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Departamento de Ciências Sociais O DIREITO À APRENDIZAGEM VISTO PELO ÂNGULO DA SOCIOLOGIA DA INFREQUÊNCIA E DA EVASÃO ESCOLAR Aluno: Mariana Junqueira e Dorlene Meireles Mendonça Orientador: Marcelo Burgos Apresentação O projeto em desenvolvimento é resultante do amadurecimento de um conjunto de questões propiciado pela realização de pesquisas sobre a infrequência e o abandono escolar, um recorte atual de um denso projeto de pesquisa do qual participo há cinco anos Projeto de Gestão Escolar e Territórios Populares e que agora tem uma nova frente de análise acerca do vazio institucional que engloba o mundo do aluno, com repercussões sobre sua trajetória escolar. O projeto Gestão Escolar e Territórios Populares abrange as escolas públicas de ensino fundamental do entorno da PUC-Rio, cujos estudantes são, em sua grande maioria, moradores de favelas da região, especialmente da Rocinha. Em linhas mais gerais a pesquisa vem se dando em torno do estudo da relação das escolas públicas com o que temos chamado de “mundo do aluno”. Entende-se por mundo do aluno, a escola, a família, a vizinhança e o meio de socialização no qual o aluno está inserido. Introdução A partir das pesquisas que temos realizado, foi possível observar as lacunas existentes entre a escola, a família e o Conselho Tutelar, que são instituições fundamentais para a formação e garantia do direito da criança\adolescente. Com base nessa observação passamos a trabalhar com conceito de vazio institucional, que permite problematizar de uma perspectiva sociológica aspectos tipicamente escolares como a infrequência e a evasão. O esvaziamento ou a falta de relação entre as instituições que cercam a criança e o adolescente caracteriza o que temos chamado em nossa pesquisa de vazio institucional, um conceito que passou a fazer parte da pesquisa conforme foram observadas as esferas que cercam a criança\adolescente, citadas anteriormente. Constata-se, a partir da leitura do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que toda criança e adolescente se configura perante a lei como sujeito de direitos que deve ser protegido pelas instituições responsáveis. Consideramos que o estudo do que seja vazio institucional referido às instituições citadas acima, precisava ser problematizado com relação aos dados da recente pesquisa sobre alunos infrequentes/abandonantes que realizamos, e que engloba a relação da escola com o mundo do aluno, da família e do aluno com a escola, bem como a sua relação com o meio no qual estão inseridos (vizinhança/espaços de socialização, grupos de referência), além da relação de ambos com o Conselho Tutelar (CT). Para dar conta daquilo que temos chamado de vazio institucional é preciso que se leve em conta as diversas esferas que cercam crianças e adolescentes, como por exemplo, a escola, a família e o Conselho Tutelar (CT), que formam aquilo que denominamos tripé institucional, e que deveria servir como base de sustentação para essas crianças e adolescentes de classes populares, aos quais tenho me dedicado à análise há cerca de quatro anos. Já tendo apresentado uma reflexão dos aspectos da relação escola família, debruço-me agora nas questões relacionadas ao CT.

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Departamento de Ciências Sociais

O DIREITO À APRENDIZAGEM VISTO PELO ÂNGULO DA

SOCIOLOGIA DA INFREQUÊNCIA E DA EVASÃO ESCOLAR

Aluno: Mariana Junqueira e Dorlene Meireles Mendonça

Orientador: Marcelo Burgos

Apresentação

O projeto em desenvolvimento é resultante do amadurecimento de um conjunto de

questões propiciado pela realização de pesquisas sobre a infrequência e o abandono escolar,

um recorte atual de um denso projeto de pesquisa do qual participo há cinco anos – Projeto de

Gestão Escolar e Territórios Populares – e que agora tem uma nova frente de análise acerca

do vazio institucional que engloba o mundo do aluno, com repercussões sobre sua trajetória

escolar.

O projeto Gestão Escolar e Territórios Populares abrange as escolas públicas de ensino

fundamental do entorno da PUC-Rio, cujos estudantes são, em sua grande maioria, moradores

de favelas da região, especialmente da Rocinha. Em linhas mais gerais a pesquisa vem se

dando em torno do estudo da relação das escolas públicas com o que temos chamado de

“mundo do aluno”. Entende-se por mundo do aluno, a escola, a família, a vizinhança e o meio

de socialização no qual o aluno está inserido.

Introdução

A partir das pesquisas que temos realizado, foi possível observar as lacunas existentes

entre a escola, a família e o Conselho Tutelar, que são instituições fundamentais para a

formação e garantia do direito da criança\adolescente. Com base nessa observação passamos a

trabalhar com conceito de vazio institucional, que permite problematizar de uma perspectiva

sociológica aspectos tipicamente escolares como a infrequência e a evasão. O esvaziamento

ou a falta de relação entre as instituições que cercam a criança e o adolescente caracteriza o

que temos chamado em nossa pesquisa de vazio institucional, um conceito que passou a fazer

parte da pesquisa conforme foram observadas as esferas que cercam a criança\adolescente,

citadas anteriormente.

Constata-se, a partir da leitura do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que

toda criança e adolescente se configura perante a lei como sujeito de direitos que deve ser

protegido pelas instituições responsáveis. Consideramos que o estudo do que seja vazio

institucional referido às instituições citadas acima, precisava ser problematizado com relação

aos dados da recente pesquisa sobre alunos infrequentes/abandonantes que realizamos, e que

engloba a relação da escola com o mundo do aluno, da família e do aluno com a escola, bem

como a sua relação com o meio no qual estão inseridos (vizinhança/espaços de socialização,

grupos de referência), além da relação de ambos com o Conselho Tutelar (CT).

Para dar conta daquilo que temos chamado de vazio institucional é preciso que se leve

em conta as diversas esferas que cercam crianças e adolescentes, como por exemplo, a escola,

a família e o Conselho Tutelar (CT), que formam aquilo que denominamos tripé institucional,

e que deveria servir como base de sustentação para essas crianças e adolescentes de classes

populares, aos quais tenho me dedicado à análise há cerca de quatro anos. Já tendo

apresentado uma reflexão dos aspectos da relação escola – família, debruço-me agora nas

questões relacionadas ao CT.

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A atenção para o Conselho Tutelar foi despertada a partir da vivência nas escolas

situadas no entorno da PUC-Rio, e com as quais, conforme dito anteriormente, tem sido

mantida uma relação de pesquisa e extensão. Durante a convivência com os profissionais

dessas escolas ouviu-se com frequência a referência ao CT como forma de ameaça tanto para

as crianças como para seus responsáveis; sendo visto quase sempre como uma agência

punitiva e não de parceria.

De fato essa questão se tornou ainda mais clara quando foram realizadas entrevistas

com diretores(as) e professores(as) das escolas contempladas pelo projeto, nas quais se

estabeleceu uma conversa direcionada a uma reflexão sobre a relação da escola com a

diversidade de seu público e com os alunos mais vulneráveis. Visou-se também explorar a

percepção dos entrevistados a respeito do envolvimento da escola com outras instituições

responsáveis pela garantia do direito da criança/adolescente, entre as quais, o CT. (BURGOS;

LOPES; ROSSI, 2014)[1]

O que se constatou é que, parte dos entrevistados(as) veem o CT como última

instância que vai garantir a autoridade sobre os alunos, e por isso é acionado somente em

casos extremos, mas acredita-se que “o CT deve ser reestruturado para dar um suporte maior

para a escola”, em outras entrevistas afirmou-se que, nem em situações graves de

indisciplina dentro da escola o CT é solicitado, pois não é reconhecido como ferramenta de

apoio, mas é utilizado como forma de ameaça aos pais dos alunos: “quer que eu mande pro

conselho?”, visto pelos pais e pelos alunos como uma espécie de aparato punitivo e não como

parte de uma rede de proteção à criança/adolescente. (Idem; P. 379, 372)

Por vezes o argumento que justifica a falta de integração da escola com o CT baseia-se

na ideia de que essa agência está assoberbada de problemas mais sérios para resolver, de

modo que os problemas relacionados à escola acabam sendo deixados de lado.

Um dos problemas que buscamos abordar por meio das entrevistas foi o da questão da

infrequência escolar dos alunos, pois durante a pesquisa nas escolas tomamos conhecimento

de um documento da SME (Secretaria Municipal de Educação), que estipula 12,5% de faltas

como um limite para que a escola comunique ao CT. No entanto, apenas em um momento

surgiu a questão da infrequência relacionada ao CT, visto pela professora como sendo um

problema grave e que mesmo assim acaba ficando para trás por conta de diversas demandas

complicadas que chegam àquela agência.

Afim de conhecermos melhor a relação do CT com a escola, foi organizado o projeto

de pesquisa Conselho Tutelar e gestão escolar de famílias vulneráveis, que teve como

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laboratório de referência o Conselho Tutelar da Zona Sul (CTZS)1, que na época da pesquisa

tinha como região de competência toda a Zona Sul do Rio de Janeiro – incluindo a Gávea e a

Rocinha, onde se situam as escolas contempladas pelo projeto Gestão Escolar e Territórios

Populares.

