O dragão - Presenca.pt - O gosto pela leituraO empregado da bomba não gostou e foi a correr atrás...
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Título: 101 Histórias do Tio Julião para Fazer OóTexto: Júlio IsidroIlustrações: Inês do CarmoRevisão: Carlos Jesus/Editorial PresençaDesign, capa e paginação: Inês do CarmoImpressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda.
Depósito legal n.º 461 172/19
1.ª edição, Lisboa, novembro, 2019
UM CENTO MAIS UMA HISTÓRIA
Há muito tempo, escrevi cem histórias pequeninas para os meus sobrinhos adormecerem com um sorriso e acordarem no dia seguinte
bem-dispostos e felizes.Como passou mesmo muito tempo, esses meus sobrinhos já são
crescidos, alguns doutores, engenheiros e com outras profissões, alguns já se casaram e eu passei de tio a tio-avô Julião.
Muitos desses meus livros devem estar perdidos nos sótãos lá de casa, já velhotes com as páginas amarelecidas e algumas soltas ou perdidas.Por isso, resolvi mostrar aos meus novos sobrinhos-netos as histórias
que inventei, porque a fantasia e a imaginação nunca envelhecem.E a gente continua a deitar-se cedinho, porque temos tanta coisa para
fazer, a escola para aprender, o recreio para brincar e depois, em casa, a banhoca, o jantar, filmes giros para ver e a família para conversar.
Agora, já na cama, o pai, a mãe, o avô, a avó ou a tia vão ler-vos uma história para fazer oó.
Uma surpresa: o velho livro que se perdeu no sótão tinha cem histórias, um cento. Este velho, que é novo, traz mais uma.
Cento e uma, 101, uma capicua!Não sabem o que é? Perguntem aos pais.
Sonhos cor-de-rosa e abraços do tio Julião.
Júlio Isidro
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Em pequenino, o Dragão tinha sido um Camaleão. Mas como os pais não o viam crescer como os outros dragões, deram-lhe uns comprimidos para abrir o apetite. O Camaleão que só comia folhinhas desatou a comer tudo o que lhe aparecia à frente, plantações inteiras e até árvores nos bosques das redondezas.
— Tens de papar menos, meu dragãozinho — recomendava a Dona Dragona, que andava sempre vestida de dourado.
— Olha que qualquer dia ainda te chamam dinossauro e metem-te num museu de história natural — avisava o pai, Don Dragon, que tinha nascido em Espanha.
Mas o pequeno dragão, que já não era nada pequeno, tinha boca grande para tudo. Uma vez engoliu um porco-espinho e ficou com um dos seus imensos espinhos entala-do na garganta. Os pais levaram-no de urgência ao hospital.
— Abre lá a boca, meu menino — disse-lhe o médico de serviço, que por acaso até era um hipopótamo.
O Dragãozinho abriu a boca.— Agora respira fundo e depois manda o ar todo cá para a fora — pediu o doutor. O ar que lhe saiu da boca mais parecia um tufão. O Doutor Hipopótamo foi pelos
ares e só aterrou em cima de uma marquesa. Não, não era uma daquelas camas com rodas que há nos hospitais, mas uma Marquesa com M grande, a Dona Girafa de Carnide, Borbulhosa e Vaz de Caminha!
E a caminha partiu-se, porque não aguentou o peso de um hipopótamo e de uma girafa gordinha.
Com aquela corrente de ar, o porco-espinho também saiu da barriga do Dragãozinho e foi esconder-se debaixo do armário dos remédios. Só não foi remédio santo porque veio de lá a enfermeira Dona Avestruz que meteu o pé debaixo do armário, picou-se num espinho, deu um salto e deitou ao chão os frascos com todos os comprimidos.
1O dragão
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Amarelos para as dores de barriga, azuis para a tosse, encarnados para a febre, cor-de-rosa para as borbulhas e até uns às riscas para fazer crescer o cabelo aos carecas.
Foi o fim naquela enfermaria. Veio um gato, que miava como um cantor de ópera, comeu os azuis e desatou a tossir. Um cão, que a dona tinha mandado tosquiar para ter o pelo curto no verão, lambeu os comprimidos às riscas e em cinco minutos ficou parecido com um urso das montanhas.
No meio desta confusão, a família Dragão e o filhote, já curado d0 espinho na garganta, saíram a correr do hospital para não arranjarem mais problemas. Iam a passar por uma estação de serviço quando o Dragãozinho se saiu com esta:
— Papás, tenho sede!— Agora não bebes nada porque, porque, nós não temos dinheiro.— Mas eu estou a ver aqueles carros todos a beberem por uma palhinha…— Qual palhinha qual carapuça. Os carros estão a meter combustível — explicou o pai.— Pois é disso mesmo que eu preciso, porque estou muito fraquinho — foi a uma das
bombas e encheu a barriga com mais de cem litros de gasolina. O empregado da bomba não gostou e foi a correr atrás dele: — Agarra que é dragão!
