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O discurso publicitrio: desvendando a seduo*Gilda Korff Dieguez

Palavras iniciais A publicidade , talvez, um dos discursos que mais fascina o olhar. gil e sedutora, ela atua na subjetividade de maneira contundente, sempre pronta para capturar quem a ela no consiga ficar alheio. A eficcia do discurso publicitrio reside, justamente, na combinao de elementos persuasivos. Permanentemente mutante, a publicidade adere ao contexto atravs de um processo de codificao que utiliza as referncias do momento. A presente anlise tem como proposta entender alguns dos mecanismos envolvidos na feitura/leitura da publicidade. Sem a pretenso de esgotamento do tema, que seria presuno fadada ao fracasso, dada a multiplicidade de caminhos e angulaes, sabemos, de antemo a tirar como verdade a afirmao de Baudrillard, de que todo o discurso interpretativo menos sedutor (1991: 62) tratar-se de apenas algumas consideraes a exigir uma anlise mais aprofundada. Em primeiro lugar, a anlise a ser formulada assume um carter crtico, dado o distanciamento de nosso olhar, destitudo de envolvimento com o processo da dita criao publicitria: um conceito que nos parece questionvel. Por isso mesmo, talvez os publicitrios encontrem, neste

Comum - Rio de Janeiro - v.12 - n 27 - p. 86 a 108 - julho / dezembro 2006 86 COMUM 27

texto, algum estranhamento, j que no operaremos com categorias familiares queles que a produzem. Naturalmente, o publicitrio ter um outro olhar, diverso do aqui proposto. Mas, por estar prximo e envolvido, nem sempre poder observar todas as possibilidades de anlise que este tipo de texto sugere. Exatamente por causa da eficcia do discurso publicitrio, os profissionais, a ele entregues, tendero a se revelarem incapazes de teorizar sobre as implicaes que ultrapassem o imediato da percepo. Quero crer, igualmente, que o conhecimento emprico, trazido pela experincia, pela prtica, no ser a nica via do conhecimento, nem sempre a melhor. Mas este campo de discusso filosfica no cabe neste breve texto, de modo que preferimos deix-lo ao julgamento do leitor. Em segundo lugar, para aquele que no esteja ligado diretamente publicidade (a grande maioria), o texto tambm poder provocar certo estranhamento, tendo-se em vista a natureza afetiva com o processo dirio de recepo, atravs da mdia, que vem a gerar certos obstculos na percepo do fenmeno. Neste caso, a ausncia de uma anlise crtica e a crena em algumas supostas verdades trabalhadas no senso comum (que senso, isto , tem uma lgica, capaz de propiciar a compreenso do objeto; mas que tambm comum, isto , sem muito suporte metodolgico e/ou sujeito a toda a sorte de desvios) terminam por criar algum grau de incmodo, j que a crtica tem por mrito quebrar os espelhos. E os espelhos so o campo de Narciso, de nossa identidade: romper com a identidade congelada sempre uma tarefa difcil e penosa. Por fim, bem sabemos que estamos lidando com a viga de sustentao do sistema capitalista. Isto quer dizer: o olhar ideologizado (a favor ou contra) estar sempre em jogo, seja no processo de feitura deste texto, seja na recepo que dele se faa. Mesmo assim, est assumido o risco, sem o que o conhecimento no se estabelece. Mas o que um texto publicitrio? Sobre o discurso mtico Diramos, inicialmente, tratar-se de um discurso mtico. Esta definio, no entanto, no nos auxilia muito, se no desdobrarmos os elementos nela implcitos. Ora, segundo o antroplogo Lvi-Strauss, o mito uma narrativa que une plos antagnicos. Em outras palavras, ele serve para compatibilizar as dicotomias. Devemos primeiramente entender que a nossa estrutura imaginria atua, na sua lgica formal, atravs de plos an-

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tagnicos: vida/morte, dia/noite, bem/mal, espao/tempo etc. Neste aspecto, por equvoco de raciocnio, trabalhamos com a excluso, ou com a alternativa, o que vem a gerar, no ser humano, um mal-estar. Deste modo, para pensarmos a vida temos de excluir a morte, o dia se ope noite, e assim por diante. Claro est que este processo reside em um equvoco de raciocnio, de uma lgica binria, porm o prprio sistema atua para reforar este tipo de lgica, de modo a promover certa angstia no ser humano que, sem muita vontade de trabalhar o processo de fratura do imaginrio, adere s narrativas ofertadas, mticas, que acalmam, pois apresentam uma soluo fcil e rpida. Assim, o mito brota da tentativa de estabelecer uma soluo (imaginria) para conflitos reais, ou seja, um discurso de equilbrio social, um discurso reparador que acalma a angstia humana. Neste sentido, a narrativa publicitria no diferente das outras narrativas mticas, unindo, igualmente, plos antagnicos e excludentes. O que est em jogo, no caso, a unio entre um objeto e uma idia que parecem ser, na verdade, incompatveis, mas passveis de soluo atravs de uma lgica narrativa, construindo de tal maneira a ligao que ela aparecer naturalizada, isto , sem problematizaes para quem a receba. A idia e o objeto Uma das questes fundamentais, para qualquer publicitrio, saber ler o contexto social: dele que so extradas as idias. Para tanto, no jogo de seduo, necessrio buscarem-se as carncias vigentes na sociedade, para, sobre elas, atuar, de modo a propiciar o investimento do olhar, por parte do receptor. Assim, se a sociedade est com carncias financeiras, o publicitrio dar nfase ao baixo custo do objeto, s vantagens por ele propiciadas, oferta promocional etc. Se h carncias sexuais, os objetos sero investidos de erotismo: at mesmo amortecedores de carro podero ter o balano da Marilyn (no caso, a marca Monroe). Se a questo da sociedade violncia, oferta-se segurana. E, assim, estabelece-se a ponte mtica entre a idia e o objeto. No mais, basta alguma astcia para construir a narrativa de ligao entre os dois plos. Mas o objeto apresenta-se como emprico, concreto, limitado, enquanto a idia abrangente, abstrata: so elementos, em princpio, incompatveis, passveis apenas de se juntarem no plano da narrativa construda. A grande eficcia do processo reside justamente na elaborao da travessia entre os dois elementos

