O dulcis virgo

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O dulcis virgo musica para as vésperas da beata virgem O programa que propomos é constituído exclusivamente por música destinada às Vésperas da Assumpção da Virgem, festa que ocorre a 15 de Agosto. Embora o conceito de se escrever música destinada a ser tocada unicamente ao pôr-do-sol de determinado dia (14 de Agosto, neste caso) possa causar estranheza ao ouvinte moderno, o facto explica-se pela importância desempenhada pela música (cantochão ou polifonia) nas práticas litúrgicas durante o Renascimento. Era sobretudo nas festas mais importantes (como o Natal, a Anunciação, a Assumpção ou o dia do santo padroeiro) que os maiores dispositivos vocais e instrumentais eram convocados afim de conferir maior importância e solenidade à ocasião. A profusão de obras polifónicas para estas ocasiões nos manuscritos e impressos é assim um reflexo natural dessa prática e oferece ao investigador moderno um excelente ponto de partida para uma reconstituição da dimensão sonora desses momentos. O alinhamento deste concerto segue o alinhamento das vésperas da Beata Virgine e todas as obras foram seleccionadas de fontes manuscritas portuguesas actualmente residentes na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Assim, apesar do reportório se encontrar destituído de toda a sua dimensão litúrgica, por se tratar de um concerto, as obras conservam a relação de diálogo inerente ao momento “original”. A nossa abordagem procura expressar não só o reportório como as práticas interpretativas históricas a ele associadas. Demos especial atenção à prática do alternatim, que consiste na alternância de texturas, instrumentos ou géneros na execução de obras consecutivas ou de versos da mesma obra. Por exemplo, à alternância entre antífonas e salmos que marca o início das vésperas pode corresponder a uma alternância entre cantochão e polifonia, ou entre polifonia vocal ou instrumental; mas também cada verso de cada salmo poderá ser tratado de forma diferente, alternando entre cantochão e polifonia, entre texturas contrapontísticas, número de vozes, ou até substituindo partes do texto por obras instrumentais. No nosso alternatim, procurámos explorar as várias possibilidades de combinações mas também testar diversas soluções assentes em formas de composição ou de dedução polifónica não escritas (hoje diríamos improvisação) a partir de melodias pré-existentes (os cantus firmus), de acordo com as técnicas descritas por alguns tratadistas da época, como Matheo de Aranda (1535), Diego Ortiz (1553) ou Vicente Lusitano (1553), e com os modelos oferecidos por alguns manuscritos.

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Page 1: O dulcis virgo

O dulcis virgo musica para as vésperas da beata virgem

O programa que propomos é constituído exclusivamente por música destinada às Vésperas da Assumpção da Virgem, festa que ocorre a 15 de Agosto.

Embora o conceito de se escrever música destinada a ser tocada unicamente ao pôr-do-sol de determinado dia (14 de Agosto, neste caso) possa causar estranheza ao ouvinte moderno, o facto explica-se pela importância desempenhada pela música (cantochão ou polifonia) nas práticas litúrgicas durante o Renascimento. Era sobretudo nas festas mais importantes (como o Natal, a Anunciação, a Assumpção ou o dia do santo padroeiro) que os maiores dispositivos vocais e instrumentais eram convocados afim de conferir maior importância e solenidade à ocasião. A profusão de obras polifónicas para estas ocasiões nos manuscritos e impressos é assim um reflexo natural dessa prática e oferece ao investigador moderno um excelente ponto de partida para uma reconstituição da dimensão sonora desses momentos.

O alinhamento deste concerto segue o alinhamento das vésperas da Beata Virgine e todas as obras foram seleccionadas de fontes manuscritas portuguesas actualmente residentes na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Assim, apesar do reportório se encontrar destituído de toda a sua dimensão litúrgica, por se tratar de um concerto, as obras conservam a relação de diálogo inerente ao momento “original”.

A nossa abordagem procura expressar não só o reportório como as práticas interpretativas históricas a ele associadas. Demos especial atenção à prática do alternatim, que consiste na alternância de texturas, instrumentos ou géneros na execução de obras consecutivas ou de versos da mesma obra. Por exemplo, à alternância entre antífonas e salmos que marca o início das vésperas pode corresponder a uma alternância entre cantochão e polifonia, ou entre polifonia vocal ou instrumental; mas também cada verso de cada salmo poderá ser tratado de forma diferente, alternando entre cantochão e polifonia, entre texturas contrapontísticas, número de vozes, ou até substituindo partes do texto por obras instrumentais. No nosso alternatim, procurámos explorar as várias possibilidades de combinações mas também testar diversas soluções assentes em formas de composição ou de dedução polifónica não escritas (hoje diríamos improvisação) a partir de melodias pré-existentes (os cantus firmus), de acordo com as técnicas descritas por alguns tratadistas da época, como Matheo de Aranda (1535), Diego Ortiz (1553) ou Vicente Lusitano (1553), e com os modelos oferecidos por alguns manuscritos.

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[Prelúdio] Ave Maria Gratia Plena Anónimo P-Cug MM 12, fol. 200v

Antífona Assumpta est Maria in caelum Cantochão

Salmo Dixit Dominus Hortis. [Ortiz?] P-Cug MM 44, fol. 38v

Antífona Maria Virgo assumpta est Cantochão

Salmo Laudate Pueri [Pedro de Esperança?] P-Cug MM 18, fol. 97v

Antífona In odorem unguentorum Cantochão

Salmo Laetatus Sum Anónimo P-Cug MM 44, fol. 42v

Antífona Benedicta filia tua Cantochão Salmo Nisi Dominus Anónimo

P-Cug MM 44, fol. 43v Antífona Pulchra es et decora Cantochão

Salmo Lauda Jerusalem Anónimo P-Cug MM 44, fol. 45v

[Interlúdio] O Dulcis Virgo Maria Anónimo P-Cug MM 6, fol. 56r

Hino

Ave Maris Stella Anónimo P-Cug MM 221, fol. 52v

Antífona Virgo Prudentissima D. Petrus C.S. + [Pedro de Cristo] P-Cug MM 53, fol. 3v

Magnificat Magnificat do primeiro tom Luis Morangam [Luis Moran] P-Cug MM 12 fol. 121 v

[Postlúdio] Regina Caeli Anónimo P-Cug MM 6, fol.56v

Mi contra Fa Magna Ferreira – Canto

Hugo Soeiro Sanches – alaúde e viola de mão Pedro Sousa Silva - flautas

Mi contra Fa é um projecto fundado por Magna Ferreira, Hugo Sanches e Pedro Sousa Silva que pretende dar voz à imensa polifonia dos séculos XVI e XVII que se encontra nos arquivos portugueses, a maior parte nunca executada nos tempos modernos.

O acesso ao reportório através das fontes originais, tanto musicais como teóricas ou histórico-sociais, é uma das premissas do trabalho de Mi contra Fa , procurando assim uma melhor compreensão da linguagem implícita na música e na gramática das práticas associadas.

Os membros de Mi contra Fa são intérpretes especializados de música antiga em instrumentos originais e que, paralelamente às suas carreiras concertísticas de âmbito internacional, desenvolvem investigação académica no seio de programas de mestrado e doutoramento no âmbito da filologia aplicada. O grupo conta ainda com a colaboração dos musicólogos José Abreu e Paulo Estudante.