O Dragão que Habita em Nós

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O cristianismo ocidental traz a marca da pretensão de gerenciar o mundo em lugar de Deus. Neste livro de Derval Dasílio somos alertados no sentido de observar a linguagem da religião para distingui-la da linguagem da fé. Perceberemos como as bases da fé cristã são corroídas, devoradas por um cupim ideológico embutido na religiosidade fundamentalista contemporânea.Dasílio, Derval. Dasílio, Derval. O dragão que habita em nós : conversas sobre religião e vida de fé / Derval Dasílio. - Rio de Janeiro : Metanoia, 2010. 160 p. ; 23 cm. Referências Bibliográficas: p. 141 ISBN 978-85-63439-04-8 1. 1. Religião e sociologia. 2. Cristianismo. 3. Fé. I. Título. CDD 306.6www.metanoiaeditora.com

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EditoraLéa Carvalho

Consultor EditorialMarcio Retamero

RevisãoJanice Mansur

CapaMaLu Santos

Projeto gráfi coMaLu Santos

Foto autorRafael Dasílio

D229d Dasílio, Derval.

Dasílio, Derval. O dragão que habita em nós : conversas sobre religião e vida de fé / Derval Dasílio. - Rio de Janeiro : Metanoia, 2010.

160 p. ; 23 cm.

Referências Bibliográfi cas: p. 141

ISBN 978-85-63439-04-8

1. 1. Religião e sociologia. 2. Cristianismo. 3. Fé. I. Título.

CDD 306.6

Elaborada pela Bibliotecária Lioara Mandoju CRB-7 5331.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da Edi-tora poderá ser utilizada ou reproduzida - em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação, etc. - nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados.

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D edico este livro a quem sofre mais de perto minhas explosões de indignação

com o estado da religião em nosso país. A Rafael e Ludmila, meus filhos. A Maria Lúcia, que mergulhou sem medo em um casamento que se tornou maravilhoso para mim, pelo prazer de sua companhia nesta jornada.

Aos meus alunos, que confiam no ensinador que lhes diz, parafraseando Karl Rahner: “Se nos dermos conta de que a Igreja ainda precisa conquistar o sobrenome divino de Cristo -- porque ainda não o mereceu --, sendo pecadora e infiel ao seu papel e à sua missão, compreenderemos porque ela deveria ser Santa, isto é: eleita e separada para testemunhar a justiça de Deus e não o faz”.

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Somos alertados no sentido de observar a linguagem da religião para distingui-la da linguagem da fé. Tarefa praticamente impossível, a não ser que o grande

Mistério nos ajude, diante do surto neorreligioso que nos acometeu nas últimas dé-cadas. O racionalismo fundamentalista encontrou a válvula de escape, consideran-do-se que o liberalismo teológico resolveu-se por si mesmo, quando descobria a re-ligiosidade pietista/individualista/amorosa/emocional/intimista em Schleiermacher (1768-1834). Este valorizou os “sentimentos piedosos”, dizendo que equivaliam ao senso de consciência absoluta de Deus no individuo religioso. Quem se disporia a afirmar que o “fundamentalismo pietista e moralista, legalista, cultural e capita-lista”, que invadiu o Brasil com o protestantismo de missões, e nos brindou com um racionalismo metafísico religioso, “evangélico” com instrumentações próprias, transmudou o pensamento evangélico original? Seguramente, o fundamentalismo é vitorioso. Dá o que pensar, a religião sem amor,e sem compaixão que se prega.

O pietismo sem compaixão, exteriormente comportamental, moralista, legalista, junta-se ao conversionismo moral, mas nada tem a ver com o “pietismo original” desde Spener, no século 17, que descobriu a Bíblia como fonte de orientação para o serviço ao outro e à outra. Quem concorda? Não tenho dúvidas de que a maioria dos leitores que já estudaram a história do cristianismo moderno. As bases da fé cristã são corroídas, devoradas, por um cupim ideológico embutido na religiosidade funda-mentalista contemporânea.

