ao máximo as potencialidades naturais da praia de Vila do Conde

de forma a “cativar e animar o forasteiro” para promover a afluência turística308.

Precisamente por Vila do Conde ser “uma praia considerada de turismo”, o

periódico abordou – sem discordar, antes pelo contrário – a cobrança de uma contribuição

de 10% sobre as “rendas dos prédios alugados durante a época de banhos e as contas dos

restaurantes, hotéis, etc.”. Apesar de ser mais um encargo, “as importâncias arrecadadas

pelas respetivas comissões” seriam “destinadas a melhoramentos das localidades” aonde

fossem cobradas, “conforme manda a lei”. Assim, O Democrático instava a que os

cidadãos cumprissem o seu dever a bem do município e dava exemplos de alguns dos

melhoramentos já alcançados, destacando uma “espécie de restaurante/café na praia de

banhos”, que, entretanto, acabaria por desaparecer, e a construção de uma estrada de

ligação da praia à margem direita do Ave que, embora concluída, deixava “muito a

desejar”, especialmente por falhas técnicas na construção. Embora reconhecesse que os

progressos atingidos haviam sido ainda poucos e com graves lacunas, o jornal

aconselhava a Comissão de Turismo a ser mais cuidadosa no investimento dos fundos ao

mesmo tempo que solicitava a continuação do entusiasmo e apoio de toda a população

local309.

No que diz respeito ao aluguer de habitações na época alta, este semanário apelava

à consciência dos proprietários de casas para arrendar junto da praia, para que tivessem

cuidados de higiene básicos com as instalações. O apelo não era descabido face ao “estado

de imundice e falta de higiene” em que algumas se encontravam, o que comprometia o

arrendamento das mesmas, passando uma má imagem da vila310. Muitos dos turistas que

planeavam ficar, voltavam atrás na sua decisão “por não encontrarem as comodidades e

regalias que encontram noutras praias”311. Repare-se, através deste exemplo das casas de

308 “Interesses locais – a beira-mar da nossa praia”. O Democrático, nº 638, 27/08/1926, p. 1. 309 “Turismo”. O Democrático, nº 667, 14/04/1927, p. 2. 310 “A nossa praia”. O Democrático, nº 669, 29/04/1927, p. 1. 311 “O embelezamento da beira-mar”. O Democrático, nº 680, 22/07/1927, p. 2.

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praia, a relevância da questão de falta de higiene – aprofundada mais adiante – sempre a

exercer o seu efeito negativo na vila, comprometendo inclusive o fluxo turístico. Contudo,

a Câmara Municipal era sensível a esta matéria e, em 1929, aprovou um edital que

estabelecia que todos os prédios destinados a aluguer durante a época balnear deviam

estar devidamente equipados com “fossas mouras”312, “retretes com autoclismo e

deveriam ser caiados interiormente antes de entregues aos inquilinos”313.

Tendo em conta as reivindicações e alguns trabalhos levados a cabo pela

Comissão de Turismo, em 1928, a época balnear abriu com outro fôlego. Procedeu-se à

distribuição de “elegantes impressos, em forma de carnets, fazendo propaganda a Vila do

Conde”; o Casino inaugurou a temporada com espetáculos de música (foi convidada a

imprensa local e correspondentes de diários do Porto e de Lisboa para noticiarem os

melhoramentos efetuados no edifício314) e o Palace-Hotel reuniu melhores condições de

hospitalidade para receber novos clientes. Contudo, o jornal chamou ainda a atenção da

Comissão de Turismo para que se procedesse a obras no balneário da praia315, pois

encontrava-se extremamente degradado316, e insistiu na abertura de um café para que “as

classes menos chics” também usufruíssem da praia317.

Em 1930, inaugurou-se o campo de jogos após a realização de obras profundas318,

tendo o jornal noticiado já a intenção da Comissão de Turismo de dotar a praia desta mais-

valia no ano anterior319. O novo espaço ficou dotado de um “ponto de reunião elegante,

onde às terças, quintas e domingos” se realizavam “chás dançantes” e “diversos jogos”.

Além disso, foi construído um “elegante chalet”, onde era servido o chá e a orquestra do

Casino tocava320.

Quatro anos depois, o periódico informou que, conforme o que saiu nos órgãos de

imprensa diários, fora concedida uma verba – pelo Fundo de Desemprego – de 15.000$00

312 Cavidades subterrâneas para receber imundícies. 313 “As casas do bairro balnear”. O Democrático, nº 762, 05/04/1929, p. 1. 314 “Pela praia”. O Democrático, nº 730, 03/08/1928, p. 4. 315 Este estabelecimento manter-se-ia um problema até 1933, ano em que se realizariam obras de

reabilitação. Cf. “O Balneário”. O Democrático, nº 970, 22/07/1933, p. 2. 316 “A nossa praia”. O Democrático, nº 725, 22/06/1928, p. 2. 317 “Pela praia”. O Democrático, nº 730, 03/08/1928, p. 4. 318 “Campo de Jogos”. O Democrático, nº 831, 12/09/1930, p. 1. 319 “Miudezas”. O Democrático, nº 781, 24/08/1929, p. 2. 320 “Campo de Jogos”. O Democrático, nº 831, 12/09/1930, p. 1.

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para o embelezamento da beira-mar. Esperava-se que este fosse incentivo suficiente para

que os melhoramentos balneares se tornassem uma realidade já na época balnear seguinte

e que a Comissão de Turismo metesse sem demoras mãos à obra na execução de projetos

para esse efeito321. A realidade é que, em 1935, se iniciaram obras no coreto da Avenida

Júlio Graça; na Avenida Brasil, junto ao balneário, em frente ao mar, procedeu-se à

construção de retretes, assim como se inaugurou um bar e uma casa de chá322.

Todavia, as melhorias realizadas ao longo do decénio eram consideradas

insuficientes:

A praia está imensamente carecida de melhoramentos que a embelezem e a

tornem atraente e confortável aos olhos dos que a procuram ou visitam, para aqui

se fixarem durante a época balnear. O pouco que há feito em trabalho

fragmentário e sem obedecer a um conjunto de obras previamente delineadas, é

pouco, imensamente pouco para o muito que é preciso fazer323.

De facto, haviam sido concretizados, ao longo destes anos, vários melhoramentos

mas que não tinham seguido um planeamento coerente e lógico. Efetivamente, nas

palavras d’ O Democrático, “a praia está limpinha… mas é só isso”324 e o seu verdadeiro

potencial não havia sido verdadeiramente aproveitado e devidamente amplificado.

Decididamente, para este órgão da imprensa vila-condense muito havia ainda a fazer para

conferir às praias do concelho maior qualidade e fazer da vila um destino de vilegiatura

balnear apetecível para os turistas e, consequentemente, mais rentável para a economia

local.

6.3.2. Os deficientes cuidados de higiene: uma ameaça à saúde pública

As arcaicas e desadequadas práticas de higiene de séculos passados assombravam

a Vila do Conde do século XX. Nas palavras de Carmo Reis, os perigos inerentes à não

321 “A nossa praia”. O Democrático, nº 1021, 03/08/1934, p. 1. 322 “Pela praia”. O Democrático, nº 1065, 05/07/1935, p. 4. 323 “A Praia”. O Democrático, nº 1073, 30/08/1935, p. 1. 324 “A nossa praia”. O Democrático, nº 971, 28/07/1933, p. 2.

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modernização dos cuidados de salubridade colocavam em grave risco a saúde pública dos

vila-condenses:

O século XX prolonga o século XIX. As condições da saúde não são bastantes

para dilatar significativamente a esperança de vida. Permanecem as carências de

higiene no quotidiano do povo. No concelho e na vila, onde ainda não existe água

canalizada nem esgotos, o perigo de contaminação ameaça pessoas de todas as

idades. O princípio do século não traz consigo horizontes radiosos. São grandes

as impotências perante a doença e a epidemia. Prevalecem velhos hábitos de cura

doméstica, o recurso á superstição e bruxaria. No trabalho em terra e no mar não

há segurança. A morte é espetro que não foge da vida quotidiana325.

Logo no início de 1926, o jornal apontou a falta de higiene como um dos aspetos

mais urgentes a melhorar. Vila do Conde havia sido considerada, “por um decreto de

Governo da República”, uma localidade de turismo. Contudo, apesar de receber este

reconhecimento como uma honra, o periódico considerava que o concelho não

apresentava ainda as condições necessárias para ascender totalmente a esse estatuto,

particularmente no que dizia respeito às práticas de higiene urbana, tanto habitacional

como individual. Neste contexto, elencou as razões que faziam de Vila do Conde uma

localidade com padrões de higiene abaixo dos padrões novecentistas. Por um lado, a

população não tinha ainda “água em quantidade suficiente para o seu consumo diário e

com certas e determinadas condições de qualidade também”. Por outro, “uma terra para

poder ser considerada higiénica” era preciso que fosse “limpa”, o que abrangia tanto a via

pública como os complexos habitacionais. Relativamente à primeira, o jornal exigia

maior cuidado, visto que a via pública estava invariavelmente repleta de excrementos de

animais domésticos e de tração, assim como de resíduos corporais, nomeadamente

expetoração de indivíduos potencialmente portadores de doenças contagiosas, isto é,

quem passava “pelas ruas da vila, às vezes até nas principais” encontrava “verdadeiras

montureiras” onde se juntavam “materiais orgânicos em decomposição, até cheirar mal”.

325 REIS, A. do Carmo – Nova História de Vila do Conde, p. 223.

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Apesar de se considerar que a Câmara Municipal devia ser a grande promotora de

eficazes normas de higiene no município, o jornal reconhecia que numa região com cerca

de 7.225 habitantes não se podia esperar que os problemas de higiene fossem resolvidos

“exclusivamente a cargo da Municipalidade”. Mais uma vez defendia como essencial

investir na educação da própria população, a quem deviam ser incutidos princípios

básicos de higiene. Assim, era necessário que a Câmara Municipal e a população

juntassem esforços para tornar a cidade mais limpa, cabendo à edilidade “dotar a terra

com o que é absolutamente indispensável à prática da higiene” e à população aprender a

não deitar todo o tipo de lixo para a via pública, pois tal atitude propiciava a propagação

de doenças que punham em risco a saúde pública.

O próprio jornal pretendia colaborar na resolução do problema e, para tal, encetou

uma missão de sensibilização para a promoção de melhores práticas de higiene junto da

população. Avultava entre as suas preocupações a questão da limpeza e higiene

habitacionais, divulgando didaticamente uma espécie de tutorial de asseio doméstico,

explicando passo a passo os procedimentos a seguir e os produtos a utilizar de forma a

manter a casa limpa326. Mas contribuiu também com uma série de propostas a serem

adotadas pelo órgão supremo do município. Assim, a Câmara Municipal devia “dividir a

vila em setores – cada um naturalmente constituído por um determinado número de

habitantes – e em cada um daqueles mandar assentar um depósito fixo”, “onde cada

habitante” fosse “lançar diariamente” o seu lixo. Advertia para que o reservatório se

mantivesse bem fechado e que o pessoal da limpeza camarário teria a seu cargo varrer o

setor e esvaziar o respetivo depósito327.

Firme no seu propósito de incitar à mudança e contribuir para o melhoramento das

condições de higiene do município, O Democrático também não se inibiu de tecer duras

críticas à prestação camarária neste domínio. Visou, por exemplo, os serviços de limpeza

pública que não satisfaziam os requisitos básicos para manter a vila limpa, visto que em

“certas ruas” já há muito não passava “a vassoura municipal, como por exemplo na

calçada e escadas de S. Francisco, na travessa 5 de Outubro [e] no Largo do Estaleiro”.

326 “Coisas mínimas de higiene”. O Democrático, nº 615, 20/02/1926, p. 2. 327 “Coisas mínimas de higiene”. O Democrático, nº 612, 23/01/1926, p. 2.

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Vários locais encontravam-se numa “imundice”, até mesmo pontos de culto religioso,

como era o caso da parte exterior da Igreja Matriz, pois havia quem fizesse “de um templo

daqueles retrete ou mictório sem a menor sombra de consideração por ele”, o que era

revelador da “mais absoluta ignorância” e da mais “completa selvageria”. Dado este

cenário, o jornal desabafava, indignado: “Com franqueza, não sabemos para que serve

tanto polícia e tanto zelador na nossa terra”328.

Inevitavelmente, as reivindicações do periódico expressas numa linguagem

contundente chegaram “aos ouvidos” das entidades competentes superiores do município,

tendo surtido efeito. Assim, no mês seguinte a esta campanha, o periódico informou que

os serviços de higiene da vila seriam “intensificados”, sendo que a subinspeção de Saúde

teria já iniciado visitas a hotéis e restaurantes, para que nos mesmos fossem “introduzidos

os melhoramentos necessários”. Adicionalmente, seria também “posto em prática o

serviço permanente de limpeza das vias públicas e remoção do lixo para lixeiras fora do

centro da vila”329.

Todavia, a situação esteve longe de se resolver e, nos anos seguintes, O

Democrático continuou a denunciar o estado de conspurcação da vila, apontando diversos

casos para os quais pedia a intervenção da Câmara Municipal. A “lixeira” que afogava a

rua Joaquim Maria de Melo era um desses focos, pois a “imundice” já transbordava “da

embocadura de uma congosta” que ali existia, avançava “para o passeio daquela rua”, e

corria ao longo do mesmo, afetando locais e visitantes, já que “este cenário” estava

“precisamente montado defronte à Escola de Rendilheiras, estabelecimento do Estado”,

e que de um momento para o outro poderia ser visitado por entidades oficiais330.

