O DESENVOLVIMENTO DA PSIQUIATRIA JURÍDICA

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O DESENVOLVIMENTO DA PSIQUIATRIA JURÍDICA Montserrat Martins* Qualquer projeto científico tem o seu impulso criador, o seu processo, a sua conclusão provisória, numa pessoa ou em várias pessoas. O conhecimento – mesmo o conhecimento científico – é aquele que é subjetivamente aceitável. O conhecimento científico só pode ser transmitido àqueles que estão subjetivamente preparados para receber a sua comunicação. (Carl Rogers) O psicodiagnóstico para fins jurídicos remonta há pouco mais de 200 anos, simbolicamente, quando Philippe Pinel entra num asilo em Paris para distinguir entre loucos e criminosos, misturados aos presos políticos, que se encontravam aprisionados e acorrentados. Partidário da Revolução Francesa de 1789, com a vitória dos revolucionários Pinel tem assim a oportunidade de humanizar os asilos, exercendo o diagnóstico diferencial dos alienados, dentre outros autores de delitos. Pouco antes de 1800, portanto, Pinel se torna o “pai da Psiquiatria” moderna e traz com ele o primeiro modelo de psiquiatria científica, tendo um foco de estudo bastante simples: o paciente. Do ponto de vista da epistemologia científica, isto é, do estudo dos critérios que dão validade ao conhecimento científico, podemos chamar este primeiro modelo de “unifocal”. 1800 – FOCO ÚNICO: O PACIENTE > O Somente um século depois, por volta de 1900, o foco de estudo científico passa a incluir também o próprio psiquiatra. Isso foi registrado tanto por Freud, ao teorizar 1

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O DESENVOLVIMENTO DA PSIQUIATRIA JURÍDICA

Montserrat Martins*

Qualquer projeto científico tem o seu impulso criador, o seu processo, a sua conclusão provisória, numa pessoa ou em várias pessoas. O conhecimento – mesmo o conhecimento científico – é aquele que é subjetivamente aceitável. O conhecimento científico só pode ser transmitido àqueles que estão subjetivamente preparados para receber a sua comunicação. (Carl Rogers)

O psicodiagnóstico para fins jurídicos remonta há pouco mais de 200 anos, simbolicamente, quando Philippe Pinel entra num asilo em Paris para distinguir entre loucos e criminosos, misturados aos presos políticos, que se encontravam aprisionados e acorrentados. Partidário da Revolução Francesa de 1789, com a vitória dos revolucionários Pinel tem assim a oportunidade de humanizar os asilos, exercendo o diagnóstico diferencial dos alienados, dentre outros autores de delitos.

Pouco antes de 1800, portanto, Pinel se torna o “pai da Psiquiatria” moderna e traz com ele o primeiro modelo de psiquiatria científica, tendo um foco de estudo bastante simples: o paciente. Do ponto de vista da epistemologia científica, isto é, do estudo dos critérios que dão validade ao conhecimento científico, podemos chamar este primeiro modelo de “unifocal”.

1800 – FOCO ÚNICO:

O PACIENTE > OSomente um século depois, por volta de 1900, o foco de estudo científico passa a

incluir também o próprio psiquiatra. Isso foi registrado tanto por Freud, ao teorizar sobre a transferência e a contratransferência, quanto por Jaspers, ao estabelecer as condições subjetivas necessárias para compreender e descrever fenomenologicamente os sintomas. O método científico tem assim uma evolução paradigmática, comum à psicanálise e à fenomenologia, que podemos chamar de modelo “bifocal” ou “relacional”.

1900 – MODELO BIFOCAL: (RELACIONAL)

O PACIENTE EO PSIQUIATRA

O >< O

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Com o desenvolvimento impulsionado pela psicanálise, mas também por outras correntes científicas, inclusive de outros campos de conhecimento, surgem em torno de 1950 as primeiras teorias que ampliam ainda mais o foco de estudo da psiquiatria, através de autores como Ackermann, um dos pioneiros da terapia de família. Ao longo da segunda metade do século XX, este novo modelo científico – conhecido como sistêmico – se afirma, trazendo para o presente a observação das relações familiares, antes entendidas como fundamentais apenas na fase de formação da personalidade do indivíduo. O comportamento então é considerado em função de vários níveis de interação sistêmica, incluindo desde o início o contexto das famílias.

