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Introdução

Não obstante o título, esta história não é de ficção: é a história da contestação popular à discussão do projecto da lei de bases da reforma agrária em algumas zonas do concelho da Ribeira Grande, Santo An-tão, especialmente nos dias 30 e 31 de Agosto de 1981, contada a partir das declarações prestadas durante a instrução do processo pelos réus e pelas testemunhas.

Encarado como político, esse processo foi desde o princípio prosse-guido através de métodos pouco ortodoxos. Por exemplo: toda a gente sabia que algumas pessoas tinham sido presas em Santo Antão e trans-portadas durante a noite para São Vicente, sabia-se inclusivamente em que navio tinham sido transportadas, e no entanto nem o comissário da Polícia de Ordem Pública nem o comandante da Polícia de Segurança admitiam ter conhecimento de presos vindos de Santo Antão. Se fosse verdade, diziam ingénuos, então só podiam estar no quartel. Por sua vez o quartel recusava com obstinação: Deus livre, exclamavam, mas que ideia mais louca militares andarem prendendo civis, não se estava em estado de sítio, se havia presos então tinham que estar à ordem de alguma das Polícias, eles ignoravam tudo a respeito, que se perguntasse noutro lado qualquer.

E debalde se insistia com o comissário: — Mas, comissário, toda gente diz que de manhã cedo o Damão chegou carregado de presos, houve mesmo quem visse o desembarque a pontapés e coronhadas e tropas de arma em punho... Ignoro, camarada doutor, nada sei a res-peito, mas admito que seja boato, as pessoas inventam, o senhor sabe como é... Aliás na verdade já me tinham posto o problema, mas falei com o comandante da Segurança e ele também nada sabe...

Não obstante a «ignorância» das autoridades, a verdade é que toda

a gente sabia da existência dos presos, até porque soldados em serviço no quartel do Morro Branco garantiam publicamente a sua presença nas celas ali existentes.

Até que dias depois aconteceu o incidente com os «dentes» de um preso, incidente esse que viria a revelar-se uma considerável brecha no muro de silêncio que envolvia o caso. Quando a Segurança bateu à por-ta de um desses indivíduos e lhe gritou que tinha 3 segundos para estar cá fora, ele levantou-se atrapalhado e em cuecas, e apenas enfiou umas chinelas. Esqueceu-se dos «dentes» que dentro de um copo d’água re-pousavam à cabeceira da cama. Logo agarrado quando abriu a porta, o homem protestou confusamente que precisava apanhar os dentes, que não podia ser preso de noite e sem dentes. Porém os captores a nada atenderam, tinham instruções precisas: levá-los como estivessem, mes-mo nus! E por isso foram firmes.. Dente é para comer e você vai é falar! E assim ele foi levado, desdentado e de cuecas e chinelos.

Dois dias depois apareceu a mulher em São Vicente transportando um tímido embrulho que, explicou ao comandante da Segurança, eram os dentes do marido. E queixou-se que sem os dentes o pobre homem apenas conseguia engolir papas, e toda a gente sabe que papas não dá sustância ao corpo, que o comandante tivesse compaixão do pobre e mandasse entregar a dentição.

Ora, ou tenha sido por cansaço ou então mera distracção, o certo é que dessa vez o comandante não negou a existência de presos. Pelo contrário, falou animando a senhora: que o marido estava bem, que ela não se preocupasse porque ele não precisava de nada. ,,Nós damos--lhes tudo, até pasta de dentes.. ,Mas os dentes, senhor comandante, ele sem dentes não consegue comer nada...» «Há ordens precisas, minha senhora, não podem receber nada de fora. Têm farda, têm toalha, têm artigos de higiene...» ,Mas os dentes, senhor comandante, só os den-tes.... Já lhe disse, damos tudo, até dentes se for preciso...»

Os dentes não foram recebidos, mas ficou admitida a existência de presos. Restava agora o contacto com os advogados. Os familiares desesperavam os advogados, mas estes não sabiam que fazer porque todas as tentativas para se aproximarem dos presos eram logo recha-

çadas com vários argumentos: É ter paciência, não vale a pena insistir, sabem bem que é a lei, se quiserem dêem-nos as procurações, nós levamos, eles assinam e devolvemos, eles estão incomunicáveis, não po-dem contactar ninguém...