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em jogo e tanto ser mais eficaz quanto mais opostos os elementos forem entre si, isto , quanto mais surpreendente for a juno. justamente esta ambigidade que faz aderir, satisfazendo. Portanto, a substncia do processo mtico est na sua histria, j que oferece um atalho mental. Sabe-se, plenamente, que a publicidade no cria nenhuma necessidade: ela apenas transfere o que existe para um objeto, vinculando os dois. Ela oferece respostas no sentido de que ela no cria a sede, mas vincula a noo de sede a uma Coca-cola, por exemplo, ou a uma cerveja. Assim, ela orienta o olhar para o objeto que procura salientar, criando uma necessidade derivada, uma soluo condicionada e atraente, por poupar esforos mentais do receptor. Para citar um exemplo contundente, a cala jeans: ela aparece, no texto publicitrio, como liberdade (liberdade uma cala jeans / azul e desbotada / que voc pode usar / do jeito que quiser /...) Ora, se bem observarmos, nada mais incompatvel com a cala jeans que a idia de liberdade: o tecido da cala lona de caminho (sendo agressivo ao corpo), o corte da cala justo (muitas vezes exigindo um esforo para vesti-la), o tecido quente para nosso clima. A questo se agrava ainda mais se reconhecermos que, pelas caractersticas descritas, o jeans se torna anti-higinico, visto que tende a ocultar (ou disfarar) a sujeira acumulada, facilitando seu uso prolongado. fato: o jeans lavado com bem menos freqncia que outras peas de distintos tecidos, sem contar que, do ponto de vista ideolgico, poder ser vista como um emblema do imperialismo norte-americano. Onde estaria, ento, a propalada liberdade? Alguns diro, com boa certeza, ser ela uma cala prtica, capaz de combinar com qualquer complemento ou situao. Esta naturalizao, portanto, est no olhar do consumidor, no no objeto. nossa nsia por liberdade que nos impele ao objeto, desproblematizando a relao. Claro, ainda atua sobre esta relao o fato de todos aderirem ao sistema da moda, vindo a gerar o valor de uma verdade, inquestionvel para a grande maioria e quem dela discordar, ser visto como estranho. Ante o exposto at aqui, uma ressalva: o mtico e o mito no se confundem. O mtico extrai elementos do mito para construir o evidente, prestando-se comunicao. Entendemos que esta diferena (embora assim no tenha sido nomeada) trazida por Roland Barthes, em sua obra Mitologias. Na verdade, o autor prope-se a falar do mito e, ao faz-lo, traz a emergncia do que poderemos nomear como mtico.

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Dir Barthes, na obra citada, que o mito no se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como a profere (1975: 131), permitindo, desse modo, que tudo possa nele se transformar. E acrescenta: o mito fala roubada, transmutando o sentido em forma. O que significaria uma afirmativa to categrica? Neste caso, uma das possibilidades de interpretao reside no fato de o mito produzir um seqestro de nossa fala (j que a ele nos sujeitamos), de modo a promover a nossa mais completa e ingnua aderncia/adeso: trata-se, pois, de uma falsa alternativa. Assim, no caso da cala jeans, o mito rouba a nossa possibilidade libertria (ou da busca pela liberdade), atrelando-nos a um produto que congelaria o projeto, como se a questo estivesse resolvida. At porque a liberdade no est nos objetos, mas na subjetividade1. Acrescentaramos, ainda, para fins de coerncia conceitual, entendermos que, ao definir o mito como fala roubada, Barthes nos fala no do mito, mas do mtico, j que ele aparece como um sistema segundo, derivado, passvel de ser analisado, como aponta o autor, luz da semiologia. Ou, como nos coloca Barthes, o mito matria significante, para o processo mtico, visto que ele se constri a partir de uma cadeia semiolgica que existe antes dele: um sistema semiolgico segundo (idem: 136). O mesmo Roland Barthes, na obra mencionada, nos d uma outra chave: o mito (leiamos mtico, na nossa compreenso) no resiste histria. Portanto, a memria (historicidade) capaz de desfazer a consubstanciao mtica. Assim, a ttulo de ilustrao, basta lembrarmos que o jeans nasceu nos EUA, atravs da pessoa de Levi Strauss (no o antroplogo, mas um emigrante europeu, biscateiro) que, comerciante de quinquilharias pelo Velho Oeste, tinha grande estoque de lona para vender. Passando por uma cidade de mineradores, teve ele a idia de fabricar macaces com a lona, j que os mineiros precisavam de roupa resistente para o trabalho. No incio, tudo no passou de mera experincia. Levi Strauss confeccionou duas ou trs peas reforadas com a lona que possua, deu-as aos mineradores e o sucesso foi imediato. Altamente resistentes, as peas no estragaram com facilidade. Devido ao sucesso do produto, o jeans passou a ser feito para trabalhadores ligados a funes mais rsticas (cowboys, por exemplo), vendendo cada vez mais. Veio a Segunda Guerra Mundial, devastando a Europa que, sem dinheiro e sem indstria, precisava, durante a reconstruo, de produtos um pouco mais durveis e baratos. Foi neste momento que o Governo americano incentivou a venda

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de calas jeans, num preo mais acessvel, de modo a penetrar no mercado europeu (uma estratgia econmica, poltica e ideolgica ao mesmo tempo). Como o americano havia libertado a Europa do terror nazista, o produto (cala jeans) recebeu, ideologicamente, o emblema da liberdade. A partir da, o mito se congelou e se naturalizou, de modo que, perdida a memria, passou a ganhar outros sentidos. Houve, ainda, um processo de sobredeterminao do objeto, j que o jeans passou a ser usado por atores de cinema (outros emblemas mticos) que traziam a marca da rebeldia e do processo libertrio, tais como James Dean e Marlon Brando, sendo associada ao conceito de juventude rebelde. O processo de sobredeterminao atravs do cinema, tambm um discurso altamente mtico, serviu para reforar a naturalidade do conceito de libertao. Por funo da sobrecarga de camadas e camadas de sentido, e da deformao imposta, a parcela originria da histria do jeans passa a ser amputada, desproblematizada, emblematizada pelos novos valores agregados. Distanciado o sentido, passa a dar a sensao de ter sido criado para mim, que sou jovem e rebelde. A maioria dos compradores da cala jeans desconhece a historicidade do produto e da idia: por isso mesmo, considera absolutamente natural a cala jeans ser libertria e, no encontrando muito um motivo para o fato, cria a sua lgica de considerar uma roupa eminentemente prtica o que tambm, convenhamos, no o , se pensarmos em termos de lavagem, de passar a ferro e tantos outros esforos exigidos para a sua manuteno; quanto praticidade do uso, isto j depende da moda, que, semiologicamente, outro campo de construo mtica. Das funes do mito publicitrio Neste sentido, poderemos entender a afirmao de Roland Barthes, quando diz que o mito uma fala despolitizada e que, numa certa medida, as suas qualidades so fabricadas. Reafirmando o terico francs, diremos que a funo da publicidade, enquanto discurso mtico, no negar aquilo a que serve: muito pelo contrrio, fala do consumo, inocentando-o. Portanto, o consumo no necessitar de uma explicao, de justificativas, tamanha a sua clareza: basta a constatao do sujeito, uma vez perdida a historicidade, para ficar tranqilo com a simplicidade do objeto, que se oferece to facilmente conquista. E, nesta hora, o sistema capita-

