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FILOSOFIA E DIREITO Carlos Bernal Pulido O direito dos direitos Escritos sobre a aplicação dos direitos fundamentais

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FILOSOFIA E DIREITO

Carlo

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Pul

ido

O direito dos direitos

Escritos sobre a aplicação dos direitos fundamentais

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Carlos Bernal Pulido

o direito dos direitosescritos sobre a aplicação dos direitos fundamentais

tradução

thomas da rosa de Bustamante(com a colaboração de Bruno stiegert)

MADRI | BARCELONA | BUENOS AIRES | SãO PAULO

Marcial Pons

2013

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ColeçãoFilosofia e Direito

DireçãoJordi Ferrer José Juan Moreso adrian sgarbi

O direito dos direitos. Escritos sobre a aplicação dos direitos fundamentaisCarlos Bernal Pulido

Traduçãothomas da rosa de Bustamante com a colaboração de Bruno stiegert

Capanacho Pons

Preparação e revisãoida Gouveia

Editoração eletrônicaOficina das Letras®

todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo – lei 9.610/1998.

© Carlos Bernal Pulido© thomas da rosa de Bustamante e Bruno stiegert© MarCial Pons editora do Brasil ltda. av. Brigadeiro Faria lima, 1461, conj. 64/5, torre sul Jardim Paulistano CeP 01452-002 são Paulo-sP ( (11) 3192.3733 www.marcialpons.com.br

impresso no Brasil [07-2013]

Pulido, Carlos Bernal

o direito dos direitos : escritos sobre a aplicação dos direitos fundamentais / Carlos Bernal Pulido ; tradução thomas da rosa de Bustamante com a colaboração de Bruno stiegert. – são Paulo : Marcial Pons, 2013.

título original: el derecho de los derechos.BibliografiaisBn 978-85-66722-03-1

1. direitos fundamentais i. título.

13-02398 Cdu-342.7Índices para catálogo sistemático: 1. direitos fundamentais : direito constitucional 342.7

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

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A María José

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agraDeCImeNtoS

este livro constitui o resultado de vários anos de investigação e de exer-cício professoral, nos quais pude formar algumas convicções sobre a teoria e a prática dos direitos fundamentais na Colômbia.

na formação de tais convicções foram de capital importância minhas conversas com o professor RobeRt Alexy, durante minha visita em sua cátedra de Filosofia do Direito e Direito Público da Universidade de Kiel, assim como os interessantes debates que mantive com seu assistente cientí-fico, o Dr. MARtin boRowski.

do mesmo modo, as páginas que o leitor tem em suas mãos são tributá-rias da contribuição de alguns professores e amigos espanhóis, que me enri-queceram com suas sugestões, observações e críticas. entre eles gostaria de mencionar muito especialmente o orientador de minha tese de doutoramento em salamanca, o professor José luis CAsCAJo CAstRo, ao professor Augusto MARtín de lA VegA (também da universidade de salamanca) e ao professor JuAn Antonio gARCíA AMAdo (da universidade de león).

As teses deste livro também se beneficiaram do intercâmbio de ideias que pude manter sobre o direito constitucional norte-americano com o professor stAnley PAulson (Washington university de saint louis, estados Unidos) e do material bibliográfico que tive oportunidade de compilar na biblioteca da universidade de oxford (inglaterra) durante o verão de 2002, graças ao convite do professor JosePh RAz.

no que concerne à análise da jurisprudência constitucional colom-biana, devo dizer que algumas das ideias que defendo neste livro provêm dos debates que tive na Corte Constitucional, com o magistrado MAnuel José CePedA esPinosA e o professor Rodolfo ARAngo. Mas, principalmente, algumas ideias e conceitos são devedores das observações inteligentes

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de meus companheiros de grupo de pesquisa em direito constitucional da universidade externado de Colômbia, em especial dos professores néstoR osunA, Alexei Julio, huMbeRto sieRRA, geRMán lozAno e édgAR solAno.

também estou em dívida com o monitor AndRés gutiéRRez, que me proporcionou a documentação necessária para vários dos escritos que compõem este livro, e com meu assistente na cátedra de introdução ao direito na universidade externado de Colômbia, o professor JuAn CARlos uPegui, por suas críticas e recomendações quanto à seleção da jurisprudência constitucional. a MARíA José ViAnA também devo uma valiosíssima colabo-ração na seleção e análise de parte da jurisprudência que serve de substrato aos textos que aqui se apresentam.

não posso deixar de mencionar de modo genérico, porque uma lista detalhada me faria incorrer em omissões imperdoáveis, o aporte à minha concepção sobre os direitos fundamentais de meus estudantes do douto-rado em direito, dos mestrados em direito Público, direito administrativo e responsabilidade do estado, das especializações em direito Público, Constitucional e Parlamentar e do Curso de aperfeiçoamento em teoria e interpretação dos direitos Fundamentais – que ministrei durante o primeiro semestre do ano de 2004 –, assim como de meus estudantes de introdução do direito de graduação, todos da universidade externado de Colômbia. a todos eles, devo muitos dos acertos que este livro possa conter. desde logo, os erros são inteiramente de minha autoria.

Finalmente, gostaria de agradecer à universidade externado de Colômbia pelo generoso financiamento que me brindou para levar a cabo este projeto, a seu reitor, o dr. feRnAndo hinestRosA, e aos professores CARlos RestRePo PiedRAhítA e luis VillAR boRdA por seu estímulo constante; e, já no campo pessoal, à minha mãe, MARíA stellA, ao meu pai, libARdo, e a meu irmão, luis, por seu apoio incondicional. e, como não, a MARíA José, minha grande benção, por tudo… a ela dedico este livro.

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PreFÁCIo

É antes de tudo uma honra poder prefaciar o livro O direito dos direitos, de autoria do meu amigo Carlos Bernal Pulido, Professor Catedrático da universidad de externado de Colombia.

antes de tecer considerações sobre a obra, cabe uma palavra sobre seu autor. a par de sua personalidade afável e generosa, Carlos se destaca entre os teóricos do direito por seus sólidos conhecimentos jurídicos, pela detalhada análise que faz da jurisprudência e do direito comparado, pela desenvoltura por que passeia pela mais avançada doutrina mundial, pela erudição geral e pela familiaridade com a filosofia do direito clássica e contemporânea, sem contar ainda com o estilo claro, argumentativo e elegante de sua redação. esse estilo se pode observar em toda a extensão da obra que estou a prefaciar, e reflete uma característica que considero uma das principais virtudes inte-lectuais deste jovem e brilhante autor: Carlos, ao contrário de grande parte da filosofia puramente descritiva que ainda encontra um lugar de destaque no discurso dos teóricos do direito em nível global, está preocupado em resolver problemas práticos, ou seja, em construir uma filosofia do direito dotada da ambição de racionalizar o processo de aplicação do direito, estabelecendo um diálogo que havia sido rompido por quase duzentos anos, desde o advento do positivismo descritivo de John Austin, passando por Kelsen e Hart, entre a teoria e a prática jurídica. a impressão que tenho é de que a principal preo-cupação da filosofia do direito de Carlos Bernal é uma preocupação metodo-lógica – isto é: como utilizar a filosofia para encontrar e justificar respostas para os problemas enfrentados pelos aplicadores do direito? –, e não mais a velha preocupação ontológica que esteve presente no discurso teórico do positivismo descritivo, cuja pergunta central era apenas «o que é direito?». Por isso, a filosofia jurídica de Carlos Bernal é uma filosofia para juristas, e não apenas para um limitado ciclo de teóricos puramente analíticos que

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estabelecem um tipo de ciência jurídica que se cala diante dos problemas que mais atordoam os cultores do direito. nesse sentido, a obra de Carlos Bernal Pulido não opta pelo silêncio face às indagações práticas que diuturnamente são formuladas pelos juízes, advogados e demais operadores do direito.