Outro fator que na ótica do periódico contribuía para a sujidade nas ruas era a

presença de cães vadios, pois além do problema óbvio dos dejetos na via pública, esses

animais colocavam em risco a segurança da população e conferiam mau aspeto à

localidade, pelo que sugeria que tanto os funcionários da Câmara como a própria polícia

se encarregassem de os recolher, retirando-os das ruas da vila331.

328 “Limpeza Pública”. O Democrático, nº 673, 28/05/1927, p. 2. 329 “Higiene Pública”. O Democrático, nº 676, 18/06/1927, p. 3. 330 “Providências. Duas lixeiras”. O Democrático, nº 751, 05/01/1929, p. 4. 331 “Cães vadios”. O Democrático, nº 800, 25/01/1930, p. 3.

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Percebe-se que o peso das reivindicações aumentava (assim como a gravidade da

situação relativa à saúde pública) quando o semanário publicou uma lista de

determinações relacionadas com a higiene pública elaborada pela subinspeção de Saúde

do concelho por ordem da Direção Geral de Saúde. Advertia-se, logo inicialmente, que

“todas as faltas de cumprimento” das determinações mencionadas seriam “punidas com

a multa de 200$00 a 300$00, a favor dos cofres do Estado”. Entre as instruções deste

documento destacavam-se os cuidados de limpeza a adotar em locais pululados por

grandes quantidades de moscas e outros insetos, uma vez que estes transmitiam ao

Homem “muitas doenças graves”. Pelo facto de o concelho ser fortemente ruralizado

muitas das advertências relacionavam-se com os cuidados de higienização na atividade

agrícola332.

A questão turística era sempre tida em conta pelo jornal que explicava que o lixo

amontoado em algumas das principais artérias da localidade limitava a atratividade de

uma das mais proeminentes atividades económicas de Vila do Conde – a zona balnear,

junto às praias, que seduzia os turistas na época estival:

O nosso bairro balnear está simplesmente indecente, amontoando-se o lixo pela

rua Bento Freitas abaixo. Esta rua está em tal estado que, há dias, veio uma

família procurar casa para passar a época balnear e, perante aquela limpeza,

desistiu e lá foi para outra praia, fazendo um triste comentário: «Quando isto é no

verão, o que será no inverno». [Outro] comentário de um banhista que já se

encontra entre nós: «Este lixo já é meu conhecido; deixei-o cá em outubro

passado…»333

Dando voz a protestos da própria população, este periódico mencionou que A

União, outro semanário local, publicara nas suas colunas uma carta de um habitante da

rua Joaquim Maria de Melo “a reclamar por causa do lixo” que estava “acumulado na

viela dos Gatos fazendo, assim, coro com as insistentes reclamações” que O Democrático

332 “Saúde Pública”. O Democrático, nº 812, 19/04/1930, p. 2. 333 “Coisas sem importância”. O Democrático, nº 824, 28/07/1930, p. 2.

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tinha vindo a fazer sobre o importante assunto da limpeza e saúde públicas, provando que

esta preocupação se generalizava nos órgãos da imprensa periódica local334.

Em bom rigor, a falta de salubridade não se verificava apenas nos edifícios

habitacionais particulares e na via pública. Também os estabelecimentos públicos que

manuseavam géneros alimentares enfermavam do mesmo problema. E a comprovar, uma

vez mais, esta situação, O Democrático publicou a correspondência da freguesia de

Mindelo, requerendo que o semanário chamasse a atenção do subdelegado da Saúde,

André dos Santos, relativamente “ao estado anti-higiénico” em que se encontravam

“instalados vários talhos em diferentes freguesias”, pois que alguns deles mais pareciam

“aidos de gado do que talhos”, ao contrário do que as posturas municipais

determinavam335.

Nesta conformidade, o periódico insistiu na urgência de execução de “uma

rigorosa fiscalização” sobre “os géneros destinados ao consumo público, nomeadamente

ao peixe, à fruta e às carnes”, sem esquecer as “más condições de higiene no matadouro

municipal”. A título de exemplo, o periódico expôs algumas ações precisamente no

tocante a práticas de fiscalização regular aplicadas em Matosinhos, apelando que o

mesmo fosse implementado em Vila do Conde, sobretudo relativamente aos bens de

primeira necessidade336.

Com efeito, a carne e o leite estiveram na mira d’O Democrático que denunciou

frequente e vivamente a “deficiência de fiscalização no gado que pela vila e freguesias do

concelho” se abatia “para consumo público”, considerando-a uma das principais ameaças

à saúde pública. Apesar de estar estipulado por lei que a matança do gado bovino devia

ser obrigatoriamente efetuada no matadouro municipal, havia proprietários que

continuavam a matar “clandestinamente as outras qualidades, especialmente os suínos,

destinados ao consumo público”. A comprovar a situação, o jornal publicou relatos de

casos específicos de animais que, apesar de visivelmente enfermos – atingidos por

meningite ou com membros partidos em consequência de outras doenças – eram abatidos

pelos proprietários e a sua carne colocada à venda em locais de comércio público. De

334 “Notas. Limpeza”. O Democrático, nº 875, 21/08/1931, p. 1. 335 “Saúde Pública”. O Democrático, nº 623, 15/05/1926, p. 3. 336 “Saúde Pública”. O Democrático, nº 880, 25/09/1931, p. 2.

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maneira a mostrar como o município deveria lidar com este tipo de situações, o semanário

evidenciou o exemplo de medidas adotadas na Maia, nomeadamente a construção “de um

matadouro com todos os requisitos higiénicos” imprescindíveis e a “municipalização dos

serviços de matança”337.

Quando a tão desejada fiscalização de alimentos como o leite e a carne era

efetuada, os resultados obtidos eram devastadores o que enfatizava a premência de

controlos regulares. Com efeito, apareceu inesperadamente em Vila do Conde “uma

brigada de funcionários da fiscalização dos géneros alimentícios” que efetuou uma “larga

colheita de amostras de leite” e carne, destinados ao consumo público338. No que diz

respeito às amostras de leite recolhidas e posteriormente remetidas a Lisboa a fim de

serem submetidas a análise, verificou-se que dez “eram impróprias para consumo por

falsificação”. As várias leiteiras infratoras foram julgadas, em tribunal especial, sendo-

lhes aplicadas multas a serem pagas no prazo de 5 dias “sob pena de, não o fazendo,

recolherem à cadeia 6 meses”. Note-se que O Democrático fez questão de publicar os

nomes completos e freguesias de residência de todas as “mixordeiras” prevaricadoras,

com o intuito de fazer das mesmas um exemplo de humilhação pública, dada a gravidade

dos seus atos339.

Nos inícios de 1936, o jornal transcreveu integralmente um artigo de O Cávado –

periódico de Esposende – no qual se evidenciava a carência de higiene e asseio da

população que, naturalmente, O Democrático acreditava aplicar-se também aos vila-

condenses. Apontava-se a mentalidade retrógrada e absurda de grande parte da população

que se mantinha avessa a hábitos de higiene pessoal, pelo que o banho deveria ser

obrigatório tal como a vacina, tal era a “imundice” que se propagava340.

Com efeito, a par das críticas à falta cuidados sanitários a nível dos espaços

exteriores e dos produtos alimentares, também as recriminações às práticas de higiene da

população pululavam as colunas deste periódico durante toda a década de 1926-1936,

337 “A municipalização e rigorosa fiscalização da matança do gado para consumo público é uma

necessidade”. O Democrático, nº 920, 15/07/1932, p. 2. 338 “Fiscalização de géneros”. O Democrático, nº 969, 14/07/1933, p. 3. 339 “Mixordeiras”. O Democrático, nº 973, 11/08/1933, p. 2. 340 VIANA, Mário Gonçalves – “A água é grátis”. O Democrático, nº 1098, 06/03/1936, p. 2.

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denotando-se a sua frustração em não assistir a qualquer evolução positiva das

mentalidades.

6.3.3. A questão da linha telefónica: ligar Vila do Conde ao Porto

A primeira referência alusiva à reivindicação do estabelecimento de uma linha

telefónica que ligasse Vila do Conde ao Porto, no arco temporal em estudo, surgiu na

edição de 3 de abril de 1926. Porém, o jornal destacou que este era um dos melhoramentos

pelos quais a vila vinha “pugnando desde há muito” mas sem efeitos práticos até à data341.

Por um lado, reconhecia que tinham sido dados passos sérios para a resolução

deste melhoramento (inclusive a intervenção da Junta Geral do Distrito), chegando

“pessoas categorizadas” do meio “a encetar trabalhos” em colaboração com a vizinha

Póvoa de Varzim, que pretendia também adquirir a tecnologia em questão. Contudo, nada

de frutuoso resultara dos trabalhos preparatórios que em tempos se haviam realizado342.

Efetivamente, as divergências relativamente ao processo de concessão da linha

telefónica apresentavam-se como o maior empecilho. Quer isto dizer que os membros do

periódico se dirigiram à vizinha Póvoa do Varzim, procurando “saber o que por lá se

pensava em matéria de telefones”. Ao que consta, “à Póvoa, só interessava o

estabelecimento da linha telefónica por parte da Companhia” que tinha “o exclusivo na

cidade do Porto, como a mais vantajosa para os interesses da terra, ao contrário da que

seria estabelecida por conta do Estado, com mais reduzidas vantagens”. Qual seria então

a melhor escolha? Optar por uma Companhia concessionária privada ou pelo Estado? O

periódico reconhecia que não se podia continuar neste impasse: “Estamos, pois, como o

tolo no meio da ponte, sem se decidir a atravessá-la ou a retroceder”. Propôs que ou a

Câmara Municipal ou a Associação Comercial convocasse “uma reunião” onde se tratasse

“o assunto com largueza de vistas” e se discutissem “os pontos divergentes” e de lá sairia

a indicação clara do que seria mais profícuo. Recomendava ainda que se entrasse em

contacto com a Póvoa de Varzim, de forma a averiguar a decisão tomada pela terra

vizinha, sendo que seria certamente vantajoso se ambas as localidades optassem pela

341 “Questão do momento: a linha telefónica”. O Democrático, nº 617, 03/04/1926, p. 1. 342 “Questão do momento: a linha telefónica”. O Democrático, nº 617, 03/04/1926, p. 1.

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mesma solução, visto que “a força da vontade de duas terras mais rapidamente”

pressionaria “as estações competentes a porem em andamento os trabalhos preliminares

e depois os de execução da linha”. Todavia, esclarece: se “divergirem do nosso critério

trataremos nós sozinhos de dar execução ao melhoramento que tanto nos interessa”343.

Note-se que, apesar de declarar que se encontrava num impasse relativamente ao

melhor caminho a tomar, O Democrático revelou a sua posição, demonstrando algumas

preocupações e reservas caso a decisão final fosse optar pela Companhia concessionária

do Porto: “abalançar-se-á essa Companhia a estabelecer a linha para Vila do Conde sem

que aqui lhe garantam o número de assinantes que ela fixar e que a população e exigências

comerciais e industriais não possam suportar?”344.

Nesta toada, foram publicadas declarações e correspondência de “figuras ilustres”

que partilhavam das mesmas opiniões apresentadas pelo periódico relativamente à

instalação da linha telefónica. O objetivo seria, provavelmente, persuadir a opinião

pública, convencendo-a de que a melhor opção seria escolher a concessão do Estado.

Logo o primeiro exemplo destas vozes convergentes com O Democrático foi uma

carta redigida por “uma voz amiga […] do Porto”, José Meneres, “homem de prestígio”,

na qual o autor concordava com as questões que o semanário levantava, incentivando a

luta pela instalação célere da linha telefónica, pois considerava que esse seria um

melhoramento de primeira ordem para o município. No que diz respeito à concessão,

defendia que se devia optar pelo “telefone do Estado”, “por ser mais económico de

assinatura, o de mais fácil ligação com a rede geral do Estado e de mais rápida realização”.

No que concerne à chegada de um entendimento entre os dois concelhos vizinhos,

Meneres era de opinião que esperar que a Companhia dos Telefones trouxesse a Vila do

Conde e à Póvoa as suas linhas era “uma utopia” que só servia “para enredar a efetivação

deste melhoramento”. Neste contexto, recordou a tentativa falhada de trazer a linha

telefónica às duas cidades através da The Anglo-Portuguese Telephone Company:

“Portanto se Vila do Conde quer ter telefone, o que precisa como quem tem fome e precisa

de pão, tem apenas um caminho a seguir, e esse, sabe-o muito bem a […] Câmara qual

343 “Questão do momento: a linha telefónica”. O Democrático, nº 617, 03/04/1926, p. 1. 344 “Questão do momento: a linha telefónica”. O Democrático, nº 617, 03/04/1926, p. 1.

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é”. Ficava, então, claramente patenteada a opção pela concessão do Estado e, desta forma,

O Democrático apresentou um exemplo de apoio específico à sua tomada de posição345.

