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ISSN: 1984-8781 - Anais XVIII ENANPUR 2019. Código verificador: aOIVpLc420L9 verificar autenticidade em: http://anpur.org.br/xviiienanpur/anais O direito à cidade e a moradia adequada:Entre a lei e a realidade. Autores: Ana Maria Filgueira Ramalho - Faculdade Damas da Instrução Cristã - [email protected] Resumo: Este artigo discute a relação entre a urbanização e a pobreza, cujos resultados impactam no direito à cidade e à moradia adequada. Apesar de avanços legais e institucionais, no Brasil os conflitos fundiários urbanos se ampliam, resultando em ações de despejos forçados que se tornam mais frequentes à medida que, a dinâmica imobiliária se acirra. Neste contexto, observam-se grandes contradições entre as declarações e leis e as realizações, as quais impõem territórios marcados pela desigualdade social e com grandes tensões: marca das cidades brasileiras. Neste artigo se faz uma discussão teórica acerca do direito à cidade e à moradia, e uma síntese do marco regulatório brasileiro quanto à política urbana, mostrando aspectos legais para a efetivação do direito à cidade. Por fim, apresenta situações de conflitos fundiários urbanos, utilizando como objeto empírico o Grande Recife, o qual permite concluir que, ainda existem obstáculos a ser enfrentados para que a lei torne-se uma realidade.

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O direito à cidade e a moradia adequada:Entre a lei e a realidade.

Autores:Ana Maria Filgueira Ramalho - Faculdade Damas da Instrução Cristã - [email protected]

Resumo:

Este artigo discute a relação entre a urbanização e a pobreza, cujos resultados impactam no direito àcidade e à moradia adequada. Apesar de avanços legais e institucionais, no Brasil os conflitosfundiários urbanos se ampliam, resultando em ações de despejos forçados que se tornam maisfrequentes à medida que, a dinâmica imobiliária se acirra. Neste contexto, observam-se grandescontradições entre as declarações e leis e as realizações, as quais impõem territórios marcados peladesigualdade social e com grandes tensões: marca das cidades brasileiras. Neste artigo se faz umadiscussão teórica acerca do direito à cidade e à moradia, e uma síntese do marco regulatóriobrasileiro quanto à política urbana, mostrando aspectos legais para a efetivação do direito à cidade.Por fim, apresenta situações de conflitos fundiários urbanos, utilizando como objeto empírico oGrande Recife, o qual permite concluir que, ainda existem obstáculos a ser enfrentados para que a leitorne-se uma realidade.

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O DIREITO À CIDADE E À MORADIA ADEQUADA:

ENTRE A LEI E A REALIDADE

INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objetivo discutir a relação do processo de urbanização e a pobreza, cujos resultados impactam no direito à cidade e à moradia adequada. Apesar de grandes avanços legais e institucionais, no Brasil conflitos fundiários urbanos se ampliam, os quais resultam em ações de despejos forçados que se tornam mais frequentes à medida que, a dinâmica imobiliária se acirra. Dentro desse contexto, observam-se grandes contradições entre as declarações e leis e as realizações, as quais impõem territórios marcados pela desigualdade social e com grandes tensões: marca das cidades brasileiras. As evidências discutidas neste artigo se basearam inicialmente na discussão teórica sobre o processo de urbanização mundial, que tem levado a reprodução da pobreza e a disputa pelo território, nos quais a população urbana pobre não tem cidades. Ou seja, existe a dificuldade de acesso a uma moradia digna, com infraestrutura, serviços e equipamentos públicos necessários para se viver no espaço urbano, o que vem a ser designado por direito à cidade ou direito à moradia adequada, um dos direitos fundamentais, incorporados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Entre vários requisitos para garantir a moradia adequada, destaca-se a segurança da posse, e a prevenção contra os despejos forçados e outras formas de ameaças, que se constituem como uma grave violação aos direitos humanos. Posteriormente, discutem-se os entraves que levaram a urbanização brasileira já nascer segregadora. E, em seguida, é mostrado que, mesmo de forma tardia, ao longo de décadas, vários instrumentos jurídico-urbanísticos foram incorporados à legislação brasileira com o intuito de corrigir as distorções urbanas. Por fim, são apresentadas situações de conflitos fundiários urbanos, tendo como objeto empírico a Região Metropolitana do Recife, a qual, a partir deles, permite concluir que, ainda existem obstáculos a ser enfrentados para que a lei torne-se uma realidade.

URBANIZAÇÃO E POBREZA

“Às oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludos, almofadas de cetim. E quando estou na favela

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tenho a impressão que sou objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”. (JESUS, Maria Carolina de, 2017, p.37).

A relação dicotômica - cidade e favela - relatada pela moradora da Favela do

Canindé/São Paulo, Maria Carolina de Jesus, no seu diário, retratando a pobreza urbana na década de 1950, transcende o século XX, transcende territórios.

O crescimento da urbanização mundial, acelerado, irreversível, desigual é um desafio para o século XXI. De acordo com o relatório da Organização das Nações Unidas/ONU, de 2017, aponta que 54% da população mundial vivem em áreas urbanas, e estima-se o aumento para 66% até em 2050. As cidades enfrentam desafios demográficos, ambientais, econômicos, sociais e espaciais sem precedentes. Quase 90% desse crescimento ocorrerá na África e Ásia, além de ser intenso também na América Latina e Caribe. As consequências dessa rápida urbanização serão dramáticas. Em muitos lugares ao redor do mundo, os efeitos já podem ser sentidos, como: falta de habitação adequada, crescimento de favelas, infraestruturas inadequadas, aumento da pobreza e do desemprego, segurança e problemas de criminalidade, poluição e questões de saúde, entre outros problemas, como aponta o relatório, o qual chama a atenção para os efeitos da urbanização mundial.

De acordo com Davis (2006) as cidades que explodem demograficamente no mundo em desenvolvimento estabelecem novos e extraordinários formatos, como: as megacidades, as regiões metropolitanas, as megalópoles. Também transformam paisagens, diminuem as fronteiras entre o rural e o urbano, entre outros fenômenos. “Entretanto, o preço dessa nova ordem urbana será a desigualdade cada vez maior, tanto dentro de cidades de diferentes tamanhos e especializações econômicas, quanto entre elas” (p.18). E acrescenta Davis (2006), que o fenômeno da “superurbanização” é impulsionado pela reprodução da pobreza, não pela oferta de empregos. Esse é apenas um dos efeitos inesperados que a ordem mundial neoliberal vem direcionando o futuro. Como resultado, o crescimento urbano rápido no contexto do ajuste estrutural e da redução do Estado foi à receita inevitável da produção em massa de favelas. É dentro desse contexto que o autor afirma:

“Assim, as cidades do futuro, em vez de feita de vidro e aço, como fora previsto por gerações anteriores de urbanistas, serão construídas em grande parte de tijolo aparente, palha, plástico reciclado, blocos de cimento e restos de madeira. Em vez das cidades de luz arronjando-se aos céus, boa parte do mundo do século XXI instala-se na miséria, cercada de poluição, excrementos e deterioração”. (DAVIS, 2006, p. 28 e 29).