Já em uma primeira visita ao CTZS verificou-se que para a realização do trabalho seria

necessário desenvolver uma parceria com essa agência no sentido de qualificar a sua gestão

de informações, já que o arquivo com o registro dos dados dos casos em andamento ou

arquivados no CT encontrava-se em uma situação muito precária, sem padronização dos

formulários utilizados, com um sistema de busca basicamente manual e muito dependente da

memória de uma de suas funcionárias mais antigas. De modo que, essa fragilidade

organizacional observada no CT nos interessou pelo fato de essa ser uma instituição que atua

no sentido de validar o direito da criança/adolescente, que assim como a escola opera

praticamente de forma autônoma, pois, além de todos os problemas relacionais, lhes falta o

apoio necessário das esferas públicas.

Pensando o CT como um sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente

que ele é, e que foi criado para ser uma das faces da política setorial do país com a

responsabilidade direcionada a medidas preventivas, no sentido de atuar próximo à população,

aos bairros e escolas visando uma política de atendimento que integre a sociedade civil nas

esferas institucionais, preocupa-nos o fato de que o vazio institucional observado durante a

pesquisa, está referido não só à escola, à família dos alunos e a sua vizinhança, como também

ao CT, que apesar de ser também uma instituição muito fragilizada, faz parte desta relação da

escola com o mundo do aluno.

O fato de o CT ter sido concebido como um modelo descentralizado visando a

participação da sociedade civil, uma instância que foi incorporada pelo ECA e tem como

suporte a Constituinte, permiti-nos incluir essa instituição como parte da trama institucional,

formando dessa maneira, o tripé – escola, família, CT – que permitiria identificar e estudar

com mais precisão o problema do vazio institucional que perpassa estas instituições, afetando

diretamente o modus operandi entre elas e as crianças/adolescentes. Pois, a premissa

metodológica é a de que o CT é um campo privilegiado para a observação dessa complexa

relação, e sendo o CT um canal de comunicação que mobiliza a integração social, propicia à

sociedade civil participação no debate de renovação da democracia.

1 A pesquisa no CTZS deu lugar a uma sessão inteira do livro A escola e o mundo do aluno. Ver BURGOS; 2014,

capítulos 9 e 12. No Rio de Janeiro existem 16 Conselhos Tutelares, com 5 conselheiros em cada unidade, quando na verdade

o previsto seriam 60 Conselhos Tutelares.

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O Conselho Tutelar pode ser entendido como sendo uma instituição que foi pensada

para atuar como agência de proximidade entre o direito e os contextos do “mundo da vida”

cotidiana das famílias de crianças e adolescentes, e a escola estando presente em praticamente

todas as famílias de nossa sociedade, seria junto ao CT uma instituição garantidora

principalmente do direito à educação escolar. No entanto, pelo que tem sido observado por

nossas pesquisas, o CT tem uma capacidade preventiva baixa com relação às demandas

escolares, pois falta para essa instituição estrutura material e apoio para dar conta da extensa

realidade de demandas envolvendo a violação dos direitos da criança/adolescente, em especial

o direito à educação. Além disso, os conselheiros tutelares sofrem com a ausência de

propostas de capacitação para a classe.

A ideia de ter uma instituição que atua à nível local como parte de um sistema de

garantia de direitos como o CT, remete-nos ao conceito de “mundo da vida” utilizado por

Jüngen Habermas. Em conotação sociológica o “mundo da vida pluralizado” é composto por

subsistemas cujos processos comunicativos têm como médium linguístico o direito, que é tido

como uma ferramenta da racionalização que permite a integração entre as instituições e quem

sabe entre os indivíduos. (HABERMAS, 1997).[2] Conforme analisa o autor:

“A universalização de um status de cidadão institucionalizado pública

e juridicamente forma o complemento necessário para a juridificação

potencial de todas as relações sociais. O núcleo dessa cidadania é formado

pelos direitos de participação política, que são defendidos nas novas formas de

intercâmbio da sociedade civil, na rede de associações espontâneas protegidas

por direitos fundamentais”. (Idem, P. 105)

Pensando de modo horizontal, o “mundo da vida” engloba uma gama de instituições e

atividades envolvidas com a reprodução da sociedade, algumas dessas instituições são caras a

nossa pesquisa, como por exemplo, as famílias e as escolas, que estão relacionadas a

atividades como a educação; em apoio às famílias e à escola pode-se pensar o CT como sendo

porta-voz do direito que tem função socialmente integradora da criança/adolescente no Brasil.

Nesse sentido, o CT pode ser analisado na chave proposta por Habermas como uma

instituição mediadora; o CT como uma espécie de médium linguístico, baseado no direito da

criança e do adolescente.

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Em tese, o CT2 deveria ter uma parceria com a escola, de modo a contribuir para o seu

fortalecimento institucional. No entanto, a fragilidade das relações entre as instituições citadas

anteriormente esconde por vezes crianças e adolescentes que estão em situação de

vulnerabilidade. Vista de um ângulo estrutural, essa vulnerabilidade pode se agravar ainda

mais quando se pensa nos territórios urbanos pelos quais essas crianças e adolescentes

transitam, frequentemente marcados por mecanismos de segregação urbana.

Visto por Habermas, o “mundo da vida”3 está centrado nas ações comunicativas do dia

a dia em que o indivíduo constrói sua trajetória, que é resultante do que ele chama de “jogo

entre reprodução cultural, integração social e socialização”, e que precisa do direito como

dimensão fundamental para fomentar o diálogo em busca do entendimento entre as diferentes

formas de mundo da vida, e para a integração entre os subsistemas. (HABERMAS; 1997,

P.111)

Ao constatar que a linguagem das ações comunicativas é insuficiente para possibilitar

a integração social devido à pluralização do mundo da vida, Habermas encontra no direito

uma solução para essa integração, não pelo fato do direito ser impositivo, mas por atribuir

validade às pretensões de verdade advindas da esfera pública, definindo o direito como um

possibilitador da racionalização do mundo da vida e um meio de integração social.

Pensar instituições como a escola, a família e o CT na chave habermasiana, através das

quais crianças/adolescentes podem ter uma formação cidadã dignificada se houver consensos

lógicos acerca da comunicação entre Estado, sistemas educacionais, família e sociedade civil,

remete à questão de como é regida a conduta da vida cotidiana dessas crianças e adolescentes.

De modo que, para se chegar a esse entendimento pode ser útil recuperar o método da análise

fenomenológica de Peter Berger e Thomas Luckmann, que explicita o fato de a realidade

social da vida cotidiana depender das interações sociais. (BERGER; LUCKMANN, 2003)[3]

A análise fenomenológica serve como método fundamentalmente empírico de estudo

da subjetividade da vida cotidiana, possibilitando a compreensão da forma como as

perspectivas pessoais acerca da realidade divergem de uma consciência individual para outra,

2 O Conselho Tutelar é composto por cinco membros, eleitos pela comunidade para acompanharem as crianças e

adolescentes e decidirem em conjunto sobre qual medida de proteção para cada caso. Devido ao seu trabalho de

fiscalização de todos os entes de proteção (Estado, comunidade e família), o Conselho goza de autonomia funcional, não tendo nenhuma relação de subordinação com qualquer órgão do Estado.

3 Foi o filósofo Edmund Husserl que introduziu o conceito de “mundo da vida” como tema para a filosofia, com o

objetivo de contrapor o mundo da vida ao pensamento científico predominante que se pautava nas ciências da natureza

como forma de conhecimento única. Para a formulação da teoria do agir comunicativo Habermas recupera o conceito de

mundo da vida, mas estabelece críticas à teoria huserliana. (informação retirada da web

http://www.eumed.net/rev/cccss/20/bls.html)

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formando assim uma rotina da vida cotidiana; rotina essa que quando interrompida acaba

iluminando um setor problemático da realidade como ocorre no caso de trajetórias escolares

vulneráveis. Nesse sentido, os autores pontuam que a sociologia do conhecimento deve

contemplar o entendimento sobre o “conhecimento” do senso comum, pois é este o

conhecimento que explica o real sentido das relações sociais.

Berger e Luckmann (2003) apontam a sociologia do conhecimento como forma de

entendimento desse saber comum que estrutura a vida cotidiana e procuram explicitar como

são utilizados dentro dela determinados conceitos. Pois, a partir da perspectiva do “eu”

existem tipificações abstratas que resultam numa estrutura social que vai sendo construída de

acordo com as relações que se estabelecem ao longo do percurso de formação de cada

indivíduo. Estas tipificações abstratas advêm do anonimato presente nestas relações;

abstrações que podem ser exteriorizadas a partir de atitudes subjetivas de uma consciência,

que tem como forma objetivar a subjetivação humana.

A fenomenologia busca, portanto, dissociar o “mundo da vida” das explicações com

significados meramente científicos, a partir dos quais foi introjetada nos indivíduos a

concepção de que toda explicação deve ser científica, ao passo que, como vimos

anteriormente, as explicações acerca do “mundo da vida” podem ser diversas, já que ele é

composto por uma multiplicidade de realidades em que se encontram os indivíduos.