Outro exemplo foi a publicação de um texto de Pires Monteiro, Tenente-Coronel

e deputado, que concordava com a urgência do estabelecimento de uma linha telefónica

que ligasse o Porto a Vila do Conde e a Póvoa de Varzim: “Não se compreende que tão

importantes centros industriais e estações de turismo tão concorridas na época balnear

estejam, em pleno século XX, desligadas da maior cidade do Norte. É civilizadora a

campanha patriótica de O Democrático”. Apontou também a importância desta ligação

para o Instituto de Socorros a Náufragos, visto que “uma linha telefónica ao longo da

costa ou ligando os diferentes pontos da costa com a cidade do Porto” prestar-lhe-ia “um

importante auxílio na sua missão altamente humanitária”. Ao mesmo tempo, uma

comunicação telefónica beneficiaria também “o problema magno da defesa nacional no

seu aspeto da defesa terrestre e aérea da nossa extensa fronteira marítima e a soberania

das nossas águas territoriais” que exigia “uma ativa e persistente fiscalização”. De forma

a mencionar esforços passados, recordou quando, em 1924, recebeu “uma representação

[por diligência da Comissão de Iniciativa de Turismo local] no sentido de ser instalada a

linha telefónica”, sendo mesmo indicado o local onde deveria funcionar a estação central.

Finalmente, revelou que estudou as duas hipóteses, conferenciando com os diretores da

Companhia dos Telefones e com os técnicos da Administração dos Correios e Telégrafos.

Acabou por reconhecer que a opção mais vantajosa e rápida era a linha do Estado. Dito

isto, Pires de Monteiro conferia o seu apoio à causa defendida por este periódico e

alvitrava sem rodeios que a “única solução rápida” seria “solicitar da Junta Geral do

Distrito [...] o estabelecimento da linha telefónica por conta do Estado”346.

Firme na sua convicção, O Democrático sentia-se reconhecido por a sua voz estar

a ser ouvida pelas entidades competentes, declarando que tanto o Presidente da Comissão

Executiva da Câmara Municipal (José Maria Ferreira) como o da Associação Comercial

(Alexandre Coentrão) se encontravam empenhados para que a “instalação da linha

telefónica” fosse “um facto dentro em breve”, esclarecendo ainda que “face aos trabalhos

345 MENERES, José – “Questão do momento: a linha telefónica”. O Democrático, nº 619, 16/04/1926, p.

1. 346 MONTEIRO, Pires – “Linha telefónica. Porto – Póvoa”. O Democrático, nº 620, 23/04/1926, p. 1.

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já iniciados na vereação” se estava “na resolução de adotar o princípio da instalação da

linha telefónica por conta do Estado”, como aquela que mais interessava no momento.

Sendo já aceite que a The Anglo Portuguese Telephone Company não conseguia alargar

o seu raio de ação para além dos 20 quilómetros, tomando como centro o Porto, o jornal

não via senão possível “aceitar a resolução tomada da instalação da […] rede telefónica

ser feita pelo Estado”. Ficou, então, assente relativamente a Vila do Conde que a Câmara

Municipal, “entendida com a Junta Geral do Distrito, devia aproveitar os trabalhos, já

iniciados pela anterior vereação, para a instalação da rede telefónica a explorar pelo

Estado”. Com toda a certeza, a oposição da Póvoa de Varzim a esta solução surgia como

uma grande preocupação mas o jornal esperava que aquela entendesse a decisão dos vila-

condenses em enveredar pela opção estatal em detrimento da privada, por acreditarem ser

a melhor solução347.

Neste ambiente favorável, o jornal mostrava-se confiante que, graças à campanha

que vinha empreendendo e a julgar pela “diretriz dada aos trabalhos iniciadores”, a linha

telefónica tinha “todas as viabilidades de triunfo”. Perante o apoio do deputado Pires

Monteiro à causa, o periódico asseverava que a sua “tão justa causa” teria “uma defesa

esforçada”, patrocinando-a onde ela tivesse de ser resolvida e “fazendo remover toda e

qualquer dificuldade burocrática” que aparecesse. Jogando em várias frentes, confirmou

o apoio da Junta Geral do Distrito, através de uma “entrevista preliminar” com o próprio

presidente Álvaro Pimenta. A “aspiração” da Junta era concorrer para que se fizesse a

“ligação de Vila do Conde e Santo Tirso ao distrito com o Porto”, uma vez que ambos os

concelhos apresentavam esta pretensão, esta deveria ser atendida “com todo o

entusiasmo”. Com o surgimento desta nova informação, ficava absolutamente

estabelecido que a Póvoa de Varzim mantinha um ponto de vista diferente do de Vila do

Conde relativamente à instalação da rede telefónica. Ainda assim, o periódico esperava

que, após deliberação com as entidades competentes (Associação Comercial e Câmara

Municipal), a “vizinha Póvoa” optasse pela “construção da linha do Estado, porque no

momento ou no futuro próximo ou longo” nenhuma outra teria “viabilidade”: “que toda

a vereação Povoense veja que a The Anglo Portuguese Telephone Company jamais

347 “Questão do momento: a linha telefónica”. O Democrático, nº 620, 23/04/1926, p. 2.

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conseguirá do Estado a ampliação do raio de ação que usufrui, porque a Administração

Geral dos Correios não lho consente, por mais esforços que se empreguem”. Chegaram

informações de um membro da Associação Comercial da Póvoa de Varzim que tinha

conhecimentos sobre o “funcionamento da linha telefónica de Famalicão” que era do

Estado. Sabia-se que “no primeiro mês de funcionamento da linha, se fizeram muitas

centenas de chamadas que renderam ao Estado cerca de 1.500$00 e que a assinatura de

um telefone custa a insignificância de 100$00 escudos anuais”. Assim se provava, com

mais este testemunho, que a melhor opção era indiscutivelmente a linha do Estado. O

semanário mostrava-se convicto que, na época balnear seguinte, já seria possível

comunicar com o Porto e que a Póvoa de Varzim, perante todos as informações

disponíveis, se decidiria pela linha telefónica do Estado348.

De facto, como se tem vindo a explanar, O Democrático não desistia de convencer

a Póvoa de Varzim a participar no estabelecimento conjunto da linha telefónica, mesmo

que isso significasse ceder à solução que considerava mais vantajosa. Senão veja-se.

O periódico deu conta da reunião ocorrida entre os representantes da Câmara

Municipal e a Associação Comercial da Póvoa de Varzim: o senador Santos Graça e

Herculano Augusto Pereira Ramalho, diretor deste jornal. A finalidade da reunião “era

acordar-se na melhor forma de se poder construir a linha telefónica que do Porto devia

servir as duas importantes vilas”. De um lado, Santos Graça recordou os trabalhos

realizados anteriormente e defendeu que a melhor solução era fazer com que o Governo

autorizasse a The Anglo Portuguese Telephone Company a alargar o seu raio de ação

mais 30 quilómetros, sendo que a construção da linha por esta empresa seria a solução

mais benéfica para ambas as vilas. Estava persuadido de que com a colaboração dos

representantes locais no Parlamento e com os da cidade do Porto, aos quais se juntaria “a

prestante cooperação da Câmara Municipal e da Associação Comercial do Porto”, seria

possível conseguir do Governo a ação necessária. Do outro lado, Herculano Ramalho, o

presidente da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim (João Dias) e o representante da

Associação Comercial da Póvoa (Joaquim Martins da Costa Júnior) reuniram-se, tendo

decidido que os “representantes das suas corporações e o diretor de O Democrático se

348 “Ainda e sempre a linha telefónica”. O Democrático, nº 621, 30/04/1926, p. 2.

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dirigissem no dia 11 ao Porto a fim de solicitarem das suas congéneres todo o apoio para

a representação a enviar ao Governo”. Foram, com efeito, bem recebidos na Associação

Comercial e na edilidade portuense, alcançando inclusive a “promessa formal de um

decidido apoio no pedido a formular ao Governo pelas duas vilas interessadas para o

alargamento do raio de ação a conceder à companhia dos telefones” que explorava “estes

serviços no Porto”. Neste seguimento, a nova instância de negociações era Lisboa, junto

do Governo, e se elas falhassem, como se receava, seria “adotado o estabelecimento da

linha telefónica por conta do Estado, ao abrigo da lei nº 1644”349.

Em setembro de 1927, surgia finalmente um avanço palpável: ficava oficialmente

“aberta a inscrição de assinaturas para os telefones” que dentro em breve funcionariam

“entre esta vila, Porto e outras localidades” e os interessados deveriam dirigir-se ao

estabelecimento da Construtora Lopes e Companhia para iniciar o processo350.

O jornal anunciou então que, a partir de 3 de dezembro desse ano, “pelas 13 horas,

[…] na Estação Telégrafo Postal” seria “oficialmente inaugurado o telefone” da vila “com

a cidade do Porto”. A satisfação do periódico era notória: “uma velha aspiração da nossa

terra é este melhoramento, debaixo de todos os pontos de vista, importantíssimo. Para o

ato estão convidadas várias personalidades da nossa vila e imprensa local”351. Na edição

seguinte, a 10 de dezembro, as primeiras impressões após a bem sucedida instalação da

linha telefónica em Vila do Conde tiveram honras de primeira página:

Rejubila a nossa terra por estar na posse de mais um notável melhoramento de

indiscutível valor e interesse público, como é o serviço de telefones, que nos faz

assim ter ligado a nossa terra com as várias localidades possuidoras já deste meio

de transmissão e, muito especialmente, com a capital do Norte, a terra importante

em todas as manifestações da vida, com quem estamos em mais íntima e

permanente ligação352.

349 “A Linha Telefónica”. O Democrático, nº 623, 15/05/1926, p. 2. 350 “Telefones”. O Democrático, nº 686, 10/09/1927, p. 2. 351 “Telefone”. O Democrático, nº 698, 02/12/1927, p. 2. 352 “O dever cumprido”. O Democrático, nº 699, 10/12/1927, p. 1.

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Todavia, volvido um ano, a missão não se encontrava ainda totalmente cumprida.

Apesar da reconhecida importância da comunicação que se tornara possível realizar com

o Porto via telefone, tornava-se imperativa a instalação da rede urbana para que as

restantes freguesias do concelho tivessem acesso a idêntica beneficiação. As informações

que iam chegando ao periódico eram animadoras. A Comissão de Iniciativa de Turismo,

secundada pela Associação Comercial, acabaria por receber informes da Direção Geral

dos Correios e Telégrafos de que, em breve, principiariam os trabalhos para a instalação

da rede urbana353.

Meses depois surgia a primeira referência à inauguração da rede telefónica numa

freguesia: Vilar do Pinheiro. Sem surpresa, O Democrático descreveu as celebrações de

inauguração com entusiasmo, aguardando por mais momentos semelhantes em outras

localidades do concelho354. Embora dilatadas no tempo, as inaugurações seguintes deram-

se em Mosteiró, Mindelo355, Gião e Malta356 (o processo teve naturalmente continuidade

mas já fora do período cronológico em estudo).

A inauguração oficial da rede telefónica ocorreu por meados de dezembro de

1929, no edifício da Câmara Municipal e contou com a presença de vários membros do

Governo357. Entre as comemorações, foram nomeadas várias telefonistas e o “número dos

telefones diretos dentro da vila” elevava-se “a 51 e 15 indiretos, tendo sido já requisitados

mais”358.

Esta questão da linha telefónica serve como um dos maiores exemplos de

perseverança de O Democrático, colocando em evidência o seu carácter fortemente

interventivo em prol de todos os assuntos que promovessem o progresso da Vila do Conde

do século XX.

353 “Interesses locais: telefones”. O Democrático, nº 756, 22/02/1929, p. 4. 354 “Em Vilar do Pinheiro é inaugurada a rede telefónica e uma cabine pública”. O Democrático, nº 772,

22/06/1929, p. 2. 355 “Pelas aldeias”. O Democrático, nº 846, 03/01/1931, p. 4. 356 “Pelas aldeias”. O Democrático, nº 1048, 15/02/1935, p. 4. 357 “Vila do Conde: número comemorativo do centenário do nascimento do Dr. Jorge de Faria”. Boletim

Cultural da Câmara Municipal de Vila do Conde, nº 4, 1989, p. 84. 358 “Melhoramentos locais. Foi no domingo passado, inaugurada a linha telefónica”. O Democrático, nº

796, 21/12/1929, p. 2.

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6.3.4. “Trevas, não. Luz, sim”359

Em 1926, Vila do Conde usufruía já das vantagens inerentes ao fornecimento de

eletricidade. Porém, a rede elétrica instalada no município revelava-se ainda insuficiente,

pois não chegava a todas as freguesias, era demasiadamente cara e com falhas de

funcionamento graves.