1950 – MODELO SISTÊMICO:(INTERACIONAL, CONTEXTUAL,FAMILIAR E INTERDISCIPLINAR)

O CLIENTE, O TERAPEUTA,AS FAMÍLIAS E OS CONTEXTOS

O><O

Quanto mais complexo um modelo epistemológico, naturalmente se torna mais difícil sua compreensão e, mais ainda, sua prática. Se nos moldes anteriores ainda podia haver alguma crença na possibilidade de uma posição ideal de “neutralidade” do observador em relação ao observado, o entendimento das interações sistêmicas evidencia essa impossibilidade. Tudo está relacionado não somente à pessoa do observador como à toda construção de sua percepção subjetiva do outro, formada em uma determinada família, dentro de um contexto social e histórico.

É assim que um discípulo de Ackermann, Minuchin, tenta definir a posição do terapeuta em relação ao cliente:

“É até possível agrupar terapeutas de grupo familiar de acordo com sua utilização reconhecida das operações de acomodação e reestruturação... No grupo ‘transferencial’... o terapeuta está do lado de fora, olhando para dentro... No grupo ‘existencial’, o terapeuta opera do lado de dentro, sem se desligar.”

No limiar do século XXI, no início dos “anos 2000”, aprofunda-se gradativamente a revolução epistemológica desencadeada pelo modelo sistêmico, a partir do reconhecimento da insuficiência de que uma única disciplina – seja ela a Psiquiatria, ou a

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Psicologia, ou mesmo ambas reunidas enquanto “Ciências Psíquicas” – possam proporcionar um modelo científico auto-suficiente que permita compreender, “diagnosticar” e “tratar” de comportamentos humanos. Cada vez se torna mais evidente que a conduta humana requer não apenas um modelo interdisciplinar, como transdisciplinar, com o concurso integrado de vários campos científicos das áreas biológicas, psíquicas, sociais, entre outras.

As perspectivas antropológicas, as teorias da comunicação e todo o desenvolvimento das ciências sociais apontam para a impossibilidade da “posição de desligamento” entre observador e observado, num modelo científico transdisciplinar. Ambos não apenas interagem a partir de contextos próprios, mas fazem parte de um mesmo macrocontexto – o que já era apontado desde o início, pela teoria dos sistemas – que os diferencia por suas posições dentro deste.

2000 – MODELO TRANSDICIPLINAR(INTEGRAÇÃO DOS MODELOS CIENTÍFICOS BIO-PSICO-SOCIAIS)

O><O

As ilusões desfeitas, de modelos simples para estudos do comportamento, não podem ser compensadas sequer pela ilusão de uma posição de “desligamento” do observador em relação ao observado. Restam as questões éticas, as técnicas e os paradigmas a serem questionados, para o estabelecimento de padrões científicos admissíveis, a partir da compreensão da complexidade das ciências humanas.

É interessante observarmos que, na esfera da Psiquiatria e da Psicologia Jurídicas (talvez por suas condições intrinsicamente transdisciplinares, desde o início, em relação à

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criminologia e à sociologia), já havia se colocado há mais tempo a questão do “uso do self” do terapeuta, antes mesmo desta técnica ser completamente sistematizada pelos terapeutas de família. Assim é que Lion e Pasternak, em 1973, já citavam as reações do examinador como fator diagnóstico na predição da tendência homicida dos examinados:

“A resposta do examinador tem importância para o diagnóstico nesta síndrome. É uma espécie de ansiedade hostil que é produzida pela frieza congelante do paciente. Esta resposta parece ser patognomônica da síndrome de desumanização. No entanto, deve-se estar sempre alerta para as respostas de contratransferência defensiva que pode interferir na avaliação objetiva.”. (In: Necir, J. Homicidal behavior among persons underage of nineteen. Acta Univers. Caroline.[Ned.Monogrs.] J.(Phaha) nº 70: 1-100-1975.).