Viria a ser o advogado António Caldeira Marques a conseguir esca-lar essa sólida muralha de argumentação. Porque tendo pedido audi-ência ao ministro do Interior, solicitou-lhe autorização para falar com um seu constituinte. O ministro terá recusado com variadas razões, entre elas a circunstância de o homem estar incomunicável. E, sem dú-vida num brilhante rasgo de inspiração, o advogado perguntou-lhe se o preso estava também invisível. «Isso não», terá respondido o ministro, «qualquer., preso pode ser visto. Não se pode é falar com ele.» E foi assim que o advogado viria a ser autorizado a «ver. o seu preso, porém, com ordens estritas, não podiam falar um com o outro!

Finalmente desbloqueada a situação com as Polícias, admitiu-se que seria mais fácil para os presos lidar com os tribunais. Mas não, por-que do princípio ao fim, primeiro os tribunais civis, depois os militares, assumiram-se como os guardiões do Poder e só se detiveram depois de uma brutal condenação posteriormente anulada nos seus efeitos pelo poder político.

O presente livro é a história dos dias que estiveram na origem desse julgamento.

Mindelo, Junho 1999

I

«Hoje é dia de festa de calças roladas», terá dito um dos protago-nistas da história acontecida no dia 30 de Agosto de 1981 no sítio de Figueiral da vila de Ribeira Grande da ilha de Santo Antão.

E eu vou contar os dias das calças roladas, obedecendo o mais estritamente possível aos depoimentos e diversas versões, ainda que entre si contraditórias, das dezenas de pessoas que viriam a ser ouvi-das durante a instrução do processo judicial relativo aos desacatos.

Logo na noite seguinte 16 pessoas viriam a ser presas, sob a acu-sação de terem sido os cabecilhas dos dias das calças roladas. Espan-cadas, seviciadas, privadas dos direitos mais elementares, seriam a seguir julgadas e condenadas em tribunal militar a longas penas de prisão. Porém, não ficou claro que a condenação tenha sido justa. De facto, ao longo desta história veremos os cabecilhas surgindo do meio do povo como se nascessem dos trapiches e das ribeiras e nun-ca se chegará a saber se houve, de facto, um grupo que liderou todo aquele mais que confuso processo.

Daí, pois, alguma dificuldade quanto ao nome a dar a esta histó-ria, porque houve como que duas histórias que viveram juntas, a de «o dia das calças roladas» e a outra que se lhe seguiu e que foi a de «o julgamento da Reforma Agrária» que se disse sua consequência, embora não tivesse ficado provado ter urna alguma coisa a ver com a outra, pelo menos directamente.

Claro que poderia omitir qualquer nome, dizer simplesmente vou contar uma história. Mas eu conheço a minha gente. Logo diriam: sobre o quê? É que nós temos a mania dos nomes, os nomes como que nos situam, nos trazem à memória não apenas os locais mas também datas e outros eventos. Por exemplo, o local onde se deu o «recontro militar» do dia 31 de Agosto... Aliás, «recontro» é uma maneira exa-gerada de dizer, não houve propriamente nenhum «recontro», pode mesmo dizer-se que foi apenas um «encontro» entre as tropas que vinham da Vila da Ribeira Grande e os civis que estavam do outro lado da ribeira a caminho da vila, pois a partir do momento em que se viu na pele que as balas matavam, um morto confirmado no terreno, dois feridos gemendo no chão, os ânimos exaltados foram obrigados a serenarem e os «revoltosos», como foram depois apo-dados, desistiram de forçar a libertação dos três detidos da véspera, que depois viriam a ser julgados, eles e mais uns tantos, no tribunal popular de Coculi, como contarei mais adiante e documentarei a final em anexo, através da transcrição da reportagem da Rádio Voz de São Vicente que atentamente cobriu os acontecimentos e sobre o assunto nos deixou páginas bem deliciosas.

Mas estava falando acerca da mania dos nomes. Por exemplo: ao lugar onde se deu o «encontro» foi logo atribuído um nome. E nada mais nada menos que o de »Campo da Batalha». A seguir ao 31 de Agosto já ninguém dizia «fui para Boca de Figueiral», «passei pela Boca de Figueiral». Todo o mundo dizia: Passei!, Fui!, para o «Cam-po da Batalha».

Não ficou provado sem margem para qualquer dúvida que o Bi-bino tivesse prometido que, no futuro, naquele lugar se levantaria um «monumento de cimento em memória do mártir». Ele nega pe-remptoriamente essa passagem. Como, aliás, viria a negar muitas outras diante do juiz auditor, a quem previamente faria questão de esclarecer que muito ia dizer «em contradição com as declarações anteriores (prestadas na Segurança), o que se explica pelo facto de ter prestado estas sob o peso de torturas físicas». Estas são as pala-vras do próprio Bibino e os argumentos com que se defendeu da pa-

ternidade da proposta do monumento são poderosos e convincentes, entre eles o preço a que o cimento está!

