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O Dionisíaco na Poesia Al Bertiana

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Introdução

Consta no E-dicionário de termos literários, de autoria de Carlos Ceia, no verbete que

elucida a natureza da dualidade Apolíneo/Dionisíaco, “Exemplo de poeta apolíneo é a

portuguesa Sophia de Mello Braeyner Andresen, cuja poesia preserva e louva o mar, o Sol,

as ruas, os caminhos, a música.” Segundo José Ribeiro Ferreira no artigo Permanência da

Cultura Clássica: Apolo e Dioniso na Poesia Portuguesa (1994), Sophia de Mello Braeyner

Andersen dedicou a Apolo quatro poemas seus, um em Poesia I (1944,311. edição Lisboa,

1975, pp. 25-27), outro no Dia do Mar (1947, p. 40) e dois em Dual (1972, Obra poética III,

pp. 110 e 116).

No que tange a caracterização de exemplos de poeta dionisíaco, no já citado verbete,

do mesmo Carlos Ceia, renomado estudioso da poesia moderna da portuguesa Sophia de

Mello Braeyner Andresen, os representantes elencados são Camões, Bocage e o futurista

Almada Negreiros, porém não aparece nenhuma referência a um poeta contemporâneo ou da

mesma geração da poetisa que tão bem exemplifica o conceito de apolíneo.

De acordo com o mesmo verbete, a tensão estabelecida pelos elementos conflitantes e

o movimento entre os domínios do apolíneo e do dionisíaco representam o movimento

dinâmico que abrange toda a gama de aspectos e fenômenos daquilo que constitui a própria

vida. Então com quem poderia ser estabelecida uma correspondência e uma tensão na

literatura portuguesa da atualidade ou o mais próximo da contemporaneidade equivalente à

relação entre os dois conceitos e que pertencesse à mesma cena literária da apolínea Sophia de

Mello Braeyner Andresen?

Investigaremos no presente artigo a caracterização de um referencial dionisíaco na

obra de um poeta que pode muito bem preencher esta lacuna e representar esse papel na tão

significativa polarização entre as forças apolíneas que são as da claridade, da medida e da

harmonia, ou seja, a da razão e as forças dionisíacas, ou as da sombra, do excesso e do

irracional na poesia portuguesa da segunda metade do século XX. O autor nesse caso seria o

poeta pós-moderno português Alberto Raposo Pidwell Tavares ou como ficou conhecido o

seu alter ego, Al Berto. Inclusive os dois autores juntamente com Nuno Júdice apareceram em

um acontecimento literário na primeira metade dos anos 90, a bienal portuguesa que se

realizou em Bordéus, França.

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Identidade Dionisíaca

Tomando como ponto de partida o verbete de autoria de Carlos Ceia que apresentou o

princípio apolíneo representando o princípio da individuação ou como Nietzche retomou, no

seu A Origem da Tragédia (1872), as palavras de Schopenhauer, principium individuationis.

O mesmo texto nos traz o ímpeto dionisíaco como nascido da violação desse princípio de

individuação, o que provocaria o terror e o êxtase tão característicos do princípio dionisíaco.

É esse elemento primeiro que exploraremos a seguir.

Sophia é uma mulher da alta sociedade portuguesa e como tal afirma sua

individualidade através de seu nome. O uso da extensão completa dele comprova a existência

de uma Sophia apenas e seus três sobrenomes atestam a sua originalidade e procedência

superior. Nada mais apolíneo. O nome que poderia representar a contraparte dionisíaca

equivalente a este seria o nome de Al Berto, nascido Alberto Raposo Pidwell Tavares também

na alta sociedade e renascido Al Berto, um nome que representa uma divisão, uma quebra da

individualidade pessoal além de uma perda do seu sobrenome, da sua singularidade. A

colocação desse hiato pode sugerir uma duplicidade identitária ou até mesmo a perda e o

esfacelamento de uma, aspectos que caracterizariam um princípio dionisíaco.

