O direito como um conceito interpretativo

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500 Pensar, Fortaleza, v. 15, n. 2, p. 500-513, jul./dez. 2010 O direito como um conceito interpretativo Law as an interpretative concept Lenio Luiz Streck* Resumo Qual é o conceito de Direito? O objetivo deste artigo é responder a esta complexa pergunta, cuja resposta determina o modo como os atuais fenômenos jurídicos são compreendidos. Para enfrentar tal questão, será apresentado: a) inicialmente, os dois modos clássicos através dos quais a tradição enfrenta o problema da determinação do conceito de direito (jusnaturalismo e positivismo jurídico); b) o modo como a tradição trata o problema envolvendo a distinção entre direito e moral; c) e a caracterização de uma nova via denominada de “uma exploração hermeneuticamente adequada do conceito de Direito”. Palavras-chave: Hermenêutica jurídica. Hermenêutica filosófica. Conceito de direito. Abstract What is the concept of Law? This article intends to answer this complex question, whose answer determines how the current legal phenomena are understood. To deal with this issue will be presented: a) initially, the two classic ways through which the tradition faces the problem of determining the concept of law (natural law and legal positivism); b) how the tradition deals with the problem involving the distinction between law and morality; c) and the characterization of a new way called “a proper hermeneutic exploration of the concept of law”. Keywords: Legal hermeneutics. Philosophical hermeneutics. Concept of law. * Pós-doutor em Direito pela Universidade de Lisboa. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da Unisinos e da Unesa. Procurador de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]

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Lenio Luiz Streck

O direito como um conceito interpretativo

Law as an interpretative concept

Lenio Luiz Streck*

Resumo

Qual é o conceito de Direito? O objetivo deste artigo é responder a esta complexa pergunta, cuja resposta determina o modo como os atuais fenômenos jurídicos são compreendidos. Para enfrentar tal questão, será apresentado: a) inicialmente, os dois modos clássicos através dos quais a tradição enfrenta o problema da determinação do conceito de direito (jusnaturalismo e positivismo jurídico); b) o modo como a tradição trata o problema envolvendo a distinção entre direito e moral; c) e a caracterização de uma nova via denominada de “uma exploração hermeneuticamente adequada do conceito de Direito”.

Palavras-chave: Hermenêutica jurídica. Hermenêutica filosófica. Conceito de direito.

Abstract

What is the concept of Law? This article intends to answer this complex question, whose answer determines how the current legal phenomena are understood. To deal with this issue will be presented: a) initially, the two classic ways through which the tradition faces the problem of determining the concept of law (natural law and legal positivism); b) how the tradition deals with the problem involving the distinction between law and morality; c) and the characterization of a new way called “a proper hermeneutic exploration of the concept of law”.Keywords: Legal hermeneutics. Philosophical hermeneutics. Concept of law.

* Pós-doutor em Direito pela Universidade de Lisboa. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da Unisinos e da Unesa. Procurador de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]

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Introdução

O que é isto – o Direito? Com esta pergunta enunciamos um impasse fundamental: a determinação do conceito de Direito. Esse impasse cruza a história; está na base da construção das mais diversas instituições jurídicas e modela o modo como os seres humanos compreendem e interpretam o fenômeno jurídico. Trata-se, portanto, de uma questão extremamente complexa, porque é exatamente pela antecipação que fazemos do sentido do Direito (ou seja, um projeto significativo em torno daquilo que se pode entender por Direito numa perspectiva global) que dependerá o modo como o direito efetivamente será articulado nas questões particulares que são trazidas pelo cotidiano. Dito de outro modo, é da compreensão que se tem do todo Direito que se projetará os sentidos das demandas resolvidas na concretude do tempo presente. Essa constatação implica a seguinte consequência: não há direito sem história (porque é o passado que nos lega os sentidos jurídicos nos quais, desde sempre, estamos imersos), e não é possível compreender o sentido do Direito sem que se faça uma espécie de história do conceito (GADAMER; KOSELLECK, 1997). Ou seja: o sentido que temos do Direito depende da exploração daquilo que Gadamer (1998, p. 449) chama de consciência da história efetual.