Certamente se dirá que pessoas mais abalizadas, talvez mais bem preparadas ou mesmo mais objectivamente colocadas, deveriam fa-lar sobre este caso que profundamente abalou as bases do PAICV em Santo Antão e chegou a fazer tremer muito militante na sua fé política, sem contar com alguns casos de renegação, ainda que pro-visória, como será referido mais adiante. Não que me falte a neces-sária imparcialidade para contar o que li e ouvi e também vivi, as razões de cada lado, esforçando-me o máximo possível para delas não extrair conclusões ou tomar posição. Nem haverá necessidade de tomar posição. As balas mostraram de que lado estava a razão e o direito, repuseram as coisas nos seus devidos lugares e, posto a ferros o chamado «grupo de chefia» dos tumultos, as discussões sobre a «Reforma Agrária» continuaram como estava programado. Esta pelo menos foi a posição oficial divulgada e não há nenhuma necessidade de não a subscrever dado que em nada isso perturbará o desenrolar da nossa história.

É claro que não faltaram espíritos boateiros e dados a agitar opi-niões, a brandir a altos berros que não se tinham mostrado necessá-rios os disparos das armas, os soldados estavam dentro dos Volvos, a quase três metros de altura, humanamente impossível atacá-los a pau, faca ou machim, e por isso os tiros tinham sido violência inútil, só para dar gosto ao dedo no gatilho... Este é o mal de tropa preparada para efeitos meramente decorativos! Diga-se, porém, que na verdade há outras opiniões bem diferentes dessa acima, e even-tualmente fundamentadas num melhor conhecimento da realidade. Por exemplo, a do primeiro-secretário do PAICV na Ribeira Gran-de, Ovídio Fernandes. Em linguagem empolada no final do julga-mento de Coculi, referiu que por causa da tentativa de desrespeito «dos nossos dirigentes, dirigentes que andaram mais de 30 anos na luta, dirigentes que andaram com Cabral na luta», por causa desse desrespeito por parte de «pessoas com um passado triste» e que se permitiram o atrevimento de escrever os nomes desses dirigentes nas

paredes da Vila de Ribeira Grande, «foi com grande sacrifício, foi com grande esforço, foi com grandes conversas que conseguimos fa-lar aos camaradas para nunca, numa situação daquelas, abrir fogo», porque «mesmo que fosse com 3 ou 4 metralhadoras, perante aque-la população, haveria centenas de mortes». E é igualmente dentro dessa mesma linha de princípios, embora outra vez de orientação contrária, que muito se comenta os protestos do capitão Sotero por causa dos tiros disparados e que ele na altura terá pura e simples-mente achado um exagero desnecessário. Ah! mas o capitão Sotero acabou por firmemente negar qualquer atitude de rebeldia dentro ou fora da corporação militar, disse e repetiu que nunca manifestou qualquer discordância perante o procedimento das Forças Armadas. «Mas sabe que têm corrido boatos nesse sentido, não só em Santo Antão como nas outras ilhas e até lá fora», confirmou ele, quando chamado a depor perante o tribunal da sua classe. E suando em bica e apertando o dedão, aproveitou a oportunidade para se redimir completamente de todas as suspeitas que sobre ele estavam recaindo de simpatia pela causa dos insurrectos. E num esforço para se lim-par de toda a nódoa, de forma a não ficar com qualquer mácula na carreira a eventualmente impossibilitar uma promoção que de qual-quer modo jamais viria a ter, declarou com abundância de palavras que «quando chegou à Boca de Figueiral em companhia das forças armadas já aí havia uma grande multidão de gente armada de paus, chuços, facas, machins, etc., em grande tumulto e a gritar slogans contra a Reforma Agrária, contra a presença da Rússia em Cabo Verde, etc.; que o Selaise se encontrava à frente da multidão e muito agitado, que o Armindo Cruz tentou falar para o povo da caixa do Volvo onde se encontrava, mas foi impedido; que algumas pessoas queriam que ele falasse mas ao tomar o megafone foi impedido; que o Andelmo tentou falar e então as pessoas como que endoideceram, pois que as pessoas da zona estavam mesmo com raiva do Andelmo; que assim tentaram passar o Andelmo para um jipe para ver se o tra-ziam imediatamente para a Vila; que nessa altura a multidão tinha cercado completamente o Volvo; que na passagem, muitos militares

