O DIÁRIO DO CAÇADOR

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Se for verdade que os melhores segredos se guardam por si mesmos, seria razoável pensar que existem, apenas, nos limites entre a realidade e a ficção. Silenciar o pensamento para melhor ouvir; fechar os olhos para enxergar; questionar para afirmar. Estes são os instrumentos do sábio que se atreve a desvendar as fronteiras de sua imaginação e de sua consciência, embora ciente de que jamais poderá encontrar algo que não existe; tal a beleza dos infinitos mares da mente. Percorrendo os quatro cantos do mundo, O Diário do Caçador remonta a uma tradição secular, pela qual homens e mulheres de notável saber transmitiam seus conhecimentos em manuscritos feitos a pena, inseridos em discretos cadernos de couro: os Diários. Este diário irá convidá-lo a desafiar limites e fronteiras em uma busca pelo papel fundamental que o ser humano desempenha para consigo mesmo, para com seu próximo e para com o planeta como um todo.

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I – Prólogo

No ano 2100 da Era Cristã, trinta anos após a Grande Catástrofe, mais de cinquenta por cento das terras do século passado estavam totalmente submersas, restando pequenas por-ções de terras habitáveis ao norte do antigo continente africano, Europa Oriental, Ásia Central e a quase totalidade da América do Sul. A maior parcela de superfície terrestre habitável tornou--se o maior polo científico do mundo, albergando tecnólogos, cientistas, pesquisadores e demais profissionais especializados so-breviventes, muito embora a sociedade como se conhecera e uma sensível parte dos dispositivos tecnológicos tenham sucumbido ante à fúria da natureza.

O sistema de filtragem de água salgada, outrora restrito e mo-nopolizado pelo Estado de Israel, encontrava-se, agora, aceito no seio da sociedade, estando sua necessidade categoricamente pre-sente no rol de direitos fundamentais elencados por cada uma das Constituições dos Novos Estados Soberanos.

Após o desastre, com o advento da globalização proporcio-nada pelas décadas anteriores, as fronteiras culturais e idiomáticas entre os povos se imiscuíram umas nas outras, compondo o em-brião de uma identidade global. O russo, o chinês, o japonês, o alemão, o espanhol, o português e o inglês tornaram-se retalhos para a confecção do esboço de um único mapa linguístico.

A florescência espiritual do final da década de 2070 era pre-mente, dado o momento de fragilidade em que a humanidade se achava. Não demorou a aparecerem homens e mulheres espe-cialmente talhados para atenderem às exigências do globo; tra-

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balhavam em silêncio, objetivando trazer ordem ao caos, paz aos perturbados, luz àqueles que estavam na escuridão.

Todavia, como uma corrente de aço que muito quer abraçar e, dessa forma, tem seus elos fraturados, ou mesmo rompidos, os Talhados também sofreram rompimentos e fraturas; alguns elos foram corrompidos pela desesperança e pela dor da perda de en-tes próximos. Outros, arrebentaram-se por força de mentes pér-fidas, bem como pelo calor de sentimentos como o medo e a ira, exploradores das mais sutis fraquezas.

Destarte, em profunda dissidência, os Talhados passaram a apresentar três subdivisões internas, contendo, cada uma, um gru-po específico de indivíduos. O primeiro, os Talhados do Manto, apresentava pessoas íntegras e de caráter nobre, decididas a an-dar na senda da luz, paz e harmonia, sendo dignificadas, cada uma, com um dos Mantos da Consciência: dons destinados a atenderem finalidades específicas, como a cura dos corpos físico e sutil, ou mesmo, a comunicação entre entes dos planos visí-vel e invisível. O segundo grupo, os Talhados da Perdição, abar-cava indivíduos que, embora tivessem sido agraciados com um dos Mantos da Consciência, tiveram o caráter posteriormente corrompido ou inquinado, levando-os a desacreditar dos valores que defendiam, pervertendo seus dons e fomentando a miséria, a discórdia e a tristeza do mundo. E por fim, o terceiro e mais expressivo grupo, os Adormecidos, caracterizado por pessoas de personalidade ainda moldável e de caráter ainda sendo formado, geralmente crianças, procuradas pelos outros dois grupos, cada qual com aspirações mutuamente incompatíveis no que tangia ao seu desenvolvimento. Pessoas cujo destino poderia vir a agraciar com o “Talho”.