De facto, o fornecimento de luz era tão irregular que a imprensa periódica local

debatia fortemente este assunto à procura de soluções. O Democrático deu destaque a

uma notícia publicada pelo semanário A União, na qual um dos colaboradores deste

periódico – Tadeu Pereira Neves, que assinava “Pórfiro” – fazia uma proposta à

Companhia Hidroelétrica relativamente ao “fornecimento de energia elétrica ao público

a $60 o quilowatt, com as vantagens de” ser “dada luz toda a noite e ainda durante o dia

para usos industriais, podendo algumas freguesias usufruir este tão grande como

incalculável benefício, o que tudo seria levado à efetivação dentro do prazo máximo de 3

meses”. O Democrático conferia credibilidade a esta sugestão, uma vez que Tadeu Pereira

Neves não era um novato nestas querelas pelo melhoramento da eletricidade em Vila do

Conde, tendo já colaborado nas colunas deste periódico:

«Pórfiro» não deixa de ser o nosso amigo Tadeu Pereira Neves que, em tempos,

a uma chamada nossa por crítica ao contrato da luz elétrica, tratou nas colunas de

O Democrático de uma maneira, clara, detalhada e com argumentos

irrespondíveis tão magno assunto e de tal forma o fez que obrigou a Companhia

a apressar o fornecimento de luz elétrica à nossa terra que parecia travado

eternamente360.

Desta forma, o jornal garantiu que esta sugestão tinha “todas as garantias de seriedade e

eficiência”, não se tratando apenas de um “bouquet de pirotecnia para deslumbrar as

gentes”361. Por outro lado, ficou também registada uma demonstração da influência que

a imprensa periódica detinha na época em Vila do Conde (como aliás no resto do país)

359 “Trevas não, luz sim”. O Democrático, nº 637, 20/08/1926, p. 3. 360 “A tão decantada luz elétrica”. O Democrático, nº 637, 20/08/1926, p. 2. 361 “A tão decantada luz elétrica”. O Democrático, nº 637, 20/08/1926, p. 2.

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dado que a maioria dos responsáveis pelos periódicos eram cidadãos influentes, com

estatuto social elevado.

Escusado será dizer que foi avassalador o entusiasmo que rodeou esta revelação,

visto que as condições de fornecimento de energia elétrica no concelho eram irregulares

e de duração reduzida. Normalmente, o funcionamento da eletricidade começava apenas

às 21 horas, terminando às 2 horas da madrugada – ou seja – apenas cinco horas diárias

de eletricidade por 1$70 o quilowatt. Ficar-se-ia a aguardar a resposta da Companhia a

tal proposta e que atitude tomaria a Câmara Municipal caso o feedback da empresa fosse

negativo362.

No entanto, o jornal não apresentou seguimento à proposta feita à Companhia

Hidroelétrica, visto que a opção – como se verá – seria pela municipalização.

De facto, o semanário patenteou uma indignação crescente ao constatar que o

problema da eletricidade não tinha resolução à vista, dirigindo-se à companhia

concessionária da vila – Electro-Hidráulica de Portugal – com duras palavras de

insatisfação pelas razões que já se conhecem. Os problemas no fornecimento da

eletricidade durante a noite permaneceram e a população encontrava-se em estado de

revolta. Além disso, o jornal apontava as consequências negativas que as intermitências

constantes do serviço de iluminação causariam na realização das festas noturnas do

município363.

Em 1927 pareceu chegar o auxílio necessário. A Comissão Administrativa da

autarquia fez aprovar um empréstimo de cerca de 2.000 contos “para serem empregados

exclusivamente no abastecimento e fornecimento de água e municipalização dos serviços

de luz”. Embora se considerasse uma quantia modesta, o jornal não desvalorizou a

conquista e aguardava avanços364, que foram, todavia, lentos. Cerca de dois anos depois,

em julho de 1929, a Câmara Municipal aprovou outro empréstimo no valor de

1.500.000$00 “a contrair na Caixa Geral dos Depósitos”, destinado, uma vez mais, tanto

ao abastecimento de água para a vila, como de luz para as freguesias do concelho365.

362 “A tão decantada luz elétrica”. O Democrático, nº 637, 20/08/1926, p. 2. 363 “A eterna questão da luz”. O Democrático, nº 646, 30/10/1926, p. 2. 364 “Melhoramentos locais – luz, água e saneamento”. O Democrático, nº 687, 16/09/1927, p. 1. 365 “Empréstimo municipal”. O Democrático, nº 775, 13/07/1929, p. 2.

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A chegada de dinheiros do Estado fazia conjeturar bons presságios. Porém, em

1930, a eclosão de uma crise camarária e consequente criação de uma nova Comissão

Administrativa trouxeram ao de cima a questão da municipalização da rede de

eletricidade levada a cabo pela anterior comissão. Acontece que a nova Comissão

Administrativa fez aumentar o preço da luz de 1$44 para 1$80 por quilowatt. O jornal

revelou que não existiram insurgências a registar relativamente a este aumento, uma vez

que as razões apresentadas foram convincentes. Contudo, o caso mudou de figura quando

a autarquia fez ressuscitar a cobrança de um consumo mínimo na quantia de 3$50.

Considerou, então, esta exigência “imoral” e “injusta”. Porém, os encargos ao serviço

municipalizado não terminavam por aqui: “todo o consumidor de energia elétrica”

passaria a ser “obrigado” a efetuar um “depósito de quantia igual ao consumo do mês de

janeiro, atualizado pelo novo preço como garantia”. O periódico recordava que quando a

concessão pertencia a uma companhia privada tais situações não se verificavam. Além

disso, estas imposições eram consideradas totalmente absurdas, dado o estado deficiente

da distribuição de eletricidade que o jornal vinha denunciando366.

A desilusão com o desempenho autárquico veio célere367. A nova Comissão

Administrativa justificou os referidos aumentos em consequência dos gastos exagerados

promovidos pela comissão anterior (presidida por Rui Vaz) que haviam deixado em

estado crítico a situação financeira da Câmara Municipal. O semanário solicitou que tais

alegações fossem comprovadas com a apresentação dos devidos relatórios de contas,

contudo não viu o seu pedido atendido368.

Por outro lado, a propósito da onda de contestação levantada, realizou-se uma

reunião de sócios da Associação Comercial e Industrial com a Comissão Administrativa

para debater o assunto do depósito obrigatório sobre a eletricidade. João Canavarro

(antigo diretor de O Democrático), consultado pela Associação Comercial, compareceu

e, na condição de advogado, assegurou que a Câmara Municipal não tinha “o direito de

exigir depósito algum aos velhos consumidores, só o podendo fazer aos que de futuro” o

366 É importante mencionar que, no que diz respeito aos aumentos referidos, O Democrático publicou

alguma correspondência de leitores absolutamente indignados com a situação da municipalização da

eletricidade. Cf. “Coisas sem importância – a questão da luz”. O Democrático, nº 809, 28/03/1930, p. 2. 367 “Coisas sem importância”. O Democrático, nº 808, 21/03/1930, p. 2. 368 “Coisas sem importância”. O Democrático, nº 813, 25/04/1930, p. 2.

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quisessem ser. Este argumento de Canavarro prevaleceu com o maior número de

apoiantes369.

Em 1931, a questão do depósito ainda se arrastava. O periódico notificou que

“alguns consumidores foram fazendo o depósito exigido pela Câmara Municipal e outros,

julgando-se livres desta exigência, não o fizeram”. Estes últimos viram a corrente elétrica

das suas habitações e estabelecimentos cortada pela autarquia. O Democrático publicou

a lista de nomes dos lesados que recorreram contra esta medida camarária e aguardavam

resposta da Inspeção das Instalações Elétricas370. Apenas em 1934, após anos de conflito

entre a autarquia e os moradores aos quais fora cortada a energia elétrica e de reclamação

após reclamação, “veio a determinação oficial para que a Câmara procedesse à ligação da

energia elétrica àqueles munícipes que dela tinham sido privados”. Esperava-se que a

nova Comissão Administrativa cumprisse com o prometido mas tal não sucedeu, “pois a

dois dos munícipes foi-lhes concedida a luz só depois de eles terem assinado” uma

declaração para “pagamento do respetivo depósito de garantia”, que “foi feito por uma

pessoa que tinha todo o interesse em que a solução do conflito fosse esta – contrária às

ordens legais do respetivo Ministro – e não a que devia ser”. Para o novo presidente da

autarquia – Pacheco Neves – ficou uma palavra amarga do jornal, que não esperava esta

decisão de um homem que considerava respeitável371.

Apesar desta contenta se ter revelado uma verdadeira odisseia e de se continuarem

a verificar falhas no fornecimento de eletricidade para iluminação, algumas freguesias do

concelho conseguiram a instalação da rede elétrica. O periódico destacou as respetivas

inaugurações em Mindelo372, Vilar do Pinheiro373, Mosteiró374, Labruge375 e

Touguinha376.

369 “Coisas sem importância”. O Democrático, nº 813, 25/04/1930, p. 2. 370 “Luz. Depósito de garantia”. O Democrático, nº 875, 21/08/1931, p. 3. 371 “Pela Câmara”. O Democrático, nº 1005, 27/04/1934, p. 3. 372 “Pelas aldeias. Mindelo. Luz elétrica”. O Democrático, nº 835, 10/10/1930, p. 3. 373 “Em Vilar do Pinheiro. Inauguração da luz elétrica”. O Democrático, nº 836, 17/10/1930, p. 3. 374 “Em Mosteiró. Inauguração da luz elétrica”. O Democrático, nº 840, 14/11/1930, p. 2. 375 “Pelas aldeias. Labruge. Inauguração da luz elétrica”. O Democrático, nº 2010, 30/05/1936, p. 4. 376 “Em Touguinha. A iluminação elétrica”. O Democrático, nº 2028, 09/10/1936, p. 3.

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6.3.5. Água potável e saneamento básico

O Democrático, fiel à sua luta pelo progresso local, considerava que Vila do

Conde precisava de efetuar as necessárias avaliações preliminares de estudo sobre

mananciais, captação, obras a realizar e encargos a tomar (entre outras matérias) para que

se tornasse financeiramente possível avançar com o tão urgente projeto de abastecimento

de águas no município377.

O periódico acreditava que os assuntos água e saneamento estavam intimamente

ligados, devendo os dois melhoramentos ser conjugados, pois tal se revelaria vantajoso

sob o ponto de vista tanto humanitário como económico. No âmbito do primeiro, defendia

que era essencial consumir água de boa qualidade e em quantidade suficiente, medida que

não se aplicava unicamente ao consumo humano mas também à manutenção de boas

práticas de higiene, como por exemplo as lavagens dos esgotos: “ao mesmo tempo que se

emprega [a] um serviço de saneamento, senão perfeito, pelo menos que limpe a sua

habitação do depósito permanente das imundices que acumula de resultantes várias”.

Recordava os leitores de que as noções de higiene “dos nossos avós”, nomeadamente do

uso das retretes sem qualquer preocupação de salubridade, já não se aplicavam aos

modelos sociais de 1920. Assim, evidenciava que em “matéria de saneamento”, Vila do

Conde vivia “ainda num atraso espantoso”, potenciado pela “indolência a dominar o

espírito do homem” e que ia seguindo de “geração em geração”. No tocante ao

investimento financeiro, o jornal demonstrava compreensão perante a falta de capital para

gastos de grande envergadura, mas insistia que mesmo sem os meios monetários não se

podia deixar de divulgar estes assuntos e procurar as soluções mais rentáveis e eficientes.

Tornava-se, de facto, fundamental “fazer os estudos prévios necessários, conjugando os

melhoramentos água e saneamento de construção simultânea”, pois acabaria por ser um

investimento mais económico, visto que se “atacariam” dois problemas numa só obra.

Para que tal evoluísse da mera ideia para o papel, o jornal incentivou a criação de uma

“comissão de melhoramentos e interesses da terra” que efetuasse “o estudo completo dos

377 “Melhoramentos”. O Democrático, nº 624, 21/05/1926, p. 1.

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melhoramentos a realizar no concelho” que “deviam ter execução quando as condições

financeiras do município permitissem”378.

Em 1929, como já foi referido no ponto anterior, a autarquia conseguiu contrair

um empréstimo no valor de 1.500.000$00, destinado ao abastecimento de água e

eletricidade para as freguesias do concelho379. Porém, não se verificaram – durante anos

– desenvolvimentos dignos de registo no que diz respeito ao projeto de construção da rede

de saneamento e águas públicas. Este assunto voltou a ser novamente debatido n’O

Democrático em 1934, quando o jornal informou que um engenheiro, António Carlos

Corte-Real, havia estudado bem o caso das águas, elaborando um projeto que seria

remetido às entidades competentes. Conhecia-se agora o plano de ação que regeria a

captação das águas do Rio Ave destinadas ao consumo público. Numa fase inicial, “só a

vila propriamente dita” é que seria “abastecida de água do Ave. As Caxinas e Poça da

Barca” sê-lo-iam mais tarde, assim que “as condições financeiras do município” o

possibilitassem. Complementarmente, o jornal acreditava – com base nos estudos

realizados – que estas duas últimas localidades mencionadas poderiam, mais fácil e

rapidamente, ver-se fornecidas de água pública se a vizinha Póvoa de Varzim decidisse

também investir neste melhoramento a par com Vila do Conde380.