Daí que se torna necessário apresentar – a partir da inexorabilidade da historicidade (Geschichtlichkeit) do direito – os seguintes aspectos que envolvem a questão posta: a) inicialmente, os dois modos clássicos através dos quais a tradição enfrenta o problema da determinação do conceito de direito; b) o modo como a tradição trata o problema envolvendo a distinção entre direito e moral; c) a caracterização de uma nova via que denomino de “uma exploração hermeneuticamente adequada do conceito de Direito”.

1 Jusnaturalismo e positivismo jurídico

A tradição apresenta, classicamente, dois modos para caracterização do conceito de Direito: o primeiro é chamado de jusnaturalismo e o segundo – que se constrói no decorrer da modernidade, como espécie de consequência do primeiro – é o positivismo jurídico.

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Inicialmente, é importante advertir que essa oposição só se apresenta de modo absolutamente determinado no contexto das teorias jurídicas experimentadas pela idade moderna. Isso significa que, quando se afirma, como também fazem Arthur Kaufmann (2002) e Castanheira Neves (2003), que o positivismo jurídico representa uma consequência ou a consagração dos ideais jusnaturalistas, está-se a falar do jusnaturalismo moderno e não do jusnaturalismo clássico (greco-medieval). Do mesmo modo, é preciso ressaltar que positivismo jurídico e Direito positivo são coisas distintas. Com efeito, o Direito positivo representa um conjunto de normas jurídicas que regem uma determinada realidade social, geográfica e historicamente determinada, ao passo que positivismo jurídico é uma postura teórico-metodológica acerca do Direito positivo. Todas as doutrinas clássicas do Direito Natural conviveram com um Direito positivo. A grande questão é que esse Direito positivo devia estar enquadrado numa ordem objetiva de coisas encontrada na natureza. Já no caso do positivismo jurídico que tem lugar na modernidade, sua característica individualizante – registre-se, herança do nominalismo medieval – e seu caráter de representação sistemática do mundo acabarão por se opor ou simplesmente desconsiderar a existência de um Direito Natural tal qual apresentado pelas doutrinas clássicas.

De todo modo, é possível afirmar que toda ideia de Direito natural professa um conceito segundo o qual se compreende por Direito tudo aquilo que, no seio do convívio humano, acontece de acordo com uma ordem de coisas pressuposta (vale dizer: uma ordem de coisas natural). Ordem essa que deve(ria) espelhar a harmonia e a perfeição encontrada em uma determinada natureza. Entre os gregos, a ideia de natureza que comandará o conceito de direito será a ordem cosmológica; entre os medievais, essa ordem natural será remetida ao modo do ser perfeito: Deus. Daí que, no primeiro caso, fala-se de um direito natural cosmológico, ao passo que, no segundo, teríamos um direito natural teológico. O que interessa ficar ressaltado, para efeitos deste artigo, é que, em ambos os casos, há uma certa ordem natural a determinar o conteúdo correto (ou os critérios de correção) do Direito positivo, da lei humana; enfim, do conjunto de regras que regem, geográfica e historicamente localizadas, o convívio em comunidade. Essa ordem natural, obviamente, situa-se fora do tempo e fora da história: é transcendente e condiciona, regulativamente, o Direito produzido em tempos e lugares determinados.

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Com o renascimento e a modernidade ocorre uma transformação profunda no conceito de Direito que fora produzido pelas doutrinas clássicas do jusnaturalismo. O modo como esses dois movimentos históricos passaram a tratar de temas como a liberdade, a autonomia e a vontade afetarão, em toda sua amplitude, os estudos sobre o Direito natural e a justiça. Isso porque o racionalismo antropocêntrico rejeitará qualquer ideal de ordem que não seja colocado pela razão, isto é, pelo homem. Ou seja: dá-se um manifesto afastamento com relação a qualquer determinação limitadora da liberdade ou da autonomia individual que seja dada por realidades transcendentes. Assim, os pressupostos naturais do Direito natural cosmológico e teológico serão rejeitados – por serem representativos de uma ordem tradicional que deveria ser rompida – para que o sujeito moderno pudesse ser reconhecido como auto-nomos (aquele que coloca sua própria lei, sua própria ordem). Esse é o sujeito que “interdita”. E o faz pelo e por intermédio do Direito (pensemos, de pronto, em Thomas Hobbes). Isso se deu a partir de uma ruptura com as estruturas do pensamento da tradição: tudo que era dela oriundo passou a ser considerado dogmático; apenas aquilo que passasse pelo filtro da razão é que teria validade. Em termos simples: para os clássicos, as premissas que arquitetavam o cenário jurídico eram autoevidentes – dadas por uma determinada natureza – para os modernos, as premissas são postas pelo sujeito racional.