Essa cisão entre «teoria» e «prática» esteve presente nas filosofias do direito positivistas (à exceção, talvez, do positivismo de Bentham e do posi-tivismo normativo que tem se desenvolvido nos últimos anos por autores como Jeremy Waldron e tom Campbell), e demarcou, ao longo de todo o século XX, a fronteira tradicional entre a teoria e a filosofia do direito. Como explicam Alexy e Dreier, a filosofia do direito tradicionalmente foi tida como a teoria do direito natural e/ou direito da razão, ou seja, como «teoria ética do direito justo ou correto», enquanto a teoria geral do direito era visualizada como uma «teoria geral do direito positivo».1 essa distinção explica o desin-teresse geral de muitos acadêmicos pela filosofia jurídica, que vem acompa-nhada de uma exaltação da teoria do direito. no entanto, como se percebe, tal distinção somente poderia ser mantida se a teoria jurídica fosse definida como «uma teoria geral do direito positivo, excluindo-se qualquer preocu-pação com o problema da justiça»,2 de modo que não deve ser acolhida não apenas porque pressupõe a tese central do positivismo – i.e., que não haveria relação entre o direito como ele é (direito positivo) e o direito como ele deve ser (direito ideal, racional ou natural) –, mas principalmente porque a teoria do direito resta privada de sua relevância normativa e de sua capacidade de racionalizar a prática de aplicação do direito. sob esta cisão entre «direito natural» (objeto da filosofia do direito) e «direito positivo» (objeto da teoria do direito), o direito é visto nesta ótica ou como uma metafísica ou como mera convenção: tertium non datur.

o projeto teórico de Carlos Bernal é romper com as amarras desse tipo de pensamento. ele se aproxima do pensamento de robert alexy, que ele conhece como poucos comentaristas no mundo. reconhece que em todo ato de criação e aplicação do direito está ilocucionariamente pressuposta uma pretensão de correção, e que ocorre uma contradição performativa – uma contradição entre o conteúdo de um ato de fala e as pressuposições implí-citas daquele que profere esse ato de fala – cada vez que essa pretensão de correção é negada. Coerentemente com alexy, Carlos Bernal tem ciência de que essa pretensão de correção torna o discurso jurídico um caso especial do discurso moral e estabelece para o jurista prático o dever de realizar duas coisas ao mesmo tempo: decidir de forma correta e decidir de acordo com o

1 Alexy, robert; dReieR, ralf, «the Concept of Jurisprudence», Ratio Juris, vol. 3, n. 1: 1-13, em p. 2, 1990.2 Idem, ibidem.

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direito positivo. Mesmo sabendo que em casos específicos pode haver colisão entre essas duas exigências, essa filosofia busca fornecer um instrumental teórico capaz de realizar ao máximo esses dois ideais contidos na pretensão de correção. numa palavra, busca racionalizar o direito em todos os seus momentos, e em especial no momento da justificação das suas decisões.

se tivermos de enquadrar os estudos que compõem esse volume em um «ramo» ou «setor» do conhecimento jurídico, teríamos de fazê-lo no campo de indagações das «teorias da argumentação jurídica». Mas diferen-temente das várias publicações que há a respeito das teorias da argumentação jurídica, ao invés de meramente criticar ou defender as teorias já existentes – entre as quais se destacam as de alexy, MacCormick e aarnio –, os ensaios aqui publicados buscam conduzir a pesquisa jurídica para um universo de problemas ainda não enfrentados por essas teorias. É o que se pode observar com toda clareza, por exemplo, no apêndice publicado com o título «a racio-nalidade da ponderação». um leitor atento da obra de alexy, e em especial dos seus estudos sobre a argumentação jusfundamental,3 verá que problemas tão importantes como o peso abstrato dos direitos fundamentais e uma série de indagações secundárias permanecem ainda sem qualquer tematização. o texto de Carlos Bernal, por outro lado, pretende ir adiante, isto é, pretende continuar caminhando em direção à institucionalização de novos standards ou regras de argumentação capazes de tornar mais racional o emprego da técnica da ponderação. no mesmo sentido, no seu ensaio sobre o princípio constitucional da igualdade, capítulo 9, Bernal estabelece 23 regras de argumentação que tornam mais objetiva, controlável e adequada a aplicação do vago ditame constitucional. essas 23 regras, embora não encerrem a questão, constituem um novo estágio de institucionalização da razão prática, por vindicarem no coração da prática jurídica uma série de novos critérios de correção para as decisões tomadas com fundamento na cláusula geral da igualdade.

o mesmo se poderia dizer sobre vários outros temas aqui estudados em profundidade, como a eficácia vinculante da jurisprudência constitucional, a aplicação do princípio da proporcionalidade no controle de constitucionali-dade da legislação penal etc.

Por essas e outras qualidades, creio que a obra de Carlos Bernal Pulido será muito bem recebida pela comunidade jurídica brasileira, porque ela se concentra nas teorias da argumentação jurídica, o braço mais prático da filo-sofia do direito, para dar ao jurista argumentos e elementos de justificação

3 Alexy, robert. epílogo a la teoría de los derechos fundamentales (trad. Carlos Bernal Pulido). Revista Española de Derecho Constitucional, ano 22, vol. 66: 13-64, 2000.

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das decisões que ele inevitavelmente tem de tomar com base no ordenamento jurídico.

É uma obra serena e madura que incorpora os conhecimentos dessas teorias e dá um grande passo adiante, com uma coragem, uma seriedade e um caráter prospectivo que hoje em dia nem sempre se encontram em uma obra de filosofia do direito. Carlos Bernal Pulido vê o direito como uma prática construtivista onde paulatinamente vão sendo sedimentadas e instituciona-lizadas razões para a ação, algo como a metáfora da chain novel descrita por ronald dworkin em sua obra O Império do Direito. nas páginas que se seguem foram construídas, sem dúvidas, valiosas diretivas para a aplicação, a justificação e o entendimento dos direitos fundamentais. Os juristas do nosso tempo precisam dessas diretivas para cumprir as exigências de justifi-cação que as constituições contemporâneas lhes impõem.

Belo Horizonte, novembro de 2012.

thoMAs dA RosA de bustAMAnte

Professor da Universidade Federal de Minas Gerais

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SumÁrIo

Prefácio ...................................................................................................... 13

introdução .................................................................................................. 19

PRiMeiRA PARte

a aPliCação dos direitos FundaMentais

Capítulo isobre a legitimidade da jurisdição constitucional e a objetividade no controle de constitucionalidade das leis ..................................................... 29

Capítulo iiracionalidade, proporcionalidade e razoabilidade no controle de constitucionalidade das leis ........................................................................ 59

Capítulo iii a ponderação como procedimento para interpretar os direitos fundamentais ............................................................................................. 91

Capítulo iVo princípio da proporcionalidade da legislação penal ............................... 109

Capítulo Vo precedente constitucional ....................................................................... 141

Capítulo Via força vinculante da jurisprudência ......................................................... 185

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Capítulo Viia Constituição conserva seu valor em um estado social imerso na globalização? .............................................................................................. 217

segundA PARte

direitos FundaMentais Gerais

Capítulo Viiio direito ao livre desenvolvimento da personalidade ................................ 231

Capítulo iX o princípio da igualdade na jurisprudência da Corte Constitucional ........ 239

Capítulo XFundamento, conceito e estrutura dos direitos sociais ............................... 267

Capítulo Xia globalização e os direitos fundamentais dos imigrantes ........................ 309

apêndice – a racionalidade da ponderação .............................................. 329

