o Desenvolvimento Crítico Da Vontade Em Kant

download o Desenvolvimento Crítico Da Vontade Em Kant

of 11

description

O DESENVOLVIMENTO CRÍTICO da vontade em kant

Transcript of o Desenvolvimento Crítico Da Vontade Em Kant

  • 7O DESENVOLVIMENTO CRTICODA VONTADE EM KANT

    Juliano Fellini*

    RESUMO Segundo Kant, a possibilidade de a razopura prtica efetivamente determinar a vontadedepende, inicialmente, de uma profunda inves-tigao da faculdade de desejar na perspectiva desua filosofia transcendental. A fim de demonstrarisso, apresentaremos neste artigo o desen-volvimento crtico desta faculdade e, com ele, asbases sobre as quais os conceitos de uma boavontade e de uma razo pura prtica se relacionampara a constituio da moralidade.PALAVRAS-CHAVE Fundamentao tica. Moral.Razo e Vontade. Immanuel Kant.

    A investigao filosfica no mbito tico sinaliza o advento de um novo elementoconstituinte do sujeito racional: a faculdade volitiva. Em Kant, a dinmica da razopura prtica se resume na determinao racional da vontade para a constituio damoralidade. O objetivo deste artigo acompanhar a relao da razo e da vontadeem Kant para, com isso, entender o processo evolutivo deste conceito, o qualcaracterizamos como o desenvolvimento crtico da faculdade de desejar. Para afilosofia transcendental de Kant, no suficiente uma simples conformidade davontade com a razo. Somente se a vontade agir por motivos racionais, poderemosfalar em moralidade. Situada sob esse projeto crtico, a filosofia moral kantiana exigeda vontade uma disposio muito mais radical no seguimento dos princpiosracionais. Convm esclarecer que o ponto arquimediano do debate moral em Kantencontra-se j na lei moral, enquanto proposio sinttica a priori, e ser atravsdela que a vontade assumir um contorno crtico. No entanto, por razesmetodolgicas, o nosso ponto de partida encontra-se na faculdade de desejar,passando pela vontade livre at chegar ao conceito de vontade autnoma. Estasetapas refletem os distintos nveis da relao da vontade com a lei moral.

    ABSTRACT According to Kant, the possibility thatpure practical reason may effectively determine thewill depends, initially, upon an in-depthinvestigation of the faculty of desire within theperspective of his transcendental philosophy. Inorder to demonstrate this, we will present in thispaper the critical development of this faculty andwith it the bases upon which the concepts of a goodwill and of a pure practical reason relate themselvesto the constitution of morality.KEY WORDS Ethical Groundwork. Moral. Reasonand Will. Immanuel Kant.

    * Doutor em Filosofia, PUCRS.

    VERITAS Porto Alegre v. 53 n. 1 maro 2008 p. 92-102

  • 93

    IAo longo da histria da filosofia, o conceito de uma faculdade de desejar foi

    designado de diferentes maneiras. Plato diferenciou o querer do simples desejo.Em Aristteles, podemos encontrar uma diferenciao entre razo prtica(nospraktiks) e razo terica(nos theoretiks). Por sua vez, os Escolsticos se referem primeira como intellectus practicus ou como intellectus activus e ratio practica. Oswolffianos mantm a distino em sua terminologia de cognitio movens e cognitioiners, e reconhecem tanto elementos cognitivos como impulsivos na faculdade devolio, de modo que a expressam como appetitus rationalis. Em Kant, tal faculdade denominada de razo prtica(praktische Vernunft)1. Se, por ora, utilizamos aexpresso faculdade de desejar(Begehrungsvermgen), o fazemos apenas comintuitos propeduticos, isto , pretendemos acompanhar a evoluo deste conceitoat ao seu mximo desenvolvimento crtico2.