Elementos Dionisíacos

Dionísio era celebrado antigamente em um festival chamado de Ditirambo que reunia

música, teatro, danças, bebida, sacrifícios e outras manifestações ritualísticas e inclusive é

tido como o mito originador do teatro. Estes elementos e outros presentes são referências

constantes no universo da poesia de Al Berto. Possuidor de uma formação dramática que fica

evidente um suas performances onde declamava sua obra com um talento ímpar. A elaboração

de um personagem, alter ego de si mesmo e da mistura de sua poesia com sua biografia,

criando uma outra existência para si de onde pensou e refletiu a sua própria existência como

homem, homossexual, artista, português, crítico e animador cultural.

O primeiro que podemos citar é o medo, medo do desconhecido, medo da perda,

medo da permanência e o medo do tempo de acordo com os poucos trabalhos de crítica sobre

o autor . Esse medo que consta até com título de uma antologia sua poderia ser equivalente ao

terror dionisíaco, referência também à dúvida e ao mistério que competem a esse aspecto das

forças simbolizadas por esse mito grego. O importante é que certamente o medo, um dos

grandes motores da poética Al Bertiana, não pertence ao escopo dos elementos apolíneos.

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Um elemento característico dos festivais de Dionísio era a máscara, ela simbolizava o

rompimento da individualidade e a fusão dos atores e cantores com o deus Dionísio e era

usada durante as danças, cantos e peças de teatro. Em diversos de seus poemas; Noites de

Lisboa com Auto-retrato e Sombra de Ian Curtis pg.49, Os Amigos pg.51, vestígios pg.67 e

Visitatione pg.80 da coletânea O Último Coração do Sonho, Al Berto cita diversas vezes o

elemento máscara, sempre acompanhado de outros como noite, dança e bebida, relação

comum em seu universo.

No primeiro poema o corpo mascarado com suor, sangue e cuspo dança embriagado

exatamente como era comum a prática durante a celebração do deus Dionísio na Grécia

antiga.

Na segunda poesia intitulada Amigos, as pessoas que parecem exaustas e tem os

gestos lentos de feras amansadas estavam usando máscaras esculpidas pelo dedo errante da

noite, sendo a noite um elemento notadamente dionisíaco.

Ao lermos os versos do terceiro poema nomeado vestígios nos deparamos com o relato

de outros tempos quando os dias corriam com água e limpavam as máscaras imundas e outra

vez há a presença do elemento álcool que integra o quarto junto com zinabre onde pernoita-se.

Temos aqui a noite, a bebida e a máscara presentes para construir uma cena sombria e de

decadência desde outro tempo até um hoje igualmente disfórico, porém transcendido através

de um místico elemento até uma euforia torrencial. Padrão semelhante pode ser encontrado

nas cerimônias de celebração de Dionísio de antigamente.

O poema Visitatione traz o elemento máscara colocada sobre o rosto e atravessando os

dias ou sofrendo a ação da passagem dos dias simbolizada pela poeira brilhante que se

desprende e cai na fissura entre o rosto e a máscara.

Essas constatações servem para comprovar a ocorrência constante e simultânea a

outros elementos como a bebida alcoólica, a dança e a noite que também remetem ao universo

dionisíaco, do item máscara que é um forte símbolo do conhecido deus grego.

Outro elemento característico desse princípio é a bebida alcoólica. Ela, as drogas e o

excesso estão presentes permeando a obra de Al Berto. Na antologia já citada encontramos

três ocorrências significativas. As outras apesar do uso do verbo beber não é possível a

atribuição de um caráter alcóolico ou embriagante desta bebida. Na página 42 a noite traz

cheiro a corpos suados, dançares, cantares e sexo associados à luz fosca de um bar no caso a

um estabelecimento que fornece bebidas alcóolicas e a que o eu-lírico do poema busca resistir

como se estivesse resistindo a uma cerimônia dionisíaca por natureza.

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Em outro poema na página 60 o autor declara que bebe e fuma mantendo-se absorto e

atento, sentado junto a uma janela fechada. Podemos inferir que geralmente associa-se bebida

de teor alcóolico com o ato de fumar. Esta atitude do eu-lírico visava suportar a passagem do

tempo e mediar a sua meditação sobre o seu regresso e sua morte. Temos uma evolução do

quadro antes pintado pelo poeta, não mais resiste à bebida, agora ele bebe e fuma

contemplando sua situação.