A respeito disso, explica-se a linguagem como sendo parte de um sistema que tipifica

comportamentos e experiências que permitem aos indivíduos um compartilhamento do

mesmo tipo de conhecimento, que por sua vez serve de orientação para o indivíduo seja no dia

a dia ou na multiplicidade de realidades nas quais estão imersos. Nesse sentido Berger e

Luckmann (2003) afirmam que a linguagem é a maneira pela qual o mundo externo se

interioriza nos indivíduos, de modo a fazer com que as ações da vida cotidiana tornem-se

hábitos que acabam por se institucionalizar; esta institucionalização é tida como uma

necessidade humana de se obter hábitos compartilhados.

Pensaando na perspectiva da criança e do adolescente como atores sociais que

precisam ser integrados à sociedade em que vivem e que para isso necessitam de um sistema

que os integre, podemos articular a ideia de direito como médium linguístico, e o Conselho

Tutelar como mediador e garantidor do direito da criança/adolescente.

A evidência empírica encontrada por meio dos dados dos alunos de nossa pesquisa

denota um problema de gestão escolar, o qual envolve a forma como a escola administra a

situação de infrequentes/abandonantes e como lida com a família destes alunos. Além disso, é

preciso que se leve em conta os problemas relacionados à educabilidade que, possivelmente,

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os alunos têm fora da escola. De modo que tanto infrequência/abandono como gestão escolar

e família, são dimensões que dizem respeito à sociologia da educação, pois o alto índice de

infrequência/abandono encontrado traz à tona o tema da invisibilidade dos alunos perante os

gestores de uma escola, como também perante as famílias dos alunos em questão. A respeito

disso, parto do pressuposto de que os efeitos da infrequência\abandono podem estar

relacionados ao que temos chamado de vazio institucional.

Em linhas mais gerais, este trabalho tem por objetivo apresentar o estudo realizado em

torno dos mecanismos e dinâmicas de instituições como a escola, a família e o Conselho

Tutelar que são, por excelência, garantidores do direito à aprendizagem de crianças e

adolescentes, explorando de que modo estas esferas de sociabilidade, fragilizadas pelo vazio

institucional que as perpassa, podem potencializar a invisibilidade de alunos, afetando

diretamente suas trajetórias escolares.

Objetivos

Motivados pela relevância do fenômeno da infrequência e abandono dos estudos, nossa

pesquisa levantou dados sobre as trajetórias escolares de alunos com problemas de

assiduidade, que muitas vezes caracteriza uma situação de exclusão duradoura (mas não

necessariamente definitiva da escola), que leva à exclusão do direito à aprendizagem escolar.

Por isso, os objetivos mais gerais deste projeto foram o de compreender de que forma

trajetórias escolares mais vulneráveis estão relacionadas com uma trama social que pode ser

entendida a partir de um tripé institucional composto pela escola, família e conselho tutelar.

Foi a partir da incursão empírica no estudo desse tripé que chegamos à noção de vazio

institucional. Ou seja, nossa principal hipótese é a de que as trajetórias escolares vulneráveis

são em grande medida determinadas por esse vazio.

Desse modo, o estudo sobre os alunos infrequentes/abandonantes servirá como uma

forma de iluminar aspectos importantes da gestão escolar, na medida em que levanta questões

acerca de um problema que, até onde já pudemos identificar, parece invisível aos olhos dos

gestores, possibilitando assim que sejam pensadas ações preventivas para tal problema, muito

especialmente aquelas que dizem respeito à relação do Conselho Tutelar com as escolas.

A hipótese inicial da pesquisa sobre alunos infrequentes/abandonantes tem como

ponto de partida normativo a questão que envolve o direito constitucional da

criança/adolescente. Portanto, importa estudar os fatores perversos que privam estas

crianças/adolescentes de seu direito à educação.

Os dados sobre infrequência/abandono apontam, sem dúvida alguma, para a

necessidade de se fortalecer as instituições que atuam junto à escola, no sentido de assegurar a

plena cobertura do direito de toda criança/adolescente à aprendizagem escolar e, entre elas,

muito especialmente o Conselho Tutelar, guardião por excelência desse direito. Até porque, o

conjunto de hipóteses com que temos trabalhado, inclui a ideia de que em boa parte dos casos,

tanto o abandono como a infrequência são apenas a ponta do iceberg de configurações

familiares nas quais as crianças e adolescentes são privadas de outros direitos ainda mais

fundamentais.

Metodologia

A realização dessa pesquisa resulta de um acúmulo de diferentes abordagens empíricas

que tiveram como locus privilegiado de realização o Conselho Tutelar da Rocinha e escolas

públicas localizadas no entorno da PUC-Rio. No CT/Rocinha levantamos dados sobre casos

encaminhados pelas escolas sobre infrequência e evasão, e de como essas situações

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frequentemente escondem problemas sociais mais graves; já a pesquisa nas escolas partiu de

um levantamento quantitativo realizado em uma escola que atende basicamente adolescentes

moradores da Rocinha. Com base nesse levantamento, foram identificadas situações típicas

que permitiram a delimitação de um universo de estudantes a serem entrevistados juntamente

com suas famílias e professores.

Para melhor situar de qual realidade estamos falando, as escolas contempladas pelo

projeto atendem basicamente moradores da favela da Rocinha (local de moradia de 85% a

95% de seus alunos), pode-se falar de cerca de 5.000 crianças e adolescentes matriculados nas

nove escolas estudadas. E olhando para o contexto da Rocinha, lá vivem em torno de 30.000

crianças/adolescentes (entre 0 e 18 anos). Segundo dados produzidos pelo censo realizado

pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro (2008), na Rocinha 18% das crianças e

adolescentes entre 7 e 14 anos não estão na escola; já no segmento de 15 a 17 anos, que

deveria estar cursando o ensino médio, a situação se mostra mais grave: 79% frequentam a

escola, mas apenas 39% no ano escolar compatível, indicando que além de problemas de

acesso, que afetam parcela significativa das crianças e adolescentes moradores da Rocinha, a

grande maioria – mais de 60% – chega à faixa etária dos 15 aos 17 anos fora do ano escolar

compatível com sua idade ou mesmo fora da escola, caracterizando a distorção idade-série.

Consideramos que estes dados apontam para a existência de um fenômeno

extremamente grave e que não pode ser reduzido único e exclusivamente a um problema

escolar, pois ele é também de cunho sociológico. E possível sustentar que o problema da

infrequência e do abandono no ensino fundamental é muito mais preocupante do que se

costuma reconhecer, e que isso possivelmente guarde relação com sua baixa visibilidade para

a própria gestão escolar.

De modo que, o problema pode se agravar ainda mais quando se leva em conta os

dados já compulsados por nossa pesquisa. Esses alunos, na falta de intervenção das agências

responsáveis pela garantia do direito à educação escolar, certamente são candidatos a

engrossarem a estatística dos que já estão fora da escola.

Motivados pela relevância do fenômeno da infrequência e abandono dos estudos,

nossa pesquisa levantou dados sobre as trajetórias escolares de alunos com problemas de

assiduidade, que muitas vezes caracteriza uma situação de exclusão duradoura (mas não

necessariamente definitiva da escola), que leva à exclusão do direito à aprendizagem escolar.

Para fins estatísticos dessa vertente da pesquisa, classificamos como infrequentes alunos com

mais de 25% de faltas em, pelo menos duas, disciplinas, (cálculo estipulado por nós para

analisar os dados), e “abandonantes” aqueles que por necessidade de trabalhar e/ou doença ou

anomalia grave deixaram de frequentar a escola permanentemente.

Nesse sentido, buscamos compreender de que forma trajetórias escolares vulneráveis

estão relacionadas com uma trama social que pode ser entendida a partir do tripé institucional

composto pela escola, família e Conselho Tutelar, e como a falta de regulação dessas

instituições pode levar a uma enorme invisibilidade do aluno que se encontra em situação

vulnerável.

O estudo sobre os alunos infrequentes/abandonantes serviu como uma forma de

iluminar aspectos importantes da gestão escolar, na medida em que levanta questões acerca de

um problema que, até onde já pudemos identificar, parece invisível aos olhos dos gestores,

possibilitando assim que sejam pensadas ações preventivas para tal problema, muito

especialmente aquelas que dizem respeito à relação do Conselho Tutelar (CT) com as escolas.

Para que se torne um pouco mais clara a forma como o aluno e sua família lidam com

essa problemática, será apresentada a entrevista com uma das alunas que se encaixa na

categoria de infrequente de nossa pesquisa, junto a sua família, e para contrapor, será

explicitada a opinião de professores da escola dessa mesma aluna acerca de problemas como

atrasos constantes, infrequência, distorção idade-série, reprovação e evasão.

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A evidência empírica encontrada por meio de pesquisa realizada em uma das escolas

contempladas pelo projeto, envolvendo o tema da infrequência e do abandono dos estudos

denota diversos problemas. Um desses problemas é de gestão escolar, o qual envolve a forma

como a escola administra a situação de infrequentes/abandonantes e como lida com a família

destes alunos, estando quase sempre presos a um discurso do senso comum; o outro diz

respeito às configurações familiares dos mesmos e a quase inexistente relação entre escola,

família e Conselho Tutelar fortalecendo, dessa maneira, a invisibilidade dos alunos com

trajetórias vulneráveis.