    No Prefcio da Crtica da Razo Prtica, Kant trata a faculdade de desejar emrelao ao sentimento de prazer. Ela se define como o poder (...) de ser, pelas suasrepresentaes, causa da realidade dos objectos dessas representaes 3. Osentimento de prazer intervm sobre a faculdade de desejar como a representaoda concordncia do objecto ou da ao com as condies subjectivas da vida, isto ,com o poder da causalidade de uma representao em relao realidade do seuobjecto(ou determinao das foras do sujeito para a aco de o produzir) 4. Aquiencontramos a descrio do que seja propriamente uma ao impulsiva, quando arepresentao do prazer ou dos impulsos vitais define um objetivo a ser alcanado emove a faculdade de desejar para sua realizao. Nesse sentido, a determinao dafaculdade de desejar pelo prazer denominada de apetite, e o apetite habitual denominado de inclinao. O entendimento pode encontrar uma regra entre taisinstncias (prazer e faculdade de desejar), mas que vlida apenas para o indivduo.Na contramo, surge o projeto crtico de Kant de encontrar um fundamento objetivopara a noo de ao voluntria, o que vai de encontro qualquer fundamentaodo tipo hedonista. Da a introduo do elemento racional como base de determinaoda faculdade de desejar.

    A definio da razo enquanto faculdade de princpios a priori possibilita acapacidade de agir, no apenas por representaes do agradvel, ao contrrio,podemos agir por representaes que esto acima da mera sensibilidade. Estacapacidade de sermos, por meio de uma representao racional, causa dos objetosdaquela representao define uma espcie de causalidade pertencente aos seresracionais que dispem de outro fundamento alm do simples impulso. Contudo, comoconceber o movimento da faculdade de desejar sem o expediente do impulso, do

    1 Cf. BECK, L. W. A Commentary on Kants Critique of Practical Reason. Chicago and London: The Universityof Chicago Press, 1984, p. 37.

    2 O prprio Kant refere-se a ela inicialmente nestes termos, faculdade de desejar, para acentuar que o seutratado filosfico no pertence a uma psicologia emprica, mas a uma filosofia transcendental.

    3 CRPr A 16.4 CRPr A 16.

  • 94

    interesse? A razo possibilita que seus princpios determinem a conduta e se tornemigualmente o seu motivo, o seu interesse, o seu impulso. Por isso, Kant afirmar aexistncia de um puro interesse da razo e poderamos design-lo como umainclinao livre dos sentidos (propensio intellectualis) 5.

    A possibilidade de um puro interesse da razo nos conduz seguinte distino:faculdade de desejar inferior e faculdade de desejar superior. A primeira estimediatamente relacionada com um objeto(do prazer) e, como tal, somente podefornecer regras de ao, mas nenhuma lei moral. O objeto constitui a matria dafaculdade de desejar e o desejo desse objeto precede a regra prtica. O problemaque ronda tais princpos prticos materiais, que podem ser designados sob o princpiogeral do amor de si ou da felicidade pessoal, a falta de objetividade. Mesmo reunidossob uma nica designao, na realidade eles esto sujeitos contingncia. Por outrolado, a faculdade de desejar superior, que se origina, quando a razo passa a serconsiderada como instncia de determinao, possibilita a capacidade de agir poroutros critrios que no os sensveis: A razo pura deve, por si mesma apenas, serprtica, isto , sem pressuposio de um sentimento qualquer, por conseguinte, semrepresentaes do agradvel ou desagradvel (...) 6.

    Desde a primeira Crtica, o emprico mostrou-se sinnimo do contingente, e seuequivalente no mbito prtico so os princpios materiais que se mostram ineficientesenquanto critrio objetivo da moralidade. Por isso, Kant quer demonstrar quefundamentos no-racionais no possuem consistncia interna, no sonecessariamente obrigatrios e nem universais em sua aplicao. Uma ordem moralobjetiva jamais poderia ser construda a partir de tais fundamentos. A razo, tantona esfera terica quanto prtica, serve para sistematizar, integrar e universalizar7.Portanto, dada a inconsistncia dos princpios prticos materiais, requer-se que elessejam excludos do processo de fundamentao moral.