Davis (2006) quer mostrar que o fenômeno urbano tem proporcionado a disputa de parcela significativa de cidadãos pelo território, já que são atraídos pelo fenômeno urbano, mas que lhes faltam cidade. Ou seja, a dificuldade de acesso a uma moradia digna, com infraestrutura, serviços públicos básicos, equipamentos públicos entre outros elementos necessários para se viver no espaço urbano, o que vem a ser designado por direito à cidade.

Esse termo, direito à cidade, foi pioneiramente criado por Henri Lefebvre, em 1967, ao contestar a produção da cidade por técnicos e administradores e defende que a sua realização só pode acontecer quando, confrontando a lógica de dominação, prevalece à apropriação do espaço pelos cidadãos, satisfazendo as necessidades da coletividade. Apropriação não tem a ver com propriedade, mas com o uso, e precisa acontecer coletivamente como condição de possibilidade à apropriação individual. Em vez da ciência e

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da técnica, Lefebvre propõe, como protagonista do processo de transformação do espaço urbano a classe trabalhadora, que deve ser agente dessa luta. Para Lefebvre, o direito à cidade é de todos os seus habitantes, independentemente de seu reconhecimento legal como cidadãos. O direito à cidade se afirma como um apelo, como uma exigência e só pode ser formulado como um direito à vida urbana, conquanto o urbano é o lugar do encontro, da prioridade do valor de uso, em detrimento do valor de troca. Que a realidade urbana esteja destinada aos usuários e não aos especuladores, aos promotores capitalistas, aos planos dos técnicos. Ao contrário, se a classe trabalhadora se cala, se não age, a segregação continuará. “O direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade” (p. 135).

Para Harvey (2014), a ideia do direito à cidade passou por certo ressurgimento na última década e que não é para o legado intelectual de Lefebvre que se deve ater, apesar da sua importância. Mas, para o que vem acontecendo nas ruas, especificamente, entre os movimentos sociais urbanos. O pensamento de Harvey se baseia na ideia de que o direito à cidade, não pode surgir da esfera intelectual e sim “das ruas, dos bairros, como um grito de socorro e amparo de pessoas oprimidas em tempo de desespero” (p.15). Além do mais, o direito à cidade é um significante vazio, que depende de quem vai dar ou conferir significado. Pois, as entidades financeiras e os empreiteiros podem reivindicá-los, bem como, os sem tetos e os imigrantes ilegais, também. E, explica utilizando a expressão de Marx, que diz: “entre direitos iguais, o que decide é a força”. Sendo assim, a própria definição de direito é objeto de uma luta, e essa luta dever ser concomitante com a luta por materializá-lo.

Ainda de acordo com Harvey, o direito à cidade é mais do que o direito de acesso aos recursos que a cidade incorpora. É um direito de mudar e reinventar a cidade com os mais profundos desejos, prioritariamente no âmbito coletivo, uma vez que, reinventar a cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo sobre o processo de urbanização e a liberdade de fazer e refazer as nossas cidades é um dos direitos humanos mais preciosos, ainda que um dos mais menosprezados. O referido autor, ainda diz que, reivindicar o direito à cidade é reivindicar algum tipo de poder configurador sobre o processo de urbanização. E existe uma ligação intima entre o desenvolvimento do capitalismo e a urbanização. Pois, o capitalismo fundamenta-se na eterna busca pela mais-valia e com isso tem de produzir o excedente da produção. O que significa que o capitalismo está eternamente produzindo os excedentes de produção exigidos pela urbanização. E, a qualidade de vida urbana torna-se uma mercadoria para quem tem dinheiro, cujas consequências ocorrem através de uma crescente polarização na distribuição de riquezas e poder que estão indelevelmente inscritas nas formas espaciais de nossas cidades, que cada vez mais, se tornam cidades divididas e fragmentadas.

A absorção do excedente ocorre através da transformação urbana, que, de forma mais sombria tem implicado em grande recorrência de reestruturação urbana por meio de uma “destruição criativa”, segundo Harvey (2014). E isso sempre tem uma dimensão de classes, pois de uma forma geral são sempre os pobres, os desprivilegiados, imigrantes marginalizados e os trabalhadores desempregados os que mais são atingidos com esse processo, o qual a violência é necessária para construir o novo mundo urbano sobre os escombros do antigo. E a nova produção capitalista não erradica os problemas vividos pelas

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classes mais necessitadas, simplesmente as transfere para outros lugares. Ou seja: “O problema da moradia a preços acessíveis, assim como o da pobreza e acessibilidade, realmente foi mandado para longe”. (HARVEY, 2014, p. 57).

Na perspectiva de Harvey, o direito à cidade se concretiza quando houver um maior controle democrático sobre a utilização dos excedentes da urbanização, já que o direito à cidade como hoje existe está concentrado nas mãos de uma elite política e econômica com condições de moldar a cidade de acordo com as suas necessidades e desejos particulares. O que poderá mudar essa situação é que ocorra um movimento coerente de oposição a tudo isso, através da ampliação dos movimentos sociais urbanos que, já existem, e que precisam se concentrar no objetivo único de adquirir maior controle sobre os usos do excedente.

Consonante com a problemática da pobreza urbana e da necessidade da luta contínua pelo direito à cidade para todos, que um conjunto de movimentos sociais organizados, composto por movimentos populares, organizações não governamentais, associações de profissionais, redes nacionais e internacionais da sociedade civil, comprometidos com as lutas sociais por cidades mais justas e democráticas, construíram a partir do I Fórum Social Mundial na cidade de Porto Alegre/Brasil, no ano de 2001, a Carta Mundial do Direito à Cidade, a qual define o Direito à Cidade da seguinte forma:

“O Direito à Cidade é definido como o usufruto eqüitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia e justiça social; é um direito que confere legitimidade à ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito a um padrão de vida adequado. O Direito à Cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente e inclui os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais Inclui também o direito a liberdade de reunião e organização, o respeito às minorias e à pluralidade ética, racial, sexual e cultural; o respeito aos imigrantes e a garantia da preservação e herança histórica e cultural”. (Art.2º, Carta Mundial do Direito à Cidade, 2001).

Na carta, também são definidos um conjunto de direitos que perfazem e estão contidos no direito à cidade, como: o direito a participação política, a função social da cidade e da propriedade, a informação pública, a água e demais serviços públicos, ao transporte e mobilidade urbana, entre outros, que aguardam o reconhecimento dos governos nacionais e internacionais no sentido de reconhecê-los.