Para que se tenha um melhor entendimento de como foram separadas e analisadas as

duas categorias de nossa pesquisa, infrequentes e abandonantes, vou apresentar as tipificações

de ambas. Para o primeiro público, antes de mais nada, definimos o que consideraríamos

como infrequência: infrequentes, para efeitos de nossa pesquisa, são os alunos com mais de

25% de faltas em, pelo menos, duas disciplinas.

No ano de 2013, 47 alunos, 10,9% do total da escola eram infrequentes. Dividimos

este grupo entre os que tinham uma infrequência baixa, com 25% ou mais em 2 ou 3

disciplinas, e os que tinham uma infrequência alta, com mais de 25% ou mais em 4 disciplinas

ou acima disso. Uma parcela dos alunos que tinham uma infrequência baixa são, na verdade,

alunos que chegam atrasados quase que diariamente, sempre no segundo tempo de aula.

Entende-se que, ao perder um tempo de aula a cada dia aluno perde cinco tempos de aula por

semana, o que ao fim do mês soma quatro dias de falta.

Chegamos aos alunos infrequentes de 2013 a partir da consulta das pautas dos

professores na escola. Consultamos as pautas de 4 a 7 disciplinas do total de 10 turmas (6° ao

9° ano, além das turmas de Acelera 1, 2 e 3). Desconsideramos, porém, o período de greve na

rede Municipal do Rio de Janeiro, que ocorreu entre agosto e outubro.

Elaboramos então uma planilha em Excel onde foram listadas todas as turmas com o

total de aulas e faltas por disciplina. Para isso, somamos as diversas faltas das folhas dos

respectivos diários de cada disciplina, depois somamos as informações dessas folhas e

calculamos a razão entre as faltas e o quantitativo de aulas dadas, obtendo assim o resultado

final do percentual de faltas dos alunos em cada disciplina. Consideramos apenas aqueles que

tivessem 25% ou mais de faltas em duas disciplinas ou mais, como explicitado anteriormente.

Para realizar possíveis cruzamentos de dados foi preciso construir um perfil básico de

cada aluno, que engloba informações tais como bairro de moradia, com quem o aluno mora,

se recebe programas sociais, entre outros.

Para a categoria dos que abandonaram a escola, consideramos o período de 2009 até

2013, aqueles que deixaram de frequentar a escola. As opções de motivos para o abandono

consistentes do SGA (Sistema de Gestão Acadêmica) eram as seguintes: necessidade de

trabalhar, doença ou anomalia grave ou então abandono simplesmente, sem justificativa. Pelo

fato de contarmos com a participação de dois professores da escola pesquisada, obtivemos a

informação de que, quando o abandono ocorre por causa de gravidez, a opção escolhida

geralmente é a de doença ou anomalia grave, já que no SGA não existe essa opção. A partir

daí, a exemplo do método utilizado para os infrequentes, buscou-se no SGA informações que

permitissem elaborar o perfil desses alunos.

Para a construção da base de dados fizemos um recorte somente para o ano de 2013,

elencando dois tipos de situação: alunos que abandonaram sem deixar registro de que estavam

indo para outra escola; e alunos infrequentes. Dessa maneira a base de dados foi consolidada

com o total de 60 alunos, sendo que destes, 47 alunos eram infrequentes, correspondendo a

10,9% e 13 alunos haviam abandonado a escola, 3% do total. Ou seja, no ano de 2013, 13,9%

dos alunos da escola pesquisada eram infrequentes ou “abandonantes”.

Considerando que a escola pesquisada se trata de uma instituição de porte médio, com

o IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) de 5,1, enquanto sua meta é de 5,2,

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e que apresenta boa reputação entre as demais escolas da região, os dados encontrados não

deixa de nos surpreender.

Nas tabelas a seguir ficará melhor explicitado o universo referente às categorias de

alunos infrequentes e “abandonantes” com o qual estamos lidando:

Tabela 1 – Situação de vulnerabilidade e Sexo do aluno

Sexo do aluno

Total Feminino Masculino

Situação de

vulnerabilidade

Abandono 9 4 13

69,2% 30,8% 100,0%

Infrequência 27 20 47

57,4% 42,6% 100,0%

Total 36 24 60

60,0% 40,0% 100,0%

Em primeiro lugar, notamos que, na tabela 1, tanto o abandono como a infrequência

são majoritariamente femininas. Tendo 69,2% de abandono e 57,4% de infrequência.

Tabela 2 – Ano-série do aluno * Situação de vulnerabilidade

Situação de vulnerabilidade

Total Abandono Infrequência

Ano-série do

aluno

6º ano 4 23 27

30,8% 48,9% 45,0%

7º ano 0 5 5

,0% 10,6% 8,3%

8º ano 2 12 14

15,4% 25,5% 23,3%

9º ano 4 7 11

30,8% 14,9% 18,3%

Acelera 3 0 3

23,1% ,0% 5,0%

Total 13 47 60

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Tabela 2 – Ano-série do aluno * Situação de vulnerabilidade

Situação de vulnerabilidade

Total Abandono Infrequência

Ano-série do

aluno

6º ano 4 23 27

30,8% 48,9% 45,0%

7º ano 0 5 5

,0% 10,6% 8,3%

8º ano 2 12 14

15,4% 25,5% 23,3%

9º ano 4 7 11

30,8% 14,9% 18,3%

Acelera 3 0 3

23,1% ,0% 5,0%

Total 13 47 60

100,0% 100,0% 100,0%

Em segundo lugar, ressalta-se na tabela 2, o fato de a infrequência ser mais alta no 6º

ano do que no 9º ano, e do abandono ser tão alto no 6º quanto no 9º ano. Dos alunos que

abandonaram a escola 30,8% estava cursando o 6º ano, o mesmo ano em que 48,9% dos

alunos era infrequente.

Tabela 3 – Idade do aluno * Situação de vulnerabilidade

Situação de vulnerabilidade

Total Abandono Infrequência

Idade do aluno 12 1 12 13

7,7% 25,5% 21,7%

13 1 8 9

7,7% 17,0% 15,0%

14 2 11 13

15,4% 23,4% 21,7%

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15 2 6 8

15,4% 12,8% 13,3%

16 5 7 12

38,5% 14,9% 20,0%

17 1 3 4

7,7% 6,4% 6,7%

18 1 0 1

7,7% ,0% 1,7%

Total 13 47 60

100,0% 100,0% 100,0%

Importa notar na tabela 3 que estamos falando de adolescentes com idade entre 12 e 18

anos e o percentual mais alto, tanto de abandono quanto de infrequência, foi encontrado entre

alunos com idade de 14 a 16 anos, portanto menos expostos à lógica do ingresso precoce no

mercado de trabalho informal.

Tabela 4 – Turno * Situação de vulnerabilidade

Situação de vulnerabilidade

Total Abandono Infrequência

Turno Manhã 5 15 20

38,5% 31,9% 33,3%

Tarde 8 32 40

61,5% 68,1% 66,7%

Total 13 47 60

100,0% 100,0% 100,0%

Outro dado que chama a atenção é que, na tabela 4 a maioria dos alunos

“abandonantes” e infrequentes, estuda no turno da tarde. Sendo 61,5% dos que abandonaram

e 68,1% dos infrequentes.

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Tabela 5 – Programas institucionais: Bolsa Família e/ou Cartão Família

Carioca

Infrequentes % Total

Bolsa Família

9 19,1 19,1

Bolsa Família e Cartão Família

Carioca

2 4,3 23,4

Não recebe

36 76,6 100,0

Total

47 100,0

A tabela 5 contém somente os alunos infrequentes. Nela são apresentados dados de

programas sociais que beneficiam 23,4% destes alunos. Enquanto a grande maioria, 76,6%

dos infrequentes, não recebe nenhum tipo de benefício. Importa lembrar que os benefícios

como o Bolsa Família e Cartão Família Carioca têm relação com a política de diminuição da

infrequência escolar.

Ainda que sejam dados preliminares, pois a pesquisa sobre infrequência e abandono

dos estudos foi realizada em apenas uma escola, consideramos que eles apontam para a

existência de um fenômeno de grande relevância para o universo escolar, já que indica uma

parcela considerável de alunos matriculados, mas que não tem sequer conseguido ser exposta

ao trabalho escolar, o que significa que para eles sequer se aplica todo o esforço voltado para

a melhoria do desempenho escolar; uma melhoria que para obter sucesso deve olhar com mais

cuidado para o problema que envolve infrequência e abandono de estudos.

No caso da Rocinha, campo privilegiado de nossa pesquisa, os dados coletados em

uma das escolas contempladas pelo projeto, deve ser agregado ao enorme contingente de

crianças e adolescentes em idade escolar (entre 7 e 14 anos) que, segundo o censo realizado

pelo PAC, está fora da escola (18%). Caso o padrão de abandono e infrequência encontrado

por meio de nossa pesquisa se repita nas demais escolas que atendem à Rocinha, teríamos um

quadro no qual cerca de 32% das crianças e adolescentes em idade escolar moradora daquela

favela estaria ou fora da escola, ou saindo dela, ou simplesmente não a frequentando.