Penso que a vida humana reflete uma realidade diferente, uma vez que nela estão contidas imagens reveladoras da essência humana, dos prazeres e desprazeres da existência. O amor é uma espécie de amigo invisível e imaginário por meio do qual o homem vê a si mesmo e ao mundo em sua totalidade. A exclusividade da compaixão e do cuidado ressurge sempre de um modo maravilhoso, e então você pode agir por amor, ajudar, curar, educar, elevar, salvar o seu próximo da corrosão espiritual. Mas o que tem a ver o tema deste livro com este assunto?

O “dragão” é símbolo do poder da religião, caro leitor. O dragão que habita em nós significa, portanto, que tipo de religiosidade adotamos. Se pensarmos na religião como oportunidade para a solidariedade, ingressamos noutro campo, que talvez não seja colocado na mesa de trabalho de quem pesquisa a religião. Amor é responsabilidade de um “Eu” para com um “Tu”, nisto consiste a igualdade da-queles que amam. Por se ter podido vencer o egoísmo individualista e ousado algo inacreditável. Amar, no mundo onde reina a impiedade, é um ato quase inacredi-tável, como possibilidade humana. Assim, será esclarecido àqueles que creditam na simples magia do serviço ao universo humano, o que significa cada espera, cada olhar da criatura, cada reclame de cuidado, na direção do amor (Martin Buber deve ser lido sobre isso). É preciso, portanto, aprender a amar o próximo como Deus ama os homens e as mulheres deste mundo. A religião tem tudo a ver com esse en-

APRESENTAÇÃO

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sinamento. Especialmente, quando a intolerância e a discriminação tornam-se uma bandeira na religiosidade comum, evangélica ou não.

Existem diversos significados para a palavra discriminação religiosa ou a ativi-dade de um circuito chamado discriminador. O significado mais comum, no entan-to, reside na intolerância, e tem a ver com a discriminação sociológica. Discrimina-ção social, racial, religiosa, sexual, por idade ou nacionalidade, que podem levar à exclusão social, são o assunto central deste livro. As formas de discriminação com base na idade, deficiência física, orientação sexual ou religião, agora, estende-se a outras esferas da vida. Na política, na economia, nas atividades que envolvem minorias oprimidas, por exemplo. Dedico-me a você, leitor ou leitora. Quero conversar sobre assuntos variados que envolvem religião e religiosidade. Falaremos da desunião dos cristãos – as-sunto-chave para se discutir a essência da fé cristã – quanto à tolerância, à solida-riedade, à compaixão e ao cuidado, antes de tocarmos na ética ou na moralidade religiosa. Enfocaremos os desvios dessa ênfase na religiosidade carismática ou propositista, e na religiosidade mercantil, onde a fé religiosa se torna um negó-cio. “Negócios têm de apresentar lucro, do contrário vão à falência”, pensam neoevangélicos propositistas. Consideraremos a paixão do fundamentalismo por impor detalhes da religião legalista e moralista e seus apoios históricos à religio-sidade moralista dentro da realidade do mundo religioso. Então, iniciemos essas conversas. Quem sabe nos entenderemos?

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PREÂMBULO

A religião é um fenômeno antropológico extraordinário! Todas as religiões têm começo e origem. Nos primórdios imemoriais, nas eras mais recen-

tes, na antiguidade e até hoje, as narrativas sagradas, os rituais, as práticas morais, os modos de organização, em cada grupo religioso, em toda parte e em todo tempo, pré-histórico ou não, a religião nunca se dissocia dos meios de produção econômica. Narrativas supra-históricas, miraculosas, apontando pro-dígios, eventos divinos, transcendem à dinâmica histórica enquanto colocam homens e mulheres face a face com o Divino. Este é um ponto. O outro se refe-re à institucionalização da religião, quando se vai racionalizar origens e fins. O pentecostalismo, assim como as demais tendências cristãs também emergiram da dinâmica histórica, desde Abraão (outro exemplo de religião ancestral), lu-gar onde se situam o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Trata-se do tron-co abraâmico, donde emergem as religiões de maior crescimento, hoje. Se no primeiro momento evoca sua origem primordial, no segundo desencadeia-se dentro do contexto histórico. Se a teologia pentecostal fundamentalista prefere a narrativa linear, atemporal e não histórica, são outros quinhentos. Quando a narrativa é sacralizada (como ocorre no biblicismo fundamentalista, exces-sivamente frequente, também, nas igrejas protestantes históricas: Luterana, Presbiteriana, Metodista, Batista, Congregacional, Anglicana, Católica, etc.), o resultado será estruturado numa religião autoritária, com poder religioso es-pecializado, restrito a uma hierarquia inteiramente respaldada na objetividade e finalidade. A fé, elemento transcendente, é dispensável nesse momento.