De acordo com Fernandes e Alfonsin (2014), a concepção do direito à cidade, no âmbito do Direito Internacional está necessariamente associada ao direito à moradia, o qual foi reconhecido como um direito humano fundamental na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que propiciou outros desdobramentos na ordem jurídica internacional quanto à promoção e efetivação desse direito, obtendo um alargamento conceitual, sendo considerado mais que uma reivindicação por um lugar para habitar, um abrigo, ampliando-se para o direito humano à moradia adequada.

No Comentário Geral/CG de nº 4, do Comité dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais/DESC, das Organizações das Nações Unidas, esclarece o alcance do direito à moradia adequada:

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“O direito à moradia adequada não deve ser interpretado de forma restrita ou de forma restritiva para equipará-la a um mero teto oferecido como abrigo ou mercadoria. Ao contrário, a norma deve ser interpretada como o direito de viver em algum lugar de segurança, paz e dignidade”. (Comentário Geral de Nº4).

Dessa forma, enfatiza-se que a moradia é integralmente ligada a outros direitos e

princípios fundamentais, e que a efetivação da dignidade da pessoa humana relaciona-se com a tutela adequada da habitação, no sentido de assegurá-lo a todas as pessoas, independentemente de renda e condição ou acesso a recursos econômicos (OSÓRIO, 2014).

O CG de nº 4 identificou um conjunto de liberdades inerentes ao direito à moradia, como: a liberdade de expressão, de associação, de escolher a própria residência, de participar de tomada de decisões públicas. Definiu também as garantias constitutivas de uma moradia adequada, apesar de destacar que a noção de adequação possa ser diferente de cada país e seja determinada por fatores sociais, econômicos, culturais, climáticos, etc., os quais se destacam:

“Segurança da posse: a moradia não é adequada se os seus ocupantes não têm um grau de segurança de posse que garanta a proteção legal contra despejos forçados, perseguição e outras ameaças;

Disponibilidade de serviços, materiais, instalações e infraestrutura: a moradia não é adequada, se os seus ocupantes não têm água potável, saneamento básico, energia para cozinhar, aquecimento, iluminação, armazenamento de alimentos ou coleta de lixo;

Economicidade: a moradia não é adequada, se o seu custo ameaça ou compromete o exercício de outros direitos humanos dos ocupantes;

Habitabilidade: a moradia não é adequada se não garantir a segurança física e estrutural proporcionando um espaço adequado, bem como proteção contra o frio, umidade, calor, chuva, vento, outras ameaças à saúde;

Acessibilidade: a moradia não é adequada se as necessidades específicas dos grupos desfavorecidos e marginalizados não são levados em conta;

Localização: a moradia não é adequada se for isolada de oportunidades de emprego, serviços de saúde, escolas, creches e outras instalações sociais ou, se localizados em áreas poluídas ou perigosas;

Adequação cultural: a moradia não é adequada se não respeitar e levar em conta a expressão da identidade cultural”.(UNITED NATIONS, 1991).

Para o ex-relator especial da ONU - Milllon Khotari – esses seriam alguns dos elementos que formam a base de uma metodologia que pode ser aplicada para avaliar a efetivação e violação ao direito humano à moradia adequada. É possível também uma realização progressiva, reconhecendo que nem sempre o direito à moradia adequada será alcançado em curto espaço de tempo. Mesmo que se tenha limitação de recursos, caberá aos estados pensarem em estratégias, instituições e programas para o cumprimento de tais obrigações, e que devem ser definidas como um “núcleo mínimo”, o qual os estados devem

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realizar de forma imediata. E, como um dos direitos fundamentais inerentes ao direito à moradia é o direito de participação na elaboração nas estratégias, a participação deve ser considerada parte do núcleo mínimo do direito à moradia, de cumprimento imediato pelo estado. Além de que, o direito à moradia compreende dois conjuntos de necessidades: os requerimentos mínimos para o individuo ou família sobreviverem, e as necessidades não materiais relevantes para uma vida digna, como proteção e segurança, senso de pertencimento a uma família, comunidade ou nação, liberdade que permita o pleno desenvolvimento do individuo. Outra obrigação imediata é o dever de garantir que o direito seja exercido sem discriminação, o que implica estender as disposições existentes para os grupos excluídos e de medidas destinadas a conferir segurança jurídica da posse como um dos principais elementos do direito à moradia, com a participação dos que não a possuem ou estão na iminência de perdê-la (OSÓRIO, 2014).

Com base nos aspectos da segurança jurídica é que foi também incluída como direito à moradia adequada, a proteção quanto às remoções forçadas, definida pela ONU como: “a remoção permanente ou temporária contra a vontade dos indivíduos, famílias e/ou comunidades das casas e/ou terras que ocupam sem a provisão e o acesso às formas adequadas de proteção jurídica ou outra”. As remoções ou despejos forçados ocorrem por variados motivos, como para dar lugar a novos projetos de reestruturação urbana, conforme já denunciado por Harvey, que vão desde projetos de desenvolvimento urbano e de infraestrutura, como projetos para receber eventos internacionais, como: Copa do Mundo de Futebol, Olimpíadas e Exposições Mundiais; aumento dos investimentos turísticos, além de disputas pela propriedade da terra, que causam graves conflitos fundiários e até em violência, aumento do valor de locação, especulação imobiliária, entre outros.

De acordo com a ONU, em sua essência os despejos forçados congregam algumas características em comum: prevalecem nos países ou cidades com as piores condições de moradia; afetam desproporcionalmente os pobres, idosos, mulheres e crianças; na maioria das vezes ocorrem de forma violenta e resultam em violações de direitos humanos; e os despejados geralmente ficam mais pobres após a expulsão (OSÓRIO, 2014).

Em função da recorrência de despejos o Comitê DESC também aprovou o Comentário Geral de nº 7 sobre despejos forçados, o qual classificou como uma grave violação aos direitos humanos. E, ampliou a proteção aos moradores contra esses despejos, detalhando as obrigações dos governos, proprietários, e instituições em relação à prevenção dos despejos forçados. Os estados devem adotar medidas legislativas contra os despejos, criando um sistema de proteção eficaz e de mecanismos efetivos de mediação e solução de conflitos, judiciais e ou administrativos, além de garantirem a máxima segurança de posse aos ocupantes de moradias e terras, regulando as circunstâncias em que o despejo possa ser efetivado. Os despejos forçados podem em algumas circunstâncias e condições específicas, ser considerados justificáveis. Mas, só poderá ser considerado “legal” ser for realizado de maneira permitida por uma legislação compatível com o Pacto Internacional de Direitos Humanos (OSÓRIO, 2014).