Assim, as doutrinas racionalistas do Direito natural passaram a trabalhar na construção de um sistema completo, sem a necessidade de recorrer a fatores externos para assegurar sua correção. Para tanto, passou-se a ter como pressuposta a ideia de que a razão pode dar a ela mesma um direito. E esse direito, construído racionalmente, (já) é o melhor para gerir os assuntos humanos, não sendo necessária a sua justificação em nenhuma ordem transcendente. Veja-se: tinha que ser assim, uma vez que o Direito era o caminho e a condição de possibilidade para o sujeito estabelecer o sentido de mundo a partir da razão. Ou seja, o sujeito é uma construção da modernidade. E, com ele, esse “tipo” de Direito. Representativos, nesse sentido, são os sistemas de direito natural construídos por Hugo Grócio, Leibniz e Christian Wolff que, baseados em critérios de demonstração provenientes da matemática, se propuseram a apresentar o melhor modelo de regulação do Direito positivo. Na verdade, há, nestes três autores, fatores que se complementam com relação à caracterização do Direito natural moderno:

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em Grócio, há um racionalismo construtivista; em Leibniz, tem-se uma arquitetura racional do Direito; e, em Christian Wolff, dá-se propriamente uma concepção sistemática da ordem jurídica.

O fato é que essa espécie de imanência em torno do sujeito racional acabou por tornar a doutrina moderna do Direito natural despicienda, na medida em que seus sistemas foram assimilados pelo primeiro grande marco daquilo que se convencionou a chamar de positivismo jurídico: o movimento codificador, modo de explicitar a interdição operada pela razão. E isso é deveras significativo: os códigos civis burgueses – principalmente o francês, mas também o prussiano – não se opunham ao jusnaturalismo em sua feição moderna. Ao contrário, eles representam a consagração, pela via política, daquilo que havia sido ditado pela filosofia da consciência no campo da filosofia do Direito. De se notar que, em face da rejeição de ordens transcendentes, a assimilação pelos códigos dos sistemas jusnaturalistas levaram à possibilidade de equiparação entre Direito e lei. Explicando melhor: as doutrinas clássicas do Direito natural concebiam o Direito como uma ordem natural da convivência humana. Mas essa ordem era determinada por um ideal exterior, um telos capaz de regular suas disposições segundo um determinado sentido de justiça. Já o jusnaturalismo moderno, também via o Direito como a ordem da convivência, porém, essa ordem normativa era moldada – sistematicamente – pela razão matemática do sujeito. Poder-se-ia dizer: tratava-se de uma ordem imanente. Ora, se esse sistema já havia sido incorporado ao Direito positivo – por meio dos Códigos Civis – por que continuar falando de um critério exterior de justificação? Assim, a própria lei já é o todo do Direito e, portanto, esse positivismo primevo irá articular um conceito de Direito que se identifica com a lei.

Há outras questões igualmente importantes para marcar as diferenças conceituais em torno da concepção jusnaturalista (clássica) e a do positivismo jurídico instituído pela modernidade. Importante é ressaltar que, pelo que foi mencionado acima, apenas de modo muito imperfeito é que se pode falar em um Direito Natural moderno. Na verdade, no interior da modernidade, a ideia de natureza que unificava as propostas do Direito natural clássico acabou perdida em meio ao particularismo individualista que se formou no seio do nominalismo medieval e que depois foi radicalizado por pensadores como Thomas Hobbes, que, indubitavelmente, pode ser considerado o fundador do positivismo jurídico moderno, porque é nele que aparece mais nitidamente a relação

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Estado-Direito e a questão da “ruptura” com a metafísica clássica e tudo o que ela representou. (STRECK, 2010, p. 14).