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lista prdigo na oferta: haver sempre um jeans (ou qualquer outro produto) ao alcance de qualquer gosto e gasto o que, ainda, permite a hierarquizao, intensificando os lucros (os rtulos e etiquetas cobrem este aspecto). O que ningum consegue (na hora da compra) lembrar o fato de, com ou sem strass, placas metlicas, cortes de bolso ou bordados, haver sempre o mesmo tecido: lona de caminho. Dentre as vrias funes do mito, pode-se salientar ser ele uma narrativa capaz de trabalhar um vazio existencial, promovido pela construo social do capitalismo. Assim, pretendemos afirmar que o sistema econmico/poltico/ideolgico se assenta (desde a Idade Mdia, quando comeou a ascenso da burguesia) no princpio da frustrao. Herbert Marcuse j escreveu uma exemplar obra (Eros e civilizao) em que pretende demonstrar o quanto a libido reprimida e frustrada canalizada para os interesses do capital, na forma do trabalho e do consumo. Portanto, quanto maior a nossa falncia existencial, tanto mais o sistema se refora, atravs da promessa vazia da compensao. Caberia, ento, afirmar que o sucesso de venda das calas jeans s faz atestar o quanto somos carentes de liberdade. Poderemos, permanentemente, fazer a leitura inversa, em torno das publicidades, para entendermos o que se passa na sociedade, sem medo de errar. Desta forma o mito acalma, fazendo crer ser possvel a aquisio de valores da existencialidade, tais como liberdade, sensualidade, erotismo, juventude, seduo, segurana etc. Quanto maior a carncia, maior a necessidade de produtos para compensar as perdas e os shopping centers ficam repletos de pessoas, em cruzamento incessante pelos corredores do controle panptico, em busca da promessa de felicidade, nas liquidaes promovidas pelas lojas. A promessa de felicidade Como diz Baudrillard com propriedade, todo o discurso sobre as necessidades assenta numa antropologia ingnua: a da propenso para a felicidade. (1995: 47) Ela se constitui, hoje em dia, numa referncia das mais importantes e num dos maiores critrios da propalada alienao ainda que no necessariamente poltica. O projeto da felicidade parece estar indissoluvelmente ligado s aspiraes burguesas: embora Louis Leon de Saint-Just a tenha proclamado na Assemblia Nacional francesa como uma nova idia na Europa (e, por

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ironia do destino, o autor tenha sido guilhotinado pouco tempo depois), emergncias j se faziam sentir, como na Constituio norte-americana (aqui, com conotaes polticas). Tratava-se de um novo imperativo de construo civilizatria, no sentido de instalao de um traado coletivo, distante das aspiraes individuais ou da instncia devida: propunha-se uma mudana da realidade, em termos palpveis. A histria s fez demonstrar que a frase de Saint-Just jamais se concretizou: ao contrrio, medida que os fatos se foram desencadeando, mais e mais a felicidade se ps como algo distante e inalcanvel. Nem por causa disso, porm, deixou de ser buscada. Criou-se com ela, pois, uma nova utopia, afastada do messianismo: tanto mais ser buscada, na medida do infortnio. Nesse contexto, a publicidade sempre possui um forte apelo de promessa, uma esperana de satisfao das necessidades. Despertando as iluses, ela colabora com as vigas de sustentao da ideologia capitalista no seu projeto de felicidade, como direito humano: se no plano da histria coletiva os caminhos se encontram fechados, ao menos no plano individual a chama da mudana se mantm acesa e o que melhor acessvel, a qualquer preo. O carter agressivo da mensagem, ainda que diludo sob a mscara da seduo, impele o receptor a aceitar a promessa contida no texto: ele, na verdade, satisfaz a esperana, mais que qualquer outra coisa, atia a promessa, tanto mais quanto mais imprecisa for a mensagem, de modo a propiciar adeso. Neste aspecto, ele sempre annimo, tanto da parte da fonte como do receptor. E este critrio o que o torna eficaz: serve a todos. E, mais ainda: a felicidade torna-se mensurvel, enquanto a necessidade se transforma em bem-estar. A temporalidade H uma outra questo, no entanto, que parece contemplar outra funo do mito: a perda da historicidade. Neste aspecto, parece ser paradoxal a afirmativa anteriormente formulada, uma vez que a narrao traz a memria. Sabemos que o ato de narrar pressupe um trabalho com a temporalidade. Assim, quanto mais afastados no tempo estamos, mais interessante se torna a histria contada. Walter Benjamin, da chamada Escola de Frankfurt, em belo trabalho sobre o narrador, vai salientar que o ato de narrar implica em trazer algo afastado no tempo e/ou espao para perto. A narrao, pois, pressupe algum que, tendo vivido pocas do passado, ou te-