Vestigios, poema da página 67 já anteriormente citado nos contempla com uma

imagem recorrente na obra de Al Berto. Constitui-se na alegoria da decadência aqui ilustrada

pelo quarto de zinabre e do álcool onde ele pernoita hoje. O zinabre é o produto de uma

oxidação e atribui-se a ele propriedades venenosas e intoxicantes, o álcool exerce também

uma função intoxicante e de certo modo acolhedora simbolizando a imersão do eu-lírico em

um estado de decadência e falta de rumo.

Outro elemento que constitui o universo Al Bertiano e está presente constantemente

em sua obra é a noite ou referência à sombra e à escuridão. Sua presença está em inúmeros

poemas e mais significativo parece ser o contraste apresentado entre quantas vezes se utilizou

dos elementos dia, luz ou claridade e quantas vezes se utiliza dos elementos noite, sombra e

escuridão ou equivalentes de ambos os lados. A resposta é uma presença esmagadora dos

elementos que possuem maior afinidade com o universo dionisíaco; noite, escuridão e

sombra. Tal constatação remete à decadência, morte, dúvida, mistério e uma diversidade de

estados de desorientação e presença do desconhecido que retratam a condição do ser humano

marginalizado e desamparado.

A dança consta em suas poesias sempre caracterizando uma manifestação onde

participam diversas pessoas e associada na maioria das vezes ao corpo, ao suor e ao sexo. Da

mesma forma a dança exercia um papel muito importante na celebração do deus grego.

Através da dança e da embriaguez ocorria a união com o deus Dionísio através do transe

estabelecido pelas práticas corporais.

O elemento sexual aparece frequentemente e sempre é expresso de maneira

vertiginosa, brutal e por vezes escatológica. Tal abordagem pode ser também atribuída a uma

visão dionisíaca do sexo e uma tentativa de trazer a tona a sua própria homossexualidade

reprimida e marginalizada tanto na vida real quanto na vida literária.

Aqui foram explorados alguns dos elementos que podem representar uma conexão da

poesia Al Bertiana com o universo dionisíaco e sua poética específica. Podem ser elencados

diversos outros elementos que não participaram deste artigo, mas alguns dos principais

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símbolos associados a Dionísio foram abordados tais como as máscaras, a bebida, a dança, o

sexo, a noite e o medo.

Estrutura dionisíaca

A estrutura da poesia de Al Berto reflete uma desconstrução ou descompromisso com

a forma e o padrão geralmente associados ao caráter apolíneo da poesia. Primeiramente a

sintaxe encontrada em seus poemas é totalmente incomum e não-usual sendo fonte de

ambiguidades semânticas, causando um pluralidade de sentidos e de construções ímpares;

múltiplas interpretações imagéticas, ora chocantes ora encantadoras; multiplicidade

linguística, remetendo a um vórtice vertiginoso onde desfilam diversas línguas como o

francês, o português e o inglês causando uma embriaguez de linguagem que produz uma

estranheza, um desconhecimento da língua, o que nos proporciona um outro português

poético, em mestiçagem com outras línguas e num processo de oralização e de auto

transcendência constante.

A ausência de pontuação convida à participação do leitor na finalização de um sentido

para a interpretação das sentenças ou mesmo de um ritmo para o texto ou poderia ser mais um

reflexo da oralidade na sua poesia.

A ausência de título em alguns poemas dá a idéia de uma poesia fragmentada e

disforme que por vezes confunde o leitor sobre os limites intertextuais em suas composições.

Notadamente o autor recorre à intertextualidade entre obras de diversas artes e referências

históricas e culturais que algumas vezes acabam por tornar o significado dos símbolos e das

relações apresentados na sua poesia um tanto herméticos para a maioria dos leitores.

Todo esse combinado de derivações estruturais sintáticas associadas a um

malabarismo linguístico e ao poder de imagens metamorfoseantes gera uma experiência única

quando o leitor ou o ouvinte se depara com a obra de Al Berto. Obra essa que reflete

indiscutivelmente um caráter auditivo, da oralidade, da musicalidade das palavras e das

línguas. A tradição aparece muito mais como uma referência cultural sócio-histórica do que

como balizadora de uma forma ou de temática para a manifestação da linguagem poética no

seu trabalho.