    A razo, ento, proporciona uma regra puramente formal vlida para todos osseres racionais, sem distino, o que permite falar de uma faculdade de desejarsuperior: Se no existissem leis puramente formais que determinassemsuficientemente a vontade, tambm no poderia admitir-se uma faculdade de desejarsuperior 8. Isso vem ao encontro da necessidade de fundar a teoria moral em termoscientficos, no sentido de um fundamento seguro. O filosofar prtico no endossasimplesmente aquilo que o senso comum sabe ou como a razo vulgar age; ele vaialm e proporciona bases seguras para a questo do moralmente bom. A regra formalda razo, como princpio a priori universal e necessrio, constitui-se neste princpioque promete um critrio seguro para a soluo das questes morais.

    Se a determinao da faculdade de desejar, por meio de uma regra formal darazo, constitui um critrio objetivo de ao, precisamos encontrar na vontade as

    5 MC AB 4.6 CRPr A 44, 45.7 Cf. BECK, L. W. A Commentary on Kants Critique of Practical Reason. Chicago: The University of Chicago

    Press, 1984, p. 47.8 CRPr A 41.

  • 95

    propriedades que garantem a efetividade dessa determinao. Desse modo, oque nos conduz ao item subseqente ser a questo de como possvel haver umasntese entre elementos to dspares como o so razo e faculdade de desejar, oque demanda a exposio da liberdade como instncia fundamental da dinmicada razo pura prtica.

    IIComo visto anteriormente, a possibilidade de uma faculdade de desejar superior

    diz respeito ao conceito de vontade, que no outra coisa seno a prpria faculdadede desejar cujo fundamento determinante e da at mesmo o que lhe agradvel se encontra na razo do sujeito(...) 9. A condio que permite chegar a tal conceitode vontade a liberdade.

    Desde a Dialtica, na primeira Crtica, Kant explora a liberdade sistematicamenteassociada ao conceito de causalidade e, agora, no interior da filosofia prtica no diferente, uma vez que a vontade uma espcie de causalidade dos seres vivos,enquanto racionais, e liberdade seria a propriedade dessa causalidade, pela qualela pode ser eficiente, independentemente de causas estranhas que a determinem10.No contexto da razo em seu uso terico, ficou estabelecido que todas as mudanasacontecem de acordo com o princpio da ligao de causa e efeito 11. Da sedepreende que a sucesso dos fenmenos na natureza acontece sempre sob regras:A natureza inteira em geral nada mais , na verdade, do que uma conexo defenmenos segundo regras; e em nenhuma parte h irregularidade alguma 12.Estamos falando de uma sucesso objetiva de fenmenos, isto , da representaode um objeto em geral segundo uma regra universal. Essa regra provm doentendimento que, de uma base a priori, permite afirmar que no h irregularidadealguma, ou seja, que os fenmenos se sucedem um ao outro na relao de causa eefeito necessariamente.

    interessante notar que, na anlise do conceito de causalidade, outros conceitosesto a implicados: Esta causalidade leva ao conceito de ao, esta ltima aoconceito de fora e, desse modo, ao conceito de substncia 13. Kant quer chamar aateno para o conceito de substncia, no tanto pela caracterstica da permanncia,mas por sua propriedade ativa, isto , de produzir aes. No entanto, a causalidade,a partir do modelo da substncia, no afirma a ao como um comeo a partir delamesma. H um fundamento de determinao que est para alm da substnciamesma e que se explica pelo determinismo natural. A ao, enquanto causa dasmudanas no mundo, no se diferencia em nada da ao humana e ambas nosaparecem como simples processos da natureza, pois a diferena entre as aesnaturais e a ao humana no se deixa perceber nos seus efeitos, mas na propriedadede o agente racional ser uma causa incausada. neste ponto especfico, de afirmar

    9 MC AB 5.10 FMC BA 97.11 CRP B 233.12 L A 1.13 CRP A 204 B 249.

  • 96

    uma causalidade livre, que se concentram os esforos na busca de um fundamentode determinao da ao para alm do paradigma terico14.