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nha viajado por lugares distantes, traga a sua vivncia para o campo da linguagem, de modo a dividi-la com os outros. Quanto mais o narrador portador de uma memria, melhor ser a sua narrativa. E o leitor, por sua vez, incorporando a memria do narrador, poder experimentar outras situaes no vividas porm imaginadas e trabalhadas na sua subjetividade, vindo a adquirir uma ampliao da viso de mundo. Ora, como se explicar, ento, que a narrativa mtica apague a memria? Primeiramente, ela aparece pronta. Sua fala exemplar e sua narrativa se esgota no momento em que proferida: nada antes; quando muito, um efeito para depois, que a busca do objeto apresentado por parte do receptor enfeitiado. Fragmentrio e instantanesta, o texto publicitrio apenas evoca, agencia recortes da memria de cada um, sem uma construo seqencial. As evocaes que o texto provoca sero aquelas do senso comum (em geral, coletivas ou experimentadas por uma grande maioria, sem marcas pessoais). Com o tempo, a histria da subjetividade se apaga, ficando a experincia dos comerciais: promove-se um deslocamento. No sem razo, programas de TV sobre anncios publicitrios do passado tm boa audincia: para uma boa parcela, como se a histria de suas vidas estivesse passando pela tela. Por outro lado, o texto publicitrio no divide (no sentido de ofertar algo para ser partilhado): ao contrrio, ele comanda a viso de mundo para os valores em jogo, sem provocar, portanto, nenhuma reflexo. Por ser imperativo, condiciona e, ao condicionar, apaga a histria, transformandoa numa natureza. Assim, os valores vo sendo incorporados, acriticamente, dando a sensao de que as coisas sempre foram assim. Como no h memria, a crtica se esvai e o olhar, ingnuo, torna-se cativo. O contexto No podemos descontextualizar a publicidade: ao contrrio, ela sempre fortemente contextual, ela feita para o momento. Por vrios ngulos, poderemos pensar a questo deste momento. Inicialmente, faremos um recorte no sentido de pensarmos a sua solidariedade com o jornal. O jornalismo, que foi devorado pelo discurso publicitrio, mais um agente para instigar o olhar do receptor em favor dos produtos apresentados. A comear por matrias diretamente ligadas sugesto de certos produtos, ou reportagens que mencionem produtos:

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por exemplo, diante da violncia, toda a rede de objetos para proteo dos indivduos, tais como carros blindados, coletes prova de balas, vidros blindados, cursos de defesa pessoal, sistemas de vigilncia em prdios, cmeras, agncias de segurana e uma srie de outros produtos de uma lista interminvel. A reportagem, por si, j desperta o olhar para um desses produtos, sendo do maior interesse a divulgao das empresas neste tipo de reportagem. Mas o contrato econmico no acaba por a. Ao vincularem notcias negativas em larga escala, os jornais propiciam a busca da publicidade. Basta que se abra uma pgina do jornal impresso ou que se veja o noticirio na TV para se ter a dimenso do mal: crimes, corrupo, fraudes, inoperncia, roubos, aumento do custo de vida, desemprego, acidentes, derrota do time, inadimplncia, guerras, atentados, assassinatos, violncia, assaltos, prostituio, pedofilia e muito mais, tudo remete ao conceito de um mundo fracassado, fragilizando a auto-estima do indivduo. No caso da TV, aps sucesso de notcias negativas, em que o receptor j est com a guarda em baixa, atordoado com a cena fantasmtica, aparecem os intervalos comerciais que apelam para a fantasia. fcil perceber que a estrutura imaginria do receptor o leve a ver com bons olhos a cena fantasiosa, para compensar as fraturas da realidade. Assim, oscilando entre cenas fantasmticas e cenas fantasiosas, ele vai paulatinamente buscando a fuga da realidade. A questo torna-se ainda mais contundente a partir das imagens, que so a parte mais importante do processo: sempre glamourosas, sedutoras, elas apresentam tudo que as pessoas gostariam de possuir, mas no tm: mulheres lindssimas, homens hercleos, casas bem arrumadas, filhos exemplares: a vida, enfim, maravilhosa. Mas a idia mesmo essa: juntar opostos. Se, no caso do jeans, como exemplificamos, a opresso se vincula liberdade, aqui o fantasma passa a se amalgamar fantasia (o negativo se transformando em positivo) e de tal modo que a fantasia passa a ser uma necessidade. Com isso, o desejo dana beira do abismo, tendo como tbua de salvao apenas objetos que so ofertados, pela lgica do mnimo denominador comum, que a lgica do menor esforo: quem, na verdade, diante das fortes emoes, ir estabelecer uma reflexo e ponderar sobre o processo de manipulao da estrutura desejante? Do pavor ao encantamento transcorrem apenas alguns minutos.

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A criao Entendemos que a publicidade no cria, sendo este atributo especfico da arte. Primeiramente, ela no gera o novo, aquilo que, atravs dos tempos (a transtemporalidade, prpria da arte), permanea sempre em estado de abertura, permitindo novas interpretaes. A publicidade atua sobre a novidade, algo efmero e passageiro, que seduz, mas no se sustenta no tempo. Lembremos que ela sempre contextual, o que inviabiliza qualquer projeto de manuteno de sua eficcia discursiva. Com o tempo, o seu discurso fica fora da moda. Alm disso, no se interpreta um texto publicitrio salvo algumas tentativas, como esta, de cunho terico, que no cabem dentro da voracidade efervescente da mundaneidade em que ele (o texto publicitrio) se insere. Quando muito, adere-se a ele, por efeito de alguma seduo. Se pensarmos no carter de vanguarda das artes (embora, no presente momento, este trao esteja um tanto retrado, sem, contudo, podermos afirmar que o projeto de futuro tenha sido descartado), ento no haver possibilidade de emprego da palavra criao, j que o publicitrio no poder transgredir muito, sob pena de no ser compreendido pelas maiorias. Uma coisa Picasso, enquanto tela; outra coisa, bem distinta, a incorporao do cubismo para deformar a imagem do menino Bom Bril, quando veio a exposio do famoso pintor ao Brasil2. At porque, para a maioria e j transcorridas inmeras dcadas Picasso se mantm como enigma, indecifrvel. No entanto, a utilizao da imagem lembrando as pinturas de Picasso (mas sendo reconhecvel a figura do menino Bom Bril) , no mnimo, interessante como novidade. Mas no h, propriamente, criao; h, sempre, um aproveitamento, um deslocamento de algo que j circula pela sociedade e que passa a ganhar um sentido imputado. Narrativa Geralmente, o texto publicitrio conciso, seja em termos de signos verbais, seja na economia do tempo/espao de veiculao. Assim, por ser condensado, o texto publicitrio se apresenta como uma narrativa lacunosa (repleta de vazios), de modo a que o receptor venha a projetar a sua memria/experincia sobre aquilo que narrado, produzindo, com isso, identidade: a sua identidade, de receptor, que ajudou a preencher os vazi-