De forma a esclarecer os leitores, o jornal apresentou detalhadamente o projeto

que estaria no momento a ser ponderado. Efetivamente, a captação da água seria feita no

subsolo do Rio Ave “por meio de um poço filtrante, capaz de receber água a 10 metros

de profundidade, num areal situado a cerca de 300 metros a montante do açude de

Retorta”. Este poço seria revestido em cimento e dotado de um “tubo de ferro de 30

centímetros de diâmetro, perfurado na parte inferior” e ligado ao “tubo de pesca” que lhe

serviria de eixo através de uma falange. “O espaço entre a parede do poço e o tubo

perfurado” seria “cheio de areia fina” de forma a garantir a eficaz filtração da água

captada. Posteriormente, a água seria elevada “por meio de uma bomba centrífuga até à

antiga cisterna do Convento de Santa Clara” que seria convenientemente modificada de

forma a servir as novas necessidades. Ficava também garantida a sua depuração,

378 “Melhoramentos locais. Água e saneamento”. O Democrático, nº 626, 28/05/1926, p. 1. 379 “Empréstimo municipal”. O Democrático, nº 775, 13/07/1929, p. 2. 380 “A magna questão do abastecimento de águas”. O Democrático, nº 997, 03/02/1934, p. 2.

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alcançada por via de recurso a um “cloro gasoso”, “sendo a aparelhagem montada na

Central Elevatória”. Para a sua distribuição, instalar-se-iam “tubos de ferro garantindo o

fornecimento de 105 litros por habitante em menos de 12 horas, havendo uma

disponibilidade desde logo de 410 metros cúbicos para os 3.937 habitantes da vila”. O

reservatório instalado em Santa Clara poderia ainda ser facilmente ligado ao de Alto de

Pega, ficando este a funcionar como reservatório complementar. Caso a Póvoa de Varzim

embarcasse neste projeto, seria construído outro reservatório, “formando assim um

conjunto de três reservatórios, um principal e dois complementares”. Por último, e de

maneira a facilitar ainda mais o acesso da população, seriam instalados fontanários em

vários lugares públicos. Feitas as contas a esta obra, o orçamento ficava em 250 contos,

“esperando-se que o Governo da Ditadura, pelo Fundo do Desemprego”, providenciasse

a devida assistência financeira. Quanto ao preço da água, o jornal esperava que a autarquia

deliberasse com sensatez, tendo a conta que a população da vila era na sua maioria

pobre381.

A apresentação do projeto terá surtido alguns efeitos positivos, visto que o jornal

elucidou que “a vizinha Póvoa” parecia “querer entrar numa nova fase para uma rápida

resolução”. Segundo a imprensa da Póvoa de Varzim, a Câmara Municipal estaria

disposta a negociar com a autarquia vila-condense uma solução para “o problema de

abastecimento de água para consumo público”, pois reconhecia que “da unificação dos

projetos” resultariam “vantagens económicas apreciáveis” que muito influenciariam “no

custo geral das obras a executar”, que seria dividido pelas duas Câmaras interessadas382.

No entanto, avanços concretos na resolução de tão importante melhoramento tardavam.

Apenas nos inícios de 1935, o semanário adiantava que já recebera informações que

confirmavam encontrar-se “pronto a ser enviado ao Ministro das Obras Públicas o projeto

de abastecimento de água a captar do subsolo do Ave” em conjunto com a Póvoa de

Varzim383. Ainda nesse ano, a Câmara Municipal fez abrir um concurso para a realização

das obras necessárias para a captação das águas, ao qual concorreram várias entidades

portuenses: a Fundição do Bom Sucesso, a Alexandrino Limitada e a Companhia Aliança

381 “A magna questão do abastecimento de águas”. O Democrático, nº 997, 03/02/1934, p. 2. 382 “Água”. O Democrático, nº 1002, 16/03/1934, p. 2. 383 “Água”. O Democrático, nº 1047, 08/02/1935, p. 3.

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(Fundição de Massarelos) que apresentaram as propostas de 599.995$00, 570.000$00 e

568.500$00, respetivamente. Este desenvolvimento era tido como um bom impulso, visto

que se verificava o interesse de várias empresas competentes na área de águas públicas e

saneamento. No entanto, o jornal mostrava apreensão relativamente ao elevado valor das

propostas apresentadas que, quando a instalação estivesse completa, só resultaria em que

a água fosse muito cara, no valor de cerca de 1$70 por metro cúbico, “preço assaz elevado

para o viver pobre da grande maioria dos habitantes vila-condenses”384.

Não obstante as suas preocupações, o semanário continuava a abordar o processo

de escolha de uma empresa para adjudicação das respetivas obras. Tendo em conta os

números apresentados, a proposta mais favorável provinha da Fundição de Massarelos.

Contudo, “algumas dúvidas surgiram a respeito de preferências”, pois havia quem se

inclinasse “a favor da proposta de Alexandrino, Limitada”. É importante mencionar que

o jornal não esclareceu em que aspetos se basearam estas “preferências”, portanto, neste

caso, só se pode especular relativamente aos motivos de indecisão. Tratar-se-ia de bons

resultados em trabalhos anteriormente executados, de especificações dos planos

apresentados ou até de interesses pessoais entre autarcas e as próprias empresas? Todavia,

como referido, o periódico não forneceu quaisquer dados que permitam confirmar

nenhuma das hipóteses. Ficou apenas garantido que seria entre aquelas duas propostas

que se centraria o debate385.

Após a necessária deliberação, a Comissão Administrativa da Câmara Municipal

“tomou a resolução de anular o concurso para as obras do abastecimento de águas desta

vila, concurso que se realizou há pouco e ao qual concorreram três casas industriais do

Porto”. A causa do anulamento prendia-se com “o preço elevado que acusava a proposta

mais favorável apresentada pela Fundição de Massarelos”386. Neste seguimento,

procedeu-se à abertura de um novo concurso e rapidamente apareceram novas propostas.

Desta vez, a Companhia Aliança (Fundição de Massarelos) concorria com a quantia de

499.500$09 e a Alexandrino Lda. com duas propostas, uma de 509.092$93, acrescidos

384 “Um problema momentoso”. O Democrático, nº 1060, 18/05/1935, p. 2-3. 385 “Abastecimento das águas. O concurso para adjudicação das respetivas obras”. O Democrático, nº 1061,

24/05/1935, p. 3. 386 “Abastecimento das águas”. O Democrático, nº 1062, 13/06/1935, p. 2.

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do custo de montagem mais 30.090$00. Surgia também uma nova proposta da

Corporação Mercantil Portuguesa Lda. de Lisboa, que avançava com uma proposta

apenas para o fornecimento e colocação de tubagem por 326.371$00387.

Verifica-se, uma vez mais, que a proposta mais favorável partia da Fundição de

Massarelos e “num quantitativo inferior ao antecedente concurso”. A Câmara Municipal

encontrar-se-ia em processo de deliberação e tanto a população como a imprensa

periódica aguardavam uma decisão célere388. Mas, como já vinha sendo recorrente e

continuaria a ser no que diz respeito a outros melhoramentos, a chegada a um consenso

tomava tempo precioso. Não sendo conhecida ainda nenhuma decisão da autarquia, o

jornal relatava que aumentavam cada vez mais as filas nas fontes públicas, das quais a

população se servia para se abastecer de água. A frustração d’O Democrático era

evidente: “E pensou-se por momentos no princípio deste ano que no verão de 1935 se

tinha o crónico problema de abastecimento de águas à nossa terra resolvido”, mas que

“forte macaca persegue a nossa terra”389.

Apesar dos avanços e recuos, em agosto de 1935 a Câmara Municipal decidiu

adjudicar à Alexandrino Lda. “a empreitada dos trabalhos a realizar” e, garantindo que

preenchidas certas formalidades, o município teria em pouco tempo acesso a verbas do

Estado390, iniciaram-se as “obras de abertura de trincheiras para a canalização”. Estas

estender-se-iam, logo em novembro de 1935, “desde o poço filtrante pelas Avenidas Dr.

Bernardino Machado e Figueiredo Faria”, encontrando-se na vila “um fiscal da

Administração dos Serviços Hidráulicos” para assistir ao “assentamento da canalização”.

Previa-se a conclusão das obras para outubro de 1936391. Porém, chegada essa data, já só

no ano seguinte se esperava ter água potável em toda a vila392. Eventualmente o objetivo

seria alcançado e Vila do Conde ver-se-ia abastecida “de água com abundância, livrando-

se a população do pingue-pongue dos marcos fontenários da época da estiagem”393.

387 “Águas”. O Democrático, nº 1063, 21/06/1935, p. 4. 388 “O concurso para as obras de abastecimento das águas”. O Democrático, nº 1064, 28/06/1935, p. 3. 389 “Falta de água”. O Democrático, nº 1068, 26/07/1935, p. 3. 390 “O abastecimento da água. A sua solução”. O Democrático, nº 1073, 30/08/1935, p. 2. 391 “Interesses locais. Abastecimento de água”. O Democrático, nº 1084, 15/11/1935, p. 2. 392 “Mais um balanço”. O Democrático, nº 2029, 23/10/1936, p. 1. 393 “Interesses locais. Abastecimento de água”. O Democrático, nº 1084, 15/11/1935, p. 2.

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6.3.6. A degradação do porto e da barra numa terra de marinheiros

Segundo O Democrático, o estado de degradação do porto e da barra de Vila do

Conde constituía um problema que atravessava gerações, numa terra “de marinheiros

ousados” com fortes e históricas ligações à navegação – fonte de uma das suas atividades

económicas mais relevantes. Neste contexto, outro dos temas mais debatidos ao longo do

decénio de 1926-36 foi a premente necessidade de realização de obras profundas no porto

e barra do município, uma aspiração já antiga.

Na edição de 20 de fevereiro de 1926, o periódico adiantou que o Governo tinha

autorizado a transferência de um subsídio concedido em favor das obras do porto e barra

da vila. Após anos de apelos ignorados, o jornal recebeu esta notícia com entusiasmo.

Previa então que as obras se iniciassem o mais rapidamente possível e incentivava ao

empenho de todos os responsáveis envolvidos nesta “tarefa laboriosa e importantíssima

de interesse vital para esta terra”. O apelo alargava-se, como era habitual, a toda a

população vila-condense para que se unisse em prol desta obra que projetaria a localidade

“na senda do progresso”394. Na edição seguinte, em consequência de uma reunião

extraordinária da secção local da Junta Autónoma, tomou-se conhecimento de que já se

encontraria depositado o subsídio do Estado, no valor de 100.000$00, na Caixa Geral de

Depósitos da vila. Por outro lado, ficou também decidido que se deveria realizar “um

estudo competente de todos os projetos existentes”, tendo em conta a opinião de técnicos

capacitados, para chegar à melhor resolução possível395.

As obras só se iniciaram verdadeiramente em fevereiro de 1929, como noticiou O

Democrático:

Já começaram os trabalhos para que o nosso porto dentro em pouco tempo

desempenhe as funções de um fator importantíssimo para o comércio e navegação

e, ao mesmo tempo, a nossa terra ingresse no caminho aberto do franco progresso.

Dezenas de operários já se empregam em abrir o canal que vai servir de entrada

ao nosso rio, sob a direção do engenheiro Sr. Dr. Paulo Barbosa, coadjuvado pelo

394 “Obras na barra”. O Democrático, nº 615, 20/02/1926, p. 1. 395 “Junta Autónoma”. O Democrático, nº 617, 03/04/1927, p. 2.

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trabalho inteligente e persistente do digno capitão do porto, o ilustre oficial da

Marinha, Sr. Gabriel Teixeira396.

De forma a garantir o avanço das obras, Gabriel Teixeira gizou uma estratégia de

propaganda a realizar pelas freguesias do concelho, “explicando o alto valor” que

representava para a região “o regular funcionamento” do porto. O objetivo seria criar em

todas as aldeias “delegações de um organismo intitulado Amigos do Porto e Barra de Vila

do Conde” para que os cidadãos pudessem contribuir e auxiliar nas obras em curso. O

jornal constatou com agrado o sucesso desta iniciativa junto da população vila-condense,

que demonstrava entusiasmo e vontade em apoiar o melhoramento em causa397.

A partir daqui, o periódico foi dando conta do estado de progressão das obras. Em

março de 1929, encontrava-se “bastante adiantada a «barragem»” que se estava a

construir “pelo lado sul” e que haveria de “tapar a garganta que servia de acesso ao rio”.

Adicionalmente, verificava-se também a existência de doações de materiais de

construção, por exemplo, de madeiras oferecidas pelo “grande capitalista Sr. Bento de

Sousa Amorim” e esperava-se a chegada de mais398. Foi também mencionada a visita ao

local das obras de Simão Neves, Secretário do Ministro das Finanças, tendo o periódico

anunciado que o político havia ficado “com esplêndida impressão” relativamente aos

trabalhos que se estavam a efetuar399.

Efetivamente, obras de reconstrução de tal envergadura exigiam os devidos

recursos monetários. Neste contexto, o semanário noticiou a ação empreendida pelos

Amigos do Porto e Barra de Vila do Conde. Esta associação iniciara a sua primeira

“colheita das dádivas dos habitantes da vila” a reverter a favor das obras. O periódico fez

questão de publicar a lista de nomes dos subscritores juntamente com o respetivo

montante doado, de forma a incentivar a corrente solidária que assim dava novo alento às

obras400.

396 “Porto e barra de Vila do Conde”. O Democrático, nº 754, 02/02/1929, p. 1. 397 “Porto e barra de Vila do Conde”. O Democrático, nº 754, 02/02/1929, p. 1. 398 “A nossa barra”. O Democrático, nº 760, 23/03/1929, p. 1. 399 “As obras do porto e barra”. O Democrático, nº 762, 05/04/1929, p. 4. 400 “Obras do porto e barra”. O Democrático, nº 772, 22/06/1929, p. 3.