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Esses dados apontam, sem dúvida alguma, para a necessidade de fortalecer as

instituições que atuam junto a escola, no sentido de assegurar a plena cobertura do direito de

toda criança/adolescente à aprendizagem escolar, e entre elas, muito especialmente o

Conselho Tutelar, guardião por excelência desse direito.

Conclusões

Depreende-se a partir da pesquisa sobre infrequência e abandono que estas são

categorias que nos permitem adentrar em outras esferas encobertas por questões que

inicialmente se traduzem apenas como escolares, mas que na verdade estão referidas a

diversas configurações, incluindo as familiares, como veremos adiante.

Até agora estávamos exemplificando consequências do que temos chamado de vazio

institucional, que por sua vez pode potencializar a invisibilidade dos alunos dentro e fora da

escola. Além disso, apresentamos o fato de haver dentro de uma escola um alto nível de

infrequência e abandono dos estudos, caracterizando um fenômeno que não deve ser

entendido apenas como escolar, mas também como um fenômeno social.

Pensando a distância entre as instituições que cercam crianças e adolescentes; uma

distância que nos propiciou o estudo de nuances encobertas pelo vazio que permeia o tripé

institucional, podemos abrir um espaço para pensar a distância existente entre os fatos e o

significado dos fatos. Para tanto, pode ser útil que o campo da discussão social seja acessado

em interlocução com o campo factual. Pois, como bem explica John Dewey:

“ (...) muitas pessoas parecem supor que os fatos carregam em si o seu

significado, mas o poder dos fatos físicos de coagir a crença não reside nos

simples fenômenos. Ele provém do método, da técnica de pesquisa e cálculo.

Os fatos são simples e familiares. E somente quando se permite livre curso aos

fatos para a sugestão de novos pontos de vista é que alguma conversão

significativa da convicção quanto ao significado é possível”. (DEWEY; P. 23,

1927)[4]

Reverberando o pensamento de Dewey (1927), para que o sentido que está por trás da

infrequência seja compreendido, é preciso nos debruçarmos sobre o método de pesquisa

qualitativa aplicado a uma das alunas infrequentes e sua família e criar uma interface a partir

do fenômeno da infrequência/abandono e as informações colhidas durante as entrevistas. E,

com base nos dados que se referem a este fenômeno, será apresentada uma síntese dos

resultados que podem elucidar um outro ponto de vista de tais problemas, o ponto de vista das

configurações familiares.

Para tanto, partimos do pressuposto de que o desempenho de crianças e adolescentes

podem sofrer influências não só da escola, como da família e do seu local de moradia. Nesse

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sentido, podemos fazer remissão ao argumento de Bernard Lahire, que pontua uma

problemática que envolve a relação entre escola e família no processo de escolarização,

trazendo para o debate a questão do bairro de moradia como forte influência neste processo.

Os três aspectos analisados por Lahire como, escola, família e vizinhança, serão elucidados

por meio de nossa pesquisa qualitativa. (LAHIRE; 1997)[5]

As entrevistas qualitativas que serão articuladas durante este tópico, além de trazer o

problema da infrequência, engloba questões como atrasos constantes, reprovação, distorção

idade-série e dificuldade de ensino-aprendizagem. Para apresentar de uma perspectiva

sociológica o ângulo dos alunos infrequentes e suas famílias, selecionamos a entrevista de

uma aluna que sofre com os problemas possivelmente gerados pelo vazio institucional que

permeia as instituições que a cercam.

A entrevista qualitativa foi realizada na casa da aluna Júlia (nome fictício) e de sua

família, situada na favela da Rocinha, em um local de difícil acesso como tantos outros nessa

região; em um beco sem feixes de luz e úmido estava situada a casa de quatro cômodos, onde

moram oito pessoas. Além de Júlia, residem em sua casa seus pais, seu irmão de 19 anos e sua

irmã mais velha de 27 anos com seus três filhos de 3, 7 e 8 anos.

A recepção para nossa entrevista foi tímida e agradável, apesar do pouco espaço

ficamos bem acomodadas na sala, que era o primeiro cômodo da casa. Optamos por

entrevistar a Júlia antes de seus pais, que concordaram com a ideia, mas pela timidez da

menina de 13 anos, foi preciso que os pais ajudassem em algumas respostas.

Durante a entrevista foram abordados pontos como rotina e lazer da aluna e da família,

atividades que Júlia realizasse fora do horário escolar, como ela e os pais lidam com o fato de

Júlia andar sozinha, com quem anda, quais são os grupos de referência, como a aluna se

relacionava com a escola anterior e como pontua as diferenças entre as duas escolas, como

percebe o nível de avaliação da atual escola, além de questões sobre infrequência e

reprovação.

Com relação à rotina de Júlia e seu lazer, próximo e distante da família, os pais da

menina dizem não permitir que ela saia com as amigas, pois não confiam muito nas

companhias. E para reforçar afirmam: “quando chega da escola almoça, cuida da casa, lava

louça, varre e ajuda a cuidar dos sobrinhos pequenos, dá banho neles. Nos fins de semana o

lazer é mesmo dentro de casa, ouvindo música, assistindo TV, mexendo no computador”.

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Além disso, atualmente Júlia não faz nenhuma atividade fora da escola. Chegou a fazer

“lambaeróbica”4 anos anteriores, mas perdeu o interesse rapidamente.

Quando indagamos sobre o fato de Júlia andar sozinha, os pais afirmaram que não

deixam, exceto para ir à escola. Júlia diz que quando deixou de ir para a escola de ônibus

escolar e passou ir sozinha (com 12 anos), sentiu um pouco de medo, por estar no ônibus

sozinha e descer no ponto errado. O motivo por não permitirem que Júlia ande sozinha está

referido à violência, que segundo o pai não é exclusiva do Rio de Janeiro, mas também é um

problema grave no Ceará, sua terra natal. Ele diz: “inclusive no Nordeste a violência tá pior

que aqui”. A família de Júlia migrou do Ceará para o Rio de Janeiro há 17 anos e desde então

reside na favela da Rocinha.

Ao perguntarmos sobre as amizades de Júlia, a menina responde que só tem amigos na

escola e que não os encontra fora do ambiente escolar, pois a mãe não permite o encontro por

não conhecê-los. Júlia diz que as amigas a convidam para festas, mas ela não tem permissão

dos pais. A mãe confirma e diz: “tem uma amiga que às vezes vem visitá-la e eu não vejo

problema, mas me preocupo em controlar, porque tem umas meninas da mesma idade que

são muito“atiradas”, e também tem o irmão dela que me ajuda a controlar”.

Com relação aos grupos de referência de Júlia e de sua família, o pai diz que

dificilmente eles vão à igreja, e se define como católico não praticante. A mãe diz que Júlia

frequentou durante 3 anos o NOAP-PUC5, e que isso ajudou muito no desenvolvimento

escolar da menina, pois até os 8 anos não sabia ler, nem escrever. A mãe diz: “ajudou também

nessa timidez dela, porque lá tinham vários grupos de conversa que até eu participava

algumas vezes”. O pai lamenta o fato de que Júlia não pôde mais participar do programa por

não ter mais crianças o suficiente para formar uma turma, pois o horário de Júlia passou a não

bater com os horários do NOAP.

Júlia foi indagada sobre a sua relação com a escola anterior a essa na qual realizamos a

pesquisa sobre infrequência e abandono, escola pública também situada no bairro da Gávea,

mas quem responde é a mãe: “lá ela pegou uma professora muito ruim, que gritava muito e

4 Lambaeróbica é uma dança que trabalha e tonifica os músculos do corpo, a qual, geralmente, é animada pelo ritmo de

música baiana.

5 NOAP - Núcleo de Orientação e Atendimento Psicopedagógico é um serviço vinculado ao Departamento de Educação,

foi fundado em 1982 e vem desde então buscando viabilizar a ligação universidade - escola Básica, para a compreensão,

redefinição e superação do fracasso escolar. O NOAP conta com uma equipe de 25 ex-alunos PUC-Rio todos

especialistas na área de aprendizagem que atendem voluntariamente, em grupos, os alunos encaminhados pelas

diferentes escolas do município. Nos últimos cinco anos o NOAP vem dar assistência aos universitários da PUC-Rio que

apresentam dificuldades acadêmicas, poucos recursos em metodologias de estudo e/ou déficits pedagógicos. O NOAP

atende uma media de 200 crianças por mês. O NOAP paralelamente dá suporte às famílias e à escola das crianças e adolescentes atendidos

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destratava os alunos, um dia até chamou a Júlia de macaca, não foi filha?” Júlia confirma,

mas diz que só contou o episódio para os pais depois que mudou de escola, e quando

perguntamos o motivo, ela disse que não contou antes porque tinha apenas 6 anos e não

entendia muito bem a seriedade da situação.