De acordo com Muller (2014, p. 169), é preciso perguntar: Porque, apesar de toda essa construção jurídica do direito internacional, intensificam-se as práticas de despejos pelo mundo? Porque os despejados, travestidos do nome de remoção, são utilizados como medida legítima de política urbana em diversas cidades do mundo? Porque nenhum país do mundo adotou medidas efetivas para evitarem os despejos, mediante processos concretos de mediação de conflitos fundiários? Para esse conjunto de perguntas, o próprio Muller,

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responde que o reconhecimento dos direitos humanos estão em parte no caráter abstrato e transcendente da Declaração de 1948, o quais considera simplesmente processos normativos e institucionais. Verifica-se uma grande quantidade de direitos reconhecidos sem que se tornem efetivos na realidade de vida das pessoas.

Para Cortina (2017) existe um abismo entre as declarações, como a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, e as realizações. Em todas essas declarações tem como objetivo erradicar a fome, acabar com a pobreza extrema, a desigualdade, e construir democracias inclusivas, que forma parte da moral pensada, escrita e declarada. No nível das declarações afirma-se que um outro mundo é possível. Porém é necessário averiguar porque as realizações se encontram anos luz das declarações. Para a autora, esse abismo existe porque há uma rejeição aos pobres e desamparados.

A rejeição ou aversão aos pobres foi denominada por Cortina (2017) por aparofobia. A autora justifica a necessidade de criação desse vocábulo específico ao perceber que existe uma rejeição a vários indivíduos e grupo sociais, como: refugiados políticos, imigrantes, ciganos, sem tetos, entre outros. Mas, a rejeição pela qual passam esses grupos não é devida a raça, nem a etnia, nem por serem estrangeiros. O problema é porque são pobres. Para Cortina, quem os despreza assume uma atitude de superioridade em relação ao outro, considerando que a sua raça, etnia, é superior e, portanto, o desprezo está legitimado. Um dos grupos mais vulneráveis são as pessoas sem teto, que sofrem crimes de ódio, que vão desde agressões verbais a agressões físicas. A aparofobia é um atentado diário, quase invisível, contra a dignidade humana.

Situações de desrespeito social, como as que passam a população pobre, são também perceptíveis sintomas de invisibilidade, na medida em que os sujeitos são submetidos a situações de subordinação que os anulam e não os fazem ser notados enquanto cidadãos. E a invisibilidade, por qual passa os pobres urbanos, nesse caso parece um paradoxo. Pois ela se materializa e se instala no território. E, sendo assim, não são invisíveis no sentido stricto sensu, pois é visível fisicamente, mas sim, invisibilizados socialmente.

De acordo com Costa (2004), a invisibilidade social é um conceito aplicado a seres socialmente invisíveis, seja pela indiferença ou pelo preconceito. E uma das principais causas da invisibilidade é a questão econômica. O preconceito que gera invisibilidade se estende a tudo o que está fora dos padrões de vida das classes hierarquicamente superiores. Como consequências, a invisibilidade social provoca sentimentos de desprezo e humilhação em indivíduos que com ela convivem e, consequentemente, a mobilização de grupos de resistências para que se tornem visíveis diante da sociedade.

Para Cortina (2014), para combater a aporofobia e toda forma de desigualdade e invisibilidade é necessária educação, num sentindo amplo, para toda a sociedade e a construção de instituições econômicas, políticas e socias capazes de fomentar o respeito e a dignidade de todos. Porém, é fundamental acrescentar a esse ideário, o pensamento de Harvey (2014), ao afirmar que, tal construção, só ocorre com processos de resistências e de lutas, através dos movimentos sociais.

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O MARCO REGULATÓRIO DA POLÍTICA URBANA NO BRASIL

A dificuldade de acesso à cidade e à moradia adequada no Brasil, bem como situações de violação, tem origem no processo histórico de distribuição de terras, trazido de Portugal, através da lei das sesmarias. O modelo da lei de sesmarias aplicado no Brasil, diferente do modelo português, significava uma concessão de domínio condicionada ao uso produtivo da terra e sua efetiva ocupação. Mas também, as glebas - grandes porções de terras - eram concedidas pelos representantes do rei, conferindo status e prestígio social aos seus proprietários, atendendo aos interesses do monarca. Em 1822, com a independência do Brasil, esse modelo se encerra e inicia-se um processo de posse de terras. Mas, parte das terras brasileiras já se constituiam em grandes latifúndios, ou seja, concentração de várias propriedades nas mãos de poucas famílias.

Em 1850 é promulgada uma lei que ficou denominada de Lei de Terras, a qual trouxe profundas transformações para o regime de terras brasileiro. Com a Lei de Terras, a única forma de se adquirir a terra só ocorreria através da compra, a qual adquiriu status de mercadoria. A adoção dessa medida esteve relacionada à pressão internacional que o Brasil passava para pôr fim a escravidão, pois, os escravos além de serem ultizados para a exploração agrícola do extenso território brasileiro, eram considerados mercadorias, já que eram comercializados. Sendo assim, houve uma inversão programada. Como se sabia que a escravidão iria acabar, a terra passaria a ter valor comercial. Conforme afirma Rolnik (1999): “A terra no Brasil é livre quando o trabalho é escravo; no momento em que se implanta o trabalho livre, ela passa a ser cativa”. Ou seja, a mercantilização do escravo foi substituida pela mercatilização da terra.

O modelo de distribuição de terras brasileiro implicou sérios problemas no processo de urbanização que se iniciou nas primeiras décadas do século XX, haja vista que, os escravos libertos, como os demais trabalhadores pobres que não puderam adquirir terras por meio da compra, só lhes restaram à ocupação espontânea, precária e improvisada como alternativa habitacional naquelas áreas de menor valor especulativo. Parte da sociedade urbana brasileira foi excluida do acesso ao solo urbano formal – através da compra - e constituiu-se assim, um modelo de cidades segregadas socialmente, espacialmente e legalmente, caracterizadas em grandes números por favelas e outras alternativas habitacionais improvisadas.

Contraditoriamente também, ao longo de décadas, políticas urbanas, especificamente, as de habitação de interesse social, nunca foram devidamente priorizadas a fim de solucionar, ou pelo menos, minimizar essa problemática histórica. Ao mesmo tempo em que, a população urbana brasileira atingiu números expressivos em poucas décadas, o que rapidamente formou cidades populosas e fragmentadas socialmente. Só na década de 80, do século XX, é que surgem as primeiras iniciativas de âmbito legal e institucional bem sucedidas, com o intuito de promover cidades mais justas socialmente e espacialmente. O Movimento Nacional pela Reforma Urbana, movimento social constituído por representações de vários setores da sociedade civil organizada, pela luta ao direito à cidade, conseguiu incluir dois artigos na Constituição Brasileira de 1988, que tratam da política urbana, bem como, regulam o direito à propriedade, urbana ou rural, condicionando-a a uma função social. No caso da propriedade urbana, o artigo estabelece