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INtroDução

em seu conhecido ensaio «american Jurisprudence through english eyes: the nightmare and the noble dream»,1 h. l. A. hARt advertia que a jurisprudência norte-americana sobre os direitos básicos tipificados nas emendas à Constituição havia posto em xeque o ideal acerca do que uma Corte deveria ser e acerca do que uma Corte deveria ou poderia fazer. a prolife-ração de sentenças que dotavam de conteúdos ideológicos cláusulas como as da igualdade, do devido processo legal ou da liberdade de expressão parecia situar a Corte suprema Federal em uma posição radicalmente contrária ao modelo de juiz idealizado por lord RAdCliffe, que o descrevia como «um erudito objetivo, imparcial e experiente que se limita a declarar o direito», e caracterizava a jurisprudência como algo que está muito longe de ser uma «aplicação imparcial de regras jurídicas preexistentes e determinadas para a solução de um caso concreto».2

de maneira muito acurada, hARt observava que esta circunstância havia suscitado duas reações contrapostas na doutrina: o pesadelo (the Nightmare) e o nobre sonho (the Noble Dream). do lado do pesadelo estavam aqueles que apregoavam o apogeu da concepção do juiz, ou seja, a impossibilidade de se seguir considerando-o como uma mera instância de aplicação do direito que pudesse se diferenciar com facilidade do legislador. Parecia que o juiz já não somente aplicava o direito preexistente, mas que também criava direito novo em suas sentenças. o juiz aparecia então mais como o titular de um poder independente que construía normas ad hoc para resolver os casos de sua competência, seja quando estes não estavam previstos pelo direito vigente ou

1 em Essays in Jurisprudence and Philosophy. oxford: oxford university Press, 1983: 123 e ss.2 Idem, ibidem, p. 125 e 126.

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quando estavam regulados de maneira equivocada. Proclamava-se a insufi-ciência da lógica como o único fator para descrever e regular a aplicação do direito, e se convidava a reconhecer abertamente que o intérprete em nenhum caso renunciava a introduzir suas concepções sobre a justiça e a política na aplicação das normas jurídicas. no mesmo sentido, se aconselhava a não impedir que o aplicador do direito o fizesse; pelo contrário, recomendava-se exigir que o juiz discutisse abertamente suas inclinações ideológicas e que as enquadrasse dentro de suas margens de discricionariedade.

À visão do pesadelo, encarnada pelo realismo jurídico norte-americano – liderado entre outros por holMes, MCdougAl e fRAnk – e reformulada mais recentemente de modo engenhoso pelo movimento dos Critical Legal Studies, contrapor-se-ia o idealismo do nobre sonho. esta concepção insistia em poder explicar e justificar a asserção de que o juiz deveria aplicar o direito preexistente e não criar um direito novo, inclusive quando parecesse que as regras que o compõem não pudessem determinar o sentido da decisão.3 este enfoque rechaçava contundentemente a ideia de que o intérprete decide e pode decidir os casos por meio do seu arbítrio – ou segundo sua vontade – quando a norma aplicável é indeterminada. Consequentemente, preconi-zava que a indeterminação compele o juiz a fazer uma interpretação geral dos princípios e valores que fundamentam o sistema jurídico, para derivar deles a solução apropriada para o caso. o juiz nunca deve dizer o que o direito deve ser, consoante sua ideologia, senão apenas o que o direito é, segundo uma interpretação geral da Constituição e da moralidade política que se institucionaliza por meio desta última. o pesadelo de um direito repleto de lacunas que se colmatam por meio do exercício da subjetividade judicial é substituído pelo sonho idílico de um direito pleno, aplicado por um intérprete que evita a política e lhe atribui objetividade com base no pano de fundo moral que subjaz à Constituição.

não resulta demasiadamente complexo traçar um paralelo entre esta percepção de hARt sobre a divisão que fragmentava a doutrina norte-ameri-cana e o contraponto entre as opiniões que a jurisprudência da Corte Cons-titucional sobre os direitos fundamentais suscitou. não obstante, sem fazer exagerações literárias ou se restringir a algum tipo de filigrana classificatória, pode-se afirmar que tanto o pesadelo como o nobre sonho conheceram, na Colômbia, uma variante pessimista e uma interpretação otimista.

a variante pessimista do pesadelo esteve representada por todos aqueles que deploraram o desmoronamento do formalismo legalista que permeava o sistema jurídico anterior à Constituição, no qual os direitos eram protegidos unicamente na medida em que a lei ou os atos administrativos os regulassem.

3 Idem, ibidem, p. 133 e ss.

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21introdução

estas vozes reacionárias explicitaram sua perplexidade ao advertir que a faculdade de aplicar as cláusulas indeterminadas que compõem o catálogo de direitos fundamentais atribui necessariamente à Corte Constitucional um autêntico poder para criar novas normas. as normas que se criam dentro das margens semânticas de ditas cláusulas, denominadas «sub-regras» pela jurisprudência colombiana e por parte da doutrina, não constituem uma emanação direta do conteúdo dos direitos fundamentais, mas uma criação original do juiz constitucional. além do mais, esses opositores à judicia-lização dos direitos fundamentais denunciaram também a impossibilidade de controlar esta criação judicial de normas – que, como consequência, permaneceria relegada ao arbítrio absoluto da Corte – e expressaram o seu descontentamento com o ativismo transformador com o qual se havia exer-cido esta competência.

a versão otimista do pesadelo coincide com a constatação de que a eficácia direta dos direitos fundamentais frente à lei e frente aos demais atos do estado e dos particulares outorga à Corte Constitucional uma compe-tência para criar direito, que em certas ocasiões se assemelha ao poder do Congresso. esta concepção assegura que o exercício desta competência ultrapassa em muito a imagem utópica de um juiz objetivo, que havia sido traçada pelo realismo ilustrado. Muito pelo contrário, convida a tomar cons-ciência do caráter complexo da interpretação constitucional, que outorga ao intérprete uma irredutível margem de discricionariedade, na qual têm lugar a sua ideologia e suas inclinações políticas, para não mencionar as emanações inconscientes de seu perfil psicológico e as demais manifestações subjetivas. sem embargo, o que mais singulariza esta versão otimista do pesadelo radica em sua complacência com o ativismo da Corte Constitucional, favorável à transformação do direito e do statu quo. nesta perspectiva, a margem de discricionariedade que a interpretação dos direitos fundamentais atribui à Corte aparece como uma estratégia legítima para mudanças sociais e como um mecanismo alternativo ao próprio estado constitucional para satisfazer as demandas relegadas pela ineficácia do poder legislativo e da administração. em um país como a Colômbia ou o Brasil, onde a estrutura tradicional do estado de direito não pôde satisfazer em índices aceitáveis às demandas de segurança dos cidadãos, de proteção à vida e às liberdades e à provisão do mínimo existencial, estaria justificado o ativismo da Corte Constitucional. A ineficácia do Congresso e do Executivo gera um vazio de poder, que desle-gitima o estado e põe em risco os direitos fundamentais que a Constituição garante. Já que a função da Corte consiste em velar pela integridade dos direitos fundamentais, seu papel deve se robustecer no cenário político e suprir o déficit dos poderes do Estado, cuja negligência conduz a um estado de coisas contrário ao prescrito pela Constituição.

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em terceiro lugar, aparece a interpretação otimista do nobre sonho. esta concepção diverge das anteriores no plano estrutural, porquanto considera que a aplicação dos direitos fundamentais não dá ao juiz uma margem de discricionariedade que revisa as magnitudes e produz as consequências que amedrontam os que padecem do pesadelo. em sentido contrário, considera-se que exercer a função de aplicar estes direitos propõe à Corte Constitucional o desafio de construir uma teoria material da Constituição, a partir da qual se possa determinar o sentido que deve ser atribuído às cláusulas dos direitos fundamentais em cada caso concreto. Para esta visão, a elaboração desta teoria parece uma empresa viável a todas as luzes. sua confecção implica uma mistura de três elementos que se situam ao alcance de todo bom juiz: uma reconstrução dos fundamentos políticos e morais da Constituição (os pilares do estado social e democrático de direito, enunciados no art. 1.º da Constituição), uma visão coerente e consistente do ordenamento jurídico e uma consciência límpida acerca das regras de racionalidade que todo processo argumentativo deve respeitar. a interpretação dos direitos funda-mentais que se leva a cabo desde a ótica ideológica dos valores encarnados na Constituição – coerentemente com o resto do ordenamento jurídico e sujeita ao respeito das regras de racionalidade da argumentação jurídica – não supõe o exercício de qualquer tipo de arbítrio judicial que desemboque em uma criação irrefreável de direito novo, mas a aplicação de seus conte-údos em sentido estrito. Finalmente, a estas considerações analíticas a versão otimista do nobre sonho adiciona a sua satisfação pelo fato de que a Corte Constitucional aplique o conteúdo dos direitos fundamentais com todos seus alcances e que, desde modo, aspire à transformação do statu quo. sua visão neste ponto concorda com o otimismo do pesadelo.