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Em inícios de 1931, noticiou que as obras prosseguiam “com toda a regularidade”

e esperavam-se mais avanços:

Com a aprovação, por parte das instâncias superiores, da alteração ao primitivo

projeto dos melhoramentos a realizar, é de esperar que os trabalhos se

intensifiquem sem interrupção até final, para que em curto prazo de tempo

vejamos realizada a obra mais grandiosa que se tem efetuado em Vila do Conde

de há 50 anos aos nossos dias que lhe trará o progresso e desenvolvimento que

todos os vila-condenses almejam401.

Contudo, as obras de reabilitação do porto e barra da vila não se fariam sem

percalços e desentendimentos. O primeiro capitão do porto, Gabriel Teixeira, redigiu uma

carta que foi entregue na redação d’O Democrático, por intermédio de um dos oficiais da

Marinha Mercante do município. Nessa carta, o antigo capitão apontava alguns problemas

existentes nas obras ainda a decorrer. A seu ver, os açudes deviam ser destruídos porque

prejudicariam severamente o porto. Estas estruturas limitavam o fluxo das marés,

reduziam quase em metade (ou até em mais de metade) o caudal da água que a cada maré

passava na barra e consequentemente reduziam em igual importância a drenagem natural

do rio. O periódico concordou com a visão do antigo capitão, esperando que esta fosse

seguida para benefício de todos. Por outro lado, a falta de verbas continuava a representar

um óbice, pelo que se esperava que até finais do ano económico chegasse a importância

atribuída pelo Estado para que se tornasse possível a conclusão de tão urgente obra; caso

contrário, Vila do Conde não alcançaria o movimento marítimo e comercial que lhe daria

vida e prosperidade402.

A necessidade de auxílio financeiro era de tal forma imprescindível que um grupo

de oficiais da Marinha Mercante vila-condense redigiu uma representação que foi

entregue a Duarte Pacheco, Ministro das Obras Públicas e Comunicações, a fim de

requerer ajuda monetária do Governo para dar seguimento – e, posteriormente, garantir a

401 “Pequenas notas. Obras da barra”. O Democrático, nº 851, 06/02/1931, p. 2. 402 “O porto de Vila do Conde”. O Democrático, nº 967, 30/06/1933, p. 3.

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conclusão – da reabilitação do porto e barra403. Em 1935, o jornal anunciava que havia

sido concedido um subsídio de cerca de 120.000$00 à Junta Autónoma da vila para a

conclusão das obras. Porém, até ao final do ano de 1936, não surgiu notícia acerca

desfecho deste melhoramento. Mais uma aspiração que não se realizaria com a celeridade

e eficácia desejadas pelo periódico.

6.3.7. Reorganização e aproveitamento das potencialidades das feiras

locais

O único problema apontado às feiras em Vila do Conde pel’O Democrático foi o

facto de, em pleno ano de 1927, a autarquia ainda não ter estipulado um dia da semana

fixo para a sua realização.

O jornal recordou que esta iniciativa de fixação de um dia da semana para a

realização das feiras já havia estado (há cerca de cinco, seis anos) na linha de trabalhos

da Associação Comercial local. Porém, nada havia ficado estipulado. Neste contexto, e

perante um assunto considerado pertinente e significativo para o município, decidiu

debatê-lo nas suas colunas. A seu ver, e como era do conhecimento de todos aqueles que

tinham interesses ligados com as feiras, a segunda-feira era o dia menos favorável, uma

vez que era exatamente esse dia que, durante o ano, maior número de feiras tinha. Por

outro lado, quando as feiras aconteciam “na quarta ou quinta-feira” eram “prejudicadas

pelas feiras de Famalicão e Barcelos”, quando era certo “que se o dia fosse fixado e

escolhido” tal não se ocorreria. Considerando estes argumentos, o semanário esperava

que tanto a Câmara Municipal como a Associação Comercial retomassem o assunto e

chegassem a uma resolução favorável404.

Tal como se tem visto a propósito de outros assuntos de promoção regional em

que O Democrático interveio de forma participativa e persistente, também neste domínio

avançou com ideias assertivas no sentido de conciliar vários interesses e alcançar a melhor

solução para a vila. Elucidou que os dias da semana que mais convinham “eram o de

sexta-feira ou sábado, em vista de nesses dias não haver feiras em terras próximas […]

403 “O porto de Vila do Conde”. O Democrático, nº 978, 15/09/1933, p. 2. 404 “As feiras na nossa terra”. O Democrático, nº 666, 08/04/1927, p. 2.

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mas optando mais pelo sábado porque na sexta ia prejudicar algumas classes,

nomeadamente a dos marchantes”. Argumentava que todos os comerciantes das várias

áreas, nomeadamente do gado, estavam de acordo com esta medida e estavam “prontos a

subscrever com importâncias para custear as despesas a fazer com a propaganda”. Nesta

conformidade, restava apenas que as entidades competentes tomassem as devidas

providências405.

Reforçando ainda mais a sua posição, o periódico revelou que estabelecera

contacto com dois feirantes (negociantes de gado) que reconheciam a importância de ter

um título da imprensa local a batalhar por este assunto com tanto afinco e, de forma a

fazer ver verdadeiramente a sua vontade, entregaram um “abaixo-assinado de todos, ou

quase todos os colegas, apoiando a fixação da feira em dia certo da semana”, ou seja, ao

sábado406.

Complementarmente, o jornal abordou a posição de outros semanários locais

relativamente às feiras e debateu os seus pontos de vista. A União, por exemplo,

concordava com a fixação semanal mas tinha “medo” que as alterações não surtissem os

efeitos desejados. Contudo, O Democrático defendia que esta hesitação podia ser

facilmente dissipada assim que se ouvissem os feirantes que estavam de acordo nesta

matéria407. No lado oposto, encontrava-se A República, que rejeitava a fixação semanal

das feiras. Quanto a este colega de imprensa, aliás semelhante em muitas reivindicações,

O Democrático declarava respeitar diferentes opiniões, porém não encontrava validade

efetiva em nenhum dos seus argumentos, afirmando que era por puro “conservadorismo”

que discordava, visto não apresentar quaisquer “contras” à proposta de fixação408.

Posto isto, O Democrático fazia o ponto da situação quanto a este tema, mostrando

os primeiros avanços no debate levado a cabo pelas várias partes:

Pelo extrato da assembleia realizada na última quarta-feira […] na Associação

Comercial, os sócios daquela coletividade resolveram quase por unanimidade que

as feiras nesta terra sejam em dia fixo, e de preferência ao sábado, deixando,

405 “As feiras na nossa terra”. O Democrático, nº 669, 29/04/1927, p. 2. 406 “As feiras na nossa terra”. O Democrático, nº 670, 06/05/1927, p. 2. 407 “As nossas feiras”. O Democrático, nº 670, 06/05/1927, p. 2. 408 “As nossas feiras”. O Democrático, nº 671, 13/05/1927, p. 2.

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contudo, aos feirantes, a livre indicação do dia, visto serem eles os maiores

interessados e, portanto, juízes da causa. O Sindicato Agrícola, respondendo à

consulta feita pela Associação Comercial, é também pela fixação409.

Após aparente consenso a favor do dia fixo, a discussão passou a girar em torno

do dia da semana a escolher, pois após a reunião na Associação Comercial, as opiniões

dividiam-se: feiras à sexta-feira ou ao sábado?410

No entanto, a obtenção de um acordo seria demorada. Apenas nos inícios de 1929,

a Câmara Municipal, “interpretando bem a necessidade de, a bem dos interesses do

comércio local, fixar esses dias”, convidou “as direções da Associação Comercial e do

Sindicato Agrícola a comparecerem” nas suas instalações para, em conjunto, “tratarem

de tão importante assunto”. Ficou decidido que as direções de ambos os organismos

convocassem, “no mais curto prazo de tempo, a reunião dos seus associados para se

manifestarem sobre o assunto” com vista a, posteriormente, a Câmara aprovar uma

decisão. No cumprimento desta decisão camarária, a Associação Comercial realizou o

evento e enviou convites para todo o comércio e indústria do concelho se reunir em sessão

magna no Teatro Afonso Sanches, a fim de resolver a fixação dos dias de feira411. Nessa

reunião convocada pela Associação Comercial compareceu um “grande número de

comerciantes e industriais”, embora não se tratasse do número que se esperava, tendo em

conta a importância da questão. Ainda assim, a grande maioria escolheu fixar a realização

das feiras à sexta-feira. Ficava a faltar o veredicto dos “restantes interessados”, que se

reuniram pouco depois, “a convite do Sindicato Agrícola”412. Nesse encontro, “61

lavradores e feirantes votaram que as feiras não sofressem alteração” do que estava, “e

48 pela fixação”. O Democrático hesitou relativamente a este resultado, não tendo a

certeza se tal votação traduzia “bem a vontade da grande maioria da gente” que concorria

às feiras, por achar “insignificante o número de votantes”. Com efeito, muitos dos

feirantes não compareceram, pois a reunião coincidiu com o dia de feira em Famalicão413.

409 “As nossas feiras”. O Democrático, nº 672, 21/05/1927, p. 2. 410 “As nossas feiras”. O Democrático, nº 673, 28/05/1927, p. 2. 411 “Feiras!”. O Democrático, nº 755, 09/02/1929, p. 1. 412 “Feiras!”. O Democrático, nº 756, 22/02/1929, p. 4. 413 “Feiras!”. O Democrático, nº 757, 01/03/1929, p. 4.

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Os anos passavam e o assunto das feiras mantinha-se sem fim à vista. Apenas em

1934 se chegou verdadeiramente à fixação. Após uma nova intensa ronda de deliberações,

tendo em conta que “quase todos os dias da semana” estariam já comprometidos com os

mercados que se realizavam “em povoações próximas” da vila e porque o último dia da

semana ativa de trabalho não convinha à maioria414, foi escolhida a sexta-feira para o dia

de realização das feiras em Vila do Conde. Escorado no sentimento de missão cumprida,

o jornal aplaudiu a resolução aprovada pela Câmara Municipal relativamente a uma

reivindicação que se arrastava desde 1927. Estava agora aberto o caminho para o sucesso

das feiras no município415.

6.3.8. “O Hospital vai fechar?”416

Ao longo deste decénio, foi evidente o desassossego e preocupação d’O

Democrático no que diz respeito ao Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Vila do

Conde. Esta instituição de solidariedade encontrava-se desprovida dos fundos e apoios

necessários para o eficaz tratamento dos doentes, com risco efetivo de encerramento dos

seus serviços. Honrando a sua luta pelos interesses locais, o semanário insistia que tanto

a autarquia como a população não podiam negligenciar o apoio ao hospital, pois um

município sem a dotação de cuidados de saúde básicos – dirigidos, neste caso,

principalmente aos mais necessitados – não poderia proliferar.

Era efetivamente “precária”, em 1927, a situação do hospital. “Devido à falta de

recursos” com que vinham “lutando a Santa Casa da Misericórdia, a Mesa Administrativa

reuniu” em conjunto com o Administrador do Concelho e o Presidente da Câmara

Municipal. Neste encontro, o Provedor da Misericórdia expôs a situação extremamente

vulnerável da instituição, assegurando ser impossível continuar com as portas abertas,

caso não recebesse “qualquer auxílio” com que pudesse “fazer face às despesas avultadas

com a sustentação de doentes e fornecimento de remédios aos pobres das Caxinas e Poça

da Barca”. O jornal acrescentou, nessa altura, que os responsáveis da autarquia

414 “As nossas feiras: a necessidade que há de as fazer rejuvenescer e de as fazer prosperar”. O Democrático,

nº 1017, 29/06/1934, p. 1. 415 “As nossas feiras”. O Democrático, nº 1021, 03/08/1934, p. 3. 416 “O Hospital vai fechar?”. O Democrático, nº 648, 13/11/1926, p. 2.

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compreenderam a urgência deste apelo, “prometendo tratar deste magno assunto com

todo o interesse”417.

Todavia, as queixas que se continuaram a ouvir cimentarão um lugar quase

permanente nas linhas do periódico, visto que as complicações não se dissiparam. Apesar

de a Câmara Municipal se encontrar perfeitamente notificada da forte possibilidade de

encerramento do hospital, o município “boceja com a maior indiferença”.

Adicionalmente, surgiu outra inquietação relativamente aos subsídios do Estado. O jornal

referiu a “promessa” do Ministro do Interior “de beneficiar” as casas de caridade “com

5% das contribuições diretas do Estado” mas, se perdurassem as rigorosas políticas

económicas de Oliveira Salazar, temia-se que tal nunca viesse a acontecer. Perante este

cenário, alertava-se a população para que não deixasse exclusivamente nas mãos do

Estado os garantes da sobrevivência do hospital e efetuasse ações de solidariedade e

doações por iniciativa própria418.

Alguns dos expedientes que iam conseguindo travar a hipótese de encerramento

do hospital eram tanto a ação benemérita de certos vila-condenses com posses, como a

organização de iniciativas de angariação de fundos a favor da instituição. Repare-se, por

exemplo, no caso de Delfim Ferreira, um “importante industrial” que, pelo Natal de 1928,

fez distribuir 1200$00 em donativos por várias instituições do município, tocando 200$00

ao Hospital da Misericórdia419. Outra doação mais avantajada – 1000$00 – chegou pelas

mãos de António Fernandes da Costa420. A intenção do jornal ao divulgar tais doações

era clara: efetuar um agradecimento público aos doadores e, ao mesmo tempo, incentivar

a população a proceder desta maneira para se garantir a sobrevivência do hospital421.