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os. Um texto publicitrio, neste aspecto, nunca neutro: ele sempre envolve o pblico num trabalho de interatividade (para usarmos a palavra da moda), geradora de empatia. Naturalmente, esta memria agenciada apela para os fatos do cotidiano, de modo a facilitar o espelhamento. Assim, quanto mais familiar ele possa parecer aos olhos do receptor, tanto mais fortemente apelativo ele se torna. No sem razo, os temas sero sempre recorrentes (vida em famlia, conquista amorosa, esporte etc.), em situaes identificveis. Com isso, a publicidade se vai sutilmente infiltrando no imaginrio do receptor e de tal modo que ele incorporar os valores como seus. Igualmente, no sem razo que os publicitrios costumam argumentar que eles no impelem ningum a fazer nada: eles simplesmente trabalham com o que j existe. Por esta razo, sempre lembraremos de comerciais, de campanhas que mais provocaram a nossa cumplicidade. Sob esse ngulo, eles se tornam familiares, como que referncias de nossa vivncia. Sem dvida, se tomarmos qualquer amostra para anlise, veremos como o fragmento narrativo envolvente. Talvez, o exemplo mais marcante, em toda a histria da publicidade, tenha sido o da Bom Bril, que ficou mais de 20 anos na mesma linha de atuao (25 anos, precisamente), sendo merecedor, inclusive, de destaque pelo recorde. No incio apresentou-se a personagem, caracterizada por um rapaz tmido, que foi colocado por acaso para fazer o anncio, j que o titular no havia aparecido. Na ocasio, as mulheres comeavam a ingressar fortemente no mercado de trabalho; afirmavam uma atitude mais agressiva (menos passiva) no contexto social: a figura de um homem tmido, assim, favorecia a aceitao e, ainda por cima, desenvolvia as provocaes maternais. Com o tempo, a personagem foi ficando mais desembaraada (na medida, mesmo, da familiarizao com o pblico), at que, numa certa data, apareceu para anunciar que estaria saindo da campanha, pois o titular voltara. Neste momento, a empresa anunciante recebeu milhares de cartas, solicitando a sua permanncia. Portanto, ele j fazia parte da histria de cada um e a narrativa estava construda. No mais, a campanha passou a ajustar a figura da personagem aos momentos vivenciados pela sociedade. Para tanto, outras personagens da mdia contriburam no processo de atualizao: Tiazinha, Feiticeira, Fernando Henrique Cardoso e sua mulher, Ronaldinho, a premiao do Oscar, msica sertaneja e tudo mais: para cada momento, uma nova possibilidade de reciclagem da figura.

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Esta narratividade foi, sem dvida, construda atravs de pequenos fragmentos, agenciando a memria de cada receptor que, por sua vez, preenchia os vazios. Apenas a ttulo de exemplificao, a apario do ator Carlos Moreno, na figura do menino Bom Bril, vinha do nada, isto , surgiu de uma hora para outra, como todo lanamento. Mas sua presena e o fragmento de narrativa que apresentava, por seu turno, agenciavam uma srie de informaes do pblico: quantos, por exemplo, j no se viram em atividades deslocadas de suas funes, no trabalho? E quantos no se subordinaram ao modelo imposto para no perderem o emprego? E quantos no sentiriam timidez, diante de uma situao dessas (se fosse real)? Assim, o processo vai sendo paulatinamente trazido para o princpio da realidade, neutralizando-se as fronteiras entre a fico e a vivncia de cada um. Deste modo, o menino Bom Bril tornou-se mais real que muitas imagens de guerra, por exemplo, que, por no fazerem parte de nossa realidade imediata, parecem ficcionais aos olhos da maioria. Slogan Na verdade, quem constri o texto o receptor, j que os signos se apresentam dispersos, precisando da construo de um sentido. H, no entanto, um elemento fundamental: o slogan, capaz de concentrar toda a fora da campanha. Palavra de origem indgena, slogan significa, literalmente, grito de guer3 ra . Um bom slogan, tecnicamente falando, como se sabe, no pode conter menos de trs, nem mais que cinco palavras. O que ningum salienta, nos manuais da publicidade, que esses slogans no significam nada. A rigor, so da mais absoluta obviedade, cabendo a parcela de concesso de sentido ao receptor que, mais uma vez, agenciado para completar o que no h: o slogan eficaz exatamente por aquilo que ele no diz. A ttulo de exemplificao, lembremo-nos apenas da obviedade de algumas campanhas e seus gritos de guerra: Coca-cola isso a (o que isso a, seno aquilo que cada um quer que ela seja?), Just do it (o faa, da Nike, que impele a fazer aquilo que voc j faz, mas com um outro glamour, dado pelo tnis), Ao sucesso com Hollywood, Mil e uma utilidades, Globo e voc: tudo a ver, Mais que televiso, Cultura, No nenhuma Brastemp A gente se v por aqui, e assim por diante. Portanto, o sentido do slogan fornecido pelo imaginrio do receptor que,