Em uma das poucas vezes em que Júlia se colocou sem o “empurrão” dos pais, foi

quando perguntamos sobre a diferença entre as duas escolas, uma de 1º segmento e a outra de

2º. A menina disse preferir a escola anterior, pelo fato de ter menos matérias e apenas um

professor. “Agora com tantas matérias e professores sinto mais dificuldade, mas essa escola

é legal, os professores também”. No entanto, a mãe relata que no início a filha não gostava

tanto da atual escola, pois sentia medo de meninas que implicava com ela por sua timidez. E

Júlia diz que gosta muito do coordenador de sua atual escola por ele ter a ajudado nessa

situação.

Apesar de gostar da escola Júlia reitera o que foi dito anteriormente e diz que sente

muita dificuldade pela variedade de matérias e que não gosta de nenhuma em especial, mas

que se considera com pior rendimento em Ciências e Matemática, a única que sente menos

dificuldade é Português. Além disso, Júlia não tem preferência por nenhum professor e diz: “é

muito difícil, mas às vezes eu vou até os professores para tirar dúvidas”.

Quando lhe foi perguntado, Júlia disse ter sido reprovada no 6 º ano, que estava

cursando novamente ao realizarmos a entrevista, e lamenta: “eu reprovei porque não sabia

nada das matérias, eu fazia as provas mas era tudo muito difícil e também tinha muito dever

de casa, eu não tava dando conta”. No entanto, o pai de Júlia diz que ela não desanimou com

a reprovação, e a menina diz que a reprovação não lhe causou estranhamento algum, na

verdade afirma sentir agora, mais facilidade para realizar os deveres de casa.

O assunto sobre infrequência surgiu sem que precisássemos incluir Júlia de forma

acusatória nesta categoria. Os pais afirmam que não deixam a menina faltar, exceto em caso

de tiroteio na favela, e quando o tiroteio ocorre à noite eles esperam um pouco mais para levá-

la no ponto de ônibus, o que muitas vezes, faz com que Júlia chegue atrasada na aula. O pai

não permite que ela vá para a aula em situações de muito tiroteio porque diz que com UPP6 e

bandidos juntos dentro da favela é mais perigoso que antes: “quando começa o tiroteio entre

eles não importa quem tá na frente”.

A partir dessa informação procuramos saber um pouco mais sobre os atrasos, pois

tivemos a confirmação de que Júlia se enquadrava na categoria de infrequência baixa, que é

6 Unidade de Polícia Pacificadora – implantada em algumas favelas do Rio de Janeiro com o intuito de pacificar o tráfico

de drogas e a violência.

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referente àqueles alunos que chegam atrasados frequentemente. Júlia diz não se atrasar tanto,

mas o pai a contradiz: “aaah ela se atrasa bastante sim, fica aí penteando o cabelo, passando

creme, ainda vai almoçar e às vezes sai na hora que tem que entrar na aula, e ainda pega o

trânsito aqui de dentro que é uma beleza”. Com relação à cobrança por parte da escola sobre

constantes atrasos, Júlia diz não haver nenhum tipo cobrança ou punição para quem chega no

2º tempo de aula, mesmo que isso ocorra diariamente.

Indo contra o discurso proferido pelo senso comum escolar, apesar de Júlia ser uma

aluna com muitas dificuldades de aprendizagem, durante a entrevista com seus pais

constatamos que ela está inserida em uma família estruturada e que se preocupa com a sua

escolarização. São pais presentes o tempo todo na vida de Júlia e ficou claro o bom

relacionamento entre eles e a filha durante o tempo em que estivemos presente em sua casa.

O pai de Júlia trabalha sai para trabalhar por volta das 16hs e retorna antes de 1h hora

da manhã. Ele trabalha como cozinheiro em um restaurante na Barra da Tijuca, situada na

Zona Oeste do Rio de Janeiro, tendo livre toda a manhã para ficar com a filha e diz que

aproveita algumas vezes para “passar a lição” com ela, ou pede para o filho de 19 anos fazer

isso pelo fato de entender mais as dificuldades da irmã. Júlia diz gostar da profissão do pai e

que às vezes é ele quem assume a cozinha de casa: “tem hora que o pai fala, hoje a cozinha é

minha”, e ela gosta. A mãe não trabalha fora, e diz que se dedica a cuidar dos afazeres do lar

e de Júlia, que é sua caçula.

Tanto a mãe quanto o pai não avançaram muito nos estudos, o pai estudou até a 4ª

série e a mãe até a 2ª Série, ambos no Ceará. O pai diz que não estudava porque não queria,

pois chegava apanhar para ir à escola e não ia, e a mãe diz que não participa tanto dos

assuntos escolares por não saber “assinar as coisas”, por isso agradecem a ajuda do irmão

mais velho de Júlia. A mãe diz: “Paulo é um menino muito bom, está no 9º ano, mas já quer

parar para trabalhar, tem que estudar e fazer faculdade.” O pai diz: “tem que, pelo menos,

terminar o ensino médio para depois trabalhar, mas ele quer logo trabalhar”.

Quanto ao acompanhamento da rotina escolar de Júlia, os pais dizem que todos da

família participam e que às vezes eles vão às reuniões de pais, mas outras vezes quem vai é a

irmã mais velha. O pai diz que se preocupa muito com a escolarização da filha e que a

incentiva a estudar, pelo menos, 20 minutos por dia, mas ultimamente ela tem tomado a

iniciativa sozinha

Pelo que pudemos captar, apesar de ninguém da família ter completado os estudos e

Júlia e seu irmão ainda estarem estudando, são todos bastante comprometidos com a

escolarização de Júlia, e pelo tempo que permanecemos em sua casa percebemos que há

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grande afinidade entre os pais e Júlia, eles demonstraram naturalmente ser uma família muito

unida e reservada, que tem pouco contato com os vizinhos, tem alguns mais próximos, porém,

não fazem nenhuma programação juntos.

A reflexão acerca tanto do material qualitativo aqui exposto, como do quantitativo

apresentado anteriormente, remete ao estudo realizado por Bernard Lahire, quando o autor

sustenta a argumentação com relação ao “fracasso” e “sucesso” escolar nos meios populares,

acreditando que a forma escolar define o padrão de relação que os alunos estabelecem com a

própria escola. (LAHIRE, 1997)

Lahire traça alguns perfis familiares a partir de 26 entrevistas realizadas com alunos e

suas famílias, além das notas etnográficas de tais entrevistas, assim como materiais recolhidos

no meio escolar: fichas de matrícula dos alunos, cadernos de avaliação, entrevistas com

alunos, professores e diretores. A respeito disso o autor trabalha com a ideia de configurações

familiares, buscando entender as diferenças entre os iguais, articulando as singularidades dos

alunos e o contexto no qual estão inseridos.

Além disso, o autor pontua que para obter uma melhor compreensão do comportamento

e do resultado escolar dos alunos é essencial que se reconstrua uma rede de relações

familiares com a escola, e ressalta como sendo uma das maiores causas do fracasso escolar a

falta de estímulos familiares com relação ao universo escolar, associando o fracasso escolar à

dissonância entre a as configurações familiares e a escola, culminando no fato de que os

alunos não podem compartilhar em casa os problemas que enfrentam na escola, que por sua

vez também é distante do universo do aluno que ocupa um lugar solitário, interiorizando por

meio dessa estrutura familiar e escolar que não estão atentos a determinados problemas, um

comportamento por vezes incompreensível.

Ao passo que o sucesso escolar é explicado por uma combinação de diversos fatores,

como por exemplo, a relevância que se dá à transmissão do capital cultural familiar, bem

como a disponibilidade da família em interagir com as crianças e se interessar por atividades

escolares, valorizando o conhecimento adquirido por seus filhos.

Podemos a partir das informações colhidas no campo supor que, pelo fato de Júlia ser

uma criança sem fortes vínculos de amizade, a não ser na escola e junto da família, que não

tem permissão para sair sozinha nem nos arredores de sua casa com as amigas da escola e está

sempre respondendo à cobrança dos estudos, seja por parte da escola ou por parte do pai e do

irmão mais velho, podemos refletir sobre o fato de que hábitos familiares fazem parte de

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fenômenos como o da infrequência escolar que, em conjunto aos fatores escolares e ao vazio

institucional, podem potencializar as trajetórias ditas vulneráveis7.

Do ponto de vista qualitativo, a seleção de uma única entrevista sobre a situação de

infrequência não autoriza grandes generalizações, e nem mesmo temos a pretensão de explicar

a realidade geral dos alunos da escola pesquisada por meio desta. No entanto, a trajetória de

Júlia abarca categorias importantes de nossa pesquisa que remetem a clássicos problemas

escolares, quais sejam, atrasos constantes que caracterizam uma infrequência baixa e

reprovação que caracteriza Júlia como sendo uma aluna em situação de atraso escolar.