fizeram um corredor de protecção ao Andelmo, mas mesmo assim o subtenente Eduardo Correia foi agredido com um pau no braço e o agressor tentou desarmá-lo pelo que teve de dar dois tiros para o ar, mas acabou por atingir o agressor mortalmente»... Sim, de facto, de-pois da coisa já feita, para quê insistir na discordância! Os empregos estão difíceis, a vida caríssima, a tropa sempre vai safando. Ora eu que me limito a contar como aconteceu, ouvindo as razões de todas as partes, nada comentarei a respeito, cada um que conclua como quiser, nada tenho com isso, já bem me basta a responsabilidade de narrar, tanto mais que daqui a pouco teremos que de novo voltar ao nosso capitão para ele concluir as suas declarações, e então sim, nes-sa altura aproveitaremos para o ver um bocadinho no meio do seu povo onde ele nega ter estado, talvez mesmo bastante perto do agi-tado Selaise em quem por sinal a douta sentença final não viria a en-contrar nenhum outro crime para além do pela mesma não provado, mas mais ou menos intuído, de que ele não duvidava dos objectivos dos outros réus e da consonância desses objectivos com os da UCID. Pelo que, e tendo em consideração a pequenez da sua culpa, Selaise viria a ser condenado em apenas 5 anos de prisão, posteriormente e muito benevolentemente reduzidos para 4 pelo magnânimo e sempre compassivo Supremo Tribunal Militar.

Mas mesmo diante desta brutalidade recuso em definitivo tomar sobre mim os fardos de contar e também concluir. Estive mesmo consideravelmente tentado a estabelecer como divisa desta história aqueles versos de Camões sobre «mão na consciência» e «verdades puras». Pena é já terem sido usados pelo menos uma vez por Jorge Amado, seria chato abusar.

Aliás, «conclusões» é coisa que temos, e lindas e saborosas, que enrolam na língua como se fossem chocolate ou champanhe. Repa-re-se, por exemplo, nesta do senhor Presidente da República: «Es-peramos que o nosso povo saberá fazer uso da liberdade de expres-são que conquistou com a independência», disse ele uma vez, já não garanto se mesmo a propósito da Reforma Agrária. É claro que o senhor presidente, que parece um homem de muito humor, que está

sempre sorrindo, disse isso também a sorrir. E por isso a gente fica sempre sem saber se ele falava a sério, se apenas estava brincando.

E assim, uma das maiores dificuldades que há em tirar conclusões é exactamente esta: onde acaba a brincadeira e começa a seriedade? Porque sabendo-se como se sabe e toda a gente diz, que nos jogos das políticas não apenas os gestos, como também os sorrisos e até os penteados e a cor dos fatos têm importância capital, que são tão im-portantes e até às vezes mais importantes que as próprias palavras, primeiro que se conclua torna-se antes necessário analisar, não direi as vísceras, mas pelo menos os humores e o resto e só depois decidir do significado e valor a atribuir às palavras que ouvimos. E daí que o eterno sorriso presidencial seja de todo enigmático e muitas vezes até de difícil interpretação.

E diga-se em verdade que no geral as próprias palavras acabam por ficar sumamente enganadoras ou pelo menos muito escorrega-dias. Por exemplo, que significado real se deve legitimamente atri-buir à expressão «liberdade de expressão»? Falando sobre o tema na sessão de encerramento da 1.ª Conferência Nacional do Sector Sindical dos Marítimos, Metalomecânicos e Correlativos, já depois do «dia das calças roladas», o senhor ministro do Interior afirmou peremptório que «a nossa Constituição reserva a cada cidadão o di-reito de ter a sua ideologia e até o direito de exprimi-la e até de a dis-cutir, porque há direito de expressão, há direito de discussão». Isso foi ainda a propósito dos presos da Reforma Agrária e destinou-se a concluir que os elementos considerados responsáveis directos pela perturbação da ordem pública em Santo Antão tinham sido encar-cerados, «não pela possível ideologia que abraçam, não por não es-tarem de acordo com a nossa ideologia, com a ideologia do nosso partido, do PAICV». «Concreta mente», acrescentou o ministro, «não é pelo facto de esses elementos serem afectos ou simpatizantes de qualquer outra Organização que pretende enfrentar, combater, o nosso Partido e naturalmente o nosso Estado e o nosso Governo. Esses elementos foram presos porque agiram como mobilizadores, como agitadores, como executantes» das desordens praticadas du-

