O deserto verde do eucalipto

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MUNDO E MISSÃO 28 Nayá Fernandes* – [email protected] É domingo. Uma a uma das oito meninas sai do banheiro com a toa- lha enrolada no corpo. As demais, no quarto, pintam as unhas e arrumam os cabelos com alegria pueril e, ao mesmo tempo, cheia de caipi- rice. Muitos pequenos agricul- tores tentaram tirar a família de onde Maria da Conceição Silva e seus 12 filhos plantam e colhem o próprio sustento. Para chegar à sua casa é preci- so deixar o carro há quase dois quilômetros e prosseguir a pé. Cercada de verde e ao lado de uma nascente, a família mora a cerca de 30 quilômetros da cida- de de Jenipapo de Minas-MG, no Vale do Jequitinhonha. A ta- pera é rodeada por árvores fru- tíferas, horta, uma grande área verde que protege a nascente e o córrego que se formam ao redor dela. Neste dia, acontece a Missa com o bispo diocesano que, pela primeira vez, passa por estas bandas. Resignar-se ou migrar Na estrada, sem conhecer o caminho, ganhamos a juvenil companhia de Jéssica. A mãe, pela janela, grita com uma voz trêmula e ao mesmo tempo for- te: “Ah! Vocês vão visitar Maria? Ela merece. Sofreu com a doen- ça do marido. Saía para a cidade e deixava as crianças sozinhas. E agora sofre com a filha”. Como compreender uma mãe de 12 fi- lhos, pobre, que mora de favor, perde o marido para o câncer e luta contra a doença em uma das suas filhas? A seca dificulta o cultivo das plantações e, por isso, a migração é comum nas famílias da região. Cana, café, laranja e o trabalho nos grandes centros urbanos são as oportunidades que os mora- dores do Vale encontram para levar adiante a vida. Muitos per- manecem fora a maior parte do ano e só voltam para trazer auxí- lio aos familiares que ficaram. Em Minas, o deserto verde do eucalipto Agronegócio, seca e migração são obstáculos para a vida do Vale do Jequitinhonha Vivendo “de favor” “A casa não é minha, mas o dono da fazenda deixa a gente viver aqui”, conta Maria. Seu olhar dirige-se com frequên- cia a uma das filhas, sentada no único banco de madeira, na sala, onde há também uma mesinha e uma televisão. Há mais três quartos pequenos, onde meninos e meninas se di- videm. O banheiro e a cozinha ficam fora. A mãe, orgulhosa, faz questão de mostrar os azu- lejos do banheiro, adquiridos pela filha mais velha, de 17 anos, que ali colocou o dinhei- ro obtido com um trabalho no Rio de Janeiro. Grande parte dos nascidos no Vale vive a mesma situação da primogênita de Maria que, ain- da menor, precisou migrar para trabalhar. Ela não teve escolha. Com a morte do pai e uma do- ença na garganta da irmã, a res- ponsabilidade recaiu sobre ela. Balde utilizado para carregar água na comunidade quilombola Córrego Narciso, na zona rural de Araçuaí. Sergio Ricciuto Conte wikimedia.org Em destaque o Vale do Jequitinhonha-MG pag. 28-29 - periferias_191.indd 28 3/6/15 10:10 AM

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Frases como "monocultura não é floresta" já são bem conhecidas e demonstram o quanto esse tipo de prática pode fazer mal. Pelo terceiro ano seguido em visita no Vale do Jequitinhonha, região nordeste de Minas Gerais, percebi o quanto o plantio de eucalipto vem crescendo e com ele, o meio ambiente e a população têm sofrido. Mas enquanto os problemas giram em torno de questões urbanas e a mídia não muda seus discursos, quase ninguém sabe os crimes que acontecem todos os dias no interior do Brasil. Não, monocultura não é floresta!

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MUNDO E MISSÃO28

Nayá Fernandes* – [email protected]

É domingo. Uma a uma das oito meninas sai do banheiro com a toa-lha enrolada no corpo. As demais, no quarto,

pintam as unhas e arrumam os cabelos com alegria pueril e, ao mesmo tempo, cheia de caipi-rice. Muitos pequenos agricul-tores tentaram tirar a família de onde Maria da Conceição Silva e seus 12 filhos plantam e colhem o próprio sustento.

Para chegar à sua casa é preci-so deixar o carro há quase dois quilômetros e prosseguir a pé. Cercada de verde e ao lado de uma nascente, a família mora a cerca de 30 quilômetros da cida-de de Jenipapo de Minas-MG, no Vale do Jequitinhonha. A ta-pera é rodeada por árvores fru-tíferas, horta, uma grande área verde que protege a nascente e o córrego que se formam ao redor dela. Neste dia, acontece a Missa com o bispo diocesano que, pela primeira vez, passa por estas bandas.

Resignar-se ou migrarNa estrada, sem conhecer o

caminho, ganhamos a juvenil companhia de Jéssica. A mãe, pela janela, grita com uma voz trêmula e ao mesmo tempo for-te: “Ah! Vocês vão visitar Maria? Ela merece. Sofreu com a doen-ça do marido. Saía para a cidade e deixava as crianças sozinhas. E agora sofre com a filha”. Como compreender uma mãe de 12 fi-lhos, pobre, que mora de favor, perde o marido para o câncer e luta contra a doença em uma das suas filhas?