Aliás, essa é outra característica forte presente no conceito positivista de Direito: há um desligamento com relação à objetividade que determinava, no sentido do realismo filosófico, o Direito Natural clássico – algo presente na afirmação de Michel Villey (2005) de que a ideia de Direito clássica e romana estava ligada à máxima: atribuir a cada um o que é seu, tendo em vista o que é de cada um por natureza – , e o encaminhamento para a centralidade do indivíduo (na sequência, o sujeito solipsista). Ora, o positivismo é, de alguma forma, fruto do nominalismo (pensemos o modo como as teorias pragmaticistas do Direito são, de algum modo, nominalistas e, consequentemente, positivistas, ao trabalharem com a hipótese de “grau zero de sentido”). Para o nominalismo, o lema de ordem era: não existe nenhuma realidade exterior ao indivíduo. O conceito de Direito passa a ser operado, portanto, numa perspectiva individualista que, com a virada copernicana operada por Descartes e radicalizada por Kant, receberá, como referido anteriormente, um outro rótulo: o de uma subjetividade plenipotente e solipsista.

2 Relação entre direito e moral

O primeiro dado que se deve retirar da construção do positivismo jurídico pela modernidade é que o efeito agregador presente nas concepções clássicas do Direito natural foi, definitivamente, perdido. A moral natural que, de alguma forma, oferecia as balizas para o pensamento do Direito foi abandonada pela asfixia teórica que domina todas as teorias do Direito positivista. Isso causa sérios problemas teóricos, mas, certamente, aquele mais delicado e que ocupa um dos lugares centrais das teorias jurídicas contemporâneas é a questão envolvendo a relação entre o direito e a moral.

Antes de adentrar nessa temática, cabe a seguinte advertência: se é correto que a fragmentação teórica que ocorre a partir do positivismo através da tese da separação total entre o Direito e a Moral deve ser duramente criticada, também é certo que não há mais espaço para se pregar um retorno idílico ao passado, na tentativa de uma repristinação das posturas realistas que alicerçavam as doutrinas do Direito Natural

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clássico. Há certa ingenuidade filosófica nelas, pois se perdem na crença de que o direito apenas é como qualquer outro dado natural existente no “cosmos”. De fato, a “revolução copernicana” da subjetividade é incontornável. Porém, esse sujeito não pode ser pensado ao modo da dualidade entre razão teórica e razão prática que (neo)kantianamente alicerça os diversos tipos de positivismo jurídico. Daí a necessidade de se buscar uma outra via. Uma via na qual o ser humano não é apenas um ente que descreve uma objetividade pré-dada (e, depois, predada), mas, também, não é um ente assujeitador dos objetos. Essa via é a via da autocompreensão e da transcendência. Essa via é a hermenêutica (filosófica)!

Feita esta advertência, é possível dizer que há quatro modos de se abordar o problema envolvendo a relação entre Direito e Moral:

a) a tese da vinculação – apresentada pelas doutrinas clássicas do direito natural, onde haveria uma vinculação do direito para com uma moral natural;

b) a tese da separação – apresentada pelo positivismo jurídico, que procura criar pressupostos metodológicos capazes de distinguir, de modo claro e científico, o campo da moral e da ética e o campo do direito e da ciência jurídica;

c) a tese da complementariedade – que é uma espécie de continuação lógica da tese da separação operada pelo positivismo. Professada por autores contemporâneos, como é o caso de Robert Alexy, a tese da complementariedade afirma que há espaços distintos de atuação entre o Direito e a Moral. Na verdade, para esta tese, o Direito seria um caso especial do discurso moral, que teria certa autonomia para resolver os problemas próprios de seu campo de trabalho, mas que, quando fossem insuficientes ou injustas suas prescrições, haveria uma complementação efetuada pelo discurso moral geral (ALEXY, 2008);

d) por fim, têm-se a tese da cooriginariedade (que é a tese que defendo, junto de autores como Dworkin e Habermas). A tese da cooriginariedade afirma que os problemas jurídicos possuem o mesmo campo de atuação da moral e que a resolução de uma demanda não depende de uma “parada epistemológica” para verificação de sua correção moral, mas

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que – se decidida de modo correto – já estará desde sempre albergada, ao mesmo tempo, pelo direito e pela moral. Isso, entre outras coisas, porque não existe uma separação entre razão teórica (direito) e razão prática (moral) (DWORKIN, 1999; HABERMAS, 1997).