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II – Navegantes

2070. Mar de Bekhasa (norte do antigo território do Marrocos).

Celebrando os raios da aurora, reflexos do vento caminha-vam pelas águas do mar e eram projetados no casco de uma embarcação improvisada, produzindo uma infinidade de som-bras e luzes aleatoriamente orquestradas em toda a superfície do madeiramento.

Em azul profundo e convidativo, os olhos do mar escondiam o que haviam testemunhado durante os dias, as noites, as semanas, os meses e os anos anteriores. Parecia apenas se importar com a vida que lhe fora renovada pelo sol daquela manhã e pelos olhos dos poucos sobreviventes do barco que singrava por sua imensidão.

Marinheiros por necessidade e solidariedade, percorrendo o horizonte com olhares atentos, os tripulantes administravam amarras e velame na busca de sobreviventes da tormenta do dia anterior.

À exceção de alguns corpos – a maioria severamente mutila-da – que flutuavam em meio aos destroços, a fúria da água varrera todos os traços de que um dia o homem ali vivera.

– Acho que não tem ninguém aqui para ser resgatado; o que os peixes agora mordiscam parece já ter sido aproveitado por pei-xes maiores – disse, tristemente, um dos navegantes.

Antes que alguém praguejasse ou se lamentasse, um dos ma-rinheiros avistou um menino, de aproximadamente doze anos, boiando por cima de um pedaço de madeira que devia ter per-

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tencido a uma porta. O menino, embora estivesse parcialmente consciente, foi notado ao esboçar dor quando uma ave subiu em suas costas para beliscar uma das muitas feridas abertas em seu corpo.

– Alguém! Por favor! Ajuda! – exclamou a criança. Prontamente, a discreta embarcação moveu-se em direção ao

menino, e os homens o apanharam da tábua. Com grande alegria, cada um dos tripulantes agradeceu mentalmente pela vida do infante ter sido preservada.

Sendo bem recebida, a criança teve seus ferimentos tratados e foi alimentada com os poucos mantimentos de que dispunham no barco. Enquanto comia, chorava e agradecia imensamente:

– Muito obrigado! Muito obrigado! – dizia com alegria. – O que é isto que estou comendo? Como sobreviveram à tempesta-de? Vocês acharam os meus pais e os meus irmãos? – questionava, curiosa e assustada, a criança.

– Ora, de nada, filho. Coma com calma, a comida não irá fugir – disse simpaticamente um velho que, aparentemente, era o comandante eleito pelos sobreviventes. – Você está comendo bis-coito seco. Aqui, em alto-mar, é difícil estocar comida. O biscoito seco resiste à umidade e alivia a fome – completou.

Percebendo que ainda faltavam outras perguntas a serem res-pondidas, o velho disse:

– Sobrevivemos à tempestade porque nosso barco é feito de madeira boa; restos de pinheiro e carvalho reforçados com aço. Além disso, minha família era pescadora por tradição; todos filhos do mar.

A criança, pensando na família, sorriu de felicidade, e, como se pudesse ler sua mente, o comandante, compadecendo-se, concluiu:

– Não encontramos outros sobreviventes além de você, filho.

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Lentamente, deixando a cabeça pender e olhando para baixo, as lágrimas silenciosas do pequenino caíam em seus joelhos:

– Tinha uma mulher cuidando de mim até vocês chegarem. Ela esteve ao meu lado esse tempo todo. Onde ela está agora?