Para compreender a forma com a qual professores da escola pesquisada lidam com o

problema da infrequência e os demais problemas que por ela são acarretados, pode ser útil

recuperar o estudo realizado por Harold Garfinkel, no qual a atenção está voltada para as

práticas reflexivas, utilizadas para reconhecer ou demonstrar adequação racional para os

resultados de determinadas pesquisas, de modo a usar as respostas como forma de

contraponto a um discurso racional preso ao senso comum, provocando a reflexão em torno

do objeto pesquisado (GARFINKEL; 1996).[6]

Essa seria segundo o autor, uma forma de “abordagem etnometodológica por

considerar que se trata de um caminho que viabiliza descobertas que vão além da concretude

visível e de fácil percepção. Ela possibilita uma compreensão tanto objetiva quanto subjetiva

da ação cotidiana”. (Idem; P. 4)

A esse respeito, procuramos direcionar para o nosso objeto de pesquisa um olhar que

reflete a abordagem etnometodológica, acreditando que por meio de entrevistas realizadas

com professores teríamos um entendimento de um lado objetivo e de outro subjetivo de suas

ações e percepções. O que nos possibilitaria, a partir da reflexividade, compreender o sentido

real de suas falas, muitas vezes encoberto por narrativas presas ao senso comum escolar.

Serão articuladas a partir de agora, entrevistas realizadas no primeiro semestre de

2015, com três professores da escola de Júlia, que ministram as disciplinas de Matemática,

Geografia e História, e que foram entrevistados separadamente. A entrevista foi pensada a

partir de percepções do campo, da realidade dessa aluna e de sua família e de sua relação com

a escola.

De modo a criar uma interlocução entre os fatos observados sobre a realidade de Júlia,

abordamos nas entrevistas com os professores pontos como o nível de contato que eles têm

7 A entrevista com Júlia e sua família foi realizada ao final do ano letivo de 2014, e no início de 2015 recebemos a

informação de que a aluna havia sido reprovada novamente no 6ºano e que seria transferida para outra escola pública da

Gávea, que por seu turno é a escola com o IDEB mais baixo do bairro. Júlia estaria sendo inserida em uma turma de Aceleração.

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com a realidade dos alunos dessa escola, se sabem o local de moradia dos alunos, ou se

tomam conhecimento de alguma atividade que o aluno faz fora da escola, e seus momentos de

lazer. Também foi perguntado se os professores sabem quem são os responsáveis pedagógicos

de seus alunos e qual o nível de participação deles em atividades escolares. Como os três

tinham sido professores da Júlia pedimos que eles falassem um pouco sobre como percebiam

a relação da aluna com os colegas, e com os professores, pontuando sua timidez, introversão e

dificuldade de tirar dúvidas com professores.

Para abordar o fenômeno da infrequência/abandono, indagamos aos professores a

respeito de quais motivos eles acreditam que influenciam um aluno a ser infrequente ou

chegar atrasado constantemente. Nesse momento foi útil a técnica proposta por Garfinkel

(1996), de aplicar a etnometodologia visando a reflexividade das respostas, usando como

contrarresposta as informações colhidas na entrevista com Júlia e sua família. Além disso,

buscamos saber como os professores lidam com alunos que se atrasam constantemente e com

os infrequentes, tanto daqueles que os entrevistados consideram como sendo de família

estruturada, quanto os de família na visão deles, desestruturada.

Como forma de trazer para a conversa outros pontos relevantes que o fenômeno da

infrequência engloba, pontuamos questões sobre a dificuldade dos alunos de uma maneira

geral com relação ao ensino-aprendizagem e à distorção idade-série, questionando se os

professores acreditam que tais fatores implicam em um maior número de faltas, atrasos ou até

mesmo reprovação. Sempre em vias de tentar compreender como os professores lidam com os

tipos de situação pontuados durante a entrevista e se têm alguma forma específica para tratar

determinados problemas, além de indagar qual a visão deles sobre como a escola lida com a

problemática que envolve infrequência, evasão e seus negativos encalços.

De maneira geral, o nível de contato que os professores entrevistados têm com a

realidade de seus alunos é apenas por meio daquilo que lhes é relatado em sala de aula, relatos

sobre a violência existente na Rocinha, reconhecida pelos entrevistados como lugar de

moradia da grande maioria dos alunos. Um dos professores disse que alguns relatos fazem-no

pensar e entender alguns problemas escolares, pois segundo ele, as situações retratadas se

refletem na situação emocional de determinados alunos. Além disso, uma professora pontua o

fato de se chocar com alguns relatos e diz: “para essas crianças faltam recursos e apoio,

estes alunos não têm o que deveriam ter desde pequenos, isso vai desde políticas públicas,

que são praticamente ridículas ou tem um viés eleitoreiro, até a própria sociedade e os pais

que não acreditam na educação”.

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Os três participantes da entrevista afirmaram ter uma boa relação com os responsáveis

pedagógicos de seus alunos, pelo fato de eles serem presentes nas reuniões de pais, mas há um

adendo sobre o fato de que os pais que, normalmente, vão às reuniões, são de alunos com bom

rendimento, pois, segundo eles, os pais de alunos que têm baixo rendimento os pais pouco

aparecem na escola. Uma das professoras chegou a afirmar que, “são poucos os pais que

sabem do que acontece na vida do aluno, chegam para a reunião e não sabem nem em que

ano o seu filho está, não estudam com a criança, e nós acabamos sendo mãe, psicóloga,

assistente social, além de professora”.

Nesse momento foi possível usar o exemplo de Júlia, que está inserida em uma família

que pode ser considerada estruturada e preocupada com a sua escolarização, e que mesmo não

sendo uma regra, suscita uma reflexão por parte dos entrevistados.

Como réplica todos os professores disseram não se lembrar dos pais de Júlia, nem de

sua irmã mais velha que, às vezes, participava das reuniões de pais, e que, na verdade, a

maioria dos pais só vai na escola quando é chamado para conversar sobre algum problema,

mesmo aqueles que vistos como sendo de uma família estruturada.

Na visão dos entrevistados a relação de Júlia com os colegas e com os professores da

escola era bastante restrita. Eles lembram da aluna andar somente com uma amiga de turma e

caso essa amiga faltasse ela até chegava a se aproximar de outras duas meninas, mas era

muito reservada e assim era com os professores. Conforme relatou uma professora: “O fato de

ela faltar e se atrasar sempre, acabava dificultando o vínculo com os colegas e professores.

Além disso, ela tinha muitas dificuldades e normalmente quando os alunos têm muita

dificuldade acabam de escondendo”.

Importa ressaltar um ponto sobre a invisibilidade dos alunos que surgiu durante uma

das entrevistas, na qual a professora disse nunca ter ouvido falar nada a respeito de Júlia,

nenhuma reclamação de comportamento, nem mesmo sobre seus atrasos, a única coisa

pontuada era o seu baixo rendimento. De acordo com essa professora:

“ (...) talvez uma menina como ela precisasse de uma atenção especial,

talvez se alguém chegasse e sinalizasse... olha você existe, eu te percebo... que

é a maneira do professor dizer que o aluno tem importância e é isso que fica

no emocional do aluno, talvez ela fosse mais participativa e teria um melhor

rendimento, mas eu não fiz isso e confesso que é difícil ter essa preocupação,

tem alunos que eu só percebo meses depois”.

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Em resposta à questão sobre quais os fatores influenciam os alunos a chegar atrasados

ou faltar aulas constantemente, houve unanimidade. Todos acreditam que os motivos estão

relacionados a problemas familiares, que vão desde conflitos em casa, que geram problemas

emocionais na criança, até pais pouco escolarizados que não se preocupam com a

escolarização do filho. Para tentar fazer com que os professores pensassem em outros fatores

que podem influenciar seus alunos nessa questão, reforçamos a ideia de que a Júlia tem uma

família estruturada, na qual pai, mãe e irmãos são preocupados com a escolarização da aluna,

e mesmo assim ela chegava no 2º tempo das aulas, implicando em diversas faltas por mês,

além de já ter sido reprovada.

Como réplica uma das professoras disse acreditar que o exemplo de Júlia serve para

elucidar o misto de realidades de uma criança que mora na Rocinha e está exposta a uma

violência diária, que afeta pode afetar o que os professores costumam chamar de lado

emocional, levando à desmotivação dos alunos de uma maneira geral. Outro professor

acredita que a escola tenha uma parcela de culpa nos atrasos constantes, pois a instituição

permite a entrada dos alunos até o 2º tempo de aula e os que chegam depois disso acabam

“matando aula” e que, no caso de Júlia, ele acredita que possa ser a má influência de alguma

amiga que esteja “desvirtuando-a”.

Uma das professoras reafirmou que a família é a grande culpada por atrasos e

infrequência dos alunos, pois ela acredita que:

“ (...) há uma mitificação dessa coisa da família chamada estruturada.

Há problemas de relacionamento entre os pais que refletem no

desenvolvimento escolar da criança, que acabam desmotivando a aluna.

Talvez a Júlia fosse uma menina depressiva, não sei se é o caso, porque muitas

vezes a criança não expõe seus problemas internos e os adultos acham que tá

tudo certo”.

Conforme relataram os entrevistados, eles lidam com alunos faltosos e que se atrasam

constantemente tentando sinalizar para os pais e para os próprios alunos. Um dos professores

disse não gostar de desistir de seus alunos, pois acha a relação professor-aluno muito

importante: “quando você conversa com o aluno no mano a mano ele é outro, diferente de

quando está com os amigos, alguns eu consigo recuperar através da conversa sobre a

importância do estudo como forma de sobrevivência em um país como o nosso, outros se

perdem”.