A compreensão da complexidade do campo científico também requer a humildade de reconhecer os limites da ciência: “Geralmente considera-se possível, embora difícil, prever a potencialidade suicida. Já a predição da probabilidade de atos homicidas ou de agressão violenta é fato ainda controvertido.” (Derek, Miller and Looney. Determinants of homicide in adolescent. In: Adolescent Psychiatry, vol.4, Ed.Aronson, Incorp., N.York, 1976).

TRANSDICIPLINARIEDADE NAS PRÁTICAS E NAS TEORIAS ATUAIS

O desenvolvimento de um modelo científico mais complexo, transdisciplinar, não significa que todos os profissionais contemporâneos concordem, compreendam ou utilizem em sua prática este novo paradigma.

A condição de controle social, que inevitavelmente a sociedade e o Estado demandam aos profissionais das ciências psíquicas, favorece o aprimoramento tecnológico de métodos de resposta imediata a essa demanda, tal como o controle da conduta através dos psicofármacos ou técnicas comportamentais individuais. Para o exercício dessas técnicas, biológicas ou psíquicas, pouco importam questões epistemológicas de se estar utilizando padrões científicos que chamamos aqui de “unifocais”, pois se trata de exercer o controle sobre indivíduos cuja conduta foi classificada entre as desviantes.

É importante termos claro que um modelo transdisciplinar não pode prescindir de instrumentos biológicos ou mesmo psíquicos individuais, pois estes também fazem parte deste conjunto de disciplinas. O que tem de ser distinguido, aqui, é se as abordagens individuais, psíquicas ou biológicas, são utilizadas dentro de um contexto mais amplo, ou se são preconizadas como o único “instrumento” oferecido pela prática do profissional.

EXEMPLOS NA ESFERA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE

Na condição específica de exercício da Psiquiatria Jurídica na esfera da Infância e da Juventude, num momento em que a criminalidade no Brasil cresce assustadoramente, chama a atenção desde logo o enfoque dado à delinqüência juvenil.

Pesquisas científicas recentes, em nosso meio, já identificaram os principais fatores psicossociais da violência juvenil, apontando inclusive a prevalência (sobre outras variáveis pesquisadas) de um fator familiar (omissão paterna) que pode ser abordado

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diretamente no tratamento destes jovens (Trindade, Jorge. Delinqüência Juvenil: Compêndio Transdisciplinar. Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2002).

Paradoxalmente, as instituições responsáveis pelo atendimento de adolescentes infratores não dispõe de terapia familiar para os seus internados, abordando a problemática dos jovens como se fosse meramente individual. Como conseqüência da desconsideração com os fatores sóciofamiliares, o tratamento dispensado aos adolescentes institucionalizados restringe-se à medicalização dos mesmos para conter uma agressividade cujas origens são negligenciadas.

A desconsideração com o tratamento familiar dos adolescentes infratores é apenas o mais chocante, dentre todos os exemplos de descompasso entre o grau de consciência da complexidade de nossas ciências psíquicas e a prática destas ao nível mais primitivo, como se houvesse apenas “pacientes” como objeto de estudo, independentemente do contexto.

Na área da infância, um grande avanço tem sido o aumento das denúncias sobre maus tratos e abuso sexual, que em 85% dos casos ocorre a nível intrafamiliar, ou seja, a vitimização das crianças sendo produzida por pais, padrastos, irmãos, tios ou até avós. O que torna a questão mais delicada, na medida em que a pessoa que violenta faz parte da vida afetiva da vítima. O que significa, por exemplo, que o abusador não é apenas um abusador, é também o pai daquela criança.