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formas de punição para o imóvel que não cumprir uma função social. Imóveis que se mantenham ociosos ou subutilizados estão sujeitos a três tipos de penalidades, que são progressivas: em um primeiro momento a obrigatoriedade do parcelamento do solo ou edificação compulsória, depois o pagamento de imposto territorial e predial progressivo ao longo do tempo, e se com as duas primeiras penalidades ainda não for dado um destino adequado ao imóvel, o mesmo poderá sofrer uma desapropriação, com pagamento através de títulos da dívida pública, o qual só receberá a indenização em 10 anos. A Constituição também trouxe a obrigatoriedade de municípios com mais de 20 mil habitantes elaborarem Planos Diretores. Outra inovação trazida pela Constituição de 1988 é a figura da usucapião especial urbana, que tem como objetivo promover a regularização fundiária para imóveis privados em áreas urbanas, de até 250m², ocupados por um período de 5 anos sem oposição, para uso habitacional. Com esse dispositivo legal se buscou reconhecer as ocupações espontâneas, regularizando-as, e priorizando o direito de uso em detrimento do direito de propriedade. Posterirormente, a habitação foi incorporada como um direito social na Constituição de 1988, através da promulgação da Emenda Constitucional de Nº 26, de 2000, a qual assume a conotação de que são necessários requisitos que atendam a qualidade e a vida cidadã, no seu sentido mais amplo. No ano de 2001, outro marco legal fundamental para a promoção da reforma urbana foi criado - a Lei Federal de Nº 10.257, conhecida como Estatuto da Cidade - e a Medida Provisória N° 2.220/01, nas quais se consolidam vários outros instrumentos jurídico-urbanísticos na promoção de uma política urbana a partir das seguintes dimensões: aplicação do princípio da função social da cidade e da propriedade urbana, regulamentação e criação de novos instrumentos urbanísticos para a construção de uma cidade mais inclusiva, mecanismos para uma gestão democrática, com instrumentos capazes de participação social nas políticas urbanas, como o orçamento participativo, referendo populares, audiências públicas, entre outros, além de confirmar os instrumentos para a regularização fundiária de assentamentos precários. Do ponto de vista legal, foram construídos os princípios do direito à cidade e da moradia adequada. É possível afirmar que o marco regulatório brasileiro incorporou vários avanços e experiências inovadoras para solucionar a problemática urbana no Brasil. Parafraseando Maricato (2011, p. 44) “não é por falta de leis e de planos que as cidades brasileiras estão como estão”. Apesar desse conjunto de regulações, a pobreza urbana é recorrente e ainda crescente nas cidades brasileiras. Ainda pior, as cidades ainda vivenciam disputas pela posse da terra, que vão resultar em diversos tipos de conflitos fundiários urbanos e despejos forçados.

CONFLITOS FUNDIÁRIOS URBANOS

“O Brasil parece caminhar a passos largos na construção de um marco jurídico que promova o direito à moradia, com a criação de instrumentos que garantam a função social da propriedade. No entanto, caminha a passos muito lentos na tentativa de colocar em seu ordenamento jurídico disposições que previnam os despejos e garanta o direito à moradia, a partir da ótica da função social da propriedade” (MULLER, 2009, p. 25).

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Os conflitos fundiários, sejam urbanos ou rurais, ainda fazem parte da realidade brasileira. Nas áreas rurais os conflitos envolvem grandes latifundiários, donos do agronegócio com os Movimentos dos Trabalhadores Sem Terra/MTST, com grupos indígenas e quilombolas que ainda aguardam a homologação de suas terras. No caso dos conflitos fundiários urbanos, os quais são abordados nesse artigo, os agentes e os interesses são outros, como movimentos sociais urbanos, ocupantes ou posseiros, proprietários de terra urbana, detentores do capital imobiliário e agentes do estado. De acordo com a Resolução Nº 87/2009 do Conselho das Cidades, entende-se por conflitos fundiários urbanos:

“Disputa pela posse ou propriedade de imóvel urbano, bem como impacto de empreendimentos públicos e privados, envolvendo famílias de baixa renda ou grupos sociais vulneráveis que necessitem ou demandem a proteção do Estado na garantia do direito humano à moradia e à cidade”. (CIDADES, Resolução Recomendada nº 87/2009).

Inicialmente podem-se distinguir duas classificações de conflitos urbanos. Os casos de conflitos que existem ameaças implícitas aos ocupantes e conflitos cujas ameaças são explícitas. As ameaças implícitas se caracterizam pela dificuldade dos ocupantes em legitimar a posse da terra, o que os faz viver em situações de constante insegurança, principalmente diante de fenômenos como a especulação imobiliária. O maior prejuízo desse tipo de conflito é a não legitimação de um direito adquirido pelo tempo de ocupação, o que termina por perpetuar o morador como um “invasor de terra”, o que torna em casos de desapropriação os imóveis mais baratos, já que os ocupantes não tem nenhum documento registrado. Outra característica desse tipo de conflito, diz respeito às intervenções públicas que incidem sobre as ocupações de terras, devidamente pensadas com esse intuito, bem como, a permissão de projetos privados que impactam nessas áreas. Dessa forma, o poder público que deveria os proteger, ao contrário, transformam-se em agentes da expulsão. Justificados pelo desenvolvimento urbano estabelecem e aprimoram essas estratégias, cujas argumentações ocorrem pela utilidade pública.

O outro tipo de conflito, denominado como explícito, se caracteriza por situações onde os posseiros, que são considerados meros ocupantes por não terem nenhum documento legal de titularidade da posse de terra, estão vulneráveis a processos de reintegração de posse promovidos pelos proprietários da terra. Essa ação é baseada no princípio do direito de propriedade, os quais os proprietários, mediante posse da escritura, interpelam ao poder judiciário a retomada da posse. Em muitos casos, juízes costumam emitir ações de reintegração de posse, sem que se observe se estas propriedades estão cumprindo uma função social, além de desconsiderarem, o tempo da ocupação dos posseiros nos imóveis. Esse tipo de conflito resultam, além da perda da moradia, possíveis ameaças à integridade física e moral. Em que, quase sempre é utilizada a força policial.

Cabe destacar que, à medida que os centros urbanos vão ficando mais atrativos, os ocupantes tornam-se mais vulneráveis a alvos de conflitos fundiários. Além de que, os conflitos vão tomando contornos os mais diversos, e de variados tipos.

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A SITUAÇÃO DA REGIÃO METROPOLITANA DO RECIFE

A cidade do Recife, capital do Estado de Pernambuco, é caracterizada pela sua segregação socioespacial. Com população de um pouco mais de 1,6 milhões de habitantes, distribuídos em 220 km², com áreas planas e de morros, cortada por rios e mangues, é uma das cidades mais antigas do Brasil, e conta com um significativo atrativo turístico devido às famosas praias, patrimônio histórico-arquitetônico, além de ser conhecida pelas festas populares como o carnaval, que atrai milhares de turistas por ano. O Recife foi também uma das cidades-sede da Copa do Mundo de 2014, o qual passou por processos intensos de reestruturação urbana para sediar o mundial, que desencadeou em variados impactos físicos e sociais, intensificado pela valorização do solo, o que historicamente dificultou o acesso das populações pobres à cidade.