Finalmente, a versão pessimista do nobre sonho resulta de uma simbiose entre a concepção analítica sobre a interpretação dos direitos fundamentais, descrita no parágrafo anterior, e o temor que a aplicação destes direitos, com todas as suas implicações, possa por em perigo o sistema democrático. Essa alternativa final não rebate a convicção de que o apego aos valores constitucionais, além dos demais contidos na ordem jurídica e nas regras de racionalidade argumentativa, atribua segurança à interpretação dos direitos, mas por outro lado desconfia da correção de se fazer as normas que derivam destes três fatores prevalecerem sobre as decisões que o legislador e a admi-nistração adotem pelos procedimentos democráticos. teme-se que as deriva-ções provenientes da Constituição substituam os acordos entre os interesses sociais que se fundam na deliberação pública. Vaticina-se a petrificação da vida social, que seria governada por um tipo de microcosmo constitucional em que tudo estaria estabelecido de antemão e não poderia se decidir dia-a-dia por meio das deliberações entre os cidadãos e seus representantes.

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23introdução

o antagonismo entre estas quatro posturas deve sintetizar-se em um duplo dilema: no plano analítico, a disjuntiva entre a tese do pesadelo e do nobre sonho, e, no plano ideológico, a alternativa entre a convicção de que o ativismo da Corte Constitucional, como exercício de um poder discricionário ou como cumprimento estrito da função de aplicar os direitos fundamentais em todos os seus alcances, está justificado ou não está. Resulta muito pertinente reconhecer que entre estes dois dilemas existe uma conexão. a tese otimista será plausível na medida em que o seja a tese do nobre sonho. Paralelamente, o pesadelo parece conduzir ao pessimismo. Quanto mais argumentos forcem a concluir que o ativismo judicial está exigido pela aplicação dos direitos fundamentais, maior será a justificação de seu exercício por parte da juris-dição constitucional. de modo correlato, quanto mais pareça que o ativismo judicial é discricionário, tanto mais desaparecerá sua razão de ser.

Esta relação direta entre a perspectiva analítica e a justificação ideoló-gica do ativismo atribui àquela o valor predominante que se encontrará nos escritos sobre a aplicação dos direitos fundamentais que o leitor tem em suas mãos. Para nós, sem embargo, não resulta de todo evidente que o pesadelo e o nobre sonho esgotem todas as possibilidades do horizonte analítico (como hARt tampouco acreditava). entre o objetivismo e o subjetivismo interpre-tativo de matiz mais radical existe uma interessante variedade de pontos intermediários entre os quais talvez se encontre o equilíbrio adequado.

Pois bem, os escritos que compõem este livro versam sobre esta proble-mática. trata-se de um conjunto articulado de textos sobre o direito dos direitos, sobre a forma como a Corte Constitucional determina o conteúdo dos direitos fundamentais. A pergunta que constitui o fio condutor que os une é de que maneira e até que ponto pode-se considerar objetiva ou racional a aplicação dos direitos fundamentais levada a cabo pela Corte Constitucional.

Para responder a esta questão, a estrutura deste livro está composta de duas partes, divididas por sua vez em um total de doze capítulos. a primeira parte trata dos critérios para aplicar os direitos fundamentais. esta parte começa com um escrito sobre a objetividade no controle de constitucionali-dade das leis, em que se tenta precisar até que ponto pode ser objetiva a inter-pretação dos direitos fundamentais e das demais normas da Constituição no controle de constitucionalidade das leis. a tese que ali se defende é que neste tipo de controle opera uma espécie de objetividade em sentido frágil, que se denomina racionalidade e cuja satisfação está determinada pela observância das regras da argumentação jurídica. em seu turno, no capítulo segundo se define em que consiste dita racionalidade e se diferencia de outros conceitos que aparecem frequentemente na jurisprudência e na doutrina relativas aos direitos fundamentais: as noções de razoabilidade e proporcionalidade. Por

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sua vez, os capítulos terceiro e quarto aprofundam na terceira destas questões, que se refere ao princípio da proporcionalidade. deste modo, enquanto o capítulo terceiro faz uma análise mais aprofundada do terceiro dos subprincí-pios que o compõem – o princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou ponderação –, no capítulo quarto se especifica como deve ser a aplicação do princípio da proporcionalidade em sentido amplo para o estudo da constitu-cionalidade da legislação penal. Esta especificação, hoje mais do que nunca, tem relevância institucional na Colômbia, pois a submissão do direito penal ao princípio da proporcionalidade – não apenas na sua etapa legislativa, como sobretudo no nível judicial – é um dos bastões sobre os quais descansa o novo sistema de processo penal de corte acusatório.

Pois bem, a primeira parte culmina com três escritos sobre dois temas capitais para a aplicação e a concepção que temos hoje dos direitos funda-mentais. os capítulos quinto e sexto se referem ao aspecto mais importante relativo às fontes dos direitos fundamentais na ordem jurídica colombiana, ou seja, ao valor de fonte do direito, ou dito de outra maneira, à força vinculante ou ao caráter de «precedente» da jurisprudência em geral e da jurisprudência constitucional em particular. Já não é segredo que o direito dos direitos é antes de tudo um direito jurisprudencial, que resulta da concretização de cláusulas muito indeterminadas que estabelecem direitos fundamentais, levada a cabo pela Corte Constitucional. se isto é assim, deve-se resolver a questão de como este direito de corte jurisprudencial se encaixa em um ordenamento jurídico de origem romano-germânica, no qual a lei tem sido a fonte do direito por excelência. Por sua vez, a necessidade de resolver este problema se faz ainda mais premente quando se constata que a jurisprudência, sobretudo a da Corte Constitucional, é cada dia mais importante na prática argumentativa judicial em geral, e que isto parece incompatível com a imagem da jurisprudência como um critério auxiliar de decisão.

Finalmente, a primeira parte culmina com um escrito que parece cami-nhar na contra-mão dos ensaios anteriores. no texto «Conserva seu valor a Constituição em um estado social de direito imerso na globalização?» se estuda um problema global interessante, que parece contrastar com o que ocorre na prática jurídica colombiana. enquanto na Colômbia experimen-tamos hoje em dia uma sobrecarga do sistema constitucional, onde um grande número de aspirações políticas se baseia no que se pode derivar interpretativa e jurisprudencialmente da Constituição e dos direitos funda-mentais, em outros lugares do globo, especialmente na europa, a vida se desconstitucionaliza, isto é, a Constituição perde relevância enquanto fonte de decisões cotidianas e, pelo contrário, a política parece recobrar o papel que o estado constitucional havia atribuído à dogmática dos direitos funda-mentais. a Constituição, como assinala dieteR gRiMM, parece ter um futuro

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25introdução

incerto num mundo em que a economia e o capital governam a tudo, onde a globalização suprime a importância dos poderes constituintes e constituídos dentro do estado e onde as demandas cidadãs consistem principalmente em bens que o mercado é chamado a prover.

a segunda parte deste livro contém um estudo sobre vários direitos fundamentais gerais. O fio condutor da análise segue sendo o exame da maneira como a Corte Constitucional aplica os direitos fundamentais. sem embargo, nesta parte o exame se concretiza na maneira particular em que a Corte aplica o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, o direito à igualdade e os direitos sociais. Finalmente, e da mesma forma que termina a primeira parte, a segunda parte se encerra com um ensaio dedicado a um dos temas mais representativos de todos os que atinem à aplicação dos direitos fundamentais em uma sociedade globalizada: o problema dos direitos funda-mentais dos imigrantes.