    Com isso, retorna pauta a problemtica condio de um conceito para o qual arazo, em seu uso terico, se v incapaz de apresentar uma soluo definitiva, poisno basta verific-la por certas supostas experincias da natureza humana (...),mas sim temos que demonstr-la como pertencente actividade de seres racionaisem geral e dotados de uma vontade 15. O que gera uma especial dificuldade encontrar uma base para afirmar que determinados efeitos so procedentes de umaao, a partir de uma causalidade livre. Em se tratando de uma ao em sentidoterico, temos a possibilidade de, pelo encadeamento fsico, chegar causa, poisesta de natureza sensvel. Em sentido prtico, nos deparamos com uma dificuldadeirredutvel: encontrar sob determinados efeitos sensveis uma causa supra-sensvel.Contudo, esse procedimento j foi dispensado por Kant, pois tal conceito se define ese resolve apenas aprioristicamente, e a experincia unicamente nos d a conhecera lei dos fenmenos, por conseguinte, o mecanismo da natureza, que constituiprecisamente o contrrio da liberdade 16.

    Diante disso, Kant busca a idia da liberdade a partir de nossa condio deseres racionais. O fato de possuirmos a faculdade da razo, ainda que em sentidoterico, denota a existncia de uma pura atividade prpria, o que demonstra queno nos constitumos simplesmente de sensibilidade receptiva. Na conscincia denossa espontaneidade epistmica estamos diretamente conscientes de umacapacidade que nos subtrai aos condicionamentos sensveis17. Assim, podemosafirmar que a prova da liberdade se daria no prprio agir, visto que acompanhadode uma autoconscincia que exclui a subordinao s causas naturais. A liberdadepode ser compreendida no agir prprio e voluntrio, pois, pela deciso, possoperceber que as causas subalternas da natureza so superadas, dada a conscinciaque tenho de comear algo a partir de mim mesmo. O agir humano se distingue detodas as demais aes na natureza, porque vem acompanhado desta autoconscincia.O ato que brota de mim procede da espontaneidade de um eu que pensa e que no uma simples reao a outro ato qualquer, o que permite assumir outra perspectivaquando da reivindicao da liberdade: a perspectiva de um eu no simplesmentesujeito aos fluxos naturais. Pela perspectiva natural, a liberdade pareceria um auto-engano. Contudo, da perspectiva do prprio agir, no h como no me conceder talpropriedade, a de ser livre: sem ela, o prprio agir no se deixaria compreender18.

    A associao do agir idia da liberdade de tal forma intrnseca que, se algummentir, e, com isso, trouxer uma certa desordem sociedade, nenhuma justificaode ordem emprica (m educao, ms companhias, m ndole, circunstncias) sesustenta diante do fato de se tratar de uma ao voluntria e que poderia, no

    14 Ver: WILLASCHEK, M. Praktische Vernunft: Handlungstheorie und Moralbegrndung bei Kant. Stuttgart/Weimar: J. B. Metzler, 1992.

    15 FMC BA 100.16 CRPr A 53.17 Cf. ALLISON, H. E. Kants Theory of Freedom. New York: Cambridge University Press, 1995, p. 222.18 Cf. GERHARDT, V. Immanuel Kant Vernunft und Leben. Stuttgart: Reclam, 2002, p. 197s.

  • 97

    obstante todas as condies empricas, ser de outro modo, pois a ao atribudaao carcter inteligvel do autor19. O carter inteligvel, ao qual Kant se refere, dizrespeito ao Eu tal como ele seja constitudo em si(...), aquilo que chega conscincia,no por afeco dos sentidos, mas imediatamente 20. A partir da, podemoscompreender o levantar-se da cadeira como uma resoluo que no produto somentede uma seqncia natural. A causalidade humana situa-se em meio aosdeterminismos, mas no deriva deles simplesmente. A caracterstica dainteligibilidade o que define a personalidade do sujeito prtico, e as condies damoralidade devem ser buscadas a, no carter inteligvel daquele que se faz apergunta o que devo fazer.

    Dessa maneira, Kant garante a possibilidade de vislumbrar tal princpio em meioao determinismo natural, sem que isso signifique qualquer contradio21. O carterinteligvel permite a independncia humana relativamente aos impulsos naturaisou simplesmente sua espontaneidade. Do que foi posto, podemos concluir que aliberdade melhor se define enquanto uma propriedade negativa da vontade a qual,entendida como arbtrio (Willkr), tem a possibilidade de fazer escolhas por critriosracionais. No entanto, uma completa determinao do problema moral requer umadeterminao mais positiva para a questo da liberdade. Saber que se livre paraagir no ainda suficiente, enquanto no se determinar precisamente como se deveagir, o que vem a ser a questo central da moralidade.