O cristianismo ocidental traz também a marca da pretensão de gerenciar o mundo em lugar de Deus. Na mundialização do capitalismo econômico, nas “globalizações” e na monocultura consumista que se impõem ao planeta, sofre-se, hoje em dia, a substituição do próprio Deus. Melhor, os favores de Deus são vendidos nos templos transformados em mercados. E não só no Brasil. Roger Garaudy, marxista convertido ao cristianismo, faz a pergunta: “Dentro do cris-tianismo, o homem ainda precisa de Deus?” Podemos perguntar mais: quanto custa o passe do “deus neopentecostal” do mundo empresarial e político neo-evangélico? Deve ser caro, porque rende muito dinheiro. Cristãos históricos se habilitam? Enquanto isso, o homem declara-se como mestre e senhor da natureza, além de dominar outros homens e os continentes, por meio das ciên-cias e da técnica. O rosto do homem ocidental é visto no espelho dos cristãos pluralistas, do ponto de vista da religião e no surgimento de novas religiões, nas últimas décadas, (carismáticos católicos, neoevangélicos e neopentecostais oferecem excelentes dados a essa pesquisa), sob a bandeira do cristianismo religioso pós-moderno. O mesmo espírito mercador do mundo dos negócios está aqui, na religião neoevangélica. Neste mundo não se conhece uma única proposta que não envolva sucesso financeiro pessoal (panaceia salvacionista do

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mundo contemporâneo). E cristãos históricos aderem, sem perguntar muito, às novas – pero muy viejas – propostas mercantilistas na igreja.

UMA EXPERIÊNCIA ESSENCIALMENTE HUMANA

A religiosidade comum a todos os homens pode ser esboçada assim, porém, breve-mente. Contudo, a experiência de religião encontrada no Antigo Testamento que se assenta e chega até nós vai fugir do comum. O ambiente mesopotâmico, caldeu, e depois cananita, palestiniano, enseja um enfoque diferenciado, notável por isso mesmo. O israelita bíblico crê numa religião revelada e não na religião natural, fenomenológica, calcada em sentimentos diante do fascinante mundo geográfico, astrológico, meteorológico. No segundo caso, os fenômenos físicos ditam o ritmo dos acontecimentos. A experiência humana, com a procriação e a fertilidade e os fenômenos naturais, é determinante. A aflição sobre fenômenos sobre os quais não se possui nenhum controle, vida nômade debaixo de céus estrelados contra-postos às tempestades noturnas, medonhas, céus lampejados vivamente por raios intensos, exigiram uma resposta do homem.

Imaginemos uma árvore despedaçada por um raio, como acontece ainda hoje em áreas rurais, quando um camponês recusa-se a tocar na madeira carbonizada e exposta; acrescentemos, ainda, a observação de ciclones, furacões, maremotos (BLAINEY, 2008). Como explicar um vulcão em erupção, extensões de terra aba-ladas, tremendo, e em seguida rachadas em grandes distâncias, num mundo limita-do ao que um grupo de pessoas conhecia – a terra que pisavam era a Terra toda?

Pensemos no céu noturno, em forma de cúpula, com estrelas cadentes, de-baixo do qual as pessoas armavam suas tendas. Como era intrigante a marcha regular das estrelas, os céus cruzados periodicamente por tochas de fogo em alta velocidade, grandes rios lácteos correndo pelo céu, tapetes gigantescos de estrelas estendidos nas noites limpas… Criaturas poderosas deveriam viver no firmamento… nasce a religião!