Como o leitor já pôde perceber, este livro, nos diversos textos que o compõem, e que podem ser lidos também de forma independente, privilegia o ponto de vista analítico.4 o rigor que esta perspectiva impõe ao tratamento dos problemas implica uma renúncia a tratar explicitamente de múltiplos aspectos ideológicos, fáticos e políticos relativos à aplicação dos direitos fundamentais. somos conscientes de que a separação entre a perspectiva analítica e os pontos de vista ideológico e empírico é artificial; de que também o analítico tem um fundamento e um componente ideológico e empírico insuperável. sem embargo, este vínculo não impede privilegiar uma ou outra perspectiva, para se concentrar no que resulte relevante em cada uma delas. neste caso, como em tantos outros, a divisão resulta mais esclarecedora do que uma visão holista. Já aconselhava desCARtes como método de trabalho: «diviser chacune des diffilcultés que j’examinerais en autant de parcelles qu’il se pourrait, et qu’il serait requis pour le mieux résoudre»5 ou, em uma tradução livre, «dividir os problemas a examinar em tantos aspectos como

4 É sabido que, no marco das ciências sociais, todo estudo pode se propor três tipos de problemas: empíricos, analíticos e normativos. os problemas empíricos se referem a assuntos relativos ao estado de coisas existente em determinado tempo e lugar, e, portanto, para enfrentá-los é preciso indagar sobre a realidade, especialmente por meio dos métodos quantitativos e qualitativos da sociologia e das demais estratégias de conhecimento das ciências naturais e físicas. Por sua parte, os problemas analíticos, ou estruturais, como também costumam ser chamados, aludem aos conceitos e a suas relações. o enfoque analítico, que se ocupa deste tipo de problemas, tenta dotar o conteúdo e a estrutura dos conceitos que compõem uma certa área do conhecimento da máxima clareza, da máxima coerência e da máxima consistência. Finalmente, os problemas normativos se submergem no plano deontológico, teleológico e ideológico, e desta perspectiva estabelecem o que é bom, correto ou justo, para fazer disso o objetivo das ações individuais e coletivas. 5 R. desCARtes. Discours de la méthode. Paris: Booking international, 1995: 33.

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seja possível é necessário para sua melhor solução». somente a análise de como se concretiza o direito dos direitos, separadamente da discussão ideo-lógica ou do debate filosófico relativo a se os direitos fundamentais estão justificados ou não, ou do debate sociológico que gira em torno da pergunta de se os direitos são eficazes ou não, permitirá levá-los a sério como limites normativos ao exercício do poder e possibilitará reconhecer em que medida a jurisprudência representa uma aplicação rigorosa da Constituição e em que ponto começa a transfigurar-se como política camuflada, no espaço retórico que a abertura estrutural dos direitos fundamentais torna possível.

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Primeira Parte

A AplicAção

dos direitos fundAmentAis

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Capítulo I

sobre A legitimidAde dA jurisdição constitucionAl e A

objetividAde no controle de constitucionAlidAde dAs leis 1

Sumário: Introdução – I. o debate sobre a legitimidade da jurisdição constitucional – II. a discussão sobre os limites funcionais da jurisdição constitucional: a. um controle de constitucionalidade restrito à vigilância dos procedimentos democráticos; B. o problema de delimitar um controle mate-rial da constitucionalidade das leis; C. a delimitação funcional da jurisdição constitucional na doutrina espanhola – III. uma hipótese de solução: a teoria da argumentação jurídica no controle de constitucionalidade das leis – Bibliografia.

Introdução

o controle de constitucionalidade das leis é a competência que tem a Corte Constitucional para estabelecer se uma determinada lei é compatível ou não com a Constituição. trata-se de uma garantia da Constituição, mas, sobretudo dos direitos fundamentais. É um mecanismo contra-majoritário que pretende impedir que as liberdades dos indivíduos, e, sobretudo das minorias, fiquem ao arbítrio da orientação política dominante no momento.

1 uma versão preliminar deste capítulo foi publicada na Revista de Derecho del Estado, n. 7, 1999: 121 e ss.

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na Colômbia, o controle de constitucionalidade é exercido pelos meca-nismos processuais tipificados no art. 241 da Constituição Política (CP) e pelo controle incidental de inconstitucionalidade previsto no art. 4.º, item 1.2

o controle de constitucionalidade das leis foi a pedra angular do chamado modelo europeu de jurisdição constitucional, desde que foi imaginado por Hans KelSen e instaurado pela primeira vez na Constituição austríaca de 1920. Hoje em dia, ainda conserva sua importância no velho continente, apesar de as cortes constitucionais dedicarem os seus maiores esforços para resolver recursos de amparo, nos quais se discute, em princípio, acerca da constitucionalidade das sentenças dos juízes ou dos atos da administração. o controle de constitucionalidade das leis, sem embargo, é ainda uma peça essencial dos sistemas constitucionais europeus, sobretudo porque em quase todos eles o legislador conserva o privilégio de desenvolver, configurar e restringir os direitos fundamentais. a regulação dos direitos é por natureza matéria de lei. a garantia efetiva dos direitos fundamentais exige, portanto, um controle constitucional sobre a legislação que os configura, os articula e concretiza as disposições constitucionais abertas e vagas, transformando-as em mandatos, proibições, permissões ou habilitações determinadas.

desde sua criação, o controle de constitucionalidade despertou na Europa vivas discussões, que trataram de dar resposta a interessantes problemas teóricos. Cabe mencionar, entre elas, a controvérsia sobre a legi-timidade da justiça constitucional (i), sucedida posteriormente pelos intentos de demarcar os limites funcionais do controle de constitucionalidade das leis (ii). O estudo sobre este último problema desembocou por sua vez na discussão sobre a interpretação da Constituição, âmbito no qual as teorias da argumentação jurídica desempenham hoje em dia um papel de protagonista (iii).

Entre nós, a criação da Corte Constitucional pela Constituição de 1991, e seus primeiros anos de funcionamento, dão lugar também ao enfrentamento destes problemas, que se debateram no seio da doutrina norte-americana e de alguns dos países europeus. Eles estão referidos, sobretudo, à questão de como é possível compatibilizar o funcionamento da jurisdição constitucional com um dos corolários mais importantes do princípio democrático: o de que o Parlamento é o órgão competente para configurar a vida política da sociedade. por esta razão, parece conveniente revisar as diversas etapas pelas quais passou o intento de articular estes dois elementos do sistema constitu-cional e de resolver as suas mais fortes tensões.

2 Sobre os mecanismos de exercício do controle de constitucionalidade das leis na Colômbia, cfr. J. tobo Gutiérrez. La Corte Constitucional y el control de constitucionalidad en Colombia, 2. ed., Bogotá: Ediciones Jurídicas Gustavo Ibáñez, 1999: 161 e ss.

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I. o dEBatE SoBrE a lEGItImIdadE da JurISdIção ConStItuCIonal

É bem conhecido o debate que, nos tempos da República de Weimer, protagonizaram Hans KelSen e Carl Schmitt acerca da legitimidade da justiça constitucional.3 a contundente investida de Schmitt pôs em xeque o caráter jurisdicional do tribunal Constitucional e acusou a instituição idealizada por KelSen de socavar o dogma da divisão dos poderes públicos e de fazer da política um assunto da justiça. nesse sentido, o autor alemão pressentiu que a jurisdição constitucional levaria inexoravelmente ao governo dos juízes, e – nas conhecidas palavras de Guizot – à judicialização da política e à poli-tização da justiça, com a qual a justiça tinha tudo a perder e a política não tinha nada a ganhar.