    IIIKant deixa suficientemente claro que a liberdade no significa a ausncia de

    leis ou a mera capacidade de se subtrair aos determinismos naturais. Saber que se livre das determinaes naturais , sem dvida, fundamental como condio depossibilidade de uma teoria moral. Entretanto, saber como agir, o que vem a serto ou mais importante, requer leis que dem um direcionamento prxis humana.Kant afirma que a liberdade (...) nos transfere para uma ordem inteligvel dascoisas22. Por conseguinte, nessa ordem inteligvel das coisas que devemos buscaresta espcie particular de lei que nos permitir entender o conceito de autonomia.

    Na segunda Crtica, Kant determinar o mundo inteligvel a partir de umaanalogia com o mundo sensvel. Se podemos definir a natureza como a existnciadas coisas sob leis empricas, o que, para a razo, significa heteronomia, podemostambm definir uma natureza suprasensvel nos mesmos moldes, apenasdiferenciando suas leis como independentes da condio sensvel e que pertencem autonomia da razo. A idia de um mundo supra-sensvel constitui uma naturezaarquetpica da qual nos dado conhecer uma lei.

    19 CRP A 555 B 583.20 FMC BA 107.21 Segundo Kant, a reunio da causalidade, como liberdade, com a causalidade enquanto mecanismo da

    natureza, estabelecendo-se a primeira pela lei moral e a segunda mediante a lei natural, num s e mesmosujeito, o homem, impossvel, sem representar este, na relao primeira, como ser em si mesmo, masrelativamente segunda como fenmeno, aquele na conscincia pura, este na conscincia emprica.Sem isso inevitvel a contradio da razo consigo mesma(CRPr A 10, 11).

    22 CRPr A 72.

  • 98

    Com isso remontamos idia da razo como faculdade de princpios. Em termosprticos, a razo ocupa-se dos princpios determinantes da vontade, a qual umafaculdade (...) de produzir objectos correspondentes s representaes (...), isto ,de determinar a sua causalidade 23. A vontade no apenas pode contemplar-se comoindependente das condies empricas, mas tambm sob a ordem de uma legislaoracional manifesta no fato da razo enquanto conscincia da lei moral. Esta lei expresso do eu numnico, superior sensibilidade, que assegura, no somente ouso prtico da razo, mas a vontade (Wille) num sentido plenamente crtico, o queleva Kant a afirmar que vontade livre e vontade submetida a leis morais so uma ea mesma coisa 24 . Essa identificao entre a faculdade racional e a faculdade volitiva a traduo do conceito de vontade autnoma.

    A autonomia significa dispor de uma regra racional para o discernimento morale tambm tomar interesse por ela como o motivo exclusivo da ao. Nesse sentido, arazo deve ser tambm capaz de causar um interesse suficiente no agir moral e derestringir quaisquer outras oposies advindas da sensibilidade. Nisso podemosencontrar duas funes para a razo pura prtica: uma cognitiva, quando determinacomo deve ser a ao, e outra volitiva, quando motiva a ao por si mesma. Emsuma, a autonomia trata de nossa habilidade e responsabilidade para saber o que amoralidade requer de ns e a nossa determinao a agir moralmente25.

    A principal caracterstica que deve definir e causar interesse por uma regra asua universalidade. Este ser um dos pontos principais sobre o qual Kant insistirao longo de toda sua filosofia prtica:No escolher seno de modo a que as mximasdas escolhas estejam includas simultaneamente, no querer mesmo, como leiuniversal 26. Contudo, da percepo do ser racional humano tais determinaeschegam na forma de um dever, pois que a vontade est colocada entre o seu princpio

    23 CRPr A 29, 30.24 FMC BA 99.25 Segundo Henrich, h dois momentos especficos que constituem a autonomia da razo. O primeiro deles

    diz respeito ao reconhecimento de aes que podem ser qualificadas como racionais. Podemos chegar aesse discernimento a partir dos princpios contidos na prpria razo (principium diiudicationis bonitatis).O segundo refere-se capacidade que a razo tem de realizar aes, ou seja, como causalidade produzirefeitos (principium executionis bonitatis). Ver: HENRICH, D. Ethik der Autonomie. In: HENRICH, D.Selbstverhltnisse. Stuttgart: Reclam, 2001, p. 6-56.