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diante de um vazio, instado a preench-lo com aquilo que representa a sua demanda. Ou seja, o receptor preenche aquilo que o slogan apenas sugere, ou evoca. A linguagem J mencionamos o menino Bom Bril e sua capacidade de adaptao ao contexto. Pois a linguagem publicitria atua devorando tudo, num papel de pastichizao do que possa aparecer como interessante na sociedade, trabalhando como uma grande centrfuga. Na revista Comum (26), Fred Tavares analisa, no texto Publicidade e consumo: a perspectiva discursiva, a capacidade de intertextualizao promovida pelo discurso publicitrio, o que nos permite remeter o leitor para o seu texto e, ao mesmo tempo, salientar outros traos por ele no tratados, a ttulo de complementao. Uma das caractersticas fundamentais do discurso publicitrio trabalhar as ambigidades, de modo a permitir que cada um determine o sentido que lhe aprouver. Preferencialmente, os chistes so uma das formas mais buscadas, exatamente porque, alm do efeito imprevisto de fazerem rir, devem parecer criativos. Este tipo de fala espirituosa, de achado verbal agencia a estrutura desejante, libera o inconsciente e produz sensao de transgresso, no tocante lei da lngua. Assim, para citarmos o exemplo da Bom Bril, para cada personagem um chiste: tomemos alguns exemplos Che Guevara: Hay que endurecer con la gordura sin perder la ternura con las manos jams! Bill Clinton e Monica Lewinsky: As mulheres preferem bom Bill. Quer dizer: Bom Bril. Padre Marcelo Rossi: O ltimo que comprar mulher do padre. Ronaldinho e Milene: Bom Bril. Limpa de primeira. Barrichello: Com Bom Bril a sujeira perde sempre. Pedro lvares Cabral: Faz 50 anos que o Brasil descobriu o Bom Bril. O chiste no teria efeito se no houvesse a imagem, mas a caracterizao do ator faz com que o receptor busque o slogan, em expectativa, e, uma vez lida a mensagem, a sensao agradvel do humor provocado produz o efeito da aceitao sumria. importante, no entanto, salientar um ponto importante: toda esta campanha multifacetada estava implcita no slogan tradicional da marca, que 1001 utilidades. Assim, deu-se um aproveitamento do prprio slogan em favor de uma historicidade, marcada por

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atualizaes constantes. Observe-se que o nmero 1001 emblemtico, pois remete a histrias rabes (as Mil e uma noites) e toda a fantasia por elas trazida. Como so histrias que, em geral, lemos durante a infncia, so evocadas, por meio do slogan, as imagens infantis, bem como o processo de seduo, implcito na narrativa. A prpria fotografia utiliza criativamente o logo Bom Bril: a cada imagem, uma sugesto relativa figura apresentada:

Observe-se que, de acordo com a personagem, o logo a acompanha, sugerindo algo a ela relacionado: para a feiticeira, que tem a tradio oriental, o logo forma a palavra mil (lembrando as Mil e uma noites); para o Ronaldinho, o logo sugere bola; para a Tiazinha, bom (com o apelo ao erotismo); por fim, na verso que incorpora Picasso, o logo esteticizado imagem dos traos do cubismo, pela distoro e retalhamento da figura. Esta ltima prova de que h uma preocupao com a sugesto do logo caso contrrio, deixariam a imagem sem alterao. Nada desperdiado em um anncio publicitrio e tudo corrobora para a fixao do produto. Vejamos um outro exemplo: um comercial da Shell, veiculado pela TV, que talvez seja um exemplo perfeito para se analisar a promessa de felicidade juntamente com a astcia no emprego da linguagem (verbal e visual). O objeto a ser salientado seria o lubrificante Helix. O comercial comeava com uma imagem difusa, em tons vermelhos

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uma clara aluso ao sol (hlio / Helix) e, a seguir, um carro de Frmula 1 (mais precisamente uma Ferrari) aparecia, cortando um solo rido, desrtico. medida que o carro ia passando, abriam-se ondas amareladas, como se rasgando o mar. Naturalmente, h uma evidente associao entre a imagem e a sugesto bblica da origem do Universo (o caos) e a passagem da travessia do Mar Vermelho, por Moiss, em busca da Terra Prometida (rememorando, remotamente, o filme de Hollywood, Os dez mandamentos). Essas histrias, que esto fixadas na mente da maioria da populao, permitem as associaes, ainda que no de forma consciente: so passagens familiares que, em algum momento, foram fixadas por cada um, tornando o objeto apresentado igualmente familiar, por transferncia. O emprego do carro Ferrari, tambm, no gratuito: ainda que no se leve em considerao o apelo que a marca possui no mundo inteiro, pela sua histria e pela paixo italiana, na poca em que o comercial foi exibido havia a coincidncia com a ida de Ruben Barrichello para a Ferrari, com a promessa de vir a se transformar num campeo, ao lado de outro nome no menos significativo para a Frmula 1: Schumacher. Assim, seja para os brasileiros, seja para os demais povos, o emblema da excelncia estava impresso na sugesto trazida pela mquina, bem como as idias de xito, sucesso, excelncia, desbravamento, astcia, vitria. Se o mar, no comercial, amarelo (lembrando a cor do leo Helix), a cor do carro vermelha, o que permite a travessia. Alis, saliente-se que amarelo e vermelho so as cores do logo Shell, que passa a ser reforado pelos demais signos. Por outro lado, o mar o lugar onde se encontram as conchas (Shell, em ingls, concha e o seu emblema tambm): portanto, a utilizao do mar induz a aceitao tcita da marca. E, por fim, Helix tambm sugere hlice e, com isso, velocidade, que uma das marcas da modernidade. Assim, o discurso mtico da publicidade em questo, aproveitando-se de mitos guardados na memria, aponta para a dita promessa de felicidade a Terra prometida , sem mencionar uma s palavra: o jogo fica por conta da seduo das imagens e da capacidade imaginativa do receptor. Uma questo certa: jamais a publicidade poder agenciar o princpio de realidade a no ser para convert-lo em promessa de felicidade. Tanto mais porque, ao empregar as personas (os indivduos so interpelados, no discurso publicitrio, na figura do automobilista, da dona-decasa, do adolescente, do executivo etc.), a mscara serve para provocar o