Magos, videntes, curandeiros, feiticeiros, conheciam esses mistérios. Ti-nham, portanto, as chaves dos lugares sagrados, dos santuários, dos altares onde se fariam sacrifícios. Podiam manipular a religião, por causa de seus atri-butos e competências. A Bíblia Hebraica, contudo, não esquece nenhum de-talhe a respeito dessa religiosidade: condena-a. Mas o homem bíblico não é diferente dos outros, no entanto denuncia-a imediatamente. É a guinada na direção da religião revelada, que ocorrerá gradativamente.

O primeiro êxodo ocorrerá com a introdução do monoteísmo ético, atribuído a Moisés. A dessacralização da natureza atinge fragorosamente essa religião, de tal maneira que nem o lugar do túmulo de Moisés poderá ser conhecido, na pos-teridade (“E ninguém soube, até hoje, o lugar de sua sepultura”(Deuteronômio 34, 6 – Torá). Moisés morreu, mas como um ser humano. E não como um semi-deus do mundo ático-macedônico. Seus despojos não podem ser adorados, quem sabe venerados, como relíquias. Uma grande verdade pode vir de rabinos judeus observantes do Midrash Lecav Tov: “Para que jamais se mesclassem o domínio

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humano e o domínio divino de Deus sobre o povo de Israel; para que não fossem embaçadas as diferenças que transformam a religião, o meio, em objetivos, des-figurando a própria religião”.

Será que os fundadores da religião neoevangélica leram sobre isso alguma vez, tirando proveito invertidamente nas facções religiosas que criaram nos últi-mos trinta anos? São mestres respeitadíssimos no ambiente neoevangélico. Ad-mirados em toda parte, faça-se justiça. Há pesquisadores de grande peso que consideram Edir Macedo o gênio religioso do século 20, ao criar a igreja/religião do qual tornou-se “sumo pontífice”. O fato de ter construído, para sua residência particular em Campos de Jordão, um palácio à altura de um príncipe, reflete sua consciência sobre a necessidade de tornar a IURD uma igreja milionária. Reli-gião organizada para ser um império econômico.

Os surtos neoevangélicos recentes são contaminados por uma estruturação clara em torno de um poder religioso especializado, restrito, hierárquico, auto-ritário, objetivo. Os fiéis transitam essencialmente no ambiente urbano, marca-do pelo anonimato, por relações indiretas; pela massificação dos costumes, sem expressão de comunhão e de comunidade, em reação estrondosa às condições sociais e econômicas. Nada de anormal que o lado de baixo da Linha do Equador abrigue a nova religião neopentecostal, neoevangélica, em seu cenário. O nar-cisismo e as desigualdades sociais, a dissolução da ética solidária e da partilha, compõem o ambiente perfeito para essa coreografia. Deus, aqui, além de asse-melhar-se ao “deus ex machina” da teatrologia da Grécia antiga, é bem brasilei-ro. Deus é um serviçal, um “deus-quebra-galho”, como num receituário domés-tico para a vida no lar religioso, onde se encontrará toda solução possível para alguém se “dar bem na vida” civil. Os ministros oram e ordenam à divindade, depois das ofertas compulsórias: “Fizemos a nossa parte, agora faças a tua…” – fala do pastor neopentecostal carismático dirigindo-se a Deus. O dinheiro sa-crificado no altar corresponde a uma espécie de redenção “em espécie”, do “pe-cado da pobreza” (para muitos carismáticos propositistas a pobreza é fruto do pecado). Bem-aventuranças se compram no altar. Prosperidade é dada por Deus como obrigação ao dinheiro (do indivíduo) sacrificado no altar neoevangélico. A vitória neopentecostal prevê uma multidão de milionários crentes.