    26 FMC BA 87 ONeill chama a ateno para a questo do que realmente significa uma vontade autnoma:se a vontade que age to-somente a partir de si mesma ou se a vontade que age de acordo com uma leiuniversal. O primeiro sentido refere-se liberdade em sentido negativo, quando o agente contempla-seindependente das influncias externas. Nesse caso, o agir autnomo se definiria apenas como a aoque tem por referncia a legislao prpria do agente, e nisso no est contida ainda a idia uma legislaoque possa ser adotada por todos. Se permanecssemos apenas com esta definio de autonomia, asconseqncias poderiam ser contrrias quelas pretendidas por Kant. No entanto, o segundo sentido deuma vontade autnoma vem definir o critrio de uma legislao prpria: a que deve valer para todos osoutros. Assim, uma vontade autnoma segue sendo a autolegislao do agente, contudo, no horizonteda universalidade, ou seja, com referncia quilo que todos os demais seres racionais devem tambmquerer. Por conseguinte, a capacidade de autolegislao no degenera para o sentido de arbitrariedade,dado que ela se define sob a concepo de uma razo pura prtica universal (cf. ONEILL, O. Autonomyand the Fact of Reason in the Kritik der praktischen Vernunft. In: HFFE, O. (Org.) Immanuel Kant Kritikder praktischen Vernunft. Berlin: Akademie Verlag, 2002, p. 81-97).

  • 99

    a priori, que formal, e o seu mbil a posteriori, que material 27. Esta condio davontade implica, muitas vezes, um dficit motivacional a ser compensado peloimperativo da razo.

    Logo, o que num primeiro momento tratamos por leis da liberdade, aparece agoradefinido como prescries da razo que ordenam um dever-ser. Da perspectiva denossa natureza sensvel h uma realidade regida por leis naturais que explicam oque j , e isso pode ser determinado pela cincia. Da perspectiva de nossa naturezainteligvel h uma realidade a ser constituda pelas leis da liberdade que apontampara um dever-ser, e disso se ocupa a filosofia moral. Como se trata de uma realidadea ser constituda, suas leis so na sua forma prescries, e o fato de possuirmos ascondies para agir autonomamente no elimina a tenso interna natureza humanaque percebe a lei da razo sob a forma do dever. Isso, entretanto, no impede que aao humana possa estar de acordo com o dever desde a sua inteno.

    Aqui podemos conceber o conceito da vontade boa como designao para avontade autnoma. Uma primeira caracterstica atribuvel vontade boa a de queo seu princpio de determinao deve ser a priori ou formal. Este princpio defineapenas a forma do querer em geral, sem levar em conta o objeto e os desejosenvolvidos na ao, pois estes apenas validam o querer de um ponto de vistaparticular. Tal processo assegura uma vontade exclusivamente determinada pelaforma de uma lei universal, de modo que entre o querer e a lei moral no permaneanenhum mbil sensvel. Por conseguinte, o valor da ao no depende da realidadedo objecto da aco, mas somente do princpio do querer segundo o qual a aco,abstraindo de todos os objectos da faculdade de desejar, foi praticada 28.

    Outra caracterstica pode ser encontrada na afirmao de que uma acopraticada por dever tem o seu valor moral, no no propsito que com ela se queratingir, mas na mxima que a determina 29. Atravs disso, fica estabelecido tambmque a ao deve abstrair de todo e qualquer fim que, por meio dela, se queira realizar.A matriz deontolgica da moral kantiana busca garantir que nada, alm da lei moral,venha a se afirmar como critrio de moralidade, se quisermos falar em um valorincondicional que no pode residir em parte alguma seno no princpio da vontade,abstraindo dos fins que possam ser realizados por tal aco 30.