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esquecimento da realidade. Para este comercial, portanto, pouco importa o tipo de carro, ou a marca, ou mesmo o ano de fabricao do veculo do receptor: o importante que, vendo-se como piloto, ele tender a identificar-se com todos os valores propostos pela mensagem, criando, pois, sua fantasia: ao adquirir o mesmo leo que os campees, ele tornar-se- um deles. Por isso mesmo, quanto maior a crise na sociedade, mais aparecem textos publicitrios: a proliferao tambm uma forma de controle social, j que alivia as tenses, desfaz resistncias e canaliza para um objetivo concreto, que dependa apenas de as individualidades aderirem (ou no). Deste modo, o sistema capitalista controla e regula a sociedade, atravs de crises e fantasias: de certa forma, j se foram embora os tempos do po e circo. A msica O texto publicitrio conta, ainda, com um elemento importante para a sua instalao definitiva no imaginrio do receptor: a msica. Sabemos que este recurso est ausente nos textos impressos dos jornais e revistas que, neste caso, tero de apelar para outros instrumentos, tais como a imagem, com a cor e a fotografia tecnicamente sedutoras. No entanto, a grande maioria dos textos publicitrios aparece no rdio e, principalmente, na TV quando, por fora dos veculos, a msica se instala. Talvez seja a TV o veculo mais poderoso para a captao do olhar do receptor. Perceba-se que as campanhas publicitrias so, em geral, lanadas na TV, vindo os demais veculos como reforo e manuteno, j que os preos da televiso so caros para estabelecer-se uma rotina. Alm do mais, a TV, como veculo, rene vrios recursos, a exemplo do movimento e da simultaneidade de linguagens, que os demais no possuem. Para o publicitrio, quanto mais sentidos do receptor estiverem envolvidos, mais facilmente ele ir aderir ao texto publicitrio. Mas disso trataremos depois. E, como sabemos, a imagem a que mais se fixa no imaginrio social, sendo ela importantssima. No momento, cabe-nos salientar a msica como instrumento de adeso ao consumo. Para tanto, devemos ter em mente o fato de ser a msica, de todas as linguagens, a que menos suporte material/espacial possui. A msica a forma mais temporal de todas as linguagens do homem e, geralmente, o receptor, ao ouvir uma melodia, instado a mergulhar em si e

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nas profundezas de sua memria, viajando no tnel do tempo interior, resgatando memria associada msica tocada. A msica tem a propriedade, justamente por penetrar no sujeito que a ouve, de tocar ou a esfera da transcendncia, ou da violncia. Observe-se que as religies, bem como os comcios polticos (lembremo-nos de Hitler) sempre usaram a msica, para produzir um estado de perda da conscincia. Neste aspecto, ela propicia um estado de torpor, ou excitao, capaz de gerar estados mentais fantasiosos (ou fantasmticos). Assim, utilizada, como o , na publicidade, ela refora a travessia mtica, permitindo ao sujeito deslocar o seu desejo para o objeto, atravs da idia que ao objeto est atrelada, em poucos segundos, com a vantagem de ficar ecoando na memria. Uma boa msica publicitria cria sinapses, deixando suas impresses para sempre. Vrias campanhas obtiveram xito graas a jingles bem elaborados (quem esquece a pipoca e guaran?) ou aproveitamento de msicas de sucesso (basta lembrar da Assolan, ao longo das vrias edies do Big Brother Brasil, com a esponjinha danando) e dificilmente sero esquecidas: ao ouvir-se a msica, a imagem evocada e, com ela, o produto. Efeitos estticos A narrativa mtica, que d suporte ao texto publicitrio, termina por construir aquilo que chamamos de esttica kitsch, ao auratizar o objeto de consumo. Aqui, no entanto, h que se desdobrar um pouco mais a questo, para que se possa entender o processo. Inicialmente, devemos lembrar o belo texto de Walter Benjamin, a quem j fizemos referncia anterior, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tcnica. No mencionado ensaio, o autor tenta demonstrar que a arte, at ento sacralizada pelo envolvimento com a esfera do simblico, sendo, por isso mesmo, objeto de uma contemplao, perde a sua aura devido aos mecanismos de reproduo, trazidos pelo processo de industrializao. Se esta percepo contempla a arte, muito mais fortemente ela atingir os objetos. So partes integrantes de uma produo planetria, cada vez em maior escala. No h, pois, a possibilidade, no nosso atual estgio civilizatrio, de se resgatar a aura, mormente em se tratando de bens de consumo. Isto no significa, no entanto, que o homem atual (como de resto o do sculo passado, igualmente) tenha aceitado a perda da aura. Ao

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contrrio, prevalece uma espcie de nostalgia, sintomaticamente presente em todas as manifestaes da busca da originalidade. Esta aura perdida , pois, trabalhada pela publicidade, na medida em que adere ao objeto um valor. Querendo ou no, e ainda aproveitando o exemplo de que estamos tratando, todos, ao comprarem, iro sentir-se felizes proprietrios de uma cala jeans nica, exclusiva, feita sob medida para o seu corpo, esquecendo-se de que a produo serializada. O mesmo se dar com os carros ou quaisquer outros objetos que venham a ser adquiridos. A etiqueta se incumbe de fazer a sua parte, tambm, na medida em que determina o tipo de consumidor e a faixa de pagamento a ser gasta no ato da compra, alimentando a fantasia do imaginrio, atendendo velha lgica: quanto mais caro, menos pessoas podero comprar, assim mais original o produto se torna, conferindo mais status ao proprietrio. Esta sofisticao, no entanto, est apenas no preo, no no produto: instala-se uma falsa hierarquia ao mesmo tempo em que se abre a possibilidade de acreditar-se na fantasia do acesso a camadas sociais mais elevadas. A publicidade, ao trabalhar isto que nomeamos como sendo uma inteno de aura, termina por atrelar um valor a mais ao objeto. Em outras palavras, alm do preo, h um valor simblico (a idia, de que tratamos anteriormente) sutilmente manipulado. Tudo, pois, se presta a este algo a mais, que nem sempre apenas a Shell pode dar, a este valor derivado, ideolgico, residual. Alis, neste aspecto reside toda a estratgia do consumo: fixar idias; a reboque das idias, vm os produtos. Esta inteno de aura cria, por sua vez, uma esttica kitsch, no sentido de que passa a prevalecer a noo de belo criada pela publicidade lembremos que o padro esttico do consumo sempre ditado pela ideologia. Assim, contaminado por valores alheios, o objeto passa a desfrutar de um investimento capaz de promover uma sofisticao que atue ao mximo sobre todos os sentidos: olhar, tato, olfato, audio, paladar. Estamos no campo da excitao, A esttica kitsch s possvel de se instalar no campo da proliferao e da perda de referncias. Como aponta com muita propriedade Jean Baudrillard, a proliferao do efeito esttico dessa natureza resulta da multiplicao industrial e da vulgarizao ao nvel do objeto (1995: 115), bem como da pretensa mobilidade social. Ao revalorizar o objeto nico (porm construdo industrialmente em srie portanto, sem autenticidade), pouco importam os critrios de gosto: o importante a distintividade,