rante esses dias.Mas outras pessoas garantem que não, que a «liberdade de expres-

são» mais não significa que «liberdade de expressão fisionómica». Isto é, cada um tem o direito de fazer as caretas que entender e sem perigo de intervenção da Segurança, desde que as faça em casa, no sossego do lar e com a condição suplementar de nenhum membro da família ser informador da polícia. Assim, por exemplo, durante o tempo colonial, quem quisesse dar um viva ao PAIGC, o partido que na Guiné cuidava da nossa libertação, tinha que o fazer em casa, à porta fechada e em voz baixa, pois a PIDE era activamente vigi-lante, tinha olhos e ouvidos em toda a parte, nunca se sabia se o pai, a mãe, um irmão... de criadas nem se fala! Sabe-se inclusivamente de casos de indivíduos que para ouvir sossegadamente e sem chatices supervenientes os «poemas de luta» tiveram que alta noite se retirar para o campo munidos de gira-discos (na altura a cassete era pouco usada), onde, livremente, libertadamente, puderam dar largas ao seu ferrenho e indesmentido nacionalismo — ouvindo com os grilos o grito da revolta e da libertação, sem os incómodos da polícia e da ameaça sempre presente do Tarrafal.

Felizmente que com a Independência Nacional tudo isso mudou radicalmente, essas maçadas ficaram pertencendo à História. Ago-ra qualquer cidadão, desde que queira e livremente assim o decida, pode sair para a rua e gritar aos berros os vivas que quiser ao PAICV que nenhum incómodo sofrerá por isso. Pode-se mesmo acrescentar que em épocas superiormente determinadas, ou no calendário ou na simples vontade dos nossos dirigentes, como que se é obrigado a exercer essa eminente liberdade social, isto é, dar vivas deixa de ser uma faculdade individual para se converter numa especial obri-gação social, num sagrado dever político. Especialmente quando se é funcionário público, quando se tem vínculo comestível com o Es-tado. Porque nesse caso o cidadão adquire e fica automaticamente empossado no direito-dever de dar vivas, direito-dever esse que deve obrigatoriamente exercer não apenas por motivos patrióticos mas também por solidariedade patronal, sujeito a estrita vigilância dos

chefes e capatazes, pois que quando se dispensa do trabalho activo, quer seja Repartição Pública quer seja Frente de Alta Intensidade de Mão-de-Obra, é para a prática de actos de natureza cívica e não para o deboche ou borga nos botequins.

Essa, portanto, poderia ser a liberdade de expressão que conquis-támos ou pelo menos apenas uma perspectiva da liberdade de ex-pressão que conquistámos, pois ninguém pode garantir semelhan-temente e absolutamente que todas as conclusões não passam de simples especulações mais ou menos audaciosas.

Tomemos mais uma vez como exemplo, já que estamos a falar no assunto, o perene sorriso do nosso presidente. Houve uma vez em que ele falou sério, com uma seriedade melancólica e magoada e foi na sequência do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 na Guiné: «Compatriotas», disse ele, «um duro golpe foi assestado na noite de sexta-feira passada na obra que vínhamos pacientemente empreendendo há mais de vinte anos...»

E de facto tinha sido um duro golpe para todos nós, cada um por uma razão qualquer. Em primeiro lugar nada fazia prever uma daquelas. Os fundamentos pareciam sólidos e não era por acaso. Durante vinte anos tinha sido aquele trabalhar no sentido da unida-de, da pátria livre e forte e desde 1975 que não se acabava discurso algum, fosse qual fosse a sua temática, sem que primeiro se gritasse pelo menos duas vezes «Viva a Unidade Guiné-Cabo Verde». Que havia resistências isso havia, não se pode negar. Nem toda a gen-te via claramente os grandes benefícios que nos traria a unidade e por essa razão muita cacetada foi distribuída por causa dela, mesmo muita cabeça teve a Segurança que abrir a manduco para nelas ins-tilar os princípios da unidade que, na ausência de uma explicação aprofundada e convincente, precisava ser imposta e aceite como uma espécie de dogma nacional.