    27 FMC BA 14.28 FMC BA 13.29 FMC BA 13.30 FMC BA 14. As caractersticas do Imperativo Categrico sempre conduziram os intrpretes de Kant a

    classificar sua moral como deontolgica. A ao por puro dever, a permanncia da pura forma da lei,nenhuma referncia a fins na determinao da vontade: todas essas idias sedimentaram uma concepoacerca dos princpios morais kantianos que, recentemente, vem sendo desconstruda por alguns de seuscomentadores que no mais o referem unicamente ao deontologismo moral, mas ampliam a perspectiva,direcionando-a para os aspectos teleolgicos ou para uma teoria dos valores presentes na filosofia moralkantiana. Ver: HORN, C. Wille, Willensbestimmung, Begehrunsvermgen. In: HFFE, O. (Org.) ImmanuelKant Kritik der praktischen Vernunft. Berlin: Akademie Verlag, 2002, p. 43-61. ; HERMAN, B. The Practiceof Moral Judgment. Cambridge MA: Harvard University Press, 1993; e tambm SCHNECKER, D. ;ALLEN, A. W. Kants Grundlegung zur Metaphysik der Sitten Ein einfhrender Kommentar. Paderborn/Mnchen/Wien/Zrich: Ferdinand Schningh, 2002.

  • 100

    A contrapartida positiva da ao moral como abstrao de um objeto e deum fim o dever como a necessidade de uma ao por respeito lei 31. Se, porum lado, a lei moral causa dano ao amor-prprio, por outro, ela infunde nessemesmo ser um sentimento positivo: o respeito. Esta a conseqncia geradano indivduo que declina de todas as inclinaes por reconhecer na lei da razoum princpio superior, que conduz sua existncia enquanto sujeito prtico: Aquiloque eu reconheo imediatamente como lei para mim, reconheo-o com um senti-mento de respeito que no significa seno a conscincia da subordinao da mi-nha vontade a uma lei 32. Com o sentimento de respeito, temos a possibilidadede um aliado sensvel contribuir para a determinao da vontade pela razo, oque no implica qualquer contradio, visto que produto dela mesma. Se o inte-resse demanda necessariamente um elemento sensvel, este dado pela razoquando na vontade j nada mais resta do que a forma da lei universal e oreconhecimento da superioridade da natureza racional: Todo o chamado interessemoral consiste simplesmente no respeito pela lei 33. Esse sentimento amanifestao fenomnica de uma razo pura prtica efetivamente atuando noser racional finito.

    Com isso, encerra-se o processo de fundamentao das condies que nospermitem chegar ao conceito de uma vontade boa ou autnoma: A necessidadedas minhas aes por puro respeito lei prtica o que constitui o dever, perante oqual tem de ceder qualquer outro motivo, porque ele a condio de uma vontadeboa em si, cujo valor superior a tudo 34. Se o uso prtico da razo refere-se relao de uma razo pura com a vontade, pudemos acompanhar o desenvolvimentodeste conceito at s ltimas conseqncias da filosofia transcendental kantiana,que o eleva de uma simples faculdade de desejar noo de uma vontade boa.

    Consideraes FinaisO processo de fundamentao do princpio supremo da moralidade em Kant no

    pode ser esgotado se, inicialmente, suas condies no forem verificadas e, elasprprias, fundamentadas. Em ltima anlise, tais condies somente encontram umtermo no prprio horizonte da moralidade, enquanto mbito dos juzos sintticosa priori prticos. Por questes metodolgicas, temos acompanhado o conceito davontade desde a sua definio pr-crtica, enquanto simples faculdade de desejar,passando desta para a vontade livre e, por fim, chegando ao conceito plenamentecrtico da vontade boa, o qual s possvel de ser vislumbrado no horizonte dalegislao moral. Logo, a moralidade no uma derivao analtica de suas condiesde possibilidade. Ao contrrio, a lei moral, enquanto proposio sinttica a priori,traz consigo a sua prpria realidade na qual o conceito de uma vontade plenamentecrtica tambm se realiza. Portanto, o conceito de vontade autnoma a concluso

    31 FMC BA 14.32 FMC BA 16.33 FMC BA 17.34 FMC BA 20.

  • 101

    que se segue, quando j se est de posse da resposta pergunta o que devo fazer,e no sua condio prvia.