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num conjunto amorfo, nomeado de massa. H, pois, uma simulao, que comea a ser construda pela publicidade e termina por contaminar o imaginrio, construindo-se um crculo vicioso sem fim. O prazer Uma das questes postas pela publicidade , sem dvida, a do prazer: resgata-se, pelo envolvimento, certo clima de magia que possibilita uma regresso infncia. Mas sabemos ser impossvel um retorno infncia, autenticamente vivido: apresenta-se, pois, certo mecanismo de recusa, por parte do adulto, em viver a maturidade, instalando-se, no mecanismo compensatrio, um esteretipo da infncia, miticamente experimentado. A infantilizao decorrente, isto , a recusa, por parte do adulto, de sua condio de adulto e de todas as suas implicaes, em favor de uma fetichizao da infncia (sem o discernimento entre desejo e realidade) vai, por sua vez, criar a dependncia, prpria dos infantes (etimologicamente, a palavra formada, por in = no + fans = fala. Concluso: infante aquele que no tem autonomia e, por isso, falado por um outro). Resgatar o prazer infantil rememorar o ldico, que vem na publicidade atravs dos jogos de linguagem, da imagem bela (a perspectiva infantil sobre o mundo quase sempre positiva), enfim do sonho, garantindo o triunfo da imaginao sobre a razo. Este o procedimento da publicidade: tornar tudo possvel. A ttulo de exemplo, uma das campanhas da Esso Ponha um tigre no seu carro permite que a gasolina se transforme em tigre e que o motorista, com isso, experimente, ainda que de forma imaginria, o lado selvagem da vida. O prprio tigre da campanha est mais prximo do desenho animado infantil do que do animal real: ele amigvel, sorridente, domesticado e no oferece o menor risco: portanto, o prazer de redescobrir a infncia, atravs do tigre, embala o adulto, que no quer enfrentar a maturidade, a divertir-se com seu brinquedo de estimao: o carrinho da infncia se torna o passatempo preferido do adulto (o carro). A seduo A aceitarmos a afirmao de Jean Baudrillard, seduo aquilo que desloca o sentido do discurso e o desvia de sua verdade (1995: 61), temos de concluir que a publicidade, sem dvida, assim procede, desviando a

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mensagem de sua obviedade mais superficial para atuar profundamente na subjetividade, pelo encanto de suas armadilhas. Como enfatiza, com propriedade, Ivo Lucchesi, no ensaio Seduo e poder, a fora da seduo est intimamente ligada da linguagem, para depois constatar que: Quem seduz sabe que precisa negar a realidade das coisas para, por intermdio da iluso, atingir o objetivo. Na outra ponta, est o seduzido para quem a realidade s percebida pelo olhar turvo da iluso. No discurso da seduo, vigora, pois, o duelo entre dois imaginrios infantis. Ambos recusam o princpio de realidade, conforme Freud conceitua (2004: 66). Acima de tudo, a publicidade seduz, porque uma miragem narcisista de uma sociedade. Por seduzir, a publicidade vem transformando o mundo em maquiagem, construindo a sua equivalncia de histria pela sucesso de comerciais, vem moldando novas relaes, impondo valores, enfim: a formatao de uma nova percepo. No podemos negar a eficcia do discurso publicitrio: constatamos ser ele uma das principais vigas de sustentao de toda a estrutura capitalista, de consumo. No era de nosso propsito criticar, no sentido de tornlo menor: ao contrrio, nosso trabalho buscou apenas salientar como a construo do discurso opera sobre o psiquismo e sobre a subjetividade, seduzindo e ocupando todos os lugares. A nica pergunta para a qual no encontramos resposta : afinal a produo publicitria o destino da seduo, ou a seduo o destino da produo publicitria? Talvez os fabricantes dos biscoitos Tostines saibam responder... Rio de Janeiro, setembro de 2006

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Notas* Este ensaio fruto de reflexes desenvolvidas ao longo do perodo em que ministrvamos a disciplina Semiologia, na FACHA, e d prosseguimento a uma srie de reflexes sobre o fenmeno da Comunicao, presentes nos textos, j publicados, Fait-divers: um discurso amoroso, Massa: misticismo e mitificao, Videoclip(ping), Matou o cinema ... e foi ao filme, alm da prpria obra Esporte e poder. 1. Cabe ressalvar que liberdade diferente de autonomia. Esta pode ser obtida atravs da materialidade e envolve a presena do outro, de quem desejamos nos liberar. Pode-se obter uma autonomia econmica, ou profissional, por exemplo, mas isto no significa que a pessoa seja portadora de liberdade. A liberdade, no entanto, uma conquista do sujeito perante si mesmo, independente do espao e do tempo. 2. Neste aspecto, entendemos que a tcnica cubista tem um sentido na obra do pintor espanhol: trata-se de demonstrar a fragmentao do homem moderno, sem contar com a insero da dimenso temporal na pintura, o que vem estabelecer um dilogo em Picasso e a teoria da relatividade, de Einstein. Assim, instala-se o novo, a ruptura (ante os modelos clssicos de pintura), havendo, pois, criao. J no comercial, a tcnica do cubismo apenas remete a Picasso: a tcnica passa a ser um signo vazio de sentido (no desvio, tomada apenas pela aparncia), e, conseqentemente, o novo torna-se novidade: um pastiche para uma produo de efeito aparente. 3. A origem do termo no inglesa, mas galica: SLUAGH-GHAIRM; e significava, na velha Esccia, o grito de guerra de um cl. O ingls adotou o termo por volta do sculo XVI, para transform-lo, no sculo XIX, em divisa partidria, vindo, depois, a se concentrar no sentido de palavra de ordem eleitoral e, por fim, os norte-americanos acabaram por dar ao termo a conotao que tem hoje, de divisa comercial.

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Resumo O presente ensaio busca compreender o discurso publicitrio e seus recursos, para criar os mecanismos de seduo e impor valores. Para tanto, a anlise de alguns casos foram realizadas, de modo a demonstrar os mecanismos de linguagem que atuam sobre o psiquismo humano. Palavras-chave Publicidade; Processos de seduo; Anlise do discurso. Abstract This essay tries to understand publicity speech resources by means of producing seduction and imposing values to society. So, the procedure is to analyse a few examples, in order to demonstrate the language achievements that put into action human psychism. Key-words Publicity; Seduction processes; Analysis of the speech.

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