Explico: o problema central da discussão entre direito e moral reside no papel desempenhado pela razão prática no contexto d(e um)a teoria do Direito. Ora, as teorias do Direito positivistas haviam recusado fundar suas epistemologias numa racionalidade que desse conta do agir propriamente dito. Como alternativa, estabeleceram um princípio fundado em uma razão teórica pura: o Direito deveria, a partir de então, ser visto como um objeto que seria analisado segundo critérios emanados de uma lógica formal rígida. Isso significa dizer que, para o positivismo, pouco importava colocar em discussão – no campo de uma teoria do direito – questões relativas à legitimidade da decisão tomada nos diversos níveis do poder estatal (Legislativo, Executivo ou Judicial). No fundo, operou-se uma cisão entre validade e legitimidade, sendo que as questões de validade seriam resolvidas através de uma análise lógico-semântica dos enunciados jurídicos, ao passo que os problemas de legitimidade – que incluem uma problemática moral – deveriam ficar sob os cuidados de uma teoria política.

Por certo, a pretensão das teorias positivistas era oferecer à comunidade jurídica um objeto e um método seguro para produção do conhecimento científico no direito. Isso levou – de acordo com a atmosfera intelectual da época (problemática que, entretanto, ainda não está superada) – a uma aposta numa racionalidade teórica asfixiante que isolava todo contexto prático de onde as questões jurídicas realmente haviam emergido. Portanto, ironicamente, a pretensão estabilizadora e cientificizante do positivismo jurídico acabou por criar uma babel resultante da separação produzida entre questões teóricas e questões práticas, entre validade e legitimidade, entre teoria do Direito e teoria política.

Nesse ponto, é necessário esclarecer as diferenças que existem entre uma razão prática (stricto sensu) e o “mundo prático” de que falam outros paradigmas, como é o caso da hermenêutica. A razão prática nos vem desde a filosofia grega, quando Aristóteles determinou uma filosofia teórica (que pergunta pela verdade ou pela falsidade) e uma

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filosofia prática (que pergunta pelo certo e pelo errado). Na primeira, está em jogo uma observação de uma determinada realidade, ao passo que, na segunda, tem-se o questionamento de uma ação concreta. Na modernidade, a problematização entre razão teórica e razão prática foi retomada por Kant em sua Crítica da Razão Pura e na Crítica da Razão Prática. O que há de comum entre Kant e Aristóteles é que, em ambos, há uma vala a separar a filosofia teórica da prática e nenhum deles conseguiu explicar como a filosofia teórica pode determinar a filosofia prática ou vice-versa. A partir de Kant e da revolução copernicana por ele instaurada, o problema razão teórica/razão prática passa a agregar a questão da subjetividade que não estava presente na problemática grega.

Desse modo, além do problema da cisão, tem-se por acrescido também o problema do solipsismo do sujeito transcendental kantiano – questões que ainda estão fortemente presentes no positivismo jurídico, pois não?). Com o giro ontológico operado por autores como Martin Heidegger (2003), dá-se – de uma forma inédita em toda tradição filosófica – uma reconciliação entre prática e teoria e, ao mesmo tempo, ocorre um deslocamento do solipsismo subjetivista para um contexto intersubjetivo de fundamentação. Há um texto que é particularmente importante no contexto desta questão. Trata-se das Interpretações Fenomenológicas de Aristóteles, no qual Heidegger apresenta, pela primeira vez, a operação que estaria na base de Ser e Tempo: a ontologização dos conceitos éticos e a eticização dos conceitos ontológicos. A partir disso, é possível dizer que Heidegger cria um novo conceito que descreve um ambiente no interior do qual conhecimento prático e conhecimento teórico se relacionam a partir de uma circularidade: o círculo hermenêutico (hermeneutische Zirkel). Há uma espécie de “privilégio” do conhecimento prático em virtude da estrutura do logos hermenêutico. Esse (novo) modo de tratar a relação entre prática e teoria passa a privilegiar a dimensão de vivências fáticas do ente que existe: o Dasein (HEIDEGGER, 2003). É assim que (re)aparece o “mundo prático” na filosofia – que se manifestou no início grego com os pré-socráticos, mas que foi encoberto pelo logos socrático-platônico. É, desse modo, pois, que a hermenêutica irá responder ao problema da relação entre prática e teoria: um contexto intersubjetivo de fundamentação (a noção de pré-compreensão, contexto antepredicativo de significância etc) no interior do qual tanto o conhecimento teórico quanto o conhecimento prático se