A seca dificulta o cultivo das plantações e, por isso, a migração é comum nas famílias da região. Cana, café, laranja e o trabalho nos grandes centros urbanos são as oportunidades que os mora-dores do Vale encontram para levar adiante a vida. Muitos per-manecem fora a maior parte do ano e só voltam para trazer auxí-lio aos familiares que ficaram.

Em Minas, o deserto verde do eucalipto

Agronegócio, seca e migração são obstáculos para a vida do Vale do Jequitinhonha

Vivendo “de favor” “A casa não é minha, mas o

dono da fazenda deixa a gente viver aqui”, conta Maria. Seu olhar dirige-se com frequên-cia a uma das filhas, sentada no único banco de madeira, na sala, onde há também uma mesinha e uma televisão. Há mais três quartos pequenos, onde meninos e meninas se di-videm. O banheiro e a cozinha ficam fora. A mãe, orgulhosa, faz questão de mostrar os azu-lejos do banheiro, adquiridos pela filha mais velha, de 17 anos, que ali colocou o dinhei-ro obtido com um trabalho no Rio de Janeiro.

Grande parte dos nascidos no Vale vive a mesma situação da primogênita de Maria que, ain-da menor, precisou migrar para trabalhar. Ela não teve escolha. Com a morte do pai e uma do-ença na garganta da irmã, a res-ponsabilidade recaiu sobre ela.

Balde utilizado para carregar água na comunidade quilombola Córrego Narciso, na zona rural de Araçuaí.

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29Abril • 2015

Agricultura familiar produz 70% da alimentação mundial

Números recentes da Organi-zação das Nações Unidas infor-mam que 70% da alimentação mundial provêm de pequenas propriedades. Mas, ainda que esses agricultores sejam essen-ciais para o fornecimento de alimentos, os investimentos do Governo na região são direcio-nados, principalmente, para o agronegócio.

Constata-se que o recurso total para fortalecer a agricul-tura familiar camponesa é de R$ 61.420 mil, conforme o Pla-no Plurianual de Ação Gover-namental de 2012-2015, mas o montante para a atividade agrá-ria é de R$ 1,55 bilhão, investi-dos em mais de 30 mil hectares no plantio de eucalipto e pínus.

A assistente social e pesqui-sadora Claudilene da Costa Ra-malho ressaltou que “o Índice de Desenvolvimento Humano da região é de 0,69%, um dos me-nores do Estado de Minas. Há políticas públicas de incentivo, porém, muitas vezes, os agricul-tores familiares e camponeses não têm acesso”. Mesmo com di-ficuldades, metade das famílias consegue produzir itens da cesta básica como: café, arroz, feijão, milho, frutas e hortaliças, leite e derivados. “Cerca de 50% delas nunca foram atendidas por ne-nhum programa de crédito agrí-cola do Estado”.

A mão que se abreHá 30 anos, o Serviço Pasto-

ral dos Migrantes (SPM) realiza uma missão anual no Jequiti-nhonha. Voluntários de todo o país permanecem cerca de 10 dias em comunidades urbanas e rurais de um município esco-lhido. Seu objetivo é conhecer e conviver com o povo, além de ouvir e levar às autoridades as

lutas e dores da população. En-tre as principais causas da mi-gração forçada estão a seca, o agronegócio que expulsa os pe-quenos agricultores e as dispu-tas por terra, sobretudo no caso das comunidades quilombolas.

A mão que se fechaJosé Carlos Pereira, o Carli-

nhos, nasceu no Vale e coor-dena o SPM Nacional. No Se-minário “Migração e Trabalho Escravo” durante a missão na diocese de Araçuaí-MG, cha-mou a atenção sobre as em-presas que fazem barragens e não partilham a água com a comunidade. “Um dos prin-cipais motivos da imigração é o não acesso à água. Órgãos e pastorais trabalham na região, mas a dona de casa continua a dizer: ‘Meu pai, meu esposo, meus filhos estão migrando’”. Carlinhos lembrou que a situ-ação se agrava com a chegada de grandes empresas e que, em geral, têm isenção tributária e não geram nenhuma melhoria para a população local.

Eucalipto e granito, os vilõesPaulo André Alves de Amaral,

da Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais, nos acompa-nhou em visita às comunidades quilombolas e aos grupos de

mulheres que trabalham com medicina alternativa nos muni-cípios de Itaobim, Itinga, Jenipa-po de Minas e Araçuaí. Impres-siona ver a quantidade de carre-tas carregadas com toras de eu-calipto e granito que transitam diariamente pelas estradas que ligam os municípios. “O euca-lipto é responsável por parte do processo de desertificação da nossa região. E as mineradoras acabam com as serras e chapa-das. É um crime ambiental sem tamanho”, constatou Paulo.

O Brasil é o maior produtor de celulose do mundo. A celulose é utilizada para a fabricação do pa-pel produzido a partir do eucalip-to. Com exportação para a Chi-na, o negócio têm investimentos milionários e uma das maiores empresas no setor, a Fibria, fun-dada em 2003, lucrou bilhões de reais em 2014. Outro investidor da Fibria é o Banco Nacional de Desenvolvimento Social. Em res-posta à reportagem, a sua asses-soria de imprensa informou que, só na aquisição de 36 caminhões tratores e de 58 semirreboques para transporte de toras, o Banco desembolsou, em setembro de 2014, R$ 24.900 milhões.

* Jornalista, graduanda em Filosofia e Teologia na PUC-SP.

Voluntária do SPM no Vale do Jequitinhonha.

Caminhão carregado com toras de eucalipto

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