Julgando que o menino havia dito aquilo porque estava con-fuso e profundamente abalado, o velho sugeriu que a criança procurasse descansar, pois precisava se recuperar melhor dos ferimentos.

– É melhor você ir dormir para se recuperar mais rápido. Amanhã cedo, faremos a manutenção no navio. Esteja prepara-do para ajudar a retirar mariscos e plantas do casco. Há alguns vazamentos que também precisam ser vedados – disse um dos marinheiros ao menino enquanto o acompanhava ao porão da embarcação para lhe armar uma rede.

Aceso pelas luzes das estrelas, o céu noturno já havia se esten-dido por sobre o entardecer, fundindo-se harmonicamente com o mar no horizonte.

– Timoneiro! – bradou o comandante. – Leve-nos para o porto de Sharkat! Quero chegar lá antes de o sol lamber o navio! – disse detrás de um grande sorriso que segurava um charuto marroquino.

Atendendo ao velho, o timoneiro, um alemão, fechou os olhos, respirou profundamente e, sentindo seu corpo inteiro ser percorrido por uma espécie de corrente elétrica, dos pés à cabeça, e da cabeça às mãos, reabriu os olhos, os quais, desta vez, luziam como um par de safiras extraídas do próprio berço estelar. Ele via, com total e plena clareza, todas as estrelas do céu se ligarem por brilhantes cordões dourados de forma a compo-rem a orientação desejada. Sua consciência já havia chegado a Sharkat.

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III – Sharkat

2070. Porto de Sharkat (território marroquino).

Conhecido por viajantes e comerciantes, Sharkat era ponto de encontro de artesãos, músicos, lutadores de rua, dançarinas, saltimbancos, mercadores e outros, oferecendo enorme riqueza cultural a qualquer pessoa que desejasse por ele aportar.

Docemente, sons de flautas, tambores e alaúdes, compunham a melodia perfeita para receber o sol nascente que o mar já vitri-ficara em suas águas e que a praia já escaldara em suas areias.

Duas gêmeas marroquinas, em uma das muitas barracas que povoavam o porto, conversavam com um homem que estava curioso para saber sobre sua saúde:

– Soube que vocês, simplesmente olhando para o rosto de alguém, podem enxergar, com detalhes, o estado de saúde da pes-soa. É verdade? – indagou o homem.

– O senhor não ouviu mentira. Quer saber como está a sua? – respondeu, segura, uma das gêmeas.

Próximos às barracas das meninas, os marinheiros do dia an-terior haviam descido para fazer a manutenção no casco de seu barco, reabastecê-lo de provisões e, também, para refrescarem suas gargantas em goles gelados de alguma bebida servida acompa-nhada de música e dança.

Ajudando o infante resgatado a retirar mariscos e algas do casco da embarcação, o timoneiro, com simpatia, perguntou-lhe:

– Menino, ontem, você disse que uma mulher estava a seu lado... Como ela era?

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– Ah! – exclamou, com grande alegria, o garoto. – Era muito bonita! Tinha cabelo comprido e os olhos eram verdes, bem ver-des! Às vezes, os olhos dela pareciam brilhar como pedras preciosas!

Secando o suor da testa com o punho, o alemão continuou:– Hum... Interessante. Lembra-se de ter mais alguma coisa

que você possa ter visto? O menino demorou um pouco a se lembrar, mas respondeu: – Ela estava usando um vestido grande e branco com uns

desenhos diferentes bordados... Hum... as pulseiras dela também tinham desenhos. Por quê?

– Você se esqueceu de dizer que ela usava um colar de marfim. – Completou, sorrindo, o alemão, antes que o garoto pudesse ma-nifestar por palavras o espanto que já lhe inundara os olhos. – Essa mulher, assim como você, foi agraciada com um dom muito especial, uma habilidade única, digna de homens e mulheres íntegros e de caráter nobre. Você é um Talhado! – concluiu esboçando uma risada.