As suas apresentações nas quais declama seus poemas se tornaram referência no

resgate das pausas, das respirações, ênfases e dinâmicas relativas aos poemas que foi

selecionando e aglutinando ao repertório com o qual costumava se apresentar em recitais e

ocasiões especiais e que entraram na constituição de seu CD gerando assim uma antologia sua

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baseando-se não só em critérios de importância simbólica, mas também em fatores auditivos,

no caráter sonoro do poema.

Conclusão

Depois de constatar uma deficiência em relacionar a poesia apolínea de Sophia de

Mello Braeyner Andresen produzida em Portugal com a obra de um autor pertencente a um

movimento, época ou geração contemporânea à sua, ou seja, a segunda metade do século XX,

igualmente rica e capaz de produzir um contraponto na poesia de natureza dionisíaca e que

pudesse compor uma relação contrastante interessante. Examinando a construção identitária

de Al Berto e contrastando-a com a de Sophia de Mello Braeyner Andresen percebe-se a

possibilidade de que a realização de tal hipótese pode residir na poesia Al Bertiana.

A investigação dos elementos constituintes do universo poético de Al Berto nos

remete à natureza dionisíaca desses mesmos elementos e a maneira como são usados e

associados à outros elementos em uma mesma poesia. A associação do eu-lírico com esses

aspectos da experiência humana fazem da obra de Al Berto possuidora de uma afinidade

ímpar com os domínios do deus grego Dionísio e de suas formas de celebração.

Analisando-se a estrutura que é apresentada no texto de Al Berto percebe-se uma

maior afinidade ainda com os princípios dionisíacos. Ali estão presentes todas as formas de

subversão, variação, desconstrução e negação de diversos elementos que podem ser

considerados de caráter apolíneo. Tanto nas escolhas sintáticas, como na estrutura que pauta

os seus versos quanto na linguagem e na opção de divisão interna das sentenças, o espírito

dionisíaco está presente refletido em exemplos inusitados de inovação e retomada de

procedimentos poéticos.

Podemos concluir que a poesia de intensa oralidade de Al Berto constitui-se em um

excelente exemplo de uma poética dionisíaca e pode muito bem figurar como uma contraparte

contrastando com a poética apolínea de Sophia de Mello Braeyner Andresen. A atribuição de

um trabalho mais atualizado para o exercício de compor uma dinâmica com a poesia de

Sophia de Mello Braeyner Andresen encontra respaldo na caracterização da obra Al Bertiana

e na sua superposição aos elementos do universo dionisíaco.

Ao analisar as duas obras em conjunto pode-se perceber como dois artistas

extremamente sensíveis vivenciaram a mesma época de maneiras antagonicamente diferentes,

produzindo universos e organizando seus elementos e estruturas segundo princípios bem

diferentes, às vezes opostos, às vezes complementares, ao construírem seus modelos de

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percepção de si mesmos e do mundo que os cercava. Suas experiências divergem inteiramente

ao participarem da nação portuguesa e produzirem seus discursos de locais específicos

profundamente diferenciados, por exemplo: a moderna Sophia é uma celebrada mãe de

família e exemplar dama da sociedade portuguesa e o pós-moderno Al Berto é um

homossexual marginalizado e ativista cultural dado à comportamentos extremados para enfim

se encontrarem na literatura e integrarem um todo mais abrangente e completo refletindo os

princípios apolíneos e dionisíacos que expressam a dinâmica da própria vida e da experiência

humana.

Referências:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Al_Berto

Amaral, Fernando Pinto. O mosaico fluido: modernidade e pós-modernidade na poesia

portuguesa mais recente: autores revelados na década de 70, Editora Assírio & Alvim, 1991

Ceia, Carlos: “Apolo que floresce e Diónisos que passa: O espírito grego na poesia de Sophia

de Mello Breyner Andresen”, Dedalus, 5 (1995)

Ceia, Carlos. E-dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia, Apolíneo/Dionisíaco

http://www.edtl.com.pt/index.php?

option=com_mtree&task=viewlink&link_id=785&Itemid=2

Ferreira, José Ribeiro. Permanência da Cultura Clássica: Apolo e Dionisío na poesia

Portuguesa Contemporânea, Mathesís 3 (1994)

Sterbova, Nikola. O Medo na Poesia de Al Berto (2008)