Schmitt identificava o exercício da jurisdição com a tarefa de subsumir certos fatos em hipóteses normativas previamente estabelecidas pelo legis-lador. dentro desse conceito estrito não se podia enquadrar, portanto, a ativi-dade de verificar a compatibilidade entre a lei e a Constituição. Neste caso, somente há uma comparação entre normas, e não uma aplicação judicial do direito a um caso concreto; unicamente se comprova a harmonia ou a colisão entre as disposições, com o qual se invalida ou não a lei, mas não se subsume nada. por esta razão, este autor considerava impensável «falar de uma juris-dição da lei formulada na Constituição sobre a lei ordinária».4

Esses reparos à natureza jurisdicional dos tribunais constitucionais, sustentava Schmitt, tornam-se mais patentes quando se tem em conta que sua atividade consiste em contrastar as leis com as disposições da Constituição, sobre cuja interpretação em geral pesam dúvidas e divergências de opinião. por esta razão, quase nunca resulta evidente estabelecer se o enunciado legislativo que controla a Corte Constitucional viola os preceitos constitucio-nais. Esta classe de problemas jurídicos não pode ser solucionada por meio de processos lógicos de subsunção. pelo contrário, é necessário contornar diferenças de opinião, reduzir imprecisões, e isto somente pode ser obtido mediante uma decisão com caráter autoritativo.5 Schmitt concede que em

3 Cfr. C. Schmitt. La defensa de la Constitución, madrid: tecnos, 1983; h. KelSen. ¿Quién debe ser el defensor de la Constitución?, madrid: tecnos, 1995. uma interessante crítica desta polêmica pode encontrar-se em n. zanon. «la polemique entre Hans Kelsen et Carl Schmitt sur la justice constitutionnelle», Annuaire Internationale de Justice Constitutionnelle, vol. v, 1989: 177 e ss. no mesmo sentido, vale citar o excelente artigo de P. P. Portinaro. «dal custode della costituzione alla costituzione dei custodi», em Democrazia, diritti, costituzione. I fondamemnti costituzionali delle democrazie contemporanee, G. Gozzi (coord.), Bologna: Il Mulino, 1997: 401 a 436.4 Schmitt. La defensa de la Constitución, cit., p. 87.5 Idem, ibidem, p. 89 e ss.

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todo esse processo de aplicação do direito há um elemento de decisão deste caráter; que o trabalho das cortes consiste sobretudo em suprimir dúvidas com sua autoridade, e não em tornar patente a razão jurídica que deve prevalecer em cada caso, em fixar uma solução até então furtiva da ordem jurídica. o valor de cada sentença, dizia, «não radica em uma argumentação superadora, mas na eliminação autoritária da dúvida». Não obstante, para o jurista alemão não era coerente com a Constituição de Weimar atribuir a uma Corte a competência de decidir acerca da interpretação de suas disposições, pois elas eram quase sempre apenas fórmulas por compromissos dilatórios, acordos apócrifos firmados pelos constituintes, que deveriam ser concreti-zados por um «legislador constitucional em funções de alta política».6

Hans KelSen refutou com vigor os embates de Schmitt contra a juris-dição constitucional. Insistiu que atribuir ao parlamento ou ao governo a vigilância da constitucionalidade de seus próprios atos seria uma inge-nuidade política,7 que ademais desprestigiaria o princípio segundo o qual ninguém pode ser juiz em causa própria. nesse sentido, criticou a proposta de confiar ao Presidente do Reich o controle de constitucionalidade das leis. Para tal fim, dirigiu um vigoroso ataque contra a teoria de conStant sobre o poder neutral do monarca, que lhe servia de sustento. mas, acima de tudo, KelSen reivindicou a natureza jurisdicional da Corte Constitucional. objetou à contraposição entre a função jurisdicional e as funções políticas, na qual se sustentava a negação do caráter de jurisdição à função dos juízes cons-titucionais. para tal objetivo, valeu-se por uma parte da própria concepção decisionista da aplicação do direito defendida por Schmitt. «Se se encara a “política” como “decisão” – sustentou KelSen – ordenada à resolução dos conflitos de interesses (...), então está presente em toda sentença, em maior ou menor medida, um elemento de decisão, um elemento de exercício do poder».8

Com base nessa ideia de jurisdição, KelSen aduziu que a diferença entre a tintura política que reveste a aplicação da lei por qualquer tribunal e o exercício do controle de constitucionalidade das leis pela Corte Constitu-cional é só de índole quantitativa, e não de índole qualitativa. Sem dúvida alguma, o elemento de decisão presente em qualquer juízo ou valoração se manifesta com maior intensidade no controle de constitucionalidade das leis. não obstante, desta circunstância não se segue a negação do caráter jurisdi-cional da função que exerce a Corte Constitucional, assim como tampouco

6 Schmitt. La defensa de la Constitución, cit., p. 93.7 H. KelSen. «La garantía jurisdiccional de la Constitución (La justicia constitucional)», in id. Escritos sobre la democracia y el socialismo, madrid: debate, 1988: 129.8 KelSen. ¿Quién debe ser el defensor de la Constitución?, cit., p. 18.

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que o controle de constitucionalidade não possa ser atribuído a um órgão jurisdicional independente.9

por outra parte, KelSen tentou desmentir que enquanto a jurisdição ordinária se ocupa da aplicação da lei ao caso concreto mediante processos lógicos de subsunção, a constitucional se encarrega de dirimir controvérsias de opinião, ou de resolver dúvidas, atividades que para Schmitt são próprias de um legislador constitucional ao invés de um juiz. KelSen fez ver que todos os juízes enfrentam constantemente a necessidade de contornar debates jurí-dicos, não apenas atinentes a aspectos substanciais, mas também a problemas processuais. disso se deriva que não se pode negar o caráter jurisdicional da Corte Constitucional apenas com o argumento de que as disposições consti-tucionais que devem ser aplicadas têm um conteúdo duvidoso.

Este primeiro debate entre KelSen e Schmitt sobre a legitimidade da jurisdição constitucional foi dirimido pela história em favor do enraizamento e desenvolvimento da instituição controvertida. É bem sabido que a juris-dição constitucional se estendeu incessantemente durante o último século.10 Ela não apenas se generalizou na Europa, mas chegou a um sem-número de países do globo, entre os quais certamente se encontram quase todos os latino-americanos. Em razão de sua importante função de garantia da Constituição e das liberdades nela consagradas, a jurisdição constitucional é concebida como um elemento essencial de todo Estado democrático de direito. É certo que no meio deste processo a discussão acerca da sua legiti-midade permaneceu latente. a controvérsia veio se concentrando, sobretudo, no problema de verificar se o controle de constitucionalidade das leis supõe ou não um fundo de menosprezo à democracia representativa.11 Vale recordar neste ponto a intensa discussão que suscitou – e ainda suscita – nos Estados unidos o famoso argumento contra-majoritário, aduzido em face do judicial

9 KelSen. ¿Quién debe ser el defensor de la Constitución?, cit., p. 21.10 Sobre a difusão da jurisdição constitucional, ver l. PeGoraro. Lineamenti di giustizia costituzionale comparata, Torino: Giappichelli, 1998, em especial cap. 1.º: «I prototipi e la circolazione dei modelli di giustizia costituzionale», p. 11 a 66, e a bibliografia lá citada, ref. a uma vasta lista de países. 11 na doutrina norte-americana, ver a análise de m. J. Perry. The Constitution in the Courts. Law or Politics?, Oxford y New York: Oxford University Press, 1994: 16 y ss. Na Alemanha, J. habermaS. Facticidad y validez. Sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso, madrid: trotta, 1998: 315 e ss. na doutrina espanhola, v. FerrereS comella. Jurisdicción constitucional y democracia, madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, em especial cap. 1.º, p. 17 a 52; Também P. cruz villalón. «legiti-midade da justiça constitucional e princípio da maioria», em Legitimidade e legitimação da justiça constitucional. Coloquio no 10.º Aniversário do Tribunal Constitucional, Coimbra: Coimbra Editora, 1995: 85 e ss.

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review por a. bicKel.12 a questão, frequentemente debatida, é se resulta contraditório à democracia entregar o poder de interpretar a Constituição e de controlar as leis a um grupo de juízes que não são eleitos diretamente pelo povo.