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dão na abertura do Dasein (ser-aí). E a moral, neste sentido, só pode ser vista como um modo de ser do ser-aí, que como tal se comporta moralmente ou eticamente. (STEIN, 2004).

Nestas reflexões, procuro me apropriar dessas instâncias do pensamento heideggeriano para iluminar o problema da relação ou do vínculo entre direito e moral. Penso que nenhuma pessoa minimamente versada em Direito poderá dizer que alguém decide um caso jurídico com a pretensão de estar errado. Essa afirmação está presente mesmo em autores da tradição analítica, como é o caso de Robert Alexy (2008), que trabalha com a ideia de uma pretensão de correção no Direito. Mas Alexy não se sustenta quando tenta solucionar o problema da correção do discurso jurídico a partir de um procedimento artificial de racionalização das decisões: a ponderação de princípios. Esta estratégia alexyana sequestra novamente o mundo prático – o que já havia acontecido com o positivismo kelseniano.

O que parece ser possível sustentar a partir da fenomenologia hermenêutica é que, no direito, não há apenas uma pretensão de correção – como quer Alexy (2008) – mas sim um dever de correção. Essa é a “porta” através da qual o direito é invadido pela moral. Na lapidar expressão de Ronald Dworkin (1999, p.210): “o juiz tem o dever (has a duty) de decidir, de uma maneira específica, pela expressa razão de que o direito exige tal decisão”.

Desse modo, não falo de uma moral ornamental (uma modalidade da moral que não opera no mundo práticoconcreto). Tampouco estou me referindo a uma espécie de moralismo jurídico no interior do qual o direito seria responsável pela capilarização dos desejos morais individuais dos que participam da comunidade política. Em uma moral ornamental, tem-se a institucionalização de um discurso postiço no Direito – a correção, no sentido de Alexy – mas que funciona apenas como uma “capa de sentido”, ou um discurso adjudicador se quiser. Neste caso, o argumento moral tem um “caráter predatório” e fragilizador da autonomia do Direito: ele sequestra o sentido jurídico para oferecer a decisão do caso. O que seja esta decisão, no final, será tarefa do intérprete dizer. Falo, sim, de uma moral instituidora da comunidade política que obriga, não apenas aqueles que fazem as leis, a seguirem uma cadeia de coerência e integridade em suas decisões, mas também – e principalmente – obriga aqueles que são responsáveis pela realização concreta do Direito: os juízes.

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Por tudo isso, penso que seja possível dizer – nesta quadra da história – que o Direito forjado a partir do segundo pós-guerra possui um elevado grau de autonomia. E, se o Direito tem um elevado grau de autonomia, não se quer dizer com isso que ele esteja despido de qualquer conteúdo moral. Ao contrário, por tudo que aqui foi dito, pode-se perceber que há sim uma origem mútua entre direito e moral, principalmente quando se olha para uma sociedade que precisa dar respostas ao que restou de Auschwitz.