À véspera da Páscoa, Jesus encontra no templo (hieros) a religião transformada em comércio. Chegamos ao ponto nevrálgico da revolta de Jesus. O templo é secre-taria fazendária, comitê político-partidário servindo ao poder dominador, banco e loja religiosa, emporion de clientela cativa; a religião é compulsiva ou indutiva. É quando bem-aventuranças passam a ser vendidas no altar e lideranças se esforçam na pregação do deus subornável, deus ex machina, da religião caça-níqueis, capaz de resolver qualquer problema financeiro, emocional ou existencial.

Hoje, o público evangélico é freguês das lideranças evangélicas carismáticas. A religião de mercado se impõe. Pragmáticos e gananciosos, ideólogos da prosperi-dade comprada no altar imaginam que são cabos eleitorais, empresários e merca-dores, e orientam o povo para a ganância, com muita diversão: o evangelho caris-mático até dá samba! E o pessoal se diverte muito. O verão é comemorado, a festa atravanca o trânsito de sexta a domingo: “Viva o Verão!” O deus sol é exaltado

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novamente na praia. A revista Comunhão, inteiramente voltada para o movimento evangélico carismático e gospel, dá-lhe cobertura completa. O ano inteiro. Bandas gospel, divas e “divos” da música carismática cantam um Jesus coberto de mela-do fazendo propaganda eleitoral. A fina flor evangélica comparece, estacionando seus carros bacanas nas ruas próximas para o gozo de flanelinhas. Candidatos à reconversão vêm da periferia, também, aos borbotões. De ônibus, claro. Porque as comunidades pobres, sem brilho moderno, desqualificadas pelo conversionismo de luxo, templos climatizados, crentes ricos, bem-postos, esquecem-se dos pobres, também não conseguem fixá-los na vida de fé, nos templos precários, bancos duros e sem espaldar. Os pastores das igrejas milionárias encarregam-se da bricolagem evangélica, acomodando-os em poltronas macias e ar condicionado.

Três dias de “conversões” e “vidas transformadas”. Claro, não se pode exi-gir que hinos clássicos comovam jovens sentados na areia, agarradinhos. Hinos como “Jesus, alegria dos homens”, do protestante Johann Sebastian Bach – com-positor de harmonias complexas, contrapontos marcados, litanias envolventes e profundas, proclamando a fé – não são viáveis para a cultura gospel e carismáti-ca. Enquanto o povo congregado responde in toto o que ouviu, “É Jesus minha alegria, meu prazer, consolo e paz!”, “Muito clássico! Meu prazer é Aline Barros e Oficina G3” – fala a jovem evangélica carismática e lacrimosa, atordoada sob a sonorização de altos decibéis.

Pastores e psicanalistas neoevangélicos, em barracas montadas nas proxi-midades, atendem a garotada em estado de êxtase, aos prantos, pele arrepiada e tremida: jovens acabaram de conhecer Jesus pelas vísceras! Recebem conse-lhos e são cadastrados. Que não ousem aparecer os totens da MPB, como Mil-ton Nascimento. Seriam vaiados, como representantes de música profana, do mesmo modo que chiques e famosos vaiaram João Gilberto no Credicard Hall. Não cabem no marketing das diversões evangélicas. Rappers e roqueiros, sim. Sistematicamente, evangélicos desprezam ritmos e estilos musicais brasileiros. Torcem o nariz para a lindíssima guarânia – balada em andamento lento, con-siderada música típica do Paraguai e nos estados do Sul, no Brasil – “Barna-bé” (Guilherme Kerr Neto/Jorge Rehder) e a ciranda nordestina “Que estou fazendo...” (João Dias de Araújo/Décio Lauretti), enquanto jovens tatuados, com piercing e scars pelo corpo todo, ganham espaço nos altares transformados em palco.