Hoje em dia, não obstante, na maioria dos países esta discussão não se propõe em termos radicais. Já não se disputa sobre se deve-se abolir ou manter a jurisdição constitucional. melhor dizendo, se polemiza acerca da forma de seu exercício; discute-se como há de se desenvolver o controle de constitucionalidade das leis para tornar-se compatível com o funcionamento da democracia representativa. debate-se sobre os limites da competência dos tribunais constitucionais e sobre as fronteiras que demarcam o exercício adequado de suas atribuições e o separam das funções do legislador.

II. a dISCuSSão SoBrE oS lImItES funCIonaIS da JurISdIção ConStItuCIonal

a controvérsia sobre a delimitação de funções da jurisdição constitu-cional pressupõe a aceitação da existência da Corte Constitucional como instituição do Estado. nessa linha, supõe admitir a compatibilidade entre o constitucionalismo e a democracia, ou entre a proteção dos direitos funda-mentais e o funcionamento dos mecanismos da democracia representativa. noutros termos, quando se intenta traçar os limites funcionais da jurisdição constitucional se dá por assentado que é necessário compatibilizar duas magnitudes que às vezes tendem para direções contrapostas: de um lado, dá-se por assentado que a regulação da vida política da sociedade emana de procedimentos de deliberação que discorrem pelos canais das instituições representativas; e por outro lado, que dita regulação está submetida à Consti-tuição e aos direitos fundamentais, e que a Corte Constitucional pode realizar um controle tendente a verificar a efetiva observância dessa sujeição.

Alguns dos mais autorizados constitucionalistas, filósofos do direito e da política, coincidem em afirmar que as ideias democráticas e os princípios da supremacia da Constituição e do respeito aos direitos fundamentais por parte do parlamento e de todos os órgãos do Estado são compatíveis, e inclu-sive correlativamente necessários.13 Sem embargo, estas mesmas opiniões

12 a. bicKel. The Least Dangerous Branch: the Supreme Court at the Bar of Politics, Yale university press, 1962: 16 e 17. Sobre este tema, no mesmo sentido c. r. SunStein. «Consti-tutions and democracies: an Epilogue», em Constitutionalism and Democracy. Studies in Rationality and Social Change, J. elSter e r. SlaGStad (coords.). Cambridge, New York, new rodelle, melbourne, Sydney: Cambridge university press, 1988: 336.13 Um magnífico estudo sobre a compatibilidade entre os direitos fundamentais e a democracia pode ser encontrada ao largo do capítulo III, «reconstrucción interna del

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autorizadas se tornam divergentes na hora de estabelecer de que maneira se hão de articular estes elementos nas sociedades plurais do presente. a pergunta central do debate é até onde hão de chegar as Cortes constitucionais na tutela dos direitos fundamentais frente ao poder legislativo, de forma tal que a garantia dos direitos não se converta em um ardil para empobrecer a democracia representativa; em que momento a proteção dos direitos e da Constituição se transforma em usurpação das funções do legislador.

o empenho em dar resposta a este problema levou a doutrina a tratar de elaborar catálogos de pautas de conduta que os juízes constitucionais devem observar para cumprir sua tarefa de forma cabal, sem invadir os âmbitos de competência legislativa. ditos catálogos de pautas de comporta-mento judicial são variados e divergentes entre si, pois são o fiel reflexo das diversas concepções do Estado, da Constituição e do direito. Esta variedade de visões acerca das diretrizes que devem orientar a atividade dos juízes constitucionais suscitou interessantes polêmicas. a este respeito é bastante conhecida a controvérsia que se travou nos Estados unidos, entre os que propugnavam um controle de constitucionalidade das leis limitado a vigiar o correto funcionamento dos procedimentos democráticos (a) e os que, pelo contrário, defendem também um controle material da legislação (b). Convém fazer alusão, ainda que de forma sucinta, aos argumentos que foram expostos pelos defensores de cada uma dessas posturas. Em seguida, examinaremos as principais pautas de delimitação das funções da jurisdição constitucional que foram propaladas por alguns emblemáticos autores espanhóis (c). Todas estas posições são desde logo também pertinentes ao tratar de estabelecer

derecho: el sistema de los derechos», de habermaS. Facticidad y validez, cit., p. 147 e ss. Cfr., bem como habermaS, J. «anhang zu “faktizität und Geltung”. replik auf Beiträge zu einem Symposion der Cardozo law School», in: Idem. Die Einbeziehung des Anderen. Studien zur politischen Theorie, 2. ed., frankfurt: Suhrkamp, 1997: 378 e ss.; Idem. «Über den internen Zusammenhang von rechtsstaat und demokratie», em Zum Begriff der Verfassung. Die Ordnung des Politischen, K. PreuSS (dir.), Frankfurt: Fischer, 1994: 88 e ss.; J. rawlS. El liberalismo político, Barcelona: Grijalbo-mondadori, 1996: 326. acerca da discussão entre habermaS e rawlS sobre os diversos modos em que podem ser articulados os direitos fundamentais em uma democracia, ver J. habermaS e J. rawlS. Debate sobre el liberalismo político, Barcelona: Buenos aires; e méxico: paidos, 1998. Sobre o acordo entre J. habermaS e r. dworKin quanto à complementação entre os direitos fundamentais e o princípio democrático, J. habermaS, r. dworKin e K. Günther. «¿Impera el derecho sobre la política?», em La Política, n. 4, out. 1998: 7. Além disso, ver J. iSenSee. «Grundrechte und demokratie», em D. St, 1981: 166 e ss.; e. denninGer. «Il singolo e la legge universale», em Democrazia, cit., p. 88 e ss., e 94 e ss.; l. FerraJoli. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal, madrid: trotta, 1995, caps. vii y xiii; do mesmo autor. «El derecho como sistema de garantías», em Jueces para la democracia. Información y debate, ns. 16 e 17, 1992: 61 a 69; e.-w. böcKenFörde. «teoría e interpretación de los derechos fundamentales», in: Idem, Escritos sobre derechos fundamentales, Baden-Baden: nomos, 1993: 66 e ss.; S. holmeS. The Anatomy of Antiliberalism, 2. ed., Cambridge e london: Harvard university press, 1996: 226.

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o limite que separa o Congresso da Corte constitucional no nosso próprio sistema político.

A. um controle de constitucionalidade restrito à vigilância dos procedimentos democráticos

a doutrina exposta por J. H. ely na já clássica obra Democracy and Distrust constitui um paradigma da concepção que postula que o controle de constitucionalidade das leis deve se restringir a garantir o correto funciona-mento dos procedimentos democráticos de tomada de decisão. Essa postura entende a Constituição antes de tudo como um acervo de procedimentos propícios para a deliberação e o entendimento entre os cidadãos, do qual não podem ser derivadas, mediante raciocínios certeiros, soluções substanciais para os problemas jurídicos. Suas disposições têm em geral uma textura aberta. Elas expressam ideias controvertidas, que às vezes podem propiciar ao mesmo tempo respostas diversas para os problemas jurídicos. dessa circunstância se deriva que as cláusulas constitucionais não constituem um material normativo suficiente para determinar de maneira indubitável quando uma lei é ou não inconstitucional. É por esta razão que o intérprete da Constituição se vê obrigado a recorrer a outras fontes de conteúdos: o direito natural, as tradições jurídicas da sociedade ou seus valores da mesma, ou a um consenso, mais fictício do que real, entre os membros da comunidade. Sem embargo, essas outras fontes tampouco proporcionam uma resposta conclusiva para cada assunto constitucional. Em todas essas áreas impera um certo relativismo, do qual o Juiz pode derivar poucas conclusões seguras para suas sentenças. por esta razão, ElY sustenta que o Juiz constitucional não deve tentar valorar a constitucionalidade das decisões do legislador de uma perspectiva substancial. Pelo contrário, afirma este autor, «o judicial review deveria se ocupar primordialmente do desbloqueio das obstruções ao processo democrático».14

Contra a teoria de ely foram formuladas várias objeções. a primeira delas se volta contra os seus fundamentos, ao negar que as instituições – incluídas as norte-americanas – restrinjam a tarefa da jurisdição cons-titucional apenas à vigilância do correto funcionamento do procedimento

14 J. h. ely. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review, Cambridge (Mass.) e london: Harvard university press, 1980: 117; trad. esp. Democracia y desconfianza. Una teoría del control de constitucionalidad, Bogotá: universidad de los andes, 1997. uma exposição e comentário detalhados da teoria de ely pode ser encontrada em diversos trabalhos da literatura espanhola: e. alonSo García. La interpretación de la Constitución, madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1984: 328 e ss.; FerrereS comellaS. Justicia constitucional y democracia, cit., p. 53 e ss., e r. GarGarella. La justicia frente al gobierno. Sobre el carácter contramayoritario del poder judicial, Barcelona: Ariel, 1996: 148 e ss.