Cabe destacar, o universo de contradições presentes neste território. Recife se destacou no âmbito nacional, por criar uma política urbana na década de 80, do século passado, inovadora e bem sucedida, ao incorporar no zoneamento da cidade, através da Lei de Uso e Ocupação do Solo do Recife, as Zonas Especiais de Interesse Social/ZEIS. As ZEIS constituem-se como áreas ocupadas espontaneamente, em terras públicas ou privadas, e consolidadas ao longo do tempo por famílias de baixa renda, para fins residenciais. Com a criação das ZEIS há um reconhecimento do poder público quanto a essas ocupações espontâneas, que deverá promover ações de urbanização e de regularização fundiária de forma a integrá-las na cidade formal. Sendo assim, as ZEIS passaram a ter uma proteção do poder público municipal, a fim de legitimar a sua permanência, dotando-as de infraestrutura e tirando-as da vulnerabilidade socioespacial. Esse instrumento foi incorporado ao Estatuto da Cidade, lei federal, e passou a ser utilizado por quase todas as grandes cidades brasileiras.

Hoje, Recife contém 73 Zonas Especiais de Interesse Social, distribuídos por todo o seu território. Porém, existem ainda mais 600 áreas pobres, chamadas de Comunidades de Interesse Social/CIS, de acordo com dados da Prefeitura do Recife, de 2016, instaurando uma nova classificação para os assentamentos pobres da cidade. As CIS são ainda mais vulneráveis, pois não dispõem de nenhuma proteção como as ZEIS. No entanto, a população pobre de ambas, vivencia no seu quotidiano, a disputa pelo território, e até mesmo ameaças ou ações de despejos e de remoções forçadas, para dar lugar a novos empreendimentos urbanos destinados às classes mais abastadas, sejam promovidos pelo capital imobiliário, como pelos próprios agentes públicos, que tem levado a vários conflitos fundiários e sociais.

Em oficinas realizadas nas Regiões de Desenvolvimento do Estado de Pernambuco, no ano de 2008, para tratar dos problemas fundiários dentro do mote da elaboração do Plano Estadual de Habitação de Interesse Social de Pernambuco, foram apontados por representantes dos movimentos sociais organizados na luta pela moradia os pontos críticos sobre os conflitos fundiários urbanos, os quais se destacam1:

1 Os dados aqui foram levantados quando da participação direta na coordenação das oficinas sobre regularização fundiária nas Regiões de Desenvolvimento do estado de Pernambuco, para a elaboração do Plano Estadual de Habitação de Interesse Social de Pernambuco.

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• “Nem sempre os conflitos fundiários são registrados, o que implica que a realidade é maior do que as evidências. O não registro é decorrente do medo de sofrer mais ameaças, principalmente a de morte; • A segregação socioespacial existentes e a marginalização da população que vive em ocupações informais; • Fortes pressões pelos agentes imobiliários urbanos e a “expulsão branca”; • Pouca sensibilização e morosidade do Poder Judiciário, além do acúmulo nos processos de regularização da posse da terra, o que faz com que as soluções sejam bem demoradas; • Vulnerabilidade constante à ações de reintegração de posse; • Falta de atenção do Poder Público quanto à necessidade de promover uma reforma urbana e sendo assim, buscar soluções definitivas”. (PERNAMBUCO, Plano Estadual de Habitação de Pernambuco, 2008).

Apesar dos avanços para constituir um marco legal que previna, solucione e corrija os conflitos fundiários urbanos, além de propostas de políticas públicas desenhadas para implementação imediata na promoção do direito à cidade, ainda são recorrentes os conflitos fundiários urbanos. Em cidades como Recife e sua região metropolitana, na última década vem ocorrendo variadas formas de tensões urbanas. Há indícios de que o acréscimo do número de conflitos fundiários sejam consequências de alguns fatores, como: escassez do solo urbano edificável; grandes projetos urbanos, como o que foi implantado na região decorrente dos projetos para a sediar a Copa do Mundo de 2014; nova dinâmica imobiliária por qual passou a região, em função de projetos de caráter desenvolvimentista, como a implantação de grandes empreendimentos urbanos, como “cidades planejadas”, shoppings centers, condomínios fechados, entre outros. A soma de todos esses fatores contribui para que o solo urbano torne-se ainda mais valorizado e, consequentemente, mais disputado. Para exemplificar e mensurar esse fenômeno - os conflitos fundiários no Grande Recife – foram classificados em dois tipos, em função dos atores envolvidos, sendo eles:

Conflitos fundiários decorrentes da atuação do poder público (municipal e/ou estadual) contra particulares (posseiros e/ou proprietários de áreas pobres);

Conflitos fundiários entre particulares: proprietários de terras contra posseiros, envolvendo o poder judiciário.

Alguns dos conflitos aqui analisados ocorreram simultaneamente à participação em pesquisa sobre os impactos da Copa de 2014, os quais foram possíveis vivenciar de perto o sofrimento das famílias envolvidas. Outros conflitos foram identificados a partir da repercussão dos protestos dos ocupantes, que foram noticiados nos jornais de grande circulação e em redes sociais. Cabe destacar, que notícias sobre conflitos fundiários na maioria das vezes só chegam a ser noticiados pela imprensa local quando são movidos por grandes manifestações públicas dos ocupantes, que chamam atenção por promover a paralização do trânsito. E, quando há força policial transformando o problema da terra em um campo de batalha. Muitas vezes, a informação jornalística induz a que se pense que os ocupantes são meros invasores de terras de terceiros. Porém, as causas, a ações dos agentes envolvidos e as consequências dos conflitos fundiários são invisíveis à sociedade.

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Destaca-se que muitos dos conflitos fundiários, conforme já dito, não são registrados. O que implica que existem muito mais problemas relacionados à terra, além dos que são apresentados. E, neste artigo, não se teve a preocupação de se verificar o desfecho final judicial. Pois, o objetivo de tal análise é mostrar a vulnerabilidade que muitas das famílias passam, e que apesar dos princípios jurídicos definidos no arcabouço legal internacional e brasileiro, conflitos fundiários são cada vez mais frequentes nos centros urbanos.