Prendam que é ladrão!O Dragãozinho, irritado, virou-se para o homem e soltou o seu terrível rugido. Da boca
saiu um jato de fogo que queimou o cabelo todo ao perseguidor.A partir desse dia, e para não arranjar mais sarilhos, o Dragãozinho passou a trabalhar
numa empresa como queimador de lixo.Se virem um dragão numa bomba de
gasolina, não liguem, porque ele está a meter combustível para ir trabalhar.
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Naquela manhã de primavera, o Sol acordou quente e sorridente.O canteiro dos Girassóis virou-se logo para ele e começou a sessão de ginástica. É por
isso que o Girassol se chama assim, porque está sempre a rodar a sua corola amarela para o lado de onde a luz lhe chega. Que engraçado vê-los naquela dança, ao som da música que vinha do canteiro dos Jarros, que, com as suas campânulas brancas, forma-ram uma orquestra em que não faltavam trompetes, saxofones e até trombones.
Noutro canteiro, as Alfazemas lançavam pelo ar o seu perfume que todas as flores aproveitavam, mesmo as que tinham cheiro.
As Rosas, que há quem chame pirosas, mostravam-se nas suas cores brancas, ama-relas, vermelhas e cor-de-rosa, pois claro.
Quem costumava dizer mal das Rosas eram as Hortênsias, que só se dão bem à som-bra e com muita humidade. Por isso, naquela manhã estavam tão encaloradas. Uma até suspirava:
— Quando é que chega a hora da rega, porque estou aqui tão murcha.Palavras não eram ditas e do chão começou a sair um duche que molhou o jardim
todo. Que bom: muito sol, água fresquinha, música e dança, esta festa da primavera parecia o paraíso na terra.
No seu canteiro, os Cravos vermelhos cantavam uma canção que falava de amizade e os brancos acompanhavam em coro.
As Estrelícias, que mais pareciam caídas do céu, olhavam para aquilo tudo apontan-do o nariz para o canteiro dos Cravos. Uma até comentou:
2A festa
daprimavera
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— Estes Cravos são uns cravas, estão sempre a pedir mais água, mais adubo, mais tudo ao jardineiro! Nunca estão satisfeitos com o que têm.
Em resposta, os Cravos cantaram ainda mais alto: — O que faz falta é mais água para a malta!
No lago, os Nenúfares não tinham razão de queixa. Boiavam tranquilos na água morna e até achavam graça às rãs que pulavam por cima deles.
Um dos Nenúfares ria a bandeiras despregadas:— Ai que este gafanhoto está a fazer-me cócegas!O bicho verde ouviu e deu um salto para a água, fugindo a nado.Naquela manhã tão animada, de repente, ouviram-se sinos a tocar. Eram as
Buganvílias, que, batidas pelo vento, tocavam uma música que parecia a dos sinos das igrejas em dia de romaria!
Era primavera e as flores diziam ao mundo que a beleza está na natureza.O inverno tinha sido frio e seco, a geada tinha ferido e magoado muitas espécies,
mas a primavera também quer dizer renascimento e a esperança de um novo ano esta-va a chegar.
Todo o dia, estas flores e muitas outras, como as Begónias, os Crisântemos, os Antúrios, as Orquídeas, as Túlipas e as Camélias, não faltaram à festa da vida.
Até os Amores-Perfeitos foram vistos a namorar com as flores dos catos. E ninguém se picou....
Depois o Sol foi dormir, a Lua acordou e as flores fecharam-se porque estava na hora do oó.
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Na corte do Rei Leão D. Pantaleão, às vezes está tudo bem, outras vezes há confusão. Os bichos são simpáticos e bem-comportados à frente de Sua Majestade, mas quando ele vira costas, desatam todos à bulha.
A girafa é muito giraça e a garça que acha que tem muita graça está sem-pre a meter-se com ela.
— Ó girafa, com essa cabeça tão pequena lá no alto, não deves ler muitos livros... — provocou a garça.
A girafa fechou os grandes olhos duas vezes com o seu habitual ar ensonado:— Porque me fazes essa pergunta?— É que, com esse pescoço tão comprido, só consegues ler com binóculos!A garça disse a gracinha e saltou dali para fora.Os pinguins também embirram com as zebras.— Quando é que te apresentas na corte sem ser de pijama? — perguntou
o pinguim Olarila com um risinho de troça.— E tu? Porque é que vais para a cama sempre com fatinho de asas de
grilo?Boa resposta, a da zebra.A foca tem fama de ser forreta e não dar nada a ninguém. Claro que os
outros bichos a criticam por ser tão agarrada.— És muito foca! — disse-lhe o macaco, que dá tudo a toda a gente, até
macacos do nariz.O tigre, que namorava com a pantera-negra, foi aos bichos-de-conta e...
zás, raptou-os só para fazer com eles um colar para a namorada.Os bichos-de-conta ali ficaram a deitar contas à vida até aparecer
alguém que os salvasse, pendurados à volta do pescoço da pantera.Um dia, o Rei convidou todos os animais para a festa anual da amizade.