Menos atordoado do que curioso, o menino estava ansio-so para saber mais sobre o que acabara de escutar. Perguntou como o outro sabia daquelas coisas e o que significava ser um “Talhado”, ao que obteve como resposta:

– Vamos comer alguma coisa? Podemos conversar enquanto comemos. Você já provou pastel aberto?

Ambos guardaram suas ferramentas e caminharam do anco-radouro à grande feira. Em frente ao balcão de uma barraca de salgados, o cheiro dos salgados assados e fritos era realçado pelo barulho do fogo crepitando e do óleo estalando na frigideira. Um sujeito de cabelos compridos debruçou-se na tábua do balcão e pediu uma porção de pastéis abertos acompanhados de azeitonas e queijo de cabra. Para beber, chá de menta.

Sentados a uma das três pequenas mesas que ficavam à frente da barraca, ao timoneiro, e ao seu mais novo pupilo, foi servido

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um grande prato, em cujo centro havia dois pratos menores: um para algumas azeitonas cortadas em rodelas e, o outro, para o queijo de cabra fatiado. Ao redor desses pratos, decorando toda a borda do prato maior, haviam sido dispostos diversos salgados assados, levemente dourados, os quais possuíam a massa bem fina e assemelhavam-se a folhas de papel divididas ao meio no sentido do comprimento. Seu aroma convidativo era enriquecido pelo do chá de menta que fumegava em seus copos de barro.

– Como isso é gostoso! – exclamou o menino, percebendo que a beleza do pastel fora superada por sua singular “crocância”.

– Você deve pôr o queijo por cima e, então, cobri-lo com al-gumas azeitonas – observou o alemão conforme pegava algumas rodelas para si.

– Você ainda não respondeu as minhas perguntas. Como sabia de tudo aquilo? E o que quer dizer ser um “Talhado”? Pode me dizer? – indagou o menino, salivando de vontade por outro pastel enquanto os farelos do anterior ainda estavam em seus dedos.

Rindo ao ver a velocidade com que o menino havia apren-dido a cobrir o pastel com o queijo e as azeitonas, o timoneiro, ainda mastigando, disse simpaticamente:

– Você tem razão, ainda não respondi. “Talhado” é a forma de dizer que uma pessoa recebeu o que chamamos de “talho”, isto é, a capacidade de adquirir e a faculdade de desenvolver um dom, um talento especial que a apenas um grupo seleto de pessoas é confiado. São pessoas cuja integridade e nobreza de caráter não se refletem apenas em suas ações, mas, também, em seus corações e pensamentos. Completando sua resposta, eu sou uma dessas pessoas, por isso sabia de “tudo aquilo”.

– Uau! Que legal! – disse, surpreso, o infante. – Isso quer dizer que eu também sou uma dessas pessoas especiais? E você? Qual é o seu dom? Como descubro o meu?

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– São vários os talentos conferidos pelo talho e cada um deles é chamado de “manto”. Não se preocupe, em breve você desco-brirá qual é o seu. – Percebendo a inquietude do menino, o ho-mem resolveu continuar. – Para que você entenda melhor, feche os olhos e se imagine como uma brilhante nuvem branca, como uma fumaça.

Tendo o menino fechado os olhos e aberto um grande sorri-so, o alemão prosseguiu:

– Isso que você vê é energia pura e, toda pessoa, embora possa não saber disso, também o é na realidade. Agora, continue com os olhos fechados e escute com atenção. – O menino já havia parado de sorrir. – Imagine que a essa energia é entregue um corpo para animar; um corpo para que ela possa se manifestar no plano físico.

Não percebendo questionamentos no semblante do garoto, continuou o homem:

– Muito bem, agora perceba. Você é para o talho o que o cor-po é para a energia; ele o confere a capacidade de manifestar, no caso, uma habilidade especial, um dom. – Vendo que o menino, ainda de olhos fechados, balançava afirmativamente a cabeça, o alemão se alegrava por estar sendo entendido.