Outro grave complicador da avaliação da situação de abuso é a proliferação de casos de falsas denúncia de abuso. Numa “sociedade de massas”, como definem os sociólogos, os fenômenos sociais se divulgam e se reproduzem rapidamente e tem “efeitos colaterais” quase imediatos. Ao mesmo tempo em que se torna comum denunciar abusos antes ocultados, se desenvolve a prática de falsas denúncias como modo de obter “vantagens secundárias”, como em litígios de casais separados. Assim, além de se habilitar a reconhecer os sinais e sintomas de abuso, os peritos também terão de adquirir conhecimentos acerca das características da falsa denúncia de abuso. (Gardner, Richard. The Parental Alienation Syndrome and the Differentiation Between Fabricated and Genuine Child Sex Abuse. Creative Therapeutics, ISBN 0-933812-17-5, 1987). Como proceder à avaliação de um pai acusado de abuso sexual? Como distinguir entre os sentimentos de repulsa do próprio profissional e os da vítima? Cada enfoque teórico tem os métodos para lidar com essas questões, mas as soluções teóricas não devem nos tranqüilizar tanto. Porque a subjetividade do perito também faz parte das variáveis de um diagnóstico diferencial entre a verdadeira e a falsa denúncia de abuso. Mais de uma vez, já vimos laudos sobre abuso até mesmo sem entrevista com o acusado.

QUESTÕES A SEREM ENFRENTADAS

Em que posição nos colocamos nessas situações, em que a vida de outras pessoas, os vínculos familiares e sociais, são influenciados por nossos laudos? Quais são as nossas teorias, métodos e critérios? Não há como negar que subjacente a todas as questões técnicas estão valores humanos subjetivos. O psiquiatra inglês Ronald Laing publicou um estudo sobre a teoria genética da esquizofrenia, analisando a metodologia dos pesquisadores que concluiu pela

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determinância genética desse transtorno, encontrando algumas evidências de que as conclusões sofreram influência da própria vontade dos pesquisadores em chegar aquele resultado. Por exemplo, em casos de dúvida no diagnóstico de parentes de pacientes internados como doentes mentais, para firmar um diagnóstico positivo nestes, eles consideravam o próprio fato de serem parentes do internado. Um erro grosseiro, em um estudo que era aceito como científico até a crítica de Laing.

A comunidade científica evolui, cada vez mais, em reconhecer a complexidade destes temas. A Organização Mundial da Saúde, ao publicar a Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10, fala claramente que “uma classificação é um modo de ver o mundo de um ponto no tempo” e evita o padrão médico antigo de “doença”, admitindo a transdiciplinariedade inerente à questão da conduta: “O termo ‘transtorno’ é usado por toda a classificação, de forma a evitar problemas ainda maiores inerentes ao uso de termos tais como ‘doença’ ou ‘enfermidade’. ‘Transtorno’ não é um termo exato, porém é usado aqui para indicar a existência de um conjunto de sintomas ou comportamentos clinicamente reconhecível associado, na maioria dos acasos, a sofrimento e interferência com funções pessoais. Desvio ou conflito social sozinho, sem disfunção pessoal, não deve ser incluído em transtorno mental, como aqui definido.” (O.M.S. Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10. Porto Alegre, Artes Médicas, 1993).

Se admitimos que temos de considerar as variáveis subjetivas dos próprios profissionais, na Psiquiatria e na Psicologia Jurídicas, isso inclui o modo como estes lidam com as questões de gênero. Na nossa cultura, por exemplo, o padrão emocional familiar predominante entre adolescentes infratores é terem mães superprotetoras e pais omissos. Somente os profissionais que considerarem a presença do pai verdadeiramente relevante para o desenvolvimento emocional é que investirão neste tema que, via-de-regra, é negado pelos próprios adolescentes, freqüentemente por mágoas, que os levam a evitar o assunto.

Por fim, é provável que cada vez mais, no futuro, as questões que envolvem a crise social, como o crescimento dos “poderes paralelos”, numa “sociedade de massas” e sob influência dos meios de comunicação de massa (TV, rádio, cinema, e todos modos de mídia e comunicação contemporâneos, inclusive a internet) atinjam cada vez mais de perto a vida dos próprios profissionais, levando a novas redefinições da Psicologia Jurídica. Motivo pelo qual temos de nos perguntar, sempre: quais são nossos valores ? * Psiquiatra do Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre. Trabalho apresentado no I Congresso Internacional de Psicologia Jurídica e Transdisciplinariedade; ULBRA, Canoas-RS, 14/05/04.

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