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Outra professora acredita que estes problemas estão relacionados ao fato de que

“alguns alunos sofrem de baixa autoestima e já tem registrado: “eu sou um fracasso, o

mundo me vê assim”, além de ter a questão de não gostar de estudar”. Em busca de tentar

compreender melhor essa fala a professora é provocada sobre o fato de alunos que são

faltosos e se atrasam, mas que são interessados mesmo não tendo um bom rendimento. E a

entrevistada diz acreditar que, nestes casos, “é basicamente uma sequência de fracassos

pessoais, a pessoa introjeta a ideia de que não é capaz de aprender e pronto. Tanto que em

dez anos de magistério público eu costumo dizer que emburreci, porque não sou desafiada e

muitas vezes tenho que baixar o nível do que vai ser ensinado”.

A respeito de como a escola lida com determinadas situações de atrasos e

infrequência, todos os entrevistados disseram que diretor e coordenadores pedem que os

professores sinalizem quais são os alunos nestas situações, a partir dessa sinalização a escola

telefona ou envia comunicados aos responsáveis pedagógicos. Se isso não ocorre

frequentemente, acaba se dando ao fim de cada bimestre.

Quando perguntados sobre o fato de a dificuldade com relação ao ensino-

aprendizagem e a distorção idade-série acarretarem um maior número de faltas ou

reprovações, todos os entrevistados disseram acreditar que são fatores que têm sim forte

influência, pois “são poucos os que estão em distorção idade-série que conseguem recuperar

e assim vão acumulando matéria, além de serem estigmatizados pelo fato de serem os

maiores da turma, mas que sabem menos que os menores”. Para tentar contornar esses

problemas os professores dizem não ter nenhuma forma específica, e que às vezes tentam dar

a devida atenção, mas pelo alto número de alunos em uma turma, um atendimento

diferenciado acaba não ocorrendo.

Uma das professoras lamenta: “eu efetivamente não chego no aluno, eles se perdem

na multidão, somos todos corresponsáveis pela perda de alunos problemáticos”.

Os professores acham importante a presença de estagiários na escola, pois assim

podem dar atenção a alunos com dificuldade de ensino-aprendizagem com mais calma. Além

disso, os entrevistados acreditam que, apesar de não ser a melhor das soluções, as turmas de

Acelera são uma solução momentânea para o problema da distorção idade-série.

Com base nas evidências empíricas encontradas por nossas pesquisas, podemos

concluir que o problema da infrequência esconde uma situação que não é apenas dever da

escola buscar uma solução, mas é também uma responsabilidade social. A partir desse

enfoque, podemos compreender que alunos infrequentes tendem a ser reprovados, e a partir

daí experimentarem trajetórias irregulares que podem gerar o abandono dos estudos, que por

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seu turno está quase sempre associado a situações de maior exposição a diferentes formas de

violência. Assim é que o problema da infrequência, que surge como um assunto escolar, acaba

se configurando como um importante problema sociológico, que no final das contas reflete

situações de vazio institucional que comprometem a garantia do direito da criança e do

adolescente à aprendizagem.

Buscou-se por meio deste trabalho identificar as lacunas existentes na relação entre as

instituições que são responsáveis por garantir o direito da criança e do adolescente, em

especial o direito à aprendizagem. Para tanto, articulamos o acúmulo de diferentes abordagens

empíricas que tiveram como locus privilegiado de pesquisa, o Conselho Tutelar e escolas

públicas localizadas no entorno da PUC-Rio. A pesquisa sobre infrequência e abandono de

estudos partiu de um quantitativo obtido em uma escola que atende basicamente adolescentes

moradores da Rocinha. Com base nesse levantamento, foram identificadas situações típicas

que permitiram a delimitação de um universo de estudantes que foram entrevistados junto a

suas famílias, tendo sido apresentada aqui uma dessas entrevistas.

Além disso, foram realizadas entrevistas qualitativas com professores de uma das

escolas pesquisadas em busca de criar uma interlocução entre os fatos observados sobre a

realidade de alunos infrequentes e abandonantes e a visão dos professores acerca desta

problemática que, na realidade, encobre diversos outros fatores que vistos de uma perspectiva

sociológica, são resultantes do processo de invisibilização do aluno de uma escola massificada

e que não encontra suporte no tripé institucional que temos estudado até agora.

O que podemos apreender das diversas pesquisas aqui articuladas em torno do direito

da criança e do adolescente, é que eles não são apenas alunos que têm tido violado o seu

direito à aprendizagem, são também aprendizes em processo de construção de conhecimento

e, antes de mais nada, são indivíduos, são sujeitos de direitos. Esse pensamento me permite à

remissão ao argumento de Alan Touraine, no qual o autor sustenta a ideia de que a educação

não deve ser meramente uma via de socialização, mas deve em primeiro lugar, ser a base para

uma formação que capacita o sujeito a “agir e pensar em nome de uma liberdade criadora

pessoal que não pode desenvolver-se sem contato direto com as construções intelectuais,

técnicas e morais do presente e do passado”. (TOURAINE; 2003, P.337)[7]

Nesse sentido, pode ser útil o diálogo com professores, provocando a sua reflexão

sobre determinados problemas que aparentam ser somente escolares, estimulando-os dessa

maneira, a não permanecerem apenas no domínio das suas disciplinas quando seus alunos são

o “outro” que faz parte de uma realidade desconhecida. Há, por isso, que se valorizar a

importância da qualidade das relações professor-aluno para que o processo de ensino-

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aprendizagem se realize com sucesso; a melhora na relação não acontece quando se diminui o

nível do conhecimento que deve ser transmitido, e sim quando são lançados novos desafios de

modo a vencer as problemáticas em torno, por exemplo, de trajetórias escolares vulneráveis.

De modo que todas as fragilidades embutidas na rede de instituições que deveriam

garantir o direito de crianças e adolescentes, mesmo com os progressos da legislação

brasileira e das políticas públicas que têm sido implementadas, caracterizam a falta de apoio a

uma parcela da sociedade que, em geral, é pobre, negra e na maioria das vezes moradora de

favela, como vimos em nossas pesquisas, e que é contemplada de forma marginal por uma

rede de proteção que, por sua fragilidade institucional, não dá conta de cumprir o seu dever

que é o de garantir os direitos de crianças e adolescentes. Através de distâncias existentes

entre estas redes de proteção se perdem a criança/adolescente e os alunos que são

invisibilizados em meio a um acúmulo de acontecimentos que não articulam suas

singularidades e o contexto no qual estão inseridos.

Importa lembrar que a luta pela redemocratização do Brasil está intrinsecamente ligada

à busca pelos direitos integrais de crianças e adolescentes como sujeitos em formação. O

Estatuto da Criança e o Adolescente (ECA) é um marco na legislação mundial e serve de

exemplo para legislações do mundo todo. Através do ECA é possível não só responsabilizar,

mas também proteger todas as crianças e adolescentes do nosso país, principalmente os mais

vulneráveis que têm sido, recentemente, responsabilizados por parte da sociedade brasileira

como os grandes causadores da violência no país.

Mesmo que este trabalho não tenho seu foco exclusivamente voltado para a questão da

violência urbana sofrida por crianças e adolescentes na cidade do Rio de Janeiro, é preciso

estar em alerta para determinados acontecimentos, já que estamos situados no bairro da

Gávea, onde tem sido palco de diversos acontecimentos que denunciam a segregação urbana

sofrida em geral, por crianças negras e de classes populares, que se torna ainda mais grave

quando estas crianças estão vestidas com o uniforme da rede pública de ensino.

Em síntese, os protagonistas de minha monografia sofrem uma invisibilidade

acometida por diversos fatores históricos, sociais, econômicos, culturais e estéticos, que

mesmo com a criação de práticas assistenciais voltadas para as camadas mais pobres da

população, crianças acabam sendo desqualificadas, pois o benefício está sempre

acompanhado da perda de outros direitos de cidadania como vimos ao longo deste trabalho;

crianças que sofrem estigmas desde muito cedo por conta de sua condição de vida material,

tendo como seus responsáveis pessoas que na visão de parte da sociedade, não são capazes de

garantir um padrão de dignidade, sendo julgadas e não reconhecidas como sujeitos de direitos.

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Referências

1 - BURGOS, Marcelo Baumann (coord.) – A Escola e o Mundo do Aluno. Rio de Janeiro,

editora Garamond, 2014

2 - HABERMAS, Jürgen – Direito e democracia: entre faticidade e validade. Editora Tempo

Brasileiro, 1997.

3 - BERGER. Peter; LUCKMANN, Thomas - A Construção Social da Realidade, Editora

VOZES, 2006.

4 - DEWEY, John –Em busca do público, In: PDF – La opinión pública y sus problemas

Ediciones Morata, S. L. 1927.

5 - LAHIRE, Bernard – Sucesso Escolar nos Meios Populares, As Razões do Improvável. São

Paulo, editora Ática, 1997.

6 - GARFILKEL, Harold - O que é etnometodologia? In: PDF Cambridge: Polity Press, 1996.

7 - TOURAINE, Alain – Poderemos Viver Juntos? Iguais e Diferentes. Editora Vozes,

Petrópolis 2003.