3ESTE MUNDOÉ UMA SELVA
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Nessa noite, ninguém embirrava com ninguém.Estava lindo o solar do Leão, todo enfeitado com lianas e trepadeiras e uma orques-
tra de pica-paus a tocar com um papagaio a cantar. Era ver o jacaré a dançar com um hipopótamo e a jiboia a exibir-se em números de contorcionismo só para os ursos se divertirem. Até o texugo, que cheira mal como um texugo, conseguiu arranjar um par. Foi uma coelhinha branca que dançou com ele uma música pop, mas com uma mola no nariz!
O Rei Pantaleão estava muito feliz.— Veem como no meu reino todos se dão bem? — dizia para os seus conselheiros,
que eram duas hienas sempre a rir, sempre a rir.À meia-noite, estava a festa na maior animação, a porta do solar abriu-se e entrou
alguém que não tinha sido convidado. Os bichos olharam uns para os outros e começa-ram todos a fugir.
No meio da debandada geral, o Rei Leão D. Pantaleão virou-se e viu um homem sozinho no meio da sala. Pôs voz grossa e ordenou:
— Vai-te embora, porque os meus súbditos não gostam de ti. Eles podem dar-se mal uns com os outros, mas tu és o único animal que só nos tem destruído.
O homem atirou fora a espingarda que trazia ao ombro e saiu, envergonhado.
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É verdade que gosto de queijo e meto-lhe o dente sempre que posso, porque é um alimento que faz bem à saúde. Se não se abusar...
O queijo faz-se a partir do leite, mas eu acho que as ovelhas, as cabras e as vacas nunca o comeram, porque, se lhe conhecessem o sabor, não dariam o seu leite a ninguém.
Pois outro dia, estava eu cheio de apetite — ou seria gulodice? —, resolvi fazer um jantar só de queijos. Sentei-me à mesa e pus à minha frente todos os que conhecia: queijo fresco, meio curado, completamente curado, Rabaçal, da serra amanteigado, flamengo, da ilha, de Tomar e até estrangeiros, como o camembert e o roquefort. Comecei a roer daqui e dali, contente que nem um rato. Tão contente que comecei a imaginar--me a passear nos buracos daquele queijo suíço enorme chamado gruyère. Aventura engraçada esta de passear pelos canais do queijo à descoberta não sei de quê, assim
como quem brinca num labirinto à procura da saída.
Repentinamente, o meu passeio foi interrompido! Mesmo à minha frente estavam os dentes de um rato, e atrás deles estava... mesmo o rato!
— Quem és tu que te metes no meu caminho? — perguntei, aborrecido.
4É DE CAIRO QUEIJO
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— Eu sou o Rato Preto, Ratolas para os amigos, e fui apanhado mesmo com o dente no queijo, que é um dos meus petiscos favoritos. — respondeu o bicho, e con-tinuou: — Apresento-te a minha esposa, Dona Ratinha Ratolinha, e a miudagem.
— E como é que apareceste aqui? — perguntei, porque nunca tinha ouvido um rato a falar.
— Sai da minha frente, rato-sapato!E ameacei-o com uma vassoura, que apareceu, por magia,
na minha mão.— Lá estás tu. É verdade que me sujeito a levar umas vassouradas quando sou apa-
nhado nalguma despensa a petiscar, mas agora nem fiz mal nenhum. Meninos, vamos embora que está na hora. Então não é que o traquinas do miúdo já está a roer as calças do Tio Julião?!
Disse isto e desapareceu a família Ratolas naquele labirinto de buracos.Deixaram-me ali sozinho, perdido naqueles túneis e ainda por cima com uma perna
das calças toda cheia de buraquinhos. O ratinho miúdo tinha uns belos dentes...O resto da aventura dentro do queijo pareceu um filme de terror. Não conseguia
encontrar a saída e espirrava a todo o momento com o cheiro intenso daquele queijo.Para me pôr cá fora, tive de abrir caminho à minha custa. Comecei a roer queijo à pro-
cura do exterior. Eu próprio já parecia um rato.Passado um pedaço de tempo e de queijo, estava cá fora em liberdade, mas muito
agoniado, porque o túnel que escavei no queijo me enchia a barriga!O que me aconteceu depois... não me lembro. Esqueci-me de tudo porque comi
queijo em excesso.