No que diz respeito a ações de solidariedade organizadas pela população,

destacou-se a chamada “Hora da Misericórdia”, uma espécie de jornada de beneficência,

começada em 1930. Um grupo de mulheres da vila (o jornal faz questão de publicar os

seus nomes completos) juntou-se em colaboração com a Mesa da Misericórdia e lançou-

417 “Hospital”. O Democrático, nº 739, 13/10/1928, p. 1. 418 “O Hospital”. O Democrático, nº 741, 27/10/1928, p. 4. 419 “Benemerência”. O Democrático, nº 749, 22/12/1928, p. 1. 420 “Para o nosso hospital”. O Democrático, nº 779, 10/08/1929, p. 2. 421 Os exemplos de divulgação deste tipo de donativos preencheriam as colunas de O Democrático até ao

final do decénio. Encontram-se, para além das supracitadas, outras referências a doações nas edições 817,

819, 835, 836, 838, 841, 844, 847, 905, 928, 944, 1043, 1049 e 1065.

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se na recolha de donativos junto da restante população422. O balanço afigurou-se mais

positivo do que o esperado, na medida em que foi angariado um total de 5.710$00423.

Tendo em conta o seu sucesso, esta iniciativa continuou nos anos seguintes. Em 1931, o

resultado foi novamente positivo – embora o montante alcançado tenha ficado aquém do

de 1930, em consequência da crise do trabalho que assoberbava a sociedade – cerca de

4.000$00 reverteram a favor do hospital424. Em 1932, a colheita não se revelou “tão farta

como era de esperar, devido talvez à grande crise” que o povo atravessava, tendo o valor

angariado rondado os 2.250$00425. No ano seguinte, o montante recolhido subiu para

10.181$00, saldo aplaudido pelo periódico, pois a “população correspondeu […] ao apelo

da Mesa” que estava “a presidir aos destinos da Misericórdia”, acorrendo às doações para

esta iniciativa que tomava, a partir deste ano, a designação de “Semana da

Misericórdia”426.

O que não passava inicialmente de um mero peditório, tornou-se numa importante

campanha anual, com a duração de sete a oito dias, que cumpria um programa bem

traçado de atividades lúdicas e culturais, em que se destacavam os concertos, “comes e

bebes” e os mais variados espetáculos de entretenimento, contando com a atuação, por

exemplo, dos Ranchos da Praça e do Monte427.

No ano de 1934, o mais profícuo de todos os estudados, foram angariados cerca

de 30.000$00428 e, tanto em 1935429 como em 1936430, o montante arrecadado rondou

15.000$00.

Efetivamente, os fundos angariados por estas iniciativas apenas durante 1930-

1931, a par de outros donativos resultantes de ações de benemerência e peditórios pelo

concelho, permitiram que a edição de O Democrático de 4 de dezembro de 1931 abrisse

422 “Para o nosso Hospital: Hora da Misericórdia”. O Democrático, nº 805, 28/02/1930, p. 2. 423 “O nosso hospital”. O Democrático, nº 806, 08/03/1930, p. 1. 424 “Hora da Misericórdia”. O Democrático, nº 860, 17/04/1931, p.1-2. 425 “Pelo Hospital”. O Democrático, nº 939, 02/12/1932, p. 4. 426 “Semana da Misericórdia”. O Democrático, nº 980, 29/09/1933, p. 2. 427 “Para o Hospital – interessantes festas da Semana da Misericórdia”. O Democrático, nº 1025,

31/08/1934, p. 2. 428 “A Semana da Misericórdia terminou com esplêndidos resultados para o Hospital de Vila do Conde”. O

Democrático, nº 1027, 14/09/1934, p. 4. 429 “Ainda as festas da Misericórdia”. O Democrático, nº 1076, 20/09/1935, p. 2. 430 “Para o Hospital – Semana da Misericórdia”. O Democrático, nº 2025, 18/09/1936, p. 4.

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com um artigo em que se descreviam as obras de melhoramento realizadas no hospital.

Efetuou-se uma modernização massiva ao edifício, com uma nova sala de operações

(“com requintes de higiene e senso prático”), “enfermarias magníficas cheias de ar e luz”,

consultórios médicos a estrear e quartos para doentes totalmente atualizados. O

entusiasmo era evidente e até se convocava uma inauguração oficial, com direito a

banquete e devidos agradecimentos aos beneméritos que tornaram a obra possível431.

Sem querer desvalorizar o sucesso atingido pelas iniciativas de solidariedade

mencionadas e as obras de requalificação efetuadas, a verdade é que nem os donativos

nem as alterações executadas na edificação do hospital eram suficientes para a

manutenção do mesmo. Neste contexto, o semanário criticou duramente a falta e má

distribuição de subsídios às instituições de caridade por parte do Estado. Em março de

1932, considerava irrisórias as quantias distribuídas pelas casas de caridade do concelho

relativas ao primeiro semestre do ano económico em questão. Ao Hospital da

Misericórdia foram atribuídos 6.375$00, ao Asilo da Ordem Terceira de S. Francisco,

3.400$00 e à Misericórdia de Azurara, 425$00 – o que perfazia um total de 10.200$00

em subsídios estatais. Ao estabelecer uma comparação relativamente ao valor dos

subsídios concedidos à vizinha Póvoa de Varzim432, que quase triplicavam os destinados

à vila, o jornal interrogava-se se a assistência pública a Vila do Conde não passaria apenas

de um mito, sendo largamente conhecidas as dificuldades que as referidas casas de

caridade então enfrentavam. Num tom irónico, O Democrático afirmava que,

provavelmente, a única maneira de conseguir mais subsídios por parte do Diretor da

Assistência Pública era fazer inaugurar nas salas das instituições um retrato do mesmo,

na esperança que desse “resultado, como já foi feito em outras terras”433. Nos anos de

431 “Uma obra notável”. O Democrático, nº 890, 04/12/1931, p.1-4. 432 Ao Hospital da Póvoa de Varzim foram concedidos 20.550$00; à A Beneficente, 2.100$00; à

Convalescente de Beiriz, 3.400$00; à Beneficência em Rates, 300$00; à Associação de Caridade, 500$00

e à Casa de Pescadores, 850$00 – portanto, um total de 27.700$00. Cf. “A Assistência Pública e as nossas

Casas de Caridade”. O Democrático, nº 902, 04/03/1932, p. 2. 433 “A Assistência Pública e as nossas Casas de Caridade”. O Democrático, nº 902, 04/03/1932, p. 2.

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1933434 e 1934435, a distribuição dos subsídios era novamente considerada absurda,

principalmente, e uma vez mais, quando efetuado o cotejo com o que havia sido atribuído

a outros concelhos com menos habitantes.

Em janeiro de 1933, no que diz respeito à autarquia e em matéria de assistência, a

Câmara Municipal fez aprovar uma série de propostas apresentadas numa sessão

realizada no encerrar do ano findo com objetivo de apoiar as casas de caridade locais no

difícil momento de crise que então atravessavam. Basicamente, estas determinações

consistiam na criação de um imposto extra – entre 10 e 20 centavos – sobre cada

quilograma de carne, o qual reverteria a favor das instituições responsáveis pelos cuidados

de saúde e bem-estar dos vila-condenses436.

Apesar de todas as medidas aplicadas e da forte campanha que o periódico efetuou

a favor das instituições hospitalares e de cuidado de doentes pobres e idosos, o balanço

não deixava de ser negativo – os recursos continuavam a ser escassos, a prestação de

cuidados de saúde para todos estava longe de ser assegurada e os apelos à solidariedade

continuavam:

Quem, com olhos de ver e coração de sentir, estiver atento à miséria que vai pela

nossa terra e ao número sempre crescente de pessoas que enfermam e se

encaminham para a misericórdia a fim de requererem lenitivo aos seus

infortúnios, não poderá ficar insensível a tanto mal, a tanta desdita, a tanta dor437.

6.3.9. O flagelo da mendicidade

No período em análise, O Democrático fez a primeira menção ao problema da

mendicidade ao felicitar a campanha que vinha sendo desenvolvida pelo seu colega local,

A República, em várias frentes deste problema, nomeadamente o seu combate na via

434 Em 1933 foram distribuídos 19.850$00 ao Hospital da Misericórdia; 12.400$00 ao Asilo e 850$00 ao

Hospital de Azurara. Cf. “As nossas Casas de Caridade e os subsídios que lhes foram atribuídos”. O

Democrático, nº 959, 28/04/1933, p. 1. 435 Em 1934, o Hospital da Misericórdia foi subsidiado com a verba de 12.000$00 e o Asilo e Hospital de

Azurara com valores considerados semelhantes aos do ano anterior, 6.000$00 e 1.000$00 respetivamente.

Cf. “Os subsídios às nossas Casas de Caridade”. O Democrático, nº 997, 03/02/1934, p. 3. 436 “As Casas de Caridade”. O Democrático, nº 944, 06/01/1933, p. 3. 437 “Socorrer o nosso hospital é dever dos vila-condenses”. O Democrático, nº 2015, 11/07/1936, p. 1.

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pública. Naturalmente, tendo sempre como primado a defesa dos interesses de Vila do

Conde, O Democrático considerava absolutamente prioritário colocar em prática as

medidas atinentes à extinção da mendicidade e dos pedintes, principalmente na altura do

pico da época balnear. Na sua ótica, era imperativo manter uma boa imagem da vila

perante os turistas que todos os anos afluíam às suas praias, de forma a não perder o forte

estímulo económico que provinha dessa atividade. Para tal efeito, o periódico alertava as

autoridades competentes para que agissem em conformidade para que os banhistas não

fossem “constantemente assediados” por uma “chusma de mendigos, a maior parte dos

quais” não pertencia ao concelho e envergonhassem os vila-condenses438.

No entanto, a preocupação do jornal em matéria de mendicidade e pobreza

extrema não se confinava à sua terra ou à imagem negativa que, por via desse flagelo

social, ela pudesse adquirir. Pelo contrário. O Democrático considerava que a existência

da mendicidade não era aceitável em qualquer sociedade moderna, chegando inclusive a

estabelecer uma comparação entre Portugal e países como a Suíça, Alemanha, Bélgica e

França (considerados mais avançados no domínio assistencial), nos quais não se

encontravam mendigos nas ruas. Tal situação só era possível porque aí se promoviam, de

forma planificada, ações de assistência social apoiadas em fundos para o auxílio aos mais

necessitados. Era esta a estratégia que o jornal esperaria ver adotada no município de Vila

do Conde: uma aposta na sensibilização da população apta a contribuir, guiada por

estratégias eficazes nas quais se visse o dinheiro reverter a favor de postos de auxílio com

“pão para comer” e roupa para aquecer os mendigos. Contudo, o periódico reconheceu

que o problema, já enraizado na sociedade, tomaria mais esforço para ser extinto do que

apenas procurando a boa vontade dos cidadãos. O jornal aludiu à existência de “mendigos

profissionais”, mestres na “arte de pedir” e “sensibilizar o seu semelhante, inspirando

compaixão”. Portanto, mendigar tornara-se uma profissão bem lucrativa. Para este

problema, o jornal recomendava uma solução que considerava simples: “dividir os

mendigos em duas classes”, de um lado “mendigos necessitados” (aos quais se devia

conceder apoio) e do outro “mendigos profissionais” (“executando uma perseguição mais

tenaz”). Apesar das duras críticas a alguns pedintes, o periódico deixava bem claro que

438 “Mendicidade”. O Democrático, nº 668, 22/04/1927, p. 2.

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não incitava nem tolerava qualquer tipo de mau tratamento aos pobres e mendigos. O

objetivo era alcançar a cooperação de todos para extinguir um problema grave na

sociedade. Todavia, o jornal alertava também para o perigo de certos mendigos – talvez

movidos pelo desespero – serem praticantes de atos de natureza criminosa, violenta e

desonesta que colocavam em risco o resto da população. Nestes casos, os incidentes

deviam ser reportados às autoridades competentes.

Com este tipo de discurso moderno, porque humanitário e não discricionário,

frontal e não especulativo, O Democrático contribuiu para consciencializar a população

e as autoridades quanto à urgência no combate à pobreza439. Aliás, apontou claramente

medidas que poderiam, a curto prazo, minorar o problema. Após constatar que a grande

maioria de mendigos e pedintes que frequentam as ruas da vila eram, na realidade,

provenientes de outros concelhos, propôs a criação de um “bom serviço de fiscalização”

que não permitisse a sua entrada em Vila do Conde, esperando que as outras localidades

unissem esforços para combater este flagelo. Ao mesmo tempo, e porque também

persistia abertamente a mendicidade dentro do concelho, defendia a instituição das “já

consagradas sopas económicas” preparadas e servidas na vila e em Azurara, através do

hospital. Não esquecendo os mais necessitados nas freguesias, pedia a cooperação de

beneméritos que pudessem contribuir com um espaço para o efeito ou planear este serviço

utilizando as instalações das escolas paroquiais440.