Dito de outro modo, não é qualquer direito que vale e é legitimo, mas apenas aquele que passou pela prova de uma “razão hermenêutica”, ou seja, da applicatio jurídica. Esse conteúdo moral tem seu ponto de estofo no espaço de formação da decisão judicial. Isso quer dizer que, no momento em que se afirma que decisões discricionárias não podem ser aceitas – que nada mais são do que decisões que exoneram o juiz do dever de decidir corretamente –, tem-se aí já a introdução do elemento moral e, ao mesmo tempo, o maior atestado da autonomia do direito, no momento em que essa decisão formada corretamente será reconhecida por toda a comunidade jurídica como direito.

É interessante notar como Kelsen, por exemplo, acaba preservando – mesmo com toda sofisticação de sua teoria – o elemento messiânico presente nas teorias objetivistas e subjetivistas da interpretação jurídica (vontade da lei e vontade do legislador), voluntarismo esse que o coloca no último princípio epocal da modernidade: a vontade de poder de Nietzche. Kelsen foi um autêntico positivista – talvez “o” autêntico positivista – porque percebeu que único modo de definitivamente desindexar a moral do direito seria de um modo artificial, ficcional, circunstância que o identifica inexoravelmente como o neopositivismo e toda tradição epistemológica que se seguiu.

De fato, é preciso construir as condições de possibilidade para a emergência de um direito fundamental a respostas corretas no direito, uma vez que o positivismo jurídico lato sensu aceita a existência de múltiplas respostas. Tal circunstância – que é central nas teorias positivistas – está sustentada na delegação em favor dos juízes de um poder discricionário, o que representa um retrocesso em relação à própria democracia.

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Acrescente-se, nesse ponto, que as teses que apostam na discricionariedade e na existência de múltiplas respostas não conseguem compreender aquilo que se vem denominando de “dobra da linguagem”, isto é, as diversas teorias “discricionaristas” acabam insistindo em um semanticismo jurídico, restando o “caso concreto” como um álibi para o exercício de pragmatismos. Faço essa crítica baseado em Dworkin – mas indo além dele – porque foi ele quem conseguiu iluminar o problema central do positivismo: a discricionariedade presente na “textura aberta” (HART, 1994) e na “moldura da norma” (KELSEN,1998).

Ou seja, Dworkin percebeu que é neste ambiente em que predomina a “vontade” discricionária de um sujeito solipsista que reside o elemento mais nefasto da cisão entre Direito e Moral, uma vez que a “textura aberta” e a “moldura da norma” exoneram o juiz do dever de decidir a questão de um determinado modo. Tendo detectado isso, Dworkin (1999) pôde construir a teoria do direito como integridade para demonstrar como as decisões judiciais não podem ficar reduzidas ao alvedrio da vontade do intérprete, mas que todo juiz – no momento da decisão – possui um dever (have a duty to) de decidir de um modo determinado.

Desse modo, a própria ideia de resposta correta (adequada à Constituição) se apresenta como uma (nova) perspectiva para se pensar o problema da relação entre direito e moral: o dever do juiz – que surge do correlato direito fundamental – instituiu um (novo) começo moral para o direito. Dito de outro modo, a resposta correta deve ser entendida numa dupla perspectiva: 1) enquanto possibilidade, a partir da qual se demonstra como são possíveis respostas corretas em direito; 2) enquanto dever, no interior da qual se produz uma teoria de como os juízes devem decidir as causas que julgam, e não apenas como eles podem (escolher) julgar.

Isso tudo se insere naquilo que estou denominando “razão hermenêutica” (a partir de SCHNÄDELBACH, 2008, p. 127 e ss.) que nada mais faz do que tornar claro o problema que o elemento (estruturante) da compreensão representa para o direito. Pois parece claro que toda a problemática aparece com clareza quando os problemas derivados do existencial da compreensão são expostos no direito. Note-se: como afirmo em outros textos, trabalho com uma matriz teórica que possibilita mostrar o modo como no Direito as decisões (principalmente a

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decisão judicial) não são produzidas com base em silogismos lógicos ou raciocínios dedutivos/indutivos apenas. Toda decisão jurídica pressupõe uma compreensão que aquele que a prolata possui a respeito de todos os fenômenos que nela estão envolvidos (os textos jurídicos, o caso concreto, sua vivência fática etc.).

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Recebido em: 20/05/10Avaliado em: 07/09/10Aprovado para publicação em: 14/09/10