– Fico feliz que esteja entendendo. Além disso, o manto faz o papel da armadura que cobre o corpo de um soldado, o qual, dentro da batalha, precisa ser protegido de forma que o homem lute não só pela própria vida, mas também pelas vidas das pessoas de seu povo. Entenda, então, que o manto não é para ser usado de forma egoísta, mas de forma a salvaguardar o seu crescimento espiritual e permitir que você ajude os demais a também encon-trarem sua evolução por esta senda de paz e luz.

– Hum... acho que entendi, mas não sei o que quer dizer “senda”. E você também não me disse qual é o seu manto – disse o menino.

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– Senda é o caminho, a estrada, a orientação. Quanto ao meu manto, e a qualquer outro, basta dizer que palavra alguma pode descrever suas atribuições. É preciso que o manto seja de-monstrado para ser perfeitamente entendido. Sou um Mestre do Cartógrafo, o que significa dizer que o meu manto é o Manto do Cartógrafo, e que existem mais pessoas com essa mesma habili-dade e nível de maestria.

Antecipando-se à curiosidade do menino, o alemão concluiu:– Antes que você pergunte, para ser mestre é necessário ter sido

aprendiz e, certamente, o nível de mestre não é o mais alto, sendo este atingido pelo de grande mestre. Pense assim: para aprender a escrever, é necessário aprender a ler e, antes disso, a falar.

Visivelmente surpreso, o garoto silenciou-se detrás de um sorriso discreto.

– Termine seu chá, o sol logo irá se por. Partiremos esta noite; você precisa de treinamento – observou o homem.

Nas proximidades, as gêmeas marroquinas viram chegar à sua barraca um homem de uns trinta anos, agasalhado por um sobre-tudo de couro de cabra para se proteger do frio do entardecer.

– Boa tarde – cumprimentou o recém-chegado. – Passei a manhã toda olhando vocês duas trabalharem e fiquei intrigado. Hoje, a sete pessoas que estiveram aqui antes de mim, vocês dis-seram que leem sinais no rosto, nas mãos, nos cabelos..., e assim dizem o estado de saúde da pessoa. – Interrompendo um esboço de resposta das jovens, prosseguiu – Porém, sei que não é isso o que realmente acontece aqui.

As gêmeas se assustaram e não souberam o que responder. – Vocês têm uma habilidade especial que merece atenção. Posso

oferecer o treinamento de que precisam para serem as melhores pes-soas que puderem para si mesmas. Receberão instrução nos mais di-

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versos campos de conhecimento, terão alimentação saudável e mo-radia, além de poder construir uma nova vida – instigou o estranho.

– Do que você está falando? – uma delas perguntou. – Há um lugar escondido no deserto do antigo território

egípcio. Lá há crianças, jovens e adultos que aprendem a con-trolar e a desenvolver suas habilidades especiais, tal como a que vocês possuem. – As moças se entreolharam. – Se minha proposta lhes parece interessante, sugiro que estejam no ancoradouro às vinte e três horas de hoje. Apenas um navio irá zarpar nesse ho-rário. Até logo, eu espero.

Quando o homem já havia sumido na multidão, as gêmeas soltaram a respiração:

– Nossos pais morreram há seis anos, o que temos a perder? Teremos casa e comida de graça, irmã!

– Não há nada de graça – a outra severamente respondeu. – Se não pudéssemos ver os verdadeiros traços de personalidade, intenções e sentimentos das pessoas nitidamente impressos como selos e cicatrizes em seus corpos, não confiaria nesse homem. Mas ele irradiava luz como uma tocha acesa na escuridão... – pensando um pouco, prosseguiu – Não sei se você percebeu, mas as pessoas más, com o corpo coberto de manchas e cicatrizes negras, foram todas se afastando conforme ele foi se aproximando – após breve pausa, retomou – O que me intriga, mais do que a proposta, é o próprio homem.