Caricaturas protestantes, praias famosas e centros de convenções são aluga-dos ou cedidos ao público especial. Comparece a elite evangélica, o prefeito, o deputado, o senador e até o governador nem morno nem quente, não importa se comprometidos – atrás de visibilidade político-partidária, blocos evangélicos são fortes e não perdem tempo – expondo-se até mesmo no cenário do crime or-ganizado. O advogado acusado de roubar 300 milhões do erário preso e jogado no camburão com a Bíblia em punho; o juiz processado por assassinato do cole-ga que o investigava por venda de sentenças em conluio com desembargadores, presos e soltos pela “justiça”; pastores e lideranças evangélicas “peso pesado”, marcam presença. Perderam o trem da história, dedicando-se à luta inglória pela “reta doutrina” e à propagação do fundamentalismo do protestantismo de

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missões, fundador da igreja evangélica no Brasil, agora instrumentalizado no serviço das eclesiologias aberrantes recentes, carismáticas em primeiro lugar.

Banqueiros, supermercadistas, agiotas, financistas, comerciantes, corruptos, bem-vindos! São bem divertidas as festas gospel. O proselitismo carismático, agora, é prático, entre os próprios evangélicos. O novo rosto evangélico é mar-queteiro e político, elege evangélicos para o governo e câmaras estaduais, e para o Congresso Nacional; vende discos e relíquias em CD, ninguém é bobo. A Igre-ja Batista pentecostal neoevangélica ganha o mercado fonográfico na América Latina: campeã de vendas! Arrecada milhões, e se pergunta: onde fica a Receita Federal nessa história? Igrejas não pagam impostos no Brasil. Protestantes his-tóricos permanecem perplexos, mas apoiam a modernidade gospel, enquanto fo-gem do fisco. A saliva cai dos cantos da boca, enquanto recordes de arrecadação vão sendo expostos a cada dia. É pra rir ou pra chorar?

LIMPA-TRILHOS EM RODOVIAS ASFALTADAS...

Para muitos, contudo, a religião é um “vício”, ou um incontrolável motivo inte-rior, uma compulsão que ataca, domina e corrói pessoas, comunidades, socie-dades e culturas. Por muitas vezes já ouvimos coisas como: “religião não salva ninguém”;“religião é o ópio do povo”;“religião é uma cachaça”; “religião é como limpa-trilho de trem: ajuda a limpar a sociedade, amortece ou afasta para os la-dos as coisas ruins que colocam a comunidade humana em perigo”. Será mesmo? Uma parábola nos ajuda a identificar alguma coisa do que se espera da religião, deste último ponto de vista. Vamos ao “causo”. É uma fábula sobre o fim do mundo que ouvi do colega Oneide Bobsin, antropólogo da religião, pesquisador da Escola Superior de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB), mas não sei sua origem. É curta.

“Tempos atrás, o frio tomou conta do mundo. Toda a face da terra foi coberta de gelo, porém, alguns espaços ficaram sem gelo. Mas o frio era cortante. Mortal. Um desses espaços foi ocupado por uma manada de por-cos-espinhos. Para sobreviverem, precisavam se aquecer. Para se aquecer, necessitavam aproximar os corpos e aproveitar o calor uns dos outros... feriam-se com isso. Não suportando essa proximidade dolorosa alguns por-cos-espinhos se afastavam, preferindo morrer de frio. Mas outros, vendo o fim que era reservado aos que se afastavam dos demais, perceberam que era melhor, para não morrer, voltar ao ninho onde a fonte de calor estava nos corpos dos outros. Fizeram um acordo de convivência e tolerância, aos poucos os espinhos de todos passaram a ser suportados, e assim foram aprendendo a se ajeitar aos corpos dos outros. E escaparam. Mas não per-deram os espinhos...”.

Moral da história: descobre-se como é importante aos grupos religiosos a tolerância, o reconhecimento de que o que fere a um fere ao outro, em condi-ções iguais, enquanto a mútua solidariedade a todos salva do extermínio. Mas...

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qual é a pergunta? Unidade da igreja evangélica para quê? Propomos um debate sobre o papel da religião, especialmente no que tange à compreensão do agir criador de Deus, que todas as religiões reconhecem, em concordância com os elementos centrais da fé libertária testemunhada na religião tantas vezes modi-ficada, dos hebreus originais, também chamados de “povo bíblico”, com o qual temos mais familiaridade. Antes de tudo, do tronco abraâmico, judeus, cristãos e muçulmanos têm muito a dizer sobre o assunto “intolerância”.