Uma vez mais, as reivindicações de O Democrático parecem ter sido escutadas

pelos órgãos municipais. O próprio administrador do concelho, Gabriel Teixeira,

subscreveu os vários apelos do jornal e reiterou que se devia trabalhar no sentido da total

extinção da mendicidade. Animado por constatar que as suas vindícias não foram

ignoradas pela edilidade, o jornal continuou a traçar o plano de ação para a extinção do

problema em causa. As primeiras providências a tomar, segundo o seu pensamento, eram

junto do Estado, isto é, as instituições de solidariedade, tais como a Santa Casa da

Misericórdia e o Asilo da Ordem Terceira, deviam receber as verbas e subsídios

necessários para a manutenção de alas de auxílio aos mais pobres. Adicionalmente,

439 “Progressos locais. Mendicidade”. O Democrático, nº 742, 03/11/1928, p. 4. 440 “Progressos locais. Mendicidade”. O Democrático, nº 743, 09/11/1928, p. 4.

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apontou a necessidade da criação de uma Comissão de Assistência que fosse responsável

por dirigir-se a cada chefe de família do concelho, procurando que se contribuísse em

doações o que se daria em esmola – esta medida que O Democrático preconizava

demonstra bem o seu espírito laico e republicano, ao substituir a caridade cristã pela

filantropia. Assim, a assistência geral seria garantida sob a forma de refeições, sendo que

a assistência especial (medicamentos, dietas, etc.) ficaria a cargo de comissões das zonas,

ou seja, das aldeias ou freguesias. A comissão central ficaria responsável pelos serviços

de cadastro, recolha de donativos, organização de festas de benemerência e repatriação

dos indigentes de fora do concelho441.

Não obstante o empenho do jornal em tentar arranjar soluções e apesar da

solidariedade geral da população, a mendicidade continuava, sem surpresa, em 1936, a

representar um dos mais graves problemas do concelho, e com tendência a aumentar. O

projeto traçado pelo jornal que, note-se, contou com o total apoio do administrador do

concelho, não foi adiante. Restou a este periódico continuar a apelar, enquanto se manteve

em publicação, à extinção da mendicidade442.

No final, fica evidente o afinco e determinação que orientaram O Democrático na

campanha que, ao longo da década de 1926-1936, empreendeu em matéria de interesses

regionais, incentivo à realização de melhoramentos vários, apelando insistentemente aos

órgãos administrativos locais, ao Estado e à população vila-condense. Os interesses de

Vila do Conde foram, efetivamente – tal e qual como se comprometeu nos seus objetivos

de fundação –, a par da defesa da República, uma das grandes prioridades deste periódico.

441 “Problemas a resolver: a mendicidade”. O Democrático, nº 763, 13/04/1929, p. 4. 442 “A Mendicidade: urge tomar providências para a sua regularização”. O Democrático, nº 1013,

01/06/1934, p. 4.

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Conclusão

No término da redação desta dissertação, pode-se afirmar que O Democrático fez

justiça aos objetivos a que se propôs atingir: a destemida defesa da República e seus

valores e a luta pelos interesses de Vila do Conde.

Num país tomado por uma Ditadura Militar e depois pelo repressivo regime do

Estado Novo, com um apertado sistema censório, este periódico local – utilizando uma

redação inteligente e audaz, astuta e irónica – conseguiu manter-se fiel às suas convicções

e publicar corajosos artigos de crítica à Situação, inclusive, diga-se, de crítica habilidosa

à própria censura aplicada à imprensa periódica.

No que diz respeito ao período da Ditadura Militar, verifica-se que O Democrático

foi crítico dos governantes (principalmente, Gomes da Costa) por considerar que o

caminho que estava a ser desenhado não conduziria Portugal ao destino final mais

desejado: o retorno a um aprimorado regime republicano. Assim, apesar de ser apoiante

claro do Partido Republicano Português/Partido Democrático (e de patentear

fervorosamente esse apoio), percebeu-se que este jornal revelou uma certa dose de

imparcialidade no relato dos factos, depositou até alguma esperança em certos atos e

medidas, uma vez que – em várias ocasiões – foi capaz de reconhecer que a República,

preconizada pelos homens do 5 de Outubro precisava de ser aperfeiçoada e, de certa

forma, reinventada em muitos campos para que não se repetissem os erros do passado, e

que justamente haviam levado ao seu desmoronamento. Adicionalmente, percebe-se que

o semanário considerava que o facto de o regime republicano se encontrar dividido em

várias fações havia contribuído para a queda da República, pelo que apelava

veementemente à união de todos os republicanos.

É igualmente interessante observar que outra das estratégias do periódico em

matéria de defesa e enaltecimento da República passou pela condenação veemente das

doutrinas que lhe eram adversas: a Monarquia, desde logo, cujo potencial de recuperação

O Democrático nunca desprezou e, por isso, denunciou recorrentemente as manobras dos

monárquicos nesses tempos conturbados, assim como o Integralismo Lusitano, ideologia

que rejeitou liminarmente, vendo nele os gérmenes de uma nova ordem profundamente

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antiliberal. Mais tarde, também dirigiu as suas baterias contra o Movimento Nacional

Sindicalista, fação extremista de indisfarçável natureza fascista.

Ao mesmo tempo, servindo o seu propósito de órgão da oposição republicana, foi

apoiante fervoroso (tanto quanto a censura o permitiu mostrar) de todas as tentativas de

derrube e de oposição à Situação. Apesar de abordar o movimento reviralhista de forma

mais evidente nos anos de 1927 e 1928, patenteou-lhe, nos moldes em que tal lhe foi

permitido, a sua total aprovação.

Da mesma forma, a sua aversão e consequente condenação de regimes repressivos

e autoritários manteve-se com o advento do Estado Novo.

É importante salientar que a oposição ao regime salazarista não se materializou na

forma de críticas específicas direcionadas ao Estado, instituições, práticas ou

protagonistas, pois tal dificilmente passaria o crivo da censura. Foi antes largamente

difundida através do enaltecimento do ideário democrático, mantendo o seu alinhamento

à esquerda do espetro político republicano.

O semanário primou pela defesa das liberdades fundamentais de expressão e

opinião. Nesta linha, sobressaiu a importância que conferiu à educação numa sociedade

moderna, fundamental para a formação de jovens cidadãos informados para dirigir e/ou

decidir sobre o futuro do país através da opção por uma carreira política ou pelo direito

ao voto. Optou pela desconstrução de conceitos afetos aos fascismos que floresciam em

outros países da Europa da década de 1920, apontando os seus vícios e perigos, inclusive

sugerindo, na sua ótica, melhores e mais construtivas alternativas. Nunca mencionando

expressamente os alvos diretos da sua crítica (como a PVDE, por exemplo), O

Democrático veiculou junto dos seus leitores opiniões desfavoráveis em relação a órgãos

de repressão do regime e julgamentos desfavoráveis a certos princípios do ideário

salazarista, “passando a perna” ao lápis azul. Naturalmente, a crítica ao regime processou-

se também sob a forma de propaganda e apoio a organismos opositores do regime, como

a Aliança Republicana e Socialista.

Relativamente às políticas de saneamento financeiro empreendidas por Salazar é

importante destacar que O Democrático – como se viu – considerava necessárias as

medidas aplicadas pelo estadista, dado o difícil momento de crise que o país atravessava.

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Porém, não é menos relevante evidenciar que esse apoio ao desempenho de Salazar

enquanto Ministro das Finanças, inclusive através de apelos à população para que

compreendesse e contribuísse em prol de tais políticas, decorreu ao longo de um curto

espaço de tempo, entre 1928 e 1929. Daí em diante, tal aprovação deixou de ser

patenteada nas colunas deste periódico (não sendo todavia substituída por uma expressa

desaprovação) talvez por se ter apercebido da índole política dessas medidas e dos custos

sociais do saneamento das finanças públicas, necessariamente punitivas e

prolongadamente prejudiciais aos portugueses mais desfavorecidos. Com efeito, um

jornal de oposição a um regime ditatorial desempenha o seu papel entre gritos e silêncios,

entre denúncias frontais e reprovações subtis; o compromisso gere o seu dia-a-dia, as

contingências não podem ser depreciadas ao mesmo tempo que a habilidade se aprimora

em cada edição publicada.

Destaca-se também a tenacidade e persistência d’O Democrático, especialmente

confirmada pela campanha que empreendeu focada na denúncia de problemas e carências

de Vila do Conde; para eles apresentou hipóteses de solução adequada, suscitou debates

entre os responsáveis, alertou a população.

Ao longo do decénio, este semanário utilizou a sua influência enquanto órgão de

imprensa local para elucidar os vila-condenses relativamente aos melhoramentos que

considerava indispensáveis para o progresso da região. Como se apurou, o jornal focou-

se na luta por avanços, em todas as frentes, que resultariam em benfeitorias consideráveis

no quotidiano vila-condense. Aqui sobressaiu a posição fortemente interventiva do jornal

na forma dos seus constantes apelos direcionados à autarquia para que se tomassem

providências, sendo que, para todos os problemas, O Democrático preconizava soluções.

O tom de urgência nas reivindicações exigidas e a impaciência perante a lentidão de

resolução das mesmas por parte dos dirigentes municipais, por inércia ou por falta de

verbas, ficaram também patentes na sua redação. Assim, o periódico reiterou de forma

incansável a importância do investimento em obras públicas para o desenvolvimento e

crescimento da vila, e obviamente também para atenuar a situação de carestia de trabalho.

Por outro lado, honrando o ideário republicano que defendia, e tratando-se de um

jornal com ideias mais progressistas do que a Vila do Conde do seu tempo, não se pode

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deixar de mencionar que os constantes apelos à população para que investisse no

enriquecimento da sua cultura e aprimoramento da sua educação eram reveladores do

generalizado atraso cultural e intelectual da localidade. O periódico exigia modernidade

à pequena e retrógrada Vila do Conde da época.

Embora se desconheçam as exatas circunstâncias do encerramento deste jornal

republicano, ele teve o desfecho de vários outros correligionários seus em 1936, ano em

que a purga da imprensa periódica oposicionista ocorreu face às exigências então

impostas pelo novo regime à publicação de periódicos e seus responsáveis, exigências e

quesitos que não permitiam a sua continuidade. O objetivo do Estado Novo era claro:

calar as vozes dissonantes e incómodas e este semanário vila-condense consubstanciou

uma dessas vozes – não se calou até ao fim da sua existência, foi calado porque deixou

de poder existir.

Feito este balanço, é possível afirmar que se cumpriram os objetivos de

investigação. Numa dialética constante entre a análise da fonte hemerográfica – rica de

informação mas também complexa nos seus conteúdos – e a leitura e interpretação da

bibliografia, a pesquisa orientou-se, como explicado na introdução, no sentido de dar

resposta às interrogações iniciais. Conclusivamente, o estudo da fonte (sempre auxiliado

pela bibliografia) forneceu a perspetiva de um pequeno mas irreverente jornal vila-

condense face às mudanças políticas, económicas, sociais e culturais estruturantes

ocorridas durante a vigência da Ditadura Militar e período inicial do Estado Novo, assim

como deixou vincada a sua função de periódico defensor dos interesses locais, que pintou

em traços vívidos a Vila do Conde de meados dos anos 20 a meados dos 30, na luta entre

a estagnação e a modernidade.

A realização deste trabalho sugeriu várias pistas de investigação, designadamente

no domínio da imprensa periódica vila-condense. Seria de todo o interesse estudar os

jornais de Vila do Conde, conhecer o espetro político-partidário que a imprensa da

localidade abarcou, nomeadamente os órgãos republicanos, que não foram poucos, com

efeito mais numerosos e de maior longevidade do que em muitas outras vilas do país. Por

outro lado, e no domínio da História Local, verificou-se a escassez de estudos existentes,

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pelo que se tomou consciência do muito que há ainda por fazer, sendo urgente promover

estudos sobre Vila do Conde na época contemporânea.

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Fontes

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Anexos

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Anexo 1 – “Ao Começar”. O Democrático, nº 1, 18/05/1913, p. 1.

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Anexo 2 – “Horas Tristes”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 1.

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Anexo 3 – “A Vitória”. O Democrático, nº 630, 03/07/1926, p. 1.

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Anexo 4 – “O Perigo”. O Democrático, nº 647, 08/11/1926, p. 1.

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Anexo 5 – GUSMÃO, Duarte Vilhena – “Sufrágio Universal”. O Democrático, nº 867,

12/06/1931, p. 1.

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Anexo 6 – GUSMÃO, Duarte de Vilhena – “A mocidade académica e a política”. O

Democrático, nº 878, 11/09/1931, p. 1.

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Anexo 7 – GUSMÃO, Duarte de – “A Delação”. O Democrático, nº 898, 29/01/1932, p.

1.

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Anexo 8 – PORTUGAL, Eduardo – “Crimes”. O Democrático, nº 935, 28/10/1932, p. 1.

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Anexo 9 – ARAÚJO, Artur da Cunha – “O cancro do analfabetismo”. O Democrático, nº

2030, 30/10/1936, p. 1.

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Anexo 10 – “Problemas a resolver”. O Democrático, nº 765, 26/04/1929, p. 1.

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192

Anexo 11 – SILVESTRE, Rosa – “Vila do Conde civilizada?!”. O Democrático, nº 921,

22/07/1932, p. 1.