– Não seja chata! Não está cansada de fazer todo dia a mesma coisa? Imagine só! Vamos lá! Ele não parecia ser uma má pessoa, você mesma disse! – comentou a primeira.

– Não estou sendo chata, estou sendo realista.– Está sendo chata, sim! Que besteira! Vou arrumar as minhas

coisas. Não se preocupe, arrumarei as suas também.

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IV – Partida

2070. Ancoradouro de Sharkat. Vinte e duas horas e quarenta minutos.

Abertas acima do mar, as asas estreladas da noite abraçavam a lua no horizonte de azul retinto, silenciosamente navegando na cauda do vento que caminhava pela areia da praia.

Emudecido pelo frio e pela escuridão, banhado pelas ondas que vinham se arrebentar nos cascos dos navios, o porto não apresentava o menor traço do vigor que vislumbrara pela manhã; restaria solitário não fossem as embarcações ancoradas.

Tochas ardiam formando uma trilha que iluminava parcialmen-te toda a extensão do cais e alguns rostos de jovens e adultos que se aglomeravam perto de um dos navios: uma enorme embarcação de casco argênteo espelhado e iriante, como o nácar, e elegantemente coberto de símbolos e inscrições acima da linha-d’água.

Soprando por entre as crepitantes chamas, o vento carregava vozes como se fossem sementes de uma mesma árvore ou es-sências de um mesmo perfume. – Nunca ouvi falar desse lugar. Onde, exatamente, fica esse templo? – perguntavam-se uns. – O que se aprende lá? É uma escola? – indagavam outros. – Vai de-morar pra chegarmos? – questionavam-se terceiros, objetivando não verem o tempo passar. – Espero que tenha comida de verda-de lá! – dizia, rindo, uma jovem de olhos amendoados à sua irmã.

Ao som do primeiro apito do navio, todos se silenciaram e uma equipe de sete tripulantes passou a dividir as vinte e seis pessoas em duas filas, auxiliando-as com sua bagagem e pertences menores:

– Boa noite a todos – disse um velho senhor que havia des-cido do navio após sua equipe ter organizado os futuros passa-

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geiros. – Agradeço aos recrutadores pela cooperação e peço que formem uma fila à minha direita. Aos demais, peço para que se organizem em fila única à minha esquerda. Partiremos em dez minutos – anunciou objetivamente.

Empolgadas pela sensação de curiosidade que se somava ao medo sadio do desconhecido, as vozes da fila maior recomeçaram seus questionamentos e exclamações.

– Já sei o que você vai me perguntar – disse o timoneiro ale-mão, antes de se deslocar à fila dos recrutadores, ao menino que estava ao seu lado. – Recrutador é todo aquele que encontra e confia talhados aos cuidados da Ordem, uma instituição milenar e destinada a auxiliar os sinceros de coração a percorrerem sua senda – explicou o homem. – Assistimos crianças, jovens e adul-tos que precisem de treinamento adequado a seu manto; toda e qualquer pessoa que deseje trazer verdadeira harmonia para seu interior e, assim fazendo, contribuir para o bem-estar próprio e, depois, para o da sociedade, como estiver ao seu alcance.

– Obrigado! – sorriu o menino. – Às vezes, penso que você lê meus pensamentos!

Restavam apenas nove pessoas no cais, todas as outras haviam embarcado.

“Se um dia nos reencontrarmos em um dos muitos ramos pelos quais a árvore da vida se estende, será com alegria que o chamarei de irmão. Você está em boas mãos, não se preocupe. Boa viagem, filho”, pensou o alemão acompanhando seu pupilo com os olhos, vendo-o caminhar ao longo de uma longa escada que levava ao interior do navio.

Sobre a fina areia da praia, aquecidos pelo calor que dançava nas tochas do cais, os recrutadores observavam a embarcação, len-tamente, perder-se no horizonte, tornar-se parte do céu noturno e parte do mar enegrecido, espelho da lua e das estrelas.

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