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democrático. Mas, além disso, observou-se que mesmo quando a única competência dos juízes constitucionais fosse o controle das formalidades da deliberação democrática, seu exercício também implicaria um controle de constitucionalidade das leis referido a aspectos materiais relacionados com os direitos. Isso ocorreria, por exemplo, quando fosse necessário declarar a inconstitucionalidade de alguma lei porque em sua tramitação se houvesse vulnerado o direito à igual participação de todos os interessados ou a liber-dade de expressão.15 nesses eventos, o Juiz constitucional deve enfrentar o problema de interpretar os direitos fundamentais, e a Constituição em geral, desde um ponto de vista material. nesses casos, a Corte não pode adotar sempre uma atitude passiva; não pode se limitar sempre a referendar as deci-sões adotadas pelo legislador. pelo contrário, deve discernir entre aqueles eventos onde deve declarar a inconstitucionalidade e aqueles nos quais não deve fazê-lo. para tal juízo de valor esta teoria do controle de constituciona-lidade não oferece nenhum instrumento de análise, nem qualquer diretriz ou guia de ação judicial.

apesar das críticas, esta perspectiva do controle de constitucionalidade teve uma importante ressonância nos últimos tempos. Neste sentido, convém destacar, por exemplo, que em facticidade e Validade habermaS se valeu de algumas das principais teses de ely para enunciar uma visão da jurisdição constitucional desde a perspectiva da teoria do discurso. a concepção do autor alemão parte de uma diferenciação, de certo modo surpreendente, entre a interpretação dos direitos fundamentais nos recursos de amparo16 (ou ações de tutela) e no controle abstrato de constitucionalidade das normas. Tais direitos, concebidos como princípios dotados de uma dupla dimensão – obje-tiva e subjetiva – hão de ser aplicados nestas duas classes de processos. Esta aplicação exige uma interpretação construtiva e criativa por parte da Corte Constitucional, que articule o sentido da vinculação objetiva aos deveres de abstenção que vinculam o Estado na faceta subjetiva. Segundo habermaS, a Corte pode levar a cabo uma interpretação semelhante para decidir os recursos de amparo, sem afetar a sua legitimidade nem por de lado o princípio

15 Sobre as críticas à teoria de ely na doutrina espanhola, cfr. FerrereS comellaS. Op. cit., p. 62 e ss.; alonSo García. Op. cit., p. 341 e ss.; F. J. díaz revorio. La Constitución como orden abierto, madrid: mcGraw-Hill, 1997: 181 e ss.16 [n.t.] o recurso de amparo é um mecanismo de proteção dos direitos fundamentais previsto no art. 53 da Constituição espanhola. É um recurso subsidiário que o interessado interpõe diretamente perante o tribunal Constitucional para a defesa de um direito fundamental. Quando comparado ao direito brasileiro, esse tipo de recurso se assemelha ao nosso controle incidental, mas deste se diferencia, entre outras razões, porque seu objeto é limitado à análise de uma violação a um grupo específico de direitos fundamentais. No caso da Espanha, por exemplo, o recurso de amparo constitucional protege os direitos e liberdades inscritos nos arts. 14 a 29 da Constituição.

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democrático. a sentença de amparo17 é somente um ato de aplicação jurídica, que tem lugar em meio a um discurso de aplicação do direito, segundo a terminologia cunhada por Klaus Günther.18 a Constituição oferece à alta Corte nestes casos uma única solução coerente e adequada, que esta somente deve apenas extrair e tornar evidente.19

Isso não acontece, porém, no controle abstrato das normas. a Cons-tituição, assinala habermaS, não pode ser entendida «como uma ordem jurídica global de tipo concreto que (impõe) a priori à sociedade uma deter-minada forma de vida». Ao contrário, ela «fixa os procedimentos políticos conforme aos quais os cidadãos, exercitando seu direito de autodeterminação, podem perseguir cooperativamente e com perspectivas de êxito o projeto de estabelecer formas de vida justas».20 Sob esse entendimento, o sentido do controle de constitucionalidade das leis é «submeter a exame os conteúdos das normas controvertidas em conexão, sobretudo com os pressupostos comunicativos e as condições procedimentais do processo democrático de produção de normas».21 a Corte Constitucional deve velar pela manutenção das condições que fazem possíveis, tanto no parlamento como na opinião pública, uma política deliberativa em condições de liberdade, na qual os poderes sociais não façam primar os seus interesses particulares sobre o inte-resse da generalidade. a função da Corte não é avaliar os resultados destes processos de deliberação e comunicação. talvez seja certo dizer que a espe-cial formação profissional dos juízes constitucionais dote seus juízos de um grau de racionalidade mais alto do que aquele que cabe esperar dos proce-dimentos legislativos, caracterizados pelas lutas de poder e de interesses. Contudo, esta circunstância não deve levar a uma substituição da discussão política pelas sentenças da jurisdição constitucional, pois os procedimentos políticos «estão limitados à fundamentação de normas e objetivos, e exigem

17 [n.t.] denomina-se sentença de amparo a sentença que dita o tribunal Constitucional espanhol para resolver os recursos de amparo que se submetem a seu conhecimento.18 Sobre a distinção de K. Günther entre discursos de fundamentação e discursos de aplicação de normas: Der Sinn für Angemessenheit. Anwendungsdiskurse in Moral und Recht, frankfurt: Suhrkamp, 1988: 309 e ss., e «Ein normative Begriff der Kohëherz für eine theorie der juristischen argumentation», Rechtstheorie, n. 20, 1989: 163 a 190. um comentário crítico acerca das implicações desta distinção se encontra em r. alexy. «Justification and application of norms», Ratio Iuris, vol. 6, n. 2, 1993: 157 a 170.19 habermaS. Facticidad y validez, cit., p. 334.20 Idem, ibidem, p. 336. resulta bastante paradoxal que habermaS sustente esta concepção da Constituição, e que ao mesmo tempo considere que o tribunal Constitucional pode derivar desta uma única solução coerente e adequada para os casos de recurso constitucional (amparo). 21 Idem, ibidem, p. 337.

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Carlos Bernal PulidoAdvogado da Universidade Externado de Co-lômbia, Doutor em Direito pela universidade de Salamanca, e Mestre e Doutor em Filosofia pela universidade da Flórida. Foi professor e conferencista convidado em universidades da Colômbia, Estados Unidos, Austrália, Alema-nha, Espanha, Reino Unido, Itália, Brasil, Mé-xico, Argentina, Peru, Equador, Nova Zelândia, Singapura e China. É autor de livros como El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales (Madrid: Centro de Estudios w

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Políticos y Constitucionales, 3. ed., 2007) e El neoconstitucionalismo y la norma-tividad del derecho (Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2009), e de artigos publicados em revistas de primeira categoria, como International Journal of Constitutional Law, Archiv für Rechts-und Sozialphilosophie, European Journal of Legal Studies, Rechtstheorie, Doxa, Isonomía, Discusiones e Revista de Direito do Estado.