    No entanto, a vontade qual nos referimos, continua sendo humana, o quedemanda das leis da razo a forma de um dever. Num sentido negativo, Kant tempor pressuposto, na sua filosofia moral, um entendimento geral das leis da naturezahumana ou da antropologia. Apesar disso, o conceito da vontade, associado ao daliberdade, permite que tais interesses possam ser suplantados, mas o que no podeser suplantado a prpria vontade enquanto considerada sob seus aspectossensveis. A forma imperativa da lei da razo um atestado de que Kant nonegligencia a vontade sob seus aspectos sensveis, mas tambm no a reduz a umafaculdade emprica. O filsofo de Knigsberg acentua que tais aspectos no sodeterminantes e que a vontade, ao se subtrair deles, pode agir por motivos racionais.Se, exclusivamente, isso o que no se pode verificar pela experincia. No entanto,para o desenvolvimento crtico da faculdade de desejar, suficiente saber que avontade possui as propriedades necessrias para uma determinao a priori pelosprincpios da razo.

    Nesse contexto surge a questo da motivao moral. Ao longo da Funda-mentao, Kant mostra o respeito como a expresso do interesse que podemos tomarpela lei moral e afirma que o princpio objetivo do querer tambm o seu motivo. preciso tornar concebvel, dentro da estrutura da filosofia prtica kantiana, apresena de um elemento sensvel, se quisermos conceber sua filosofia prticacomo efetiva. Alguns comentadores se referem razo kantiana como escravados impulsos, mas uma escrava inteligente que guia seu patro de acordo comseu projeto crtico. Sem um elemento sensvel, no podemos falar em motivaomoral, e a razo pura prtica no teria xito na constituio da moralidade. Porisso, a razo produz o sentimento de respeito a partir da lei moral. A investiga-o kantiana quer ser completa, quando associa questo o que devo fazer outrato importante por que agir moralmente, pois as consideraes ticas possuemo seu valor, quando, alm de proporcionar em um fundamento filosfico seguro,movem a vontade ao.

    RefernciasALLISON, H. E. Kants Theory of Freedom. New York: Cambridge University Press, 1995.

    BECK, L. W. A Commentary on Kants Critique of Practical Reason. Chicago and London:The University of Chicago Press, 1984.

    GERHARDT, V. Immanuel Kant Vernunft und Leben. Stuttgart: Reclam, 2002.

    HENRICH, D. Ethik der Autonomie. In: HENRICH, D. Selbstverhltnisse. Stuttgart: Reclam,2001, p. 6-56.

    HERMAN, B. The Practice of Moral Judgment. Cambridge MA: Harvard University Press,1993

    HORN, C. Wille, Willensbestimmung, Begehrunsvermgen. In: HFFE, O. (Org.) ImmanuelKant Kritik der praktischen Vernunft. Berlin: Akademie Verlag, 2002, p. 43-61.

    KANT, I. A Metafsica dos Costumes. Trad. Edson Bini. Bauru/SP: EDIPRO, 2003.

  • 102

    __________. Crtica da Razo Prtica. Trad. Artur Moro. Lisboa: Edies 70, 1989.

    __________. Crtica da Razo Pura. 5.ed. Trad. Manuela P. dos Santos e Alexandre F. Morujo.Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2001.

    __________. Fundamentao da Metafsica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa:Edies 70, 2000.

    __________. Lgica. Trad. Guido Antnio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.

    __________. Werke in sechs Bnden. Hrsg. Wilhelm Weischedel. Darmstadt:Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2005.

    ONEILL, O. Autonomy and the Fact of Reason in the Kritik der praktischen Vernunft. In:HFFE, O. (Org.) Immanuel Kant Kritik der praktischen Vernunft. Berlin: Akademie Verlag,2002, p. 81-97.

    SCHNECKER, D. ; ALLEN, A. W. Kants Grundlegung zur Metaphysik der Sitten Eineinfhrender Kommentar. Paderborn/Mnchen/Wien/Zrich: Ferdinand Schningh, 2002.

    WILLASCHEK, M. Praktische Vernunft: Handlungstheorie und Moralbegrndung bei Kant.Stuttgart/Weimar: J. B. Metzler, 1992.