Conflitos fundiários decorrentes da atuação do poder público contra particulares (posseiros e/ou proprietários de áreas pobres)

Casos recorrentes de conflitos fundiários são gerados pela atuação do poder executivo, seja municipal ou estadual. Nessas condições destacam-se dois exemplos. O primeiro deles, uma intervenção pública na ZEIS, denominada por Coque. Esta ZEIS é uma das comunidades mais antigas da cidade e localiza-se em área central. Ao longo de décadas a comunidade já perdeu 51 hectares de seu território para dar lugar a obras públicas, que não são de interesse da comunidade, mas o seu território parece ser visto como uma área vazia e possível de se dar qualquer destinação. Em 2013, uma nova ação de desapropriação ocorreu por parte do governo estadual, que julgava necessário criar um novo Terminal Integrado de Passageiros para potencializar as obras viárias para a Copa do Mundo de 2014. No mesmo ano, a área recebeu a visita da relatora da ONU, Raquel Rolnik, para retratar a situação de violação aos direitos humanos quanto aos despejos forçados. Destaca-se que, a comunidade é uma ZEIS e sendo assim, existe a prerrogativa do poder público municipal de promover processos de urbanização e de regularização fundiária. Porém, de modo contrário, os moradores foram surpreendidos ao receberam do Governo do Estado um documento informando da urgência da retirada de suas casas, para dar lugar a um novo terminal. O atraso das obras possibilitou que nem todos os moradores perdessem suas casas de imediato, e até a Copa do Mundo de 2018, a solução não havia sido resolvida em definitivo. A Figura 1 mostra o processo de resistência dos moradores quanto à ação governamental, destacando os motivos pelos quais, não querem sair da comunidade.

Fig. 1. Processo de resistência dos moradores para Permanecerem na comunidade. Fonte: Movimento Coque R(E)xiste, 2016.

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Além do Coque, outras localidades na Região Metropolitana do Recife, tornaram-se alvo de ações de desapropriação, em função de obras para a Copa do Mundo de 2014. Uma das mais emblemáticas pelo número de pessoas envolvidas foi o bairro conhecido por Loteamento São Francisco, no município de Camaragibe, vizinho ao Recife. Cerca de 900 famílias foram desalojadas de suas casas para darem lugar a implantação de acesso viário até a Arena Pernambuco, estádio de futebol que sediaria o mundial da Copa em Recife, além da implantação de um Terminal Integrado de Passageiros.

As famílias envolvidas nesse caso não eram posseiras, e sim proprietárias dos imóveis. Ou seja, tratava-se de um bairro com perfil socioeconômico popular, cujos moradores tinham escritura dos seus imóveis. Tentativas de negociação entre esses proprietários e o poder público estadual foram em vão.

Realizaram-se denúncias ao Comitê Popular da Copa, protestos públicos, e também foi um dos locais visitado pela relatoria da ONU. Porém, todos os moradores foram retirados de suas casas através de ordem judicial e as casas foram demolidas, antes mesmo de terem acesso à indenização pelo imóvel, devido à urgência que se dizia ter na realização da obra. Muitos moradores foram morar em casa de parentes, já que o preço da indenização oferecida não permitiu a compra de outro imóvel. Em decorrência desses fatos, houve registros de doenças e até casos de morte, atingindo principalmente a população de idosos, população mais vulnerável quando se trata de despejos forçados. A Figura 2 apresenta o bairro ainda com as moradias e a Figura 3, já com as casas demolidas.

Fig. 2. Loteamento São Francisco Fonte: Ana Ramalho, 2012.

Fig. 3. Antiga área do Loteamento São Francisco todo demolido. Fonte: Ana Ramalho, 2014.

Portanto, um dos aspectos mais emblemáticos desse caso é que passada a Copa de 2014, as obras nessa área, nem sequer, foram iniciadas. A área objeto de desapropriação encontra-se vazia e sem nenhuma utilidade pública. Ao contrário, posteriormente, a área originada com as desapropriações foi cercada por uma empresa particular, conforme relato dos moradores do entorno. A Figura 4 mostra o estado atual do local onde viviam centenas de famílias.

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Fig. 4 Antiga área do Loteamento São Francisco, onde existiam moradias, hoje existe uma cerca colocada por uma empresa privada.

Fonte: Ana Ramalho, 2018.

O que tem em comum nesses dois casos? No caso da ZEIS Coque, o zoneamento especial não foi respeitado pelo próprio poder executivo que deveria garantir a manutenção das famílias. No caso da ZEIS e do Loteamento São Francisco observa-se também a participação do poder público na prevalência da prerrogativa da desapropriação justificada pela utilidade pública em função das obras da Copa, em detrimento da população residente consolidada, fato este bem expresso nas palavras da moradora da comunidade do Coque:

“Que utilidade pública tem em fazer um projeto cujos moradores, as pessoas, não tem direito? Utilidade pública para as grandes empresas de ônibus? Para melhorar porque vai ter uma Copa?” (Moradora do Coque, Movimento Coque R(e)xiste, 2015).

Conflitos fundiários entre proprietários e ocupantes de terra envolvendo o Poder Judiciário Outra situação de conflito fundiário que vem se intensificando no Grande Recife são

os constantes processos de reintegração de posse de terra, através de ações judiciais promovidas pelos proprietários contra ocupantes, sejam eles possuidores de título de posse ou sem o título, mas com tempo de permanência. Dois casos, entre tantos outros, chamam a atenção: A Comunidade Vila Oliveira, Bairro do Pina e Comunidade do Passarinho, ambos em Recife.

A Comunidade Vila Oliveira era constituída de um conjunto de 20 casas em área pertencente ao Governo do Estado de Pernambuco, a qual foi adquirida após um processo de desapropriação por utilidade pública. Nos anos 90, a Companhia Estadual de Habitação e Obras do Estado, titulou os moradores, reconhecendo a ocupação e garantindo o direito à moradia. No entanto, em 2012, um desembargador de justiça emite uma ordem de despejo atendendo a uma solicitação de reintegração de posse impetrada por um casal que alegava serem donos do terreno, e fazendo assim valer o direito de propriedade. O caso se tornou público quando oficiais de justiça chegou a comunidade com o batalhão de choque da policia militar, para se fazer cumprir a ordem judicial. Cabe destacar que, o bairro onde se

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localizava a Comunidade Oliveira vem passando por uma grande valorização imobiliária, após a implantação de um shopping e de um conjunto de edifícios empresariais na região. O caso é bastante emblemático, pois se há uma disputa quanto à propriedade da terra, seria entre os supostos proprietários e o governo estadual. Pois, os moradores encontravam-se com seus títulos de posse em mãos, entregues pelo próprio estado. No entanto, toda a vila foi demolida e os moradores foram transferidos para uma área distante enquanto aguardam outro processo judicial ser julgado, os quais os moradores é que pedem a reintegração de posse do terreno, uma vez que, o estado comprova que o terreno havia sido desapropriado e foi titulado em prol dos moradores. Há indícios de que o interesse pelos supostos proprietários ocorreu devido à construção do shopping e a valorização da área, e assim, houve uma tentativa de anular a ação de desapropriação promovida pelo governo estadual. As Figuras 5 e 6 mostram o protesto dos moradores e matéria de jornal sobre o caso.

Fig. 5. Manifestação dos moradores da Comunidade Vila Oliveira Fig. 6. Reportagem de jornal sobre a demolição de imóveis que tinham a titularidade da terra. Fonte: http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2012/11. 07 de junho de 2012.