Do ponto de vista da antropologia religiosa, Max Weber, um dos pais da mo-derna sociologia, desenha um panorama da religião, enquanto se organiza na história cultural do mundo ocidental, comparando essa fé com a história religio-sa de outros povos do Oriente, próximo e distante. O interessante desse enfoque é que o próprio Ocidente é contaminado inevitavelmente por esta religião, am-pliando-a em ciência, cultura, economia, política e arte. Criando regras objetivas, compreensíveis, transmissíveis por meio da religião, transportando-se no tempo e chegando aos tempos modernos com uma força imensurável. Seus produtos culturais parecem dominar o mundo nesse terceiro milênio da Era Cristã. A tra-dição religiosa judaica, fornecendo uma espécie de regras sobre “como estar no mundo”, acrescentada à fé cristã em prolongamento irrefutável, remete os fiéis das duas religiões, judaísmo e cristianismo, para uma atuação consciente na his-tória humana, como senhores e também responsáveis pelo mundo, como quer João Décio Passos (2006) em sua pesquisa.

UMA RELIGIÃO DE QUATRO MIL ANOS?

Essa fé alcançou o cristianismo que se estendeu pelo mundo greco-romano, abriu perspectivas universais e ganhou o mundo, embora o triunfalismo de mui-tos arrogue a si mesmo a própria expansão do cristianismo enquanto represen-taria a única religião libertadora. Um enorme equívoco, sem dúvida alguma. Depois de dois mil anos, ou três, ou quatro, se agregarmos os antecedentes do cristianismo e do judaísmo, ele perde para o islamismo, que cresce vertiginosa-mente no mundo inteiro. No entanto, é difícil confiar nas estatísticas. Budistas e hinduístas são um número maior do que se imagina. Só para exemplificar.

Esse é um modo religioso, também, de ver a importância do sagrado na história do mundo. Porém, essa perspectiva é particularista, provavelmente salvacionista, enquanto se imaginam, os cristãos, por exemplo, detentores de uma “verdade religiosa que salva”. A história das religiões, circunscrevendo a revelação na tradição do patriarca Abraão, situando o nascimento da religião bíblica há quase quatro mil anos, inspiração para o judaísmo e o islamismo, e no meio dessas religiões o cristianismo, nos apontaria a essência de uma fé verdadeira? Eis a questão: o que é uma fé verdadeira? Sobrepõe-se a esta his-tória a intolerância religiosa? As religiões mais importantes dos últimos dois mil anos são as que brotaram desde alguns séculos antes da era cristã, quase contemporâneas, entre o 4º século a.C. e o 7º século da era cristã, judaísmo, budismo, cristianismo e islamismo. A história religiosa do mundo, no entanto,

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outro tanto, em importância. Mas esse estilo associacionista de crenças é re-centíssimo, levando-se em conta a história humana sobre a face da terra.

Obstáculo para a paz mundial, como queria o genial filósofo Heidegger, ou como as esquerdas socialistas muito atuantes no século 20, a religião é também apontada como um impedimento para o desenvolvimento da sociedade humana, levando-se em conta o variegado leque das religiões disponíveis para os seis e meio bilhões de habitantes da terra. Enquanto também conceituada como de extrema grandeza trans-histórica eterna e trans-social (Hans Küng), a religião tem sido vis-ta também como realidade política onde a economia mundial, nos nossos dias, não permite mais a indiferença sobre este assunto, como expressão passiva de tolerân-cia religiosa, ingênua e irreal. Novos chavões se apresentam, inclusive, como os que indicam “um projeto de modernidade religiosa”, ou “a morte da modernidade coincide com a morte da religião”. A realidade mostra que os textos sagrados, as tradições orais e seus significados em qualquer tempo e em qualquer lugar, os ritos, as liturgias, práticas celebrativas, têm muito a ver com a crítica que se faz do mundo e da humanidade. Ainda acrescentando uma ética utópica para a organiza-ção do caos em que vivem muitas sociedades do mundo global, que toda religião pretende, presente especialmente pela ética conservada no mundo ocidentalizado, pelas tradições religiosas judaico-cristãs, essas tradições representam-se de manei-ra marcante. Apesar das previsões de desaparecimento.