E por isso, a princípio ninguém acreditou que a Rádio, os telexes, os jornais, as pessoas, estivessem a falar verdade: seria então possível destruir em duas horas vinte anos de trabalho paciente e firme? Que gigante terrível era aquele cabeçudo Nino que com um único sopro

deitava abaixo uma obra que, dizia-se, radicava em quinhentos anos de luta comum? O espanto e a comoção foram gerais. E importa di-zer, a bem da verdade, que atingiram não só aqueles que sonharam a unidade como igualmente aqueles que sempre a tinham detestado ou nunca a quiseram, ou nela nunca tinham acreditado. Porque era o orgulho nacional que tinha sido ferido e estava sendo diariamente espicaçado. Aquilo tinha sido feito contra nós, os cabo-verdianos, nós que não só lhes tínhamos ajudado a ganhar a guerra da indepen-dência como até lhes tínhamos oferecido de bandeja a Naguicave e os nossos navios. Verberava-se assim activamente a atitude do Nino. Eles nunca gostaram de nós!, dizia-se com amargura. E quando co-meçaram chegando os telexes e os boatos de que os cabo-verdianos estavam sendo perseguidos, caçados à unha, fuzilados como gali-nhas, constatou-se um formidável arranque de brio patriótico. Lon-gas tertúlias em casas particulares foram nervosamente organizadas e com larga abundância de whisky discutiu-se acerbamente a atitude da besta do Nino e as medidas que «nós» deveríamos tomar naque-la emergência. E sendo certo que as «medidas que nós deveríamos tomar nunca foram perfeitamente concretizadas, a verdade é que al-guns guineenses radicados em São Vicente não se puderam livrar de furiosas coças que nacionalistas mais intrépidos não se coibiram de lhes aplicar.

Porém, comoção, coça, tertúlia, foi fogo de pouca dura. Dias de-pois apenas restava o espírito irrespeitosamente daninho do minde-lense, epigramando as instituições, comentando, não sem maldosa ironia, que com o 5 de Julho tinha acabado a «luta» contra o colo-nialismo, no 14 de Novembro tinha ficado destruída a «unidade» Guiné-Cabo Verde, de modo que, da divisa do PAIGC «Unidade e Luta», agora só restava o «e».

Mas a verdade é que, quando na noite de 18 de Novembro S. Ex.ª falou naquele tom melancolicamente cavo, a voz ligeiramente trému-la como que em raiva furiosamente contida para dizer que «um duro golpe foi assestado...», todos nós sentimos que algo tinha começado a mudar no país, tinha já passado o tempo da «liberalidade», ia ago-

ra iniciar-se um novo e diferente período e muito mais a sério.Todos nós ouvimos o discurso. Aliás, foi chamado de «comuni-

cado», não se sabe bem porquê. O certo é que ficámos todos com a impressão de que a «Unidade Guiné-Cabo Verde» era uma espécie de um doente chato que se atura resignadamente em casa mas que enterramos logo na hora da morte com um grande suspiro aliviado. Claro que não se conhece a coisa por dentro, não se sabe de tudo o que se passava, só depois do golpe é que se deram a conhecer algu-mas «tchoqueiras..

O que se pode desde já dizer, sem desprimor, é claro, para o Voz di Povo que terá certamente desempenhado o seu papel, é que a nossa Rádio portou-se lindamente. Aliás, e talvez por causa desse antecedente histórico, a Rádio ficou com a tradição de sempre de-sempenhar papel de relevo nesses momentos de crise nacional como poderá ser devidamente apreciado na cobertura feita ao julgamento popular do Coculi que será publicado em anexo a esta história. Mas dizia que a Rádio fez maravilhas. Logo depois do dia 14 começou a dar o tom. Não sei se todos conhecem aquela melodia «Amílcar Cabral, bu mori cedo...». Música plangente, cantada com voz de me-nino, vai direitinha ao coração. Pois é, tornou-se numa espécie de indicativo, de hino nacional daqueles dias. E noticiando ou comuni-cando ou insultando, ouvia-se sempre aquela vozinha triste falando com Amílcar, lamentando que ele tivesse morrido tão cedo.

E a Rádio noticiava e comunicava sem descanso. E insultava! Deus do Céu, como insultava aquela rapaziada da Guiné! Punha-lhes de curtas e compridas, e todos nós ficámos admirados de que irmãos da véspera tivessem tanto mal a dizer uns dos outros. Porque logo se começou a ver claramente que não se gramavam, toda a estória da unidade fora bluff aquilo não tinha sido coisa séria...

Houve, porém, mudanças e grandes e profundas. Desde logo a ne-cessidade de arranjar cargos para os sobrantes do golpe, aqueles que por sorte danada o golpe de Estado tinha apanhado fora da Guiné e longe das armas do Nino. E eram importantes e não se lhes podia dar empregos de segunda classe ou de somenos importância.