Outro caso ocorreu na zona norte do Recife, quando cerca de 25 mil famílias foram alvo de reintegração de posse no ano de 2014, concedida pela justiça, contra aos moradores da comunidade de Passarinho, impetrada pelos donos de uma fábrica de pré-moldados, localizada próxima a região. A área é composta de 33 mil hectares, cujos moradores criaram um bairro há cerca de 40 anos. Após protestos dos moradores e intervenção do Ministério Público estadual, os governos estadual e municipal se comprometeram em desapropriar a área em prol dos ocupantes. Nesse caso, pagariam ao proprietário da gleba pela terra. Medida essa que não seria necessária, pois implica em onerar os cofres públicos uma vez que, os moradores já tem tempo de posse para obter a titularidade da terra, além do mais, o proprietário não exerceu a função social da propriedade, e sim os moradores. Chama também atenção nesse caso, a quantidade de famílias envolvidas, além de que existem na área vários equipamentos públicos, configurando assim, o descompasso entre o executivo e o judiciário. A Figura 7 mostra um dos protestos dos moradores.

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Fig. 7. Protestos da comunidade Passarinho Fonte: http://jconline.ne10.uol.com.br. 28 de dezembro

de 2015.

Esses casos mostram também o desequilíbrio que há entre a função social da

propriedade e a prevalência do direito de propriedade. Ou seja, entre a lei e a sua aplicação. O que evidencia o conservadorismo do judiciário, certamente a serviço dos interesses dos donos de terra no Brasil, ao não reconhecer a função social da propriedade como reguladora do direito de propriedade. Ciente desse descompasso o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, anunciou a criação de varas específicas para tratar os conflitos fundiários.

De acordo com matéria publicada na Folha de São Paulo, em 17 de fevereiro de 2015, sobre conflitos fundiários, foi afirmado pelo presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, que existe a necessidade de corrigir as distorções geradas por problemas de formação dos juízes e evitar decisões baseadas apenas no direito de propriedade, já que, a maioria dos juízes se formou antes da Constituição de 1988 e do Estatuto da Cidade, que criaram o direito à moradia e vincularam o direito à propriedade ao cumprimento da sua função social. Sendo essa, a alegação para que despejos forçados ainda seja uma realidade no Brasil.

O quadro a seguir mostra outras situações de conflitos fundiários que demandaram ação de reintegração de posse, nos últimos três anos, envolvendo inúmeras famílias, por toda a Região Metropolitana do Recife. Nesses casos, estão contemplados situações em que os moradores já tem tempo de ocupação e outros que não tinham tempo de ocupação necessário para a titularidade da terra, mas, os imóveis não estavam cumprindo uma função social. E por muitas vezes, após os conflitos, eles continuam ociosos sem nenhuma sanção por parte do poder público, conforme legislação existente. Também chama a atenção que quase em todas as situações envolve o uso da força policial, que resulta, muitas vezes em agressões físicas, o que evidencia que a defesa da propriedade se sobrepõe à dignidade humana, e que a situação reflete um problema social e não um caso de polícia.

Quadro 1. Situações de conflitos fundiários na RMR

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Fonte: Diversas matérias de jornais e de mídias alternativas. Compilado pela autora, 2018.

De acordo com a Resolução 1993/77, da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, a prática dos despejos ou deslocamentos forçados constitui violação grave aos direitos humanos. A Convenção Interamericana de Direitos Humanos assegura o direito a garantias judiciais, conforme Art. 8:

“Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”. (Apud Muller, 2009, p. 18).

Como uma tentativa de minimizar os conflitos e atender as entidades de direitos humanos, o Conselho das Cidades redigiu após a realização de seminários regionais sobre a prevenção e a mediação de conflitos fundiários, uma portaria, de número 87, que se transformou em anteprojeto de lei de uma Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos. Conforme destaca Muller (2009), a portaria não representa um avanço significativo em termos legais, no entanto essa primeira norma brasileira sobre o tema serve como instrumento de luta e de constante pressão das entidades e movimentos populares, para que em casos de conflitos fundiários, seja implementadas as garantias de devido processo legal, de segurança na posse e efetivamente evitem a ocorrência de despejos forçados como política pública.

Nos casos em que os despejos não tenham como ser evitados busca-se que pelo menos, que alguns princípios sejam garantidos, conforme aponta a Política Nacional:

“Garantia do direito constitucional à moradia, o cumprimento da função social da propriedade e da cidade e soluções pacíficas e negociadas para situações de conflitos fundiários urbanos”;

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“A participação social nos processos de negociação de soluções pacíficas para situações conflitos”; “Buscar atender as situações de litígios através dos programas habitacionais e de regularização fundiária”; “Estimular o diálogo e a negociação entre os órgãos governamentais e a sociedade civil organizada, a fim de alcançar soluções pacíficas nos conflitos fundiários urbanos”; “Assegurar que, no cumprimento das decisões judiciais, sejam respeitados os direitos humanos e sociais dos envolvidos em conflitos fundiários urbanos”. (Política Nacional de Mediação e Prevenção de Conflitos, 2009).

A política também traz como orientações e diretrizes que não pode, antes, durante e depois dos despejos e remoções acontecer:

“Fazer uso da violência e da intimidação, em nenhuma circunstância”; “Ser realizada de forma discriminatória ou replicar padrões discriminatórios”; “Resultar em pessoas e famílias desabrigadas”; “Usar a demolição das casas ou das lavouras como retaliação ou ameaça contra a população”; “Destruir os bens das famílias afetadas” “Ignorar a situação específica de mulheres e grupos em condição de vulnerabilidade (idosos e crianças, assim como outros)”. (Política Nacional de Mediação e Prevenção de Conflitos, 2009).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nos conflitos fundiários pelos quais vem passando a Região Metropolitana do Recife observa-se que, existe um descompasso entre as declarações e as realizações, conforme apontado neste artigo por Muller (2014), Cortina (2017) e Maricato (2011).

Observa-se também que, o lugar dos pobres na cidade é transitório, e está condicionado as estratégias da política urbana formal. Ou seja, funcionam como reservas de terra da cidade, mesmo que ocupadas, para servir aos interesses do capital privado associado ao poder político. O que também faz com que, perpetuamente, as populações pobres estejam sempre vulneráveis a insegurança jurídica, mesmo aquelas respaldadas por uma regulação própria, como é o caso das ZEIS.

Sem sombra de dúvidas, a existência de um marco regulatório é um avanço fundamental para a garantia do direito à cidade e para o combate das desigualdades sociais. Porém, a lei por si só, não consegue garantir direitos. E, se os marcos regulatórios só existem no papel e não funciona para todos, eles são simbólicos. Sendo assim, se perpetuam as desigualdades socioespaciais, territoriais e também legais. O que implica na urgência de processos de lutas e de resistências constantes, no amadurecimento social, no controle e cobrança institucional, e discussões e denúncias sistemáticas, como vêm a ser o propósito deste artigo.

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