AS RELIGIÕES DO POVO BÍBLICO

A religião exposta na Bíblia Hebraica e no Segundo Testamento da Bíblia dos cris-tãos, é profundamente diferente. Deus é respeitado em sua grandiosidade, o ho-mem também é respeitado dentro do princípio da decisão livre, não manipulada (por favor: não se trata de discussões teológicas sobre o “livre arbítrio”, como as que travaram S.Agostinho, Pelágio, Lutero e Erasmo de Roterdan). Cada homem pode chegar a Deus por meio do microcosmo e do macrocosmo, dirá o holandês H. Renkens (1969). O homem está incluído numa graça geral, em uma dádiva divina, pois é como uma enciclopédia que alcança conhecimentos do universo in-teiro; ele próprio é o “universo num grão de areia ”. É como diz Rubem Alves: o homem seria “uma gota d’água numa pétala de flor, no meio do jardim”, no seu interior cabe o mundo inteiro. Mas nem esse mundo pode contê-lo em si mesmo, tal a transcendência do ser humano criado, “...que é o filho de Adão, para que te lembres dele, ele e o filho do homem, para que o visites? Contudo, pouco abaixo de um deus o fizeste; de glória e de honra o coroaste” (Salmo 8, 4-5).

Consciente de si mesmo, o homem percebe seu direito à plenitude dos bens sociais, enquanto possui consciência ética sobre a justiça, cuidado, partilha e a solidariedade. As insaciáveis profundezas do seu próprio interior tornam-no um ser inquieto, um peregrino sem um travesseiro para pousar a cabeça, inconforma-do com possíveis limites, como o Cristo da fé, na Bíblia cristã “…As raposas têm tocas e os pássaros têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (Lucas 9, 58). Na voz de S.Paulo, esse testemunho interior será expresso

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assim: “mostram-lhes a norma da lei gravada no seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e os seus pensamentos” (Romanos 2, 15). A voz da consciência é dos mais notáveis indícios da religiosidade bíblica, que se manifesta no testemunho exterior, nos compromissos com o grande universo fora do ho-mem: o macrocosmo não manipulável. A religião bíblica, então, passa a ser com-preendida como uma “religião da consciência”. Não é possível ficar em cima do muro, quando se quer transformar essa religião em “religião de sentimentos” e emoções ancestrais. A religião bíblica chama à decisão, enquanto situa o homem num ambiente social, cultural, pari passu com a política e a economia no qual obrigatoriamente intervirá, por “ordem” da divindade.

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SUMÁRIO

1. A RELIGIÃO É UMA TEIA DE SÍMBOLOS, 012. OS DONOS DO MUNDO E A RETÓRICA RELIGIOSA, 093. RELIGIÃO DE MERCADO: PECADO E VIRTUDE, 194. O MAL SISTÊMICO INCRUSTADO NA RELIGIÃO, 295. PARA QUE SERVE A RELIGIÃO ?, 416. BIOTECNOLOGIA, MEDICINA GENÉTICA E RELIGIÃO, 557. O MUNDO NASCEU EM 4004 ANTES DE CRISTO, ACREDITE SE QUISER!, 598. NOS PALCOS, NAS PASSARELAS E NOS SHOPPINGS:A RELIGIÃO TORNA-SE DIVERSÃO, 739. CULTURAS RELIGIOSAS RECENTES, 7710. FÓRMULAS PARA MANIPULAR O SAGRADO, 8311. É POSSÍVEL UMA RELIGIOSIDADE SEM CRENDICES E SUPERSTIÇÕES ?, 9312. SOMBRAS ANCESTRAIS DO PREDOMÍNIO MASCULINO NA RELIGIÃO ?, 97

13. PODERES REBELDES E RELIGIÃO, 105EPÍLOGO, 109CAPÍTULO EXTRA: HOMOFOBIA E RELIGIÃO, 125REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 141

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